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Fréchette, Louise: Distúrbio de Stress Pós-Traumático Complexo: Recuperação (Putting the 1

o
Pieces Back Together), in Bioenergetic Analysis, vol. 9, n 1 ,1998, pg. 43-65.

Distúrbio de Stress Pós-Traumático Complexo: Recuperação


Louise Fréchette

Há algum tempo eu vinha pensando sobre o tipo de artigo que gostaria de


escrever sobre trauma. Eu julgava não ter nenhuma contribuição a apresentar sobre
este tema, porque não tenho nenhuma experiência substancial no tratamento de
pacientes que tenham necessitado uma terapia motivada por uma experiência
traumática grave. Mas quando comecei a ler o livro de Judith Lewis Herman,
intitulado Trauma e Recuperação (1992), percebi que diversas pacientes minhas que
tinham sofrido abuso sexual quando crianças poderiam apresentar o diagnóstico que
essa autora denominou “distúrbio de stress pós-traumático complexo”. Por esse
ângulo eu poderia abordar o assunto.
Na primeira parte deste artigo, vou resumir o que Herman explica sobre a
experiência traumática, sobretudo quando se trata de trauma que perdurou por muito
tempo, com repetições. Na segunda parte, vou indicar o que ela fala sobre o
processo de recuperação e comentar como a Bioenergética pode ser empregada,
em diferentes estágios deste processo.

TRAUMA: AS CONSEQÜÊNCIAS DE UMA EXPERIÊNCIA TERRÍVEL


Creio que foi Herman quem criou o termo “Distúrbio de stress pós-traumático
complexo”. Ela se baseia em sete critérios de diagnóstico, tentando diferenciar a
síndrome apresentada pelas vítimas de acontecimentos traumáticos por curto
período de tempo (por ex. sobreviventes de acidentes aéreos, bombardeio terrorista,
estupro, guerra, tragédias naturais) da síndrome apresentada em sobreviventes –
geralmente mulheres – de traumas prolongados e repetidos (por ex. que sofreram
abuso sexual na infância, violência doméstica, campos de concentração). Herman
acredita que estes últimos casos não foram diagnosticados corretamente no
passado, porque os profissionais da saúde mental costumavam encarar tais
problemas sob o prisma da respectiva psicopatologia latente (Ex.: distúrbio de
somatização, distúrbio de personalidade borderline, distúrbio de personalidade
múltipla), ao invés de considerar esses casos como respostas de adaptação a um
ambiente abusivo, insuportavelmente traumático.
No seu bem documentado livro, Herman faz referência a diversos trabalhos
que descrevem três tipos de sintomas típicos que podem aparecer nos
sobreviventes de situações traumáticas (tanto por curto período de tempo, como
prolongadas). Tais sintomas típicos são: hiper-excitação (vigilância), intrusão e
constrição e são descritos da seguinte maneira pela autora:
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1. Hiper-excitação vigilância: é um estado de “...alerta permanente, com


medo de que o perigo volte a qualquer momento. A excitação
fisiológica não diminui. Neste estado de excitação, (vigilância), que é o
primeiro sintoma importante do distúrbio de stress pós-traumático, a
pessoa traumatizada se assusta facilmente, reage irritada a qualquer
provocação, tem distúrbios de sono.” (p. 35)

2. Intrusão: é o sintoma ligado às recordações do trauma: “Muito tempo


depois de ter passado o perigo, as pessoas traumatizadas revivem o
acontecimento como se ele estivesse sempre se repetindo no
presente. Elas não conseguem retomar o curso normal de suas vidas,
porque o trauma interrompe constantemente. É como se houvesse
uma parada no tempo no momento do trauma. O momento traumático
se constitui numa forma anormal de memória, que irrompe
espontaneamente na consciência, tanto em flashbacks durante os
estados de vigília, como na forma de pesadelos traumáticos durante o
sono”. (p.37)
Referindo-se a testemunhos prestados por sobreviventes de Hiroshima e por
soldados do Vietnã, citados em diversos trabalhos, Herman também resume o
possível impacto neurológico de uma situação traumática: “As memórias traumáticas
não apresentam narrativa verbal e contexto; elas aparecem na forma de sensações
vívidas e de imagens. Estas características excepcionais da memória traumática
podem ter origem em alterações do sistema nervoso central”. (p.38)
Devido ao sintoma da intrusão, as pessoas tendem a reviver as cenas
traumáticas não apenas nos seus sonhos, mas também durante a vida cotidiana. É
diferente de uma teatralização infantil, que Herman descreve como sendo “livre, fácil,
cheia de entusiasmo e alegria”, a teatralização que acompanha um trauma é
“soturna e monótona”. E ainda: “Ao contrário das representações normais das
crianças, a representação pós-traumática é repetida obsessivamente. Na tentativa
de desfazer o momento traumático, os sobreviventes podem até se colocar em
situações de risco quanto a novos perigos”. (p.39).

3. Constrição:
A constrição está relacionada com a capacidade da consciência da pessoa
para suportar o trauma. “Quando uma pessoa está inteiramente sem forças, e toda
forma de resistência é inútil, ela pode entrar num estado de rendição. O sistema de
auto-defesa fica inteiramente impotente. A pessoa impotente escapa da sua situação
alterando o seu estado de consciência, em vez de apelar para uma ação no mundo
real”. (p.42)
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Reações de imobilismo, amortecimento, dissociação ou entradas em estados


de transe são todas típicas do fenômeno da constrição. Segundo Herman, “Estas
alterações de percepção estão combinadas com um sentimento de indiferença, de
alheamento emocional, e profunda passividade, em que a pessoa desiste de
qualquer iniciativa ou luta. Este estado alterado de consciência pode ser encarado
como uma bênção natural, uma proteção contra o sofrimento insuportável” (p.43).
Os sintomas de constrição geralmente começam a predominar quando os
sintomas de intrusão diminuem. De certo modo, eles possibilitam que a pessoa
traumatizada consiga reassumir as atividades habituais. A pessoa poderá
aparentemente estar funcionando melhor, mas Herman adverte: “... continua
persistindo um alheamento que separa os acontecimentos de seus significados
normais, e também continua a distorção do senso de realidade. A pessoa
(sobrevivente) pode se queixar de que não está vivendo verdadeiramente, parece-
lhe que está apenas observando à distância os eventos da vida cotidiana.” (p. 48).
Podemos facilmente imaginar o estado de terrível solidão e alienação da pessoa
sobrevivente: ela fica aprisionada pelo próprio mecanismo que possibilita a ela
“prosseguir vivendo”, e agora a impede de se conectar com o resto do mundo.

