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25 ANOS DE CVV
Editora Aliança
Rua Genebra, 168 — CEP 01316
Tel.: (011) 239 3474— São Paulo
Nota da Editora
A Editora Aliança prontificou-se a editar este livro comemorativo dos 25 anos
do CVV, sem qualquer finalidade lucrativa. Os lucros advindos da venda deste livro
serão contabilizados à parte e entregues ao CVV
Esta não é a primeira vez que me proponho escrever a introdução do nosso livro.
Foram várias tentativas frustradas e hoje reconhecemos a impossibilidade de expressar
em palavras as grandes emoções, experiências e aprendizados que o CVV nos trouxe em
vinte e cinco anos de ininterruptas atividades.
Trilhando os caminhos da amizade, cujo início situa-se em 28 de julho de 1961,
vivemos um mundo de venturas nos quais a água viva dos nossos sentimentos se
transformou em dons inefáveis de trabalho, amor e alegria.
Partimos do zero e, inicialmente, lutamos para vencer a enxurrada pessimista
que nos desencorajava com argumentos tais como: “isso é para psiquiatras e não para
leigos”, e similares.
Conforme esclarece a “Uma História em Quatro Atos”, iniciamos dirigindo as
pessoas, dando conselhos e orientações, centrávamos no problema. Com o passar do
tempo, a conhecida, e sentida por todos, direção positiva (tendências atualizante e
formativa) se manifestava sobre o grupo conduzindo-o ao amadurecimento.
Quanto mais amadurecíamos, mais acreditávamos na capacidade de crescimento
dos seres, que se manifesta em toda a natureza, desde que lhes sejam oferecidas
condições.
Fomos aos poucos compreendendo que, sob ameaça, a pessoa enrijece anulando
a sua capacidade de crescimento. Uma vez aceita, imersa numa atmosfera afetiva, sem
julga mento ou condenações, ela volta a crescer tal como se desenvolvem os esporos
dos microorganismos que aguardam pa cientemente uma alteração nas condições do
meio favoráveis ao desenvolvimento.
Com o passar dos anos firmava-se dentro dos nossos corações os conceitos que
hoje são os princípios fundamentais do CVV:
- aceitação
- compreensão
- respeito
Aprendemos com experiência... Aprendemos muita coisa. Seria de todo
impossível arrolarmos a infinita aprendizagem que o CVV nos trouxe.
De “suicida potencial”, ostentando a abominável sigla SPot, passou a “caso”, de
“caso”, em 1977, foi para “atendido”, de “atendido” evoluiu para “pessoa” e hoje como
o outro.
De atendimento, evoluímos para entrevista, de entrevista chegamos a relação de
ajuda, para finalmente nos sentirmos em um encontro, quando o telefone toca ou
quando alguém nos visita.
Aprendemos que o encontro (relação de ajuda) é um processo recíproco, um
entendimento a dois, sedimentando-se assim um maravilhoso critério de igualdade.
Fomos enriquecidos com o conceito de disponibilidade. Uma vez que é livre a
prática da amizade, e não privilégio dos voluntários do CVV, o que distingue o
voluntário é a sua disponibilidade.
Como prova de reciprocidade passamos a sentir um crescimento extraordinário
após um encontro. Sem teorias ou hipóteses, evoluímos em um campo de experiências
múltiplas, consolidando de forma inabalável os conceitos básicos.
Tivemos provas irrefutáveis de que o ser humano é bom (conforme ilustra a
história “Na Cadência do Samba”). Na sua intimidade, contrariando o que nos
ensinavam as teorias do passado, sentimos que ele é bom. Concluímos, a partir dai, que
o papel verdadeiro da religião e da psicoterapia é contribuir para a exteriorização dessa
bondade. Aqueles que são classificados como maus, certamente, nunca tiveram a
oportunidade de expressar a bondade que têm.
Outra preciosidade que colhemos nesses vinte e cinco anos, são as amizades que
cultivamos. Algo sagrado duradouro, inesgotável, e sem preço!
Agora, de uma forma particular, procuraremos apresentar aos caros amigos
leitores os principais marcos de quilometragem dos Caminhos da Amizade:
01 - 28/07/61: recebíamos das mãos do Cmt. Edgard Armond as sugestões para a
implantação do futuro – CVV;
02 - 01/03/62: Misayo Ishioka dava o primeiro plantão, inaugurando no Brasil o
CVV;
03 - mar/65: uma geladeira era vendida para inteirar o sinal da aquisição de um
conjunto de salas na rua Francisca Miquelina, cada plantonista encabeçaria uma
“chave”, tornando-se responsável pela angariação de Cr$ 11,000,00 mensais;
04 - 10/07/65: com emoção transbordante visitamos os Samaritanos, em
Londres, travando o primeiro contato com uma personalidade inesquecível, o Rev. Chad
Varah;
05 - 03/08/70: sendo a primeira em uma cadeia, era fundada a filial do CVV, na
Cidade Sorriso, Porto Alegre;
06 - out/71: inaugurava-se o “corujão”;
07 - 12/08/72: no abençoado Bairro do Torrão de Ouro, em São José dos
Campos, inaugurava-se a Clínica de Re pouso Francisca Júlia;
08 - 18/10/75: era inaugurada a primeira casa do Lar Esperança (aldeia infantil);
09 - jun/76: era implantado o “Role-playing” como programa de treinamento
constante dos voluntários;
10 - set/76: iniciavam-se os trabalhos da Casa da Criança Jesus Gonçalves, para
menores excepcionais;
11 - mai/77: Chad Varah vem ao Brasil, transmitindo-nos uma mensagem de
inabalável confiança que desencadeou a expansão do CVV;
12 - 06/05/79: a Escola Paulista de Medicina patrocina o IX Simpósio de
Psiquiatria, tendo sido convidado um representante do CVV a proferir a palestra de
encerramento, sobre “Prevenção do Suicídio”;
13 - 13/09/80: como iniciativa pioneira, abre-se a primeira reunião regional do
CVV, em Goiânia, que futuramente se transformaria nas concorridas Centro-Oeste, e ser
viria de exemplo para as dezenas de encontros regionais que se realizam todos os anos;
14 - Páscoa/82: com a realização do III CN, evento modelar, consolida-se o
Conselho Nacional;
15 - jun/82: a TV Globo leva ao ar o Caso Verdade intitulado “Disque CVV Para
Viver”, com repercussão em todo o território nacional;
16 - 09/11/83: na finalização dos estudos realizados na Abolição, sobre o livro
“Tornar-se Pessoa”, era discutido o tema Vida Plena com inexcedível entusiasmo,
tornando-se desde então matéria discutida em todos os encontros, CN’s, e aulas;
17 - 29/01/84: realiza-se na cidade de Araraquara a primeira “Reforçada”, sendo
ponto de partida para centenas de aulas e cursos que atualmente são ministrados
regionalmente;
18 - 12/10/84: em um clima de enlevação dava-se por aberto o encontro de
Brodósqui, consolidando as atividades regionais;
19 - 27/10/84: numa tarde de sábado, no Rio, os voluntários cariocas discutem
animadamente o tema “A Pessoa do Futuro”, que passou a integrar o curriculum
mínimo do voluntário;
20 - 04/08/85: em uma RGP da Abolição, Esther de Morais apresenta aos
voluntários o tema “Ciclo da Vida”, uma importante contribuição ao nosso trabalho.
Sem duvida alguma, o momento mais importante da história do CVV é o que
vivemos hoje, quando sentimos em todos os voluntários os anseios incontidos de
aperfeiçoamento interior, aquilo que Armond chamava de reforma íntima. Com essa
ferramenta poderemos marchar com passos firmes na certeza de que atravessaremos o
próximo quartel de século com a mesma glória dos primeiros vinte e cinco anos.
Com os votos de paz, alegria e progresso!
Jacques A. Conchon
Secretário Geral
S. Paulo, novembro, 1986
O FUTURO
PRIMEIRA FASE
“Sublata Causa”
SEGUNDA FASE
“Iluminar os Caminhos”
Sob este título pretensioso nós nos afirmávamos baseados na teoria de que o
nosso trabalho consistiria em lançar luzes sobre os problemas das pessoas para que elas
pudessem resolvê-los. Ajudar a pensar era o nosso lema.
Em resumo, na segunda rase interferíamos na vida da pessoa, dávamos
sugestões, julgávamos e oferecíamos conselhos.
TERCEIRA FASE
“Ensinar a pescar”
Esta terceira fase, que teve inicio em 1965 e cuja duração iria se alongar por
quase 10 anos, estribava-se no famoso adágio popular “não dê o peixe, ensine a pescar”.
Portávamo-nos, então, mais como amigos, reconhecendo no valor da amizade um
verdadeiro sustentáculo para que a pessoa se fortalecesse e encontrasse meios para a
solução de seus problemas.
Foi uma fase boa, no entanto, ainda não respeitávamos a liberdade alheia,
fazendo inconvenientes acompanhamentos de casos,- com consentimento ou não do
“atendido”, não dávamos conselhos segundo acreditávamos mas sugeríamos soluções.
QUARTA FASE
A pessoa como centro
QUARTA FASE
Variações
Mesmo dentro do quarto ato desta nossa história notamos algumas variações
progressivas nas posturas cênicas.
Vejamos:
1) 1975/1976, a mescla não-diretiva, isto é, em nossas entrevistas dentro da
diretividade à qual estávamos acostumados começavam a surgir colocações não-
diretivas, tentando clarificar os sentimentos e as emoções;
2) Já em 1977, levado pela extrema preocupação de não interferir, o nosso
plantonista apresentava sempre colocações centradas na pessoa, a maioria das quais
monossílabos interrogativos, o que distanciava a conversa daquele tom informal que
caracteriza os “bate-papos”;
3) De 79 até 82, vamos encontrar os nossos plantonistas mais descontraídos. O
método não-diretivo deixa de ser método e passa a ser um comportamento. As palavras
estão um pouco mais soltas mas ainda existe um certo contraste entre a conversa que
mantemos em nossas salas de encontro e o bate-papo de rua;
4) Fins de 82/início de 83, inicia-se uma nova era. Os nossos plantonistas além
de respostas de clarificação começam a usar as respostas de reflexão, informativas e
inquisitivas e a conversa torna-se mais solta, mais descontraída e informal.
É a fase em que nós nos encontramos, na qual, segundo sentimos, atingimos a
maturidade e assim sendo um futuro promissor nos espera. O plantonista do CVV
transforma-se realmente naquele amigo e os princípios básicos de respeito, aceitação e
compreensão se encontram profundamente calados em seu coração.
E a Quinta fase?
É a pergunta que nos tem sido formulada por todos aqueles que leram com
antecedência esta “história em quatro atos”.
Meditando sobre as inquirições, deduzimos, por uma questão de lógica e bom
senso, que nos encontramos nos albores de uma fase nova cujas manifestações iniciais
já sentimos no princípio de 84: o aprimoramento íntimo dos voluntários, a necessidade
de colocar em prática o conceito de vida plena.
Alguns voluntários começam a identificar a reforma interior como indispensável
para melhorar a sua capacidade de doação afetiva.
“Para uma conversa dar certo, teria dito o teatrólogo Plínio Marcos, é necessário
que a gente se desarme de todos os preconceitos, sejam eles raciais, religiosos, sociais,
psicológicos, sexuais, culturais, de todos, sem exceção, porque só assim conseguiremos
escutar o que os outros estão dizendo.”
Jacques
novembro de 1986
PARECE QUE FOI ONTEM
OS DOIS CAMINHOS
Goiânia, ano de 1984. O CVV já completara, nesta cidade, os seus quatro anos
de existência. Curto período, porém suficiente para que os voluntários passassem por
fascinantes experiências, como essa que vamos relatar.
Cena incomum aquela. Definitivamente não fazia parte da trivialidade dos
plantões. Mas, apesar disso, repetiu-se sistematicamente por período longo, intrigando a
muitos.
De repente, estacionava na porta daquela casa de sete cômodos que abrigava o
CVV, um camburão da Polícia Militar. A primeira vez que vieram, antes de mais nada,
uma inspeção interna no casarão feita pelos policiais. Adentram os cômodos, verificam
as saídas possíveis, percorrem circulações, vão até a secretaria. Examinam tudo, não
deixando escapar nenhum detalhe. Retornam à viatura e deixam sair do interior um
homem que, dirigindo-se para dentro da casa, procura por determinado plantonista que
já o aguardava.
Enquanto o homem conversa lá dentro, a sós com o seu amigo, do lado de fora a
cena era diferente. Dois policiais, armados, montavam guarda nos pontos estratégicos.
Transcorridos talvez trinta ou quarenta minutos, tudo terminava com a saída do
atendido, que rumava logo para o interior da viatura e iam embora.
Todas as semanas, com incrível regularidade, tudo aquilo se repetia. Não
tínhamos o direito a curiosidade, pois o sigilo constitui o alicerce do nosso trabalho.
Não ficávamos bisbilhotando para conhecer detalhes do caso e tudo ficava entre o
estranho “homem do camburão” e o plantonista que o atendia. Não se sabe exatamente
quando a cena parou de repetir-se ou mesmo se parou totalmente.
O fato é que já não nos lembrávamos mais do caso. O trabalho crescia bastante
naqueles dias, surgindo um grupo de plantonistas, vigorosos e idealistas, que se
interessou pela possibilidade de um plantão no interior de conhecida penitenciária
agrícola situada nas proximidades da capital do Estado. Lá se foram eles esperançosos
de que em breve estariam à disposição daqueles que cumprem penas, cujo castigos mais
cruel é a solidão infinita, quase eterna!
Já no local, foram conduzidos à presença de um homem que, logo nos primeiros
contatos, já se verificou ser duro e Inflexível. Tratava-se do administrador do presídio, a
quem cabia praticamente a decisão.
Nas primeiras apresentações o homem já demonstrava saber muito do CVV.
Mandou que fossem logo ao que desejavam, causando apreensão nos voluntários, que
esperavam um diálogo mais ameno. Um plantão lá dentro era o que queriam, resumiram
ao máximo o discurso longamente preparado e ensaiado, O administrador, que mal
esperara a conclusão do petitório, foi logo retrucando:
— Um plantão do CVV aqui dentro? Deus do céu, não podemos nem pensar em
tal coisa.
Sem entender coisa alguma, os voluntários se dispuseram a escutar o
administrador, que se descontraia à medida em que era ouvido sem intervenções dos
interlocutores.
Pôde então contar-lhes os fatos relacionados com um presidiário insistente e
problemático que o obrigava, constantemente, a providenciar viatura própria,
seguranças e uma parafernália de providências burocráticas a fim de ser transportado até
o CVV, onde conversava com um seu amigo que o ajudava. Não era fácil, dizia o
administrador, mas o “cara” era mesmo insistente e fazíamos tudo aquilo mais para
livrarmo-nos do importuno. E arrematava dizendo:
— Já imaginaram com vocês aqui dentro, de que tamanho não seriam as
complicações?
Jesus — Posto de Goiânia
UM COMEÇO COM ENXAQUECA
Fui plantonista por apenas um ano. Quando vim para o CVV trazia tantos
problemas pessoais que acho que deveria estar necessitando mais do que tendo para
doar.
O mais sério dos meus problemas é talvez a base de muitos outros, era o
relacionamento com meu pai alcoólatra. Eu nunca consegui aceitar sua conduta e
conseqüentemente não o respeitava e brigávamos muito.
A noite quando chegava em casa, após um dia de trabalho duro, não conseguia
dormir, pois ele, embriagado, f a- lava alto, andava pela casa tropeçando, e se achava no
direito a - de reclamar e fazer sermões! Confesso que era demais pra - mim! Quantas
vezes pensei em largar tudo, ir embora... Apenas a minha mãe conseguia impedir essa
atitude. Quando a minha mãe conseguia impedir esta atitude. Quando eu via seu
semblante sofrido, não tinha coragem de abandoná-la naquele inferno. E assim os dias
iam passando, muitas discussões, desilusões.
Fiz o Curso de Seleção de plantonistas. Começou a reflexão. Aula de reforço,
palestras em RGP, leituras, informações, conversas com companheiros, vivências de
grupo... e comecei a perceber que eu estava mudando. Agora conhecia a importância da
aceitação, do não julgamento; o valor da serenidade, da tolerância e da fraternidade...
