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Textos de Robson Santarém

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Textoproduzido em

A morte de Deus e a parceria Mercedes

Elena Gutiérrez

espiritualidade
Uma Leitura de NIETZSCHE e JUNG

INTRODUÇÃO

Friedrich Nietzsche, filósofo, poeta e filólogo alemão é um dos


pensadores mais radicais, ricos e influentes do século XX. Nasceu em
15 de outubro de 1844, em Röcken, Prússia. Seu pai, um ministro
luterano, morreu aos 36 anos (após ter enlouquecido um ano antes)
quando Nietzsche tinha cinco anos de idade, e seu irmão menor
morreu quando ele tinha seis anos. Foi educado por sua mãe num
ambiente inteiramente feminino, junto com sua avó, duas tias e uma
irmã. Estudou filologia clássica nas universidades de Bonn e Leipzig, e
foi nomeado professor de filologia grega na universidade de Basiléia
aos 24 anos. Sua delicada saúde (esteve afetado toda sua vida por
uma visão defeituosa e por constantes enxaquecas) lhe obrigou a se
aposentar em 1879. Em 1889, dez anos depois de se aposentar, sofreu
um colapso nervoso em Turim ao ver a um cavalo ser chicoteado por
seu cocheiro, crise da qual nunca se recuperou. Morreu em Weimar
em 25 de agosto de 1900.

Nietzsche foi influenciado pela cultura helênica, em particular por


Sócrates, Platão e Aristóteles; pelo filósofo alemão Arthur
Schopenhauer, pela teoria evolucionista de Darwin e por sua amizade
com o compositor alemão Richard Wagner. Escreveu numerosas obras
importantes, entre elas A origem da tragédia (1872), Assim falou
Zaratustra (1883-1885), Além do bem e do mal (1886), A Genealogia

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da Moral (1887), O Crepúsculo dos Ídolos (1888), O Anticristo (1888),


Ecce Homo (1888) e A Vontade de Potência (1901).

A obra de Nietzsche está intimamente relacionada com sua vida, não


só pela inegável influência do zeitgeist, mas também porque sua
proposta filosófica consiste numa filosofia vital; quer dizer, propõe
uma nova forma de filosofia que consiste em viver filosoficamente,
pois para ele a finalidade do filosofar não é chegar a um sistema ou a
uma conclusão teórica, senão a vinda do super-homem pela superação
do homem por meio do autoconhecimento. Da sua dor física, solidão,
incompreensão e demais forças destrutivas presentes na sua vida, ele
extrai sua força, sua vontade de poder, alçando-se ante eles e
convertendo-os em seus aliados.

A filosofia de Nietzsche tem uma influência fundamental na filosofia,


literatura, teologia e pensamento contemporâneo em geral. Seus
conceitos têm sido retomados e discutidos por escritores e filósofos
posteriores de importância tais como Karl Jaspers, Martin Heidegger,
Paul Tillich, Albert Camus e Jean-Paul Sartre.

Na área da psicologia, Nietzsche exerceu uma importante influência


em inúmeros autores e teorias, influência que é bastante notória em
C. G. Jung e sua psicologia analítica, sendo esta influência o foco
central de nossa discussão.

Em seu livro Memórias, Sonhos e Reflexões, Jung nos conta do seu


interesse na filosofia de Nietzsche desde idade prematura, mas
também nos fala de um certo medo ou reticência em relação a ele;
num primeiro momento por sentir se pouco preparado para abordar
sua leitura (2002:98): Nietzsche figurava em meu programa há já
algum tempo, mas hesitava em lê-lo, pois me sentia insuficientemente
preparado, e posteriormente, por se encontrar parecido com ele (2002:
98) eu nutria uma angústia secreta de ser parecido com ele, pelo
menos no tocante ao 'segredo' que o isolava do seu meio... Tinha
medo de descobrir que, como Nietzsche, era um ser à parte.

Eis o desafio sobre o qual nos debruçamos: refletir sobre a


espiritualidade à luz de Nietzsche e Jung! O desafio é tamanho
principalmente porque tendo sido o pensador alemão educado na fé

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cristã luterana, não só racional e deliberadamente abandonou a fé


cristã como decretou inexoravelmente a morte de Deus.

