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Abrindo o Coração Fechado: Trabalho Clínico Focado

no Afeto com Vítimas de Trauma Precoce


Opening the Closed Heart: Affect Focused Clinical Work with the Victims of Early
Trauma

Donald E. Kalsched,
Santa Fe, New Mexico,
in Journal of Analytical Psychology, 2020, 65, 1, 136–152

Tradução livre para o Português: Pedro Duschenes


pedroduschenes@gmail.com
Abril de 2023

Resumo: Este artigo parte do entendimento de que traumas precoces levam a defesas
dissociativas poderosas que lesionam a capacidade de sentir. Ele explora ainda formas de
restaurar essa capacidade por meio da atenção-centrada-no-corpo em relação ao afeto-no-
momento, na situação psicoanalítica. A partir da experiência pessoal do autor durante a
análise, bem como um caso de trauma precoce grave, ele demonstra o efeito assassino de
consciência [consciousness-killing effect]1 causado pelas defesas primitivas e mostra como as
técnicas sensíveis ao corpo têm o potencial de restaurar o senso de vitalidade do paciente e,
portanto, abrir o inconsciente para aquelas imagens afetivas que são os blocos de construção
da imaginação humana. Uma seção final concentra-se na negligência do sentimento na
psicologia junguiana e sugere que a "criação da consciência" que Jung descreveu como seu
mito pessoal é quintessencialmente um processo de transformação emocional, de trazer o
sofrimento inconsciente para a consciência, como sentimentos.

Palavras-chave: imagens afetivas, regulação afetiva, capacidade de sentir, defesas


dissociativas, self implícito, coração informado, criança interior, tipos-sentimento de Jung,
forças de vida e antivida, limitações na teoria dos complexos de Jung, opus contra conscientia,
compulsão de repetição, sistema de autocuidado, inconsciente somático.

1
N.T. Mantive entre colchetes alguns termos do texto original em inglês, ao lado do texto traduzido,
especialmente aqueles termos técnicos provenientes de teorias psicológicas, com o objetivo de
preservar a precisão e a clareza do conteúdo tanto quanto possível.

1
Introdução
Nas últimas décadas, tenho escrito sobre um grupo de pacientes que sofreram
trauma no desenvolvimento precoce [early developmental trauma]. Esses pacientes
foram feridos em seus primeiros anos de vida – às vezes, desde a infância – a ponto de
necessitarem de defesas dissociativas para sobreviver. Em trabalhos anteriores,
descrevi essas defesas como um “Sistema de autocuidado” (KALSCHED, 1996, 2013)
e tentei ilustrar as várias partes desse sistema e explorar sua interação dinâmica e como
funcionam para proteger (enquanto também perseguem) um núcleo vulnerável e vital
do eu, frequentemente representado como uma “criança interior.” 2
No presente artigo, quero explorar uma pergunta ligeiramente diferente, ou seja,
contra o quê essas defesas dissociativas poderosas estão se defendendo? A literatura
recente no campo da neurociência afetiva nos aponta em direção a uma resposta para
essa pergunta. Ela sugere que o problema central para esses pacientes é a questão de
seus afetos avassaladores e a luta para regulá-los – uma luta que apenas as defesas
dissociativas podem vencer por eles. Para sobreviver, eles tiveram que cortar as
conexões com seus sentimentos e com seus corpos, nos quais os sentimentos estão
alojados. Seus esforços corajosos de autocontrole e autocura os deixaram como
sobreviventes heroicos, mas afetivamente empobrecidos. Embora muitas vezes sejam
altamente bem-sucedidos no mundo exterior, eles estão blindados contra a experiência
emocional. Eles não conseguem sentir seus sentimentos muito bem e muitas vezes se
sentem como estranhos em seus próprios corpos. Winnico (1949) nos lembra que a
mãe boa o suficiente está constantemente introduzindo e reintroduzindo a mente e o
corpo do bebê um ao outro. O resultado é o que ele chama de “alojamento
psicossomático” [psychosomatic indwelling] (1964, p. 113). Para esses pacientes, o

2
Para ilustrar as várias partes do que eu chamo de “Sistema de Autocuidado”, eu utilizei a ilustração
de William Blake, “Good and Evil Angels Fighting for Possession of a Child”, que está na Tate Gallery
em Londres. O leitor interessado pode encontrar essa imagem na capa do meu livro mais recente e
também na Internet. A imagem mostra um anjo escuro à esquerda, acorrentado às chamas infernais da
realidade material, apalpando com olhos brancos e sem sentimento em direção a uma criança
aterrorizada que foge para os braços de um “anjo claro” à direita. Eu interpretei os dois “anjos” nesta
imagem como violência, por um lado, e ilusão, por outro - dois lados de uma defesa
protetora/perseguidora. Enquanto isso, a “criança” no sistema pode ser considerada como a criança
ferida, carregando as lesões do trauma precoce em seu pequeno corpo (memória implícita) –
sentimentos precoces insuportáveis presos em um sistema de defesas arquetípicas – impedidos de se
tornarem conscientes para o ego. A criança também carrega o espírito imperecível da personalidade –
inocência pré-traumática – o que Jung identificou em sua própria imaginação ativa como uma centelha
do divino, imaginada como uma “criança divina”. Então, os anjos têm uma dupla razão para proteger
a “criança”. Eles não querem que as emoções impossíveis dela se tornem conscientes e não querem
colocar em perigo o núcleo vulnerável - o mistério inefável que ela carrega. Essa centelha está escondida
na dor ... “in stecore” (nas fezes), como os alquimistas diziam ... na prima materia escura e rejeitada da
memória traumática.

