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Do modo de existência dos objetos técnicos

(Simondon - 1958)

Tradução de Du mode d’existence des objets techniques (Gilbert Simondon, Paris: Aubier-Montaigne, 2008
[1958]), por Pedro Peixoto Ferreira (tradução) e Christian Pierre Kasper (revisão). Paginação original e notas
dos tradutores (NT) entre colchetes. Notas de rodapé são indicadas no corpo do texto com número entre
parênteses e exibidas, em parágrafo separado (logo após o parágrafo no qual elas ocorrem), entre colchetes
e em tamanho de fonte menor.

[9]
INTRODUÇÃO1

1. Este estudo é animado pela intenção de suscitar uma tomada de consciência do sentido
dos objetos técnicos. A cultura se constituiu como sistema de defesa contra as técnicas; ora,
essa defesa se apresenta como uma defesa do homem, supondo que os objetos técnicos não
contêm realidade humana. Nosso intuito foi mostrar que a cultura ignora, na realidade
técnica, uma realidade humana, e que, para desempenhar plenamente seu papel, a cultura
deve incorporar os seres técnicos enquanto conhecimento e valor. A tomada de consciência
dos modos de existência dos objetos técnicos deve ser efetuada pelo pensamento filosófico,
que deve cumprir aqui um dever análogo àquele que desempenhou na abolição da escravidão
e na afirmação do valor da pessoa humana.

2. A oposição entre a cultura e a técnica, entre o homem e a máquina, é falsa e sem


fundamento; ela esconde apenas ignorância ou ressentimento. Ela mascara atrás de um
humanismo fácil uma realidade rica em esforços humanos e em forças naturais e que constitui
o mundo dos objetos técnicos, mediadores entre a natureza e o homem.

3. A cultura trata o objeto técnico como o homem trata o estrangeiro quando se deixa
levar pela xenofobia primitiva. O misoneísmo orientado contra as máquinas é menos um ódio
pela novidade do que uma recusa da realidade estrangeira. Ora, esse ser estrangeiro é ainda
humano, e a cultura completa é aquilo que permite descobrir o estrangeiro como humano. Da
mesma forma, a máquina é a estrangeira; é a estrangeira na qual está aprisionado algo de
humano, desconhecido, materializado, escravizado, mas ainda humano. A mais forte causa
de alienação no mundo contemporâneo reside nesse desconhecimento da máquina, que não
é uma alienação causada pela máquina, mas pelo não-conhecimento de sua [10] natureza e

1
[NT. A tradução desta Introdução foi publicada no décimo primeiro número da revista Nada (Lisboa,
2008)].
de sua essência, pela sua ausência do mundo das significações e por sua omissão no quadro
dos valores e conceitos que participam da cultura.

4. A cultura é desequilibrada porque ela reconhece certos objetos, como o objeto


estético, e lhes atribui cidadania no mundo das significações, e ao mesmo tempo rechaça
outros objetos, em particular os objetos técnicos, no mundo sem estrutura daquilo que não
possui significações, mas apenas um uso, uma função útil. Diante dessa recusa defensiva,
pronunciada por uma cultura parcial, os homens que conhecem os objetos técnicos e sentem
sua significação buscam justificar seu julgamento atribuindo ao objeto técnico o único
estatuto atualmente valorizado além daquele de objeto estético, aquele de objeto sagrado.
Nasce então um tecnicismo intemperante que não passa de uma idolatria da máquina e,
através dessa idolatria, por meio de uma identificação, uma aspiração tecnocrata ao poder
incondicional. O desejo de poder consagra a máquina como meio de supremacia e faz dela o
elixir moderno. O homem que quer dominar seus semelhantes suscita a máquina andróide.
Diante dela, ele abdica de sua humanidade e a delega. Ele busca construir a máquina de
pensar, sonhando poder construir a máquina de querer, a máquina de viver, para ficar atrás
dela sem angústia, liberado de todo perigo, eximido de todo sentimento de fraqueza e
triunfante mediante sua invenção. Ora, nesse caso, a máquina que a imaginação torna esse
duplo do homem que é o robô desprovido de interioridade, representa de maneira bem
evidente e inevitável um ser puramente mítico e imaginário.

