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Publicado no Int J Psychoanal 2007; 88:627-42

O impacto da identificação intrusiva no processo analítico:


algumas implicações do trauma real e da fantasia

The impact of the intrusive identification in the analytic


process: some implications of real trauma and phantasy

Autor: JACÓ ZASLAVSKYa


a
Av. Taquara, 572/301, 90460-210 Porto Alegre RS, Brazil – jacozas@terra.com.br
___________________________________________
a
Psicanalista e Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Professor-
Colaborador do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Grande do Sul (UFRGS). Coordenador Executivo do Curso de
Especialização em Psicoterapia de Orientação Analítica da UFRGS. Editor da Revista de
Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Mestre em Psiquiatria pela Universidade Federal do Grande
do Sul.
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O impacto da identificação intrusiva no processo analítico:


algumas implicações do trauma real e da fantasia

Resumo
Esse artigo procura demonstrar como é possível entender certas identificações muito
primitivas, em especial as identificações intrusivas, quando associadas à situação
traumática e expressas através de fantasias inconscientes decorrentes dessa
experiência. Num primeiro olhar esta forma de compreensão poderia ser considerada
bastante comum. Entretanto, o que apresento como contribuição original é a
participação desta combinação, em especial, na formação das primitivas identificações
intrusivas e sua associação com o aprisionamento no interior do objeto primitivo de
identificação, notadamente à mãe. Proponho a ampliação da utilização clínica do
conceito de “vida no claustrum”, originalmente descrito por Meltzer (1992), para além
das situações persecutórias claustrofóbicas. Ilustro com material clínico, o trabalho
analítico realizado com uma paciente, cujo caráter narcisista e intrusivo se estruturou
com base nas primitivas identificações intrusivas e fantasias inconscientes decorrentes
do enclausuramento no interior da mãe. O aprisionamento da paciente no interior de
compartimentos materno tem como tela de fundo as fantasias relacionadas à vivência
traumática infantil da morte do irmão que são reproduzidas na relação analítica.

Descritores: Trauma Real, Fantasia, Identificação intrusiva, Identificação projetiva,


Claustro

The impact of the intrusive identification in the analytic process:


some implications of real trauma and phantasy
Summary
This article aims to show a possible understanding of very primitive identifications,
especially the intrusive ones, when associated to traumatic situations and expressed
through current unconscious fantasies related to these experiences. In a first glance, this
understanding could be considered quite common. However, what the author presents as
an original contribution is the participation of this special kind of combination in the
formation of the primitive intrusive identifications and its association with the
imprisonment inside the primitive object of identification, especially the mother. The
author proposes the amplification of the clinical use of the concept of "life in the
claustrum", originally described by Meltzer (1992), beyond the persecutory
claustrofobic situations. He illustrates the phenomenon with the analytic work
accomplished with a patient, whose narcisistic and intrusive character was structured in
basis of primitive intrusive identifications and unconscious fantasies related to the
claustrum inside the mother. The patient's imprisonment inside maternal compartments
has, as background, the fantasies related to the infantile traumatic experience of the
brother's death, which are reproduced in the analytic relation.

Key words: Real Trauma, Phantasy, Intrusive identification, Projective


identification, Claustrum
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O impacto da identificação intrusiva no processo analítico:


algumas implicações do trauma real e da fantasia
The impact of the intrusive identification in the analytic process:
some implications of real trauma and phantasy

Introdução

A psicanálise introduziu avanços decisivos na compreensão do funcionamento


mental descobrindo novos caminhos para o entendimento do sofrimento psíquico. A
teoria do trauma, que já foi uma teoria etiológica da neurose, é um mito das origens da
psicanálise. Para o paciente, a evocação de ter sofrido um trauma é, muitas vezes, a
expressão dos acontecimentos que marcaram a história da sua neurose e de seus traços
de caráter. A fantasia, de forma análoga ao trauma, também norteia e constrói a vida
psíquica, fornece sentido aos objetos, e dá significado às experiências emocionais,
inclusive às situações traumáticas vividas. A tese mais frequentemente aceita em
psicanálise é que pode ocorrer uma combinação de ambos componentes nos processos
primitivos de identificação.
Nesse artigo procuro mostrar como é possível entender certas identificações
muito primitivas, em especial as identificações intrusivas, quando associadas à situação
traumática e as fantasias inconscientes decorrentes dessa experiência. Num primeiro
olhar esta idéia poderia ser considerada uma forma bastante comum de compreensão.
Entretanto, o que apresento como contribuição original é a participação desta
combinação, especialmente, na formação das primitivas identificações intrusivas e sua
associação com o aprisionamento no interior do objeto primitivo de identificação,
notadamente à mãe. Proponho a ampliação da utilização clínica do conceito sobre a vida
no “claustrum”, originalmente descrito por Meltzer (1992), para além das situações
persecutórias claustrofóbicas. Ilustro com material clínico, o trabalho realizado na
análise de uma paciente, cujo caráter narcisista e intrusivo se estruturou com base nas
primitivas identificações intrusivas e fantasias inconscientes decorrentes do
enclausuramento no interior da mãe. O aprisionamento da paciente no interior de
compartimentos materno tem como tela de fundo as fantasias relacionadas à vivência
traumática infantil da morte do irmão.
Os fragmentos da análise de Marta exemplificam o impacto que essas primitivas
identificações intrusivas têm sobre o campo analítico, particularmente, sobre a
transferência e a contratransferência (Zaslavsky e Santos, 2006) em diversos momentos
da evolução do processo analítico, auxiliando na compreensão e interpretação da
paciente. É muito útil em meu trabalho analítico a aplicação técnica dos conceitos de
campo analítico, de personagem na sala de análise, de campo transgeracional, de
continência, de reverie e de transformações conforme descritos por Ferro (1999; 2005).