2
alojamento psicossomático não ocorreu, ou ocorreu apenas parcialmente. Poderíamos
dizer que seus corações foram quebrados antes mesmo de terem corações para quebrar.
Portanto, quero colocar afeto e corpo no centro da minha apresentação hoje. Minha
inspiração para fazer isso veio de alguns comentários feitos pelo falecido psicanalista
Paul Russell, que disse, de forma muito sucinta, que “o trauma é uma lesão na capacidade
de sentir.” (RUSSELL, 1999, p. 24). Ele prosseguiu, afirmando que essa lesão constitui
uma tragédia na vida do sobrevivente do trauma, porque “os sentimentos são a janela
para a vida” (Ibid., p. 45). Portanto, quando a capacidade de sentir é ferida, o núcleo
da vitalidade e da vivacidade de uma pessoa é comprometido. Intuitivamente, eu sabia
que Russell estava certo sobre isso, mas a pergunta permaneceu: “como a capacidade
de sentir é ferida?” e “como pode ser abordada terapeuticamente?” Como a janela para
a vida pode ser reaberta?
Russell nos leva por um caminho em direção a uma resposta para esta pergunta ao
apontar que lesões em nossa capacidade de sentir sempre ocorrem no contexto de
nossos primeiros relacionamentos de apego [earliest a achment relationships]. Pesquisas
recentes de Allan Schore (2019) e outros no campo do apego confirmam esse fato. O
trauma tem origem em nossos relacionamentos mais precoces porque é lá que afetos
no corpo e imagens ou palavras na mente se conectam por meio da sintonia diádica,
empatia e interação emocional entre mãe e bebê. Se a sintonia é ótima, os afetos
positivos de alegria, curiosidade e interesse se estabelecem e um centro de vivacidade
e vitalidade se consolida. Por outro lado, se as interações diádicas entre a mãe e seu
bebê estiverem cronicamente desajustadas, então o que Pierre Janet (in VAN DER
KOLK, BROWN, & VAN DER HART, 1989) chamou de “emoções veementes” [vehement
emoticons] – ou seja, afetos estressantes intensamente negativos e ameaçadores à vida
– assumem o controle. A mãe desajustada não consegue ajudar seu bebê ou criança
pequena a processar essas emoções veementes ou a regular os estados corporais
avassaladores que as acompanham. Portanto, a criança traumatizada aprende que
deve processar e conter essas emoções e estados corporais completamente sozinha.
É claro que ela não pode fazer isso completamente sozinha. Ela é muito pequena,
vulnerável e sobrecarregada. Então, as defesas dissociativas fazem isso por ela. Essas
defesas causam uma lesão na capacidade de sentir. Externamente, elas desligam os
instintos saudáveis de apego e internamente desligam as conexões entre o corpo e a
mente – um processo que Bion (1959) chamou de “ataques contra o processo de
ligação” [a acks against linking]. O que Jung (1916) chamou de “função transcendente”
é fechado e torna-se inoperante pelas defesas dissociativas. O ponto importante aqui é
que o evento traumático externo não é o que lesiona a capacidade de sentir. É a resposta
defensiva da psique às emoções veementes causadas pelo trauma que a lesiona. Devido,

3
justamente a isso, temos a chance de intervir. Não podemos mudar a história, mas
podemos mudar a resposta da psique à história.3 Isso significa fazer o nosso melhor
para ajudar a suavizar as defesas enquanto encorajamos um campo relacional no qual
o paciente possa se sentir seguro em nossa presença – tudo com o objetivo de tocar
aquele núcleo de vitalidade e vivacidade referido na literatura neuropsicológica
recente como o “self implícito” [implicit self] (ver SCHORE, 2011).
Uma faceta final das ideias de Paul Russell sobre o trauma é a seguinte: quando
pacientes com histórico de trauma precoce entram em psicoterapia e um novo
relacionamento de apego começa, os anseios originais por apego, as dolorosas
lembranças de desajuste, as emoções veementes resultantes e as defesas contra elas
serão todos ativados e repetidos na transferência. Nesses pacientes, há sempre um
poderoso impulso em direção à vida e uma “força” igualmente poderosa contra a vida
– uma energia “aniquiladora” que ronda o mundo interno. Freud chamou isso de
“compulsão de repetição” [repetition compulsion]. É um padrão destrutivo para os
pacientes que estão presos nele, mas também dá, a nós terapeutas, a oportunidade de
participar da lesão original na transferência e trabalhar diretamente com os anseios
saudáveis por apego e as defesas assassinas que impedem isso, ao mesmo tempo.
Então, a declaração de Russell de que “o trauma é uma lesão na capacidade de
sentir” pareceu-me um bom resumo para uma nova exploração, centrada no afeto, do
trauma infantil e seu tratamento. Isso também está de acordo com a abordagem de
alguns dos melhores psicoterapeutas que conheci e estudei ao longo dos anos de meu
treinamento. Dois em particular se destacam – o Dr. Manny Hammer em Nova York,
cujo livro “Reaching the Affect” (1990) foi importante para mim em meu treinamento.
Ele destacou que nosso principal desafio é como alcançar e tocar o paciente com

3
Pode ser válido ressaltar as implicações terapêuticas deste ponto. O evento traumático externo não é
o que prejudica a capacidade de sentir. Portanto, na terapia, comiserar com a história do paciente,
muitas vezes repetitiva, de vítima/perpetrador sobre o que lhe aconteceu no mundo exterior não é uma
terapia eficaz para o trauma. (Infelizmente, passei muito tempo fazendo isso.) Eventualmente, percebi
que essa narrativa incessante de vítima-perpetrador é uma das maneiras pelas quais o sistema defensivo
do paciente me mantinha distraído da dor, do luto e da vulnerabilidade órfã subjacente. [N.T.- O trecho
seguinte aparece na versão preliminar do artigo, porém foi retirada da versão revisada.] Então, com
esses pacientes, muitas vezes (agora) me vejo dizendo coisas como "você sabe que eu entendo como
você está chateado com esses eventos difíceis, mas não consigo encontrar você neles. Você não está
dizendo nada sobre seus próprios sentimentos". O paciente pode dizer "bem, estou com raiva!" E eu
posso responder "Eu ouvi isso. E o que mais você pode estar sentindo...por baixo da raiva?" "Bem, estou
magoado... é tão desrespeitoso o que eles fizeram comigo!" E eu posso dizer "sim, mas vamos ficar com
a dor porque é sua e é você que eu quero conhecer". Os pacientes muitas vezes não sabem o que fazer
com tais intervenções porque sentir as lesões da criança interior que se escondeu na vergonha no mundo
interior é tão "contra" as exigências do sistema defensivo. Mas, uma vez que o paciente se sente seguro
o suficiente para explorar essa dor, eles muitas vezes se encontram chorando com tristeza genuína, e
isso é um sinal seguro de que o sistema defensivo está começando a relaxar sua guarda.

