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Revisitando o primeiro modelo freudiano

do trauma: sua composição, crise e horizonte


de persistência na teoria psicanalítica
Antônio Luiz Pereira de Castilho

Antônio Luiz Pereira


de Castilho
Mestre em
Resumo: Revisita-se a construção do primeiro modelo freudiano do
psicologia pela
UFMG, na área trauma, o eixo da chamada teoria da sedução (1896). Seus compo-
de Estudos nentes e dinâmica são examinados e discutidos. O paradoxo presente
Psicanalíticos.
na mencionada teoria é registrado, bem como a reformulação por
Especialista em
Teoria Psicanalítica parte de Freud do fundamento de sua doutrina através da postulação
pela UFMG. da pulsão e da sexualidade infantil. Por fim, ao lado da engenhosa e
singular maneira pela qual aquele modelo do trauma articula seus
elementos, um horizonte de persistência daquela abordagem é ainda
afirmado na esfera da teoria da sedução generalizada.
Palavras-chave: Trauma, teoria da sedução, pulsão, sexualidade
infantil, teoria da sedução generalizada.

Abstract: Revisiting the first Freudian model of trauma: its com-


position, crisis and horizon of persistence in the psychoanalytical
theory. The author revisits the building of the first Freudian model
of trauma, the axis of the so-called theory of seduction (1896).
Its components and dynamics are examined and discussed. The
paradox inside the mentioned theory is registered, and also Freud’s
reformulation of the basis of his doctrine by the postulation of drive
and infantile sexuality. At last, in addition to the inventiveness and
unique way the first Freudian model of trauma connects its ele-
ments, a horizon of persistence to that approach is still affirmed in
the sphere of the theory of generalized seduction.
Keywords: Trauma, theory of seduction, drive, infantile sexuality,
theory of generalized seduction.

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Introdução
A reflexão sobre o trauma é um dos mais importantes eixos do movimento de
ideias da teoria psicanalítica freudiana, estabelecendo com os conceitos de in-
consciente, sexualidade e pulsão uma intensa dialética. Há disso vários exemplos.
Freud supera Charcot no entendimento da histeria por enxergar uma inovadora
lógica do trauma na etiologia da neurose. Em 1896, sua abordagem do trauma
se tornaria ainda mais percuciente, configurando a chamada teoria da sedução, cuja
organicidade requintada de elementos e dinâmica singular produziriam o pri-
meiro modelo (na acepção plenamente epistemológica dessa palavra) do trauma.
Mais adiante, no caso do Homem dos Lobos, publicado em 1918, Freud recorreria
novamente ao modelo do trauma de 1896. Já em 1920, os sonhos traumáticos
seriam focalizados pelo viés da compulsão à repetição, índice da pulsão de morte.
Por fim, em 1926, a tentativa de síntese metapsicológica que Freud empreende
em “Inibições, sintomas e angústia” traria à luz sua derradeira elaboração da
questão do trauma. A palavra “trauma” é de origem grega e reporta-se à ferida
que provém de uma penetração. Assim, o traumatizante seria sempre associado ao
rompimento de uma estrutura de defesa. O caráter súbito, inesperado e ameaçador
de acontecimentos extraordinários, a variedade desconcertante das formas de
sua assimilação psíquica, a discrepância entre a recorrência duradoura do ataque
interno pulsional e a finitude do evento externo, a desestabilização e a regressão
psíquica que incidem sobre o sujeito e a peculiar dinâmica temporal e mnemônica
da irrupção traumática apresentar-se-iam como os múltiplos e embaraçados fios
do que poderíamos chamar de trama do trauma. O curso histórico do pensamento
freudiano registraria essas várias faces do trauma, oscilando, porém, quanto ao
peso epistemológico concedido a cada uma dessas dimensões aludidas.

Rumo ao primeiro modelo do trauma:


a constituição da teoria da sedução
Se retrocedermos nossa atenção ao mistério oitocentista da histeria — objeto de
grande esforço de elucidação por parte da medicina nas décadas finais daquela
época — constatamos que a neurose maior (como o mal histérico era chamado
na França) já era abordada por meio da noção de trauma. Essa conexão seria
inicialmente sustentada por Charcot (1825-1893), com quem Freud estagiaria
por cinco meses, a partir de outubro de 1885, no Hospital de Salpêtrière. Com
o objetivo de livrar os quadros histéricos das habituais acusações de simulação,
Charcot utilizava bastante a hipnose, em prestigiadas demonstrações, nas quais
sintomas eram fabricados e apagados experimentalmente. Embora a índole neu-
rótica da histeria fosse atribuída em última instância à hereditariedade, Charcot
identificava a atuação de agentes provocadores, dentre os quais se destacava o trauma.