5. Queríamos precisamente mostrar que o robô não existe, que ele não é uma máquina
da mesma forma como uma estátua não é um ser vivo, mas apenas um produto da imaginação
e da fabricação fictícia, da arte da ilusão. No entanto, a noção da máquina que existe na
cultura atual incorpora em ampla medida essa representação mítica do robô. Um homem
culto não se permitiria falar dos objetos ou personagens pintados sobre uma tela como
verdadeiras realidades, tendo uma interioridade, uma vontade boa ou má. Esse mesmo
homem fala, no entanto, das máquinas que ameaçam o homem como se atribuísse a esses
objetos uma alma e uma existência separada, autônoma, que lhes conferisse sentimentos e
intenções para com o homem.

6. A cultura comporta assim duas atitudes contraditórias com relação aos objetos
técnicos: por um lado, ela os trata como puros [11] conjuntos de matéria, desprovidos de
verdadeiro significado e apresentando apenas utilidade. Por outro lado, ela supõe que esses
objetos são também robôs e que eles são animados por intenções hostis com relação ao
homem, ou representam para ele um perigo permanente de agressão, de insurreição. Julgando
ser bom conservar o primeiro caráter, ela quer impedir a manifestação do segundo e fala em
colocar as máquinas a serviço do homem, crendo encontrar na redução à escravidão um meio
seguro de impedir qualquer rebelião.

7. De fato, essa contradição inerente à cultura provém da ambigüidade das idéias


relativas ao automatismo, nas quais se esconde um verdadeiro erro lógico. Os idólatras da
máquina apresentam geralmente o grau de perfeição de uma máquina como proporcional ao
grau de automatismo. Ultrapassando aquilo que a experiência mostra, eles supõem que, por
um crescimento e um aperfeiçoamento do automatismo, chegaríamos a reunir e interconectar
todas as máquinas entre si de maneira a constituir uma máquina de todas as máquinas.

8. Ora, na verdade o automatismo é um grau bastante baixo de perfeição técnica. Para


tornar uma máquina automática, é preciso sacrificar várias possibilidades de funcionamento,
vários usos possíveis. O automatismo – e sua utilização sob a forma de organização industrial
que chamamos de automação – possui uma significação econômica ou social mais do que
uma significação técnica. O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que,
poderíamos dizer, eleva o grau de tecnicidade, corresponde não a um aumento do
automatismo mas, ao contrário, ao fato de o funcionamento de uma máquina guardar uma
certa margem de indeterminação. É essa margem que permite à máquina ser sensível a uma
informação exterior. É por essa sensibilidade das máquinas à informação que um conjunto
técnico pode se realizar, muito mais do que por um aumento do automatismo. Uma máquina
puramente automática, completamente fechada sobre si mesma num funcionamento pré-
determinado, não poderia oferecer mais que resultados sumários. A máquina dotada de alta
tecnicidade é uma máquina aberta, e o conjunto das máquinas abertas supõe o homem como
organizador permanente, como intérprete vivo das máquinas umas com relação às outras.
Longe de ser o vigia de um grupo de escravos, o homem é o organizador permanente de uma
sociedade dos objetos técnicos que precisam dele como os músicos precisam do maestro. O
maestro da orquestra só pode reger os músicos porque ele interpreta, como eles e tão [12]
intensamente quanto todos eles, a peça executada. Ele acalma ou apressa os músicos, mas é
também acalmado e apressado por eles; de fato, através dele, a orquestra acalma e apressa
cada músico. Ele é para cada um deles a forma movente e atual do grupo em sua existência
presente; ele é o intérprete mútuo de todos com relação a todos. Assim, o homem tem por
função ser o coordenador e o inventor permanente das máquinas que estão à sua volta. Ele
está entre as máquinas que operam com ele.

9. A presença do homem às máquinas é uma invenção perpetuada. Isso que reside nas
máquinas é algo da realidade humana, do gesto humano fixado e cristalizado em estruturas
que funcionam. Essas estruturas precisam ser sustentadas no curso de seu funcionamento, e
a maior perfeição coincide com a maior abertura, com a maior liberdade de funcionamento.
As máquinas de calcular modernas não são puros autômatos; elas são seres técnicos que,
acima de seus automatismos de adição (ou de decisão pelo funcionamento de basculadores
elementares), possuem possibilidades muito vastas de comutação de circuitos, que permitem
codificar o funcionamento da máquina restringindo sua margem de indeterminação. É graças
a essa margem primitiva de indeterminação que uma mesma máquina pode extrair raízes
cúbicas, ou traduzir um texto simples composto de um pequeno número de palavras e de
formas de uma língua para outra.