A MORTE E RENASCIMENTO DE DEUS: NIETZSCHE E JUNG

O intento de sistematização do pensamento de Nietzsche é uma tarefa


árdua senão impossível por inúmeras razões. Em primeiro lugar, sua
postura teórica é praticamente incomparável, pois é horizontal, quer
dizer, “não pode ser medido, pois é o pensamento da diferença, não
da identidade” (Lechte, 2003:242). Além disso, as obras de Nietzsche
têm um caráter circular, sendo difícil encontrar o inicio e fim, a
entrada e saída de sua dissertação. Assim mesmo, Nietzsche apresenta
um estilo muito pessoal e um discurso simbólico, pelo qual, suas obras
são de difícil compreensão e vulneráveis a infinitas interpretações.

A filosofia de Nietzsche tem uma postura antiidealista ou


antiessencialista, pois a seu parecer qualquer essencialismo ou
idealismo tem que negar um ou mais aspectos da vida para se
coerente; em outras palavras, o idealismo nega a vida. Nietzsche,
contrariando esta posição, postula que a vida é sempre irredutível, não
é uma identidade. Neste sentido, Nietzsche trava uma guerra contra o
pensamento platônico considerando-o como negador da vida.

Por outra parte, a obra de Nietzsche tem um caráter dionisíaco. O


Deus Dionísio é a afirmação religiosa da vida total, não fragmentada
dos seus aspectos mais terríveis e dolorosos; em fim, a exaltação da
vida infinita, oposta á aceitação resignada da mesma. Dionísio traz à
obra de Nietzsche uma abundância de vitalidade e uma visão trágica
da vida. Neste sentido, o Zaratustra representa a encarnação viva do
espírito dionisíaco.

Na obra de Nietzsche se podem identificar várias idéias ou pontos


centrais que dão corpo a sua teoria, tais como o estabelecimento da
morte de Deus. Decretando a morte de Deus teria Nietzsche, em uma
perspectiva psicológica e emocional, também abandonado à fé? O que
o levou, através de Zaratustra a proclamar a morte de Deus? Ou que

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“Deus” está morto, segundo o filósofo? Não seria o “Deus”


representativo de uma determinada cultura decadente, sustentada por
um obscurantismo, diante de um novo tempo cujas características de
modernidade sublinhavam um outro comportamento social também
opressor e reducionista da dignidade humana e de cuja religião não se
esperava nenhuma transformação, senão, ao contrário, a atitude
conformista e alienada dos seus seguidores? Tal “Deus” que
propugnava uma vida tolhida pelo medo, restrita pelos dogmas, pela
“mentalidade escrava” como ele mesmo chamava, não teria que
morrer?

Embora seja possível afirmar que, de algum modo, tal “Deus” já vinha
morrendo ao longo do tempo, coube a Nietzsche publicar a sua morte.
Mas não seria esse “assassinato” de Deus provocado pela imagem
negativa que se construiu ao longo dos séculos e que, por
conseguinte, gerou seres humanos desumanos, já que como afirma o
monge Grun: quando a imagem de Deus está doente, também o ser
humano fica doente e da imagem que fazemos de Deus depende a
Imagem que fazemos de nós?

Ou, ainda, como afirma Jung (O.C. V. II/I, p.144):

A definição é uma imagem que não eleva a realidade


desconhecida, indicada por essa imagem à esfera da
compreensibilidade. De outro modo seria lícito dizer que se criou
um deus. O “Senhor” que escolhemos não se identifica com a
imagem que dele esboçamos no tempo e no espaço. Ele continua
a atuar como antes nas profundezas da alma, como uma
grandeza não-reconhecível. A rigor, nem mesmo conhecemos a
essência de um simples pensamento, quanto mais os últimos
princípios do psíquico em geral. Também não podemos dispor,
absolutamente, da vida íntima da alma. Como, porém, tal vida
escapa ao nosso arbítrio e a nossas intenções, e é algo livre
diante de nós, pode dar-se o caso de que o ser vivente escolhido
e caracterizado pela definição ultrapasse, mesmo contra nossa
vontade, os limites da imagem feita por mãos humanas. Aí talvez
pudéssemos dizer com Nietzsche: “deus está morto”. Todavia,
mais acertado seria afirmar: “ele abandonou a imagem que
havíamos formado a seu respeito e nós, onde iremos encontrá-lo

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de novo? O interregno é cheio de perigos, pois os fatos naturais


farão valer os seus direitos sob a forma de diversos “ismos”, dos
quais nada resulta senão a anarquia e a destruição; e isto porque,
em conseqüência da inflação, a hybris humana escolhe o eu, em
sua miserabilidade visível, para senhor do universo. Tal é o caso
de Nietzsche, prenúncio incompreendido de uma época.

