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Introdução
A reflexão sobre o trauma é um dos mais importantes eixos do movimento de
ideias da teoria psicanalítica freudiana, estabelecendo com os conceitos de in-
consciente, sexualidade e pulsão uma intensa dialética. Há disso vários exemplos.
Freud supera Charcot no entendimento da histeria por enxergar uma inovadora
lógica do trauma na etiologia da neurose. Em 1896, sua abordagem do trauma
se tornaria ainda mais percuciente, configurando a chamada teoria da sedução, cuja
organicidade requintada de elementos e dinâmica singular produziriam o pri-
meiro modelo (na acepção plenamente epistemológica dessa palavra) do trauma.
Mais adiante, no caso do Homem dos Lobos, publicado em 1918, Freud recorreria
novamente ao modelo do trauma de 1896. Já em 1920, os sonhos traumáticos
seriam focalizados pelo viés da compulsão à repetição, índice da pulsão de morte.
Por fim, em 1926, a tentativa de síntese metapsicológica que Freud empreende
em “Inibições, sintomas e angústia” traria à luz sua derradeira elaboração da
questão do trauma. A palavra “trauma” é de origem grega e reporta-se à ferida
que provém de uma penetração. Assim, o traumatizante seria sempre associado ao
rompimento de uma estrutura de defesa. O caráter súbito, inesperado e ameaçador
de acontecimentos extraordinários, a variedade desconcertante das formas de
sua assimilação psíquica, a discrepância entre a recorrência duradoura do ataque
interno pulsional e a finitude do evento externo, a desestabilização e a regressão
psíquica que incidem sobre o sujeito e a peculiar dinâmica temporal e mnemônica
da irrupção traumática apresentar-se-iam como os múltiplos e embaraçados fios
do que poderíamos chamar de trama do trauma. O curso histórico do pensamento
freudiano registraria essas várias faces do trauma, oscilando, porém, quanto ao
peso epistemológico concedido a cada uma dessas dimensões aludidas.
Esse era o estado de coisas dominante, frente ao qual Freud, em suas primeiras
publicações, ousará introduzir um ponto de vista alternativo. Ele reservará ao
trauma uma participação diversa e mais importante no deslinde da questão. No
texto “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferên-
cia” (1893), destacará a relevância do papel do trauma na histeria, recorrendo a
uma hipotética suspensão da hereditariedade, a fundamental razão patogênica
classicamente sustentada por Charcot:
“Consideremos o caso de uma pessoa sujeita a um trauma, sem antes ter estado
doente, e talvez, mesmo sem ter qualquer predisposição hereditária. O trauma
deve satisfazer a certas condições. Deve ser grave — isto é, ser de uma espécie que
envolva a ideia de perigo mortal, de uma ameaça à vida. Mas não deve ser grave
no sentido de pôr termo à atividade psíquica. De outra forma, não produziria o
resultado que esperamos dele.” (FREUD, 1893/1994, p.37)
Estamos, pois, diante do que se chamou teoria da sedução. O infante, numa con-
dição de passividade, sofreria a ação sexual de um adulto ou de outra criança,
originando o implante de um potencial traumático que permanecerá adormecido,
num primeiro momento — até que uma lembrança inconsciente, a ocorrer no futuro,
produza a ressignificação do evento como experiência sexual, por parte da vítima,
fazendo com que o sintoma neurótico então se manifeste.
E ainda: “nas pessoas histéricas, quando há uma causa precipitante atual, en-
tram em ação as antigas experiências sob a forma de lembranças inconscientes.” (idem,
p.213). Mas, afinal, em que momento o trauma se instala? No texto “Observações
adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896c), Freud utiliza várias vezes
as expressões trauma infantil e traumas infantis, o que aparentemente nos conduziria
a situar o traumático no âmbito do atentado sexual. No entanto, já advertira
que “não são as experiências em si que agem de modo traumático, mas antes
sua revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na maturidade
sexual.” (FREUD, 1896a/1994, p.165). Portanto, vê-se que sua opção é por loca-
lizar o pathos traumatizante no momento do efeito singular da lembrança, a saber:
naquela revivescência mnemônica da experiência arcaica por sua ressignificação em
termos sexuais. Mas a expressão trauma infantil, fartamente utilizada por Freud,
pode ser referida, em nosso entendimento, ao resultado da implantação de uma
potência que agirá no futuro, já que o atentado sexual representou uma invasão,
por ora inativa, mas cujos efeitos aparecerão a posteriori. Nesse âmbito, nos reme-
teríamos ao trauma em sua acepção de efração, ou seja, de ruptura penetrante. Mas se
quisermos nos referir ao momento propriamente inaugural da desorganização
psíquica, teremos de privilegiar o instante da ação patogênica — aquele da signi-
ficação sexual a posteriori do atentado sedutor, deflagrado pela lembrança. É visível
o quanto a primeira teoria do trauma fundamenta-se num modelo da psique
como um aparelho de memória das experiências intersubjetivas, que se transforma
dialeticamente em sistema de conflito inconsciente-consciente, em face da
velmente mais frequente do que a histeria |dela resultante|, porque afinal, a doença
só ocorre quando há um acúmulo de acontecimentos e um fator contributivo que
enfraqueça a defesa. (...)
Agora, não tenho a menor ideia de onde me situo, pois não tive êxito em alcançar
uma compreensão teórica do recalcamento e de sua inter-relação de forças. Mais
uma vez, parece discutível que somente as experiências posteriores deem ímpeto às
fantasias, que, |então| remontariam à infância, e, com isso, o fator da predisposição
hereditária recupera uma esfera de influência da qual eu me incumbira de desalojá-
lo — em prol do esclarecimento da neurose.” (MASSON, 1985, p.265-266)
“Se abordarmos agora a vida psíquica do ponto de vista biológico, a “pulsão” nos
aparecerá como um conceito limite entre o psíquico e o somático, como o repre-
sentante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a
psique, como uma medida de trabalho imposta ao psíquico em consequência de
sua relação com o corpo.” (FREUD, 1915/2004, p.148)
Referências