Você está na página 1de 8

1

[página 9]
PSICOTERAPIA E PSICANALISE
Jacques-Alain Miller
Jacques-Alain Miller. Psicoterapia e psicanálise. Em: Forbes, J. Org; Homem, M. L. Trad.
Psicanálise ou psicoterapia. P. 9-19. São Paulo: Papirus, 1997.

1. Sempre gostei do deus Janus. O deus de duas faces, a da paz e a da guerra. Na


representação clássica, Heráclito sempre chora, ao passo que Demócrito não para de rir.
Qualquer que seja o lugar do qual vocês os veem, em qualquer momento em que os veem,
cada um é sempre o mesmo: Heráclito chora, Demócrito ri. Não ocorre o mesmo com a
face de Janus. A face que Janus apresenta depende do espaço e do tempo, é função do lugar
em que vocês estão em um momento ou outro. Seu aspecto inclui a posição em que vocês
estão. Imaginem essas representações de imagem dupla, que oferecem, segundo o ângulo
do qual vocês as veem, duas poses do mesmo personagem, olhos abertos-olhos fechados,
boca aberta-boca fechada.
2. Mas Janus não é o deus da oscilação imaginária; pois a paz e a guerra são, em princípio,
declarações, enunciados, ditos. Janus é a porta que abrimos e fechamos, e a porta é uma
grande função simbólica, talvez até a função simbólica por excelência, talvez o próprio
símbolo do significante.
[10]
3. É sob a invocação do deus Janus que situarei minha intervenção de hoje.
4. “Psicoterapia e Psicanálise”, esse tema de reflexão nos é imposto pela atualidade europeia.
Refletimos sobre psicoterapia e psicanálise primeiramente na Itália, em razão de uma lei
que discutimos bastante, mas também na França, na Espanha, na Bélgica, na Grã-Bretanha.
Por meio de colóquios e congressos, é assim que um vasto e verdadeiro trabalho de Escola
se desenrola no campo freudiano, em particular na Escola Europeia de Psicanálise e na
Escola da Causa Freudiana.
5. Como tenho uma responsabilidade na escolha do título, começarei justificando-o. Na
expressão “Psicoterapia e Psicanálise”, o e não significa adição e, menos ainda, identidade,
quer dizer que a psicoterapia e a psicanálise não são dois domínios excludentes um do
outro, exteriores um ao outro sem ponto comum.
6. Não é sem razão que, do ponto de vista do Estado, a psicanálise seja classificada como
uma forma de psicoterapia, como um elemento ou um subconjunto do conjunto das
psicoterapias, e não podemos ficar satisfeitos em opor a essa concepção a noção da
exterioridade pura e simples de dois conjuntos. Creio que há interseção entre os dois, e que
esta interseção não é vazia.
7. Essa representação nos leva a pensar que três domínios estão em questão. Há uma zona de
psicoterapias que não têm nada a ver com a psicanálise, assim como há uma zona do
campo freudiano que é exterior à psicoterapia; e há uma zona de interseção.
Reencontramos aí o deus Janus.
2