4
palavras, em vez de literalmente ou concretamente. E para isso, segundo ele,
precisamos das palavras vitalizantes da poesia e da grande literatura – não da
linguagem seca da teoria e da interpretação. Devemos usar o que for necessário, ele
disse – metáfora, poesia, psicodrama, sonhos, música, movimento, caixa de areia –
para ajudar a restabelecer o vínculo entre o afeto no corpo e a imagética na mente que
foi rompido na primeira fase da vida do paciente. Citando Frieda Fromm-Reichman,
o Dr. Hammer costumava dizer: “o paciente precisa de uma experiência, não de uma
explicação!” (HAMMER, 1990, p. 19).
O segundo mentor foi o Dr. Elvin Semrad, que certa vez disse em um seminário, e
sem pedir desculpas: “Senhoras e senhores, estamos no ramo dos sentimentos!”
Devemos, disse ele, “atravessar as defesas (RAKO & MAZER, 1980, p. 103) e buscar o
que o paciente sente e não é capaz de sentir sozinho.” Devemos “ajudá-lo a reconhecer
o que ele não pode suportar sozinho e ficar com ele até que ele possa suportá-lo” (Ibid.,
p. 105). “E se não podemos esperar até que ele o sinta em seu próprio corpo, estamos
no ramo errado” (Ibid., p. 107).
Semrad e outros nos lembram que as poderosas emoções que inevitavelmente
acompanham o trauma – quando permanecem não processadas – são codificadas na
musculatura do corpo, na postura e em vários estados psicossomáticos, onde
permanecem vivas como sintomas físicos concretos e estados de tensão, enquanto seu
significado simbólico e emocional mais profundo permanece “implícito” e invisível,
enterrado no que chamamos de “inconsciente somático”. Alcançar o afeto subjacente
a essas manifestações corporais concretas significa que o terapeuta deve ser capaz de
se mover fluidamente entre o polo somático e o polo psicológico da experiência,
enquanto trabalha com seu paciente.
Isso significa terapia focada na experiência e não é algo que a maioria de nós
analistas junguianos foi treinada para fazer. Confesso que, com a sensação como minha
função inferior, ainda estou lutando para aprender como incluir o corpo em meu
trabalho. 4 Mas pesquisas contemporâneas sobre trauma mostram que o corpo é tão
relevante quanto os sonhos como “caminho das pedras” para as emoções
inconscientes. Descobri que simplesmente pedir ao paciente para prestar atenção em

4
Outros na tradição Junguiana fizeram importantes contribuições para formas de trabalho sensíveis
ao corpo, especialmente os “Rítmos corpo-alma” [Body-Soul Rhythms] de Marion Woodman, o trabalho
de longa data de Joan Chodorow na Califórnia e Anita Greene em Nova York, o trabalho de “movimento
autêntico” de Tina Stromsted e mais recentemente a contribuição criativa de Marian Dunlea para o que
ela chama de “Sonho Corporal” [Body Dreaming]. Fora da área Junguiana, o trabalho de Peter Levine
tem sido amplamente reconhecido, bem como a articulação de Pat Ogden de uma “abordagem
sensoriomotora” [Sensorimotor Approach] para a psicoterapia e a conhecida abordagem AEDP de Diane
Fosha.

5
um gesto ou postura corporal inconsciente, ou perguntar onde um sentimento é
sentido no corpo, ou conduzir o paciente por um simples exercício de relaxamento
progressivo (um escaneamento corporal) traz grandes benefícios no acesso à emoção
inconsciente e ajuda a curar a lesão na capacidade de sentir.5
Por fim, a declaração de Russell, com sua ênfase no sentimento, me encorajou a
explorar algumas questões incômodas que eu tinha sobre o papel aparentemente
mínimo dos sentimentos na compreensão de Jung sobre como a terapia funciona.
Descrevendo os momentos curativos em sua prática analítica, Jung frequentemente
enfatizava a experiência do numinoso, ou o significado revelador que pode surgir a
partir do entendimento dos paralelos arquetípicos às imagens pessoais dos sonhos.
Essas são todas intervenções do hemisfério esquerdo conectadas ao significado. Ele
raramente falava sobre a recuperação de sentimentos ou a capacidade de sentir como
um agente de mudança na psicoterapia. Isso sempre me intrigou devido ao papel
central que Jung dá ao afeto. "A base essencial de nossa personalidade é a afetividade",
escreveu (JUNG, 1907, para. 78). Além disso, a luta pessoal de Jung com sua própria
emoção veemente foi central para todas as descobertas que ele fez, durante a jornada
do mar noturno mais tarde registrada no livro Vermelho. Ele teria se afogado em suas
emoções, ele disse (JUNG, 1963a), se não tivesse encontrado maneiras de contê-las até
que se transformassem em imagens e fantasias. E os arquétipos, na compreensão de
Jung, eram imagens-afeto [affect-images]. O afeto do corpo lhes dava a carga dinâmica e
a imagem, da mente, lhes dava o significado. Então, imagens-afeto, vinculando corpo
e mente, espírito e matéria em um símbolo dinâmico, tornaram-se, para ele, os blocos
básicos de nossos sonhos, nossos complexos e a própria imaginação.
Então, o que aconteceu com o afeto no desenvolvimento do pensamento junguiano?
Essa é minha primeira questão persistente. Não há uma tendência em nossa psicologia
de nos deixar levar pela imagem, deixando o afeto de lado? "A imagem é a
psique"(JUNG, 1929, para. 75), disse Jung. "Fique com a imagem" (1975, pp. 114, 222),
disse Hillman. Estejamos talvez inclinados a esquecer que não é somente a imagem
que é psique, mas a imagem-afeto que é psique? Em minha experiência, "ficar com a
imagem" é importante porque nos levará ao afeto – e vice-versa.