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Esse era o estado de coisas dominante, frente ao qual Freud, em suas primeiras
publicações, ousará introduzir um ponto de vista alternativo. Ele reservará ao
trauma uma participação diversa e mais importante no deslinde da questão. No
texto “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferên-
cia” (1893), destacará a relevância do papel do trauma na histeria, recorrendo a
uma hipotética suspensão da hereditariedade, a fundamental razão patogênica
classicamente sustentada por Charcot:

“Consideremos o caso de uma pessoa sujeita a um trauma, sem antes ter estado
doente, e talvez, mesmo sem ter qualquer predisposição hereditária. O trauma
deve satisfazer a certas condições. Deve ser grave — isto é, ser de uma espécie que
envolva a ideia de perigo mortal, de uma ameaça à vida. Mas não deve ser grave
no sentido de pôr termo à atividade psíquica. De outra forma, não produziria o
resultado que esperamos dele.” (FREUD, 1893/1994, p.37)

Podemos perceber que a atividade psíquica decorrente do trauma físico se insinua


como tão importante como o aludido predicado de gravidade do fato. O racio-
cínio adotado é o de que o evento externo não produz por si mesmo o trauma,
mas na verdade dispara uma atividade psíquica — esta sim, patogênica. Freud
enfatizará esse posicionamento dizendo que “o que produz o resultado não é o
fator mecânico, mas o afeto de terror, o trauma psíquico.” (1893/1994, p.40).
Portanto, toda histeria pode ser compreendida como uma histeria traumática,
pois responde sintomaticamente a uma atividade psíquica. Freud então afirma-
rá que a dinâmica neurótica consiste na formação de uma dupla consciência, por
meio de uma cisão entre afeto e representação. De um lado, há o afeto suscitado pelo
evento, na forma de um quantum de excitação correspondente, que permanecerá
retido em parte da psique pela inexistência ou incompletude de um movimento
psíquico (de uma ab-reação) que deveria ter descarregado aquele excesso de estí-
mulo produzido. De outro, em face dessa ausência ou insuficiência evacuatória,
instalar-se-á, de modo correlato e representativo daquele afeto patologicamente
preservado, o sintoma neurótico. Podemos notar que o mesmo configura uma cone-
xão equivocada, por assim dizer (uma falsa ligação) entre o quantum de afeto e uma
área corporal convertida (histericizada) ou uma representação deslocada (investida
de forma obsessivo-compulsiva). Caberá à terapêutica religar o núcleo enquis-
tado de afeto à representação original, via rememoração da cena traumática, de
modo a drená-lo e, assim, estancar a produção de sintomas. Em suma, o que se
propugnava naquele instante era refazer a sequência traumática, no âmbito clí-
nico, proporcionando substitutivamente o necessário arremate catártico que outrora
restara inacabado pela atividade psíquica regular do sujeito.

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Se até aqui Freud estabelecera a ligação entre a sintomatologia da histeria e


um trauma psíquico, que se define pelo desencadeamento de uma atividade men-
tal inconclusa e dissociativa, em “A hereditariedade e a etiologia das neuroses”
(1896), dará mais um passo adiante, e apresentará finalmente a tese da natureza
sexual do trauma. De forma solene e como resultado de ampla pesquisa, reivindica-
se agora à experiência sexual precoce o estatuto de fator fundamental na causa das
psiconeuroses de defesa, em assumido contraste e confronto com a tradicional
tese da hereditariedade nervosa, outrora firmada por Charcot. Esse novo entendimento
resulta, de acordo com Freud, da aplicação de um novo recurso — a psicanálise
— método peculiar que é atribuído a Breuer. O texto “A hereditariedade e a
etiologia das neuroses” (1896) abriga o primeiro registro publicado da palavra
“psicanálise”. Trata-se, segundo Freud, de um procedimento exploratório “um
pouco intrincado, mas insubstituível, tal a fertilidade que tem demonstrado
para lançar luz sobre os obscuros caminhos da ideação inconsciente” (FREUD,
1896a/1994, p.150). Ele ressalta a eficácia da psicanálise em determinar a origem
dos sintomas, afirmando que a investigação acurada e retrospectiva da vida do
paciente, pela qual se vai tecendo a complexa articulação de suas representações
psíquicas, permite-nos verificar que, em todos os casos, um determinado agente
esteve especificamente presente na eclosão da histeria.
“Esse agente é, de fato, uma lembrança relacionada à vida sexual, mas que apresenta
duas características da máxima importância. O evento do qual o sujeito reteve uma
lembrança inconsciente é uma experiência precoce de relações sexuais com excitação real dos órgãos
genitais, resultante do abuso sexual cometido por outra pessoa; e o período da vida em que ocorre esse evento
fatal é a infância — até a idade de 8 ou 10 anos, antes que a criança tenha atingido a
maturidade sexual. Uma experiência sexual passiva antes da puberdade: eis portanto a etiologia
específica da histeria.” (FREUD, 1896a/1994, p.151)

Estamos, pois, diante do que se chamou teoria da sedução. O infante, numa con-
dição de passividade, sofreria a ação sexual de um adulto ou de outra criança,
originando o implante de um potencial traumático que permanecerá adormecido,
num primeiro momento — até que uma lembrança inconsciente, a ocorrer no futuro,
produza a ressignificação do evento como experiência sexual, por parte da vítima,
fazendo com que o sintoma neurótico então se manifeste.