Ou como escreve em uma de suas cartas (13 de janeiro de 1948):

Como poderia um homem sensato supor-se capaz de deslocar


Deus ou de fazer-lhe alguma coisa? Não sou tão louco para ser
apontado como o que colocou um substituto no lugar de Deus.
Como poderia o homem substituir Deus? Com minha imaginação
não sou capaz nem de substituir um botão perdido, sendo
obrigado a comprar um botão novo na realidade. Tudo o que
posso é ter uma imagem divina; e não sou tão idiota para dizer
que a imagem que vejo no espelho é meu eu real e vivo.

Está claro que o que Jung pretende atingir não é Deus, mas a imagem
que cada pessoa constrói a respeito Dele, imagem esta que é diferente
em cada cultura, em cada civilização e em cada tempo, mostrando
assim que se trata na verdade da projeção de uma imago individual e
não da realidade de Deus.

Este “Deus”, morto pelos lábios do louco de “Assim falou Zaratustra”,


havia se distanciado do Deus da Vida, anunciado por Jesus Cristo, o
qual afirmou que veio para que todos tenham vida e a tenham em
abundância. Então, nesse sentido, ele teria mesmo que morrer para
dar vida ao homem e à mulher do nosso tempo, já que, assim como no
tempo de Nietzsche o ser humano ainda está bem aquém de ter a vida
em abundância, de ser o senhor de si mesmo, de ser um vencedor.

Eis porque Zaratustra / Nietzsche se dirige a outro público, não mais


aos que se perderam na alienação do seguimento a um Deus gerador
de conformismos, mas ao grupo de pessoas que se superam e se
tornam vencedores na vida, os que querem viver o aqui e agora,
assumindo a responsabilidade pela própria vida podendo se tornar
super-homens, no conceito nietzscheano.

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Deste modo, a exortação rogo-vos meus irmãos, permanecei fiéis á


terra, e não creiais naqueles que vos falam de esperanças de outros
mundos! elimina qualquer possibilidade escatológica e transcendente
ao ser humano. Assim ele centraliza no humano a construção dos
próprios valores, matando também quaisquer outros valores baseados
em Deus.

Eis porque o comentário de Jung (O.C. V. XI/I, p.142) sobre a morte de


Deus aqui se aplica:

Como não se pôde descobrir o trono de Deus entre as galáxias,


concluiu-se simplesmente que Deus não existe. (...) Ao romper as
antigas tábuas, Nietzsche certamente se sentiu responsável. De
fato, ele sucumbiu à estranha necessidade de respaldar-se num
Zaratustra redivivo, à guisa de segunda personalidade, de um
alter ego com o qual identificou sua grande tragédia: Assim
falava Zaratustra. Nietzsche não era ateu, mas o seu Deus havia
morrido. O resultado desta morte foi sua cisão interior que o
compeliu a personificar seu outro “si-mesmo” (Selbst) como
“Zaratustra” ou, em outra fase, como “Dionísio”. (...) A tragédia
de Assim falava Zaratustra consiste em que o próprio Nietzsche
não sendo ateu, se transformou em deus, porque seu Deus havia
morrido. (...) Aquele para quem “Deus morre” se torna vítima da
“inflação”.

Tal inflação surge no super-homem preconizado por Nietzsche, ele


condensa em si o bom senso, é o resultado da vontade da potência,
está além do bem e do mal, torna-se um fim em si mesmo, porque,
para ele, o homem mesmo é algo que será superado.

Ao proclamar a morte de Deus o pensador alemão realmente está se


referindo à morte de certos aspectos do Deus moral dos cristãos. Em
primeiro lugar, o que morre é a idéia monoteísta de Deus, a crença
numa idéia transcendente, o qual não implica a necessidade de aceitar
o ateísmo, Está nisso, justamente, a divindade: que não há nenhum
Deus, mas deuses! (1998:242). Nietzsche é um fervoroso critico das
presunções do homem moderno de atingir uma verdade única, uma
Lei ou principio aplicável a todos, o “Único” e “Absoluto”.