Eu conseguira progredir aplicando esses conhecimentos no plantão a pessoas
estranhas que eu passei a ver como amigas... refletia. E nessa mesma noite me
surpreendi irritado — mais uma vez — com o comportamento do meu pai.
Percebi que precisava mudar também para com ele; e co a tentar. Quando ele
começava seus sermões, eu que sempre respondia em revide comecei a ouvir mais e
procurar a não discutir; comecei a lhe dar atenção e a procurá-lo quando estava sóbrio.
Ele percebeu a diferença e descobri que já conseguíamos conversar. A noite já não fala
alto, não reclama...ele me procura e fala à vontade.
Ele não conseguiu vencer o vício, ainda, mas deu um grande passo! Aceitou
participar das reuniões dos Alcoólicos Anônimos, que era uma tentativa antiga de minha
mãe a que ele sempre se negara. Procuro sempre ajudá-lo na nova ca minhada, e
descobri mais um amigo! Lá nas reuniões do AA apresento sempre o meu depoimento e
com isso ajudo também na divulgação do CVV.
NA CADÊNCIA DO SAMBA
Com muita dificuldade ela começou a falar. Entre soluços percebi que não era
brasileira, mas de algum pais vizinho.
Quando conseguiu falar mais coordenadamente, me contou de como fora difícil
deixar sua terra natal e vir para o Brasil. Há 8 anos, ela, marido e filhos chegaram, para
“começar do zero”.
Sua formação possibilitou um bom emprego, e durante algum tempo a
manutenção do lar ficou por sua conta. Falou emocionada da luta dela e do marido para
construírem sua casa. Falou da satisfação que teve quando pôde outra vez ter seus
próprios móveis. E falou também de como estava se sentindo só. Marido e filhos
partiram para outras terras em busca de riquezas, e ela aqui ficara garantindo a reta
guarda com o seu salário. Falou amorosamente do marido e dos filhos, do quanto se
querem, mas como isso é insuficiente para acabar com o seu desamor pela vida.
E depois de muito tempo, depois de contar muito mais coisas, disse que esta era
a terceira vez que ligava para o CVV.
Há algum tempo havia decidido firmemente que a mor te era a solução. Preparou
tudo nos seus mínimos detalhes. Deixou uma carta para sua melhor amiga, pedindo que
avisasse o resto da família. Comunicou à empresa que não iria trabalhar no próximo dia.
Avisou a empregada que não estaria em casa no dia seguinte. Com medo de que alguém
chegasse e conseguisse fazer uma lavagem estomacal, se preparou para ir a um hotel e
tomar as dezenas de comprimidos que havia conseguido. Tomou banho, arrumou-se e
um pouco depois da meia-noite foi sair de casa. Antes de abrir a porta olhou para o
telefone e vacilou. Voltou e ligou. Quem a atendeu naquele momento da madrugada foi
um verdadeiro plantonista. Alguém que a cercou de muito amor, e compreendeu com
ela o que acontecia. Sentiu-se amparada, aconchegada. Disse-me ela que depois foi para
o quarto e chorou muito. Depois dormiu como há tempos não fazia.
Aqui poderíamos colocar um ponto final. Mas a história continua.
Algumas semanas após, percebendo que uma ligeira depressão queria se instalar,
resolveu voltar a ligar. Sentiu que o plantonista tinha muita pressa. Até perguntou se ele
precisava sair. “Ele dizia muito que compreendia, mas não era o suficiente. Se esse
plantonista me tivesse atendido na primeira vez, eu teria me matado.”
Ligava agora pela terceira vez, e de repente senti todo o peso de uma imensa
responsabilidade. Creio que consegui me aproximar mais do primeiro atendimento. Ela
ficou de volta a ligar, e me garantiu que nas próximas semanas virá até o plantão.
Quando desligamos, quase duas horas haviam se passado. Uma sensação que
não consigo descrever tomou conta de mim todo - Tive uma vontade imensa de abraçar
aquele desconhecido colega que havia salvo uma vida, e de comentar com todos os
demais a imensidão da nossa responsabilidade. A displicência, a pressa, um tom de voz
que revela frieza e desamor pode levar alguém à morte.
Nós que nos propomos andar numa direção, podemos estar caminhando em
sentido contrário. Vamos conferir nos sas bússolas?
Plantonista Mondin — Abolição
HOMEM NÃO CHORA
A plantonista Norma havia acabado de assumir seu plantão. Era uma quarta-feira
de tarde. Como de costume, foi à enfermaria ver se havia alguém que quisesse
conversar.
Foi-lhe indicada uma mocinha à espera de ambulância para ser removida para
certa maternidade, pois estava em trabalho de parto, que, ao que tudo indicava, seria
muito difícil.
Norma começou a conversar com ela. Ouviu o seu imenso medo de dar à luz.
Estava sozinha, nervosa, tensa, chorava muito, com as pernas dobradas, joelhos para
cima. Gemia muito quando as contrações chegavam.
O tempo foi passando, a ambulância não chegava, mas o papo foi desenvolvendo
da melhor maneira possível naquelas contingências
Lentamente ela foi desfilando as suas amarguras, as suas preocupações, os seus
temores, suas esperanças, começando a relaxar seu estado geral. Suas pernas baixaram,
sua respiração ficou melhor ritmada, mais tranqüila, e Norma, que nas horas vagas
estava fazendo um curso de enfermagem, percebeu, a certa altura, que o parto da moça
estava acontecendo!
Mandou rapidamente chamar o médico, e, ali mesmo, naquele mesmo leito,
ajudou a consumar o parto, que foi muito feliz
APRENDIZADO
Dez horas da noite. Meu Deus, a hora não passava! A tensão tomava conta de
mim, o relógio nunca me pareceu tão lento!
Dez e meia. Lá fui eu para o CVV, para o “corujão”, meu primeiro “corujão”!
As pernas pareciam não querer descer a rampa da entrada do Pronto Socorro,
mas ao mesmo tempo queriam descer correndo para diminuir o tempo. Por que tanto
medo? Já ouvira de tudo: “No corujão aparecem os casos mais estranhos...”; “não é
fácil agüentar o corujão...” ; “é preciso muita estrutura...; “pior mesmo é quando o
plantonista é novato...”.
Mas lá estava eu! A plantonista do P/19 acabara de sair. Eu e minha colega de
plantão tentávamos amenizar a provável constatação de nossa incapacidade,
conversando sobre “role playing” e assuntos atinentes ao samaritanismo. Nosso
primeiro corujão; que medão!
O telefone tocou, o medo explodiu, nos olhamos; não sabíamos se era mais fácil
permitir que a outra atendesse ou se atenderíamos primeiro, para acabar com o martírio.
Deus do céu! Era um telefonema mudo!
A hora foi passando; três horas da manhã; seis telefonemas mudos, dois trotes.
Não pude evitar a sensação de inutilidade. Nos questionávamos; afinal, estávamos
ajudando alguém? Estávamos no lugar certo?
O telefone tocou; era minha vez de atender. Tomei um gole de café, suspirei
fundo, visualizei a fé, e atendi.
— CVV. Boa noite!
Conversamos durante uns vinte minutos. É, eu estava no lugar certo: “Estava
fazendo a segurança no seu posto de trabalho, sentiu-se só, ouviu barulho, ficou
inquieto. Monotonia. Resolveu telefonar. Problemas familiares, financeiros... No final
da conversa, mais calmo, precisou desligar, declarando-se muito agradecido.
Coloquei o fone no gancho, sorri para minha colega, me senti leve, útil. Bem,
não era um caso “estranho”, ele não queria se matar, mas...precisava conversar e
encontrou alguém para isso!
A tensão desapareceu, a serenidade invadiu nosso plantão; -as ligações foram
aparecendo; outros casos, outras pessoas e outros problemas. Não sentimos mais medo,
pois nosso plantão havia sido iluminado pela humildade, pelo amor e tudo transcorreu
serenamente até às sete horas da manhã.
Sabem, de repente, percebo que às vezes nos afastamos da Fé e da Auto-
Confiança, tornando os momentos mais belos em tédio e depressão. Por que? Não há
nada mais belo do que estar à disposição para alguém que precisa de nós, coisa tão rara
nos dias de hoje.
Pensei ter entrado naquele corujão sozinha, despreparada e incapaz; mas não
estava, não!
Nós não estávamos sós! Não existe o atendimento inútil!
De repente, não importa o tipo de telefonema, se é um trote ou mudo, se é
estranho ou não. Seja qual for, uma certeza eles terão, uma resposta eles terão: Seja qual
for a hora, o momento que for, não estarão sós! Nós estamos com eles; Deus está
conosco!
Plant. Michelle — CVV-Penha
CARTA DE DESPEDIDA
Uma quinta-feira, por volta de 19h30, chega ao plantão um rapaz jovem com 20
anos de idade que fuma desesperadamente, do mesmo modo que fala.
Começou a dizer que estava trabalhando em uma firma que não pagava seus
salários em dia, fazia seis meses que in recebia e que por isso estava muito desesperado,
e solicitava ajuda e conselho do plantonista.
Expliquei-lhe então como funciona o CVV, e que se tivesse dúvidas que me
perguntasse.
Voltou então o entrevistado a falar sobre os seus problemas.
Procurei conduzir o atendido, para que se acalmasse. Consegui isto após uns
quinze minutos.
Voltou o entrevistado ao problema inicial, acrescentando então alguns detalhes
sobre as diferenças no tratamento familiar a ele dado. Deixou evidente a grande
preferência de sua família por seu irmão, embora este fosse toxicômano, e bastante
conhecido da polícia por atividades ilegais.
Falava ele que a atenção de seus pais era somente para seu irmão, que só
“aprontava”.
Disse ainda ser motivo de riso e gozação de seu irmão e amigos, por ser
trabalhador, honesto e até colaborar com sua família, mas que esta pouco se importava
com ele. Falou que muitas vezes viu sua mãe levantar tarde da noite para preparar café
para seu irmão enquanto que para ele, isto nem sempre era feito ao ir trabalhar.
Lembrou-se de uma namorada que teve, e que tanto toda sua família fez,
conseguindo que ela largasse dele. Depois de algum tempo a mesma lhe contou
pormenores, falando até que chegaram a ameaçá-la se continuasse o namoro, e outras
mentiras a seu respeito.
Silêncio...
Passou a reclamar da vida, lamentar-se, dizendo que em todos os lugares por
onde passava todos riam e gozavam dele, achavam-no esquisito.
— Porque você acha que todos gozam de você, o que você tem de diferente?
perguntei-lhe.
Respondeu-me que durante o período da tarde sua voz era forte e sonora, e na
parte da manhã era fina e suave, e que os amigos e a família, lhe chamavam então nestas
horas de “bicha”, etc.
“Não sei, confirmou ele, é que a gozação é tanta que eu não agüento mais. A
única solução é a morte”.
Chorou alguns minutos.
Voltou a repetir toda a história, já totalmente calmo, disse-me que ia procurar
um médico para tratar da voz. Gostou do plantão porque aqui sentiu-se gente, deu-me o
punhal e entregou-me também uma carta que havia já escrito, onde num português não
muito correto, despedia-se de todos, pedia perdão a quem tinha magoado, relatava sua
triste história e também sua decisão de acabar com a vida.
Despediu-se de mim e hoje sei que está bem.
A carta é a seguinte:
“A todos que eu conheço nesse momento. Estou me despedindo porque não
agüento mais. Minha vida é um verdadeiro inferno. Não vivo a realidade que todos
vivem. No meu serviço todos ou quase todos riem de mim porque de ma nhã eu pareço
bicha e à tarde pareço homem. Não sei mais o que fazer, já não agüento mais e com isso
prejudico aos outros que não tem nada a ver comigo, pois já trabalham descontentes
devido à crise em que se encontra a firma e ainda tem que agüentar um cara como eu. É
muito pra eles e pra mim. Peço desculpas a todos que magoei e também peço que
“Deus” me entenda, sei que ele não vai me perdoar porque não existe perdão para um
suicida, mas peço que ele entenda que não dava mais para viver. Irei para o inferno
porque tanto faz lá como aqui tudo é uma coisa só: humilhação, a dor mais ruim que
existe.
(assinatura ilegível)
Um ser que não deu certo. - .“
Miguel — plantonista da Abolição
O SIGILO TESTADO
Vou relatar um telefonema que atendi, que muito me marcou, creio que talvez
nunca vá esquecê-lo.
Na época ainda havia o plantão de 2 horas e meia, era domingo e eu fazia o P/20.
Eu e minha companheira assumimos o plantão, passando uns 30 minutos o telefone
tocou e eu fui atender:
— CVV — boa noite.
— Boa noite, estou ligando para fazer algo diferente para você hoje, só uma
coisa, você costuma ajudar as pessoas aí, não é?
— Eu tento.
— Só que hoje vou fazer o contrário com você, eu vou te dar um presente, você
tem 3 minutos para me ouvir?
— Pois não.
— Espere um pouquinho, por favor.
Ouço ruídos do outro lado e aguardo, logo a pessoa volta ao telefone.
— Pronto, aí vai.
Sem que eu esperasse, uma linda música sacra vinda do outro lado da linha, fui
tocada de uma emoção muito grande, mal pude conter as lágrimas que começaram a
brotar de meus olhos. De repente a música parou e a pessoa voltou ao telefone.
— Gostou?
— Gostei muito.
— Vou tocar mais um pouquinho.
E novamente me vi embalada por aquela linda música, imaginando porque ele
estaria fazendo aquilo. Ele voltou ao telefone.
— Olha, eu não te conheço, mais sei que você está aí num domingo à
noite, trabalhando voluntariamente por alguém, e eu quis fazer algo diferente do
que você está acostumado a ouvir, algo por você. Você ajudando as pessoas está
fazendo o que eu não posso fazer.
Eu estava muda, não, sabia o que dizer, se é que precisava dizer alguma
coisa, ele desligou o telefone e eu fui para o banheiro enxugar as lágrimas. Minha
companheira de plantão ficou me olhando sem nada entender do que tinha
acontecido.
O telefone tocou. Eu atendi novamente.
— CVV boa noite.
— Boa noite, era você que estava no telefone agora há pouco?
— Sim, era eu.
— Estranho a voz parece diferente, mas tudo bem, eu só estou ligando
porque meu marido pediu para que eu dissesse a você para não chorar, a música
foi para você sorrir.
Boa noite.
Ela desligou o telefone, e eu estava estática. O marido dela não sabia, mas
eu estava feliz, aquela pessoa desconhecida, naquela noite tinha me dado um
inesquecível presente: A perseverança para continuar trabalhando e nos
momentos do fraqueza me lembrar que as pessoas contam com um amigo do
outro lado da linha, nem que seja para lhe proporcionar três minutos de música
que pode ser a sua única forma de desabafar. Um amigo para ouvir sua música
por 3 minutos.
Marta, plantonista no. 35 - S. Carlos, S.P.
UM AMIGO A GENTE ENTENDE
Esse relato que transcrevo aqui, me emociona muito. pois foi um dos primeiros
atendimentos que realizei, sem experiência suficiente e com bastante insegurança.
Um senhor simples, com pouca cultura, guarda-noturno, em horário de serviço
fez um interurbano:
— Moço, eu estou ligando aí porque quero um conselho.
— Gostaria muito de conversar com o senhor. Acredite, aqui você tem um
amigo.
— Você sabe, eu não sou de Araçatuba e inclusive estou trabalhando agora e
estou com um problema muito sério. Sou casado, tenho quatro filhos, uma mulher boa,
mas estou muito envergonhado.
Após uma grande pausa; eu disse:
— Você não gostaria de falar um pouco?
— Sabe, moço, eu arrumei outra mulher e fiquei algum tempo com ela. Acabei
perdendo um carro que tinha comprado com muito sacrifício, gastei tudo que tinha e
ainda estou devendo seis milhões no Banco. Perdi a cabeça, pois minha mulher e meus
filhos não mereciam isto. Agora que o dinheiro acabou, a outra me chutou e eu estou
cheio de dívidas. Não sei o que vou fazer. Às vezes acho que o melhor seria morrer.
— Você acha mesmo que morrer seria melhor?