Discussão dos componentes e mecanismos


do modelo etiológico de 1896
A teoria da sedução articulará neurose e trauma, pela mediação de um aspecto
fático (o atentado sexual) e um psíquico (a memória ressignificante). Relevante
observar que em “A etiologia da histeria” (1896), Freud reafirmará categorica-

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mente a experiência sexual passiva infantil em seu valor heurístico e empírico


de novo e seguro ponto de abordagem da neurose, ao assinalar o seguinte:
“qualquer que seja o caso e qualquer que seja o sintoma que tomemos como
ponto de partida, no fim chegamos infalivelmente ao campo da experiência sexual.” (FREUD,
1896b/1994, p.196). Podemos constatar que a experiência do atentado sexual
aparece na forma de uma predisposição, o que nos indica que, na verdade, a etiologia
neurótica preconizada pelo autor não opera de forma mecânica, mas é, na verdade,
decorrente de um processo complexo, composto por momentos conjugados, já
que o fator predisponente sempre exigirá interligação com um cofator para a
instauração do trauma.

“Sustentamos, portanto, que as experiências sexuais infantis constituem a precon-


dição fundamental da histeria, que são, por assim, dizer, a predisposição para esta,
e que são elas que criam os sintomas histéricos — mas não o fazem de imediato,
permanecendo inicialmente sem efeito e só exercendo uma ação patogênica depois,
ao serem despertadas, após a puberdade, sob a forma de lembranças inconscientes.”
(FREUD, 1896b/1994, p.207)

E ainda: “nas pessoas histéricas, quando há uma causa precipitante atual, en-
tram em ação as antigas experiências sob a forma de lembranças inconscientes.” (idem,
p.213). Mas, afinal, em que momento o trauma se instala? No texto “Observações
adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896c), Freud utiliza várias vezes
as expressões trauma infantil e traumas infantis, o que aparentemente nos conduziria
a situar o traumático no âmbito do atentado sexual. No entanto, já advertira
que “não são as experiências em si que agem de modo traumático, mas antes
sua revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na maturidade
sexual.” (FREUD, 1896a/1994, p.165). Portanto, vê-se que sua opção é por loca-
lizar o pathos traumatizante no momento do efeito singular da lembrança, a saber:
naquela revivescência mnemônica da experiência arcaica por sua ressignificação em
termos sexuais. Mas a expressão trauma infantil, fartamente utilizada por Freud,
pode ser referida, em nosso entendimento, ao resultado da implantação de uma
potência que agirá no futuro, já que o atentado sexual representou uma invasão,
por ora inativa, mas cujos efeitos aparecerão a posteriori. Nesse âmbito, nos reme-
teríamos ao trauma em sua acepção de efração, ou seja, de ruptura penetrante. Mas se
quisermos nos referir ao momento propriamente inaugural da desorganização
psíquica, teremos de privilegiar o instante da ação patogênica — aquele da signi-
ficação sexual a posteriori do atentado sedutor, deflagrado pela lembrança. É visível
o quanto a primeira teoria do trauma fundamenta-se num modelo da psique
como um aparelho de memória das experiências intersubjetivas, que se transforma
dialeticamente em sistema de conflito inconsciente-consciente, em face da

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atribuição de significado sexual — a posteriori — a um evento de abuso infantil.


Recapitulando os momentos já descritos, teríamos: 1) a inscrição psíquica de
um traço de memória (a experiência do abuso, por assim dizer, “depositada”
no sujeito); 2) a ativação desse traço de memória (a experiência infantil res-
significada); 3) O recalcamento dessa representação inadmissível (“o abuso era
sexual”) com a cisão representação/excitação afetiva; 4) o retorno do recalcado
nos sintomas neuróticos: conflito psíquico. Nesse contexto, é imprescindível o
registro de que a teoria do trauma em dois tempos traz consigo a primeira ela-
boração psicanalítica a respeito do recalcamento, que se articula à sexualidade
e ao conflito psíquico. Segundo Freud,

“a eclosão da histeria pode ser quase que invariavelmente atribuída a um conflito


psíquico que emerge quando uma representação incompatível detona uma defesa por
parte do ego e solicita um recalcamento. (...) A defesa cumpre seu propósito de arremessar a
representação incompatível para fora da consciência quando há cenas sexuais infantis presentes no sujeito (até
então normal) sob a forma de lembranças inconscientes (...).” (FREUD,1896b/1994, p.206)

