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INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGÚSTIA 11 INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGÚ STIA

As inibições mais gerais do Eu obedecem a outro e substituto de uma satisfação instintual que não aconte­
mecanismo, de natureza simples. Quando o Eu é soli­ ceu, é consequência do processo de repressão. Esta pro­
citado por uma tarefa psíquica particularmente difícil, cede do Eu, que - por solicitação do Super-eu, even­
como, por exemplo, um luto, uma enorme supressão de tualmente - não deseja colaborar num investimento
afeto, ou a necessidade de refrear fantasias sexuais que instintual despertado no Id. Através da repressão, o Eu
emergem continuamente, ele se empobrece de tal forma, obtém que a ideia portadora do impulso desagradável
no tocante à energia disponível, que tem de reduzir seu seja mantida fora da consciência. A análise demonstra,
dispêndio em muitos lugares simultaneamente, como com frequência, que a ideia foi conservada como for­
um especulador que imobiliza seu dinheiro nos seus em­ mação inconsciente. Até esse ponto tudo estaria claro,
preendimentos. Um exemplo instrutivo dessa forte inibi­ mas logo têm início as dificuldades não solucionadas.
ção geral de curta duração eu pude observar num doente As descrições que até agora fizemos do que sucede na
obsessivo que, em situações que claramente deveriam repressão destacaram expressamente a exclusão da cons­
produzir uma explosão de raiva, sucumbia a uma fadiga ciência, mas deixaram dúvidas em outros pontos. Surgiu
paralisante que durava um ou vários dias. A partir daí a questão de qual seria o destino do impulso instintual
deve ser possível encontrar uma via para compreender ativado no Id que busca a satisfação. A resposta, indireta,
a inibição geral que caracteriza os estados de depressão, foi que mediante o processo da repressão o prazer que se
incluindo o mais grave deles, a melancolia. espera da satisfação é transformado em desprazer, e então
Sobre as inibições podemos dizer, concluindo, que nos vimos diante do problema de como o desprazer po­
são limitações das funções do Eu, por precaução ou de­ deria resultar de uma satisfação instintual. Esperamos es­
vido ao empobrecimento de energia. Agora é fácil per­ clarecer a questão afirmando especificamente que, devido
ceber em que a inibição e o sintoma se distinguem um à repressão, o pretendido desenvolvimento excitatório no
do outro. O sintoma já não pode ser descrito como um interior do Id não se realiza, o Eu consegue inibi-lo ou
processo que ocorre dentro do Eu ou que age sobre ele. desviá-lo. Então desaparece o enigma da "transforma­
ção do afeto" na repressão. Mas assim fazemos ao Eu a
concessão de que pode exercer tamanha influência sobre
11 os processos do Id, e devemos averiguar como esta sur­
preendente demonstração de poder se torna possível.
As principais características da formação de sintomas Penso que o Eu adquire essa influência devido a suas
foram estudadas há muito tempo e - assim esperamos íntimas relações com o sistema perceptivo, que, afinal,
- enunciadas de forma inatacável. O sintoma é indício constituem sua essência e proporcionam a base para sua