5
Prestando atenção ao "campo" corporificado com o paciente também nos ajuda a notar
quando as defesas dissociativas estão operando no processamento da experiência instante a
instante. Ser capaz de "identificar" um momento em que o paciente se desconecta e volta ao
Sistema de Autocuidado permite que investiguemos o sentimento que imediatamente
precedeu a dissociação. Tomar consciência dessas situações "gatilho", e testemunhar a defesa
que se segue, pode ser um aprendizado construtivo na regulação afetiva. Um exemplo desse
momento segue no exemplo clínico de “Beth”.

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Onde os sentimentos se encaixam nessa equação? Essa é minha segunda pergunta
persistente. Jung deixa claro que afetos arquetípicos ainda não são sentimentos,
porque são inconscientes. Sentimento, por outro lado, é uma função da consciência e,
como John Perry coloca: "conforme o grau em que o sentimento é diferenciado – ele
tem a qualidade de escolha e intencionalidade em seus julgamentos de valor." (PERRY,
1970, p. 2) Essa compreensão naturalmente leva à escolha de Jung de sentimento como
um dos principais tipos de função orientadora da consciência, juntamente com
sensação, intuição e pensamento. Meu ponto é o seguinte: se o sentimento é limitado
a uma das quatro funções da consciência e colocado dentro de uma tipologia, seu papel
central na dinâmica da vida psicológica em todas as tipologias pode ser negligenciado
ou ignorado, juntamente com o papel das defesas contra o sentimento. Deixe-me dar
um exemplo da minha própria análise que pode ajudar a esclarecer algumas dessas
preocupações.

Exemplo pessoal
Um dos momentos mais importantes e memoráveis que ocorreram na minha análise
de treinamento foi o seguinte: meu segundo analista era um homem muito sentimento
[a very feeling man], que é por que eu o escolhi em primeiro lugar, e ele me ajudou
muito. Durante aquele tempo da minha vida, nos meus 30 anos, eu estava tentando
assimilar e processar o impacto emocional da minha decisão de deixar um casamento
de sete anos e meus dois filhos pequenos, com idades de dois e quatro anos, para ser
livre na exploração de um novo relacionamento. Isso significava desfazer
completamente a vida que eu havia criado. E eu seguira em frente com isso. Os
sentimentos subjacentes eram mais do que eu podia suportar sentir conscientemente
e, como resultado, eu estava deprimido. Eu não estava sonhando. E, minha vida
interior era um deserto. Em algum lugar por baixo, eu estava em profunda dor,
saturado de culpa e vergonha por essa decisão e o que ela significaria para meus filhos
e meu relacionamento com eles, mas eu não estava sentindo isso, e meu analista disse
para mim "você sabe que é realmente importante que você carregue esse pesar
conscientemente".
Ele disse isso com claro sentimento em sua voz e preocupação com meu bem-estar
psicológico. E acho que havia sabedoria em sua declaração, o que provavelmente é por
que me lembro disso quase 50 anos depois... e por que estou falando sobre isso hoje.
Mas, que maneira peculiar de dizer isso! Quer dizer, que maneira peculiarmente
"junguiana" de dizer isso. "É realmente importante que você carregue seu pesar
conscientemente". Acho que a mensagem era "não deixe sua tristeza cair no
inconsciente (o que já tinha acontecido!) porque isso irá te adoecer psicologicamente”

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(o que eu já estava). Eu sabia instintivamente que ele estava certo. Só não sabia como
fazer isso. Eu precisava de uma experiência ao invés de uma explicação.
Vamos imaginar, com o benefício da retrospectiva (e 45 anos de experiência clínica),
que eu pudesse refazer esse momento com um analista ideal perfeito... e é claro,
comigo como um paciente ideal perfeito. Permita-me por um momento... isso é um
experimento de pensamento. Meu analista poderia ter interrompido minha conversa
obsessiva e preocupante sobre mim mesmo – os incessantes pensamentos
autopunitivos que estavam bloqueando meus sentimentos, e dito algo assim: "olhe,
vamos apenas desacelerar por um momento – feche os olhos e deixe-se afundar em seu
corpo – apenas relaxe, siga sua respiração e preste atenção a quaisquer sensações,
imagens ou sentimentos que surgirem. Apenas observe a sensação do que você está
experimentando." Se algo doloroso surgisse, ele poderia me perguntar onde eu o sentia
em meu corpo e me pedir para ficar com ele – não voltar para minha cabeça, como eu
era propenso a fazer. Ele poderia me dar papel e lápis de cor e pedir para eu desenhar
meus sentimentos. Ele poderia ter me ajudado com uma imaginação guiada em vez de
me enviar para casa para fazer a imaginação ativa sozinho, com uma imaginação que
já tinha secado. Ele poderia ter lido um poema para mim, como "Wild Geese" de Mary
Oliver (2017) – um poema que conheço de cor e guardo em mente para momentos
como esse com pacientes.6
Esses tipos de intervenções pelo meu analista ideal poderiam ter religado a bateria
morta da minha imaginação naquela época, ajudando-me a acessar o afeto subjacente
selado sob minhas defesas hiperativas. Desesperadamente, precisava permitir que
meu coração se partisse ali mesmo na sala com ele e ocupar totalmente essa tragédia que
estava vivendo – uma tragédia que não conseguia suportar em plena consciência.
Felizmente, não fiquei nessa condição dissociada para sempre. Eventualmente,
comecei a ter acesso aos meus afetos subjacentes. E a maneira como isso aconteceu
para mim foi que eu comei a sonhar. E muitas vezes é assim, como todos sabemos. Para
aqueles de nós que tiveram a sorte de ter uma relação de apego mais ou menos

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Certa vez, Jung ajudou uma paciente a superar a paralisia psicológica cantando uma música. Sua
jovem paciente do sexo feminino estava tão ansiosa que não conseguia dormir, tão paralisada pelo medo
que não conseguia relaxar em sua presença. Aniela Jaffe (1989; 122) conta como Jung teve a coragem de
usar sua própria imaginação para sentir enquanto estava sentado com essa paciente altamente
defensiva. Atentando ao seu próprio mundo interno, Jung de repente ouviu a voz de sua mãe cantando
uma canção de ninar para sua irmãzinha quando ele tinha apenas oito ou nove anos - uma música sobre
uma garotinha em um barquinho no Reno com peixinhos. Ele se pegou cantando essa mesma canção
de ninar para sua jovem paciente para ajudá-la a relaxar e se sentir segura em sua presença. Jaffe nos
diz que isso a fez abrir-se completamente e seus sintomas de insônia desapareceram. Aqui, Jung estava
assumindo a função transcendente para sua paciente cuja própria função simbólica não estava
funcionando - assim como a minha não estava no exemplo acima. Suas defesas relaxaram e seus
sentimentos vieram à tona e, como Jung relatou, ela estava "encantada" [enchanted].