[11]
8. Se consideramos a psicanálise com base na psicoterapia, a psicanálise confunde-se com a
psicoterapia, ao passo que, considerada com base em si mesma, ela não tem nada a ver com
a psicoterapia. Talvez o próprio psicanalista seja um ]anus de dupla face.
9. Alguém tomou a palavra neste congresso para perguntar: “Eu sou psicoterapeuta?” Creio
que o psicanalista pode levantar-se e dizer: “Eu sou psicoterapeuta” e isso será verdade,
mesmo se não é toda a verdade, mesmo se a psicanálise propriamente dita, a psicanálise
pura, não é psicoterapia.
10. Tentemos dar um pouco de corpo a essa distribuição espacial. Há uma zona comum entre
psicoterapia ~ psicanálise quando se trata das psicoterapias que procedem pela palavra.
Nos dois casos, trata-se de logoterapia, de uma terapia pela linguagem, e mesmo de uma
terapia da linguagem.
11. Sabe-se desde sempre. Sabe-se que falar faz bem. Por exemplo, é ao menos uma das razões
que nos faz fazer congressos. Desde sempre, sabe-se que falar cura, no momento. Sabe-se
que ir mal, estar doente, é talvez uma forma de falar quando já não se sabe falar. Na
linguagem de hoje, diz-se “somatizar”, o que quer dizer que o corpo se torna um meio da
palavra. Que haja uma relação entre o mal e a palavra não é uma descoberta de Freud; a
medicina, antes de inserir-se no discurso da ciência, sabia muito bem o valor de alívio da
confissão e da palavra de absolvição.
12. Há o que se sabe desde sempre, e há o que mudou na época da psicanálise, na era pós-
kantiana, na qual nasceu a noção de psicoterapia. O que mudou é que a questão passou a
ser formulada nos termos de um conflito de causalidade. Toda causalidade que concerne o
ser humano é de ordem material? Ou há uma outra ordem de causalidade? As perturbações
que afetam o psiquismo respondem a uma causalidade biológica, neurológica ou química,
ou há uma causalidade psíquica, que constitui uma ordem original de realidade?
[12]
13. O que há de comum entre psicoterapia e psicanálise é que ambas admitem a existência de
uma realidade psíquica. Lembremos aqui o termo que Freud especifica nesse emprego:
Realitat. A questão passa a ser, então, a de saber como operar sobre essa realidade
psíquica. Isto é, qual é a realidade eficiente, nos termos de Freud, a Wirklichkeit, que opera
sobre a realidade-Realitat psíquica?
14. Se operamos por uma intervenção direta sobre o cérebro como órgão, por uma intervenção
cirúrgica, elétrica ou química, saímos evidentemente do campo das psicoterapias. Da
mesma forma, se operamos por injeções de substâncias a fim de modificar os estados de
consciência. Todavia, é fato haver um certo número de intervenções sobre a realidade
psíquica que passam pelo corpo e que entram no campo contemporâneo das psicoterapias.
São as psicoterapias que se utilizam da ginástica. Classifico aqui as sabedorias orientais,
3

que são todas disciplinas de maestria do corpo. Mas é também o caso das sabedorias
ocidentais da Antiguidade, que são exercícios de dominação psíquica das funções e· dos
apetites somáticos.
15. Há, assim, um vasto leque de psicoterapias a classificar, da ginástica à psicoterapia breve
de instituição. Qual seria o princípio da classificação?
16. O que acredito ser o princípio da classificação de qualquer psicoterapia é a incidência da
palavra do Outro. O fator chave de qualquer psicoterapia é que há um Outro que diz o que
deve ser feito, um Outro a quem o sujeito que sofre obedece, e do qual ele espera a
aprovação.
17. Esse fator não é eliminável. Ele não é eliminável nem das psicoterapias ditas
comportamentais, porque elas são sempre dominadas pelo Outro que aprova, que diz “está
bem”, que diz “sim”. Dessa forma, todas as psicoterapias são de fato terapias da imagem
de si, e são sempre fundadas sobre o estádio do espelho. Trata-se de restituir ao eu (moi)
suas funções de síntese e de maestria, sob
[13]
o olho do mestre que desempenha o papel de modelo. São terapias pela imagem, e que, por
isso mesmo, são terapias pelo mestre, pela identificação com o mestre. É assim que elas
sempre evidenciam o campo da linguagem. O uso da palavra é mais ou menos evidente,
diversamente acentuado. O zen é uma psicoterapia tão bem situada no campo da linguagem
que visa de forma sistemática desconcertar a palavra, de forma a atingir o significante puro
em seu contrassenso. O grito primitivo também é um esforço para atingir o puro
significante do Es [id, isso]. Na hipnose, no relaxamento, em todas as formas de ginástica
meditativa, há sempre um mestre que vela, que induz, e ao qual se trata de se identificar
por introjeção.
18. Isso pode passar pelo corpo, pelo corpo-escravo, pelo movimento do corpo ou pela
imobilidade do corpo, por todo comportamento do corpo. Mas o que é essencial, e que faz
psicoterapia, é o assujeitamento ao Outro.
19. Tratando-se das psicoterapias que sustentam a passagem pelo corpo, estamos em uma zona
que se aproxima da psicanálise. Digamos que são psicoterapias que empregam as
propriedades elementares da intersubjetividade. Elas constituem o que eu chamaria uma
técnica do “sim”. Elas visam obter um efeito de absolvição pelo “sim” do Outro. Uma
terapia que teve seu tempo de sucesso tinha como pivô a seguinte frase: “You are OK, I'm
OK”. Esse aforismo é uma espécie de matriz de todas as psicoterapias não corporais. Essa
“OK-terapia” é o princípio de uma dialética rudimentar: instituir o Outro, investi-lo do
significante-mestre, de forma a receber dele um “sim”, o significante que salva.
20. Estamos aqui numa zona tão próxima da psicanálise que, às vezes, ela é indistinguível aos
olhos de algumas pessoas. Penso, por exemplo, na teoria desenvolvida por Kohut em seu
último livro, segundo a qual a finalidade da psicanálise é fazer emergir para o sujeito um
Outro que lhe sorrii. Ele nos dá o belo exemplo de um paciente aflito com um sonho
repetitivo, no qual via sempre
[14]
um personagem virando-lhe as costas, encarnando de alguma forma a recusa fundamental
que ele sofria. Kohut o vê curado no dia em que, enfim, seu paciente tem um sonho no qual
o personagem se volta, é sua mãe, ela sorri, o paciente está curado.
4

