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INTRODUÇÃO À ÉTICA

A CRISE ÁTICA e o SURGIMENTO DA ÉTICA

Atenas, no século V a.C., vê os seguintes eventos colocarem em questão os


fundamentos da moral social:

1. A ascensão da democracia e a positivação do direito

Aristocracia(séc. VII-VI a.C) Democracia (séc. V-IV a.C)


Thesmos Nomos
“Estabelecido de modo permanente” “Convenção”
Origem divina Origem humana
Forma oral Forma escrita
Imutável Mutável
Direito sagrado (vale em si) Direito profano (vale por decisão)
Eunomia Isonomia

2. Multiculturalismo: um outro mundo é possível

a)Guerras médicas
Contato com a civilização asiática e visão positiva da mesma (Heródoto).

b)Colonização
Contato com culturas diferentes na Europa, África e Ásia.

c)Relatos de viagem
Gênero literário que torna conhecidas outras formas de vida.

d)Presença de estrangeiros
Por ser um centro comercial, Atenas possuía um grande número de
estrangeiros residentes – os metecos

A pluralidade de estilos de vida, põe os gregos em crise.


Eles precisam agora, justificar o seu mundo, porque ele deixa de ser visto
como o mundo, é apenas um mundo, um dos vários possíveis.

3. Mercantilização da economia: tudo tem um preço


Atenas torna-se uma potência mercantil, com as oportunidades de riqueza
disseminando o individualismo na sociedade.
Tudo adquire um preço, e o valor das coisas passa a depender dos interesses e
desejos dos indivíduos.

1
4. Guerra do Peloponeso: os fins justificam os meios
“A guerra é uma mestra violenta e desperta nas pessoas paixões que mudam
conforme as circunstâncias do momento.”1
Assassinato, perjúrio, traição tornam-se prática comum entre as facções
democráticas (pró-Atenas) e oligárquicas (pró-Esparta).
“Vingar-se de uma ofensa é mais apreciado do que não haver sido ofendido.
Os juramentos só tem valor no momento em que são feitos.”2
“Assim proliferaram na Hélade todas as formas de perversidade.”3

4.1. A corrupção da linguagem moral


“A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo os
caprichos dos homens:
- a audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao
partido.
- a hesitação prudente se torna covardia dissimulada.
- a moderação se torna fraqueza covarde.
- agir com cautela equivale a inércia.”4
Uma forma de vida perversa perverte os jogos de linguagem tradicionais.

5. O imperialismo: o auto-interesse
No seu empreendimento imperial, os atenienses renunciam à qualquer
justificação moral tradicional , e assumem a visão sofística de justiça:
“A justiça consiste na vantagem do mais forte e de quem governa.”
(Trasímaco)5

Os atenienses exigem que os habitantes da ilha de Melos (neutros) se


submetam ao seu império, pagando-lhes tributo.

Mélios – “Confiamos que, graças ao favor divino, não estaremos em desvantagem,


pois somos homens justos enfrentando homens injustos.”6
Atenienses – “Dos homens sabemos que, por uma imposição da sua própria
natureza, sempre que podem eles mandam. Não criamos esta lei nem fomos os
primeiros a aplicar os seus preceitos; encontramo-la vigente e ela vigorará para
sempre, depois de nós. Nós simplesmente a colocamos em prática. Nós estamos
convencidos de que, vós, se tivésseis a mesma força que nós possuímos, agiríeis do
mesmo modo. Logo, quanto ao favor divino, não nos achamos em desvantagem.” 7
Derrotados, “os mélios se renderam. Os atenienses mataram todos os mélios
em idade militar que capturaram, e reduziram as crianças e mulheres à escravidão.
1
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, III, n. 82.
2
Tucídides, História...III, n. 82.
3
Tucídides História...III, n. 83.
4
Tucídides, História... III, n. 82.
5
Platão, República 343c.
6
Tucídides, História... V, n. 104.
7
Tucídides, História... V, 105.

