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O texto e suas relações com a História

Todos conhecem as aventuras do Super-homem. Ele não é um terráqueo, mas


chegou à Terra, ainda criança, numa nave espacial, vindo de Crípton, planeta que estava
para ser destruído por uma grande catástrofe. É dotado de poderes sobre-humanos; seus
olhos de raio X permitem ver através de quaisquer corpos, a uma distância infinita; sua
força é ilimitada, possibilitando-lhe escorar pontes prestes a desabar e levantar
transatlânticos; a pressão de suas mãos submete o carbono a temperaturas tão altas que o
transforma em diamante; sua apurada audição permite-lhe escutar o que se fala em
qualquer ponto. Pode voar a uma velocidade igual à da luz e, quando ultrapassa essa
velocidade, atravessa a barreira do tempo e transfere-se para outras épocas; pode
perfurar montanhas com o próprio corpo; pode fundir metais com o olhar. Além disso,
tem uma série de qualidades: beleza, bondade, humildade. Sua vida é dedicada à causa
do bem.
O Super-homem vive entre os homens sob a aparência do jornalista Clark Kent,
que é um tipo medroso, tímido, pouco inteligente, míope. Clark Kent namora Lois Lane,
sua colega, que, na verdade, o despreza e ama loucamente o Super-homem.
[...] Todo texto é um pronunciamento sobre uma dada realidade. Ao fazer esse
pronunciamento, o produtor do texto trabalha com as ideias de seu tempo e da sociedade
em que vive. Com efeito, as concepções, as ideias, as crenças, os valores não são tirados
do nada, mas surgem das condições de existência. As concepções racistas, por exemplo,
aparecem numa época em que certos países, necessitando de mão de obra, iniciam a
escravização de negros. A ideia de que certas raças são inferiores a outras não é uma
maldade dos brancos, mas uma justificativa apaziguadora da consciência dos senhores
de escravos. Essas concepções ganham um impulso maior quando os países europeus,
precisando de matérias-primas, iniciam o processo de colonização da África e da Ásia.
A colonização é, assim, justificada por um belo ideal: expandir a civilização.
Todo texto assimila as ideias da sociedade e da época em que foi produzido.
Neste momento, você poderia estar dizendo que o texto do Super-homem prova
exatamente o contrário, pois nada tem ele a ver com a realidade histórica, onde não
existe super-homens. Quando se afirma que os textos se relacionam com a história, não
se quer dizer que eles narram fatos históricos de um país, mas que revelam os ideais, as
concepções, os anseios e os temores de um povo numa determinada época. Nesse
sentido, a narrativa do Super-homem mostra os anseios dos homens das camadas
médias das sociedades industrializadas do século XX, massacrados por um trabalho
monótono e por uma vida sem qualquer heroísmo. Esse homem, mediocrizado e
inferiorizado, nutre a esperança de tornar-se um ser todo-poderoso assim como Clark
Kent, que se transforma em Super-homem. As condições de impotência do homem
diante das pressões sociais geram um ideal de onipotência refletido na narrativa do
Super-homem.
Além disso, as concepções de sociedade em que esse texto foi produzido estão
presentes na ideia de Bem.
Como nota Umberto Eco, famoso autor italiano, um indivíduo dotado dos
poderes do Super-homem poderia acabar com a fome, a miséria e as injustiças do
mundo. No entanto, ela não faz nada disso. Ao contrário, o bem que pratica é a
caridade, e o mal que combate é o atentado à propriedade privada. Lutar contra o mal é
assim combater ladrões. Dedica sua vida a isso.
Como se vê, as ideias produzidas num determinado tempo, numa dada época
estão presentes no texto. Cabe lembrar, no entanto, que uma sociedade não produz uma
única forma de ver a realidade. Como ela é dividida pelos interesses antagônicos dos
diferentes grupos sociais, produz ideias contrárias entre si. A mesma sociedade que gera
as ideias racistas produz ideias antirracistas. Por isso, constroem-se nessa sociedade
textos que fazem pronunciamentos antagônicos com relação aos mesmos dados da
realidade.
Há algumas ideias que predominam sobre suas contrárias numa dada época. Elas
refletem os interesses dos grupos sociais dominantes. Fazer uma reflexão pessoal é
analisar essas ideias de maneira crítica, verificando até que ponto elas têm apoio na
realidade.
Para entender com mais eficácia o sentido de um texto, é preciso verificar as
concepções correntes na época e na sociedade em que foi produzido. Assim, não se
corre o risco de considerar, por exemplo, como pronunciamentos idênticos um texto
sobre a democracia ateniense e um sobre a democracia nas sociedades capitalistas
modernas, que, na verdade, tratam de concepções distintas. As ideias de uma época
estão presentes nos significados dos textos.
Cabe lembrar ainda que as ideias de uma época são veiculadas por textos, uma
vez que não existem ideias puras, ou seja, não transmitidas linguisticamente. Assim,
analisar as ideias de um texto é estudar o diálogo entre textos, em que um assimila e
registra as ideias presentes nos outros.

FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: leitura e
redação. São Paulo: Ática, 1990. p.27-28.

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