RUMO A UMA NOVA COMPREENSÃO DO TRAUMA COMPLEXO


Conforme já notamos no início deste artigo, o quadro se complica com
pessoas que sofreram prolongados e repetidos traumas, sobretudo durante a
infância. Tais pessoas estão menos sujeitas a sintomas típicos pós-traumáticos,
como os que descrevemos acima. Em conseqüência, podem ser erroneamente
diagnosticadas e serem tratadas de modo inadequado.
Eis o que acontece: “Com pacientes que foram submetidas a traumas
prolongados e repetidos, a questão do diagnóstico não é tão direta. São comuns nos
distúrbios de stress pós-traumático complexo que as manifestações sejam
disfarçadas. Inicialmente as pacientes podem queixar-se apenas de sintomas físicos,
ou de insônia crônica ou ansiedade, ou de depressão insuportável, ou de
relacionamentos problemáticos. Freqüentemente é preciso fazer um interrogatório
explícito para determinar se a paciente está nesse momento vivendo com medo da
violência de alguém, ou se isso já aconteceu no seu passado. De modo geral, não
era costume antigamente fazer estas perguntas. Mas elas devem fazer parte da
rotina de toda avaliação de diagnóstico.
Quando na sua infância a paciente foi submetida a abuso prolongado, a tarefa
de fazer diagnóstico fica ainda mais complicada. A paciente pode não se lembrar
completamente da história traumática, ou pode de início negar tais fatos, mesmo
quando indagada com cuidado, de modo bem claro. Mais comumente, a paciente
recorda pelo menos uma parte da sua história traumática, mas ela não encontrou
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nenhuma relação entre o abuso do passado e os problemas psicológicos do


presente. Nos casos de distúrbio de dissociação grave fica ainda mais difícil chegar
a um diagnóstico.” (p.157
Mas mesmo quando o problema já foi adequadamente diagnosticado,
continua difícil a tarefa de prestar auxílio às vítimas de abuso prolongado e repetido
na infância, porque deve-se levar em conta os fatos de que “se o trauma repetido na
vida adulta vai aniquilando a estrutura da personalidade já formada, o trauma
repetido da infância forma e deforma a personalidade”. (p.96) Em conseqüência,
uma pessoa que tenha sofrido quando criança abusos físicos e/ou sexuais irá
apresentar uma organização de personalidade específica, relacionada com tais
condições. Vejam a seguir as principais características que marcam as vidas de
crianças que sofreram abuso:

1. Apego patológico:
As crianças vítimas de abuso tendem a desenvolver apegos patológicos, ou seja,
apegos que “...elas se esforçarão para manter mesmo com o sacrifício do próprio
bem-estar, de sua própria realidade, ou de suas próprias vidas”. (p.98). Isto
acontece porque elas não tinham outra escolha senão aliar-se aos seus
cuidadores abusivos e aprender a jogar o jogo deles, para poderem sobreviver.

2. Vigilância “congelada”:
Crianças que “... embora num estado constante de hiper-vigilância autonômica
precisam ficar ao mesmo tempo quietas e imóveis, evitando qualquer
demonstração física de sua agitação interior. O resultado é aquele estado
peculiar, agitado de “vigilância congelada”, que se observa nas crianças vítimas
de abuso”. (p.100)

3. Isolamento social
Crianças vítimas de abuso sentem-se num vácuo social porque suas famílias são
geralmente socialmente isoladas, e porque elas são “....também profundamente
limitadas pela necessidade de manter aparências e preservar o clima de
segredo.” (p.100) E como todo o conjunto do padrão de comunicaçao é
normalmente patológico no seu ambiente mais próximo, elas também ficam
isoladas dos outros membros da própria família.

4. Sentimentos de abandono
Com freqüência, o “outro” adulto, aquele que não é o agressor, não fez nenhuma
intervenção. Assim, a “criança sente que foi abandonada ao seu destino, e este
abandono é muitas vezes um sentimento pior do que o abuso em si”. (p.101)
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5. Pensamento duplo
Herman faz um relato impressionante da “enorme tarefa de desenvolvimento”
que aguarda a criança vítima de abuso: ela terá que aprender a formar apegos
primários mesmo quando o seu cuidador é uma pessoa perigosa; ela precisa
desenvolver um senso de confiança básica e de segurança, embora seus
cuidadores não sejam dignos de confiança e representem um perigo; ela precisa
desenvolver um sentido de self quando está se relacionando com pessoas que
são cruéis, sem afeto ou impotentes; ela tem que desenvolver capacidade para
um auto-controle corporal, num cenário em que o seu corpo está à disposição
das necessidades de terceiros; ela precisa desenvolver sua capacidade de auto-
consolo, num ambiente sem carinho confortador; ela precisa desenvolver sua
capacidade de iniciativa numa situação que exige conformidade com as
necessidades daquele que comete o abuso; ela precisa desenvolver uma
capacidade para a intimidade quando todos os seus relacionamento íntimos são
corruptos e finalmente ela precisa desenvolver uma identidade dentro de um
ambiente que a define como uma prostituta e como uma escrava. E junto com
isso tudo, a “tarefa existencial” igualmente enorme, de preservar esperança e
significado dentro de um ambiente em que ela é abandonada “a um poder sem
piedade”.

6. Duplo self : o lado bom/ o lado mau


No processo de tentar descobrir o que está acontecendo, a criança vítima de
abuso começa a acreditar que está sendo vítima de um tratamento tão horrível
porque ela é má. Ela se sente enraivecida e agressiva, mas tenta camuflar isso,
procurando ser sempre boa. Ela pode tornar-se uma “atriz formidável” e fará tudo
o que lhe pedirem para conseguir ser amada pelos pais.“ Assim, dentro das
condições de abuso crônico na infância, a fragmentação fica sendo o princípio
central da organização da personalidade. A fragmentação na conscientização
consegue impedir a integração normal do conhecimento, da memória, dos
estados emocionais e da experiência corporal. A fragmentação nas
representações interiores do self impede a integração da identidade”. (p. 107)

7. Ataques contra o corpo


Uma vez que o abuso causa com freqüência uma ruptura na regulação dos
estados corporais e físicos da criança, a vítima de abuso fica sujeita a sofrer
distúrbios crônicos do sono, distúrbios alimentares, problemas gastro-intestinais,
e muitos outros “sintomas físicos de sofrimento”. Para enfrentar tudo isso, bem
como com a disforia - um horrível sentimento que é uma mistura indefinida de
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terror, raiva, desespero e tristeza – a criança vítima de abuso irá intensificar o


processo de dissociação. Mas, como Herman salienta, “Ao invés de produzir um
sentimento protetor de desapego, isso pode conduzir a um senso de desconexão
completa com relação aos outros, e de completa desintegração do self. O
psicanalista Gerald Adler chamou este sentimento intolerável de “pânico de
aniquilação” (p.108)
Para aliviar este tipo de pânico e para se consolar até certo ponto, a criança
vítima de abuso vai recorrer a mecanismos de auto-destruição. É importante
compreender que estes mecanismos raramente são empregados para “manipular”
outras pessoas ou mesmo para comunicar desalento. Servem mais para regular os
estados emocionais internos: “A autodestruição (machucar-se, cortar-se) é talvez o
mais espetacular dos mecanismos patológicos de alívio, mas é apenas um entre
muitos mecanismos. Crianças vítimas de abuso geralmente descobrem em algum
momento do seu desenvolvimento que elas podem produzir grandes, ainda que
temporárias, alterações em seu estado afetivo, quando induzem voluntariamente
crises autonômicas ou quando produzem excitação extrema autonômica. Vômitos,
purgantes, comportamento sexual compulsivo, busca compulsiva de situações de
risco ou exposição ao perigo, e uso de drogas psicoativas são os veículos utilizados
pelas crianças vítimas de abuso para regular seus estados emocionais internos.”