Cumpre-nos o alerta de que esta teoria do trauma calcada na sedução sexual


tem seu registro temporal a partir de dois marcos bem específicos: 1º) um acon-
tecimento de abuso infantil e 2º) uma lembrança ativadora daquele depósito
traumático até então inócuo. Trata-se de uma “operação póstuma de um trauma
sexual na infância” (FREUD, 1896c/1994, p.167). Tal “operação”, no entanto, se
dá pelo poder patogênico ressignificante da lembrança. Portanto, o segundo evento
— o propiciador da lembrança — é desprezado axiologicamente por Freud.
A rigor, o segundo evento apenas acende a luz da lembrança, mas não dispara o
gatilho do trauma, ou seja, não integra a cadeia traumatizante ativando a experi-
ência infantil. Fenomenologicamente, os acontecimentos posteriores suscitarão
a lembrança inconsciente patogênica por meio de associações. Mas em termos
de lógica do trauma, o que vale é apenas a relação entre dois termos: uma dia-
lética entre um primitivo acontecimento abusivo ainda não significado e sua lembrança
ressignificante, entre os quais se insere sua inocuidade temporária posteriormente
transformada, em reativação traumática, a partir de um conhecimento adquirido
pela vítima sobre a sexualidade ao longo de seu amadurecimento.
Questão instigante diz respeito ao grau de consciência do sujeito, no momen-
to da ressignificação sexual de sua experiência infantil. Haveria algum flash de
consciência do cunho sexual da experiência vivida — imediatamente recalcado?
Ou a lembrança, isto é, a ligação representativa entre o evento primitivo e sua na-
tureza sexual processa-se no plano inconsciente, formando daí a expressão, algo
paradoxal: “lembrança inconsciente”? Freud não esclarece esse ponto.

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Mas entendemos que o imprescindível é observar que a teoria do trauma


articulada à sedução infantil coloca o momento tradutivo, a saber, o momento da
significação sexual da experiência subjetiva como a verdadeira efetividade deto-
nadora do trauma. Devemos ter em mente que a transição freudiana do trauma
psíquico para o trauma sexual como fator etiológico das neuroses decorreu justa-
mente da dificuldade que Freud sentia em acatar sem maiores questionamentos
a hipótese de que qualquer acontecimento poderia ser assimilado pelo sujeito na
qualidade de psiquicamente traumatizante.
Esse ponto de vista até então dominante — que passa a ser questionado
sistematicamente por Freud — parecia encontrar amparo em experiências com
a hipnose, através das quais determinações triviais eram então elevadas a um
estatuto traumático para o indivíduo hipnotizado. Tal fato se correlacionava de
maneira intensa com certas associações levadas a efeito por pacientes, quando
seus estados patológicos eram vinculados mnemonicamente a eventos banais. Ao
lado disso, ia ao encontro da tese de Breuer, segundo a qual supostas ocorrências
extraclínicas de um estado hipnoide no sujeito possibilitariam psiquicamente uma
marcação traumática naquele, a despeito da insignificância objetiva do fato.
Mas se Freud sabe, por um lado, que o traumático se inscreve por meio de
uma atividade mental (a tese do trauma psíquico), por outro, ele de fato não se
sente à vontade para dispensar uma relação de adequação entre o movimento
interno da psique, responsável pela irrupção sintomática, e a qualidade do evento
externo. Assim, permanecia a incômoda indagação sobre se a teoria do trauma
poderia apoiar-se num evento exterior de escassa significação — ou seja, se
seria viável, para o entendimento que se construía, alicerçar-se parcialmente
num fato desprovido de gravidade. Uma saída cogitada para esse impasse seria
o aprofundamento radical da pesquisa sobre a etiologia do sintoma, de modo a
se adotar uma política metodológica de sempre ultrapassar as associações ligadas
a eventos de vetor atacante questionável, rumo a uma ideal rememoração de um
acontecimento indiscutivelmente adequado à eclosão psíquica do trauma.
Mas Freud ressalta que essa via vai-se revelando, na experiência clínica, uma
missão impossível: uma trajetória labiríntica e infinita. Mesmo quando o paciente,
por fim, supostamente conseguia localizar um ponto de origem de seus sinto-
mas — de apropriado valor patogênico aos olhos do analista — a posteridade
do tratamento não tardava a revelar o aparecimento de novas cenas, até então
desconhecidas e insuspeitas.
Podemos então notar que a preconização da etiologia sexual da neurose teria
o condão de determinar um deslinde epistemologicamente eficiente para aquele
interminável novelo de interconexões associativas com que a clínica se defron-
tava. E essa virtude ocorre na medida em que não funda o seu poder explicativo
apenas na economia e na dinâmica de uma suposta cena originária (carecedora de