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adequada no início da vida, a imaginação geralmente chega para ajudar a psique
congelada a degelar.
Um dos pontos que estou tentando trazer com esse exemplo é que a consciência
surge [comes about] ao tornar consciente a emoção inconsciente – na forma de
sentimentos. Não se trata apenas de algo mental ou do hemisfério esquerdo, mas
envolve o processamento bilateral de informações que requer ambos os hemisférios
direito e esquerdo. E acontece em relacionamento. Podemos falar o quanto quisermos
sobre os “conteúdos do inconsciente”, sobre “tendências incompatíveis”, sobre
“opostos”, sobre a “função transcendente”, sobre o “terceiro analítico”, mas a
consciência surge por meio da transformação emocional. Trata-se de recuperar sentimentos
do domínio amortecedor das defesas que praticamente “mataram” nosso acesso a eles.
Jung (1954, p. 96-99) coloca desta forma, em uma afirmação que sempre apreciei:
A provocação de conflito é uma virtude luciferiana no verdadeiro sentido da palavra. O
conflito gera fogo, o fogo dos afetos e emoções, e como todo fogo, tem dois aspectos, o da
combustão e o da criação de luz [...] pois a emoção é a principal fonte da consciência. Não há
mudança da escuridão para a luz ou da inércia para o movimento sem emoção (itálico meu).
(JUNG, 1954, para. 179)
Um complexo só pode ser realmente superado se for completamente vivido. Em outras
palavras, se quisermos nos desenvolver ainda mais, temos que atrair para nós e beber até a
borra aquilo que, por causa de nossos complexos, mantivemos distante.
(ibid., para. 184)

Na segunda parte desta citação, Jung está dizendo, efetivamente, que precisamos
sentir as coisas completamente – e que nossos complexos impediram isso. Ele vê as
defesas que causam a lesão à capacidade de sentir completamente através da lente dos
complexos. Não tenho certeza se este é um modelo adequado quando se trata de
trauma precoce grave ou de bolsões de trauma e dissociação como aqueles com os
quais eu estava lutando no exemplo acima. Na minha experiência, as defesas
primitivas que descrevi em meus textos fazem mais do que "manter os sentimentos
distantes". Elas colocam o processo simbólico fora de operação completamente,
interrompendo o fluxo da imaginação. Elas separam a cabeça do coração, de modo que
o sentimento consciente não é possível. Havia uma grande tristeza que vivia em meu
corpo, mas estava congelada lá e indisponível. E não havia um “complexo” definido
para se trabalhar. Não havia um "complexo de divórcio". Havia o problema geral do
meu sofrimento inconsciente – e era um grande problema – da minha emoção
subjacente e das minhas defesas contra ela. Havia a lesão à minha capacidade de sentir
e o fato de que eu não podia curar esta lesão completamente sozinho.

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Um exemplo clínico de alcance ao afeto subjacente
Gostaria de descrever agora um exemplo clínico com uma paciente que sofreu
(como eu) com uma lesão na capacidade de sentir e como isso foi parcialmente
restaurado ao prestar atenção cuidadosa às conexões relacionais corporais com a
paciente no momento presente.
"Beth", (como chamarei a essa paciente) era uma médica pediatra em seus 50 anos e
que me consultou porque o fim de um relacionamento a deixara deprimida, retraída e
incapaz de trabalhar – morta por dentro. Ela me disse que tinha muitos anos de terapia
e análise anteriores, mas nada durou, aumentando seu sentimento de fracasso.
Ela estava muito deprimida quando a vi pela primeira vez, constrita em seu corpo,
congelada em sua postura, magra e desgrenhada como uma criança de rua ou um
órfão. Como muitos pacientes com defesas de sobrevivência, ela estava funcionando,
mas não vivendo. "Eu quero meu espírito de volta", disse ela, com um grande senso de
anseio em sua voz. Sua vida me lembrou a frase do I-Ching, "Dificuldade no Início".
Nascida na pobreza de pais judeus do leste europeu que eram sobreviventes do
Holocausto, ela passou grande parte de sua vida inicial como refugiada e imigrante,
enquanto a família tentava desesperadamente deixar um país do leste europeu
dominado pelos comunistas. Aos nove meses, ela estava perto da morte com uma
infecção de varíola e teve que ficar em quarentena em um hospital de uma grande
cidade longe de seus pais – mantida em isolamento por um mês inteiro antes mesmo
de ser desmamada. Beth não tinha memória desse trauma precoce, mas qualquer
insinuação posterior de abandono poderia levá-la ao pânico.
Então, quando ela tinha apenas três anos de idade, sua família fez planos para sua
escapada final. Com soldados rondando todos os postos de controle e crianças não
permitidas na fronteira, ela havia sido sedada, amarrada, amordaçada e jogada nas
costas de seu pai em um saco de batatas para se esconder. Aqui, depois que o efeito
sedativo acabou, ela chutou, gritou e vomitou em suas amarras pelo resto da longa
caminhada através da neve. Ela havia sido deixada exausta, traumatizada e perto da
morte novamente. Uma pneumonia grave se seguiu e, com ela, outra ameaça de ser
deixada para trás em outro hospital. Beth gritou tanto, até entrar em febre, que
acabaram por levá-la junto. Finalmente, após mais um ano de viagens caóticas como
imigrantes, a família chegou a Nova York, onde Beth entrou na escola sem saber uma
palavra de inglês. Não é preciso dizer que outros traumas e humilhações seguiram.
“Eu tenho graves problemas de abandono”, disse Beth em uma sessão inicial. “Eu
posso me sentir realmente pequena e vulnerável – muito comprimida por dentro ... um
medo de erguer a mão e ser atingida ou ferida. Quando estou deprimida, é total. Eu
entro em um lugar dissociado ... sonho acordada muito ... me consolando que estou