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Opondo-se à idéia de unicidade ou de verdade absoluta ele tenta


resgatar e desenvolver a riqueza da diversidade e pluralidade presente
no homem, ao invés das doutrinas cristãs, que partem do pressuposto
de igualdade de todos os homens, pois, desejar uma verdade válida
para todos, uma lei que obrigue universalmente, implica não ser uma
individualidade excepcional. Neste sentido, a morte de Deus constitui
a condição prévia para que possa sobreviver seu super-homem, para
que seja possível que os corpos vivam, que floresça a diferença e a
pluralidade, acabando assim com a falsa unidade proclamada pelo
conceito de espírito cristão; como afirma López Castellón (1998b:8): se
o argumento da objetividade do verdadeiro se erige como uma trava
que anula o diminui o vôo interpretador do espírito livre, a verdade
constituirá um obstáculo para o movimento expansivo da vida.

A morte do Deus único constitui a condição de possibilidade de que os


indivíduos se divinizem, sendo eles os que cumprem a função de
criadores, conferindo um sentido à natureza; quer dizer, coloca o
homem como a única e verdadeira fonte de criação, inclusive do Deus
mesmo, pois como diz Nietzsche (1998:56): esse Deus, que eu criava,
era obra humana e humana loucura, como todos os Deuses! Homem
era ele, e nada mais do que um pobre pedaço de homem e do meu eu;
surgia em mim da minha própia cinza e brasa, em verdade, esse
fantasma! Não vinha a mim do além!

Por outra parte, a morte de Deus é a negação do escapismo


metafísico. A posição de Nietzsche é contrária ao idealismo metafísico
que atribui ao mundo, à existência e a história um significado, um
propósito ou uma meta distinta aos impostos livremente pelo homem
mesmo, alheios à sua vida terrena. Ela supõe a rejeição de toda
idealidade transcendente. Nesse caso, Deus representa ou simboliza
toda transcendência, tudo o que pretende se erigir em cima e contra a
terra e a vida. Então, negar a Deus equivale a situar na origem da
realidade a vida inconsciente e a natureza no lugar da idéia, aceitando
que a vida é um produto do azar. Conhecer a morte de Deus implica
então a tomada de consciência da nossa vontade de poder, de nossa
responsabilidade como criadores de sentido.

Então Deus morre para que os indivíduos transcendam. A morte da


divindade única põe ao descoberto o caráter trágico e de azar da

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existência humana.

Morre também o Deus moral, pondo fim aos dualismos (que supõem a
valoração de um dos extremos às expensas do rechaço e condenação
do outro) e constatando o “pluralismo inocente”, pois a vida escapa a
toda qualificação moral. Como foi dito anteriormente, Nietzsche
coloca ao homem como o único criador, e conseqüentemente, como a
fonte de toda moral, pelo qual todo principio moral perde seu valor
absoluto, pois já não são atribuídos a nenhuma entidade superior e
absoluta, como ele afirma (1998:86):

Em verdade, foram os homens a dar a si mesmos o seu bem e seu


mal. Em verdade, não o tomaram, não o acharam, não lhes caiu
do céu em forma de voz. Valores ás coisas conferiu o homem,
primeiro, para conservar-secriou, primeiro, o sentido das coisas,
um sentido humano! Por isso ele se chama de “homem”, isto é:
aquele que avalia.

Noutras palavras, o que morre com o Deus cristão é a possibilidade de


dar fundamento religioso a uma moral universal, baseada na
existência de um legislador único. Deus tem que morrer porque ele
cumpre o papel de garantir último de toda veracidade e de todo valor,
já que, como diz López Castellón, para Nietzsche a idéia de Deus há
passado a revelar seu caráter negador e caluniador da vida, sua função
de fundamento desde o qual se denigra e desvaloriza toda existência
forte e poderosa que afirma a vida e despreza os consolos dos que se
vem obrigados a crer em 'outra vida' (1998b:9).