Breve zoom sobre trauma e fantasia


O tema do trauma ocupou um lugar destacado em toda a obra de Freud
(Baranger; Baranger & Mon, 1988; Vicário, 1995). Num primeiro momento, até 1900,
Freud atribuiu a etiologia das neuroses de transferência ao trauma psíquico e relacionou
este ao trauma sexual infantil. Logo a seguir, abandonou temporariamente a teoria da
sedução infantil dando lugar a uma crescente valorização do mundo de fantasias como
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fatores produtores dos traumas e de seus efeitos patogênicos. A partir das Conferências
Introdutórias (1916-1917), reconsiderou a metapsicologia do trauma à luz dos conflitos
mundiais, reativando seu interesse nas neuroses traumáticas e de guerra. Depois em
“Além do Princípio do Prazer”, Freud (1920) abandonou a teoria do trauma de origem
externa, para aperfeiçoá-la em “Inibição, sintoma e angústia” (1926), onde o trauma se
tornou claramente psíquico: a ansiedade sinal passou a ser encarada como uma repetição
atenuada do trauma.
Ao final de sua obra, em “Análise terminável e interminável” (1937) e “Moisés e
o monoteísmo” (1939), Freud, influenciado por Ferenczi, retomou conceitos iniciais das
neuroses traumáticas, quando sustentava que, pelo seu efeito surpresa, os estímulos
ultrapassam as capacidades de recuperação da barreira de proteção, provocando uma
situação de terror ou de ansiedade difusa, agindo como “corpo estranho”,
desorganizando e devastando o ego, e impedindo o processo de pensamento e
simbolização. Ao abordar o término do tratamento analítico, Freud (1937, p. 251 e seg)
estava pessimista quanto aos resultados do tratamento analítico, no entanto, ponderou
que a análise poderia apresentar resultados mais favoráveis ao mencionar que a
“etiologia do tipo traumática oferece, de longe, o campo mais favorável para a análise”.
E concluiu que “a etiologia de todo distúrbio neurótico é, afinal de contas, uma etiologia
mista”. E que “via de regra, há uma combinação de ambos os fatores, o constitucional e
o acidental”.
O fator traumático suscita, às vezes, no sobrevivente, intensos sentimentos de
culpa, à medida que a morte real pode ser vivenciada como uma confirmação, de forma
onipotentemente fantasiosa, e tornar presente antigos desejos inconscientes de morte.
Tais desejos poderão surgir, por exemplo, em relação a um irmão ou irmã que lhes tirou
o lugar junto à mãe, como veremos mais adiante no exemplo clínico apresentado.
O “complexo da mãe-morta” e o impacto que a depressão e privação materna
têm sobre a criança ao ser abandonada psiquicamente, produzindo um sentimento de
perda do amor e do sentido de existir foi descrito por Green (1980) que contribuiu para
o entendimento de pacientes que funcionam como “filhos-terapeutas”, tentando
reanimar a mãe psiquicamente morta ou ausente. Clinicamente, esta situação se
manifesta sob a forma de “depressão transferencial”, por “identificação inconsciente
com a mãe morta”(p.257), como repetição de uma situação de luto infantil ou uma
atitude de antecipação e prevenção contra potenciais situações catastróficas e
irreparáveis.
O trauma afetivo pode representar a ameaça de perda do objeto. Por outro lado,
observamos que cada indivíduo constrói a sua fantasia a respeito do morto ou das razões
que o levaram a ficar privado deste ou daquele objeto. Nestas circunstâncias, o papel
desempenhado pela realidade pode auxiliar na correção de eventuais distorções
resultantes das fantasias. Tais acontecimentos, quando ocorrem antes de uma adequada
estruturação edípica, podem vir a ser um fator desorganizador que bloqueia o
desenvolvimento da identidade.
McDougall (1989) exemplifica, de forma muito tocante, no trabalho intitulado
“O pai morto...”, as repercussões que a perda precoce do pai, aos 15 meses, teve na
aquisição da identidade sexual e na inibição da criatividade de sua paciente Benedicte.
Salienta que, além das fantasias relacionadas ao objeto perdido e ao ambiente, as
conseqüências traumáticas são determinadas também pela forma como os sobreviventes,
particularmente neste caso, a mãe, encara a perda. A mãe de Benedicte sente-se incapaz
de deparar-se com a perda traumática e tenta negar para a menina que seu pai havia
existido de verdade. Esta situação conduz a um luto mágico, com conseqüente confusão
da identidade sexual e inibição das capacidades intelectuais, artísticas e científicas da
paciente.
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Tais circunstâncias traumáticas e as fantasias a elas associadas podem ficar
encapsuladas ou sob a forma de um “corpo estranho”, levando a um incremento de
feridas narcisistas da personalidade, à baixa auto-estima, ao ressentimento
incomensurável, com acentuado comprometimento da elaboração da situação edípica e
inibição da capacidade de simbolização.
Importantes cuidados técnicos na análise devem ser tomados quanto as formas
de interpretar o material de pacientes narcisistas traumatizados, pois, caso não sejam
observados, poderiam levar a um impasse analítico, como salienta Rosenfeld (1987).
Para este autor, o narcisismo tem duas etiologias distintas e estas devem ser
interpretadas diferentemente. Distingue um narcisismo reativo, fruto de experiências
traumáticas na infância (narcisistas de pele fina) de um narcisismo baseado na inveja
primária, no qual a destrutividade predomina (narcisistas de pele grossa). Os narcisistas
de pele fina são pessoas hipersensíveis, que podem ser seriamente danificadas se for
dada ênfase excessiva a seus aspectos destrutivos, inibindo sua capacidade de
estabelecer relações objetais satisfatórias. Narcisistas de pele grossa devem ser tratados
com firmeza na análise, e sua inveja e destrutividade devem ser interpretadas.
As situações traumáticas são extensamente descritas por Garland (1998), que
procura demonstrar as possibilidades atuais de abordagem psicanalítica dos significados
que estas adquiriram na mente do paciente e que são expressas no aqui e agora da
relação analítica. As fantasias do presente que são trazidas para a relação analítica
representam uma forma de buscar no passado um sentido para os eventos traumáticos
no mundo interno. Os objetos do presente ficam revestidos de concepções e fantasias,
por meio de identificações primitivas dificultando o adequado manejo das relações de
objeto no trabalho analítico.
“O interjogo entre fantasia e realidade que molda nossa visão de mundo e a
personalidade... afeta nossa percepção e a ação...”. (Segal, 1994, p.41). Assim Segal
inicia seu artigo “Fantasia e Realidade”, que, a meu ver, resume, de forma muito
apropriada, a posição central que estes dois conceitos têm dentro da teoria e da prática
psicanalítica. Para ela, o reconhecimento de concepções inconscientes distorcidas,
misconceptions1, tem sido, de fato, uma das tarefas cruciais da psicanálise desde que
Freud descobriu a transferência. Ou seja, é através da relação analítica, no aqui-e-agora,
particularmente da comunicação das identificações projetivas veiculadas, que o paciente
reage ao analista como se este fosse uma figura do passado, e gradualmente passa a
perceber e reconhecer suas concepções distorcidas. Neste processo, não só as
concepções inconscientes distorcidas da relação atual são examinadas e corrigidas, mas
todo o passado é revisto.
O surgimento de conceitos mais complexos como o de campo analítico
(Madeleine e Willy Baranger 1961-62), enactment contratransferencial (Jacobs, 1991) e
de terceiro analítico (Ogden, 1994) trouxeram importantes modificações técnicas, pois
as identificações projetivas passaram a ser entendidas, na relação analítica, como
recíprocas e cruzadas. Contemporaneamente, portanto, passamos a falar de objetos
internos distorcidos pelas fantasias, que são projetados e compartilhados pelo par
analítico numa experiência emocional interativa no campo analítico
(transferência/contratransferência).
Para Freud, a função básica da fantasia era preencher um desejo não realizado, e
quando o desejo e a fantasia de sua realização não podem ser aceitos pela consciência,
tornam-se inconscientes. Com a introdução do princípio de realidade, uma parte
escindida do pensamento fica livre e subordinada somente ao princípio do prazer

