- Entende-se o projeto nietzscheano de transvalorar todos os valores a partir de três perspectivas
distintas: (I) [ICONOCLASTAS] Transvalorar é, antes de mais nada, suprimir o solo a partir do qual os valores foram, até então, engendrados. Com isso, Nietzsche pretende derrubar ídolos. Quando diz que Deus está morto, Nietzsche está dizendo que a ideia de Deus deixa de ser o solo a partir do qual os valores foram ou são engendrados. Em Nietzsche, portanto, transvalorar é, antes de mais nada, dizer que Deus está morto, de forma a criar valores num plano de imanência, ou seja, sem ter de recorrer a uma duplicidade de mundos. Estes valores devem estar em consonância com a terra, o corpo e a vida, e não com a vida após a morte, a imortalidade da alma, etc. Em suma, transvalorar é, antes de mais nada, indicar que a ideia de Deus não tem poder eficiente. Ex: oposição de Zaratustra ao platonismo (dualismo metafísico) e ao cristianismo (religião cristã). (II) [ALQUIMISTAS] Transvalorar é também inverter os valores. É transformar em ouro, tal como os alquimistas, tudo aquilo que fora, até então, odiado pela humanidade. É dessa perspectiva que Zaratustra condena o idealismo e reivindica a efetividade. Zaratustra – o sem- Deus – naturaliza os valores morais; Nietzsche – o anticristo –, suprimindo o além, pretende reescrever o homem na natureza, ou seja, estabelecer uma nova aliança entre aquilo que os filósofos haviam separado principalmente na modernidade: a physis e o logos (que, na filosofia pré-socrática, achavam-se unidos). (III) [LEGISLADORES] Transvalorar é, ainda, criar novos valores. Nietzsche identifica os filósofos propriamente ditos com comandantes e legisladores, enfatizando que eles talvez não tenham existido até o presente momento.
Na empreitada de transvalorar todos os valores, será necessário o não, na medida em que se
precisará negar todos os valores instituídos. Também será preciso, contudo, atravessar o niilismo para desembocar num dionisíaco e, aí, dizer sim ao outro (Nietzsche está, por isso, longe de ser niilista). É preciso avaliar para criar valores (um procedimento genealógico). Ao fazer ver que os valores são “humanos, demasiado humanos”, ao atribuir a eles uma proveniência, uma história, Zaratustra desmantela o solo em que até então foram colocados. Ele faz cair por terra o pensar metafísico e a religião cristã. Mas, diante do vazio que se instala quando essas interpretações desmoronam, Zaratustra desqualifica a ideia de que nada vale a pena, de que tudo é em vão. E, por isso, ele perfaz (completa) a travessia do niilismo. Nietzsche busca dar um novo sentido à existência humana. Para tanto, sabe que é preciso compreender o homem de outra maneira. Entendendo o ser humano como parte integrante deste mundo, é em um além-do-homem que o converte. Só aí é possível transvalorar todos os valores. Falta-nos uma nova concepção de humanidade, de ser humano. Para transvalorar todos os valores, portanto, é preciso converter o homem em aquilo que Nietzsche chama de além-do-homem. A partir do momento em que Deus está morto, a concepção de homem como criatura em relação a um criador deixa de ter razão-de-ser, dando lugar a uma outra concepção de humanidade: o além-do-homem como criatura e criador de si mesmo. Incapaz de lidar com a própria finitude, o homem concebeu a metafísica. Incapaz de tolerar a visão de sofrimento imposta pela morte, construiu o cristianismo. A religião arquitetou a vida após a morte para redimir a existência. Assim, criou o reino de Deus para legitimar avaliações humanas. Nefasta, levou os homens a desejarem ser de outro modo e estarem em outra parte. O preço que o homem teve de pagar por inventar o pensar metafísico e fabular a religião cristã foi a negação do mundo, a condenação da vida. Ao camuflar a dor, hostilizou a vida; ao escamotear o sofrimento, tratou o mundo como um erro a refutar. Se a derrubada do dualismo metafísico acarreta a sensação de que nada tem sentido, então é preciso fazer ver que a interpretação metafísica não é a única interpretação do mundo. Se a ruína do cristianismo traz como consequência o sentimento de que tudo é em vão, então é preciso mostrar que a religião cristã é só mais uma interpretação da existência. É por isso que Nietzsche faz de sua obra uma tentativa de retomar as rédeas do destino da humanidade. Sócrates, ao substituir o homem trágico pelo homem teórico, representou um arco na visão grega do mundo. Cristo, por sua vez, ao substituir o pagão pelo novo homem, representou um arco no pensamento ocidental. Nietzsche tenta subverter o sentido que o cristianismo procurou dar à existência humana e, para tanto, precisa transvalorar todos os valores. Ele busca dar novo sentido à existência humana, busca fazer coincidir sentido e efetividade.