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praticando minha própria morte ... Eu não consigo viver tão bem, mas sei como
"morrer" – isso é o que eu digo para mim mesma – então não será tão ruim depois.”
Na semana anterior à nossa primeira sessão, enquanto Beth aguardava
ansiosamente (e animadamente) seu horário, ela teve um sonho que nos deu uma
imagem do seu mundo interior e seus principais personagens. Isso não a deixou
exatamente com vontade vir para a terapia. Aqui está o sonho:
“Estou observando uma ocasião de terapia em uma casa perto do oceano. O terapeuta é um
homem jovem. O paciente, também um homem, está deitado no sofá. O terapeuta está
tentando esconder sua sexualidade ... ele está excitado. Algo nefasto está prestes a
acontecer. Eu entro no meu modo "observador" e posso ver isso como se estivesse no futuro.
O paciente quer trazer seu filho para o terapeuta. Há um armário no escritório que parece
um armário infantil cheio de brinquedos e objetos de brincadeira (tem até um rótulo nele:
"Criança"), mas posso "ver" que dentro há facas e cordas e implementos de tortura. O
terapeuta é realmente um assassino em série. Se seu paciente trouxer seu filho aqui, a
criança será sexualmente violada e depois morta. Quero ajudar o homem e seu filho ... avisá-
los sobre o que está por vir.”

Beth soube instintivamente que esse sonho e suas figuras internas mostravam algo
dos medos de sua psique em relação à terapia, e ela me contou o sonho em nossa
primeira sessão. “Ser uma paciente é difícil”, disse ela… “Sou tão autossuficiente…
você não pode me ajudar… essa é minha suposição operacional. Eu admiro qualquer
um que adentra”.
Há uma tensão neste sonho entre anseios de apego, emoções veementes e defesas
contra essa emoção que nos permite “ver” o que está acontecendo. Essa tensão é entre
a "criança" e o assassino em série que representa a defesa contra o sentimento. Podemos
pensar nesta "criança" como representando tanto o desejo saudável de apego quanto a
dor psíquica precoce e não lembrada da infância de Beth. Ameaçando essa criança, está
o assassino em série/terapeuta – o que eu chamo de figura “protetora/perseguidora”
no sistema de autocuidado. Encontro comumente imagens violentas como essa na
psique dissociada. Quando temos tais imagens de assassinos ou matadores em sonhos,
percebi que eles quase sempre são defesas contra afetos subjacentes e contra a
conscientização desses afetos. 7 Então, o assassino é um assassino de consciência. Sua

7
Jung encontrou uma semelhante figura escura e violenta em seu próprio mundo interno. No
momento, talvez, mais crítico de sua vida - quando havia perdido sua relação com Freud, quando suas
próprias ideias criativas ainda não haviam nascido - quando ele estava aterrorizado em "fazer uma
psicose", como ele disse a Mircea Eliade -, ele teve um encontro interno com um assassino de emoções
similar. Durante 28 dias, ele se sentou em seu estudo ouvindo todas as noites as vozes de zombaria,
dizendo que ele era uma fraude, que suas ideias não valiam nada - que ele estava ficando louco... Ele
não conseguia sentir nada... não estava sonhando... estava vazio... havia perdido sua alma. Olhando
aquele terrível momento mais tarde e aconselhando seus leitores sobre o que deveriam fazer em

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"vocação" (se podemos chamar assim) é um opus contra conscientia, um trabalho contra
a consciência. Jung nunca identificou tal figura em sua taxonomia de representações
inconscientes. Em vez disso, ele encontrou essa energia assassina na sistêmica corrente
subterrânea da escuridão inconsciente em si, isto é, o mundo das "Mães" contra as
quais o ego heroico deve sempre lutar. Esse entendimento é apto para uma psicologia
de conflito, mas não é adequado para uma psicologia dissociativa, onde as defesas
arquetípicas podem assumir o mundo interno tornando-se violentas forças antivida.
Meu próprio trabalho é um esforço para preencher essa lacuna em como entendemos
o "mundo interno do trauma".
Os primeiros meses de trabalho conjunto entre Beth e eu foram gastos nos
conhecendo, reunindo histórico e explorando questões atuais que tornavam a vida
difícil. Eu gostava muito dela e fui pessoalmente tocado por sua história, sua resiliência
e sua luta heroica. Mas, como era de se esperar, sua tendência a se isolar e se retirar
começou a aparecer na relação terapêutica em si. Outra maneira de dizer isso é que
seu assassino em série entrou no espaço entre nós e tentou impedir um contato
emocional genuíno. Frequentemente, durante esses períodos, ela vinha sem sonhos e
aparentemente com pouco para falar. A vida parecia suficientemente difícil sem
desenterrar mais sofrimento na terapia. Ela começava a sentir o velho vácuo familiar