2
Eles mesmos se estabeleceram em Melos e mandaram vir de Atenas quinhentos
colonos.”8

6. Erosão do ethos tradicional: as coisas não são mais como antigamente


Incapaz de fazer frente à nova realidade, a tradição deixa de fornecer
orientação para a ação.
“A pólis não era mais reta segundo o costume e o modo de viver dos nossos
pais; as leis e os costumes corrompiam-se a um ritmo impressionante.” (Platão,
Carta VII)

7. Conclusão: a cultura relativista


“O homem é medida (metron - critério de avaliação) de todas as coisas.”
Protágoras.
Interpretação de Platão: “Que assim como algo me parece, assim é para mim,
e assim como aparece para ti, assim é para ti.”9
Interpretação de Aristóteles: “O que parece a cada um seguramente tembém é.
Se é assim, segue que a mesma coisa (...) tanto é boa como má (...), uma vez que
muitas vezes uma coisa determinada parece boa a alguns e má a outros; e o critério
(medida/metron) é o que parece a cada indivíduo.”10
Interpretação de Sexto Empírico: “A verdade é algo de relativo, porque tudo o
que parece ou que é crido por alguém, é real em relação a ele.”11
A verdade e o bem são relativos a cada indivíduo ou grupo.
Crise de identidade – “Quem sou eu (nós)?”

7.1. O relativismo cultural no século XX

a. Ruth Benedict, antropóloga


“O reconhecimento da relatividade cultural traz consigo seus próprios valores,
que não precisam ser os das filosofias absolutistas (...). Pelo relativismo chegaremos
a uma fé social mais realista, aceitando como motivos de esperança e como novas
bases para tolerância os padrões de vida coexistentes e igualmente válidos que a
humanidade criou para si mesma a partir das matérias-primas da existência.” 12

a.1. Comentário
“Não é estranho que a professora Benedict, tendo começado seu argumento
proclamando a profunda relatividade de todos os padrões de valor, termine pregando
a tolerância? Se a professora Benedict quer permanecer fiel às seus próprios
princípios, ela tem de reconhecer que o valor da tolerância é estritamente relativo à
sua própria cultura. Mas suponhamos que alguém de uma cultura diferente tenha
8
Tucídides História...V, 116.
9
Platão, Teeteto 152a.
10
Aristóteles, Metafísica 1062b 13.
11
Sexto Empírico apud Guthrie, Os sofistas, p. 173.
12
Ruth Benedict, apud Veatch, p. 66.

3
sido criado acreditando que a tolerância não é uma virtude, mas antes um sinal de
fraqueza e insensatez, sendo a atitude sábia e corajosa uma rígida intolerância para
com todas as divergências das suas próprias normas culturais. O que diria ela?” 13

Tese relativista 1: Todos os valores são relativos a uma cultura determinada.


Tese relativista 2: Não há um padrão supracultural de avaliação de culturas.
Conclusão: A tolerância é um valor supracultural/universal.
Objeção: há uma falácia no raciocínio relativista.

a.2. Benito Mussolini, tirano totalitário


“Se relativismo significa desprezo por categorias fixas e homens que
pretendem ser os portadores de uma verdade objetiva... então não há nada mais
relativista do que as atitudes e a atividade do fascismo... Do fato de que todas as
ideologias são meras ficções, o relativista moderno conclui que todos têm o direito
de criar para si mesmos sua própria ideologia e tentar impô-la com toda a energia de
que são capazes.”14

a.3. Hannah Arendt


“Do mesmo modo como o terror, mesmo em sua forma pré-total e meramente
tirânica, arruína todas as relações entre os homens, também a auto-compulsão do
pensamento ideológico destrói toda relação com a realidade. O preparo [das vítimas
e dos carrascos requeridos pelo regime totalitário] triunfa quando as pessoas perdem
o contato com os seus semelhantes e com a realidade que as rodeia; pois, juntamente
com esses contatos, os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar. O súdito
ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas
aquele para quem já não existe a diferença entre fato e ficção (isto é, a realidade da
experiência) e a diferença entre verdadeiro e falso (isto é, os critérios do
pensamento).”15

Considerações finais
Na ausência da verdade, só há duas vias de solução de conflitos:
a)Quando há simetria de forças, negociação em torno de interesses.
b)Quando há assimetria de forças, uso da violência.

O SURGIMENTO DA ÉTICA

1. Sócrates
Sócrates abandona as reflexões cosmológicas dos pré-socráticos para dedicar-
se a estudar o que é o bem para o ser humano.
“Sócrates trouxe a filosofia do céu à terra.” (Cícero)

13
Veatch, p. 68.
14
Benito Mussolini apud Veatch, p. 67.
15
Hannah Arentd, op. cit., p. 526.

4
2. Platão
“Ao observar os homens que atuavam na política, assim como as leis e os
costumes, quanto mais atentamente eu estudava e mais avançava em idade, tanto
mais difícil me parecia administrar bem os assuntos públicos (...). A cidade já não se
orientava segundo os costumes dos antepassados, e era impossível adquirir outros
novos com alguma facilidade. De outro lado, tanto a lei como os costumes se
corrompiam até o ponto que eu, que a princípio estava cheio de um grande
entusiasmo para trabalhar em atividades públicas, ao observar a situação e ver que
tudo estava à deriva por todos os lados, acabei por nausear-me (...). Então me senti
obrigado a reconhecer, que somente a partir da filosofia verdadeira é possível
distinguir o que é justo, tanto na vida pública como na vida privada.”16

