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pra quem faz questão das melhores faculdades

FUVEST Resolvida – 10/Janeiro/2016


2a Fase – Redação
UTOPIA (de ou-topia, lugar inexistente ou, segundo outra leitura, de eu-topia, lugar feliz).
Thomas More deu esse nome a uma espécie de romance filosófico (1516), no qual relatava as condições de vida em uma ilha
imaginária denominada Utopia: nela, teriam sido abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa, entre outros fatores
capazes de gerar desarmonia social. Depois disso, esse termo passou a designar não só qualquer texto semelhante, tanto anterior
como posterior (como a República de Platão ou a Cidade do Sol de Campanella), mas também qualquer ideal político, social ou
religioso que projete uma nova sociedade, feliz e harmônica, diversa da existente. Em sentido negativo, o termo passou também
a ser usado para designar projeto de natureza irrealizável, quimera, fantasia.
Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. (Adaptado)

A utopia nos distancia da realidade presente, ela nos Cidade Prevista


torna capazes de não mais perceber essa realidade como
natural, obrigatória e inescapável. Porém, mais importante (...)
ainda, a utopia nos propõe novas realidades possíveis. Ela é Irmãos, cantai esse mundo
a expressão de todas as potencialidades de um grupo que se que não verei, mas virá
encontram recalcadas pela ordem vigente. um dia, dentro em mil anos,
talvez mais... não tenho pressa.
Paul Ricoeur. (Adaptado) Um mundo enfim ordenado,
uma pátria sem fronteiras,
A desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas sem leis e regulamentos,
estático, em que o próprio homem se transforma em coisa. uma terra sem bandeiras,
Iríamos, então, nos defrontar com o maior paradoxo sem igrejas nem quartéis,
imaginável: o do homem que, tendo alcançado o mais alto sem dor, sem febre, sem ouro,
grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem um jeito só de viver,
nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos. mas nesse jeito a variedade,
O homem iria perder, com o abandono das utopias, a a multiplicidade toda
vontade de construir a história e, também, a capacidade de que há dentro de cada um.
compreendê-la. Uma cidade sem portas,
Karl Mannheim. (Adaptado)
de casas sem armadilha,
um país de riso e glória
Acredito que se pode viver sem utopias. Acho até que é como nunca houve nenhum.
melhor, porque as utopias são ao mesmo tempo ineficazes Este país não é meu
e perigosas. Ineficazes quando permanecem como sonhos; nem vosso ainda, poetas.
perigosas quando se quer realizá-las. Mas ele será um dia
André ComteSponville. (Adaptado)
o país de todo homem.