1
Money-Kyrle (1968) utiliza o termo “misconceptions” para explicar as distorções da imagem parental
que ocorrem no que denomina de terceiro estágio do desenvolvimento cognitivo, por exemplo, as
concepções distorcidas que o paciente faz a respeito da cena primária.
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(fantasiar). No artigo “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”,
de 1911, Freud postulou que o bebê preenche o vazio entre desejo e satisfação através
de uma realização alucinatória de desejo – uma alucinação onipotente de satisfação.
Para ele, existiriam dois caminhos para se lidar com as falhas na satisfação: o da
fantasia onipotente alucinatória e o que conduzia ao desenvolvimento do pensamento.
Klein ampliou o conceito de fantasia de Freud, incluindo as primitivas
realizações de desejo dirigidas ao objeto desde o nascimento. As fantasias primitivas,
portanto, passaram a se constituir na expressão de ambos os instintos, podendo, as
alucinações serem tanto persecutórias quanto agradáveis. O princípio do prazer abre
caminho para o princípio de realidade, como um organizador da vida psíquica. O
surgimento do princípio de realidade não significa o abandono da fantasia. Ela
permanece no inconsciente e é expressa simbolicamente, mesmo em nossos desejos
mais primitivos. Duas formas de simbolismo foram distinguidas por Segal (1957): numa
forma mais primitiva, ele é concreto, o símbolo é equiparado com o que é simbolizado,
levando a crenças falsas e percepções distorcidas; e, noutra forma mais evoluída, o
símbolo representa o objeto e não é confundido e identificado com ele, mantendo suas
características.
Na forma concreta de simbolização, há predominância da identificação projetiva
na posição esquizoparanóide. A identificação projetiva excessiva equipara o objeto com
a parte projetada do sujeito, tratando o símbolo como parte de si mesmo e não como se
fosse o objeto original. Bion (1963) acrescentou que a patologia da identificação
projetiva, além de distorcer a percepção, promove a fragmentação do aparelho de
percepção fazendo com que as capacidades cognitivas e de julgamento fiquem
projetadas dentro dos objetos, que são vistos como oniscientes e julgadores (super-
egóicos).

Identificação intrusiva, continência e “claustro”