Quando a criança se torna um adulto


Para resumir a situação, Herman fala de três formas de adaptação mais
importantes desenvolvidas pela criança quando se vê obrigada a enfrentar um
ambiente abusivo:
• a elaboração de defesas dissociativas
• o desenvolvimento de uma identidade fragmentada
• a regulação patológica dos estados emocionais.
Ao se tornar adulta, quando ela procura viver sua vida e desenvolver
relacionamentos com outras pessoas, como adulta, todos esses mecanismos entram
em ação. É como se “Ela fosse ainda uma prisioneira da sua infância; tentando criar
uma nova vida, ela reencontra o trauma.” (p.110)
Os relacionamentos da vítima de abuso ficarão pois marcados pela “... busca
de proteção, e de carinho, e perseguida pelo medo do abandono e do abuso”.
(p.111). Ela tenderá a desenvolver “.... um padrão de relacionamentos intensos,
instáveis, vivendo repetidamente dramas de resgate, injustiça e traição”. (p.111) O
risco de voltar a ser vítima na vida adulta será muito grande. Mas é preciso
compreender que o abuso repetido não é procurado conscientemente “mas é
experimentado passivamente como um destino temido mas inevitável, e é aceito
como o preço inevitável do relacionamento.” (p. 112)
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Embora a maioria das crianças vítimas de abuso tendam a serem vítimas em


sua vida adulta, alguns sobreviventes acabam se tornando perpretadores de abuso.
Como se poderia supor, as pesquisas (Carmen, Reiker and Mills, 1984; Pollack,
Briere, Schneider and al. , 1990) mostram que: “O trauma parece ampliar os gêneros
comuns de estereotipos: homens com histórias de abuso de infância são mais
inclinados a voltar sua agressão contra as outras pessoas, enquanto que as
mulheres tendem mais a serem vítimas de outros, ou a se prejudicarem a si
mesmas” (p.113).

RECUPERAÇÃO: RECONSTRUINDO (Juntando os pedaços)


Na Segunda parte do seu livro, Herman escreve sobre o caminho para a
recuperação. Ela defende a idéia de que, uma vez que a experiência traumática
(limitada no tempo ou repetida, não importa qual) levou ao enfraquecimento e
desconexão, o processo de cura deve ficar focalizado na recuperação da energia
(ou re-energização) e na criação de novas conexões com o ambiente. Sob este
ponto de vista, a elaboração de um relacionamento curador com o terapeuta é um
ingrediente básico no processo de recuperação.
Este relacionamento, para ser de natureza curadora, deve antes de mais
nada devolver às vítimas a energia, e também apoiar os esforços dessas pacientes
para controlar o seu comportamento. O terapeuta não está ali para controlar o (a)
paciente. Mas sim para se tornar um “assistente do (a) paciente”, como diz Kardiner.
Fazendo isto, poderá desenvolver-se um relacionamento seguro e confiável entre
paciente e terapeuta, e o processo de cura poderá ocorrer.
Isto não é fácil, porque o (a) paciente irá provavelmente estabelecer uma
transferência traumática com o terapeuta, precisamente porque sua personalidade
foi “deformada” pelo sofrimento a que foi submetida. O terapeuta deverá ficar atento
para o fato de que “... reações traumáticas de transferência possuem um intenso
poder de vida-ou-morte, sem paralelos na experiência terapêutica comum. Como diz
Kernberg, “É como se a vida do (a) paciente dependesse de manter o terapeuta sob
controle”. A transferência traumática reflete não apenas a experiência de terror mas
também a experiência de desamparo” (pp. 136-137).
Neste tipo de transferência, o terapeuta irá experimentar fortes forças
destrutivas que repetidamente irão irromper no relacionamento e abalá-lo. Segundo
Herman, estas poderosas forças desestruturadoras são um reflexo da violência do
perpretador, e não tanto a agressão inata do (a) paciente. Enquanto ocorre a
transferência traumática, vão sendo elicitadas poderosas reações de contra-
transferência. O terapeuta irá experimentar frustração quando se confrontar com
rupturas repetidas no relacionamento com o (a) paciente; ele/ ela irá lidar com
sentimentos de desamparo, raiva e desespero, deixando-o/ a com a impressão de
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que “não mais é amado” , ao mesmo tempo que precisará resistir à tentação de
desempenhar o papel de salvador (pois isso iria enfraquecer o (a) paciente, e
serviria apenas para defender o terapeuta contra o desamparo, a raiva e/ ou
desespero). Os terapeutas poderão mesmo começar a sentir sintomas do distúrbio
de stress pós-traumático, e podem ficar tentados a representar seus impulsos
sadistas e a se tornarem abusivos em muitos aspectos.
É por isso que é tão importante que o terapeuta faça um trato com o (a)
paciente, de modo a providenciar um cenário, um “container” , que irá ajudar a
gerenciar a intensidade das reações de transferência e contra-transferência.
Kernberg também insiste neste aspecto, quando explica como operar
terapeuticamente com pacientes borderline (que tenham sido vítimas de abuso na
maior parte de suas vidas). Devido ao efeito da transferência traumática, é
igualmente importante que o terapeuta tenha cuidados com sua própria saúde
emocional, integrando-se num sistema de apoio de colegas e/ ou professores, que
possam ajudá-lo a manter bons limites e desenvolver um senso de perspectiva com
relação à situação terapêutica. Como terapeutas, precisamos saber que é
necessário cuidar destes aspectos, se queremos que o processo de recuperação
ocorra dentro de um cenário saudável e seguro.
Hermann define 3 estágios de recuperação importantes para os sobreviventes
de situações traumáticas (tenham sido elas por tempo limitado, ou prolongadas):
• estabelecimento de segurança
• recordação e experiência da tristeza que sofreu (LUTO)
• restabelecimento da conexão com a vida normal.
Na próxima parte do meu artigo irei explicar sobre cada um desses estágios,
dentro da perspectiva bioenergética, e direi qual tipo de trabalho terapêutico pode
ser utilizado com os sobreviventes de abuso sexual na infância, em cada estágio, do
ponto de vista da bioenergética.

