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Introdução à

Filosofia
AULA 01

ÉTICA E POLÍTICA NOS DIAS DE HOJE

Temos ouvido falar muito, em nosso país e no mundo, sobre os temas da ética e da política. Tem sido
assunto constante nos noticiários a deturpação da política por interesses particulares e corrupção do
bem público. É frequente também a discussão dos diferentes tipos de governo e dos processos de es-
colha dos representantes populares. O tema da democracia representativa, com seus prós e contras,
seu valor republicano e dificuldades de manutenção, vem sendo constantemente abordado das mais
variadas perspectivas, em diferentes pontos do planeta.

A crise dos refugiados mostrou como a defesa da unidade nacional, do mercado de trabalho interno
e mesmo dos valores culturais que conferem identidade a um povo, pode se chocar com questões
mais gerais dos Direitos Humanos. A crise ambiental mostrou como o esforço comum entre Estados
em prol da proteção dos recursos naturais na Terra pode se chocar com as políticas econômicas de
determinados governos. Movimentos populares pela revisão dos valores morais e manifestações de
repúdio à classe política mostraram impasses nas democracias.

Já na década de 1950, a filósofa Hannah Arendt se perguntava sobre o que aconteceria com os seres
humanos caso se cumprissem três profecias da época: a automação do trabalho, a vulgarização das
viagens espaciais e a devastação do planeta por uma guerra atômica. O que seria do humano caso
não mais estivesse vinculado à Terra – mãe Gaia que gerou todos os seres conforme a mitologia grega
– e se visse impedido de dispor dos recursos naturais ou ainda de se reconhecer no trabalho, aspecto
fundamental da condição humana? Todas essas transformações, que se vinculavam diretamente ao
desenvolvimento da técnica e às descobertas científicas, deveriam segundo a autora ser elaboradas
discursivamente no âmbito da política.

Arendt buscava desatrelar a Política da má fama herdada pela ideologia e pelo terror promovidos pe-
los regimes totalitários do século XX e repensá-la à luz dos desafios dos novos tempos tecnológicos.
E nós, num cenário ainda mais recente, em que a tecnologia engendra espaços novos de discussão
como as redes sociais, será que precisamos desatrelar o plano da atuação política da má fama gerada
pelos inúmeros casos de corrupção do sentido público da política?

Complexas, essas questões nos demandam pensar sobre as possíveis relações entre os domínios da
Ética e da Política ao longo da história ocidental, em busca de uma melhor compreensão do que defi-
niria cada um desses registros, em específico, e do que poderia (ou não) representar ponto de conta-
to entre eles.

O que é a Ética? O que é a Política? Ambas estão ligadas à ação e à vida humana, com ênfase maior
ou menor em seus aspectos individuais ou coletivos. Ambas têm a ver com o agir e com o dizer no
convívio com outros seres humanos. Veremos ao longo deste módulo como certos filósofos importan-
tes para a História do Pensamento Ocidental formularam esses dois temas em diferentes tempos, ou
seja, em configurações sociais distintas.

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Ainda a título de introdução, vejamos mais algumas questões atuais relacionadas com essas dimen-
sões da existência.

Os chamados “movimentos identitários” buscam dar voz a grupos de pessoas que, embora muitas
vezes em maioria numérica, constituíram minorias históricas, que, devido às estruturas de poder e
dominação, não puderam levar suas demandas às agendas públicas – e mesmo, nos momentos de
maior violência, não puderam sequer sobreviver ou exercitar a liberdade de falar publicamente em
nome dos seus direitos.

Tais movimentos populares têm se articulado com força especialmente grande nas últimas décadas,
em torno de “múltiplas identificações” possíveis: étnicas, culturais, raciais, sociais, de gênero... Essa
demanda por multiplicidade na fala, nas leis e na representatividade pública foi resultado de um
questionamento da “identidade única” engendrada pela tradição ocidental. Isso, para a filosofia, deri-
vou da ideia de uma verdade absoluta, da aposta de que a verdade seja o resultado da abstração ca-
paz de generalizar um grupo de coisas múltiplas por uma única identificação comum entre elas. Com
base na metafísica platônica, por exemplo, todas as cadeiras diferentes umas das outras são definidas
pela ideia única e abstrata de cadeira.

Só que pessoas não são coisas. O “que” uma cadeira real é – talvez ainda pudesse ser considerado mais
um caso particular a ser relacionado à verdade universal da cadeira. Mas “quem” uma pessoa é parece
um problema mais complexo a ser resolvido, pura e simplesmente, por uma ideia universal de sujeito
racional, que, na prática, excluía do usufruto de suas benesses a maior parte da população. O problema é
complexo: é de fato fundamental pensar de maneira geral o ser humano, em seus direitos e seus deveres.
Mas, quando apenas uma determinada camada da sociedade tem voz para dizer como deve ser o huma-
no, esbarra-se em limites que podem gerar exclusões, abusos, apropriações do “outro” e até extermínios.