— Eu acho moço, mas não é por causa dela, é que não esperava uma reação
como a que está tendo a minha família. A minha mulher assim que percebeu meu apuro,
saiu e já arrumou emprego. O meu filho mais velho, que tem 14 anos também está
procurando emprego. Isto tudo está me matando. O remorso está acabando comigo.
— E isto tudo está te angustiando...
— E como, moço! Eu não esperava está reação. A minha mulher não me cobra
nada e nem as crianças, em compensação não consigo nem olhar para eles. Sinto uma
vergonha muito grande. Se eu pudesse apagar o passado, jamais faria o que fiz.
— Você me disse o que está sentindo: uma vergonha misturada com uma
sensação de arrependimento, e o que você está pensando fazer?
— Eu quero morrer. Acho que a morte seria a solução pois até para os meus
filhos seria melhor. Eles não teriam que olhar mais para mim. Eles não veriam este pai
destruído, arrasado, que hoje convive com eles.
— Você me disse que é guarda-noturno e que está em serviço. Você está
armado?
— Não, a minha cunhada escondeu meu revólver exatamente para que eu não
fizesse nenhuma besteira.
Nesse momento, eu, plantonista, fiquei mais tranqüilo e percebi que tinha mais
chances de ajudar este ser humano doando minha amizade. Qual seria minha conduta
frente a essa situação? Cheguei a conclusão, por tudo o que tinha ouvido, que a vontade
de morrer era realmente conseqüência da vergonha e não do despeito, do abandono da
dita mulher. E assim, sem saber se fui ou não diretivo, fiz algumas coloções:
— Meu amigo, percebi claramente que essa mulher não tem mais importância na
sua vida. Você está preocupado apenas com sua família, sua mulher e com as crianças.
Sinto uma preocupação muito grande de sua parte em resolver seu problema, gostaria
que pensasse um pouco no que vou te perguntar:
— Para você a solução seria a morte, como você disse, e para seus filhos, sua
mulher, essa seria a solução mais agradável?
Depois de alguns momentos de reflexão, ele me respondeu.
— Você me cutucou, moço, não tinha pensado nisso. Pensando bem, será que
meus filhos iriam se envergonhar menos do pai que têm se eu estivesse vivo ou morto?
— Agora sim, meu irmão, você não está mais pensando só em você. Você
começou a pensar também nos outros.
— Entre seus filhos, você sente afinidade, isto é, você percebe que algum deles é
mais chegado, mais ligado a você?
— Sim, o meu terceiro filho me quer muito bem.
— Então, vamos fazer um trato: você vai se esquecer que é você. Será, agora,
esse filho e aí sim, responderá uma pergunta que vou te fazer: O que é melhor para
você, Lei um pai envergonhado vivo, lutando para se reerguer, ou ter um pai sepultado,
morto?
Percebi que tinha tocado profundamente esse rapaz e após a segundos, ele
respondeu:
— É, você está me fazendo ver coisas que não via. Tenho certeza que ele
responderia que prefere o pai envergonhado, mas vivo. Puxa! Como é bom o que estou
sentindo. Estou feliz, alegre. Você conseguiu tudo isto. Não sei como te agradecer.
— Não precisa. Só quero que se lembre sempre, que aqui você terá um amigo a
seu dispor, assim que precisar. Conte com a gente.
José Eduardo, Plantonista n.° 133 - Araçatuba, SP
NA COPA DO MUNDO
Sábado, dia 21/06/86, 15 horas, quinto jogo do Brasil pela Copa do Mundo.
Neste exato momento inicia-se o meu plantão no CVV.
Milhares de pessoas pararam frente a um aparelho de TV para verem a seleção
jogar. Eu estou ao lado de um telefone
Frente à TV, os gritos, as vibrações as torcidas, alegrias extravasadas num grito
reprimido de gol. Diante do telefone o silêncio, a torcida íntima, a presença permanente
não expectativa de que, se dentre tantos brasileiros vibrantes um precisar de nós, aqui
estarei.
Estar só em uma sala, num momento tão excitante no País todo, tendo como
companheiro um telefone mudo, pode parecer banal; mas estar dentro da sala de um
Posto do CVV, frente a um telefone que simboliza a vida, que tem como fio a
esperança, que pode ser acionado a qualquer momento para uma troca de doações e que
mesmo mudo, tem presença marcante e imperativa, é uma experiência maravilhosa e
super gratifica
Toca o telefone.., o Brasil perdeu para a França... A dor da derrota grande
Vera Plantonista n.° 117 — Araçatuba
ANGÚSTIA NO LAR
— Por favor não desligue, disse uma voz aflita Já tentei em vários Postos e
pensam que é trote. Não é trote. Por favor me ouça. Só tenho 2 fichas de telefone. Vou
falar rápido. Minha colega e amiga de moradia foi assaltada, estuprada e tentou suicídio
2 vezes. Ela quer falar com alguém do CVV mas não pode nem andar. Está numa cama,
é um caso sério. Você pode ir visitá-la?
— Dê-me o endereço e telefone e amanhã você receberá notícias nossas. Tá
certo? Primeiro preciso falar com outra pessoa e se tudo isso que você está me passando
for verdadeiro, nós iremos lá.
Você anotou tudo direitinho? Eu fico em casa até às 18 horas pois trabalho à
noite. Vou esperar viu? Pelo amor de... (caiu a ficha).
O plantonista fica agitado. Chega em casa telefona para sua líder de Grupo
informando o caso. É orientado para confrontar as informações. Realmente a rua, o n.°
da casa, tudo está correto. O telefone da casa Vizinha da pessoa que telefonou informa
que existe uma moça no n.° 154 que está muito doente, mas não pode adiantar mais
nada.
— Como vai você? Estou telefonando para avisar a Você que no próximo
domingo estaremos aí por volta das 15 horas. De acordo?
— Ótimo minha amiga vai ficar feliz. Obrigada.
Casa humilde, pequena mas muito limpa. Via-se que as jovens eram pessoas
cuidadosas. Ao chegarmos fomos recebidos por uma moça morena aparentando uns 22
anos, que arrastava a perna direita.
— Eu sou a pessoa que minha amiga falou para vocês. Que bom que vocês
vieram. Estou tão só. Tão desamparada. Não tenho família. Não tenho amigos. Não
tenho mais virgindade. Não posso gerar. Estou morta. É, estou andando porque sou
teimosa, mas não valho mais nada.
Nossa líder de Grupo, uma colega e nós ficamos sentados ao lado do sofá.
Longos espaços sem uma palavra. A jovem olhava fixo para um quadro na parede sem
dizer nada. Quanto a nós permanecíamos calados, respeitosos.
— Eu gostaria de falar alguma coisa mas a presença dele me inibe.
— Tá certo. Vou para o canto da sala e assim você fica à vontade.
A violência foi indescritível. Ela foi raptada num ponto de ônibus por 4 rapazes
no automóvel, levada para um terreno baldio, onde começaram os atos de tortura.
Seus seios foram violentamente cortados por gilete. O rosto apresentava sinais
recentes de socos. Suas coxas foram esfaqueadas várias vezes. Além de abusarem
sexualmente ainda lhe introduziram um pedaço de madeira no ânus.
Teve que ser submetida a 4 operações e até aquela data ainda os médicos não
tinham certeza da cura ou mesmo de uma melhora.
— Depois de toda essa violência, ainda urinaram no meu vestido e me jogaram
numa estradinha de terra. Se não é um bêbado me achar no outro dia naquele local
esquisito, eu morreria à mingua. Bendito “bebum”.
Justificou-se porque havia tentado suicídio por 2 vezes. “Sinto-me uma
imprestável. Qual o rapaz que vai querer casar com um monte de carne cortada?” Muito
difícil. A vergonha de ficar exposta perante a equipe médica mostrando partes do seu
corpo que nunca mostrara para ninguém. E os vizinhos o que estavam pensando? Como
encarar os colegas de Faculdade? Como encarar os colegas da repartição?
Ficamos quatro horas juntos à jovem. Na nossa saída ela disse que achava que a
nossa visita não ia mudar nada mas “mesmo assim, vocês me ouviram. Estava com um
nó na garganta. Talvez, quem. sabe, vou pensar mais um pouco.”
O telefone toca e são quase duas da madrugada.
— Alô, sou fulana, lembra-se de mim?
— Claro. Como está você?
— Telefonei só para poder dizer a você que estou viva ainda. Parece que estou
Conseguindo ir em frente. Vamos ver. Dê lembranças a fulana e sicrana.
Num segundo contato telefônico ela nos informou que adotou uma criança e
estava curtindo muito aquela menina de três anos. “Já que não posso ter filhos adotei
essa e estou muito feliz. Só assim encontro um meio de continuar a viver”.
Fez-nos uma visita,
— Olha, fulano, quis vir até você para você conhecer a minha filha. Não é linda?
Por coincidência parece muito comigo. Não é coisa linda? Não é linda?
— Realmente ela é linda. Você está Contente?
— Estou. Lutei muito comigo. Foi uma barra, O psicólogo lá da minha
repartição também tem sido muito bacana comigo. Ele disse que é assim mesmo. Eu
vou sofrer muito ainda. Ele também disse que eu devia vir aqui rever vocês. Até fiquei
chateada com ele porque ele disse que o amigo é aquele que vem até nós como nós
estamos. Vou te confessar uma Coisa: se vocês não tivessem ido à minha casa naquele
domingo eu estava pronta para a terceira tentativa e dessa vez não ia falhar.
Plantonistas 80 e 81 de Piracicaba,
São Paulo, junho de 86
MINHA FAMÍLIA E MEUS AMIGOS ME REJEITARAM
São 11h30, um lindo dia. Muito sol e o nosso Posto estava muito movimentado.
Muitas pessoas vindo e indo. A troca de plantões. Visitas de pessoas de outros Postos.
Enfim, um dia cheio. Tão movimentado que aquele rapaz de cabelos bem cortados,
bigode grosso, alto, bem vestido mais parecia uma visita.
— Bom dia, eu sou fulana.
Sentou-se e ficou calado. Olhou as paredes. Olhou o carpete. Fumou um cigarro.
Silêncio. Cruzou as pernas e começou:
— Não sei por onde começar. Na minha vida só tenho sido rejeitado. Não vejo
sinceridade em ninguém. Só querem usufruir da minha situação financeira. Só me
exploram. Veja, sou Cirurgião Plástico. Quer meu cartão?
— Não é preciso, pois nesse momento você é mais importante. Creio em você.
— Já ouvi isso muitas vezes quando a cirurgia fica a gosto da cliente. Só consigo
resolver os problemas dos outros e eu mesmo não consigo nada. Bem, estudei, me
formei e na minha formatura não tinha ninguém. Pai, mãe, irmãos, tios, mas o que me
feriu foi a ausência da pessoa que amo. Foi um momento muito difícil. E como. Quando
voltei da festa de formatura todos meus parentes já estavam dormindo e eu estava
terrivelmente só. Não conseguia dormir, não conseguia pensar em nada, eu flutuava. Foi
horrível.
— O tempo passou e a rejeição aumentando a ponto de ser expulso de casa. Não
aceitavam o meu modo de amar, pois eu amo um homem. Fui morar num pensionato até
comprar o meu apartamento.
— Tudo isso foi uma barra para você, não?
— Hoje eu resolvo os problemas dos outros e os meus como ficam? A pessoa
que eu amo até agora só me usou. Até então eu achava que ele precisava comprar
roupas, sapatos, camisas, etc.. Mas depois...
— Como está tudo isso agora para você?
— Não agüento mais. Ele deixou uma carta de adeus. Levou meu carro novo,
minhas jóias e minhas economias que eram as nossas economias, assim pensava.
— Desculpe se estou com os olhos cheios de lágrimas. Estou sentindo o quanto
está sendo o seu sofrimento
— Não me peça desculpas. Estou feliz por você estar assim porque neste
momento encontrei um ser humano que eu pensava não mais existir, pois nem a minha
mãe nunca demonstrou isso por mim. Só críticas. Que diabo de amor de mãe é esse?
— Você não acredita mais em ninguém?
— Não. Nem em mim mesmo. Eu vim até aqui porque precisava falar com
alguém. O meu mundo caiu. Não vou resistir e sei que cansei de ser usado e não suporto
mais as minhas máscaras. É um vazio tão grande, tão grande...
— Você está pensando em morrer?
— Sim. Eu agora decidi e não quero que você fique assustada. Para mim não
vale mais nada viver.
— Não estou assustada. Você está certo da sua decisão, essa saída é a mais certa
no momento para você? Ou você gostaria de pensar mais um pouco?
— Já pensei muitas vezes e só vejo essa saída. Para mim não agüento mais esse
mundo em que estou vivendo. Sei que não vou acreditar em mais ninguém. Você sabe,
eu não acredito mais nem em mim mesmo. Meu mundo caiu. Meu mundo. Não tenho
mais forças para recomeçar nada.
— Você pode sentir que é muito difícil para mim, mas eu só posso respeitar a
sua decisão seja ela qual for, amigo.
— Foi muito bom passar aqui onde pude falar de coisas que nem para mim
mesmo eu ousava dizer. Obrigado.
Plantonista 81 — Piracicaba, S. Paulo, junho de 86
ESPERANDO A MORTE
Um caso, que me marcou muito foi o de uma senhora que ligou chorando e em
meio aos soluços pedia insistentemente que a ajudássemos. Após alguns momentos de
diálogo em que procurei acalmá-la e ouvi-la, contou que estava com câncer no sangue e
seu médico havia estipulado que ela viveria no máximo mais seis meses. Diante disso
procurei enfocar sempre seus sentimentos e sua angústia frente ao que estava por
ocorrer.
Porém segundo pude perceber sua verdadeira angústia estava no fato de a
família já estar se preparando para sua morte; seus filhos pequenos de 5 e 7 anos
estavam sendo preparados para não sentirem a falta da mãe, eles que antes nunca
haviam dormido fora de casa, agora eram levados constantemente para ficar com os
avós e tios, segundo ela, para irem se acostumando com sua falta. Frente ao marido ela
disse que fingia ser forte e estar resignada, mas na verdade estava e se sentia com muito
medo, frustrada, apavorada e o que mais a magoava era o fato da família estar treinando
seus filhos para não sentirem sua falta. Chorou muito, falou bastante, agradeceu por ter
podido desabafar. Disse-lhe que ligasse sempre que sentisse vontade, pois estaríamos
sempre dispostos a ouví-la. Agradeceu.
Ismael .— Plantonista da Abolição,
São Paulo
AMIGO É PRÁ ESSAS COISAS
Num plantão de um domingo à tarde ligou uma mulher dizendo que havia
conhecido o CVV quando uma amiga sua tentara suicídio. O apoio lhe fez bem. Sua
amiga havia morrido. Agora era ela quem havia tentado. Tinha tomado veneno. Não
queria ser socorrida. Queria apenas a companhia de alguém naquele final.
Foi conversando, falou de sua filhinha que não vivia com ela. Disse que nunca
se perdoou pela morte da amiga. Pediu-me que rezasse por ela depois que ela se fosse.
Durante o papo, foi sentindo dores nos intestinos, as pernas amortecendo, os braços. a
voz enfraquecendo... o telefone caiu. Chamei por ela algumas vezes, não obtive
resposta. Rezei calmamente, num tom de voz que ela pudesse ouvir.
Silêncio total, até que ouvi vozes. Duas mulheres entraram no ambiente e
constataram a situação. Aí aconteceu o esperado: surpresa, susto, choro, lamentações,
até que uma delas percebeu o telefone, pegou-o e eu pude pô-la a par do necessário para
que a socorressem. Mas, parece que já era tarde. Segundo ela, a moça estava com os
olhos, lábios e unhas arroxeados.
Como me senti? Era a primeira experiência do tipo. Uma sensação de profunda
paz, por ter casualmente compartilhado de um instante como esse na vida de alguém.
Um momento sagrado.
Plantonista n.° 34 — Barra Funda, SP.
É A VÓ...
Vinte e uma horas e trinta minutos. Tilinta o telefone. Levanto o fone. Uma voz
doce de uma criancinha:
— É aí que tem amigos?
— É.
— Amigos de verdade?
— É.