circunstâncias semelhantes, Jung disse: “Você está estéril porque, sem o seu conhecimento, algo como um
espírito maligno obstruiu a fonte da sua fantasia, a fonte da sua alma. Se você contemplar sua falta de fantasia,
inspiração e vivacidade interna, que você sente como pura estagnação e um deserto árido, e impregná-
la com o interesse nascido da consternação pela sua morte interior, então algo pode se formar em você,
pois o vazio interior esconde uma plenitude igualmente grande, se você apenas permitir [...] que seu
desejo por plenitude liquefaça o deserto estéril da sua alma, assim como a chuva torna fluida a terra
seca.” (JUNG 1963a, para 190-91). Todos nós conhecemos o final dessa história e o gesto que Jung
descreveu como mudando sua vida..."Eu me deixei cair", ele diz... e de repente sua imaginação estava
viva novamente. Infelizmente, ler a descrição heroica de Jung deste momento, sem o contexto relacional
de sua vida na época, pode nos levar a perder o fato de que sua cura não ocorreu em um estado de
isolamento. Não foi apenas seu processo de individuação heroico e solitário. Ele não derrotou seu
demônio e abriu seu inconsciente sozinho. Ele tinha Toni Wolf. E ele tinha o corpo de Tony Wolf! Não
sabemos os detalhes de como ela o ajudou (e havia, é claro, Emma e talvez outros), mas se tivermos
alguma imaginação para a reparação dramática na capacidade de sentir de Jung que ocorreu entre 1912
e 1916, ela começaria com o que ele chama de seu "desejo por plenitude" além disso, teríamos que
imaginar muita dor profunda e muitas lágrimas. É possível imaginar que talvez pela primeira vez na
vida de Jung, ele experimentou uma contenção relacional [relational containment] nos braços de alguém
que poderia (literalmente e figurativamente) segurar seu coração partido. É significativo que quando
Jung realmente desmoronou e clamou em seus diários "Meine Seele, Meine Seele, wo bist du?" (JUNG,
2009, p. 232) - minha alma, minha alma, onde você está? - uma das primeiras figuras internas a encontrá-
lo foi uma criança e uma donzela. Nos Livros Negros que precederam o Livro Vermelho, Jung diz dessa
donzela: "E eu te encontrei novamente somente através da alma da mulher" (Ibid., p. 233). Essa mulher
é quase certamente Toni Wolf. E essa criança era uma dualidade - em parte a criança órfã e ferida
carregando os sentimentos insuportavelmente dolorosos que Jung não podia sentir, e em parte algo
inexplicável, numinoso - uma "criança divina". Por causa dessa dualidade, Jung reconheceu essa criança
como sua alma retornando.

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preenchendo os espaços dentro e entre nós. Durante esses momentos, eu me tornava
apenas mais um "ajudante" objetivo... não alguém realmente envolvido em sua vida.
Eu era bem-intencionado – ela sabia disso – mas era a vida dela. Ela tinha que assumir
a responsabilidade... ninguém estava "lá... realmente lá, para ela.”
Durante uma de nossas sessões, cerca de um ano após o início do trabalho, enquanto
ela me contava sobre mais uma falha trágica de sua coragem em uma situação social,
eu percebi Beth desviar o olhar à medida que se instalavam os pensamentos negativos
e assassinos de vivacidade. Eu pude sentir que ela estava começando a dissociar... e
então eu perguntei: "O que acabou de acontecer? Você percebeu que estava se
afastando?" "Sim", ela disse e olhou para baixo. Silêncio. "Você pode me dizer o que
estava sentindo antes de se desconectar?" Eu perguntei. Ela balançou a cabeça. Mais
silêncio. "Acho que não consigo fazer isso", ela disse, e pude sentir o abismo entre nós
ficando mais largo. Ela estava se fechando. "Você está se sentindo com medo agora?"
Eu perguntei a ela. Beth assentiu. "Isso é compreensível". Eu disse: "Não há razão para
que você não esteja com medo. Você está sentada com um homem estranho em quem
você ainda não tem motivo para confiar. Você tem muitas memórias que a alertam
contra arriscar sentimentos neste momento. É importante que você se sinta segura aqui
antes que aquela "criança" vulnerável em você possa se juntar a nós." (Aqui eu estava
falando com o ego de Beth, mas também com o seu protetor/perseguidor interno, e era
"ele" que precisava saber que ela estava segura antes de liberar qualquer sentimento
genuíno).
Em algum momento, percebendo que Beth ainda estava lutando, eu me aproximei
dela e disse: "Beth, por favor, apenas olhe para mim!" Lentamente, seu olhar encontrou
o meu. "Ouça", eu disse, "este não é mais apenas o seu problema ... ou apenas a sua
luta solitária ... porque meus olhos também viram isso. Eu estou nisso com você agora,
e estou investido no que acontece. É a nossa história agora, e estamos juntos nisso. Se
vamos ajudar aquela criança dentro de você, teremos que fazer isso juntos – então volte
para mim". Eu estendi minha mão para ela e, lentamente, ela se aproximou e a segurou.
Agora, seus olhos estavam cheios de lágrimas e, em seguida, ela começou a chorar,
abafada e contida a princípio, mas depois, encorajada por mim a permanecer com seus
sentimentos, mais plenamente, soluçando pela primeira vez em minha presença –
trazendo sua "criança" para a terapia. Durante o tempo em que ela chorou, eu
simplesmente fazia sons encorajadores para mantê-la no campo comigo e evitar que
seu crítico interno interrompesse seus sentimentos e a fechasse.
Quando ela falou, Beth disse que, de repente, estava ciente da tragédia que este
momento destacava – a vida que ela estava perdendo, mesmo comigo ali na sala –
sobre como era fácil para ela escapar e quanto ela desconsiderava seu próprio

13
sofrimento e o mantinha todo internamente, sem compartilhar nada. Isso a deixou
incrivelmente triste e a fez perceber seu desejo profundo por conexão e vivacidade. Ela
saiu da sessão com um renovado senso de energia e esperança.
Naquela noite, Beth teve um sonho vívido:
"Estou no trabalho me preparando para ver um paciente. Uma grande família entra no
consultório. Eles não têm dinheiro e estão carregando um bebê que consigo ver que está
doente. Eu pego essa garotinha e entro no consultório. Há uma distorção em seus membros
em um lado do corpo e a perna desse lado está deslocada. Há feridas por todo seu corpo e
elas estão exsudando pus e infeccionadas. Segurando-a, percebo que sinto repulsa por ela.
Eu posso ver que a família é incapaz de cuidar desse bebê. "De quem é essa criança?" Eu
pergunto. Eles apontam para uma garota de 15 anos. Ela desvia o olhar. Ela está
envergonhada. Então, vejo o rosto da minha própria mãe no rosto dessa garota. Eu digo:
"tratarei a criança gratuitamente até ela se recuperar". Enquanto isso, eu lhes falo muito
claramente que eles devem amarrar uma fita vermelha no lado direito do corpo dela e uma
fita verde no lado esquerdo. Isso ajudará a parar a distorção de um lado e curar as feridas.
No sonho, pareço muito confiante sobre meu tratamento. Eu sei exatamente o que fazer".

