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Resumo
Esse artigo procura demonstrar como é possível entender certas identificações muito
primitivas, em especial as identificações intrusivas, quando associadas à situação
traumática e expressas através de fantasias inconscientes decorrentes dessa
experiência. Num primeiro olhar esta forma de compreensão poderia ser considerada
bastante comum. Entretanto, o que apresento como contribuição original é a
participação desta combinação, em especial, na formação das primitivas identificações
intrusivas e sua associação com o aprisionamento no interior do objeto primitivo de
identificação, notadamente à mãe. Proponho a ampliação da utilização clínica do
conceito de “vida no claustrum”, originalmente descrito por Meltzer (1992), para além
das situações persecutórias claustrofóbicas. Ilustro com material clínico, o trabalho
analítico realizado com uma paciente, cujo caráter narcisista e intrusivo se estruturou
com base nas primitivas identificações intrusivas e fantasias inconscientes decorrentes
do enclausuramento no interior da mãe. O aprisionamento da paciente no interior de
compartimentos materno tem como tela de fundo as fantasias relacionadas à vivência
traumática infantil da morte do irmão que são reproduzidas na relação analítica.
Introdução
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Money-Kyrle (1968) utiliza o termo “misconceptions” para explicar as distorções da imagem parental
que ocorrem no que denomina de terceiro estágio do desenvolvimento cognitivo, por exemplo, as
concepções distorcidas que o paciente faz a respeito da cena primária.
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(fantasiar). No artigo “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”,
de 1911, Freud postulou que o bebê preenche o vazio entre desejo e satisfação através
de uma realização alucinatória de desejo – uma alucinação onipotente de satisfação.
Para ele, existiriam dois caminhos para se lidar com as falhas na satisfação: o da
fantasia onipotente alucinatória e o que conduzia ao desenvolvimento do pensamento.
Klein ampliou o conceito de fantasia de Freud, incluindo as primitivas
realizações de desejo dirigidas ao objeto desde o nascimento. As fantasias primitivas,
portanto, passaram a se constituir na expressão de ambos os instintos, podendo, as
alucinações serem tanto persecutórias quanto agradáveis. O princípio do prazer abre
caminho para o princípio de realidade, como um organizador da vida psíquica. O
surgimento do princípio de realidade não significa o abandono da fantasia. Ela
permanece no inconsciente e é expressa simbolicamente, mesmo em nossos desejos
mais primitivos. Duas formas de simbolismo foram distinguidas por Segal (1957): numa
forma mais primitiva, ele é concreto, o símbolo é equiparado com o que é simbolizado,
levando a crenças falsas e percepções distorcidas; e, noutra forma mais evoluída, o
símbolo representa o objeto e não é confundido e identificado com ele, mantendo suas
características.
Na forma concreta de simbolização, há predominância da identificação projetiva
na posição esquizoparanóide. A identificação projetiva excessiva equipara o objeto com
a parte projetada do sujeito, tratando o símbolo como parte de si mesmo e não como se
fosse o objeto original. Bion (1963) acrescentou que a patologia da identificação
projetiva, além de distorcer a percepção, promove a fragmentação do aparelho de
percepção fazendo com que as capacidades cognitivas e de julgamento fiquem
projetadas dentro dos objetos, que são vistos como oniscientes e julgadores (super-
egóicos).
Considerações Finais
As fantasias inconscientes e a realidade colorem o interjogo de relações objetais,
constroem o mundo interno e se encontram na base da estruturação do caráter do
indivíduo. Não foi por acaso que Segal (1994) destacou estes conceitos como centrais
da psicanálise. As identificações projetivas são, por excelência, um dos principais meios
de veiculação destas construções do mundo interno. Dentro deste contexto, as
experiências traumáticas entram como um componente da realidade externa que pode
corroborar ou não para certas distorções previamente existentes associadas com as
fantasias inconscientes.
O exemplo de Marta nos permite observar alguns destes fenômenos descritos,
especialmente deste tipo particular de identificação, denominada por Meltzer (1992) de
identificação intrusiva, que o levou a desenvolver suas idéias sobre “a vida no
Claustro”. Este conceito me parece muito útil na clínica psicanalítica, auxiliando na
compreensão, não só das ansiedades paranóides associadas aos fenômenos
claustrofóbicos como preconizava Meltzer, mas também em certos funcionamentos
muito regressivos intrusivos, como no caso de Marta, que vive aprisionada no interior
da mãe, identificada com o “modelo materno” de concepção da figura masculina, com
todos os prejuízos que resultaram na estruturação dos seus padrões de relações de
objeto. Tal situação leva a um empobrecimento do ego e do self, dificultando e
distorcendo a formação dos vínculos como exemplifica sua análise, limitando a
capacidade de simbolização e de continência, elementos essenciais para um adequado
crescimento da capacidade de pensar acerca das emoções e na capacidade feminina de
gerar bebês.
Seguramente, outros vértices não são excludentes e poderiam ser abordados no
entendimento deste caso, entretanto, privilegiei a compreensão a partir das idéias de
Meltzer sobre “a vida no claustro”, pois foi este o entendimento que me pareceu mais
adequado para esclarecer o enclausuramento da paciente no interior da mãe.
A investigação psicanalítica dos objetos internos e do self tem no aspecto
intrusivo da identificação projetiva a expressão da psicopatologia. A intrusão e o
aprisionamento no interior dos compartimentos materno dificultam a integração das
funções de continência de mãe, resultando na incapacidade de imaginar os bebês no seu
interior e na própria mente, comprometendo a relação com a figura masculina e as
capacidades para a maternidade. A psicanálise pode esclarecer, nestes casos, como os
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objetos internos são construídos durante o processo de desenvolvimento cognitivo, nos
processos de luto e nas situações traumáticas, auxiliando a entender e corrigir as
eventuais concepções inconscientes distorcidas dos objetos e do self pela identificação
intrusiva.
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