— Legal! Qui bom! Olha! Eu sou o Joãozinho e não tenho amigo. Eu estava na
sala da televisão e távam dizendo que aí é que é a casa que a gente tem amigos. Meu
pai, minha mãe, minha avó falaram que é aí, de verdade, onde tem amigo de verdade.
Eu quero ter amigo de verdade.
— Pois não, Joãozinho... Agora você já tem um amigo de verdade... Meu nome é
(...) pode contar comigo, tá?..
Eu me lembro bem. Foi em fevereiro de 84 que eia me ligou pela primeira vez.
Queria falar com uma plantonista, pois achava que um homem não saberia ajudá-la.
Disse a ela que não havia nenhuma plantonista dispo nível no momento, mas que
eu estava sua disposição e gostaria de falar com ela.
Muito relutante ela começou a descrever seus sintomas, e a dúvida. Estaria
grávida?
Quando perguntei a ela se sentia medo, diante de uma possibilidade positiva, ela
me contou dos seus receios e te mores.
A partir desse dia, falamos quase que semanalmente. E ela pôde então falar
livremente dos seus medos. Como enfrentar a realidade? Não poder contar com o apoio
da família tão distante, que a partir de uma confirmação lhe devotaria um desprezo total.
A evidente fuga de alguém que inicialmente era tão solícito, gentil, e que agora estava
sempre muito ocupado... Como cuidar de um bebê que certamente lhe impediria dè
trabalhar?
Quando a gravidez se confirmou, foi como que se o mundo desabasse.
Foi então que ela começou a falar do ódio que sentia por aquela criança que
germinava; de sua total falta de condições e jeito para cuidar de um recém-nascido; da
mágoa que lhe causara o afastamento daquele em quem tanto confiara.
E ela muitas vezes falou também da sua surpresa em poder dizer tudo aquilo, e
não ser recriminada, ser compreendida e aceita.
Por fim, ela me telefona um dia, e diz que uma menina havia nascido. Foi aí
então que tive a oportunidade de viver alguns dos mais intensos e belos momentos que
já tive no CVV. Foi acompanhar o crescimento rápido e vigoroso de um amor de mãe.
A afeição foi tomando conta dela, e em pouco tempo ouvi-a dizer que aquela
criança era o que mais extraordinário havia acontecido em sua vida. E dizia, comovida,
que o CVV havia tido uma participação fundamental em todo o processo. Havia sido
unicamente no plantonista que ela se apoiara todo aquele tempo. Havíamos sido as
únicas testemunhas de algo que se iniciara tenso, conturbado, com gosto de ódio e
rancor, e que se transformara em afeição, ternura, uma verdadeira explosão de amor.
Arthur, Plantonista, Abolição, SP.
UM GESTO DE AMIZADE
.
Sábado, 7h30 da manhã. O telefone toca, e eu atendo um homem que tem uma
dificuldade imensa de falar. Os longos períodos de silêncio são somente interrompidos
por soluços!
Quando ele me diz que “é tão difícil falar com quem não se vê”, eu o convido
para vir ao plantão.
— “Estou aqui perto do Aeroporto. Vou já para ai.”
Depois de uns quinze minutos o telefone toca outra vez, e ele me diz que está a
poucos passos do CVV, e pergunta se pode entrar.
Quando a campainha toca, espero encontrar um moço franzino que transmitisse
toda a fragilidade que eu havia sentido pelo telefone.
Surpreendo-me com um homem forte, de uns quarenta e cinco anos e com uma
espessa barba. Nosso diálogo é inicialmente difícil. Sem despregar os olhos do chão,
começa a falar de sua solidão. Mas parece como que preso a uma mordaça que lhe
impede de falar livremente.
É quando então eu lhe digo:
— “Gostaria muito de facilitar as coisas para você... Gostaria que você sentisse a
amiga que estou procurando ser. .
Ele estende as mãos, segura as minhas, ajoelha-se diante de mim e chora.
Choramos os dois por um bom tempo.
De repente ele levantou os olhos e disse:
— “Pensei que nunca mais ia ouvir e sentir a palavra de um amigo. Muito
obrigado”.
Felizmente a vida tem-me proporcionado inúmeros momentos de um viver
intenso, muitos dos quais ao telefone do CVV. Mas este teve um sabor todo especial, e
senti como nunca que estamos numa estrada de mão dupla.
Maria do Carmo, Plantonista, Posto Abolição, S. Paulo
SORRISOS E LAGRIMAS
O telefone toca.
— CVV, boa noite. Posso ser útil em alguma Coisa?
Do outro lado, uma voz carregada de emoção:
“Não sei; é muito difícil ... Eu preciso dividir com alguém; não agüento; me
sufoca. Sabe, eu moro sozinho. Estava começando a jantar e, de repente, percebi que se
não falasse com alguém iria explodir.”
“Faz dois anos que me separei de minha esposa, tenho dois filhos e há muito
tempo eu não me sentia como hoje.”
“Sabe, não sei se você vai conseguir entender, mas depois de tanto tempo de
sofrimento de tanta dor, hoje me aconteceu uma coisa boa, como há muito não
acontecia; e depois de tanto tempo sem vivenciar esse sentimento, que por isso já estava
até um pouco esquecido agora estou me sentindo tremendamente feliz.”
O inusitado da afirmação me surpreendeu agradavelmente. Já há algum tempo
no CVV, pela primeira vez alguém ligava para falar, não das suas dores, das suas
mágoas das suas tristezas, mas da sua felicidade intensa, contagiante.
E com a voz a traduzir sua emoção, Prossegue:
“Você sabe o que é isso? Você sabe o que é sentir que cada célula do seu corpo
irradia felicidade e sorri? É uma emoção muito forte, um calor que toma conta da gente
e... Não dá. Não dá para guardar só para mim. Eu precisava dividir. alguma Coisa tão
boa, tão maravilhosa, que eu não poderia guardar só para mim; eu gostaria de dividir
com todo mundo para que todos pudessem ficar felizes como eu estou feliz agora.
Mas... é difícil; as pessoas não compreendem.”
“Dá para você entender como eu estou me sentindo? Co mo está difícil para mim
segurar tanta emoção por não ter com quem dividir? Nem um vizinho, nem um amigo,
nada, só eu e eu; é horrível”.
Pude vislumbrar, em meio a tanta alegria, um sentimento de frustração e de
impotência.
— Percebo o quanto está difícil para você sentir essa alegria contagiante e ao
mesmo tempo um sentimento de impotência por não conseguir dividi-la com alguém.
“Sim, é isso. Sabe, é aquela vontade de fazer alguma coisa, vontade de rir e
chorar, ao mesmo tempo, de sair gritando para todo mundo ouvir, mas, por outro lado,
sentir que não me é possível fazer isso, pois as pessoas não entenderiam”.
E foi nesse instante, numa tentativa de superar esse sentimento de impotência
que o reprimia, que ele rompeu em riso e choro. Um riso que era um choro e um choro
que era um riso, alegre, cheio de vida, supercarregado de emoção.
E foi assim que me surpreendi também rindo, chorando e falando, o que me fez
sentir que, naquele instante, eu real mente estava tomada por essas emoções, tal qual
meu interlocutor.
E, assim, passaram-se alguns minutos, ao fim dos quais o meu interlocutor,
como que tendo se livrado de um pesado fardo, serenou, o riso e o choro e desligou.
A sensação de se sentir assim, de vivenciar como realmente nossas as emoções
que o outro está a expressar, é algo maravilhoso, muito profundo e marcante, razão
porque, mesmo decorridos três anos dessa vivência, as sensações estão vivas, claras e
presentes em meu ser.
De uma plantonista do Posto de São José dos Campos, SP
MULHER DA VIDA
Uma jovem senhora, com 23 anos de idade, ligou, para o CVV, em total
desespero, à procura de ajuda, pois estava prestes a dar fim à vida, não encontrando
mais saída para seu problema.
Começou dizendo que quando tinha 19 anos, morava com os pais em uma
cidadezinha do interior, na zona rural, próximo a Presidente Prudente, onde cursava a 8ª
série. Seus pais, pessoas de pouca instrução, a criaram com mais dois irmãos numa vida
normal, com a situação financeira relativamente estável, não tinham muito conforto,
mas faziam tudo para lhe dar o necessário. O sonho dos pais era que ela terminando o
ginásio ingressasse no Curso Normal para ser professora. Quando estava quase no meio
do semestre letivo, conheceu um rapaz de boa aparência, que logo a cativou, então
começaram o namoro, que logo foi descoberto por seus pais. Sendo os pais muito
severos, não queriam que a filha continuasse a namorar, pois queriam que ela
terminasse de estudar. A partir dai ela saia de casa para ir a escola e o pai ia buscá-la na
saída. Não vendo outro jeito para se encontrar com o rapaz, ela deixava de freqüentar as
aulas para se encontrar com o namorado. Como a cidade era muito pequena, logo
chegou ao pai o que estava ocorrendo. Os pais não tiveram outra alternativa, embora
contrariados, aceitando o namoro, dando um prazo de seis meses para que o rapaz
providenciasse tudo para o casamento.
No dia do casamento o pai lhe disse que ela estava se casando contra a vontade
dele e que se fosse infeliz a culpa seria totalmente dela. Ela não via como não ser feliz,
pois amava o rapaz e sentia se correspondida, ele tinha um bom emprego, trabalhando
em uma firma que vendia produtos agrícolas, onde ganhava, segundo ele, o suficiente
para sustentar uma família. Tudo iria dar certo e assim foi realizado o casamento.
Depois de casados foram morar em uma cidade próxima. Tudo estava transcorrendo
perfeitamente bem, ela, uma pessoa simples, acostumada à vida no sítio, pouco tinha a
exigir, aceitava tudo que o marido lhe impusesse com a maior naturalidade e estava
muito feliz. O marido era bom e muito carinhoso, às vezes parecia estar um pouco
distante, mas quando ela perguntava o que estava acontecendo ele dizia que estava
cansado e tudo bem.
No terceiro mês de casada ela engravidou; o marido recebeu a notícia muito
bem, mostrava-se feliz com a vinda de um filho, embora durante a gestação, pouco
falasse sobre a criança que estava para nascer. Não lhe faltou assistência, no final da
gestação deu à luz a um lindo menino, que veio completar a sua felicidade.
Quando a criança estava com três meses de vida, uma noite quando se
preparavam para ter relações sexuais, observou o marido um pouco estranho. Ele pediu
que ela se deitasse a seu lado e fumasse com ele um cigarro. Ela que até então não
possuía nenhum vicio, falou ao marido que não sabia fumar, ele por sua vez disse a ela
que apenas engolisse a fumaça; devido à insistência do marido ela resolveu atender seu
pedido, assim que engoliu a fumaça sentiu que a cama girava e tudo foi ficando muito
distante e esquisito, quando deu por si, estava toda marcada com sinais de queimadura,
escoriações vermelhas se espalhavam por todo o corpo e no rosto; não conseguia se
lembrar do que havia acontecido, a única coisa que se lembrava era de ter engolido a
fumaça do cigarro.
Desesperada chamou pelo marido e perguntou a ele o que havia acontecido, o
esposo se limitou a responder que tudo estava normal, que ela estava assustada sem
motivo, tudo fazia parte da relação e que ela não sabia disso porque era inexperiente.
Aceitando a explicação do esposo, pois de sexo ela nada entendia, achou que realmente
tudo poderia ser natural. O tempo foi transcorrendo e todas as vezes que iam manter
relação, ele pedia para que ela fumasse o “cigarro”, depois quando ela dava por si estava
novamente com o corpo queimado e marcado por vergões de cor vermelha, não
conseguindo se lembrar o que havia acontecido durante a relação.
Essa situação durou mais de seis meses, para ela ter relações sexuais com o
marido era um verdadeiro martírio. Dava graças aos céus quando ele viajava, pois assim
ela não teria que submeter-se a tamanhos sofrimentos. Começou a sentir uma angustia
muito grande, uma palidez constante em seu rosto, estava emagrecendo dia a dia, sentia
a boca seca, o coração palpitar, tonturas e mal-estar constantemente, desejava algo que
não conseguia definir ao certo o que era, seu corpo era percorrido por tremores de frio,
as vezes era acometida por uma vontade louca de fazer alguma coisa que não conseguia
decifrar. Começou a notar que quando ia ter relações com o marido e fumava o
“cigarro” parecia que era saciado aquele desejo louco que lhe extravasava do corpo e do
cérebro. Entrou em crise, não tinha mais apetite, as condições físicas estavam
definhando poucos, já não encontrava estímulo para cuidar da casa, e pouca atenção
tinha condições de dar ao filho, pois ela se achava uma pilha de nervos e até o choro da
criança a incomodava.
Falou ao marido sobre estas sensações estranhas; ele, depois de um prolongado
silêncio, disse que ela deveria estar com esgotamento nervoso e que um tratamento à
base de vitaminas resolveria o problema. No dia seguinte ao diálogo, o marido chegou
em casa dizendo que iria viajar para resolver uns negócios e que só iria retornar depois
de 15 dias, deixando com ela certa quantia em dinheiro; naquela noite tiveram relações
sexuais, e mais uma vez ela fumou do referido “cigarro”. O esposo partiu bem cedinho e
ela ficou sozinha com seu medo e as sensações estranhas. No terceiro dia após a viagem
do marido, seu irmão mais velho, que era militar veio fazer uma visita. Quando ela o
recebeu, logo notou que ele se assustou com sua aparência. Indagada sobre o que estava
acontecendo, ela disse que estava tudo bem, que sentia-se apenas um pouco cansada,
mas que já estava tomando vitaminas e que logo iria melhorar, O irmão não acreditou na
história, e pediu para ela explicar as marcas que estavam à mostra em seu corpo, mais
uma vez ela quis mentir dizendo que havia se queimado no fogão, O irmão vendo que
ela estava mentindo, disse que só sairia da casa dela quando estivesse a par de toda a
verdade. Sentindo-se sem saída e muito assustada, não teve outra alternativa a não ser
contar tudo para o irmão. Quando acabou o relato, viu no rosto do irmão uma mistura de
dor e ódio. Imediatamente ele ligou para um médico, que disse ser colega dele de
profissão e falou à irmã que iria levá-la para uma consulta, No começo, ela retrucou
pois não via necessidade de ir a um médico, mas depois com a insistência do irmão
acabou aceitando. Chegando ao médico o irmão entrou primeiro, saindo depois com os
olhos marejados de lágrimas, em seguida apareceu o médico, um senhor já de certa
idade, que pediu gentilmente que ela entrasse até a sala de consulta. Tudo aquilo a
assustava muito, tremia de medo de estar com uma doença incurável. Logo que entrou
na sala de consulta, o médico chamou a enfermeira, que solicitou à atendida que
retirasse toda a sua roupa e colocasse apenas um avental. Feito isso o médico passou a
examinar parte por parte de seu corpo, lhe fez muitas perguntas e perguntou muito sobre
suas relações com o esposo, a consulta demorou aproximadamente duas horas. Quando
ela saiu da sala de consulta seu irmão já a esperava na outra sala. Lá, após algum tempo
retornou o médico, tinha no rosto uma expressão grave, e parece que procurava palavras
para começar a falar. O irmão indagou sobre o diagnóstico. O médico pesaroso, depois
de uma pausa disse que a atendida era dependente de drogas. E completou esclarecendo
a paciente, que, pelo exame, havia detectado várias perfurações de agulha, mas que não
podia determinar à paciente que droga era porque havia necessidade de se fazer outros
exames inclusive de sangue. Segundo o médico, conforme ela mesmo relatara a ele, seu
esposo colocava algum tipo de droga no cigarro que pedia para ela fumar, depois
quando ela já estava quase que inconsciente ele injetava algum outro tipo de droga que
deveria também servir de anestésico, momento então que ele, talvez por sadismo, a
queimava com pontas do próprio cigarro, e que pelo que ela mesmo havia relatado,
mesmo sem ter consciência, estava viciada, tornando-se dependente destas drogas.