Porém, para Jung, não se trata apenas da “morte do Deus cristão”, tal
decreto nietzscheano envolve outros aspectos, que ele assim analisa
(O.C. V. XI/I p.149):

A morte de Deus (ou seu desaparecimento) não constitui de


modo algum um símbolo exclusivamente cristão. A busca que se
segue à morte se repete ainda hoje quando morre um Dalai
Lama, tal como na antiguidade se celebrava anualmente a busca
de Koré. A ampla difusão desse símbolo é uma prova da presença
universal de um processo típico da alma: a perda do valor
supremo, que dá vida e sentido às coisas. Tal processo constitui

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uma experiência típica muitas vezes repetida; por isso, ela se acha
expressa também num ponto central do mistério cristão. Esta
morte ou perda deve repetir-se: Cristo sempre morre e sempre
torna a nascer. (...) Sei unicamente - e o que sabe um grande
número de outras pessoas que estamos numa época ou de morte
ou de desaparecimento de Deus.

Se a morte de Deus leva a perda do valor supremo e ao sentido das


coisas, torna-se necessário, como conseqüência, colocar no homem a
origem de todos os princípios e valores, estes, então, podem ser
mudados à conveniência dele; quer dizer, estes princípios e valores
podem ser mudados em função de favorecer o desenvolvimento do
homem e o advento do super-homem.

Assim, quando Nietzsche fala da superação do homem quer dizer que


devem ser superados todos os valores da moral corrente, que tende à
nivelação e à igualdade, favorecendo a pluralidade. Neste sentido, ele
se levanta contra a doutrina cristã, pois predica a exaltação da
debilidade, assumindo dita debilidade como um valor (convertendo a
impotência em virtude), condenando aos fortes e denegrindo sua
força e poder, desqualificando-o.

Segundo López Castellon, na filosofia nietzschiana O politeísmo


amoral vem a substituir ao monoteísmo moralizante (1993:27). O
super-homem cria novos valores, seus novos valores têm uma moral
baseada na autodisciplina, porém são eles mesmos quem determinam
seus valores e marcam seus fins. O homem livre é fiel a si mesmo (não
busca fim algum fora de si mesmo), ama sua verdade, porém não cai
nunca no dogmatismo. O homem “criador” é o homem que brinca
criando, que dita valores, que possui uma vontade poderosa, que se
marca uma meta, que se aventura a traçar um novo projeto. A vida é
expansão de força e se manifesta como uma força de resistência, como
uma luta de acrescentamento.

Nietzsche tenta devolver ao homem o “sentido da terra”, exaltando a


vida na plenitude das suas manifestações e prevenindo-nos dos que
denigram a vida e desprezam o corpo, pondo as suas esperanças numa
existência ultraterrena. É uma reafirmação do viver e do vivido
individual; então, a terra volve a ser o paraíso florido, antes de sofrer a

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maldição de Deus; já não é a má pousada na qual o homem tem que


passar a má noite da sua vida... a morte de Deus representa a
possibilidade de que o homem recobre a sua fidelidade perdida ao
sentido da terra (1993:27). Nas palavras de Zaratustra (1998:104):
Trazei, como eu, essa virtude desorientada de volta à terra sim, de
volta ao corpo e à vida: para que dê seu sentido à terra, um sentido
humano!

O pensamento de Nietzsche é dirigido à consciência do homem


“individual”. Ele quer que a consciência individual do homem se
liberte da visão curta ou negadora da vida, da ausência de ideais, da
moral e das convenções sociais e da mediocridade do cotidiano. O
homem precisa encontrar sua verdade, mas uma verdade individual,
por isso afirma (1998:232): Descobriu-se a si mesmo, porém. O homem
que diz: “Este é o meu bem e mal” e (1998:233) Mas esse é o meu
gosto: Não um gosto melhor ou pior, mas o meu, do qual não mais me
envergonho nem faço segredo.

Assim, como diz Lopes Castellón, o filósofo (1993:35) tenta conferir um


sentido a uma vida absurda, finalidade ao devir do mundo, e extrair
deste modo de si mesmo valores vitais que antes não existiam. A
vontade de poder é uma ânsia insaciável de mostrar e de realizar o
poder, o que movimenta ao homem na sua própria abundância, o
impulso da vida humana a um poder mais alto e superior, a vida
crescente ascendente, a busca de si, em auto-superação e
autodomínios sempre novos, a qual é a verdadeira forma de ser do
homem liberado de Deus.