Primeiro Estágio: Estabelecimento da Segurança


O estabelecimento da segurança é um pré-requisito para qualquer trabalho
terapêutico realizado com sobreviventes de abuso na infância. Isso é indispensável
para que o/ a sobrevivente possa recuperar algum domínio sobre sua vida. Herman
refere-se a algumas técnicas de abordagem:
-Identificação do problema (dar o nome aos bois):
É da máxima importância identificar o problema, sobretudo com as vítimas de
trauma prolongado, que precisaram distorcer a realidade para poder sobreviver. É
crucial porque “conhecimento é poder”. Saber que não estava maluca, por ter se
sentido como se sentia na época, isso é tremendamente importante.
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Pude observar, com diversas clientes minhas que tinham sofrido abuso
sexual, como se sentiam mais fortes quando eu as aconselhava a não ignorar os
próprios sentimentos e sensações, na crença de que era “loucura” sentir-se dessa
maneira. Para ajudá-las a legitimar tais sensações e sentimentos, eu conversava
sobre isso como se fossem diferentes “versões” da sua história. Dizia que embora
sempre exista uma “versão oficial” (geralmente a versão da família), existe também
uma versão “oculta (ou perdida)” enterrada dentro das próprias vítimas, em seus
corpos, e que precisavam emergir para a luz. Depois de repetir muitas vezes para
elas, que não deviam ignorar suas sensações, sofrimentos, emoções ou
pensamentos, com relação ao seu passado, minhas pacientes acabavam finalmente
conseguindo construir uma nova e diferente “história”, muito mais conectada com a
que elas sempre tinham sentido como “verdadeira”. Mesmo nesta fase inicial, de
diversas maneiras simples, a criança traumatizada busca romper a barreira para
contar a sua história a alguém que possa ouvir, e quanto mais o terapeuta dá
legitimidade a esta voz interior, tanto mais a paciente consegue reconhecer e dar
espaço para a criança traumatizada.
-Restabelecendo o controle:
É também crucial para o processo de recuperação o restabelecimento do
controle, primeiro no corpo, e depois no entorno mais imediato. Herman sugere que
em certos casos o uso de medicação pode ser adequado, para reduzir a reação e a
hiper-excitação. Ela também aconselha o emprego de técnicas comportamentais, ou
de bastante exercício para reduzir o stress. Por fim, a autora ensina o/ a
sobrevivente a mapear seus progressos dia-a-dia, a anotar seus sintomas e
respostas adaptativas, e a desenvolver planos concretos para adquirir senso de
segurança.
-Estabelecendo um ambiente seguro:
De acordo com Herman, o/ a sobrevivente vai gradualmente alterando o foco
do controle do seu corpo para o controle do ambiente que a cerca. Por isso o
terapeuta deve ajudar o/a paciente a estabelecer um ambiente seguro, por meio do
cultivo de relacionamentos carinhosos. O terapeuta também deve cuidar para
desenvolver um plano para a proteção futura, com os pacientes que tendem a se
colocar em perigo novamente, inadvertidamente. No caso de sobreviventes de
situações prolongadas e repetidas de trauma, Herman nota que “As fontes de perigo
podem abranger auto-agressão, passividade que impede a pessoa de se proteger,
dependência patológica para com o agressor. (...) No processo de estabelecer uma
segurança básica e uma auto-preservação, o (a) paciente é incentivado a planejar e
dar início a um programa de ação, e a confiar em seu próprio julgamento. A medida
que começa a exercer suas capacidades, que tinham sido minadas pelo abuso
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repetido, a paciente vai fortalecendo sua sensação de ser competente, sua auto-
estima e sua liberdade”. (pp 166-167).

CRIANDO UM AMBIENTE TERAPÊUTICO SEGURO POR MEIO DE


BIOENERGÉTICA:

Uma questão de controle:


Na Bioenergética dispomos de ótimos instrumentos terapêuticos para ajudar
os sobreviventes de abuso sexual na infância, para que recuperem mais controle
sobre seus corpos. A parte mais delicada é descobrir como introduzir o trabalho
corporal no cenário terapêutico, para que seja não apenas seguro e fortalecedor
para o cliente, mas também de modo a que a paciente se sinta segura e fortalecida.
Descreveremos a seguir algumas alternativas que uso no trabalho corporal com
minhas pacientes que sofreram abuso sexual na infância, para ajudá-las a recuperar
até certo grau o controle sobre o seu processo:
• Deixo que a paciente determine a distância e decida como prefere
que nos sentemos na sala.
Algumas das minhas clientes são muito sensíveis quanto à distância, outras
não, porque simplesmente não percebem seus limites. Para aquelas que são
sensíveis, eu sugiro que escolham um lugar na sala, onde se sintam seguras,
e me digam onde devo sentar-me, para que não se sintam invadidas. Eu digo
a elas que prestem atenção às respostas de seu corpo (respiração, tensões e
qualquer outra experiência física), como uma forma de verificar se a distância
está conveniente para elas. Ao mesmo tempo, tento observar os micro-
movimentos de seus rostos e corpos (maxilar contraído, dentes cerrados,
punhos cerrados; diminuição da respiração, movimentos oculares, etc.) e
descrevo essas alterações para as pacientes, especialmente para aquelas
que precisam desenvolver mais a percepção de si mesmas

• Peço licença para tocar


Via de regra eu nunca toco minhas pacientes sem pedir permissão, mas
quando estou trabalhando com sobreviventes de abuso na infância eu fico
duplamente preocupada com esta permissão para tocá-las.

• Deixo que a paciente decida como vai vestir-se para o trabalho


corporal
As sobreviventes de abuso na infância precisam ter algum controle sobre o
modo como estão vestidas durante o trabalho corporal. Não estamos
querendo dizer que não se deva fazer notar e analisar a resistência delas
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para tirar a roupa, mas esta resistência também deve ser compreendida como
uma tentativa se proteger contra futuras exposições a perigo e a abusos. É
necessário que parta delas a decisão de tirar a roupa. Tenho uma paciente
muito desejosa de cooperar, que em criança foi vítima de abuso sexual, e que
está disposta a fazer trabalho corporal e na realidade até trabalha muito bem,
mas ela não consegue fazer os exercícios em roupas do tipo maiô ou roupa
de baixo. Ela prefere fazer os exercícios usando shorts e top. Nós duas
percebemos claramente que o fato dela insistir em usar esse traje, resistindo
à minha proposta inicial de que fizesse os exercícios em traje de banho, é
parte do processo de recuperar o poder sobre o seu corpo. Ela simplesmente
está dizendo com isso que recusa qualquer coisa que possa parecer abusiva
para ela. Nós todos sabemos que os sobreviventes de abuso na infância têm
uma imensa necessidade de serem amadas e aprovadas e muitas dessas
pessoas não têm uma noção clara de seus limites. É por isso que precisamos
ter cuidado nesta questão da roupa. Geralmente, precisamos fazer com que
aquela paciente que não percebe os seus limites tome consciência de que
quando concordar em tirar a roupa, um procedimento normal, ela está como
que entregando seu corpo ao terapeuta, seja para conquistar o amor e
aprovação de uma figura parental, ou para ser magicamente curada por
alguma figura endeusada e onipotente, ou ainda simplesmente porque ela
sente que seus próprios sentimentos e opinião podem ser ignorados. Se
desprezarmos este aspecto, pouco iremos conseguir com a terapia corporal,
porque provavelmente a paciente irá se dissociar. Mas quando ela voltar para
casa, será provavelmente invadida por sentimentos de abandono, raiva e
vergonha, e poderá sentir-se incapaz de lidar sozinha com esses sentimentos.

• Para estabelecer limites eu utilizo exercício de “empurrar contra”


• Todo exercício destinado a manter uma fronteira ou “empurrar
contra” com as mãos ou com os pés, pode ser útil para começar o
trabalho, desde que a paciente concorde em experimentar. Mas pode
acontecer que algumas delas não façam a força devida ou não o façam
por tempo suficiente, no começo. Para elas, o simples gesto de impor
um limite e reclamar seu espaço pode parecer muito amedrontador, e
as emoções despertadas podem ser devastadoras. Mas para elas pode
ser suficiente, no começo, que coloquem as mãos de encontro às
minhas, para que sintam suas fronteiras ou que façam ligeira força
contra mim. Quando executados repetidamente, estes exercícios
podem ajudar as pacientes a construir sua força de ego. Além disso,
esses exercícios abrem caminho para o desenvolvimento de
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sentimentos de segurança, tanto no cenário terapêutico como no


mundo. Mas é preciso dizer que esta ajuda no estabelecimento de
limites e determinação do espaço não se resolve apenas com técnicas,
e que a atitude do terapeuta deve permitir a imposição de limites não
apenas durante os exercícios, mas também no resto da terapia. Por
vezes, as pacientes irão descobrir maneiras próprias de empurrar o
terapeuta; poderão se recusar a fazer um exercício, ou recusar-se a
aceitar um conjunto de instruções; poderão rejeitar algumas de nossas
interpretações; poderão queixar-se de que estamos sendo invasivas,
etc. Quando isso acontecer, precisamos apoiar a expressão da
experiência subjetiva das pacientes, mas ao mesmo tempo devemos
interpretar continuamente suas reações em termos de estruturas de
caráter, enquanto reconhecemos a parte de realidade que
desencadeou a reação delas (onde há fumaça, tem fogo...) É uma
tarefa difícil!