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ab-reação e, daí, clivante e patogênica), mas no significado de uma experiência


infantil inconscientemente evocada.
O traço mnemônico que aciona a experiência infantil do atentado sexual
será o fator que preservará tanto a tese da natureza psíquica do trauma quanto a
adequação deste a um fato que não pode ser qualquer um, mas, sim, certo acon-
tecimento qualificado axiologicamente pelo psiquismo humano — um evento,
pois, sexual. O sexual surgia na teoria da sedução como uma experiência apassivante
geradora de uma representação inconciliável, cuja inadmissibilidade frente ao eu se
definia por sua censurabilidade moral. Segundo Freud, “os esforços defensivos
do ego dependem do desenvolvimento moral e intelectual completo do sujeito”
(1896b/1994, p.207). Introduzia-se, assim, o quesito da maturidade orgânico-
intelectiva da vítima, a fim de que a fugaz (pois recalcada) ressignificação da
experiência infantil vivida (por meio da eclosão de sentimentos de asco, repúdio,
vergonha, culpa, etc.) se fizesse justamente pelo índice de sexualidade condenável
então identificado.
Destaquemos que essa aludida dependência da maturação dos órgãos sexuais
na puberdade, bem como o correlativo conhecimento a respeito do normativo e do
transgressivo, são itens que contrastarão com a futura ideia de sexualidade infantil,
a ser desenvolvida em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905). De
qualquer modo, tornando-se a eclosão do trauma vinculada a um aspecto espe-
cífico de um movimento de ressignificação de evento pretérito, de ordem sexual,
poder-se-ia agora responder por que, por exemplo, tanto a prosaica visão de
uma borboleta como um grave acidente ferroviário poderiam ser relatados por
pacientes como os momentos a partir dos quais surgiram seus sintomas.
A solução consistente que se apresenta é a seguinte: tanto o exemplo de
evento ameaçador de fato quanto o outro, francamente débil quanto ao poder de
produzir um efeito traumático, não fazem parte da lógica patogênica do trauma.
Não é, pois, o segundo acontecimento ou um rol secundário de acontecimentos
que exatamente desencadeiam o trauma. Eles desencadeiam, na verdade, o
traço de memória traumatizante. Eles são, seja qual for sua natureza, agentes
provocadores contingenciais da lembrança inconsciente — esta sim, a real ativadora
do evento infantil, em termos patogênicos. Por serem evocados mais facilmente
pela memória, os acontecimentos integrantes de um quadro de eventos secun-
dários ao abuso infantil foram sempre associados com maior espontaneidade ao
trauma pelos pacientes. Porém, ao entendê-los corretamente, como meros gatilhos
mnemônicos, tanto faz se tais eventos posteriores ao atentado forem triviais ou
terríveis e ameaçadores de fato.
Por isso, a opção freudiana pelo restrito entendimento do trauma através
da primazia de um determinado evento infantil (qualificado como sexual) e de sua
ativação posterior, excluindo-se o possível poder patogênico de uma segunda

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cena ou de cenas posteriores, terá a virtude de resolver o enigma da banalidade


e da falta de adequação ao quadro traumático de uma plêiade de experiências
trazidas à luz pelos pacientes, ingenuamente valorizadas por eles, mas, em rea-
lidade, imprestáveis para a específica composição da lógica traumática.
Observemos então que o sexual, na forma de uma experiência infantil, é o
elemento que, no âmbito desta primeira teoria do trauma, retira o foco da parti-
cularidade do modo de assimilação psíquica (ab-reativo ou não) das experiências
e o redireciona para o significado de uma determinada cena (seu sentido inaceitável à
consciência), que é seu caráter efetivamente traumático. Com isso, a descoberta
de que o trauma é sexual liberta a teoria e a clínica do puro empirismo psicologista
das experiências não ab-reagidas e neurotizantes e coloca a reflexão e a prática
defronte a um significado específico e exclusivo que se revelará o fundamento da neurose:
a experiência apassivante da sexualidade por via do atentado sexual.
Desse modo, a primeira teoria do trauma de Freud não é biologista, pois não
sustenta qualquer aposta etiológica fundamental na hereditariedade; não é mecani-
cista, pois não admite que o evento externo por si mesmo provoque diretamente
o trauma; mas também não é psicologista, porque não reduz o traumático à contin-
gência de uma forma de assimilação psíquica de eventos, quaisquer que sejam.
Era, assim, notável a evolução pela qual havia passado o pensamento de Freud
e sua complexa originalidade atingida nos anos 1895/1896, quando preconiza
definitivamente a etiologia sexual da neurose, formulando uma teoria da sedução
como teoria do trauma em dois tempos.

O refluxo da teoria da sedução


A autocrítica levada a cabo por Freud, no início do outono de 1897, a respeito
de sua proposta de uma etiologia traumática da neurose, aparece em geral na
historiografia psicanalítica como um revolucionário ponto de inflexão a partir
do qual ocorreria o efetivo surgimento da psicanálise — tal como prevaleceria e se
tornaria conhecida na posteridade. Partindo da então preconizada realidade factual
da sedução infantil, o pensamento freudiano teria avançado para fundamentar-se
na fantasia de sedução — o que representaria um inquestionável aperfeiçoamento
de suas bases e de seu foco.
As dúvidas freudianas conducentes à transformação de seu ponto de vista
aparecem na carta 69 a Fliess, de 21 de setembro de 1897.