Neste sentido, condena o niilismo do homem moderno, que perdeu


tudo entusiasmo, incapaz de criar e de transcender-se a si mesmo, que
não deseja nada, limitando sua vida e se conformando com pequenos
prazeres imediatos. Sua posição é antiniilista, pois o homem forte se
comporta enquanto tal na medida em que aceita tudo o que a vida
contém, sem negar nada. O homem superior aceitará tudo, inclusive a
dor, pois ele também faz parte da vida. O autêntico gozo implica a
vivência de algo que esta além do mero dualismo prazer-dor.

Proclamando a aceitação da vida tal como ela é, ele ainda critica o


hedonismo do homem moderno, negando que a vida consiste na

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busca do prazer e da felicidade máxima; muito ao contrario, afirma


que o caminho do desenvolvimento do homem se encontra
invariavelmente cheio de sofrimentos e conflitos: (1998:115) Criar essa
é a grande redenção do sofrimento, é o que torna a vida mais leve.
Mas, para que o criador exista, são deveras necessários o sofrimento e
muitas transformações. Sim, muitas mortes amargas deverá haver em
vossa vida, ...Se o criador quer ser ele mesmo a criatura, o recém
nascido, então, deve querer, também, ser a parturiente e a dor da
parturiente. ...Em verdade percorri meu caminho através de cem almas
e cem berços e cem dores de parto; (1998:143) E só há ressurreição
onde há túmulos; (1998:189) Desde o mais fundo, deve o mais alto
atingir seu cimo.

Nietzsche defende a idéia de que existem múltiplos caminhos para o


autoconhecimento e o desenvolvimento, como se houvesse apenas
uma ponte, levando ao futuro! (1998:122); e que ditos caminhos são
individuais, exclusivos, não sendo possível seguir as vias traçadas pelos
outros, sendo indispensável a busca da via própria. Em suas palavras
(1998:188): Percorres o teu caminho da grandeza; aqui, mais ninguém
te seguirá às escondidas! O teu próprio pé apagou a trilha atrás de si e
nela está escrito: 'impossibilidade' (1998:233) “Este, agora, - é o meu
caminho; - onde está o vosso?”: assim respondia eu aos que me
perguntavam “o caminho”. Porque o caminho não existe! .

Também alerta aos homens sobre os numerosos perigos presentes no


seu caminho de autoconhecimento e desenvolvimento, colocando ao
sujeito mesmo (os mistérios e enigmas da sua mente) como o perigo
mais letal (1998:91):

Mas, o pior inimigo que podes encontrar serás sempre tu mesmo:


tu mesmo estás à tua espreita em cavernas e florestas. Solitário,
percorres o caminho no rumo de ti mesmo! E teu caminho passa
por ti mesmo e pelos teus sete demônios! Herege, serás para ti
mesmo, e feiticeiro e vidente e doido e céptico e ímpio e
celerado. Arder nas tuas próprias chamas, deverás querer: como
pretenderias renovar-te, se antes não te tornasses cinza!

Entre estes perigos, Nietzsche põe especial atenção aos perigos dos
instintos e das tentativas de dominação destes, (1998:69) Queres

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alcançar as livres alturas, a tua alma está sequiosa de estrelas. Mas


também os teus maus impulsos têm sede de liberdade. Sair para a
liberdade, querem os teus cães ferozes; (1998:81) não poucos, que
queriam expulsar seus demônios, acabaram eles mesmos entrando nos
porcos.

Não obstante ter assassinado Deus e categoricamente rejeitar


qualquer transcendência, ao defender com tanto vigor o homem na
qualidade de super-homem, não haveria em Nietzsche uma
espiritualidade?

Entendendo-se por espiritualidade a qualidade ou caráter de


espiritual, ou seja, o que é relativo ou pertencente ao espírito, (por
oposição a matéria), pode parecer paradoxal questionar se há uma
espiritualidade nietzscheana, visto que ele mesmo procurou derrubar
todos os pilares da metafísica, da transcendência.

Como não se pode entender a espiritualidade em um sentido restrito


de práticas religiosas e ritualísticas de acordo com confissões religiosas
e nem se pode separar a vida espiritual da totalidade da vida humana,
faz-se mister compreender a espiritualidade como uma disposição, um
clima de relação com o Sagrado e com os outros, uma atitude ou o
espírito com que se planeja e se vive a existência e entendendo-se a
existência como um todo que inclui a dimensão material, terrena
(corpo) e a dimensão transcendental (alma), pode-se ousar afirmar que
em Nietzsche, há um conjunto de atitudes frente à vida que estão
relacionadas com a busca do sentido, embora tal busca termine na
imanência. É como afirmar que a espiritualidade em Nietzsche é sem
espírito.