2.1. “A segunda navegação” platônica: a filosofia moral (Ética)


“Segunda navegação é uma metáfora originada da linguagem dos marinheiros
(...): é aquela navegação que alguém empreende quando, ao ficar sem ventos, navega
com os remos.”17
Diante da degeneração da própria cultura moral (a primeira navegação), Platão
empreende a “segunda navegação”, a filosofia moral (Ética).
Moral – comportamento
Ética – disciplina filosófica cujo objeto é a moral.

ELEMENTOS DO FENÔMENO MORAL

1. Liberdade/Subjetividade
“O ser humano é livre, o ser humano é liberdade.”18
“O ser humano está condenado a ser livre. Condenado, pois ele não se criou a
si mesmo, e por outro lado, é livre, já que, uma vez lançado no mundo, é responsável
por tudo que faz.”19
“O ser humano nada é além do que ele se faz. É isso que se denomina
subjetividade. O ser humano é um projeto que se vive enquanto sujeito, e não como
um musgo, um fungo ou uma couve-flor.”20
“Os existencialistas, nos seus romances, descrevem seres que são maus, mas
não porque nasceram assim, como afirma Zola, devido à influência do meio, da
sociedade, por causa de um determinismo orgânico ou psicológico, as pessoas se
sentiriam sossegadas e diriam: pois é, somos assim mesmo, e não há nada que se
possa fazer. Mas o existencialista quando descreve um covarde declara que este
covarde é responsável por sua covardia.”21
16
Platão, Carta VII, 326a.
17
Giovanni Reale, Por uma nova interpretação de Platão, p. 108.
18
Sartre, p. 33.
19
Sartre, p. 33.
20
Sartre, p. 26.
21
Sartre, p. 44.

5
1.1. Má-fé
“Eu sempre posso escolher, mas tenho de saber que se não escolho, isto
também é uma escolha.”22
“Ao definirmos a situação humana como sendo de uma escolha livre, sem
desculpas e sem auxílios, todo ser humano que se refugia por trás da desculpa de
suas paixões, todo ser humano que inventa um determinismo, é um ser humano de
má-fé (...). Aqui, não podemos evitar um julgamento sobre a verdade. A má fé é uma
mentira, pois dissimula a total liberdade”23 do ser humano.

2. Intersubjetividade
“Nos apreendemos a nós mesmos diante do outro, e o outro é algo tão certo
para nós quanto o somos nós mesmos (...). Para obter qualquer verdade sobre mim, é
necessário que eu passe pelo outro. O outro é indispensável para minha existência e
para meu auto-conhecimento. O outro é uma liberdade colocada diante de mim.”24

3. Objetividade
“James Butler, conde de Ormonde, era o general das forças inglesas na
Irlanda, durante o conflito entre Carlos I e o Parlamento. Sua esposa foi isolada no
castelo de Kilkenny, com seus filhos e as centenas de fugitivos que lá ela havia
acolhido. Os líderes irlandeses ameaçaram destruí-los, a não ser que Ormonde
abandonasse seu comando do exército do rei. Os ingleses responderam que, se a
condessa e seus filhos fossem feridos, nenhuma mulher ou criança irlandesa seriam
poupadas. Mas Ormonde, não afrouxando seus preparativos para a campanha da
primavera, promulgou uma resposta diferente. Se sua esposa e filhos, escreveu
‘receberem danos infligidos por homens, nunca me vingarei disso em mulheres e
crianças; o que sendo algo vil e não-cristão, estaria extremamente abaixo do valor
que dou à minha esposa e meus filhos.”25
“O fato de nossa reação humana a exemplos de realização ou fracasso
humanos, de sabedoria ou insensatez humanas, por mais diferentes que esses possam
ser de nós em tempo, lugar, cultura ou circunstâncias de vida – esse fato é de não
pouca relevância quando se trata de decidir se há padrões de excelência humana
mais ou menos objetivos e se, como seres humanos, somos capazes de reconhecer
esses padrões.”26

4. Experiência – Aristóteles
“Tenhamos presente que os raciocínios que partem dos princípios diferem dos
que conduzem aos princípios (...). Sem dúvida, deve-se partir das coisas mais fáceis
de conhecer (...) para nós. Por isso, é necessário que aquele que se propõe aprender
22
Sartre, p. 51.
23
Sartre, p. 54.
24
Sartre, p. 47.
25
C.V. Wedgwood apud Veatch, p. 173.
26
Veatch, p. 175.