21. Se queremos dar uma fórmula geral das psicoterapias, diremos que são fundadas sobre uma
relação de dominação que se exerce da imagem do outro, i(a) como escreve Lacan, sobre o
eu (moi) do sujeito, marcado por um m. Essa relação imaginária só opera enquadrada por
uma articulação simbólica.

22. Estão indicados aí, embaixo à direita, o sujeito, na medida em que ele se endereça ao Outro
como mestre, com o efeito de significação que se segue, e o que se conclui disso, a
identificação com o Outro, I(A). O que evoco aqui de forma simplificada não é outra coisa
que o que encontramos em Lacan no que ele chama o grafo do desejo. Esse grafo comporta
dois andares. Esse é o estágio inferior, e também mínimo, o que quer dizer que não se
possa evitar passar pelo seu circuito, o acesso ao estágio superior é, se posso dizer,
opcionalii.
23. Todo significante do Outro, toda palavra do Outro, na medida em que reconhecemos nesse
outro a posição de grande Outro, tem efeito de identificação. Essa é a base comum da
psicoterapia e da psicanálise. Pode-se até dizer que, na psicanálise, a sugestão é, inclusive,
a mais pura. Nesse nível, a psicanálise é psicoterapia, isto é, terapia por identificação.

[15]
24. Depois de Freud e até Lacan, os próprios psicanalistas definiram a psicanálise como uma
terapia por identificação - assim, o problema “Psicoterapia e Psicanálise” não nos é
imposto pelo Estado, ele é a consequência do distanciamento da identidade freudiana da
psicanálise. Para nós, a possibilidade da operação analítica não se baseia sobre nada além
do que uma recusa do analista, sua recusa em utilizar os poderes da identificação. O
analista, na medida em que ocupa o lugar do grande Outro, desse Outro para o qual o
sujeito se volta em seu sofrimento, o analista recusa-se a ser o mestre. É por isso que
falamos de ética da psicanálise, e do desejo do analista, como de um desejo que seria mais
forte do que o desejo de ser o mestre. Esse desejo é enigmático.
25. É aqui que o analista é Janus, nesse ponto grande A - em que ele pode fechar ou abrir a
porta da análise. Ou ele encaminha o sujeito ao curto-circuito da identificação ou abre um
segundo circuito, que vocês encontrarão sobre o grafo de Lacan e cuja porta de entrada está
no lugar do Outro. Isso quer dizer que a análise depende da posição que o analista adota.
5

