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MEMÓRIA E (RÉS) SENTIMENTO INDAGAÇÕES SOBRE UMA QUESTÃO
SENSÍVEL
FAPESP
1. Historiografia 907.2
2. Memória 153.12
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Imagem de capa
Lasar Segall, Refugiados, 1922.
Pintura a aquarela e guache s/ papel, 39,5 cm x 48,6 cm.
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Luiz Hossaka
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO (Stella Bresciani e Márcia Naxara) 9
1 HISTORIA E MEMÓRIA DOS RESSENTIMENTOS
(Pierre Ansart) 15
Pierre Ansart
Universidade Paris VII - Denis Diderot
O tema de nosso colóquio nos leva a refletir sobre três conceitos - ressentimento,
história e memória - e sugere o estudo das relações tecidas entre eles. Para responder a esta
sugestão, gostaria de propor, primeiramente, uma reflexão sobre o ressentimento e, a seguir,
sobre a história e a memória dos ressentimentos. Minha exposição organiza-se, portanto,
em três partes: esforçar-me-ei, em primeiro lugar, por reconsiderar as definições do termo
Ressentimento; a seguir, abordarei a questão da História; e, finalmente, a questão da
Memória dos ressentimentos. Estas três questões levantam um problema central, o das
relações entre os afetos e o político, entre os sujeitos individuais em sua afetividade e as
práticas sociais e políticas, obrigando-nos a retomar, sob uma nova perspectiva, problemas
que dizem respeito à psicologia social, à psicologia do político e à psicologia da história.
Tal pesquisa encontra em nós muitas reticências. É preciso considerar os rancores,
as invejas, os desejos de vingança e os fantasmas da morte, pois são exatamente estes os
sentimentos e representações designados pelo termo ressentimento. Vamos, portanto,
evocar a parte sombria, inquietante e freqüentemente terrificante da história. Enquanto nos
dirigimos espontaneamente às dimensões positivas das relações humanas, esquivamo-nos
dos ódios, dos fantasmas da morte e das hostilidades ocultas que fazem parte da história.
Entretanto, devemos igualmente nos esforçar para compreendê-los e, se possível, explicá-
los.
Nietzsche
Tradução: Jacy Alves de Seixas
1
Friedrich Nietzsche, La généaiogie ela Ia morale (Zurgenealogie der moral [1887]).
Paris:Gallimard, Folio, 1971
judeo-cristãos contra os nobres romanos, a dos povoados germânicos contra os senhores
arianos. Nestas diferentes situações, reencontra a mesma configuração histórica,
caracterizada pela sublevação dos inferiores, pela sublevação dos escravos contra os
dominantes. Trata-se de diferentes formas da mesma guerra civil e cultural que se estendeu
ao longo de uma história marcada por situações precisas. Nietzsche evoca, sucessivamente,
o declínio do Império romano, a degenerescência do Império germânico, a reforma luterana,
a revolução de 1789 e a ascensão napoleônica.2
Nessa longa história, Nietzsche retém sobretudo a história dos sentimentos e,
essencialmente, a história do ódio. O que anima os padres contra os nobres guerreiros, os
escravos contra seus senhores, é o ódio e seus corolários: a inveja, o ciúme assassino, o
desejo de vingança. Vários mitos e teologias e vários autores, antes de Nietzsche, haviam
descrito o ódio e suas devastações: a Bíblia faz do assassinato de Abel o símbolo do ciúme
delirante; Platão faz do ódio social a paixão dominante dos pobres contra os ricos em uma
constituição oligárquica;3 Maquiavel faz da inveja rancorosa a paixão mais perigosa para o
poder do príncipe.4 Porém não é a história deste ódio direto e assumido que Nietzsche
descreve, mas, ao contrário, a de sua interiorização e denegação. O ponto central de sua
denúncia designa e analisa o trabalho psicológico através do qual o ódio foi ao mesmo
tempo interiorizado e recalcado pelos inferiores, denegado por aquilo que representa e
metamorfoseado em valor positivo: a inferioridade transformada em humildade resignada, a
fraqueza disfarçada em amor da justiça, o ódio ”recalcado” (zurückgetretene Hass)
transformado, eventualmente, em ódio de si mesmo.
Por outro lado, Nietzsche faz do ressentimento assim compreendido uma verdadeira
configuração psíquica e cultural, um habitus próprio à civilização judaico-cristã, a sua
pretensa moral que teria conseqüências sociais e políticas múltiplas e socialmente decisivas.
O ressentimento estaria na base do igualitarismo democrático destruidor, na raiz dos
movimentos populares, socialistas e anarquistas e, em uma só palavra, na origem da
decadência das sociedades ocidentais.