6
acerca das coisas boas e justas (...) tenha sido bem conduzido em seus costumes
(ethos). Pois o ponto de partida é o quê [ethos] (...). Uma pessoa assim ou já possui,
ou adquirirá facilmente os princípios.”27

5. Hiato fronético (Charles Taylor)


“Não existe uma doutrina ética que não modere a rigidez de suas regras
permitindo ao agente, sob sua responsabilidade moral, uma certa latitude para
acomodar essas regras à particularidade das circunstâncias; e é pela porta assim
aberta que se introduzem, em cada doutrina, o auto-engano e a casuística desonesta.
Não existe um sistema moral que não gere casos de obrigações contraditórias. São
essas as reais dificuldades, os pontos intrincados, tanto da teoria ética como na
orientação conscienciosa da conduta pessoal.”28
“O que está envolvido no agir efetivamente a partir de uma regra (...) era o
que Aristóteles disse como básico na sua virtude da phronesis. As situações
humanas são infinitamente variáveis (...). A pessoa dotada de uma real sabedoria
prática [phronesis] é menos marcada pela capacidade de formular regras do que pela
capacidade de saber agir em cada situação particular. Há um ‘hiato phronético’
crucial entre a fórmula [da regra] e sua aplicação.”29

6. Contexto social
“A situação social é (...) a causa primeira da maior parte das leis, dos
costumes e das idéias que regem a conduta das nações; aquilo que ela não produz,
ela o modifica. Para conhecer a legislação e os costumes de um povo, convém
começar, por isso mesmo, com a sua situação social.”30

7. Questionamento
“A escravidão é destas instituições que duram milhares de anos sem ninguém
se dar ao trabalho de se perguntar por que ela existe. Mas é quase impossível mantê-
la depois que esta pergunta é feita.”31

8. Instituições
“Sempre que o comércio é introduzido em um país, ele vem acompanhado
pela probidade e pontualidade. Estas virtudes são quase desconhecidas em um país
primitivo e bárbaro. De todas as nações da Europa, os holandeses, os mais
comerciais, são os mais fiéis à sua palavra. Os ingleses o são mais do que os
escoceses, mas muito inferiores aos holandeses, e nas partes remotas deste país, o
são muito menos do que em suas partes comerciais. Isto não se deve imputar ao
caráter nacional, como muitos pretendem. Não há razão natural pela qual um inglês
ou escocês não devam ser tão pontuais em cumprir os acordos como um holandês.
27
Aristóteles, Ética a Nicômaco I, 4, 1095b 5-10.
28
Stuart Mill, “Utilitarismo”, p. 214.
29
Charles Taylor, Argumentos filosóficos, p. 193.
30
Tocqueville, A democracia na América, p. 44
31
Toqueville, A emancipação dos escravos, p. 34.

7
Ele está muito mais relacionado ao auto-interesse, este princípio geral que regula as
ações de todo homem e que leva aos homens a atuar de uma certa maneira com
vistas ao benefício e que está tão implantada em um inglês como em um holandês.”
“Onde as pessoas raramente tratam entre si vemos que estão mais dispostas a
enganar, pois podem ganhar mais em uma fraude astuta do que podem perder com o
dano feito à sua reputação. Porém, onde as trocas são freqüentes, um homem não
espera ganhar tanto por um contrato qualquer como pela probidade e pontualidade
em seu conjunto, e um negociante prudente, que é sensível a seu interesse real,
prefere perder aquilo a que tem direito que dar fundamento à suspeita. Quando a
maior parte das pessoas são comerciantes se torna habitual a probidade e
pontualidade e estas são portanto as principais virtudes de uma nação comercial.” 32

BIBLIOGRAFIA

MILL, John Stuart. “Utilitarismo” in MILL, J.S. A liberdade e Utilitarismo. São


Paulo: Martins Fontes, 2000.
PLATÃO. Diálogos (vol. VII). Madri: Gredos, 2002.
REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. São Paulo: Loyola,
1997.
SMITH, Adam. Lecciones de jurisprudencia (trad. Alfonso Ruiz Miguel). Madri:
Centro de Estudios Constitucionales, 1996.
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. São Paulo: Itatiaia, 1987.
______________. A emancipação dos escravos. Campinas: Papirus, 1994.
VEATCH, Henry B. O homem racional. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.

32
Adam Smith, Lecciones de jurisprudencia, pp. 200-201.

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