O médico queria lhe explicar como tudo funcionava, mas ela sentia que o chão
havia sumido de seus pés, sua cabeça girava, o pânico era total, perguntava a si mesma
se tudo era verdade, como poderia ser viciada, se nunca de sã consciência havia feito
uso da droga; porque o marido lhe dava droga para depois ter relações? Porque tudo
aquilo? Teria ela se casado com um homem ou com um monstro? Não, tudo não
passava de um horrível pesadelo, ela não podia acreditar. Tudo começou a girar em sua
volta, perdeu os sentidos. Quando acordou, estava deitada na mesa de consulta, o
médico e seu irmão estavam a seu lado. Chorou, gritou, queria arrancar os cabelos,
queria sumir, queria morrer. O médico lhe deu uma forte dose de calmante, e lá
permaneceram até que ela estivesse mais calma. Quando estava melhor foram embora, o
irmão a deixou na sua casa, para que ela arrumasse suas coisas e da criança e fosse
embora com ele para a casa da mãe. Ela disse para o irmão que não podia ir para a casa
da mãe porque se casou a contragosto do pai, e que teria que conversar antes com o
marido, pois queria uma explicação para tudo aquilo, precisava ouvir do marido a
verdade, e acreditava que a verdade fosse outra e não aquela tão dura de aceitar. Após
muita insistência, ele aceitou que ela ficasse até o retorno do marido, quando então
deveria comunicar a ele que iria se separar e que levaria consigo a criança.I It L.
Quando o marido chegou de viagem, ela se colocou na porta, de frente a ele, e
gritando como uma louca exigiu explicações para tudo que vinha ocorrendo. O marido,
frio como um gelo, limitou-se a afirmar que tudo era verdade, que ele usava a droga
para que as relações ficassem mais emocionantes, e que só ela que era muito boba não
havia ti o fato.
Desesperada com tanta maldade, ela tentou agredi-lo no que foi revidada com
um bofetão no rosto. Chorando e totalmente descontrolada ela disse que iria pegar o
filho e sumir da vida dele. O esposo se limitou a sorrir e dizer que se ela saísse de casa
ele a matava e ao filho, que não adiantava ela fugir para lugar nenhum do mundo que
ele a encontraria. Ela disse que iria contar tudo à família, que iriam mandar prendê-lo, o
marido disse que se ela dissesse alguma coisa para a família dela ele acabaria com toda
a família, que na realidade ele não era representante de firma alguma, mas sim traficante
de drogas, e que bastava uma ordem sua para que a quadrilha a que ele pertencia
exterminasse com ela e com toda a família, que ele já havia matado muitos, e que uns a
mais não teria grande importância. Que para ele o filho não representava nada, e que
sabia que ela tinha verdadeira adoração pelo filho, portanto, se ela quisesse ver a criança
viva deixasse tudo como estava, ou ao contrário, muito sangue iria rolar. Desesperada,
sem saber qual atitude tomar, pois temia não pela sua vida, mas pela vida do filho, sabia
que não iria encontrar apoio dos pais, uma vez que havia se casado contrariando a
vontade destes; sem nunca ter exercido uma profissão não sabia como enfrentar o
mundo, e o que ela iria fazer com a criança que tanto amava? Além de tudo tinha a parte
pior do dilema, era uma viciada em drogas. Por mais que ela pensasse não via nenhuma
alternativa a não ser deixar a criança com o irmão e praticar o suicídio.
Relato do Posto de Presidente Prudente, S. Paulo
EM CASA DE FERREIRO...
Sim, “em casa de ferreiro espeto de pau”, conforme diz o velho e popular
adágio, é o que veio à mente durante a meditação em que caí em decorrência de um
engarrafamento na Av. Corifeu de Azevedo Marques.
Dirigia-me para a região de Osasco onde seria realizada a reunião da Diretoria
Executiva do CVV daquele mês. Desde o início de 1979, adotamos a prática de realizar
as reuniões da Diretoria Executiva nos postos situados num raio de duzentos
quilômetros da capital. Até então, todas as reuniões eram feitas na sede do CVV, na
secretaria da Rua Genebra, 168, na capital de São Paulo.
Em pensamento, dando asas à imaginação, desloquei-me no tempo e me vi ali há
vinte anos atrás, naquela mesma região que era, então, um descampado, fazendo um
atendimento do CVV. Naquela época era regulamentar procurarmos os atendidos em
suas próprias residências, e as denominações atendimento e atendido eram usuais.
Procurava insistentemente o número da casa que haviam me dado. A numeração
residencial era completamente irregular, colocada aleatoriamente à vontade dos próprios
donos ou pelas fornecedoras de gás engarrafado.
Após muita procura, (até que enfim!) encontrei a casa da Da. Yara, cujo filho
tentara, o suicídio, conforme o seu aflitivo telefonema, solicitando o nosso concurso
fraterno ao jovem, que, após os atendimentos médicos, convalescia em casa.
— Sim, aqui é da casa da Da. Yara. O que é que o Sr. deseja?
— Gostaria de falar com ela.
— Pois não. Entre e espere um pouco.
Ficamos na sala ouvindo a música suave que vinha de um recinto contíguo. De
repente abriu-se a cortina e saiu um casal de jovens.
— Que entre o próximo. Disse alguém lá de dentro.
Permaneci imóvel sem entender o que se passava.
— Da. Yara o espera. Disse-me a Sra. que me recebeu.
Na outra sala, em penumbra quase total, iluminada por apenas uma fraca
lâmpada, pude ver na minha frente, sentada diante de uma mesa, uma mulher com os
olhos esgazeados, numa espécie de semi-transe, se é que isso existe!
— Aproxime-se, meu filho.
— Boa tarde.,, eu... eu sou o...
— Não precisa dizer nada, Yara sabe de tudo. Deixe-me ver a sua mão...
Tentei explicar, mas ela não permitiu e continuou mui compenetrada, a fazer a
leitura da minha mão.
— Não se preocupe meu filho, porque sua vida vai melhorar muito.
Aí eu não agüentei mais!.., minha vida melhorar!,,. melhor do que estava,
IMPOSSÍVEL! e fui direto ao assunto.
— Da. Yara, está havendo um grande engano em tudo isso. A senhora é mesmo
a Da. Yara?
— Sim, sou, meu menino.
— Pois é, o meu nome é Jacques, sou do CVV... a Sra. ligou, sobre seu filho!
Aí ela arregalou mais ainda os olhos, tinha minha mão presa às suas. Largou-as
bruscamente, levando as suas aos olhos como numa tentativa de conter o pranto.
— Oh meu Deus, sim, meu pobre filho! ele precisa de muita ajuda, converse
com ele, por favor, fale com ele. Vamos, ele se encontra no quarto dos fundos, sabe,
coitadinho, ainda está muito deprimido, pobre rapaz.,.
Uma forte buzinada me trouxe ao presente, o tráfego na Corifeu recomeçava a
escoar preguiçosamente. Num gesto automático engatei uma primeira ainda meio preso
à cena do passado e rumei para Osasco.
Jacques
APRENDENDO A RESPEITAR
— Olha estou telefonando para você porque estou numa Fossa que nunca senti
na minha vida. Fui ver o “Beijo da Mulher Aranha” e adorei aquele homão dando o
maior beijo na boca do americano. Foi a glória. Fiquei todo arrepiado e vi o filme 2
vezes. Mas estou telefonando para você não é pelo filme. Estou numa fossa demais.
Perdi a pessoa que mais amava. Perdi meu emprego por causa de um defeito que
apareceu no meu nariz. Bateu um medo enorme em mim e resolvi falar com alguém.
— Você disse que está com medo, vamos falar sobre isso?
— Sabe, tenho medo porque estou com 35 anos e estão aparecendo os primeiros
cabelos brancos. Estou ficando barrigudo. Meu cabelo vem caindo aos poucos. Estou
um lixo. Depois, meu amor me deixou e não sei como vou viver. Tem horas que tenho
vontade até de morrer. Mas logo depois penso que se eu lutar um pouco eu venço mais
essa parada. Minha cabeça parece um vulcão.
— Você me disse que se sente um lixo. O que é isso para você?
— Sim a falta daqueles braços fortes e quentes. A falta daquela voz grossa. A
falta daquela pessoa tão bonita. Meu Deus, que fiz para estar sofrendo tanto? Será que
mereço tanta solidão?
— Esta perda está lhe fazendo sofrer muito.
— Horrível. Fico horas e horas vendo TV, tomando uma bebida, depois
impaciente, vou à janela, olho a rua. Vou até a cozinha, belisco alguma coisa, volto para
a sala. Não paro um instante. Até parece que o meu mundo acabou e amanhã, logo cedo,
estou morto de cansaço e sem forças para mais um dia vazio.
— Você se sente no fundo do poço?
— Isso mesmo. Cada vez mais me sinto um traste. Uma coisa. Não posso transar
com mais ninguém. Não posso amar como eu queria. Não tenho coragem nem de sair de
casa. Sinto-me enjaulado. Você pode entender uma situação dessas? Se você estivesse
em meu lugar estaria assim também?
— Sei que você está sofrendo muito, mas não estou em seu lugar e só você sabe
a intensidade desse sofrimento.
— E com isso estou sem transar. Você é muito simpático e me respeitou até
agora e vou arriscar uma pergunta a você. Você já transou com homem?
— Não.
— Você acha que é pecado ou você rejeita isso?
— Não acho que é pecado e nem rejeito. Se você me disse que ama essa pessoa
e transa com ela, quem sou eu para julgar você? Agora, nunca transei com homem
porque estou sexualmente resolvido e não vejo razão para sair da minha rotina amorosa.
— Você tem razão. Eu não transo com quem não amo. Valeu. tchau.
Plantonista n.° 80, do Posto de Piracicaba
SUICIDIO DE MENINA
Este é um dos poemas escrito por Anderson Herzer, cujo nome verdadeiro era
Sandra Mara Herzer.
Foi escrito no dia 5 de agosto de 1982. Dia 10 de agosto do mesmo ano às 9h30,
Sandra morreu.
Foi encontrada de madrugada, ainda consciente, mas com muitas dores, debaixo
do Viaduto da avenida 23 de Maio, estendida no asfalto. Sandra havia se suicidado.
A vida desta menina é muito comovente.
Pessoa doce e muito sensível tratava muito bem aos que lhe respeitavam.
Sandra ficou órfã muito pequena. Conheceu a pobreza, quando ainda morava no
interior do Paraná.
Seu pai morreu de forma trágica, assassinado, e sua mãe que era uma mulher de
vida bastante irregular, morreu, logo depois.
Algum tempo depois foi adotada pelos tios, e, no seu depoimento e, nas
conversas que tínhamos pelo telefone, ela sempre comentava da falta de amor, amor que
nunca os pais adotivos haviam demonstrado, e, dos maus tratos que havia sofrido. Os
maus tratos não terminaram, mas, o amor aconteceu algum tempo depois. Sandra
conheceu “Bigode”, que se tornou seu namorado.
“Bigode” foi o único homem de quem aprendera a gostar, mas logo depois ele
morreu num acidente de moto. Sandra Mara ficou muito triste com a morte do
namorado, tão triste que nunca mais conseguiu se sentir mulher. Em seu punho ela fez
uma tatuagem: “Big”, e passou a ser Anderson Herzer, não só adotando um nome,
masculino, mas adotando definitivamente uma identidade masculina.
Começou a beber muito cedo, praticamente na infância. Era trazida para casa
quase todas as noites muito embriagada e, depois de algum tempo, a pedido da família
foi internada na FEBEM.
Viveu na FEBEM, dos 14 aos 17 anos de idade. Por diversas vezes tentou fugir,
mas era capturada novamente e quando voltava passava por muitos castigos, que a
tornavam cada vez mais revoltada.
Na FEBEM foi líder de muitos movimentos, e era responsável por muitas
iniciativas, como por exemplo, a apresentação de peças teatrais, algumas de sua autoria.
O deputado Eduardo Matarazzo Suplicy esteve em visita a algumas unidades da
FEBEM, e lá teve a oportunidade de conhecer Sandra e se interessou muito pelo futuro
dela, principalmente depois que leu suas poesias e peças de teatro. Acabou se tornando
seu melhor amigo, e graças a ele, que se tornou responsável por ela perante o Juizado de
Menores, conseguiu sua saída da FEBEM.
A ele, Sandra Mara dedicou seu livro “QUEDA PARA O ALTO”.
Este livro é um depoimento de sua vida, razão pela qual estou infringindo o
regulamento da quebra do sigilo. Constitui o retrato de um dos problemas mais sérios da
nossa sociedade, que é o problema do menor sem condições de sobrevivência
adequada, e é ao mesmo tempo, um livro que contém denúncias da forma como são
tratadas as crianças em algumas das Unidades da FEBEM.
De acordo com a vontade de Sandra, e com o consentimento da família dela,
toda a renda deste livro é destinada aos movimentos em defesa dos menores
marginalizados pois como diz o Sr. Eduardo Matarazzo Suplicy, no prefácio do livro, a
única coisa que Sandra Mara queria, é que todas as pessoas se tornassem realmente
seres humanos.
Vou falar agora um pouco do que sentimos quando da nossa relação de amizade.
Da parte do Anderson, este afeto foi crescendo muito lentamente. Ele era
profundamente tímido quando se tratava de falar de seus sentimentos.
Eu adotava sempre uma postura de respeito e afeto tentando conseguir sua
confiança.
Até que um dia, num momento muito especial, numa demonstração de
confiança, Anderson me contou que ele na verdade era Sandra Mara.
Aquele sentimento tanto tempo oculto e que veio à tona, me mostrou que
realmente uma amizade muito grande estava nascendo.
Daquele momento em diante, houve uma troca muito grande principalmente
quando ela falava dos seus sonhos, que estavam projetados quase que totalmente na
esperança de ver os seus poemas editados. Esta troca foi tão grande que eu passei a
sentir uma certa vaidade, até um pouco vitoriosa por ter conseguido sua confiança.
Passei a achar que tudo na vida dela, inclusive com relação aos seus sentimentos, tudo
estava ficando certo, tudo estava entrando nos seus devidos lugares.
Quando eu soube do suicídio de Sandra, eu tive reações das mais diversas.
A princípio me veio uma sensação de vazio, depois sensação de fragilidade por
não ter podido realmente ajudá-la, e por fim, uma sensação de vulnerabilidade. De
repente, eu me vi vulnerável; as coisas aconteciam também perto de mim.
Em algum momento, com algum lugar, com relação a Sandra, eu havia falhado.
Algum tempo depois, com mais calma, fui fazendo um balanço do nosso
relacionamento, e pude ver que dentro do que nós nos propomos a lazer com relação ao
trabalho do CVV, não havia cometido tantos erros.
Eu havia estado disponível, eu havia respeitado e lhe dado afeto. E, então veio a
aceitação do fato.
E, agora, quando volto a relembrar todos os nossos momentos de muito diálogo,
vem uma saudade muito grande daquela menina cheia de sensibilidade, e que escreveu
coisas lindas e, me vem na lembrança um trecho de uma das suas poesias
“Tentei, venci, a vitória conquistei
porém um dia faleci.
Hoje estou em sua lembrança, eu sou sua alma oculta
e serei sua esperança.”
Luiza — CVV/Pinheiros
O CASO QUE NUNCA EXISTIU
O telefone tocou, e, após a saudação inicial: "— CVV Boa Noite", uma
voz feminina, já madura, foi direta ao assunto:
— Estou ligando para agradecer, pois, graças ao CVV eu me encontrei
viva hoje. A alegria que sinto neste momento é tão grande que eu não poderia me
furtar de ligar para vocês. Estou chegando da maternidade, é que meu neto
nasceu: o meu primeiro neto acaba de nascer! ... Se não fosse o CVV eu não teria
a ventura de estar viva, e, hoje, estar experimentando indescritíveis emoções
trazidas pelo nascimento do meu neto, do meu primeiro neto! Por tudo isso eu
sou muito grata a vocês. Quero dar a vocês o meu apoio e as minhas palavras,
expressando votos para que continuem sempre nesse trabalho maravilhoso.
Após uma curta pausa prosseguiu.
— Há quase dez anos vocês salvaram a minha vida. Mas não pense que eu
liguei para o CVV, não, nunca liguei aí, e, nem tampouco compareci
pessoalmente .. Estranho, você não acha?
— Sem dúvida...