Foi Meltzer (1990), em particular, que salientou que seria mais adequado chamar
de identificação intrusiva o uso patológico da identificação projetiva, alegando que este
termo expressa o motivo essencial da invasão da personalidade e do corpo alheio,
descrito originalmente por Melanie Klein. Este autor utilizou o termo “claustro” para
falar do objeto de identificação projetiva e intrusiva que opera em nível de fantasia e,
“continente”, para falar da capacidade de abstrair e pensar, conceitos que me parecem
muito úteis clinicamente.
As relações de objeto são por natureza ambivalentes como já mencionava Klein
(1957). A dor da ambivalência combinada com a necessidade de tolerar a incerteza em
relação ao objeto dificulta a manutenção dos vínculos. Meltzer e Williams (1988) em
“Apreensão do belo” sugere que a resposta inata à beleza do mundo é uma resposta
estética, que contém uma integração entre os três vínculos positivos L (amor), H (ódio),
K (conhecimento) nos termos descritos por Bion (1962) em O Aprender com a
experiência. Os significados são construídos quando o impacto dos acontecimentos e
dos objetos tem reflexo emocional na mente. Estes, por sua vez, estão sujeitos aos
processos de imaginação, à formação simbólica (decorrentes função alfa) e dos
pensamentos. A “Apreensão do belo” abarca a noção de mistério a respeito do objeto
quanto a sua beleza, bondade, força, generosidade, poder, estima, êxito e sensualidade.
Com base neste mistério ocorre o que Meltzer e Williams (1988) chamou de “conflito
estético”, que se dá pela impossibilidade de ter acesso a todos os compartimentos e
capacidades do objeto. É uma experiência emocional de caráter apaixonado, em
conseqüência de estar capacitado para poder ver a esses objetos como “belos”. A
presença e a ausência do objeto são formas de desencadear a experiência emocional e as
dificuldades que podem surgir.
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A falha no processo de simbolização pode ser observada através do exemplo
clínico clássico do que ocorre no luto patológico. Um objeto de luto pode ser retido na
mente como se estivesse vivo, ao mesmo tempo em que há consciência de sua ausência.
Mas, se tentamos dar vida real ao morto, o luto é concebido como a presença concreta
de um morto real dentro do corpo e o processo de luto não pode ser elaborado. Ou seja,
a fantasia do “como se” difere da fantasia delirante, mas pode ocorrer um
aprisionamento do objeto, por meio de identificação intrusiva como veremos no
exemplo a seguir.

A história de Marta e o aprisionamento no interior na mãe (Claustrum)


O enclausuramento e aprisionamento no interior de compartimentos maternos
podem gerar alguns problemas técnicos que surgem no campo analítico, onde irão se
repetir determinados padrões (transgeracionais) que necessitam de continência e
interpretação apropriada para o seu adequado manejo. A fim de exemplificar e discutir
estas questões apresento o exemplo clínico a seguir.
Marta está em análise há cinco anos, com quatro sessões por semana e faz uso
do divã. Encontra-se em seu segundo casamento. Quando me procurou estava se
aproximando dos 40 anos, sentia-se triste e infeliz, pois via seu relacionamento ruir sem
nada conseguir fazer para impedir uma iminente separação. Em seus relacionamentos
percebe-se uma postura fortemente dominadora e controladora, competindo
incisivamente com o marido, com a ex-mulher dele, nutrindo fortes sentimentos de
"ciúmes" em relação ao filho do atual companheiro. Faz freqüente crítica ao seu atual
parceiro, desvalorizando-o e referindo-se a ele como "fraco e panaca". Marta sente um
vazio e um empobrecimento interno, pois construiu uma vida material satisfatória, que
contrasta com uma vida afetiva pobre. Acha que faz o seu trabalho com muita dedicação
e talento, mas sente-se incapaz e frustrada por não ter tido filhos. Diz que “os filhos
atrapalhariam a vida do casal”, embora, às vezes, pense na possibilidade de ser mãe. Em
seu primeiro casamento, apresentava a mesma conduta excessivamente dominadora.
Evitava os momentos de carinho, excitação e sentia-se inibida nas relações sexuais com
o ex-marido.
Conta, numa determinada sessão, com o tom de voz trêmulo e com um
sentimento de profunda tristeza, que quando tinha 6 anos, um importante acontecimento
abalou sua família. O irmão menor, com 3 anos, morreu atropelado por um automóvel.
Lembra que estava em frente à sua casa quando o irmão saiu correndo atrás de uma
bola. Poucas vezes conseguiu conversar sobre a perda do irmão, passando este assunto a
ser considerado pela família um “buraco negro que deveria ser evitado”.
Sinto-me, nessa sessão, invadido por uma profunda tristeza ao me imaginar
mergulhado com Marta num “buraco negro de tristeza”. Esse sentimento me fez pensar
que eu deveria ficar atento as possíveis tentativas de ser dragado pelas atitudes
controladoras da paciente.
Desde a infância a paciente escutou sua mãe dizer que "Deus enxergava tudo o
que fazia, nunca poderia esconder-lhe nada... e como a mãe sabia o que era melhor
para ela". Quando Marta ia dormir, imaginava um olho vigiando-a. Algumas vezes,
sonhava ou acreditava ter visto o irmão morto caminhando à noite pelo quarto. Quando
tentava falar com a mãe sobre o irmão, esta desconversava dizendo que agora Marta
“era o gurizinho dela”. Lembra que nas festas juninas, a mãe a vestia com vestimentas
de “gauchinho” (vestuário regional típico masculino), fato que a deixava muito
envergonhada, pois queria usar vestido de prenda (vestuário regional típico feminino).
Na sua adolescência, sentia-se "nas mãos da mãe", pois fazia a maior parte das coisas
que ela queria, como, por exemplo, evitar contato com homens, embora sentisse desejo.
Muitas vezes, preferia ficar perto da mãe ao invés de sair com suas amigas, temendo
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que a mãe não gostasse mais dela. Na sua visão, a mãe sempre pareceu ser "o homem do
casal".
Criou-se com a idéia de que "homem é apenas um acessório na vida de uma
mulher... e a mulher é que faz o trabalho pior". Acha que o pai é uma figura omissa,
"um fraco nas mãos da mãe", e que ficou muito abatido com a morte do irmão. Marta
foi se distanciando do pai vendo-o com os olhos da mãe. Tinha medo de ter qualquer
contato físico com o mesmo, chegando até mesmo à evitação.