10. É ainda por meio dessa margem de indeterminação, e não pelos automatismos, que as
máquinas podem ser agrupadas em conjuntos coerentes, trocar informação umas com as
outras por meio desse coordenador que é o intérprete humano. Mesmo quando a troca de
informação é direta entre duas máquinas (como entre um oscilador piloto e um outro
oscilador sincronizado por impulsões), o homem intervém como ser que regula a margem de
indeterminação a fim de que ela seja adaptada à melhor troca possível de informação.
11. Ora, poderíamos nos perguntar qual homem pode realizar em si a tomada de
consciência da realidade técnica e introduzi-la na cultura. Essa tomada de consciência
dificilmente pode ser realizada por aquele que é ligado a uma só máquina pelo trabalho e pela
fixidez dos gestos cotidianos; a relação de uso não é favorável à tomada de consciência, pois
seu recomeço habitual esfuma no estereótipo dos gestos adaptados a consciência das
estruturas e dos funcionamentos. O fato de governar uma empresa utilizando [13] máquinas,
ou a relação de propriedade, não é mais útil do que o trabalho para essa tomada de
consciência: ele cria pontos de vista abstratos sobre a máquina, julgada pelo seu preço e pelos
resultados de seu funcionamento mais do que em si mesma. O conhecimento científico, que
vê em um objeto técnico a aplicação prática de uma lei teórica, tampouco está no nível do
domínio técnico. Essa tomada de consciência pareceria antes poder ser o feito do engenheiro
de organização, que seria como o sociólogo e o psicólogo das máquinas, vivendo no meio
dessa sociedade de seres técnicos da qual ele é a consciência responsável e inventiva.

12. Uma verdadeira tomada de consciência das realidades técnicas apreendidas em sua
significação corresponde a uma pluralidade aberta de técnicas. Não poderia ser de outra
forma, pois um conjunto técnico mesmo pouco estendido compreende máquinas cujos
princípios de funcionamento dependem de áreas científicas muito diferentes. A
especialização dita técnica geralmente corresponde a preocupações exteriores aos objetos
técnicos propriamente ditos (relações com o público, forma particular de comércio) e não a
uma espécie de esquemas de funcionamento incluídos nos objetos técnicos; é a
especialização segundo direções exteriores às técnicas que cria a estreiteza de visão
censurada nos técnicos pelo homem culto que pretende se distinguir deles: trata-se de uma
estreiteza de intenções, de fins, muito mais do que de uma estreiteza de informação ou de
intuição das técnicas. São muito raras atualmente as máquinas que não são em alguma medida
mecânicas, térmicas e elétricas ao mesmo tempo.

13. Para devolver à cultura o caráter verdadeiramente geral que ela perdeu, é preciso
reintroduzir nela a consciência da natureza das máquinas, de suas relações mútuas e com o
homem, e dos valores implicados nessas relações. Essa tomada de consciência exige a
existência, ao lado do psicólogo e do sociólogo, do tecnólogo ou mecanólogo. Além disso,
os esquemas fundamentais de causalidade e de regulação que constituem uma axiomática da
tecnologia devem ser ensinadas de maneira universal, como são ensinados os fundamentos
da cultura literária. A iniciação às técnicas deve ser colocada sobre o mesmo plano que a
educação científica; ela é tão desinteressada quanto a prática das artes, e domina tanto as
aplicações práticas quanto a física teórica; ela pode atingir o mesmo grau de abstração e de
simbolismo. Uma criança deveria saber o que é uma [14] auto-regulação ou uma reação
positiva como ela conhece os teoremas matemáticos.