26. Se ele se identifica com um psicoterapeuta, ele fecha essa porta. É somente recusando ser
psicoterapeuta que ele abre a dimensão propriamente analítica do discurso. Por pouco que
ele comunique ao sujeito - “Eu sei o que você é, eu sei o que você precisa, eu sei o teu
bem” -, ele fecha essa porta. Ela só fica aberta se ele faz o sujeito ouvir: “Eu não sei e é por
isso que é preciso que você fale.” É por isso que o desejo do analista é apenas a outra face
da paixão da ignorância. É preciso, efetivamente, que o analista se mostre habitado por um
desejo mais forte do que o desejo de ser o mestre. É o que Freud exprimia, a sua maneira,
alertando o psicanalista contra o desejo de curar, em nome do desejo científico, já era
distinguir o desejo do analista como desejo de saber, para que o sujeito possa encontrar a
questão de seu desejo além da identificação.
27. No circuito superior, no qual se formula a questão que Lacan coloca em italiano - Che
vuoi?iii -, é preciso que o analista não
[16]
se prenda a nenhuma resposta prévia, isto é, que ele não seja servo de nenhum preconceito.
Ele não pode estar a serviço de nenhum fim superior à própria operação analítica. Ele só
pode estar a serviço do desejo do analista. Ele não pode ser o agente de nenhum discurso
instituído, de nenhuma identificação social. E é justamente isso o que coloca a questão de
saber quem pode dizer: “Eu sou analista?”
28. Primeiramente, a prática do analista põe em questão a ordem social e constitui uma quebra
de seus valores. Em segundo lugar, o próprio analista não é identificável pelo Estado. Ele é
identificável, se posso dizer, apenas na parte inferior do esquema, na medida em que está
na posição de exercer uma terapia pela identificação, mas não é identificável na parte
superior do esquema, isto é, na parte em que recusa o poder que tem. É justamente esse
paradoxo do poder recusado que não é inteligível, até o momento, pelo Estado. A
dicotomia dos dois andares do grafo encontra-se na oposição dos dois discursos, discurso
do mestre e discurso do analista. O avesso da psicanálise é o discurso do mestre.iv
29. Os psicanalistas foram os primeiros, contra a opinião de Freud, a querer confundir
medicina e psicanálise. Essa identificação da medicina à psicanálise fracassou
historicamente e é retomada hoje sob a forma da identificação da psicanálise à
psicoterapia. Mas é legítimo prescrever à operação analítica a finalidade de curar? Isto é,
de fato, que o sujeito volte a ser útil à sociedade? Porque não há, definitivamente, outra
definição da cura psíquica. A ideia de cura no domínio psíquico baseia-se na noção de que
o psiquismo seria um órgão do corpo, que o psiquismo se confundiria com o
funcionamento do cérebro. Ora, a psicanálise não se ocupa do psiquismo, ocupa-se do
inconsciente, o que é muito diferente. O inconsciente não é um órgão, não assegura
nenhuma função de conhecimento do mundo e, no campo específico do inconsciente, curar
não tem sentido.
[17]
30. Em nome de que o analista Janus se faz porteiro do inconsciente? Fá-lo com base no saber
que possui de que nenhuma identificação satisfaz a pulsão, que o mais-de-gozar escapa à
identificação, que a identificação é sempre para o sujeito o meio de evitar reencontrar esse
mais-de-gozar. Não se trata para o analista de adaptar o sujeito a uma realidade que só é
fantasma nem de restituir nele o funcionamento do princípio do prazer, de assegurar a
6

regulação psíquica. O analista também não é o representante do princípio da realidade,


uma vez que esse é apenas o circuito de evitação do que faz fracassar o princípio do prazer.
31. Se o Estado hoje intervém nesse campo, é em nome de algo como a defesa do consumidor.
É lógico que ele comece por alterar o produto em questão?
32. É o motivo pelo qual nossa resposta, na minha opinião, deve ser de dupla face.
33. Em primeiro lugar, o efeito terapêutico não se estende a todo o campo freudiano, mas é, na
verdade, um subproduto, e mesmo um subconjunto da psicanálise. Então, inverterei o
esquema que nos é proposto. Do ponto de vista da psicanálise, a psicoterapia é um uso
restringido [menor] dos efeitos analíticos. É possível que a terapêutica seja tudo o que o
Estado pode perceber da psicanálise e isso conduzirá o Estado a distinguir na psicanálise
sua parte útil e sua parte luxuosa.
34. Mais interessante, no entanto, é o segundo ponto, nossa responsabilidade de Escola: a de
fazer saber ao público o que ele tem direito de esperar de um psicanalista. Isto é, se é
preciso falar em termos de mercado, de restabelecer a autenticidade de nosso produto/ Daí
a questão muito precisa sobre a qual é preciso trabalhar: O que podemos traduzir da ética
da psicanálise em termos de deontologia v? O que podemos dizer ao público e ao Estado
dos deveres do psicanalista?
35. Primeiro dever do psicanalista: ser um psicanalista. Quem pode dar garantia? Quem pode
garantir de um outro sujeito que
[18]
este chegou como sujeito em seu Isso, respondendo à fórmula” Wo Es war sol Ich
werden”? Quem pode afirmar de um outro que, além das identificações, ele subjetivou seu
ser? Isso só pode ser efeito de uma psicanálise, e uma psicanálise é confidencial. Essa
confidência só pode ser revelada de duas maneiras: ou revelada pelo analista no contexto,
também confidencial, da supervisão, ou revelada pelo sujeito analisando no contexto
confidencial que Lacan chamou o passe, em que um sujeito que estima ter terminado sua
análise transmite o que aprendeu a um coletivo, composto de psicanalistas e outros
psicanalisandos. Disso que é a psicanálise como prática resulta que a garantia de que um
analista é analista só pode ser validamente dada por uma comunidade na qual essa
confidência possa ser avaliada. É o que chamamos, nós, uma Escola. Quanto mais suas
bases são amplas, mais queremos investir-lhe uma presunção de competência, sem que
haja aí também uma garantia absoluta.
36. Segundo dever do psicanalista: indicar ao público o que é um analista, isto é, o que ele não
sabe e o que ele pode prometer. O analista não sabe, isto é, ele não determina a priori o que
você precisa, como algo distinto de qualquer outro. O psicanalista não determina que uma
mulher deve ter filhos, não determina que um homossexual deve necessariamente tornar-se
heterossexual, não determina a questão de saber se é melhor que o filho seja como o pai,
segundo o provérbio “Tal pai, tal filho”, ou se o filho deve opor-se ao pai, segundo o
provérbio “A pai avaro, filho pródigo”. O analista não pode prometer nem a felicidade,
nem a harmonia, nem a plenitude da personalidade, posto que ele visa além do princípio do
prazer. O que ele pode prometer é elucidar o desejo do sujeito. E ajudar a decifrar o que
insiste na existência.
37. Terceiro dever do psicanalista: sua responsabilidade é proporcionar os efeitos analíticos de
acordo com as capacidades do sujeito de suportá-los. O que pode eventualmente conduzir o
7