Abordagem clínica e discussão


O Analista de balaio
O início da análise é marcado por intensos sentimentos de tristeza ao dar-se
conta do tempo perdido com sua postura de aparente auto-suficiência. Nesta etapa, entre
outras coisas, chamou a minha atenção o fato de a paciente fazer uma proposta de
redução no valor dos meus honorários, sem haver uma necessidade de ordem econômica
real. Apenas alegava que seu atual marido recomendara-lhe fazer “uma negociação do
valor”. Pensei que esta pudesse ser uma tentativa de me atrair para um “buraco negro”
um caminho sem retorno.
Propus que conversássemos abertamente sobre o tema a fim de compreender
melhor sua proposta pensando que, se houvesse a real necessidade de sua parte, estaria
sensível a um possível acerto de comum acordo, como costumo proceder nestas
circunstâncias. Após algumas sessões, sem nenhum argumento aparentemente
convincente para mim e para ela, conta que habitualmente costuma “comprar suas
roupas em balaios ou liquidações” e que, freqüentemente, sente-se triste, não gostando
do que comprou e não conseguindo usar. Tal associação causou-me um desconforto,
fazendo-me pensar que caso aceitasse aquela proposta estaria aceitando de saída sua
proposta de ser dragado para o “buraco negro”, me tornar um objeto desvalorizado, “um
analista de balaio”. Então com base nesta compreensão disse à paciente com muita
delicadeza, que entendia seu desejo de me pagar “um valor menor”, mas que dentro do
que havia me exposto, caso eu aceitasse sua proposta, se sentiria mal e me transformaria
“num analista de balaio” e veria como mais um homem desvalorizado em sua vida, “um
panaca”. A paciente, após alguns comentários seguidos de longo silêncio, diz que por
um lado sentiu-se aliviada, pois este desconforto e a insatisfação que sentia
desvalorizando os objetos dos quais se aproximava ou adquiria, estava se tornando
insuportável. As sessões que se seguiram a este episódio foram marcadas por intensos
sentimentos de tristeza e choro, lamentando-se do tempo que havia perdido em sua vida
e de seu funcionamento que chamava de “destrutivo”.

Identificações como um objeto morto-vivo e Continência


A seguir, passo a descrever alguns fragmentos de uma sessão de uma segunda-
feira do final de seu primeiro ano de análise:
P - ...fico tentando entender porque muitas coisas não deram certo em minha vida...
especialmente com o jeito de me relacionar com as pessoas... Fico muito braba com o
Francisco (marido). Ele é um cara do tipo mais quieto. Isso me deixa furiosa, quando ele
não quer falar. Ele diz que faço muita pressão e que não dou espaço para ele ser natural
comigo. Quando ele demora a chegar em casa, fico muito angustiada. Sinto medo que
aconteça alguma coisa e ele não volte. Fico ligando para o telefone celular dele até ele
atender. Outro dia ele me falou que estava numa loja com o filho (do primeiro
casamento). Então tive uma crise de raiva... para o filho ele sempre tem tempo para
conversar... Fico muito furiosa, não consigo me conter e depois fico chorando sozinha
sem parar. [fica em silêncio] Não sei como tu vais me ajudar. O que tu achas? Às vezes,
quando tu ficas em silêncio, penso se ainda estas aí. O teu silêncio me incomoda. Viu, já
estou ficando braba.
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[Estou atento ao que a paciente me conta, mas fico com a sensação de tristeza
por ver a vida da paciente empobrecida e me sinto pressionado por ela para falar algo.
Penso que deseja saber se estou vivo ou morto, como o irmão, na sessão e que também
pode estar ressentida pelo afastamento do fim de semana.]
A – Quando estou em silêncio ficas com medo que eu esteja ausente, duvidando se
estou vivo ou morto. Parece que a fúria é uma forma de conferir se estou vivo ou morto
e se já voltei do fim de semana.
P – Sinto vergonha de contar para ti como me descontrolo. Eu fico muito braba e
furiosa.
A – Estás com medo de me mostrar como ficas braba, por exemplo, quando fico em
silêncio, pois achas que não vou te aceitar assim furiosa.
P – Quando fico braba as pessoas vão embora... afastam-se de mim. Meu ex-marido foi
embora, não agüentou o meu jeito autoritário. Ele dizia que pareço um general e que
quero comandar tudo. Também, se eu não fizer assim passam por cima de mim. Tem
momentos que fico pensando, quem vai querer alguém assim como eu? Eu não deixo as
pessoas chegarem perto. [Silêncio]. Como eu poderia ser mãe assim? Não tenho
paciência com crianças... elas dão muito trabalho. Além disso, com um filho pequeno eu
não teria tempo para trabalhar. Eu até já te falei que eu não uso nenhum método
anticoncepcional há 6 anos. Fiz diversos exames e não encontraram nada que me
impedisse de engravidar. (Este assunto já havia sido detalhadamente conversado noutras
sessões.)
A – Dentro deste modelo em que os papéis de homem e de mulher ficam invertidos não
há espaço dentro da tua mente para a gestação de um bebê.
P – Acho que não vou saber cuidar. Tu já pensaste como é que eu iria sair de casa para
trabalhar? Tu sabes como isso me deixa extremamente angustiada, fico tensa esperando
pelas pessoas. Nem quando tu ficas em silêncio eu suporto. Eu não me perdoaria se
alguma coisa acontecesse com a criança.
A – Como o quê?
P – Como o meu irmão. É por isso que eu não toco nesse assunto. Eu acho que não foi
só a morte do meu irmão que me deixou mal, mas como, às vezes tu me dizes o que eu
fiz com tudo isso que aconteceu... já se passaram muitos anos...
A sessão segue num clima de tristeza.
O exame da situação de Marta permite-nos fazer algumas observações sobre
como as relações e a visão de mundo foram sendo construídas em sua mente.
Primeiramente, o uso que faz das identificações projetivas com Francisco (parceiro
atual), colocando para dentro dele aquelas partes do seu self que não pode tolerar. Dito
de outra forma, Marta sente-se submetida ao "olho da mãe" (Deus). Vê o mundo, os
homens, as mulheres e os bebês pelo "olho da mãe". Não pode tolerar esta parte
submetida dentro de si e identificada com um objeto morto, projetando-a para o interior
de Francisco (e do analista) se identificando com o mesmo (quieto, fraco e panaca). Na
relação, Francisco fica no papel de um menino (irmão) castrado, como ela se sente nas
mãos da mãe, e ao mesmo tempo, identificado com um pai desvalorizado e submetido à
mãe. Marta mostra para mim como Francisco (e o analista) deve ver as coisas pelo olho
da mãe-Marta, quando diz que se não “comandar como um general” passam por cima
dela como fizeram com o irmão e como a mãe fez com ela. Nessas circunstâncias,
Marta fica castrada como mulher, pois está identificada com uma mãe do tipo intrusivo
e fálico. Ela se apodera, em fantasia, do "pênis" do irmão para agradar à mãe e se alojar
intrusivamente dentro dela nos termos descritos por Meltzer (1992) quando descreve a
identificação intrusiva. Esse é um aspecto destrutivo do narcisismo que ataca a vida e a
capacidade de imaginar e gerar bebês, posto que alimenta, onipotentemente, a fantasia
de que contém os dois sexos dentro de si para agradar a mãe.
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O Narcisismo destrutivo incapacita a paciente de desenvolver a função
continente (nos termos de Bion), conter os pensamentos, “engravidar” a mente com os
bebês e idéias. Nesta situação a relação analítica é utilizada com pouco crescimento
emocional, pois o analista também é visto como um elemento acessório. Repete assim, o
modelo que tem da relação dos pais, onde homem fica de fora - "é um acessório". Aliás,
esta me parece ser a sua proposta inicial com a tentativa de transformar o analista num
“analista de balaio”. Ocorre uma confusão de papéis resultante da identificação com os
objetos primitivos, mãe intrusiva, pai omisso e irmão morto. Sua identidade
comprometida e a intrusão levam a um empobrecimento afetivo. Marta fica
impossibilitada de elaborar a situação traumática do luto reforçada pela forma fóbica
familiar de vivenciá-lo. Além disso, parece ser ativamente estimulada a identificar-se
com este irmão morto, para negar a perda e a ferida narcisista materna e paterna. Culpa
a mãe de ser pouco continente e a si própria por não terem cuidado do irmão.