Carlos Drummond de Andrade

CPV FUVEST2F2016
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A utopia não é apenas um gentil projeto difícil de se realizar, como quer uma definição simplista. Mas se nós tomarmos a
palavra a sério, na sua verdadeira definição, que é aquela dos grandes textos fundadores, em particular a Utopia de Thomas
More, o denominador comum das utopias é seu desejo de construir aqui e agora uma sociedade perfeita, uma cidade ideal,
criada sob medida para o novo homem e a seu serviço. Um paraíso terrestre que se traduzirá por uma reconciliação geral:
reconciliação dos homens com a natureza e dos homens entre si. Portanto, a utopia é a desaparição das diferenças, do conflito
e do acaso: é, assim, um mundo todo fluido — o que supõe um controle total das coisas, dos seres, da natureza e da história.
Desse modo, a utopia, quando se quer realizá-la, torna-se necessariamente totalitária, mortal e até genocida. No fundo, só
a utopia pode suscitar esses horrores, porque apenas um empreendimento que tem por objetivo a perfeição absoluta, o acesso
do homem a um estado superior quase divino, poderia se permitir o emprego de meios tão terríveis para alcançar seus fins.
Para a utopia, trata-se de produzir a unidade pela violência, em nome de um ideal tão superior que justifica os piores abusos
e o esquecimento da moral reconhecida. (Frédéric Rouvillois. – Adaptado)
O conjunto de excertos acima contém um verbete, que traz uma definição utopia de seguido de outros cinco textos que
apresentam diferentes reflexões sobre o mesmo assunto. Considerando as ideias neles contidas, além de outras informações
que você julgue pertinentes, redija uma dissertação em prosa, na qual você exponha o seu ponto de vista sobre o tema –
As utopias: indispensáveis, inúteis ou nocivas?
COMENTÁRIO DO CPV
A prova de Redação da 2a fase da Fuvest 2016 abordou o tema: As utopias: indispensáveis, inúteis ou nocivas?
A fim de auxiliar os candidatos, a Banca Examinadora selecionou uma coletânea de seis textos:
— o primeiro apresentou uma definição do termo “utopia” explicitando, também, as ideias centrais da obra de Thomas More, cujo título
coincide com o tema de redação deste ano;
— o segundo abordou uma ideia positiva de utopia, uma vez que esta seria uma forma de imaginar a ordem vigente em uma sociedade de
maneira distinta e, portanto, melhor;
— o terceiro apontou para um problema significativo da ausência de utopias – o homem não buscar transformar a sua História, vivendo, desse modo,
sempre do mesmo jeito; assim sendo, o ser humano poderia sofrer um processo oposto ao da racionalização do mundo, o que poderia reificá-lo;
— o quarto apresentou a ideia de perigo e de ineficácia das utopias; se, por um lado, não for colocada em prática, a utopia nunca passará de
sonho; se, por outro lado, tentar transgredir a ordem vigente, poderá ser um perigo ao “status quo”;
— o quinto é um poema de Carlos Drummond de Andrade, retirado de A Rosa do Povo; nesse poema, o eu lírico explicita a utopia de crer
que, um dia, haverá um mundo em que haja igualdade social a ponto de não existirem mais fronteiras, nem instituições, somente alegria e
multiplicidade social;
— o sexto refere-se a uma perspectiva negativa das utopias – a utilização da violência como instrumento de aplicação delas na prática.
As ideias utópicas surgem como forma de reorganizar uma realidade que não está adequada ao bom convívio social. Assim sendo, quando se
pensa em utopia, não necessariamente se pensa em praticidade, pelo menos não imediata. Se a utopia é indispensável, inútil ou nociva, isso
dependerá dos objetivos dessa utopia e de como ela ajuda ou atrapalha o convívio em sociedade.
Para o candidato que defendeu a importância das utopias, os exemplos a se considerá-las como indispensáveis são incontáveis, vários deles
trabalhados nas aulas de Redação do CPV.
Existe a utopia, por exemplo, de haver um mundo em que o desenvolvimento sustentável de fato exista, um mundo em que a proteção aos recursos
naturais não seja submetida aos interesses econômicos. Entretanto, a atualidade mostra que, no sistema atual, a implementação disso é muito
improvável, pois o conceito de progresso material confunde-se muito com o de progresso social. Apesar disso, é importante haver a persistência
na crença da utopia para que, talvez, um dia, ela deixe de ser uma mera abstração e passe a ser uma realidade palpável.
Diversas vezes, o imediatismo, o individualismo e o pragmatismo da sociedade atual levam grande parte dos seres humanos a descartar tudo
aquilo que, aparentemente, no momento, não tem utilidade prática para a sociedade. Nesse contexto, o papel das universidades, por exemplo,
como instituições que discutem o momento presente e questionam-no a ponto de serem responsáveis por parte das utopias, é visto de maneira
muito simplista.
Os alunos do CPV, ao longo do curso, tiveram vários conceitos que certamente os ajudaram a produzir esta Redação. Um deles é o de ética,
sobretudo em sociedades como a brasileira, em que os fins justificam os meios. Ser ético em uma sociedade como essa é ser utópico, é ser
considerado um ser que acredita em valores que não são praticados pela maioria da sociedade atual. Outros conceitos, como os relacionados a
direitos humanos e democracia, poderiam ajudar o candidato nessa abordagem positiva da existência das utopias. Embora esses direitos e os
princípios democráticos sejam, muitas vezes, apenas um discurso, a existência e a tentativa de aplicabilidade deles, mesmo que em pequena escala,
já é um modo de tentar progredir, melhorar a situação presente. O fato de não dar certo em muitos casos não significa que sejam ideologias inúteis.
Já o candidato que optasse por abordar as utopias como inúteis ou nocivas poderia ter em mente, por exemplo, o uso da internet. Essa ferramenta,
quando usada inadequadamente para defender utopias, em vez de promover o ciberativismo, pode ajudar a criar discussões vazias em termos de
transformação social. Não se pode esquecer, também, que, para muitos, existe a utopia da superioridade, seja ela racial, social, econômica, política
ou cultural. A ascensão da direita extremista no mundo, atualmente, tende a acreditar que um mundo melhor seria aquele em que algumas raças,
classes sociais, posicionamentos políticos ou mesmo culturas não existissem. Por isso, aumentam os casos de discurso de ódio pela internet,
visto que há pessoas que querem concretizar sua ideologia de superioridade às custas das desigualdades sociais. Além disso, poder-se-ia pensar
também nas utopias prometidas pelos avanços tecnológicos, que, na prática, desdobraram-se em exploração e até mesmo morte de inocentes,
quando se pensa, por exemplo, nas guerras fomentadas pela indústria bélica. Ademais, os sistemas políticos totalitários, sejam eles de esquerda
ou de direita, almejando a consolidação ou o fim do capitalismo, são exemplos de utopias colocadas em prática e que não levam, necessariamente,
ao progresso social, pelo menos não da maioria da população.
CPV FUVEST2F2016

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