Se a metafísica tradicional teve seu limite denunciado por Nietzsche no fim do século XIX – que, com a
polêmica frase “Deus está morto”1, dizia que o paradigma único da verdade absoluta estava esgotado
e deveria ser superado –, também por ele os limites da constituição moral eram questionados, uma
vez que se tratava de algo construído por cada grupo social, em determinado contexto e com determi-
nados interesses. O perigo contido naquela asserção, que carregava de forma provocativa o diagnósti-
co histórico de falência dos modelos morais, é evidente: se Deus está morto, então tudo é permitido?
Também a moral seria algo “relativo”, como a própria verdade racional? Vejamos o que diz Nietzsche:
Tão logo se ocuparam da moral como ciência, os filósofos todos exigiram de si, com
uma seriedade tesa, de fazer rir, algo muito mais elevado, mais pretensioso, mais
solene: eles desejaram a fundamentação da moral – e cada filósofo acreditou até
agora ter fundamentado a moral; a moral mesma, porém, era tida como “dada”.2

A moral tida como “dada” é aquela que não pode ser questionada, que transcende os seres humanos
e exige obediência eterna. Esta seria a “moral de animal de rebanho”3 rechaçada pelo filósofo, na qual

1. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, p. 35.
2. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p. 85.
3 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p. 101.

AULA 1 - ETICA E POLITICA 2


se estaria fadado sempre a obedecer, seja o que for. Mas a moral como alguma coisa “criada” é huma-
na, demasiadamente humana, resultado de uma potência criadora. Pode ser quebrada e recriada. É
alvo de questionamento, revisão e reformulação constantes, se os humanos enredados em determina-
do código moral assim o desejarem. Isto é, a moral é relativa à vida humana, não absoluta em si.

Nesse sentido, a “Contribuição à história natural da moral” feita por Nietzsche no livro Além do
bem e do mal é preciosa para se pensar o contemporâneo. Difícil compreender nossa época atual,
com suas demandas por multiplicidade, seja no discurso político seja na dimensão ética, sem lem-
brar daquele movimento radical de quebra da identidade unificadora que marcava a história da
metafísica até Nietzsche.

Do ponto de vista social, no entanto, é difícil imaginar que o filósofo alemão se afinasse com os nos-
sos tempos. Era profundo crítico da sociedade de massa, da democracia e da abertura de maior aces-
so a campos tradicionalmente de elite como educação, cultura e arte. Ele se dizia a favor da qualida-
de, o que julgava incompatível com a quantidade. Dessa perspectiva, Nietzsche era um aristocrata.

Mas, se levarmos em conta o desenvolvimento da filosofia posterior ao seu diagnóstico, no período


chamado de “contemporâneo”, parece inegável que a acidez com que atacou a rígida tradição ociden-
tal de cunho metafísico permitiu o início da corrosão – para o bem e para o mal – dos princípios es-
táveis que nortearam tanto o pensamento racional quanto a constituição moral. A verdade universal
(absoluta, abstrata) não dá mais conta da existência particular (relativa, concreta).

Se tal estabilidade foi perdida – e isso pode gerar um desamparo pela ausência de definições claras –,
devemos encarar esse vazio como oportunidade para revisar as múltiplas maneiras de estar no mun-
do. Não é isso o que temos visto cada vez mais ser buscado em nossos dias? Claro, essa abertura de
possibilidades não libera os seres humanos de sofrimentos e de novas ameaças. Mas, é fato, também
aquela antiga estabilidade não garantia plena felicidade. Ao menos, não a todos.

Embarquem! – Considerando-se como atua sobre cada indivíduo uma justificação


filosófica geral de seu modo de viver e de pensar – ou seja, como um sol que o
esquenta, abençoa, fecunda, que ilumina apenas a ele, torna-o independente de
censura e elogio, auto-suficiente, rico, pródigo em felicidade e benevolência, e
sem cessar transmuta o mal em bem, faz toda energia florescer e sazonar e não
deixa que medre o pequeno ou grande joio da mágoa e do dissabor: – então se ex-
clamará enfim: oh, se ainda fossem criados muitos novos sóis como esse! Também
o mau, também o infeliz, também o homem-exceção deve ter sua filosofia, seu di-
reito, seu raio de sol! Não é a compaixão por eles que se faz necessária! (...) É uma
nova justiça que se faz necessária! E uma nova senha! E novos filósofos! Também
a Terra moral é redonda! Também a Terra moral tem seus antípodas! Também os
antípodas têm seu direito à existência! Há um outro mundo a descobrir – mais do
que um! Embarquem, filósofos!4

4. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 194 e 195.

AULA 1 - ETICA E POLITICA 3

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