— Pois bem, eu vou-lhe contar. Há cerca de dez anos, quando eu me
sentia reduzida a nada, pois a minha vida transformara-se num caos, eu resolvi
pôr tudo a termo, e de forma calculista, planejei meu suicídio nos mínimos
detalhes.
Soluços...
— O dia chegou, e, no momento aprazado, experimentando um grande
alívio, pois faltava pouco, tirei o revólver do cofre e fui para o quarto.
Caminhava pelo corredor sob dolorosa depressão quando, não sei por que
motivo; lembrei-me do CVV.
Pausa... Soluços...
— Sabe, o CVV sempre foi motivo de minha admiração. Pessoas
anônimas que, em sacrifício do convívio familiar, do lazer e, às vezes, dos
compromissos profissionais, se encontram disponíveis, revezando-se
diuturnamente numa luta grandiosa, a fim de evitarem o ... meu Deus! evitarem
que o desespero pudesse acarretar o irremediável! - exatamente o que eu estava
prestes a fazer!
Silêncio...
— Então, senti ... senti-me, nem sei bem como explicar.
— Desapontada?
— Envergonhada, seria talvez o termo mais correto. Senti que o meu
suicídio seria uma agressão ao idealismo de vocês, que se eu me destruísse com
um tiro estaria desprezando-os, destruindo-os... Foi isso mesmo, senti-me
envergonhada e, em passos rápidos, retornei ao escritório e recolocando o
revólver no cofre me senti melhor. Hoje estou viva.
Em seguida a conversa mudou, focalizando o peso do neto, com quantos
centímetros, a cor dos olhos, detalhes que, confesso, me escaparam, pois, ainda
meio atônito meditava sobre o "caso que nunca existiu".
Jacques
CARPIDEIRA... OU?
Após exaustiva noite que passamos entre Delegados de Polícia, e Legistas, nos
encontrávamos na sala de um necrotério, sentindo o corpo dolorido e a alma
consternada, ao lado, na laje fria, do corpo de um jovem.
Era bem cedo ainda. Aguardávamos o prosseguimento das formalidades legais e
burocráticas para o sepultamento. Na impossibilidade dos pais, por se encontrarem em
profundo estado de choque, nós ali nos encontrávamos para prestar os esclarecimentos
necessários.
Sentindo forte ardência nos olhos, podíamos ver através dos vitrais tristes da
sala, um mar de túmulos e passamos a divagar, relembrando o passado...
Conhecera o Francisco em meio a uma série de atividades profissionais, selando-
se, assim, uma boa amizade. Não sabemos como ele tomou conhecimento que
militávamos no CVV.
Numa tarde procurou-nos no escritório para relatar certos comportamentos
estranhos que seu filho, adolescente, vinha apresentando de evidente e manifesta
agressividade. Conversamos bastante, procuramos estender fraternalmente nosso amor,
pois, ele se encontrava muito apreensivo com a situação do filho.
Passaram-se os anos, e, numa noite, quando chegávamos do CVV, ao
guardarmos o carro, a Suely, gesticulando da janela, solicitava nos dirigíssemos
imediatamente à residência do Francisco. Sem entender bem os motivos, mas
imaginando, engatamos marcha à ré no carro e saímos na maior velocidade que as
condições permitiam para chegarmos ao bairro vizinho.
Encontramos o jovem em estado desesperador, quase sem sentidos após várias
auto-lacerações e ingestão de fortes doses de barbitúricos.
Francisco, seu pai, encontrava-se em viagem de negócios, a mãe, desesperada,
gritava por socorro. Vizinhos, transeuntes se acotovelavam na porta, curiosos,
“apreciando” o triste espetáculo. Ajudados pelo vigia noturno colocamos o jovem no
automóvel e o levamos ao pronto socorro municipal mais próximo, onde foi
rapidamente atendido. Eram duas horas da madrugada quando nos informaram que o
rapaz, já fora de perigo, necessitava ficar internado por mais três dias no mínimo.
Mais alguns anos se passaram, e, sempre na condição de amigo disponível
tivemos oportunidade de conversar com o jovem umas cinco ou seis vezes, numa delas
varamos a noite dialogando.
Nesse episódio derradeiro, o quadro se repetia. Chegávamos do CVV Abolição,
e, quando íamos encostar o carro, a Suely acenava pedindo para irmos à casa do
Francisco: uma tragédia acabava de ocorrer!
Desta vez chegamos tarde, o jovem já estava sem vida, e os pais, sob cuidados
médicos.
— “O Sr. conhece o jovem?”, foi a pergunta que nos fez um policial, que, diante
da resposta positiva, externou o tradicional:
— “Venha comigo, me acompanhe, preciso do seu depoimento”.
E assim foi a noite inteira. Naquela manhã, vendo o sol o nascer, olhávamos para
o garoto inerte, envolto em lençol branco, na pedra fria, sem podermos definir as
emoções que estávamos sentindo, misto de tristeza, compaixão, um pouco de um
sentimento desagradável que procurávamos afastar, e, de acordo com nossos princípios
religiosos, erguíamos orações ao Criador solicitando fosse amparado o jovem que
adentrava agora um novo estágio de experiências.
Nossas meditações foram interrompidas por uma senhora.
— “Dá licença”?
— Pois não.
Ela olhou para o corpo inerte.., levantou a ponta do lençol.
— “Oh! mas o que aconteceu?”. Aproximando-se mais, bisbilhotando, foi logo
levantando mais o lençol que envolvia o corpo do jovem.
— “Oh! mas tão jovem?...”
Permanecemos em silêncio profundo, procurando dar continuidade ao respeitoso
recolhimento em que nos encontrávamos.
— “Acidente?”
— Não.
— “Morte natural!?... Afinal o que é que aconteceu?” m
— Suicido, minha senhora.
— “Suicídio?!” Frisou ela um tanto admirada, e prosseguiu:
— “Mas será que esse jovem não tinha, não tinha um amigo com quem
conversar?”
Não respondemos.
— “Se ele tivesse um amigo, repetiu ela, ele não teria se matado”.
Deu uma volta pela sala sem tirar os olhos do cadáver, e continuou, após um
breve silêncio:
— “O Sr. sabe? Eu vou lhe contar.., eu sou plantonista do CVV,... e lá nós
sentimos o valor da amizade. por isso que eu digo de uma forma enfática: se ele tivesse
um amigo, não teria se matado”.
Ficamos em silêncio.., Quando nós percebemos, ela já tinha ido embora,
certamente com bastante assunto para encher a sua próxima reunião de grupo.
Jacques
DEPOIMENTOS
DEPOIMENTO DE CHAD VARAH
“Todos que passam em nossas vidas, passam sozinhos, mas não vão
sozinhos, pois sempre deixam um pouco de si e levam um pouco de nós”.
Certa vez quando eu ainda estava no curso ginasial um professor deixou estas
linhas escritas em meu diário; passaram-se os anos e estas adquiriram um sentido ainda
maior.
Encontrei aqui no CVV um pouco da vida de cada uma dessas pessoas que,
com muito amor passei a sentir e viver a cada toque do telefone.
Vivi a fantasia de um mundo imaginativo, vivi a esposa traída, a amante
dividida, a mãe abandonada, o ser solitário.
Voltei à adolescência junto com o adolescente que tem medo do futuro e não vê
porque prosseguir; sente-se tão incompreendido e gostaria tanto de dizer isso aos pais,
porém , não existe abertura para o diálogo.
Vivi a amargura, silêncio do outro lado da linha, silêncio este que é o próprio
grito de dor.., é um pedido mudo de ajuda.
Soube o que sentiam os homossexuais no seu mundo de luzes cujos personagens
guardam embaixo de suas máscaras coloridas fantasias ingloriosas e a tristeza de serem
ridicularizados pela sociedade.
Vivi o deficiente físico que apesar da dificuldade para falar ainda encontra
palavras para dizer-me que se considera feliz e ainda que deficiente pode observar
melhor o lado oculto das pessoas normais, pois estas correm demais e por isso ficam
impossibilitadas de verem o mais profundo do ser humano.
Vivi a tristeza do mundo cinzento, o desejo de encontrar através do sono
profundo a promessa do desconhecido; encontrar a paz desejada, dormir fugindo do
desespero e da dor, encontrar, talvez em outro lugar, a serenidade ao abraçar a
eternidade.
Vivi o submundo do viciado, a vontade enorme de largar a droga e a
dependência puxando-o, cada vez mais, para o fundo do grande abismo.
Perguntaram-me certa vez se Deus existe, se Ele dirigia nossos destinos ou
seríamos apenas robôs em suas mãos?
Surpreendi-me com o agradecimento de alguém de quem sequer o nome e a
frase “obrigada por ter me ouvido” fundiu-se com as minhas lágrimas de alegria.
Compreendi que não sou possuidora de nenhuma onipotência para mudar os
rumos traçados, quaisquer que sejam.
Aprendi a ouvir e que o silêncio é importante, é cristalino e seu eco é mais
profundo.
Aprendi a dar valor a cada instante vivido.
Aprendi, acima de tudo, a querer-me bem e a cada vez ser mais e mais.
Marina — Posto de Pinheiros
COMO PASSEI A VER O SUICIDA
Uma pessoa comum, que vive seu dia-a-dia, superando normalmente alguns
obstáculos e tendo dificuldade para a superação de outros. Porém, o prato da balança
das dificuldades vai-se tornando mais pesado e ela não tem facilidade de superação ou
de fazer adaptações construtivas, restando- lhe as opções de ataque à situação ou a fuga.
E começa a fugir desadaptando-se gradativamente de seu meio-ambiente. Começam as
cobranças e ela se defende. Vai criando lentamente ao redor de si um espaço como uma
fortaleza. E vai reforçando as defesas. Permanece ali, trancafiada, em plena escuridão,
observando com espírito muito crítico o mundo exterior, do qual se distancia cada vez
mais. Ninguém a vê no seu íntimo. A solidão e a angústia crescem e a sufocam. Não
confia que alguém tenha a sensibilidade, disponibilidade e delicadeza suficientes para
penetrar sua fortaleza sem querer convencê-la a simplesmente sair de lá porque julga
aquilo inadequado a ela.
Nesse círculo vicioso, chega o momento da explosão... Não agüenta mais sofrer
daquela forma. Não se sente importante ou necessário a ninguém. Se desaparecer,
muitos nem o perceberão. Outros, talvez sintam algum remorso... Até que o merecem...
Sair dali?... Como?... A esta altura dos acontecimentos retornar àquele mundo,
não dá... Tenta um último apelo. Algo como o CVV, esperando, embora, que aí se repita
o procedimento tradicional de não aceitação de seu estado e de sua decisão. Entretanto,
ao primeiro contacto, um choque... o que aconteceu?... (não estava preparada para esse
tipo de atitude). De atônita, vai passando a curiosa. Inicia com o outro um jogo que se
vai tornando interessante. A atitude de serena disponibilidade e profundo respeito revela
total ausência de ameaça, de invasão de seu espaço sagrado. Sem se aperceber, vai
lentamente se descontraindo, depondo aos poucos as armas e se aproximando. Começa a
destrancar a fortaleza por dentro, lentamente, sempre pronta a reagir a qualquer ameaça
que, no entanto, não ocorre. A atitude outro se mantém inalterada. Assim, abre o trinco
e, depois, uma pequena fresta na porta. Aumenta aos poucos a fresta, abrindo totalmente
a porta. Então, convida o outro a entrar no seu espaço. Tranca novamente. Sentam-se, e
começam o compartilhar. Acende uma lanterna e pede ao outro que a segure. Vai
abrindo o baú e, lentamente, começa a retirar seus bagulhos. Vai pegando embalo e,
como se estivesse sozinho, vai jogando tudo para fora, caia onde cair, não importa, até
que o baú se esvazie. Então, senta-se, Aí percebe o outro com a lanterna. Respira
aliviado. Agora pode tomar sua decisão mais segurança, e diz: Amigo, você vai
comigo? Ajuda-me a enfrentar esse mundo hostil até que eu crie nova casca? Ou então,
dirá: Muito obrigado! Onde quer que eu esteja, lembrar-me-ei de você. Até lá.
Plantonista n.° 34, Barra Funda, S. Paulo
PALAVRAS DE PSIQUIATRA
O CVV atendeu uma moça com problemas muito sérios com seu esposo. Na
ocasião houve da parte dela boa clarificação, mas o problema do marido continuava,
pois segundo seu marido era portador de doença nervosa.
Passou-se mais algum tempo, ela que tinha na ocasião em que veio pela primeira
vez ao CVV dois filhos, teve mais um. Aos trancos e barrancos ia levando a vida. Na
verdade passou a ser freqüentadora assídua do CVV. Por volta de abril de 1979 ela se
“suicidou”, na versão do marido.
A família, não se conformando, achou por bem dar parte, Formou-se um
processo cujo réu era o esposo. Achavam que ele a tinha matado, ou, na pior das
hipóteses, a tinha induzido ao suicídio.
No rol das testemunhas o meu nome constou, pois uma delas, durante o
depoimento, esclareceu que além dela, a suicida havia conhecido uma plantonista do
CVV que poderia ajudar no processo. Fui intimada a depor. Compareci ao DEIC para o
tal depoimento, porém disse na ocasião ao Delegado que não podia falar nada a respeito,
pois tudo o que o que a “suposta suicida” havia me dito, foi como se a ouvisse em
confessionário, portanto, não poderia dizer nada além do que confirmar a sua presença
no CVV, nada mais.
O Delegado tomou meu depoimento, e, na verdade, tentou por todos os meios
conseguir mais alguma coisa, e insistia, pois, segundo ele, com meu esclarecimento
poderia fazer justiça. Apesar da sua insistência, mantive-me dentro do sigilo pelo qual o
CVV prima.
No final, o próprio Delegado elogiou o trabalho do CVV.
Segundo ele, se eu falasse alguma coisa, estaria contrariando o que ele sabia
acerca do CVV.
Neusa, Posto Abolição, S. Paulo
MENSAGEM ANÔNIMA
Eu, admirador do trabalho do CVV, desejo através deste os mais sinceros votos
de felicidades neste Natal e no Novo Ano que se aproxima.
Seja o Sr. o mensageiro deste.
Meu nome? Não importa.
(Mensagem recebida no telex da firma de um plantonista do CVV, na véspera do
Natal de 1984)
UM PONTO DE LUZ
Deixe-me explicar o que quero dizer quando digo que parece que o objetivo que
o indivíduo mais procura atingir, o final que ele persegue consciente ou
inconscientemente, é tornar-se ele mesmo.
Quando uma pessoa vem me procurar, perturbada com sua rara
combinação de dificuldades, acho que vale a pena tentar criar um relacionamento com
ela no qual ela se sinta segura e livre. Procuro entender como ela se sente em seu
próprio mundo interior, aceitá-la como ela é, criar uma atmosfera de liberdade na qual
ela possa se mover em seus pensamentos, sentimentos e ser em qualquer direção que
quiser. Como ela usa esta liberdade? Minha experiência mostra que ela a usa para
tornar-se cada vez mais ela mesma. Ela passa a derrubar as falsas fachadas ou máscaras
ou papéis, com os quais ela tem experimentado a vida. Ela parece descobrir algo mais
básico, algo mais verdadeiramente seu. No início, ela coloca de lado a máscara que usa
com uma certa consciência. Uma jovem estudante descreve numa entrevista de
aconselhamento uma das máscaras que tem usado, e demonstra sua incerteza com
relação à existência sob esta fachada calma, intrigante de um ser real com convicção.
“Pensava sobre esse negócio de padrões. De certa forma desenvolvi um tipo de
rito, acho, — bem, um hábito de tentar fazer as pessoas sentirem-se à vontade ao meu
lado ou de tornar as coisas mais fáceis. Sempre deve haver alguém pacificador por
perto, como o óleo que acalma as águas. Numa pequena reunião, ou festinha, ou algo
parecido — ajudava para que as coisas acontecessem direito e gostava disso. E algumas
vezes me pegava argumentando contra o que eu realmente acreditava quando percebia
que o responsável não ficaria feliz se eu não o fizesse. Em outras palavras, nunca fui, ou
melhor, nunca me senti firme e definida sobre as coisas. Agora, a razão pela qual eu
fazia isso talvez fosse porque estava acostumada assim em casa. Nunca lutei por minhas
convicções enquanto não sabia se tinha alguma para lutar. Não tenho sido eu mesma,
não sei realmente quem sou, e tenho simplesmente interpretado um certo falso papel.”