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diferenciação do Id. A função desse sistema, que deno­ a recusa de percebê-lo, ou seja, subtrair-se ao campo de
minamos Pcp-Cs, é ligada ao fenômeno da consciência; ação do perigo. A repressão equivale a essa tentativa de
ele recebe excitações não apenas de fora, mas também fuga. O Eu retira o investimento (pré-consciente) do
do interior, e, mediante as sensações de prazer-desprazer representante de instinto* a ser reprimido e o aplica na
que dessas direções o atingem, procura guiar todos os liberação de desprazer (angústia) . O problema de como
desenvolvimentos psíquicos de acordo com o princípio surge a angústia na repressão pode não ser simples; mas
do prazer. Nós tendemos a imaginar o Eu como impo­ temos o direito de nos apegar à ideia de que o Eu é a ge­
tente contra o Id, mas, quando ele se opõe a um proces­ nuína sede da angústia, e de rejeitar a concepção ante­
so instintual no Id, precisa apenas dar um sinal de des­ rior de que a energia de investimento do impulso repri­
prar_er para realizar sua intenção, com a ajuda da quase mido é transformada automaticamente em angústia. Se
todo-poderosa instância do princípio do prazer. Se, por antes me expressei desse modo, forneci uma descrição
um momento, consideramos esta situação de forma iso­ fenomenológica, não uma exposição metapsicológica.
lada, podemos ilustrá-la com um exemplo de outra es­ Disso procede esta nova pergunta: como é possível,
fera. Tomemos um Estado em que determinada facção do ponto de vista econômico, que um simples processo
luta contra uma medida que, aprovada, corresponderia de retirada e descarga como a retração do investimento
às inclinações da massa. Tal facção apodera-se então da pré-consciente do Eu produza desprazer ou angústia,
imprensa, com esta influencia a soberana "opinião públi­ que por nossas premissas podem apenas resultar de um
ca" e impede que ocorra a aprovação planejada.
Tal resposta leva a outras questões. De onde vem a * No original, Triehrepriisentanr_ - nas versões estrangeiras con­
energia que é utilizada na produção do sinal de despra­ sultadas: representación instintiva, representante depulsión, rappresen­
tanr_a pulsionale, représentance pulsionelle, psychical representative of
zer? O caminho nos é indicado pela ideia de que a defe­
the impu/se, instinctual representative, drive-representamen (com
sa contra um processo interior indesejado poderia ocor­ nota), drifirepresentant. Além daquelas normalmente utilizadas ­
rer seguindo o modelo da defesa contra um estímulo duas em espanhol, da Biblioteca Nueva e da Amorrortu, a italiana
exterior, de que o Eu toma a mesma linha de defesa tan­ da Boringhieri e a inglesa da Standard edition pudemos dispor da
-

versão francesa orientada por J. Laplanche (PUF), da primeira tradu­


to contra o perigo interno como contra o externo. No
ção inglesa, de J oan Riviere (em Great Books ofthe Westem World,
caso do perigo externo, o organismo empreende uma v. 54), da mais recente inglesa, de John Reddick (Penguin), e da ho­
tentativa de fuga, inicialmente retira o investimento da landesa da editora Boom; como sempre, elas são citadas por ordem
percepção do que é perigoso; depois enxerga um meio decrescente de proximidade ao português e, havendo mais de uma
num idioma, por ordem cronológica. Cf. notas relativas a Triehreprii­
mais eficaz: realizar ações musculares tais que a percep­
sentanr_ e alguns outros termos compostos da "metapsicologia" freu­
ção do perigo se torne impossível mesmo que não haja diana no v. 12 destas Obras completas, pp. 59, 78, 86, 1oo, rr5, 125.

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investimento intensificado? Respondo que essa sequência Como expliquei em outro lugar,* as repressões com
causal não deve ser explicada economicamente, a angús­ que deparamos no trabalho terapêutico são, na maioria,
tia não é gerada novamente na repressão, e sim repro­ casos de pós-repressão. Elas pressupõem repressões pri­
duzida como um estado afetivo, segundo uma imagem mordiais sucedidas anteriormente, que exercem influência
mnêmica já existente. Mas, se indagamos também pela sobre a nova situação. Sabe-se ainda muito pouco sobre
origem dessa angústia - como dos afetos em geral -, esse pano de fundo e esses estágios anteriores da repres­
abandonamos o terreno inconteste da psicologia e aden­ são. Corre-se o risco de superestimar o papel do Super-eu
tramos a área fronteiriça da fisiologia. Os estados afetivos na repressão. Por ora não é possível dizer se a emergência
incorporaram-se à psique como precipitados de antiquíssi­ do Super-eu marca o limite entre repressão primordial
mas vivências traumáticas, e são despertados como símbo­ e pós-repressão. As primeiras irrupções de angústia -
los mnêmicos* quando situações análogas ocorrem. Quero bastante intensas - ocorrem, de toda maneira, antes da
dizer que não errei ao compará-los aos ataques histéricos, diferenciação do Super-eu. É perfeitamente plausível que
adquiridos depois e de forma individual, e considerá-los fatores quantitativos, como a intensidade muito grande da
modelos normais desses ataques. No ser humano e nas excitação e a ruptura da proteção contra estímulos, sejam
criaturas a ele aparentadas, o ato do nascimento, sendo a as causas imediatas das repressões primordiais.
primeira vivência individual da angústia, parece ter dado A referência à proteção contra estímulos nos recor­
traços característicos à expressão da angústia. Mas, embo­ da, à maneira de uma senha, que as repressões apare­
ra reconhecendo esse nexo, não devemos superestimá-lo, cem em duas situações diferentes - a saber, quando
nem esquecer que um símbolo afetivo é uma necessidade um impulso instintual desagradável é despertado por
biológica na situação de perigo e de toda forma teria sido uma percepção externa, e quando emerge no interior
criado. Além disso, não me parece justificado supor que sem que haja essa provocação. Mais adiante retornare­
em cada irrupção de angústia sucede, na psique, algo que mos a essa diferença. Mas a proteção contra estímulos
equivale a uma reprodução da situação do nascimento. existe apenas para estímulos externos, não para exigên­
Nem mesmo é certo que os ataques histéricos, que origi­ cias instintuais internas.
nalmente são dessas reproduções traumáticas, mantenham Enquanto estudamos a tentativa de fuga do Eu per­
duradouramente esse caráter. manecemos afastados da formação de sintomas. O sin­
toma se origina do impulso instintual prejudicado pela
repressão. Quando o Eu, pela utilização do sinal de des-
* O conceito de "símbolo mnêmico" (Erinnerungssymhol, em que
Erinnerung ="recordação") é explicado nas últimas páginas da pri­
meira das Cinco lições depsicanálise (1910) . * No ensaio "A repressão", de 1915.