• Exercícios para fazer em casa


Ao fim de uma sessão, eu sugiro exercícios para serem feitos em casa.
Geralmente tais exercícios já foram feitos durante a sessão, mas pode-se
também acrescentar outros, se a paciente achar que pode experimentar realizá-
los sozinha. O objetivo é, logicamente, ajudar a paciente a recuperar seu corpo.
Uma vez que os sobreviventes de abuso na infância foram obrigados a sufocar
ou excluir suas sensações corporais, nós precisamos considerar a tarefa de casa
como um processo de reeducação. O exercício corporal regular trará essas
pessoas de volta ao corpo, e embora possam sentir muitas tensões no início, tais
pacientes irão gradualmente aprendendo a recuperar seu corpo, por mais penoso
que isso seja. Afinal, esse corpo é a sua “casa” . Mas os pacientes também
podem ter a surpresa de descobrir algumas sensações agradáveis, quando
incrementam sua respiração e quando aliviam suas tensões através desses
exercícios. O livro de Lowen The Way to Vibrant Health (Caminho para a saúde
vibrante) sugere um conjunto de exercícios que os pacientes podem fazer
sozinhos. Nós precisamos acompanhar essas tarefas de casa, para perceber
como o (a) paciente sente a “tarefa de casa” e quais desses exercícios são mais
proveitosos.

SEGUNDO ESTÁGIO: RECORDAÇÃO E EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO


(LUTO)
Neste estágio o/ a sobrevivente narra a sua história. A história do trauma
precisa ser recordada e reconstruída, para que se transforme numa mera
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recordação que será integrada na vida da pessoa. Neste processo a paciente


entra em contacto com sua dor e chora suas perdas.
Reconstruindo e transformando a história
A narração inicial da história traumática pode ser repetitiva e um tanto
estática, mas gradualmente a pessoa irá sendo conduzida para confrontar os
horrores do passado e enfrentar as sensações e emoções relacionadas com a
história traumática. Esta tarefa é delicada porque: “A medida que vai
recapitulando suas memórias, a necessidade de preservar a segurança precisa
ser constantemente equilibrada em vista da necessidade de encarar o passado.”
(p. 176)
Conforme Yael Danieli, um terapeuta que escreveu sobre os sobreviventes
do Holocausto, a busca da história da primeira infância “recria o fluxo” na vida do
(a) paciente. Como terapeutas em Bioenergética, nós também sabemos que
“recriar o fluxo” no corpo, por meio de terapia corporal e de análise de caráter, irá
auxiliar o (a) paciente a estabelecer contato com a sua história.
Durante o estágio da reconstrução, o terapeuta precisa permanecer
“neutro” de certa forma: “Enquanto o terapeuta escuta, deve ter sempre em
mente que não deve tirar conclusões sobre os fatos ou sobre o significado do
trauma do (a) paciente. (...) Tanto o (a) paciente quanto o terapeuta precisam
desenvolver tolerância para um certo grau de incerteza, mesmo em relação aos
fatos básicos da história” (p.179).
Neste estágio, “A premissa fundamental do trabalho psicoterapêutico é
uma fé no poder de restauração da narração da verdade”. (p.181) A história se
torna então um testemunho, que dá uma dimensão nova e mais ampla à
experiência individual do (a) paciente.

Chorando a perda traumática


Sofrer a experiência é um componente essencial neste processo de cura.
É por isso que o terapeuta não deve deixar-se prender ao papel de salvador,
porque isso tiraria a possibilidade do (a) paciente trabalhar o seu processo
através da sua dor. De acordo com Herman: “Só quando tiver chorado as suas
perdas é que o (a) paciente irá descobrir sua vida interior indestrutível”. (p. 188) E
acrescenta também: “Mas como é muito difícil chorar as perdas, ocorre uma
resistência ao sofrimento de chorar as perdas, e isso é provavelmente a causa
mais freqüente de estagnação no segundo estágio da recuperação. Esta
resistência ao processo de chorar as perdas pode assumir diversos disfarces.
Mais freqüentemente aparece como uma fantasia de resolução mágica por meio
de vingança, perdão, ou compensação” (p. 189). Isso porque: “O segundo
estágio de recuperação possui uma característica intemporal que é assustadora.
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A reconstrução do trauma requer a imersão numa experiência passada de tempo


“congelado”; a descida para esse sofrimento parece uma entrega a lágrimas sem
fim.” (p. 195)
Herman diz que não existem respostas prontas sobre a duração desse
período, mas acredita que o processo não pode ser abreviado nem eliminado. No
entanto, depois de muitas repetições, “.... chega o momento em que a narração
do trauma não mais desperta sentimentos tão fortes. Torna-se parte da
experiência do/ a sobrevivente, mas apenas uma parte dessa experiência”. Por
fim, “.... chega o momento em que o trauma não mais ocupa o lugar central na
vida do/ a sobrevivente.” (p.195)

RECORDAÇÃO E EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO POR MEIO DA


BIOENERGÉTICA:

Uma questão de contenção


Como nós estamos trabalhando para restaurar o fluxo de energia no
organismo, não poderemos certamente evitar o despertar de memórias que estavam
sepultadas no corpo através de tensões crônicas. No entanto, poderá levar muito
tempo para que o (a) paciente consiga integrar todos os componentes da sua
experiência. Por vezes a história irá emergir apenas no plano das sensações
corporais. Os sentimentos continuam bloqueados, e não haverá imagens, palavras
que emprestem um sentido ao que está acontecendo. Por exemplo, o corpo pode
começar a tremer ou sofrer espasmos, podem soar gritos desesperados, mas
embora isso possa parecer uma intensa experiência de catarse, olhando de fora,
internamente o (a) paciente pode não estar tendo acesso aos seus sentimentos ou a
uma compreensão que lhe torne possível compreender plenamente o que está se
passando.
Como analistas bioenergéticos nós dispomos de instrumentos potentes para
ajudar o (a) paciente a romper as barreiras da amnésia, e recuperar partes do seu
passado. Mas nossa tarefa não cessa aí, e nosso papel é ajudar o (a) paciente a
restabelecer uma continuidade em seu corpo, em sua memória e em sua vida
emocional, à medida que o material vai emergindo para a superfície. Enquanto
ajudamos nosso (a) paciente nas fases dessa reconstrução, devemos compreender
que, para que cada parte da experiência traumática que surge, existe uma certa
quantidade de carga energética explosiva que deve ser controlada e integrada no
corpo e também na psique. Por vezes um evento que parece ser insignificante pode
desencadear uma crise: uma determinada expressão no rosto do terapeuta; uma
falha de sua parte para perceber a tristeza do (a) paciente; um erro de ritmo quanto
a um exercício; uma sessão que precisou ser cancelada devido a uma doença ou
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viagem do terapeuta, tudo isso surgem como “falhas” que despertam raiva, pânico,
ou tristeza profunda. Através dessas situações de crise , no entanto, a história vai
sendo recontada, mas desta vez, ao invés de deixar o (a) paciente enfrentar sozinho
a intensidade dos seus sentimentos, o terapeuta está ali para ajudar a analisar e
conter a experiência.
É porisso que eu digo que o conceito-chave bioenergético para este estágio
de recuperação é o conceito de contenção, e existem na Bioenergética diferentes
modos para ajudar o (a) paciente a recuperar memórias traumáticas e desenvolver
maior capacidade de contenção:

• Trabalhar suavemente com o congelamento e as desconexões


Todo tipo de trabalho corporal que conduz energia para regiões congeladas do
corpo ou que restabelece conexões em partes do corpo que estejam de alguma
forma desconectadas poderá despertar memórias traumáticas. Este tipo de
trabalho precisa ser realizado com muito cuidado e atenção especial deve ser
dada para a integração e o grounding.