Eis o que Jung afirma (O.C. V. XI/5 p. 892):

O Zaratustra de Nietzsche já não é mais filosofia, e sim um


processo dramático de transformação que engoliu
completamente o intelecto. Não se trata mais de um modo
pensar, e sim do pensador do pensamento no mais alto sentido e
é isto o que transparece em cada página do livro: um novo
homem, um homem completamente transformado deve aparecer
em cena, um ser que quebrasse as cascas do homem velho e não

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olhasse apenas para um novo céu e uma nova terra, mas fosse,
ele mesmo, quem os criasse.

Ora, este novo homem é um homem espiritual. Quando o ser humano


mergulha em si experimenta a transformação que o caminho da
espiritualidade inegavelmente promove. Analisando as religiões
orientais, Jung também comenta (O.C. V. XI/5 p. 890):

O estar voltado para dentro de si significa “que o homem está


orientado para dentro de si mesmo, para dentro do próprio
coração, de modo que pode sentir e compreender a ação interior
e as palavras íntimas de Deus.” (...) É fora de dúvida que se trata
da descrição de um novo estado de consciência, separado do
primeiro por um processo de profunda transformação religiosa.

O Dalai-Lama diz que espiritualidade é tudo aquilo que produz no ser


humano uma mudança interior, o que pressupõe transformação do
coração e da mente, a fim de deixar transparecer o "humano" ou o
suprahumano, de modo que transcenda ao imanente, transformando
a partir das atitudes também o exterior.

Não é nenhum absurdo afirmar que no estado de desequilíbrio em


que vivemos, buscar e encontrar o equilíbrio interior pode ser
considerado um grande passo, porém, não passará este passo de
apenas uma etapa na evolução humana. E esta evolução é uma
evolução espiritual. De algum modo pode-se afirmar que as
descobertas de Jung lhe permitem servir-se da análise da psique como
de um meio de retorno ao Espírito, visto que para ele não é possível
chegar à harmonia do ser (self) sem tomar consciência dos valores
espirituais e sem um retorno a eles.

Assim, Winckel (1999:39) comenta: não sem razão que o processo de


individuação é comparado às iniciações espirituais de todos os tempos
e mesmo à experiência religiosa e a experiência religiosa se torna uma
necessidade essencial, indispensável ao equilíbrio do ser. Isto é, o
processo de individuação que permite ao homem tornar-se o ser que
realmente é corrobora com a afirmação que também o caminho
espiritual conduz o homem à sua plena realização.

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Nas palavras de Jung (O.C. V. XI/II p. 854):

O processo de transformação do inconsciente que se opera


durante a análise é o análogo natural das iniciações religiosas
levadas a efeito de forma artificial, mas que, em princípio, se
diferenciam do processo natural, por anteciparem a evolução
natural e por substituírem a produção natural dos símbolos por
símbolos escolhidos de propósito e fixados por tradição, como
acontece, por exemplo, nos Exercícios de Inácio de Loyola ou nas
meditações da ioga budista ou tântrica.

No volume XI/I p. 168 ele também afirma que a aventura espiritual do


nosso tempo consiste na entrega da consciência humana ao
indeterminado e indeterminável. Se se pode entender o ser humano
como um ser histórico que se constrói, como um devir, uma
possibilidade, este vir a ser acontece nesta caminhada em direção à
integração, à unidade na qual a espiritualidade se configura como um
meio para desenvolver a consciência de que é responsável por si
mesmo e também pelos outros. Diante dos conflitos individuais e
coletivos dos quais o homem precisa se libertar para alcançar a sua
essência há de trilhar o árduo caminho da transformação interior.

Assim Jung se pronuncia (O.C. V. XI/I p. 135):

Tais problemas nunca serão solucionados por meio de uma


legislação ou por artifícios. Só podem ser resolvidos por uma
mudança geral de atitude. E esta mudança não se inicia com a
propaganda ou com reuniões de massa, e menos ainda com
violência. Ela só pode começar com a transformação interior dos
indivíduos. Ela produzirá efeitos mediante a mudança das
inclinações e antipatias pessoais, da concepção de vida e dos
valores, e somente a soma dessas metamorfoses individuais
poderá trazer uma solução coletiva.