14. Essa reforma da cultura, procedendo por alargamento e não por destruição, poderia
devolver à cultura atual o poder regulador verdadeiro que ela perdeu. Base de significações,
de meios de expressão, de justificações e de formas, uma cultura estabelece entre aqueles que
a possuem uma comunicação reguladora; saindo da vida do grupo, ela anima os gestos
daqueles que assumem as funções de comando, fornecendo-lhes normas e esquemas. Ora,
antes do grande desenvolvimento das técnicas, a cultura incorporava as técnicas usuais, na
forma de esquemas, símbolos, qualidades, analogias. Ao invés disso, a cultura atual
permanece presa aos esquemas ultrapassados das técnicas artesanais e agrícolas dos séculos
passados, esquemas que servem de mediadores entre os grupos e seus chefes, impondo, por
causa de sua inadequação às técnicas atuais, uma distorção fundamental. O poder se torna
literatura, arte de opinião, defesa baseada em verossimilhanças, retórica. As funções
diretrizes são falsas porque não existe mais entre a realidade governada e os seres que
governam um código adequado de relações: a realidade governada comporta homens e
máquinas; o código repousa apenas sobre a experiência do homem trabalhando com
ferramentas, ela mesma enfraquecida e distante porque aqueles que empregam o código não
acabam, como Cincinato, de largar o arado. O símbolo se reduz a simples fórmula de
linguagem, o real está ausente. Uma relação reguladora de causalidade circular não pode se
estabelecer entre o conjunto da realidade governada e a função de autoridade: a informação
não chega mais porque o código se tornou inadequado ao tipo de informação que ele deveria
transmitir. Uma informação que exprimirá a existência simultânea e correlativa dos homens
e das máquinas deve comportar os esquemas de funcionamento das máquinas e os valores
que eles implicam. É preciso que a cultura, especializada e empobrecida, volte a ser geral.
Essa extensão da cultura, suprimindo uma das principais fontes de alienação e restabelecendo
a informação reguladora, possui um valor político e social: ela pode dar ao homem meios
para pensar sua existência e sua situação em função da realidade que o rodeia. Essa obra de
alargamento e aprofundamento da cultura também tem um papel propriamente filosófico a
desempenhar pois ela conduz à crítica de um certo número de mitos [15] e de estereótipos,
como aquele do robô, ou dos autômatos perfeitos a serviço de uma humanidade preguiçosa
e saciada.

15. Para operar essa tomada de consciência podemos tentar definir o objeto técnico em si
mesmo pelo processo de concretização e de sobredeterminação funcional que lhe dá sua
consistência ao termo de uma evolução, provando que ele não poderia ser considerado um
puro utensílio. As modalidades dessa gênese permitem apreender os três níveis do objeto
técnico e sua coordenação temporal não dialética: o elemento, o indivíduo, o conjunto.

16. O objeto técnico sendo definido por sua gênese, é possível estudar as relações entre o
objeto técnico e as outras realidades, em particular o homem adulto e a criança.

17. Enfim, considerado como objeto de um julgamento de valores, o objeto técnico pode
suscitar atitudes muito diferentes conforme ele seja tomado ao nível do elemento, ao nível
do indivíduo ou ao nível do conjunto. Ao nível do elemento, seu aperfeiçoamento não
introduz nenhum transtorno que gere angústia por entrar em conflito com os hábitos
adquiridos: é o clima de otimismo do século XVIII, introduzindo a idéia de um progresso
contínuo e indefinido, trazendo uma melhoria constante da condição humana. Ao contrário,
o indivíduo técnico se torna durante um tempo o adversário do homem, seu concorrente,
porque o homem centralizava em si a individualidade técnica quando só existiam as
ferramentas; a máquina toma o lugar do homem porque o homem realizava uma função de
máquina, de portador de ferramentas. A essa fase corresponde uma noção dramática e
apaixonada do progresso, tornando-se violação da natureza, conquista do mundo, captação
das energias. Essa vontade de potência se exprime através da desmedida tecnicista e
tecnocrática da era da termodinâmica, que tem um aspecto ao mesmo tempo profético e
cataclísmico. Enfim, no nível dos conjuntos técnicos do século XX, a energética
termodinâmica é substituída pela teoria da informação, cujo conteúdo normativo é
eminentemente regulador e estabilizador: o desenvolvimento das técnicas aparece como uma
garantia de estabilidade. A máquina como elemento do conjunto técnico se torna aquilo que
aumenta a quantidade de informação, aquilo que aumenta a neguentropia, aquilo que se opõe
à degradação da energia: a máquina, obra de organização, de informação, é, como a vida e
com a vida, aquilo que se opõe à desordem, ao nivelamento de todas as coisas que tende a
privar o universo de poderes de mudança. A máquina é aquilo pelo qual [16] o homem se
opõe à morte do universo; ela ralenta, como a vida, a degradação da energia, e se torna
estabilizadora do mundo.