• Decifrar o corpo para dar um sentido à experiência


A leitura do corpo é um instrumento importante de diagnóstico. Em condições
ideais, a leitura do corpo deveria ser feita com o (a) paciente em trajes de banho
ou em roupas de baixo, para que possamos observar a cor da pele, o formato
exato do corpo, a tensão dos músculos, a profundidade da respiração, etc. Mas
isso poderá ser impossível quando o (a) paciente for um sobrevivente de abuso na
infância.
De qualquer modo, trabalharemos com o que pudermos ver e se o (a) paciente
precisa conservar as roupas, poderemos pedir-lhe permissão para colocar uma
mão em seu peito, ou em seu ventre, ou nas costas, por exemplo, para observar a
profundidade e a qualidade da respiração, e sentir os anéis de tensão que dividem
o corpo. O (a) paciente pode ajudar neste processo. Pode fornecer informações
sobre seus problemas de saúde (p.ex. problemas gastrointestinais ou vaginais) os
quais poderão ser indícios da alienação de certas partes do corpo, ou poderá
relatar constrições em seu corpo que revelarão ao terapeuta alguma pista sobre o
bloqueio principal e qual a sua gravidade aparente. Essencialmente isso já
contaria uma história sobre como o (a) paciente sobreviveu e sobre o padrão
particular de desconexões que foram “escolhidos” , por assim dizer, pelo
organismo, para conseguir enfrentar o ambiente traumático.
Por exemplo, uma paciente minha tinha uma mãe que era muito fria, outra
cuja mãe era depressiva, outra tinha um pai abusivo: essas pacientes tendiam a
serem muito magras e muito tensas, algo como o que Lowen chama de tipo de
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caráter esquizóide. Já as pacientes que tinham mãe invasiva ou pai incestuoso, ou


quando a mãe era abusiva e o pai ausente, tendiam para o tipo masoquista, embora
na aparência física seus corpos denotassem uma qualidade mais livre (qualidade de
falta de limites – unbounded), e não aquela constrição (overbounded quality) que
Lowen descreve como sendo típica do masoquista.
A observação do corpo em movimento também revela muita coisa. Observei
com freqüência que sempre que a carga energética aumenta no corpo (por meio de
respiração profunda, ou mesmo através de trabalho verbal com conteúdos
transferenciais) o corpo dos sobreviventes de abuso na infância tende a estremecer
ou sofrer espasmos como se estivesse tentando livrar-se de uma cilada. Este tipo de
estremecimentos e espasmos que toma conta do corpo é uma linguagem que está
revelando: “Veja o que fizeram comigo”.
Por exemplo, se o corpo se contorce mas os ombros parecem pregados no
colchão, pode ser indício de que o perpretador costumava dominar a criança
apertando seus ombros para baixo. Quando parece estar sendo enforcada,
geralmente a história é que a criança era amordaçada, algo era colocado em sua
boca, durante a prática do abuso. Nesta altura o terapeuta terá que usar seu próprio
julgamento para decidir se deve compartilhar a percepção que tem da história do
abuso sofrido na infância, ou se deve esperar que o (a) paciente consiga rememorar
sozinho os fatos. Seja qual for o caso, o terapeuta precisa ter muita cautela para não
impor a sua versão da história, porque poderia ser apenas uma outra “versão”, que
poderia afastar a “verdadeira versão” do(a) pacientei. A única história válida será
aquela que o (a) paciente reconstrói por si mesma. O terapeuta está ali para ajudar o
(a) paciente a ir até o fundo do poço, descobrir o fundo da história verdadeira para o
(a) paciente, e em hipótese alguma poderá tentar fazer o (a) paciente aceitar como
válida a versão do terapeuta.

• Conectando a voz com o corpo


Muitas vezes, os sobreviventes de abuso na infância apresentam dificuldade
para emitir sons, ou dizer em voz alta as palavras, com a intensidade e a carga
emocioinal que eles sentem interiormente. Todos os meus pacientes que eram
sobreviventes de abuso na infância relataram, em algum momento, que estavam
interiormente berrando, mas não conseguiam ao mesmo tempo emitir nenhum som
audível durante o trabalho de terapia corporal.
Praticamente todos os sobreviventes de abuso na infância não têm voz, seja
porque esta parte do seu corpo foi agredida num primeiro estágio da vida deles, ou
porque tiveram que “manter segredo” no caso de sobreviventes de incesto.
Para auxiliar os pacientes a liberarem sua voz, o terapeuta poderá ensiná-lo a
prestar atenção em seu interior para ouvir qualquer grito ou palavra que possa
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emergir, durante a terapia, e relatar o sucedido. Outra possibilidade é ensinar o (a)


paciente a emitir um som suave, sem forçar. Não precisa ser um som forte, mas
deve ir até o fundo até que todo ar tenha sido expelido. Por vezes isso irá provocar
uma crise de choros e soluços profundos, e o (a) paciente pode até mesmo
contactar a sua dor mais profunda, que tinha ficado sepultada sob camadas de raiva,
tristeza e pânico.

• A importância do holding no processo de construção da função de


contenção (building a container).
Os sobreviventes de abuso na infância apresentam freqüentemente um
problema particular, do ponto de vista energético. De um lado há um alto grau de
carga de energia em seus corpos, quando eles fazem a conexão com a lembrança
dolorosa, mas por outro lado fica muito reduzida a possibilidade de descarga devido
à ausência de voz e à rigidez do corpo. Os sobreviventes foram aterrorizados, aberta
ou disfarçadamente, e seus corpos aprenderam a manter-se imóveis para que
pudessem sobreviver. Preferiam morrer do que enfrentar o agressor. Falando do
ponto de vista intelectual, eles estão conscientes de que o seu medo é irracional, de
que se trata do medo de uma criança de um ou dois anos de idade, ou mesmo de
um bebê de alguns meses, mas no plano emocional eles estão enfrentando um ser
todo poderoso, cruel, que tem poder para destrui-los.
A única maneira de ajudar estes pacientes a perderem a rigidez e começar a
liberar o que foi mantido escondido é permanecer no processo sem pressionar. Não
se pode empurrar o rio. Os pacientes precisam sentir-se apoiados e protegidos
durante o processo de recordação e lamentação das perdas, e quando sua
experiência ficar muito amedrontadora ou muito invasiva, nós poderemos segurar os
seus pés, as mãos, o pescoço e a cabeça, ou as costas, para ajudá-los a atravessar
a crise e a se expressar. Este simples contato fornece uma presença humana num
mundo interior desumano, cheio de figuras ameaçadoras.
O ideal seria tentar ajudar os pacientes a fazer contato com suas memórias
traumáticas de modo que a experiência traumática passe a ser controlável. No
entanto, podem surgir situações de emergência quando o ego não é suficientemente
forte para conter a intensidade de uma experiência. Os pacientes poderão de
repente ficar invadidos com lembranças e sentimentos tão intensos que acabam
chegando ao ponto da desorganização. Em tais momentos, é necessária a
contenção, vinda do mundo externo, e o terapeuta poderá agir como aquele que
transmite a contenção. Para agir assim, o terapeuta poderá dizer ao (a) paciente que
se aninhe no terapeuta, numa posição fetal, enquanto o terapeuta coloca uma mão
no seu pescoço e outra mão na parte inferior das costas, ou nos seus pés. Esta é
uma das diversas maneiras que permite que o (a) paciente encontre o seu ground
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por meio do corpo do terapeuta. Devemos ter em mente que o/ a sobrevivente de