Neste trecho podemos vê-la examinando a máscara que vem usando,
reconhecendo sua insatisfação, e procurando saber como fazer emergir seu eu
verdadeiro, se é que ele existe.
Nesta tentativa de descobrir seu eu, o cliente tipicamente usa o relacionamento
para explorar, examinar os diversos aspectos de sua própria experiência, reconhecer e
enfrentar as profundas contradições que geralmente descobre. Ele aprende o quanto de
seu comportamento, até mesmo o quanto do seu sentimento que vive, não é real, não é
algo que emana de reações genuínas de seu organismo, mas sim uma fachada, atrás da
qual ele se esconde. Ele descobre o quanto de sua vida é guiado pelo que ele pensa que
deveria ser, não pelo que ele é. Ele geralmente descobre que existe apenas em resposta
aos pedidos de outros, que parece não ter vida própria, que ele apenas tenta pensar,
sentir, e se comportar da maneira com que as pessoas acreditam que ele deva pensar,
sentir e se comportar.
A esse respeito eu me surpreendi com a precisão do filósofo dinamarquês, Soren
Kierkegaard, ao descrever o dilema do indivíduo há mais de um século. Ele coloca que
o desespero mais comum é desesperar-se por não escolher, ou querer, ser alguém; mas
que a forma mais profunda de desespero é escolher “ser alguém que não se é real” e por
outro lado, “querer ser aquele que se realmente é, é na verdade o oposto do desespero”,
e esta escolha é a maior responsabilidade do homem. Lendo alguns trabalhos seus
chegava até a pensar que ele tivesse ouvido os depoimentos feitos por nossos clientes ao
procurar e explorar a realidade de ser — geralmente uma procura perturbante e
inquietante.
Esta exploração torna-se mais perturbante quando se acham envolvidos em
remover as falsas fachadas que não sabiam ser falsas fachadas. Começam a se engajar
na assustadora tarefa de explorar os sentimentos turbulentos e às vezes violentos dentro
de si mesmos. Remover a máscara que se pensou ser parte do seu eu real pode ser uma
experiência altamente transtornante, mas quando existe liberdade para pensar e ser, o
individuo vai em busca de tal objetivo. Algumas declarações de uma pessoa que
completou uma série de entrevistas psicoterapêuticas ilustra este fato, Ela usa muitas
metáforas para contar como lutou para chegar ao centro de si mesma.
“Vendo agora, eu ia descascando as minhas defesas, camada por camada,
empilhava-as, usava-as e então descartava-as e quando nada mudava. Eu não sabia o
que estava no fundo e tinha medo de descobrir, mas tinha que continuar tentando. No
começo sentia que não havia nada dentro de mim — somente um grande vazio no lugar
que eu precisava e queria um centro sólido. Então passei a sentir que eu enfrentava uma
sólida parede de tijolos, alta demais para pular e grossa demais para atravessar. Um dia
a parede tornou-se translúcida. Depois disso, a parede parecia desaparecer mas atrás
dela descobri uma represa segurando águas violentas e agitadas, Senti como se eu
estivesse segurando a força destas águas e que se eu abrisse um pequeníssimo buraco eu
e tudo sobre mim seria destruído na torrente de sentimentos representada pela água.
Finalmente não pude mais agüentar a tensão e soltei. Na verdade, tudo que fiz foi
sucumbir à completa e total auto-piedade, depois raiva, e depois amor. Depois dessa
experiência, senti como se tivesse saltado uma margem e estivesse seguro do outro lado,
embora ainda um pouco cambaleante. Não sei o que estava procurando ou onde estava
indo, mas senti naquele instante, como sinto toda vez que vivo realmente, que estava
dando um passo adiante.”
Acredito que isso representa bem os sentimentos de muitos indivíduos que se a
falsa fachada, a parede, a represa não forem mantidas, então tudo será varrido pela
vivência dos sentimentos que ele descobre encurralados em seu mundo particular. Isto
também ilustra a necessidade sobrepujante a que o indivíduo sente procurar para tornar-
se ele mesmo. É também um indício do modo pelo qual o indivíduo deter mina a
realidade em si mesmo — quando ele experimenta completamente os sentimentos que
ao nível orgânico ele é, só quando experimenta auto-piedade, ódio e amor ele sentirá
certeza de que está sendo parte do seu eu verdadeiro.
EXPERIMENTANDO O SENTIMENTO
Gostaria de dizer algo mais sobre a experiência do senti mento. É realmente a
descoberta dos elementos desconheci dos do eu. O fenômeno que tento descrever é algo
que penso ser bem difícil de explicar claramente. No nosso cotidiano existem mil e uma
razões para não nos deixar experimentar completamente nossas atitudes, razões que vêm
desde o nosso passado até o presente, razões que residem dentro da situação social.
Parece perigoso demais, potencialmente danoso, experimentá-las livre e completamente.
Mas na segurança e liberdade do relacionamento terapêutico, elas podem ser
experimentadas por inteiro, até o limite do que são. Elas podem ser e são
experimentadas de uma forma gostosa de descrever como “cultura pura” de modo que a
pessoa é seu me do, ou ela é sua raiva ou é sua ternura, ou o que quer que seja. Talvez
eu consiga explicar isso com um exemplo de um cliente o qual deverá indicar e
transmitir algo do que eu quero dizer. Um jovem estudante universitário que está em
profunda terapia tratando de resolver um vago sentimento que ele percebe em si mesmo.
Ele vai aos poucos identificando-o como um sentimento que dá medo, um medo de
falhar, um medo de não conseguir o doutorado.
Vem então uma longa pausa. Daqui para frente deixarei que a conversa gravada
fale por si:
Cliente: — Eu estava quase deixando escapar. Mas eu também amarrei-o a você
e ao nosso relacionamento. É como eu sinto, um tipo de medo que ele escape; ou é outra
coisa — é tão difícil denominar — é como se fossem dois sentimentos distintos. Ou
dois “eus” de alguma forma. Um é o medroso que quer se agarrar a coisas, e este eu
acho que posso sentir claramente agora. Você sabe: eu preciso de coisas para me agarrar
– e me sinto um tanto com medo.
Terapeuta: — Uhm. É algo que você pode sentir neste exato minuto e tem
sentido e talvez sinta com relação a nós também.
Cliente: — Você não vai me deixar ter isso porque, você sabe, eu preciso disto.
Posso ficar sozinho e amedrontado demais sem isso.
Terapeuta: — Uhm. Deixe-me insistir nisto pois ficaria terrivelmente
amedrontado se não o fizesse. Deixe-me agarrar-me a isso (pausa).
Cliente: — É quase a mesma coisa — você não vai querer que eu termine a tese
ou o doutorado, então... “Porque eu preciso deste pequeno mundo. Quero dizer...”
Terapeuta: — Nos dois casos é como uma criança implorando, não é? Disse-me
ter isso pois eu preciso desesperadamente. Ficaria terrivelmente amedrontado sem
isso. (longa pausa)
Cliente: — Acho que... Não posso ir muito além.., é este tipo de menino
pedinte, de certa forma...como é que ele pede? (Coloca suas mãos postas como em
oração), Não é engraçado? Porque...
Terapeuta: — Suas mãos parecem suplicar.
Cliente: — Isso mesmo! Você não vai fazer isso por mim?
Oh, é terrível! Quem, eu, implorar?
Talvez este trecho mostre um pouco o que venho falando, a vivência de um
sentimento até o limite. Ei-lo aqui, por um momento, vivendo um garoto pedinte,
suplicando, implorando, dependente. Naquele momento ele não é nada além de sua
súplica, até o fim, Tanto assim que ele recua de sua experiência dizendo: “Quem, eu,
implorar?” Mas deixou uma marca. Um momento depois ele diz: “é tão raro ver coisas
assim saírem de mim. Fico tão espantado toda vez, e então de novo vem o mesmo
sentimento, sentimento amedrontado de que tenho tanto disto que me retraio”. Ele
percebe que isso acabou e que no momento ele é uma dependência, e isso o assusta. Não
apenas a dependência é vivida desta maneira. Pode ser dor, pesar, ciúmes, ou ira
destrutiva, ou confiança e orgulho, ou ternura, ou amor. Pode ser qualquer uma das
emoções que o homem é capaz de sentir.
Aprendi por experiência como esta que o indivíduo em um certo momento,
passará a ser o que é. Quando uma pessoa vive, através da terapia, desta forma todas as
emoções que surgem pelo organismo, e viveu-as desta forma consciente e aberta, então
ela experimentou-se a si mesmo, em toda a riqueza que existe dela. Ela tornou-se o que
é.
Vamos nos ater mais um pouco a esta questão do que significa tornar-se “eu”. Ë
uma questão bastante confusa e novamente tentarei tomar o depoimento de uma cliente,
escrito entre entrevistas, como sugestão para uma resposta. Ela mostra como as várias
fachadas com as quais tem vivido, de certa forma enrugaram e caíram, trazendo um
sentimento de confusão, mas também de alívio. Ela continua:
“Você sabe, é como se toda a energia que foi gasta para segurar o padrão
arbitrário fosse desnecessário — um desperdício. Você pensa que precisa criar o padrão
sozinha; mas são tantas peças, e é tão difícil ver onde elas ser vem. Algumas vezes as
colocamos no lugar errado e quanto mais peças mal colocadas, mais temos que nos
esforçar para que elas fiquem no lugar, até que no fim você se cansa, de tal forma que
mesmo a confusão é melhor que continuar. Então você descobre que se deixadas as
peças embaralhadas caem naturalmente nos devidos lugares e um padrão surge sem
qualquer esforço de sua parte. Seu trabalho é apenas descobri-lo, e enquanto isso, você
encontrará a si e seu próprio lugar. Você pode deixar até que sua própria experiência
diga seu sentido, no minuto que você contar o que significa, ficará em guerra com você
mesma.”
Deixe-me ver se consigo traduzir esta expressão poética no sentido que ela tem
para mim. Acredito que ela está dizendo que para ser ela mesma significa encontrar o
padrão, a ordem latente, que existe no fluxo ininterruptamente mutante de sua
experiência. Mais do que tentar manter sua experiência sob a forma de uma máscara, ou
fazê-la ser uma forma ou estrutura que não é, ser ela mesma significa descobrir a
unidade e a harmonia que existem nos seus próprios sentimentos e reações verdadeiras.
Significa que e o eu verdadeiro é algo que se descobre confortavelmente nas próprias
experiências e não algo imposto.
Através destes extratos de conversas de clientes, tento sugerir o que acontece no
calor e compreensão de um relacionamento facilitador com um terapeuta. Parece que
aos poucos, dolorosamente, o indivíduo explora o que está por trás das máscaras que ele
apresenta ao mundo, e até por trás das máscaras com as quais ele tem se enganado. Ele
experimenta viva e profundamente os vários elementos de si mesmo que estavam
escondidos. Portanto gradualmente ele vai se tornando ele mesmo – não uma fachada de
conformidade aos outros, não uma negação cínica de todos os sentimentos, não uma
fachada de racionalidade intelectual, mas um processo de vida, respiração, sentimento –
em resumo, ele torna-se uma pessoa.
A PESSOA QUE SURGE
Imagino que alguns de vocês estejam perguntando: “mas que tipo de pessoa ele
se torna?”. Não é suficiente dizer que ele derruba as fachadas. Que tipo de pessoa está
por baixo? Uma vez que um dos fatos mais óbvios é que cada indivíduo tende a tornar-
se uma pessoa distinta e única, a resposta não e fácil. Entretanto, gostaria de apontar
algumas das tendências de características que vejo. Nenhuma pessoa exemplificaria por
completo estas características, nenhuma pessoa atinge completamente a descrição que
darei, mas vejo certas generalizações que podem ser feitas baseadas na vivência de um
relacionamento terapêutico com muitos clientes.
ABERTURA À EXPERIÊNCIA
Antes de tudo, gostaria de dizer que neste processo o indivíduo torna-se mais
aberto à sua experiência. Esta é uma frase que passou a ter muito sentido para mim. É o
oposto da defensividade Pesquisas psicológicas mostram que se a evidência de nossos
sentidos vai de encontro à imagem que temos de nós, então a evidência é distorcida. Em
outras palavras, não percebemos o que nossos sentidos relatam, mas apenas aquilo que
se encaixa no quadro que temos.
Agora, num relacionamento seguro do tipo que descrevi, este estado de defesa
ou rigidez tende a ser substituído por uma abertura crescente à experiência. O indivíduo
torna-se mais amplamente ciente de seus próprios sentimentos e atitudes de forma que
exultou nele ao nível orgânico, como tentei descrever. Ele também torna-se mais ciente
como ele é fora dele, ao invés de percebê-lo em categorias preconcebi das. Ele vê que
nem todas as árvores são verdes, nem todos os homens são pais severos, nem todas as
mulheres são repelentes, nem todas as experiências de fracassos provam que ele não é
bom, e assim por diante. Ele é capaz de compreender a evidência numa nova situação,
como ela é, ao invés de distorcê-la para que se encaixe ao padrão que ele já tem. Como
podemos esperar, esta crescente habilidade de se abrir às experiências o torna bem mais
realista ao tratar com novas pessoas, novas situações, novos problemas. Significa que
suas crenças não são rígidas, que ele pode tolerar a ambigüidade. Ele pode receber
evidência completamente sem forçar rigor sobre a situação. Esta abertura de consciência
ao que existe neste momento em si mesmo e na situação, é acredito, um elemento
importante na descrição da pessoa que surge de uma terapia.
Talvez eu possa dar a este conceito um sentido mais vivido se ilustrá-lo com
uma entrevista gravada. Um jovem profissional relata na 48ª entrevista como tornou-se
mais aberto a algumas de suas sensações corpóreas assim como a outros sentimentos.
Cliente: — Não acho que seria possível para qualquer um relatar todas as
mudanças que sente. Mas eu certamente tenho sentido sinceramente que tenho mais
respeito por mim, mais objetividade com relação à minha formação física. Quero dizer
que não espero demais de mim mesmo. Ë assim que funciona. Sinto que no passado
costumava lutar contra um certo cansaço após o jantar. Agora, tenho certeza que estou
cansado — que não estou me fazendo de cansado, Parecia que eu estava simplesmente
criticando constantemente meu cansaço.
Terapeuta: — Então você se deixa ficar cansado, ao invés de sentir por isso um
certo criticismo,
Cliente: — Sim, que eu não deveria estar cansado. E de certa forma é algo bem
profundo que posso apenas não lutar contra isso, e assim vem um sentimento verdadeiro
de que devo ir mais devagar, também, de forma que o cansaço já não é mais algo ruim.
Acho que também posso captar porque eu deveria ser assim pela forma que meu pai é e
vê certas coisas. O Exemplo, suponha que eu esteja doente, e conta a ele, e parecerá
abertamente que ele quererá fazer algo, mas ele também dirá: “Oh Deus, mais
problemas.” Você sabe como é.
Terapeuta: — Como se tivesse algo bastante maçante em estar doente
fisicamente.
Cliente: — É, tenho certeza que meu pai tem o mesmo desrespeito por sua
própria psicologia, que eu tinha. No verão passado eu torci as costas, dei um mau jeito,
ouvi até o estalo. No começo a dor era realmente forte. Fui ao médico e ele disse que
não era sério, que passaria sozinho se eu não curvasse muito. Bem, isso já faz alguns
meses — e ainda tenho sentido a dor — e não é culpa minha.
Terapeuta: — Isso não prova algo ruim sobre você?
Cliente: — Não - e uma das razões por eu me sentir cada vez mais cansado
pode ser por causa desta dor constante, e eu já marquei hora com um médico no
Hospital e ele irá examinar e tirará um raio X. De certa forma acho que poderia dizer
que tenho uma sensibilidade mais precisa - ou objetiva a este tipo de coisa,.. E esta é
uma mudança profunda, e é claro que meu relacionamento com minha esposa e meus
dois filhos é — bem, você não reconheceria se pudesse ver meu interior — quero dizer
— parece não haver nada melhor do que genuína e realmente sentir amor pelos seus
próprios filhos e ao mesmo tempo receber. Não sei como fugir. Nosso respeito é
crescente em relação a Judi e percebemos — com a nossa participação nisto - uma
grande mudança nela — parece ser uma coisa muito profunda.