“Querido Wilhelm, (...)


E agora quero confiar-lhe, de imediato, o grande segredo que foi despontando
lentamente em mim nestes últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica
|teoria das neuroses|. (...) A |incidência| da perversão teria que ser incomensura-

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velmente mais frequente do que a histeria |dela resultante|, porque afinal, a doença
só ocorre quando há um acúmulo de acontecimentos e um fator contributivo que
enfraqueça a defesa. (...)
Agora, não tenho a menor ideia de onde me situo, pois não tive êxito em alcançar
uma compreensão teórica do recalcamento e de sua inter-relação de forças. Mais
uma vez, parece discutível que somente as experiências posteriores deem ímpeto às
fantasias, que, |então| remontariam à infância, e, com isso, o fator da predisposição
hereditária recupera uma esfera de influência da qual eu me incumbira de desalojá-
lo — em prol do esclarecimento da neurose.” (MASSON, 1985, p.265-266)

Embora a sinalização de um retorno à hereditariedade charcotiana jamais se


tenha consumado, Freud notava com gravidade e pesar que sua teoria da sedução
fundava-se numa improbabilidade estatística, já que a quantidade de pacientes
histéricos com reminiscências a respeito de atentados de sedução ultrapassava
amplamente o número de pacientes com sintomatologia neurótica. O corolário
disso seria a existência de um quantitativo de perversos — nos próprios meios
familiares — muitíssimo superior ao que seria razoável supor, para que se tor-
nasse possível sustentar aquela ampla gama de lembranças quanto a abusos e
atos de sedução infantil.
É a essa situação implausível que Freud parece se referir em certo momento
da mesma carta 69, quando revela a “percepção da inesperada frequência da
histeria, com predomínio precisamente das mesmas condições em cada caso,
muito embora, certamente, essas perversões tão generalizadas contra as crianças
não sejam muito prováveis” (MASSON, 1985, p.265).
Com efeito, a constatação clínica de um instigante padrão e de uma inusitada
regularidade nas falas de pacientes histéricos, fatos aludidos por Freud como
francamente inesperados, resultará na ruína da tese da permanente empiricidade
do atentado sexual como causador da neurose e pavimentará a introdução da
suspeita de contaminação dos relatos por parte de puros movimentos de fantasia
histérica (desprovidos, pois, de lastro no abuso infantil). A vantagem da hipótese
da hegemonia da fantasia é que essa se apresenta aos olhos de Freud como fator
dotado de plena aptidão para sustentar a surpreendente e extensa similaridade
entre os relatos clínicos. Embora parte dos psicanalistas antagonize a teoria da
sedução com a inflexão crítica de 1897, apontando essa última como introdutora de
uma radical inovação doutrinária — a refletir o amadurecimento do pensamento
freudiano — é bom que se diga que a questão da fantasia jamais restara inexistente
na etiologia traumático-sexual da neurose presente na teoria da sedução.
Freud salienta, na dita carta 69, que lhe parece “discutível que somente
experiências posteriores deem ímpeto às fantasias que então remontariam à
infância” (idem, p.266). Ora, contrariando a historiografia simplificadora da

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psicanálise, tal passagem supracitada nos mostra inequivocamente a ausência


de um antagonismo dicotômico entre trauma e fantasia no âmbito da teoria da
sedução. Podemos verificar no texto em foco que as experiências posteriores
configuradoras do segundo rol de eventos na fenomenologia do trauma constituem
o momento de incitação e de irrupção de lembranças cujo poder patologizante
(pois ressignificador) do evento abusivo infantil operará justamente através da
deflagração de fantasias.
Portanto, o processo de eclosão neurótica, como aparece na teoria da se-
dução, iniciou-se precisamente no aludido “ímpeto às fantasias”, ou seja, na
inevitável instigação fantasmática e em seu efeito atacante que são indiscerníveis
da reminiscência. A lembrança traumatizante opera carregando-se de uma face
gozosa — a fantasia — que, por sua vez, só pode ser suscitada e tecida a partir
de uma dimensão mnemônica, ínsita à reminiscência.
Nossa conclusão é a de que nesse trecho da carta do equinócio de 1897
explicita-se o que restava implícito, mas em pleno vigor, na teoria da sedução:
lembrança e fantasia são correlativas e contrafaciais na irrupção traumática, por
via da ressignificação do evento passado infantil. Na esteira disso, diríamos que
o mérito da teoria do trauma em dois tempos consistiria, entre outras coisas,
em demonstrar a íntima articulação entre memória, gozo, ataque fantasmático,
defesa, recalque e retorno do recalcado.
Se o ser humano fantasia, ele só o pode fazer pela operação da lembrança
traumática; ainda, lembrar é inevitavelmente gozar de uma fantasia atacante
imediatamente formada no próprio momento e seio do que é lembrado. Enfim,
contrariamente aos comentadores que de modo apressado elegem a suposta intro-
dução da fantasia na cena teórica psicanalítica como o elemento de diferenciação
entre o pensamento freudiano pré e pós-equinócio de 1897, o mais correto é
sustentar que o que separou um momento do outro jamais foi a presença ou a
ausência da noção de fantasia, mas sim a especificação da origem da fantasia que
cada um deles registrou explícita ou implicitamente.