18. Essa modificação do olhar filosófico sobre o objeto técnico anuncia a possibilidade
de uma introdução do ser técnico na cultura: essa integração, que não pôde se operar nem no
nível dos elementos nem no nível dos indivíduos de maneira definitiva, o poderá, com maior
probabilidade de estabilidade, no nível dos conjuntos; a realidade técnica tornada reguladora
poderá se integrar à cultura, reguladora por essência. Essa integração não poderia se fazer
senão por adição quando a tecnicidade residia nos elementos e por arrombamento e revolução
quando a tecnicidade residia nos novos indivíduos técnicos; hoje, a tecnicidade tende a residir
nos conjuntos; ela pode então se tornar um fundamento da cultura à qual ela trará um poder
de unidade e de estabilidade, ao torná-la adequada à realidade que ela exprime e que ela
regula.

CAPÍTULO I – Gênese do objeto técnico: o processo de


concretização
[19]

I. – OBJETO TÉCNICO ABSTRATO E OBJETO TÉCNICO CONCRETO

O objeto técnico obedece a uma gênese, mas é difícil definir a gênese de cada objeto técnico,
pois a individualidade dos objetos técnicos se modifica no curso de sua gênese; só
dificilmente podemos definir os objetos técnicos por seu pertencimento a uma espécie
técnica; as espécies são fáceis de distinguir sumariamente, para o uso prático, enquanto
aceitamos apreender o objeto técnico pelo fim prático ao qual ele responde; mas trata-se aqui
de uma especificidade ilusória, pois nenhuma estrutura fixa corresponde a um uso definido.
Um mesmo resultado pode ser obtido a partir de funcionamentos e de estruturas muito
diferentes: um motor a vapor, um motor a gasolina, uma turbina, um motor a mola ou a peso
são todos igualmente motores; no entanto, há mais analogia real entre um motor a mola e um
arco ou uma besta do que entre esse mesmo motor e um motor a vapor; um relógio de pêndulo
possui um motor análogo a um guincho, enquanto que um relógio elétrico é análogo a uma
campainha ou a um vibrador. O uso reúne estruturas e funcionamentos heterogêneos sob
gêneros e espécies que tiram sua significação da relação entre esse funcionamento e um outro
funcionamento, aquele do ser humano na ação. Portanto, isso a que damos um nome único,
como, por exemplo, aquele do motor, pode ser múltiplo no instante e pode variar no tempo
mudando de individualidade.

Entretanto, ao invés de partir da individualidade do objeto técnico, ou até de sua