Beth e eu ficamos profundamente comovidos com este sonho, que parecia ser a
resposta da psique dela à sessão anterior. A criança doente no sonho de Beth está
"desarticulada" e "unilateral", assim como a própria Beth foi forçada a desenvolver um
lado de si mesma em detrimento de sua vida sentimental feminina e vulnerável. E o
tratamento para essa unilateralidade são fitas vermelhas e verdes – ambas as cores da
vida. A criança (que, de acordo com a imagem de seu sonho anterior, agora foi "trazida
para a terapia") está cheia de feridas e pústulas – assim como ela estava aos nove meses
em quarentena. Então, aparentemente, o trabalho que fizemos na sessão anterior
evocou um trauma precoce não recordado, junto com seus efeitos de medo ameaçador
da vida, repulsa e vergonha. No entanto, embora ela sinta-se "repelida" por essa
criança, Beth agora concorda em cuidar dela. Isso representou uma grande mudança
de atitude em relação ao seu self infantil interno, afastando-se da vergonha que ela vê
no rosto da jovem mãe, onde também encontra o rosto de sua própria mãe. Isso levou
a mais lembranças de como sua mãe – ela mesma uma mulher bonita – reclamava que
Beth era feia e era escura e morena como seu pai. Beth nunca sentiu que sua mãe
realmente a queria.
Havia muita emoção explícita neste sonho, então eu encorajei que nós
permanecêssemos com sua imagética e especialmente com quaisquer afetos que
fizessem parte do texto do sonho – por exemplo, o sentimento de repulsa em relação
ao bebê. Fazendo associações a esse sentimento, Beth se perguntou se poderia ser a
repulsa de sua mãe por ela mesma. Ela pediu para desenhar o bebê e, ao fazê-lo, a
repulsa voltou a surgir. Em seguida, ela pediu se eu poderia criar um bebê com algo

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para ela segurar na sessão. Eu encontrei uma toalha velha em meu armário, a enrolei
e fiz um bebê disso, entregando-o a ela, e ela segurou o bebê por um momento. Então,
ela sentiu repulsa novamente e jogou o bebê no chão com raiva. Ela o pegou e o jogou
novamente no chão. Esse gesto espontâneo trouxe lágrimas ... e reconhecimento.8 De
repente, ela se lembrou de uma parte de sua história de infância que havia esquecido
totalmente.
A lembrança era aos oito anos de idade. Aquele tinha sido um ano terrível, tanto em
casa quanto na escola. Ela se lembrou como havia odiado sua mãe naquele ano,
desejando que ela nunca voltasse para casa do hospital, onde havia ido para uma
operação da vesícula biliar. Ela também lembrou, com grande vivacidade, de um ritual
obsessivo que havia realizado com sua boneca durante aquele ano: ela subia até o topo
do prédio de cinco andares onde morava e jogava sua boneca pelos cinco lances de
escada – depois descia para ver se ela havia quebrado. "A cada vez", ela disse, "eu temia
meu sucesso, mas continuava fazendo isso. Não conseguia parar".
A recuperação dessa memória trouxe mais sentimento e mais vergonha, raiva e
culpa para trabalharmos – mas também mais clareza e mais vivacidade. Eu relembrei
com Beth a percepção de Harry Guntrip (1969) de que se uma criança odeia sua mãe,
ela acaba odiando, também, sua necessidade da mãe e, dessa forma, a mãe cheia de ódio
se insinua no mundo interno como auto ódio [self-hatred]. Concordamos que isso pode
ser parte de como o "assassino em série" interior de Beth se estabeleceu dentro dela e
por que "ele" era ativado sempre que ela buscava ajuda.
No gesto de Beth de jogar o bebê no chão, ela incorporou um impulso de raiva que
antes não permitia a si mesma conhecer ou sentir – e as lágrimas que se seguiram foram
uma constatação desse fato. As defesas contra a vulnerabilidade e auto repulsa não
recordadas foram suavizadas nessa encenação psicodramática incorporada e Beth
emergiu mais consciente por ter sofrido esses afetos advindos das profundezas
arquetípicas – agora transformados pela imaginação, em sentimentos conscientes que
ela podia suportar.

Considerações Finais
Jung afirmou que seu próprio mito pessoal era a criação da consciência. Neste
artigo, tentei articular minha própria compreensão de como compartilho desse mito e

8
Robin van Loben Sels, em seu novo livro Shamanic Dimensions of Psychotherapy (Routledge, em
preparação), explora as maneiras pelas quais sete "atributos" xamânicos (incluindo postura e gesto)
operam dentro do "campo" inconsciente do complexo xamânico - ativado entre os parceiros na aventura
analítica. A consciência desses atributos, ela demonstra, pode sensibilizar-nos para os aspectos
"implícitos" da memória inconsciente que operam abaixo das palavras.

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como me encontro reformulando-o de certas maneiras para incluir a transformação
experiencial de emoções arquetípicas altamente protegidas em sentimentos. Tentei
sugerir que a função transcendente e a imaginação criativa que a expressa não são algo
que podemos dar como garantido em todos os pacientes que nos procuram por ajuda.
Essas realidades fundamentais de nossa vida psicológica podem, algumas vezes, ser
colocadas completamente fora de serviço por defesas dissociativas. Em alguns casos
de lesão traumática precoce, há trabalho relacional a ser feito com emoções
incorporadas, conectando psique e soma, e desbloqueando a imaginação, antes que o
trabalho analítico convencional possa ser iniciado.
Nesses casos, carregar algo conscientemente não é apenas uma questão de ajustar
nossas atitudes mentais ou de insight somente. Precisamos do que Bruno Be elheim
(1979) chamou de "um coração informado" [an informed heart]. A grande coniunctio que
procuramos com esses pacientes – e que Jung discutiu em referência aos “opostos”
desencarnados – não pode acontecer sem o corpo e seus afetos não resgatados,
desconhecidos, não recordados e congelados. Ao tentar curar nossa capacidade de
sentir, estamos perseguindo uma consciência do coração. Isso, para mim, é o mistério
numinoso no que Jung (1963a) chamou de Mysterium Coniunctionis. O coração é o
terceiro oculto. E, recuperar um coração que pode se partir é como ajudamos a nós
mesmos e a nossos pacientes a recuperar a capacidade de sentir.

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Referências do texto original
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