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prazer, alcança seu propósito de suprimir completamen­ com o Id e o Super-eu, revelamos sua impotência e sus­
te o impulso instintual, nada aprendemos sobre como cetibilidade à angústia perante os dois, sua arrogância
isso ocorre. Descobrimos algo apenas a partir dos casos penosamente mantida. Esse juízo encontrou forte eco
que devem ser designados como repressões mais ou me­ na literatura psicanalítica. Inúmeras vozes insistiram na
nos malogradas. fraqueza do Eu em relação ao Id, do elemento racional
Pode-se dizer então, de maneira geral, que o impul­ em relação ao demoníaco em nós, e puseram-se a trans­
so instintual, apesar da repressão, encontrou um subs­ formar essa afirmação num dos pilares de uma "visão
tituto, mas um bastante atrofiado, deslocado, inibido, e de mundo" psicanalítica. Mas a compreensão do modo
que já não é reconhecível como uma satisfação. Quando de agir da repressão não deveria impedir que justamen­
[esse impulso substituto] é concretizado não há sensa­ te um analista adotasse partido tão extremo ?
ção de prazer; em vez disso, tal concretização assume o Não sou a favor d� fabricação de visões do mundo.
caráter de coerção. Ao assim rebaixar a satisfação a um Isso deve ser deixado para os filósofos, que confessada­
sintoma, a repressão mostra seu poder ainda em outro mente acham inexequível a jornada da existência sem
ponto. O processo substitutivo tem a descarga dificulta­ um guia de viagem como esse, que informa sobre tudo.
da possivelmente pela motilidade; mesmo quando isso Aceitemos humildemente o desprezo com que eles nos
não sucede, ele tem de se esgotar na alteração do pró­ olham, do alto de sua sublime carência. Mas, como
prio corpo e não pode se estender ao mundo exterior; também não podemos negar nosso orgulho narcísi­
é-lhe interditado se converter em ação. Como sabemos, co, acharemos consolo na reflexão de que todos esses
na repressão o Eu trabalha sob a influência da realidade "guias de existência" envelhecem rapidamente, de que é
externa e, por isso, exclui que o processo substitutivo justamente nosso trabalho miúdo, estreito e míope que
ocorra com sucesso nesta realidade. torna necessárias novas edições deles, e de que inclusive
O Eu domina tanto o acesso à consciência, como a os mais modernos desses guias são tentativas de achar
passagem à ação no mundo exterior. Na repressão ele substituto para o velho catecismo, tão cômodo e tão
exerce seu poder nas duas direções: o representante do completo. Sabemos que até agora a ciência pôde lançar
instinto vem a experimentar um lado de sua manifes­ muito pouca luz sobre os enigmas deste mundo; o ba­
tação de poder, e o impulso instintual, o outro lado. É rulho dos filósofos nada mudará isso, apenas a paciente
o caso de nos perguntarmos, então, como o reconheci­ continuação do trabalho que tudo subordina à exigên­
mento do poder do Eu se harmoniza com a descrição da cia de certeza pode gradualmente produzir mudança.
posição desse Eu que esboçamos em O Eu e o Jd [ 192 3 ]. Ao cantar na escuridão, o andarilho nega seu medo,
Nele traçamos u m quadro d a dependência do Eu para mas nem por isso enxerga mais claro.

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