Terapeuta: — Você está querendo dizer que pode ouvir com mais precisão
você mesmo. Se seu corpo lhe diz que está cansado você o ouve e acredita, ao invés de
criticá-lo; se é dor, você ouve, se o sentimento é realmente amar sua esposa e crianças,
você pode sentir isso, e isso aparece nas diferenças deles também.
Aqui, num extrato relativamente curto mas simbolicamente importante, ilustra o
que eu venho tentando dizer sobre abertura à experiência. Antes ele não poderia sentir
livre mente a dor ou doença, pois o fato de estar doente significava não ser aceito. Nem
mesmo carinho e amor ele podia sentir por sua filha pois tais sentimentos
demonstravam fraqueza, e ele tinha que manter sua fachada de duro. Mas agora ele pode
ser genuinamente aberto às experiências de seu organismo — ele pode se sentir cansado
quando está cansado. Ele pode sentir dor quando seu organismo doer, ele pode
experimentar livremente o amor que sente por sua filha e ele pode também, sentir e
expressar aborrecimento por ela como ele dirá na próxima parte da entrevista. Ele pode
viver completamente as experiências de todo seu organismo ao invés de ignorá-las.
Gostaria de colocar uma última característica destes indivíduos em sua luta para
descobrir e tornar-se eles mesmos. É que o indivíduo parece mais satisfeito em ser um
processo do que um produto. Quando entra no relacionamento terapêutico, o cliente
geralmente gostaria de atingir um estado fixo: ele quer atingir o ponto onde os
problemas são resolvidos, ou onde ele é bom no trabalho, ou onde seu casamento
satisfaça. A tendência, com a liberdade do relacionamento terapêutico, é deixar cair
estes objetivos fixos e aceitar uma realização mais satisfatória de que ele não é uma
entidade fixa, mas um processo.
Um cliente, no final de terapia, diz de uma forma bastante perplexa: “não
terminei o trabalho de me integrar e reorganizar, mas isso apenas está me confundindo,
e não me desencorajando, agora que percebo que é um processo contínuo.
É excitante, algumas vezes desconcertante, mas profundamente encorajador
sentir-se essa ação, aparentemente sabendo onde está indo mesmo se nem sempre sabe
conscientemente onde fica. Podemos ver aqui expressão de confiança no organismo,
que mencionei, e também a realização de si como um processo. Esta é uma descrição
pessoal do que parece ser aceitar-se corno um tornar-se contínuo e não um produto
final. Significa que uma pessoa é um processo fluido e não uma entidade fria e estática;
um rio de mudanças e não um bloco de material sólido; uma constelação de
potencialidade constantemente em mutação e não uma quantidade fixa de
características.
Eis aqui uma outra declaração do mesmo elemento da fluidez ou vida
existencial: “todo este trem de experiências e os significados que descobri até agora,
parecem ter-me lançado num processo que é fascinante e algumas vezes assustador. É
como se eu deixasse minhas experiências me levarem numa direção que parece seguir
em frente, rumo a objetivos que posso definir apenas vagamente, à medida que tento
entender finalmente o significado presente desta experiência. A sensação é a de flutuar
com uma corrente de experiência, com a fascinante possibilidade de tentar compreender
esta complexidade sempre mutante”.
CONCLUSÃO
Tentei mostrar-lhes o que pareceu ocorrer com pessoas com as quais tive o
privilégio de me relacionar no momento em que lutavam para serem elas mesmas.
Esforcei-me em descrever o melhor possível os significados que parecem estar
envolvidos neste processo de se tornar alguém. Tenho certeza que este processo não
ocorre apenas na terapia. Tenho certeza que não o vejo clara e totalmente, uma vez que
continuo mudando minha compreensão e entendimento dele. Espero que o leitor aceite
isto como um quadro experimental e atual, e não como algo final.
Uma das razões pelas quais chamo atenção da natureza experimental do que
disse é que espero tornar claro o que eu não disse. “Isto é o que você deveria ser, este é
seu objetivo”. Não, digo que estes são alguns dos significados que vi nas experiências
que vivi com meus clientes. Talvez este quadro de experiências de outros pode iluminar
ou dar mais sentido a alguma de suas próprias experiências.
Chamei atenção de que cada indivíduo parece se fazer uma dupla pergunta:
“Quem sou eu?” e “Como tornar-me eu mesmo?” Disse que o processo acontece num
clima psicologicamente favorável; que aqui o indivíduo derruba uma atrás da outra as
máscaras de defesa com as quais enfrentou a vida; que ele vive completamente seus
aspectos escondidos; que ele descobre nestas experiências o estranho que ele tem sido
por trás destas máscaras. Tentei dar meu quadro das características da pessoa que surge;
uma pessoa que está mais aberta para todos os elementos de sua experiência orgânica;
uma pessoa que está desenvolvendo uma confiança em seu próprio organismo como
instrumento de vida sensitiva; uma pessoa que aceita que a avaliação reside em si
mesma; uma pessoa que está aprendendo a viver sua vida participando de um processo
continuo, fluido, no qual ela sempre descobre novos aspectos de si mesma. Estes são
alguns dos elementos que me parecem estar envolvidos no processo de se tornar
alguém.
O HOMEM DO FUTURO
I - A resposta-reflexo em geral
1. Reiteração
— Consiste em: resumir a comunicação; assinalar um elemento relevante;
reproduzir as últimas palavras.
— Prepara o terreno.
— Estabelece um clima de segurança.
— Comparável ao efeito produzido pela pontuação num texto: cria uma certa
ordem.
— Não tem significado intelectual algum e nenhuma originalidade própria.
— O seu valor específico parece ser de ordem afetiva.
— A pessoa se sente acompanhada, não observada.
2. Reflexo do sentimento
— Consiste, sob o ângulo da psicologia da forma, em tornar claro o fundo da
comunicação.
— O seu objetivo é descobrir a intenção, a atitude ou sentimento inerentes às
palavras do outro, propondo-os, sem os impor.
— Favorece a evolução da figura no sentido de ampliação, diferenciação,
correção.
— Ora um elemento da figura ora um elemento do fundo é colocado em relevo
(tanto um como outro pertencem ao campo perceptual do outro).
— A partir do momento em que o facilitador se revela capaz de apreender o
sentimento vivido, ainda que não manifestamente expresso, a relação toma uma direção
mais construtiva.
— O facilitador se mantém estritamente no ponto de referência subjetivo da
pessoa.
— Condição indispensável é o respeito incondicional e autêntico do facilitador.
3. Clarificação
— Consiste em captar certos elementos que, sem fazer manifestamente parte do
campo, o impregnam.
— Visa tornar evidentes sentimentos e atitudes que não decorrem diretamente
das palavras do outro.
— É uma dedução e exige certa acuidade intelectual. O facilitador experiente
evita esta modalidade.
— Visto que a clarificação se afasta do centro de percepção, ela corre o risco de
não ser reconhecida pelo outro.
— Deve ser formulada de modo não categórico.
— A resposta privilegiada do facilitador experiente é a reiteração.
Literatura:
— Carl Rogers e Marian Kinget: Psicoterapia e Relações Humanas, Vol. 2, Cap.
III e Rudio: Orientação Não-Diretiva
Plantonista Eduardo, de Brasília
CICLO DA VIDA: SENTIMENTO, PENSAMENTO, AÇÃO
Alankardec Gonzalez
Quando o cliente nos procura no CVV, vem à procura de um amigo, que não o
ameace, que não entre em competição com ele em termos de idéias, opiniões, ações, que
não queira convencê-lo a agir padronizadamente de uma forma determina, e que
coopere com ele dividindo suas vivências emocionais mais interiores.
Com ele ocorre o que também ocorre conosco.
Os nossos valores próprios, os conceitos que temos sobre tudo o que nos rodeia,
é a nossa forma de ver o mundo, S os nossos olhos, somos nós próprios.
Quando encontramos resistência às nossas idéias dizemos: — “Estão contra a
minha pessoa”.
Quaisquer ameaças às nossas idéias, crenças e atitudes, são sentidas como
ameaças pessoais.
Pelo fato dos valores, conceitos, crenças e atitudes do atendido nos serem
desconhecidos, corremos um sério risco de nos transformar em ameaças para ele. Para
que isto venha a acontecer basta passar a analisar os “fatos objetivos” (o problema) sob
o nosso ponto de vista, segundo a nossa forma de ver coisas.
Há apenas uma forma de evitar que isto aconteça: Temos que aceitá-lo
verdadeiramente, logo de início e sempre, nas suas crenças e idéias dirigindo as nossas
atenções para os seus sentimentos.
Uma vez estabelecido de forma sólida este vinculo afetivo, dividida a carga
emocional, o indivíduo torna-se criativo, freqüentemente dispensando o conselho. O
atendido, neste caso, poderá até mesmo solicitá-lo, porém o fará mais a título de teste de
realidade, isto é, para avaliar o nível de concordância ou discrepância entre a sua
realidade interna e a realidade externa ou a realidade dos outros.
Neste caso especifico, reconhecida a situação adequada, poderemos até mesmo
dar o conselho solicitado, porque estaremos protegidos contra grandes erros. Na
verdade, o atendido somente colocará em prática o conselho recebido se perceber que a
opinião nele contida está concorde com a sua realidade e não com a do plantonista.
Se aconselharmos precipitadamente poderemos estar condenando o nosso
“befriending” ao fracasso. Sem conhecer a realidade do atendido estaremos analisando e
julgando a partir das nossas próprias idéias e valores, que jamais serão idênticos aos
dele.
Quais resultados poderiam advir do nosso aconselhamento?
Se o atendido não segue os nossos conselhos é porque resta a ele ainda alguma
disposição para crescer independentemente.
Se o atendido põe em prática o que aconselhamos, é por que estabeleceu-se a
dependência, ele vê em nós uma criatura superior possuidora de poderes especiais e que
pode por isso resolver problemas humanos diversos e inclusive o dele mesmo. Mais
tarde se decepcionará com certeza e as conseqüências serão ainda mais desastrosas.
Se o atendido obedece e o resultado for positivo, fortalece-se a dependência,
protelando-se o desfecho do problema para uma outra ocasião. Se o resultado for
negativo o relacionamento será muito prejudicado, com grande certeza.
III. RESUMINDO
“PROCURA-SE UM AMIGO
Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento, basta ter
coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, da
madrugada, de pássaros, do sol, da lua, do canto dos ventos e das canções da brisa.
Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.
Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar
segredo sem se sacrificar. Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível
que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois, todos os amigos são
enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja de todo impuro, mas não deve ser
vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o
grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias, seu principal objetivo deve ser o
de amigo. Deve sentir pena das pessoas instes e compreender o imenso vazio dos
solitários.
Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer. Procura-se um
amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova quando chamado de amigo. Que
saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações da
infância. Precisa-se de um amigo para não enlouquecer, para contar o que se viu de belo
e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade.
Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de
beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela,
mas porque já se tem um amigo.
Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no
passado em busca de memórias perdidas. Que bata nos ombros sorrindo e chorando,
mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.”
“Se você for este
amigo procurado
dê graças ao Senhor,
pois você se encontrou.
Se você não o for,
procure-o:
ele lhe ajudará.”
Boletim do CVV - Junho/85
FAMÍLIA E COMUNICAÇÃO
Eram 7 horas da noite e alguns minutos quando ele chegou em casa, depois de
mais um dia estafante de trabalho duro. Na sala, as crianças, magnetizadas pela
televisão, respondem ao boa noite, sem mover um só músculo: “Oi pai.” Ele pára, a
espera de alguma reação diferente, um simples olhar que fosse... “seria tão bom...”,
pensa. Vencido pela inutilidade do seu desejo, caminha para a cozinha, onde a esposa,
correndo para lá e para cá, terminando o jantar estanca numa fração de segundo para
receber o beijo no rosto, responde: “Oi”.
Como de costume, vai até o banheiro, onde se apronta para o jantar.
Na mesa, todos estão preocupados em não perder tempo, pois o horário da
novela se aproxima, e a espera pelas horas é entrecortada por alguns monossílabos, e
frases curtas: “Me passa o feijão”, “O leite vai aumentar de novo”, “O arroz ta
acabando”, “Já sei”, “ “Não”.
Na sala, o vídeo é. a muralha comum que isola e proíbe o menor gesto, nem uma
palavra, ou mesmo um olhar, a qualquer coisa que interfira na hipnose que envolve a
todos, a reação é uma só: ‘Psssiu”, “Cala a boca pô.. . . “, “Fica quieto menino”.
Esse um pequeno flash da vida diária de muitas famílias, cujas pessoas vivem
diariamente a realidade angustiante da comunicação superficial e vazia sem nada que os
faça sentirem-se valorizadas como pessoas, vivendo com pessoas.
Nessa atmosfera de vida, o coração se sente vazio, a solidão se instala e a
angústia que a acompanha chega sem apelação. E um dos males crônicos da sociedade
moderna, a falta de diálogo e comunicação, passa a conviver conosco como um membro
da família, numa época que, paradoxalmente, convencionamos chamar de “A Era da
Comunicação”.
Hoje, vivemos em uma aldeia global, onde a maioria das pessoas são indivíduos
que trazem o coração emudecido pela impossibilidade de se comunicar, transmitindo
aos seus semelhantes aquilo que se está sentindo e vivendo.
No seio familiar, a doença da solidão gerada pela crise de comunicação pode
afligir a todos. Marido e mulher limitam o seu relacionamento a atitudes totalmente
superficiais e a contatos sexuais onde a satisfação do corpo domina completamente as
necessidades do coração. Os filhos, por não trocarem nada de verdadeiro com os pais,
além das costumeiras discussões e brigas, vivendo o tão falado e analisado “Conflito de
Gerações” fruto da incomunicabilidade entre pais e filhos, padecem igualmente do
isolamento em família, se tornando vítimas da insatisfação, da infelicidade, da ausência
afetiva, e da angústia precoce.
Sem a palavra de apoio que sustenta, sem a participação e o interesse pelo que
vai no coração dos outros, e sem a compreensão que auxilia a superar as maiores
dificuldades, ou seja, sem comunicação entre as pessoas do grupo familiar, dificilmente
existira felicidade interior em viver ao lado das pessoas com as quais vivem todos os
dias.
Nos 25 anos de experiência do CVV Samaritanos, tem-se verificado que a
solidão, e os problemas decorrentes da falta de dialogo e comunicação no lar, são os
principais motivos que geram angustia, sofrimento e opressão nas pessoas que,
pressionadas por esses sentimentos e pela inexistência de alguém, com quem possam
falar do que sentem, de maneira aberta e franca, buscam no voluntário do CVV um
caminho e um apoio para diminuir as tensões e aflições de uma vida truncada e
empobrecida pela falta de comunicação.
Ter alguém com quem se possa falar, sem barreiras, censuras, exigências ou
cobranças, e principalmente na própria família; é um tesouro de valor incalculável, que
nós estamos sendo obrigados a valorizar, se não quisermos assistir ao processo de auto-
destruição da vida por solidão coletiva.
(Extraído do “São Carlos Hoje”)
ROGERIANO, TRILOGISTA, FREUDIANO, CHADIANO E
SAMARITANO
Trabalhe com atenção para atingir seus objetivos senti mentais. Bom dia para as
amizades. Saúde boa. Não perca a calma, aja com muito tato e grande dose de otimismo
e tudo para você se realizará muito bem. NOTICIA POLICIAL:
Furto simples: Durante a tarde de ontem, elementos não identificados, após
arrombar a porta de nosso Posto, furtaram uma bolsa cheia de calor humano, dois talões
de amizade e um aparelho de fazer sentimentos virem à tona. As autoridades policiais e
os plantonistas desejam que os ladrões façam bom proveito e sejam felizes. Os
plantonistas do CVV, Posto de Rio Claro, sensibilizados, participam o falecimento,
desde a abertura de nosso Posto, da Sra. Indiferença do Mal, genitora dos Srs. Ódio e
Rancor de Todos.
Extraído de “Vida”, CVV - Rio Claro
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