especificidade, que é muito instável, para tentar [20] definir as leis de sua gênese no quadro
dessa individualidade ou dessa especificidade, é preferível inverter o problema: é a partir dos
critérios da gênese que poderemos definir a individualidade e a especificidade do objeto
técnico: o objeto técnico individual não é tal ou tal coisa, dada hic et nunc, mas aquilo de que
há gênese2 (1). A unidade do objeto técnico, sua individualidade, sua especificidade, são as
características de consistência e de convergência de sua gênese. A gênese do objeto técnico
faz parte de seu ser. O objeto técnico é aquilo que não é anterior a seu devir, mas presente a
cada etapa desse devir; o objeto técnico unitário é unidade de devir. O motor a gasolina não
é tal ou tal motor dado no tempo e no espaço, mas o fato de que há uma seqüência, uma
continuidade que vai dos primeiros motores até estes que nós conhecemos e que estão ainda
em evolução. Por essa razão, como numa linhagem filogenética, um estágio definido de
evolução contém em si estruturas e esquemas dinâmicos que estão no princípio de uma
evolução das formas. O ser técnico evolui por convergência e por adaptação a si mesmo; ele
se unifica interiormente segundo um princípio de ressonância interna. O motor de automóvel
atual não é o descendente do motor de 1910 apenas porque o motor de 1910 era aquele que
construíam nossos antepassados. Ele tampouco é seu descendente porque ele é mais
aperfeiçoado relativamente ao uso; de fato, para tal ou tal uso, um motor de 1910 permanece
superior a um motor de 1956. Por exemplo, ele pode suportar um aquecimento considerável
sem engripar ou fundir, sendo construído com folgas maiores e sem ligas frágeis como o
metal patente [NT: régule]; ele é mais autônomo, possuindo uma ignição por magneto. [21]
Motores antigos funcionam sem falhar em navios de pesca após terem sido retirados de um
automóvel fora de uso. É por um exame interior dos regimes de causalidade e das formas
enquanto adaptadas a esses regimes de causalidade que o motor de automóvel atual é definido
como posterior ao motor de 1910. Num motor atual, cada peça importante é tão interligada
às outras por trocas recíprocas de energia que ela não pode ser diferente do que ela é. A forma
da câmara de explosão, a forma e as dimensões das válvulas, a forma do pistão fazem parte
de um mesmo sistema no qual existe uma multidão de causalidades recíprocas. A tal forma
2
Segundo modalidades determinadas que distinguem a gênese do objeto técnico daquelas dos outros tipos
de objetos: objeto estético, ser vivo. Essas modalidades específicas da gênese devem ser distinguidas de uma
especificidade estática que poderíamos estabelecer após a gênese, considerando as características de
diversos tipos de objetos; o emprego do método genético tem precisamente por objeto evitar o uso de um
pensamento classificatório intervindo após a gênese para repartir a totalidade dos objetos em espécies e em
gêneros adequados ao discurso. A evolução passada de um ser técnico permanece essencialmente nesse ser
sob forma de tecnicidade. O ser técnico, portador de tecnicidade segundo o procedimento que chamaremos
analético, só pode ser o objeto de um conhecimento adequado se este último apreende nele o sentido
temporal de sua evolução; esse conhecimento adequado é a cultura técnica, distinta do saber técnico que se
limita a apreender, na atualidade, os esquemas isolados do funcionamento. As relações que existem no nível
da tecnicidade, entre um objeto técnico e um outro, são tanto horizontais como verticais, por isso um
conhecimento que procede por gênero e espécies não convém: nós tentaremos indicar em qual sentido a
relação entre os objetos técnicos é transdutiva.
desses elementos corresponde uma certa taxa de compressão, que exige ela mesma um grau
determinado de antecipação à ignição; a forma do cabeçote, o metal de que ele é feito, em
relação com todos os outros elementos do ciclo, produzem uma certa temperatura dos
eletrodos da vela de ignição; por sua vez, essa temperatura reage sobre as características da
ignição e, portanto, de todo o ciclo. Poderíamos dizer que o motor atual é um motor concreto,
enquanto que o motor antigo é um motor abstrato. No motor antigo, cada elemento intervém
em um certo momento no ciclo e depois presume-se que não age mais sobre os outros
elementos; as peças do motor são como pessoas que trabalhariam cada uma à sua vez mas
não se conheceriam umas às outras.

É, aliás, exatamente assim que explicamos aos alunos o funcionamento dos motores térmicos,
cada peça sendo isolada das outras como os traços que a representam no quadro negro, no
espaço geométrico partes extra partes. O motor antigo é um conjunto lógico de elementos
definidos por sua função completa e única. Cada elemento pode realizar sua função própria
da melhor forma possível se ele é como um instrumento perfeitamente finalizado, orientado
inteiramente para a realização dessa função. Uma troca permanente de energia entre dois
elementos aparece como uma imperfeição se esta troca não faz parte do funcionamento
teórico; assim, existe uma forma primitiva do objeto técnico, a forma abstrata, na qual cada
unidade teórica e material é tratada como um absoluto, acabada numa perfeição intrínseca
que necessita, para seu funcionamento, ser constituída em sistema fechado; a integração ao
conjunto oferece, nesse caso, uma série de problemas a resolver, que são ditos técnicos mas
que, na verdade, são problemas de compatibilidade entre conjuntos já dados.