Um novo paradigma: a sexualidade infantil e pulsional


Após 1897, a origem e fundamento da fantasia não mais será a vivência apas-
sivadora infantil, por assim dizer revisada mnemonicamente como sexual, mas
a própria sexualidade infantil, como evento universal e biológico produzido por
um fator a que Freud daria o nome de Triebe (impulso, pulsão) — introduzido
em 1905, no texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. A revolucio-
nária ampliação efetuada nessa obra quanto à determinação do início e das
fronteiras da sexualidade — que passa de fenômeno genital tutelado pela
puberdade para um fenômeno autoerótico já em plena positividade e vigên-

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cia na aurora da vida infantil — só se torna possível através da mencionada


introdução do conceito de pulsão, que funcionará como a força de pressão
subjacente àquela fenomenologia sexual arcaica, que então poderá ser enten-
dida como biológica e infantil, e, daí, universal e não traumática. Por isso,
logo nas primeiras linhas de “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”,
Freud entrelaçará sexualidade, fundamento biológico e postulado pulsional,
ao escrever que “o fato da existência de necessidades sexuais no homem e
no animal expressa-se na biologia pelo pressuposto de uma ‘pulsão sexual’.”
(FREUD, 1905/1994, p.127). Isso quer dizer que a sexualidade só pode ser
cientificamente compreendida postulando-se a presença de um estímulo es-
pecífico — de fonte somática — que precede e rege aquele conjunto singular
de manifestações, efeitos e vicissitudes nos seres vivos. Nessa mesmíssima
linha, uma passagem de “Pulsões e destinos da pulsão”:

“Se abordarmos agora a vida psíquica do ponto de vista biológico, a “pulsão” nos
aparecerá como um conceito limite entre o psíquico e o somático, como o repre-
sentante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a
psique, como uma medida de trabalho imposta ao psíquico em consequência de
sua relação com o corpo.” (FREUD, 1915/2004, p.148)

Atenção para as expressões: vida psíquica do ponto de vista biológico; estímulos


que provêm do interior do corpo; medida de trabalho imposta ao psíquico em
consequência de sua relação com o corpo. Todas elas nos mostram que no freudismo
pós-teoria da sedução, a sexualidade tornara-se um epifenômeno desse postulado
biológico denominado Triebe (pulsão), que Freud compreendia, por um lado, como
singularidade interna ao sujeito, e, por outro, como estimulação análoga àquela
produzida pela realidade em nossos sentidos. Assim, tanto o corpo quanto o mundo
exterior têm como predicado essencial e comum o fato de ambos serem fontes
de estímulos que provocarão a necessidade de um processamento evacuatório
por parte do aparelho psíquico, cuja função de redutor daquelas sensações e
tensões recebidas e acumuladas é sua própria razão de ser.
Com efeito, procedeu-se no pensamento freudiano à substituição do sexual
como instância traumática — em virtude do encontro a posteriori do sujeito, no
curso de sua existência, com certa significação relativa a evento interpessoal de sua
infância — pelo ponto de vista que apresenta a sexualidade como um campo das
manifestações polimórficas, perversas e fantasísticas — oriundas do investimento
de uma força pressionante de fundo somático e de operacionalidade representativa
na psique, a que se deu o nome de pulsão.
Assim, o conflito psíquico fundado na sedução infantil, em face de reminiscên-
cias/fantasias traumáticas, pois inaceitáveis — deflagradoras de uma defesa — a partir

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de agora será substituído por um modelo em que um determinado fenômeno


biológico e universal, intitulado sexualidade infantil, propiciado por fontes orgânicas
de estimulação pulsional, percorrerá um desenvolvimento por etapas, através
de fases de investimento e de organização libidinal (oral, anal, fálica) em direção
a certa síntese derradeira, sob a hegemonia da genitalidade.
Cabe-nos lembrar que esse processo sequencial desenrola-se de modo
multifacetado e por vezes acidentado: apresenta-se sujeito a vicissitudes, tais
como inibições, fixações e regressões, contrai-se numa fase de latência, atinge
seu coroamento na genitalidade-reprodutiva, bem como exibe um variado
leque de destinação pulsional, nas vias do recalque, da sublimação, etc. Freud
registraria, enfim, a mudança de enfoque e da correção de curso ocorrida em
seu pensamento, que teria efetuado a substituição dos traumas sexuais infantis pela
descoberta do infantilismo da sexualidade. (FREUD,1906/1994, p.258)