A controvérsia sobre a questão religiosa e mesmo o decreto da “morte


de Deus” não podem se tornar obstáculos à evolução humana. De
alguma forma deverá o ser humano encontrar o seu caminho para
tornar-se o que é. Ignorar que o caminho espiritual seja
indubitavelmente um caminho propício para este encontro consigo

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mesmo é fechar-se diante das imensas e inúmeras possibilidades


humanas.

Tal questão abordada por Jung assim se apresenta (O.C. V. XI/I p. 167):

É indiferente o que pensa o mundo sobre a experiência religiosa:


aquele que a tem, possui, qual inestimável tesouro, algo que se
converteu para ele numa fonte de vida, de sentido e de beleza,
conferindo um novo brilho no mundo e à humanidade. Ele tem
pistis e paz. Qual o critério válido para dizer que tal vida não é
legítima, que tal experiência não é válida, sendo essa pistis mera
ilusão? Haverá uma verdade melhor, em relação às coisas últimas,
do que aquela que ajuda a viver? Eis a razão pela qual eu levo a
sério os símbolos criados pelo inconsciente. (...) Ninguém pode
saber o que são as coisas derradeiras e essenciais. Por isso
devemos tomá-las tais como as sentimos. E se uma experiência
desse gênero contribuir para tornar a vida mais bela, mais plena
ou mais significativa para nós, como para aqueles que amamos
então poderemos dizer com toda a tranqüilidade: “foi uma graça
de Deus”.

E refletindo sobre o caminho já avançado que o ser humano trilhou no


Oriente podemos concluir com o pensamento junguiano (O.C. V. XI/II
p. 962):

Ensina-nos a experiência que o homem voltado excessivamente


para as coisas exteriores nunca se contentará com o estritamente
necessário, ambicionando sempre o mais e o melhor, que ele, fiel
aos seus preconceitos, busca no exterior. Assim procedendo se
esquece por completo de que interiormente continua sempre o
mesmo, apesar de todos os sucessos exteriores, e é por isso que se
queixa de sua pobreza quando só possui um carro, em vez de
dois, como os outros. Não há dúvida de que a vida do homem
comporta ainda muitas melhorias e embelezamentos, mas tais
coisas perdem o seu sentido quando o homem interior não as
acompanha. É claro que saciar-se com todo o “necessário” pode
ser uma fonte considerável de bem-estar, mas acima de tudo está
o homem interior, proclamando suas exigências que não podem
ser satisfeitas com bens exteriores. E quanto menos se prestar

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ouvidos a esta voz, que ultrapassa a busca incontida das glórias


deste mundo, tanto mais o homem interior se converterá numa
fonte de inexplicáveis fracassos e de incompreendida
infelicidade. (...) É justamente por isto que a sabedoria e a mística
do Oriente têm tanta coisa a dizer-nos, embora falem uma
linguagem própria e impossível de ser imitada. Elas devem
lembrar-nos aquilo que temos de semelhante em nossa cultura,
mas que já esquecemos, e dirigir nossa atenção para o destino de
nosso homem interior.

Eis que a “morte de Deus” pode se tornar vida para o homem na


medida em que o homem encontra um sentido para a sua vida e se
supera para tornar-se realmente o que deve ser. Em Nietzsche trata-se
de uma imagem de Deus que escravizou o humano e lhe negou a sua
transcendência. No cristianismo Deus realmente morre para dar vida
ao homem, mostrando-lhe o caminho para tornar-se o novo homem.

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BIBLIOGRAFIA

JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2002.

JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Obras Completas Vol. XI/I. 6. ed.


Petrópolis, Ed. Vozes, 1999.

JUNG, C. G. Psicologia e Religião Oriental. Obras Completas Vol. XI/II.


5. ed. Petrópolis, Ed. Vozes, 1991.

JUNG, C. G. O Eu e o inconsciente. Obras Completas Vol. VII/II. 17. ed.


Petrópolis, Ed. Vozes, 2003.

LECHTE, J. 50 Pensadores Contemporâneos Essenciais. Do


Estruturalismo à pós-modernidade. Rio de Janeiro: Difel, 2003.

NIETZSCHE, F. Así habló Zaratustra. Madrid: M. E. Editores, 1993.

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