abuso pode precisar atravessar esta fase antes de conseguir plantar suas raízes
num solo próprio.
• Grounding, grounding, grounding
Nem precisamos dizer que será preciso trabalhar muito com grounding, na
forma mais “clássica”, neste momento da recuperação. Esfregando os pés no chão,
comprimindo os dedões do pé no chão, trabalhando com os tornozelos, jogando
todo o peso numa das pernas, depois na outra perna, chutando ou empurrando com
as pernas, ir com freqüência para a posição de grounding invertido, fazendo pressão
contra a mão do terapeuta, a partir dos pés, no grounding invertido. Estas são
apenas algumas das muitas estratégias que podem ser empregadas para fortalecer
o ego do (a) paciente. Este trabalho precisa ser feito para aumentar a capacidade do
organismo para lidar com as lembranças traumáticas que irão emergir durante esta
fase da terapia. Ao abrir o fluxo da energia nas pernas, aumenta-se a conexão com
o solo, e quando fazemos isso estamos ajudando o (a) paciente a desenvolver uma
base segura, “uma boa figura interna parental”, capaz de continuar cuidando da
criança traumatizada quando a terapia estiver terminada.

TERCEIRO ESTÁGIO: RECONECTAR-SE COM A VIDA NORMAL


Nesta fase o/ a sobrevivente de experiência traumática aprende como
recuperar energia nas situações da vida real e como enfrentar o seu futuro. Nas
palavras de Herman: “Tendo feito as pazes com o seu passado traumático, o/ a
sobrevivente enfrenta a tarefa de criar um futuro. Ele/ ela já chorou o velho self que o
trauma havia destruído; agora precisa desenvolver um novo self. Seus
relacionamentos foram testados e transformados para sempre, devido ao trauma;
agora ele/ ela precisa desenvolver novos relacionamentos. As velhas crenças que
davam sentido à sua vida foram abaladas; agora precisam encontrar uma nova fé
que os sustente. Os / as sobreviventes cuja personalidade foram formadas num
ambiente traumático sentem-se, neste estágio do tratamento, como se fossem
refugiados que chegam a uma nova pátria. Precisam construir uma vida nova, dentro
de uma cultura radicalmente diferente daquela que deixaram para trás”. (p. 196)
Esta reconexão com a vida comum irá acontecer pelo aprendizado de
diferentes aspectos. Herman resume alguns destes:

Aprender a lutar
Aprender a lutar pode significar um curso de auto-defesa, ou também como
enfrentar pressão social que possa manter o/ a sobrevivente no papel de vítima no
tempo presente. Também poderá incluir uma confrontação com o perpretador do
abuso e com a família, mas, conforme Herman nota, tudo isso tem que ser “muito
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bem planejado, no devido tempo”. O/ a sobrevivente precisa estar pronta para


enfrentar esta fase e não deve fazê-lo como uma vingança.

Reconciliar-se consigo mesmo(a)


Herman acredita que “Esta mera declaração ‘Eu sei que eu sou dona de mim
mesma”- poderia servir de lema deste terceiro e último estágio da recuperação.”(p.
202) A Reconciliação consigo mesmo também “...exige que se repudie os aspectos
do self que nos foram impostos pelo trauma. A medida que o/a sobrevivente vai
abandonando sua identidade de vítima, ela poderá também decidir renunciar a
partes de si mesmo/a que até então haviam sido intrínsecas ao seu ser. Enquanto
que no passado os/as sobreviventes muitas vezes imaginavam que a vida comum
iria ser muito aborrecida, agora eles/elas estão aborrecidos com a vida de uma
vítima, e pronto(a)s para achar que a vida comum é muito interessante”. (p.203)
Por fim, a auto-aceitação só pode ocorrer quando o/a sobrevivente começa a
dirigir a própria vida: “Os(as) sobreviventes mais ativo(a)s são capazes de se dedicar
para reconstruir suas vidas, na medida em que vão aprendendo a ser mais
generoso(a)s e capazes de aceitar as recordações do self traumatizado”. (p. 203-
204) Neste estágio da recuperação o(a) sobrevivente desenvolve um novo senso de
orgulho e por vezes pode até “... identificar aspectos positivos do self que foram
forjados durante a experiência traumática, mesmo que estejam também
reconhecendo que o preço pago por essa vantagem foi muito alto.”(p. 204)

Reconectar-se com outras pessoas


Para se reconectar com outras pessoas o/a sobrevivente precisa estar
capacitado(a) a sentir uma vida autônoma, ao mesmo tempo que permanece
conectado(a) com as outras pessoas. Herman percebe isto na capacidade do(a)
paciente “... para manter o seu próprio ponto de vista e seus limites, ao mesmo
tempo que respeita os dos outros. A pessoa começa a tomar mais iniciativa na vida,
e no processo de recriar uma nova identidade. Com os outros, já está disposta a
arriscar novos relacionamentos. Com os seus pares, já consegue buscar amizades
que não estão mais baseadas em bom desempenho, imagem, ou manutenção de
um falso self. Com os namorados e com a família já está pronta para maior
intimidade. O aprofundamento da conexão também pode ser percebido no
relacionamento terapêutico”.(p.205)

Descobrir a missão do(a) sobrevivente do abuso


Descobrir uma missão pode ser um caminho para uma minoria significativa de
pessoas que tenham sofrido uma experiência traumática, para que consigam chegar
à resolução de seu problema. Como diz Herman, “Embora não exista uma maneira
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de compensar uma atrocidade, existe um modo de transcendê-la, transformando-a


numa doação para os outros. O trauma só pode ser redimido quando se transforma
na fonte de uma missão, para a sua vítima”. (p. 206)
Para o(a) sobrevivente do trauma, a busca de uma missão pode ser algo
relacionado com uma atividade social, mas também pode ser uma atividade legal.
Neste caso, “Essa luta particular da vítima se torna parte de uma guerra maior em
curso, para impor o domínio da lei sobre a tirania arbitrária do mais forte”. (p211)
Nesta fase, a ação assume um caráter muito saudável e realista, porque a
recuperação do “o(a) sobrevivente não está baseada na ilusão de que o mal foi
vencido, mas sim no conhecimento de que o mal não conseguiu prevalecer
totalmente e há esperança de que se pode encontrar no mundo um amor capaz de
restaurar os danos”. (p.211)

Como saber que o(a) paciente já atingiu uma resolução


Herman acredita que: “Embora a resolução nunca seja total, os melhores
indícios de resolução são a volta da capacidade para encontrar prazer na vida e a
disposição para manter relacionamentos plenos com outras pessoas” (p 212). A
autora cita ainda Mary Harvey, uma psicóloga que definiu sete critérios para a
resolução do trauma:
1. Os sintomas psicológicos do distúrbio de stress pós-traumático já estão
dentro de limites controláveis;
2. A pessoa já consegue suportar os sentimentos associados às lembranças
traumáticas;
3. A pessoa consegue controlar suas lembranças; consegue recordar o
trauma, ou afastar as recordações
4. A lembrança do evento traumático é uma narrativa coerente, carregada de
sentimento;
5. A auto-estima da pessoa já foi restaurada
6. Os relacionamentos importantes já foram restabelecidos
7. A pessoa reconstruiu um sistema coerente de significado e crença que
abrange a história do trauma.