Conclusão: um modelo do trauma dotado


de viés antropológico
O “calcanhar de Aquiles” da teoria da sedução — a postulação da universalidade
do atentado perverso sobre a criança — tornou-se tema de domínio público,
explorado ad nauseam no campo doutrinário da psicanálise, recalcando as virtu-
des subsistentes da sofisticada articulação lógica e fenomenológica contida em
seu modelo de entendimento do trauma. Consideramos o primeiro modelo do
trauma — presente na teoria da sedução de 1896 — um impressionante tour de force.
Ele é revelador da magnitude do gênio de Freud, pela capacidade que possui de
articular dialeticamente uma série de elementos — de forma bastante engenhosa.
Simultaneamente, o que exsurge como grandioso nas bases daquela teorização
é a dimensão antropológica que se insinua. Subjacente ao esquema de causação
traumática da neurose, vislumbra-se uma visão de homem profunda, complexa,
multifacetada:
a) A subjetividade humana é indiscernível da categoria de intersubjetividade — o
trauma só pode ser pensado a partir do encontro do sujeito com a alteridade:
um encontro marcante com o outro, marcado pelo outro;
b) No humano, ser e temporalidade se conjugam — a inscrição dos eventos no
psiquismo não é feita de forma imediata, direta, mecânica, mas requer um duplo
tempo para a irrupção de seus efeitos;
c) No humano, o tempo só é tornado ser pela mediação de um significado
(que então configura o segundo tempo do trauma) e esse significado é referente
ao campo sexual como dimensão intolerável e atacante ao eu, e daí destinada
ao recalcamento;

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d) No humano, a significação encontra-se mnemonicamente magnetizada


pelo inconsciente. Significar é sempre recordar sem perceber (e sem poder
perceber) que se recorda: é associar, num átimo, consciente e inconsciente.
Daí a expressão freudiana ambígua, fluida, misteriosa, mas reveladora: lembrança
inconsciente — indicando-nos que a conexão mnemônica entre tempos e eventos,
por um significado, pode ser recalcada de imediato e produzir efeitos psíquicos
sem que o sujeito tenha racionalmente atinado com esse processo de si sobre
si mesmo;
e) O ser humano traumatiza-se porque nele acontece o inusitado: o traço de
memória então ressignificado como inconciliável torna-se, a despeito disso, fan-
tasia de desejo e ataque pulsional. A passividade é um gozo paradoxal: é desejo
(inconsciente) e angústia (consciente).
Eis o retrato panorâmico, percuciente, operacional e absolutamente vertigi-
noso em seu paradoxo que Sigmund Freud, em 1896, logrou revelar a respeito
da psique humana, de maneira audaciosa e revolucionária. A primeira teoria
do trauma é, portanto, uma complexa articulação entre várias dimensões me-
tapsicológicas e antropológicas: a fática (intersubjetiva), a significacional (sexual),
a temporal (mnemônica), a inconsciente (a recalcada ressignificação do evento), a
etiológico-pulsional (o retorno do recalcado pelos sintomas neuróticos) e a conflitual-
intersistêmica (o que é prazer para o inconsciente é desprazer para o consciente).
Na teoria da sedução, o trauma é sexual. Essa palavra — sexual — adquire aqui
o estatuto de uma experiência tão marcante, tão singular para o ser humano que
ganha a dimensão de parâmetro de memória e critério de recepção face às vicissitudes que
acometerão o sujeito em sua existência futura. A sexualidade é, antes e acima
de tudo, um tempo ao qual o homem remeter-se-á mnemonicamente vida afora,
e que ressurgirá por via de um efeito neurótico, que é, afinal, efeito pulsional.
Daí o diálogo que a teoria da sedução pode estabelecer com uma magistral
passagem de Walter Benjamin: “Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo
menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado
é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.”
(BENJAMIN, 1985, p.37)
Nesse trecho, Benjamin mostra-nos que o vivido não passa de um depósito,
um traço, uma inscrição — que nesse nível se encerra, mas que será inevita-
velmente ativado (ressignificado) pela lembrança (segundo tempo do trauma),
tornando-se “sem limites”, ou seja, produzindo (em tradução psicanalítica)
efeito pulsional — e nesse instante transformando-se em “chave” para o que veio
antes (a sedução) e para o que veio depois (os ataques de fantasias, os sonhos,
a neurose, a compulsão repetitiva etc.).
Eis uma dialética da memória, que é a dialética da existência humana sexualizada
intersubjetivamente em seu próprio originário, superando o paradoxo do atentado, através

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de uma sedução não contingente, mas generalizada e universal (LAPLANCHE, 1988,


p.108-125), visto que transformadora do finito (o vivido) em infinito: objeto-
fonte de pulsão — para sempre causa de desejo.

Recebido em 15/4/2011. Aprovado em 11/6/2011.

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Antônio Luiz Pereira de Castilho


anluiz@yahoo.com

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