analista a moderar os efeitos analíticos por razões terapêuticas. Não é todo sujeito que pode
ou deve fazer uma análise, e deixo de lado
[19]
o registro da responsabilidade social do analista. O que ele deve fazer quando se descobre
que para um sujeito, por exemplo, seu mais-de-gozar é intrinsecamente ligado à morte do
Outro? A vida não é para o psicanalista, diferentemente do médico, o valor supremo. Isso
não quer dizer, no entanto, que o psicanalista esteja a serviço da pulsão de morte. Não se
trata de salvar uma vida, trata-se de que a psicanálise de alguém possa continuar. É assim
que é em nome do desejo de saber que o analista pode dar a impressão de fazer da vida um
valor, e sabe que o suicídio é sempre o triunfo do recalque, que o suicídio é a forma
extrema do “não querer saber nada disso”.
38. Eis as duas faces da resposta que os tempos presentes parecem, a meu ver, exigir de nós
em relação ao Estado e ao público.
39. Mas isso não nos deixa quites com a questão clínica presente em “Psicoterapia e
Psicanálise”, pois a fronteira entre a sugestão e a transferência está em toda parte. Jamais
podemos dizer que, de uma vez por todas, não estamos mais na sugestão. A operação
analítica é constantemente recoberta pelos efeitos da identificação. Daí a questão do espaço
cedido à sugestão na realidade da operação analítica. Qual analista pode dizer que jamais
utilizou a investidura que lhe era dada de grande Outro? Bem entendido, diante das
urgências subjetivas, o analista pode e até deve recorrer a esse poder,
 oferecer-se como um ponto fixo, invariável ao psicótico; no momento de desrazão,
 se ele encontra a angústia do obsessivo, sabe recorrer à obediência induzida pela palavra?
 A histérica no limite do suicídio, quem hesitaria em se opor firmemente a uma atuação?
Trata-se de saber, então, para cada estrutura clínica e em cada conjuntura dramática,
qual o uso legítimo do que Lacan chama o significante mestre.
40. O que é terapêutico na operação analítica é o desejo. Em um certo sentido, o desejo é a
saúde. Contra a angústia, é o remédio mais eficaz. A culpa deve-se, fundamentalmente, a
uma renúncia ao desejo. Mas, paradoxalmente, o desejo é aquilo que é contrário a toda
homeostase, ao bem-estar. Como compreender o que é uma terapia que não conduz ao
bem-estar?
41.
i
H. Kohut, Hou' does ana/ysis cure? University of Chicago Press, 1984.
ii
J. Lacan , “Subversion du sujet et dialectique du désir dans ['inconscient freudien (1960)”. Em: Écrits.
Paris: Seuil, 1966, pp. 805, 808, 815, 817 e 907.
iii
- Grafo do Che vuoi acrescentado pelo Prof. Luis Flávio

iv
]. Lacan, Le Séminaire, LivreXVIl, L'envers de la psychanalvse (l969/1970). Paris: Seuil, 1991.
v
Deontologia: conjunto de deveres profissionais do médico estabelecidos em um código específico

Você também pode gostar