[22] Esses conjuntos já dados devem ser mantidos, conservados apesar de suas influências
recíprocas. Então aparecem estruturas particulares que podemos nomear, para cada unidade
constituinte, estruturas de defesa: o cabeçote do motor térmico a combustão interna se cobre
de abas de resfriamento, particularmente desenvolvidas na região das válvulas, submissa a
trocas térmicas intensas e a pressões elevadas. Essas abas de resfriamento, nos primeiros
motores, são como que acrescentadas do exterior ao cilindro e ao cabeçote teóricos,
geometricamente cilíndricos; elas assumem apenas uma função, aquela de resfriamento. Nos
motores recentes, essas abas desempenham, além disso, um papel mecânico, se opondo como
nervuras a uma deformação do cabeçote sob a pressão dos gases; nessas condições, não
podemos mais distinguir a unidade volumétrica (cilindro, cabeçote) e a unidade de dissipação
térmica; se suprimíssemos por serração ou lixamento as abas do cabeçote de um motor com
resfriamento a ar atual, a unidade volumétrica constituída apenas pelo cabeçote não seria
mais viável, mesmo enquanto unidade volumétrica: ela se deformaria sob a pressão dos
gases; a unidade volumétrica e mecânica se tornou coextensiva à unidade de dissipação
térmica, pois a estrutura do conjunto é bivalente: as abas, com relação aos filetes de ar
exterior, constituem uma superfície de resfriamento por trocas térmicas: essas mesmas abas,
enquanto fazem parte do cabeçote, limitam a câmara de explosão por um contorno
indeformável empregando menos metal do que seria necessário em um monobloco sem
nervuras; o desenvolvimento dessa estrutura única não é um compromisso, mas uma
concomitância e uma convergência: um cabeçote nervurado pode ser mais fino do que um
cabeçote liso com a mesma rigidez; ora, por outro lado, um cabeçote fino autoriza trocas
térmicas mais eficazes do que aquelas que poderiam se efetuar através de um cabeçote
grosso; a estrutura bivalente aba-nervura melhora o resfriamento não apenas aumentando a
superfície de trocas térmicas (o que é o próprio da aba enquanto aba) mas também permitindo
um afinamento do cabeçote (o que é o próprio da aba enquanto nervura).

O problema técnico é, portanto, muito mais aquele da convergência das funções em uma
unidade estrutural do que aquele de uma busca de compromissos entre exigências em
conflito. Se o conflito subsiste entre os dois aspectos da estrutura única no caso observado, é
somente enquanto a posição das nervuras correspondendo [23] ao máximo de rigidez não é
necessariamente aquele que convém ao melhor resfriamento, facilitando o escoamento dos
filetes de ar entre as abas quando o veículo está em movimento. Nesse caso, o construtor
pode ser obrigado a conservar um caráter misto incompleto: as abas-nervuras, se elas são
dispostas para o melhor resfriamento, deverão ser mais espessas e mais rígidas do que seriam
se fossem somente nervuras. Se, ao contrário, elas são dispostas de maneira a resolver
perfeitamente o problema de obtenção da rigidez, elas têm uma superfície maior, afim de
recuperar por um desenvolvimento da superfície aquilo que o ralentamento dos filetes de ar
faz perder na troca térmica; enfim, as abas podem ainda ser, em sua própria estrutura, um
compromisso entre as duas formas, o que exige um desenvolvimento maior do que se apenas
uma das funções fosse tomada como fim da estrutura. Essa divergência das direções
funcionais permanece como um resíduo de abstração no objeto técnico, e é a redução
progressiva dessa margem entre as funções das estruturas plurivalentes que define o
progresso de um objeto técnico; é essa convergência que especifica o objeto técnico, pois não
há, numa época determinada, uma pluralidade infinita de sistemas funcionais possíveis; as
espécies técnicas são em número muito mais restrito do que os usos aos quais destinamos os
objetos técnicos; as necessidades humanas se diversificam ao infinito, mas as direções de
convergência das espécies técnicas são em número finito.

O objeto técnico existe, portanto, como tipo específico obtido ao termo de uma série
convergente. Essa série vai do modo abstrato ao modo concreto: ela tende para um estado
que faria do ser técnico um sistema inteiramente coerente consigo mesmo, inteiramente
unificado.

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