Separação e re-edição da vivência traumática


Em períodos de separação na análise (férias e fins de semana), Marta reage
aparentemente indiferente ou fica muito irritada comigo, mas logo surgem angústias
relacionadas com fantasias de morte em relação a mim (irmão). Quando se reaproxima,
sua atitude se alterna, ora com posições de comando e intrusão, ora com idéias de
submissão querendo que eu determine como deve pensar e ao mesmo tempo com medo
de que seja feita através da análise uma “lavagem cerebral” em sua mente, nos moldes
propostos pela mãe.
Certa ocasião, após uma interrupção da análise por um afastamento meu durante
2 semanas (viagem), Marta passou as sessões do mês seguinte ameaçando interromper a
análise. Lembro-me de uma sessão em que tudo que eu falava ou interpretava era
sentido pela paciente como ameaça, achando que eu queria prendê-la na análise. Nestes
momentos, sentia-me controlado, achando que não deveria ter ido viajar pois havia
deixado a paciente “abandonada”. Nessa sessão lembrei do que minha filha havia me
dito no passado, quando ela estava com 4 anos, por ocasião do retorno de uma viagem
que havia feito com minha esposa quando estava grávida do meu 2º filho. Ao
chegarmos de viagem ela disse: “isso não se faz com uma criança, deixar ela em casa e
ir viajar com o irmão dentro da barriga da mãe”.
Essa lembrança, naquele dado momento, auxiliou-me a compreender como a
paciente usava as ameaças como forma de me fazer experimentar, masoquisticamente,
um pouco dos sentimentos de abandono, raiva e submissão que ela mesma sentia. Pude
perceber a vivência de “ciúme” que a paciente também tinha do irmão que havia
nascido depois dela, que havia lhe roubado o lugar junto da mãe e infelizmente havia
morrido. A transformação desses elementos incompreensíveis (que poderíamos chamar
de elementos beta) em significado (elementos alfa) tornou possível dar esse
entendimento a paciente e permitiu a continuidade do processo analítico.