RECONEXÃO COM A VIDA COMUM POR MEIO DA BIOENERGÉTICA:


Uma questão de mobilidade:
Conforme já sabemos, a Bioenergética foi desenvolvida para ajudar as
pessoas a restaurar a pulsação de vida original em seu corpo, e em todo o seu ser.
Isto quer dizer que a Bioenergética pretende libertar o indivíduo das respostas
repetitivas programadas da sua estrutura de caráter, para que ele possa responder
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de modo espontâneo, alegre e adaptado às situações da vida cotidiana. Dando


muita importância ao grounding, a Bioenergética quer ajudar o paciente a se erguer
e ser assertivo na sociedade contemporânea, bem como a ajudar o indivíduo a se
render aos seus sentimentos mais profundos. Assim sendo, nós como terapeutas de
Bioenergética, podemos realizar um trabalho importante com pacientes que se
encontram no terceiro e último estágio de sua recuperação.
Se no segundo estágio o foco do trabalho de recuperação havia sido a
contenção, no terceiro estágio o foco deverá ser a mobilidade. Isto significa que
vamos ajudar o(a) sobrevivente a desenvolver sua capacidade de lutar, dar o troco,
bem como sua capacidade de buscar o afeto do outro. Também significa que vamos
ajudar o(a) paciente a restaurar a mobilidade em todo o seu corpo, e mais
especificamente no segmento da pélvis, para que possa dominar e usufruir do seu
poder sexual da forma mais plena possível.

• Liberando a expressão por meio de brincadeiras


No último estágio da recuperação, o(a) paciente, tendo já enfrentado seus
monstros interiores, fica mais ativa no seu próprio processo. Pode sentir-se como
uma adolescente em relação a um pai amoroso, esperando orientação sobre como
se tornar um adulto. O terapeuta nesta terceira fase já não é tanto uma figura
parental, mas surge como um modelo para o paciente, que agora se sente livre para
afirmar-se tanto nas semelhanças como nas diferenças. Para que este processo de
cura possa ocorrer, o terapeuta precisa reconhecer o crescimento pessoal que
observa no(a) paciente. É um bom momento para ajudar o paciente a consolidar um
narcisismo saudável, por um espelhamento das novas forças e qualidades que o(a)
paciente desenvolveu.
Além desse papel de modelo, há muito trabalho para realizar neste estágio.
Por exemplo, a respiração pode estar precisando de maior abertura, para aumentar
o potencial do cliente para sentir prazer e alegria. Bloqueios nos ombros e no maxilar
também precisarão ser trabalhados, para liberar os impulsos agressivos e os de
busca de afeto, bem como os impulsos para morder e sugar. Neste estágio, o banco
de respiração pode ser usado mais freqüentemente. No terceiro estágio, o trabalho
de expressão não está tão centrado na liberação de emoções explosivas que foram
reprimidas no passado. Ao contrário, o objetivo agora é ampliar o alcance da
expressão na vida atual do paciente. Com freqüência, neste estágio, o trabalho
terapêutico se torna mais brincalhão e menos dramático.

• Recuperando a sexualidade
A sexualidade é o ponto central da personalidade. E como os(as)
sobreviventes de abuso na infância geralmente foram profundamente agredidos
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sexualmente, precisamos ajudar o(a) sobreviventes a recuperar sua sexualidade. O


trabalho irá com certeza incluir o segmento pélvico, neste estágio. Podem ser feitos
exercícios de cair, fazer ponte, empurrar com a pélvis, energizar o diabo, para que
o(a) paciente fortaleça o seu ego, ao mesmo tempo que se entrega à sua energia
sexual (vide Bennet Shapiro, Healing the Sexual Split Between Tenderness and
Aggression, que apresenta uma boa seqüência de exercícios).
Esta não é uma tarefa fácil, porque as feridas em torno da sexualidade são
geralmente muito profundas e o(a) sobrevivente poderá ter uma experiência negativa
ao entregar-se à sexualidade. Poderá sentir-se novamente como um objeto
manipulado pelo agressor sexual. Este tipo de sentimentos poderá emergir mesmo
quando o parceiro sexual for uma pessoa afetuosa, terna e respeitadora. Para
enfrentar este problema, o terapeuta precisa empregar uma abordagem dupla: 1)
trabalho sustentado na colocação de limites, auto-afirmação e auto-expressão, no
qual o ego é ativo e assume pleno controle (geralmente na posição ereta), e 2)
trabalhar a entrega, em que o ego se entrega a um movimento mais profundo de
energia, como acontece no orgasmo (geralmente na posição deitada).

CONCLUSÃO
Embora o livro de Herman nos forneça os marcos para indicar o caminho que
devemos percorrer no processo de auxílio ao paciente que sofre de distúrbio do
stress pós-traumático complexo, nós deveremos também descobrir um caminho para
cada paciente individualmente.
Certamente precisamos ser inventivos e adaptar nossa abordagem
terapêutica pois o processo de recuperação desses pacientes pode apresentar
imprevistos. Embora Herman defina os estágios da recuperação, ela também diz no
final do seu livro: “A recuperação não segue um curso de simples progresso, mas
também apresenta desvios e regressões, com revisão de questões que já tinham
sido tratadas muitas vezes, para aprofundar e expandir a integração do(a)
sobrevivente no significado da sua experiência”. (p.213)
Eu gosto de ter sempre em mente que embora estes estágios de recuperação
se sucedam, falando em termos amplos, o(a) paciente provavelmente irá percorrê-
los num movimento de espiral. A qualquer momento, durante o processo, poderá
haver um regresso aos primeiros estágios da terapia, quando o(a) paciente enfrenta
experiências estressantes em sua vida presente, e depois ele(a) pula para a frente
quando se sente mais seguro(a). O mais provável é que haja micro-seqüências
ocorrendo dentro de uma seqüência maior. A vida também não segue uma rota
linear pré-determinada.
Talvez seja melhor assim, porque assim o terapeuta se vê obrigado a
responder ao sofrimento de seu(sua) paciente de forma pessoal, única, com seus
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recursos de criatividade, compaixão e insight. É assim que se processa uma


experiência humana compartilhada.
E é precisamente assim que o(a) sobrevivente de abuso precisa ser tratada.
Montreal, 21 de junho de 1993.

i
Notas de rodapé
O que chamo de “história verdadeira” não é aquela que ocorreu na realidade.
Trata-se antes de como a criança sentiu o que estava sendo feito com ela, e como
eram os verdadeiros sentimentos dela diante da situação de abuso.

Tradução: Myriam Q. Barbosa


Revisão: Odila Weigand (2004)

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