Sonho e a vida no claustro materno


Quando estava se aproximando do terceiro ano de análise, Marta ganhou um
gatinho de Francisco e numa das sessões seguintes relata um sonho que ilustra o
entendimento, e complementa o que foi exposto.
P – ... agora sou a mãe do gatinho. Coloquei-o para dormir com a gente na cama porque
ele chora muito. Na noite passada, acordei muito angustiada, pois sonhei que “o meu
gatinho que era pequeno, chorava muito. Ele dormia na cama com a gente nos
primeiros dias. Mas eu não dormia direito porque tinha medo de me mexer à noite e
esmagá-lo. Despertei chorando porque, no sonho, eu havia retirado o gatinho da cama
e tinha colocado ele numa caixinha de sapatos, tinha esquecido dela fechada e ele
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havia morrido asfixiado”. O sonho é acompanhado de intenso choro e tenho a sensação
de que a paciente está bastante relaxada no divã.
A – Parece-me que o gatinho asfixiado é como tu te sentes, alojada dentro da mãe,
vendo o mundo e os homens através da visão dela, ficando asfixiada como mulher. Esse
gatinho morto também lembra um pouco o teu irmão, tu querendo agradar a mãe, mas
ficando asfixiada como mulher.
Este sonho me auxiliou a compreender o momento delicado em que vivíamos na
análise. Este era o seu terceiro ano de análise, o que lhe fazia falar muito sobre a morte
do irmão. Observa-se um movimento de diminuição do pensamento concreto (menos
brigas com o marido) com um incremento inicial da capacidade de simbolização,
através do sonho. No entanto, as capacidades de continência e de cuidados maternos,
ainda se encontram distantes do pensamento. Aparece de um lado, a identificação
projetiva com o gatinho dentro da caixa asfixiante (mãe), e, de outro, o desejo, ainda
distante de Marta de ser mãe. Expressa, também, através do gatinho, os sentimentos de
identificação com o irmão esmagado, e ela, afetivamente esmagada, enclausurada e
morta como mulher intrusa dentro da mãe e do irmão-morto. Neste contexto, a
capacidade de abstração e de continência (imaginação e gestação de um bebê dentro da
mente), anteriormente ausentes, surge com a fantasia de ser a mãe do gatinho e
representam em um nível, muito rudimentar, um movimento em direção ao crescimento
do funcionamento mental.
O aprisionamento de Marta no interior da mãe, vendo o mundo através dela e do
irmão morto, lembra o que Meltzer (1992) descreve sobre "A vida no Claustro". Esse é
um tipo particular de identificação projetiva intrusiva, bastante primitiva, em que a
pessoa fica enclausurada no interior do objeto evitando experimentar sentimentos de
diferenciação e separação do mesmo. Embora Meltzer tenha usado o conceito de
“claustrum” para o entendimento das situações persecutórias de natureza claustrofóbica,
penso que seu aproveitamento pode ir além do proposto por ele e, que também possa ser
utilizado na compreensão de identificações intrusivas primitivas onde há um
enclausuramento ou aprisionamento no interior de compartimentos maternos com
características bastante peculiares.
Para Marta, a figura paterna aparece desvalorizada no interior da mãe (um
acessório), ou como um objeto real deprimido e ausente. Uma das conseqüências da
intrusão e do alojamento dentro dos compartimentos maternos e da desvalorização
paterna é que a mãe fica depositária de todos os elementos excretados pelo bebê em seu
interior, sendo vista como um objeto perseguidor e altamente contaminado. O papel do
pai, nestas circunstâncias, pode ser decisivo, como salienta Meltzer (1992, p.67), pois é
ele que através do ato de amor tem a função de “livrar a mãe dos perseguidores
internos e limpar o reto da mãe dos objetos parciais”.
O trabalho lento e gradual desenvolvido através das interpretações das
ansiedades e fantasias de intrusão, de identificação com o modelo da mente da mãe (da
ausência paterna) e com o irmão morto nos termos descritos pelo exemplo acima, foi
contribuindo para que Marta fosse trazendo fantasias associadas com a confusão dos
papéis na sua identidade sexual e nas relações de objeto primitivo mãe e irmão-morto. A
paciente passa a pensar mais nas sessões e sinto-a em muitos momentos mais próxima.
Poucos meses depois, ao abrir a porta do consultório, sinto que a paciente está
mais bonita e atraente, algo que jamais havia sentido anteriormente. Em uma destas
sessões, a paciente conta que havia entrado numa loja de roupas íntimas femininas e que
havia comprado uma camisola de seda (lingerie de textura mais fina), contrastando com
o período anterior, em que vestia pijamas de pelúcia (roupa de textura mais grossa) e
fazia compras em balaios. Relata a situação, mencionando que, naquele momento, em
que estava na loja, lembrou-se do que havíamos conversado na sessão sobre seu jeito
pouco feminino, desvalorizado e às vezes grosseiro quando achava que estava sendo
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submetida. Encontrando nas associações da paciente, respaldo para os meus sentimentos
no início da sessão, de maior admiração pela paciente interpreto que a seda representava
sua vontade de trazer para a sessão um outro lado seu com uma textura delicada e mais
fina de mulher, com o que Marta, imediatamente, concorda emocionadamente.
Marta passa algumas sessões falando que estou muito presente em sua vida e
discute comigo sobre os rumos que deseja dar para a questão da maternidade. Às vezes,
ainda muito cautelosa sobre a maternidade, volta a sentir-se ameaçada com esta
proximidade na análise e que eu possa estar fazendo uma “lavagem cerebral” com a sua
mente à semelhança do que a mãe fazia.
No sonho que relato a seguir, numa sessão de terça-feira, no início do quarto ano
de análise, tento exemplificar a tentativa da paciente, numa nova experiência (análise)
em separar e discriminar o que é fantasia e realidade na transferência.
P - ... acordei de um sonho em que eu estava numa sala de aula de dança com espelhos
em volta. Eu estava gostando da professora... dançava solta e ela me observava. Ela me
orientava e, às vezes, falava que eu devia prender os cabelos, pois com eles soltos era
ruim para dançar. Depois, recomendou que eu deveria prendê-los. Fui atrás dela e
sentei numa cadeira de costa para ela, imaginando que ela só iria prender meus
cabelos, e fiquei distraída, quando ela pegou uma tesoura e cortou o meu cabelo bem
curto até a nuca... então, comecei a chorar. Quando acordei, fiquei muito angustiada e
pensei que eu estava literalmente castrada, como às vezes a gente fala. Eu não tinha
percebido que aquela professora tinha um jeito de homem. Depois pensei muito sobre o
que temos conversado e a confusão de papéis que eu faço na minha cabeça.
A – [Após algumas associações da paciente, fico pensando que o sonho expressa o
desejo de unir-se a mim, mas está com medo, pois acha que posso ser como a mãe.]
Vejo no sonho o teu medo em relação a mim, se falas, se danças, solta aqui na análise,
em fim, se te distrais e ficas mais próxima, então, podes ficar alojada dentro de mim,
submetida e dominada por mim. Se for assim perdes a liberdade de pensar e te sentir
viva como mulher.
Neste sonho, penso que podemos entender dois aspectos anteriormente citados.
O primeiro, é a fantasia construída e agora expressa na relação analítica, de que, indo
atrás das idéias da mãe (professora-analista), vendo os homens pelo olho da mãe, não
precisaria se separar dela nem sepultar o irmão-morto e as duas formariam uma dupla
narcisista inseparável (como abordamos noutro momento da análise). A paciente revive
na análise, antigas fantasias de que se unindo a mãe-analista de forma intrusiva, traria
para si todo o amor da mãe-analista, seria a única e também dessa forma se apropriaria
dos conteúdos maternos (da mente do analista). Cabe salientar que, em diversos
momentos, de acordo com a descrição da mãe pela paciente, essa fantasia parece ter
sido reforçada. Um segundo aspecto e que está intrinsecamente relacionado com o
anterior, é como a paciente ficou se sentindo castrada como mulher (pouco feminina),
representado pelos "cabelos cortados até a nuca" e como está com medo de que o
mesmo possa repetir-se na relação do campo analítico, expresso nesta sessão. Suspeita
que a aproximação do analista possa ser nos mesmos padrões do que com a mãe, ou
seja, de que se alojando no meu interior, não precisaria pensar em sua condição de
mulher e separar-se de mim.
O funcionamento intrusivo de Marta permite-nos pensar como determinadas
patologias específicas surgem de sistemas narcisistas intergeracionais entre pais e filhos.
Tais manifestações da “confrontação de gerações” (Kancyper, 1999) são observadas no
campo analítico dinâmico através da proposição compartilhada de identificações muito
primitivas entre analista e paciente, como a situação de desvalorização da relação
analítica (analista de balaio). O trabalho analítico envolve, nestas circunstâncias, a
elaboração de lutos de dimensões narcisistas e edípicas, além de processos de
reordenamento identificatório e de ressignificação dos papéis.
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Uma nota sobre continência e gestação
Este trabalho ficaria incompleto caso não relatasse o fato de que Marta ao
ingressar em seu quinto ano de análise inicia uma determinada sessão fortemente
emocionada relatando que está grávida.
Tal situação não chegou a ser propriamente uma surpresa, mas a forma como fez
a revelação do fato mostra nitidamente um momento de transformação da sua
capacidade de conter e pensar.
Conta que passou vários dias guardando dentro de si o segredo sobre o atraso da
sua menstruação. Ficou pensando se me contava ou não, mas tinha medo que fosse
“alarme falso”. Diz: “No fundo eu sabia que estava grávida e queria fazer uma surpresa.
Durante estes dias pensei muito naquela frase que falamos muito tempo... sobre criar
espaço dentro da minha mente para poder aceitar um bebê e fazer a gestação interna
antes da externa. Foram longos, sinceramente, pensei que eu não fosse conseguir, ou
melhor, nós não fossemos conseguir...”.
Digo para Marta que pôde guardar o segredo durante estes dias como se guarda
um bebê, com todo cuidado, mas que agora me mostrava como já podia pensar em
“nós”, uma dupla (casal) trabalhando na análise para gerar frutos e também podia pensar
em nós como duas pessoas separadas e diferentes.

Considerações Finais
As fantasias inconscientes e a realidade colorem o interjogo de relações objetais,
constroem o mundo interno e se encontram na base da estruturação do caráter do
indivíduo. Não foi por acaso que Segal (1994) destacou estes conceitos como centrais
da psicanálise. As identificações projetivas são, por excelência, um dos principais meios
de veiculação destas construções do mundo interno. Dentro deste contexto, as
experiências traumáticas entram como um componente da realidade externa que pode
corroborar ou não para certas distorções previamente existentes associadas com as
fantasias inconscientes.
O exemplo de Marta nos permite observar alguns destes fenômenos descritos,
especialmente deste tipo particular de identificação, denominada por Meltzer (1992) de
identificação intrusiva, que o levou a desenvolver suas idéias sobre “a vida no
Claustro”. Este conceito me parece muito útil na clínica psicanalítica, auxiliando na
compreensão, não só das ansiedades paranóides associadas aos fenômenos
claustrofóbicos como preconizava Meltzer, mas também em certos funcionamentos
muito regressivos intrusivos, como no caso de Marta, que vive aprisionada no interior
da mãe, identificada com o “modelo materno” de concepção da figura masculina, com
todos os prejuízos que resultaram na estruturação dos seus padrões de relações de
objeto. Tal situação leva a um empobrecimento do ego e do self, dificultando e
distorcendo a formação dos vínculos como exemplifica sua análise, limitando a
capacidade de simbolização e de continência, elementos essenciais para um adequado
crescimento da capacidade de pensar acerca das emoções e na capacidade feminina de
gerar bebês.
Seguramente, outros vértices não são excludentes e poderiam ser abordados no
entendimento deste caso, entretanto, privilegiei a compreensão a partir das idéias de
Meltzer sobre “a vida no claustro”, pois foi este o entendimento que me pareceu mais
adequado para esclarecer o enclausuramento da paciente no interior da mãe.
A investigação psicanalítica dos objetos internos e do self tem no aspecto
intrusivo da identificação projetiva a expressão da psicopatologia. A intrusão e o
aprisionamento no interior dos compartimentos materno dificultam a integração das
funções de continência de mãe, resultando na incapacidade de imaginar os bebês no seu
interior e na própria mente, comprometendo a relação com a figura masculina e as
capacidades para a maternidade. A psicanálise pode esclarecer, nestes casos, como os
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objetos internos são construídos durante o processo de desenvolvimento cognitivo, nos
processos de luto e nas situações traumáticas, auxiliando a entender e corrigir as
eventuais concepções inconscientes distorcidas dos objetos e do self pela identificação
intrusiva.

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