Assim, La généalogie de Ia morale, texto sombrio e atormentado, mescla à
concepção do ressentimento uma filosofia da história, uma crítica das religiões, uma
denúncia da moral, um conjunto de juízos sobre a vida política da Europa no final do século
XIX e um diagnóstico sobre sua decadência. Texto em que se cruzam múltiplos fios e no
qual é difícil se extrair uma definição de ressentimento sem abandonar uma parte das
hipóteses que o constróem.
5
Max Scheler, L’Hommedu ressentiment (Vom umsturzder werte [1912]). Paris: Gallimard,1958.
6
Robert K. Merton, Eléments de tbéorie et de méthode sociologique [1953]. Paris: Librairie Plon, 1965-
Agradeço a Claudine Haroche por ter chamado minha atenção para esse artigo.
7
Idem, op. cit., p. 188.
8
“A atitude da antiga geração em relação à nova nos apresenta uma situação carregada de ressentimento
potencial.” Max Scheler, op. cit., p. 39.
dois tipos opostos de ressentimentos: o primeiro, amplamente comentado, é o dos fracos,
dos dominados e dos padres ascéticos. Nietzsche não esconde seu próprio ódio por estas
populações dominadas, pelos padres judeus e cristãos, pelos socialistas e anarquistas, e
expõe implicitamente a segunda forma de ressentimento, impregnado de desprezo, que é o
dos nobres decadentes, estes poucos super-homens dos quais Nietzsche exalta a grandeza,
que não acalentariam senão arrogância e desprezo em relação a todos os fracos. Encontra-
se, assim, evocado um outro ressentimento, eventualmente tão destruidor quanto o
primeiro: o ódio recalcado dos dominantes quando se encontram em face da revolta
daqueles que consideravam inferiores. Ressentimento reforçado pelo desejo de reencontrar
a autoridade perdida e vingar a humilhação experimentada. Este ódio não é menos
“recalcado” e contido que aquele do escravo: insere-se na prática dos dominantes de conter
as manifestações de seu ódio e desejos de vingança.
Uma segunda precisão diz respeito à intensidade dos ressentimentos. Tanto
Nietzsche como Scheler parecem pensar que o ressentimento existe como um todo e que
um
indivíduo ou um grupo são, ou não, portadores deste sentimento. Mas a experiência comum
coloca-nos sobretudo em presença de intensidades variáveis e graduais. Seria
extremamente arbitrário colocar num mesmo plano uma hostilidade comum, tal como
vemos manifestar-se nas sutis estratégias de afastamento existentes entre comunidades
culturais diferentes, e, por outro lado, os delírios criminosos de um genocídio. Em um texto
consagrado ao ciúme, Freud propõe distinguir, ao.menos, três níveis de intensidade:
primeiramente, o ciúme que qualifica de “comum” e do qual todos seríamos, em geral,
portadores; a seguir, o ciúme ”constituído”, ligado a uma situação de rivalidade e passível
de tratamento e reflexão; e, enfim, o ciúme ”delirante”, que pode eventualmente conduzir
ao suicídio.9 Estas distinções, em meu ponto de vista, poderiam servir de inspiração na
abordagem das situações concretas de ressentimento.
Uma terceira proposição é a de enfatizar não apenas os sentimentos e afetos dos
indivíduos, mas, de forma complementar, as representações, as ideologias, os imaginários,
as crenças (e, portanto, as religiões), os discursos, que presumimos desempenhar papel
relevante no devir dos ressentimentos. Nietzsche, como Max Scheler ou Norbert Elias,
ressalta os sentimentos e os afetos. Mas o estudo da duração e, eventualmente, das
evoluções dos ressentimentos pode nos remeter à história das imagens, das palavras e dos
conteúdos imaginários.10
Uma quarta proposição concerne ao papel específico desempenhado por certos
indivíduos e grupos limitados - porta-vozes, escritores, líderes carismáticos, seitas e
minorias ativas - no interior dos movimentos sociais e das sensibilidades comuns.
Nietzsche dá um born exemplo destas distinções quando acusa um grupo limitado, os
padres, e faz deles os principais artesãos na formação de um ressentimento. Mas,
freqüentemente, Nietzsche e Scheler não resistem às simplificações da linguagem e têm
tendência a admitir que grandes grupos - os escravos, os nobres, os operários - têm, todos
9
Sigmund Freud, ”De quelques mécanismes névrotiques dans Ia jalousie, la paranóia et l’homosexualité”,
Revue Française de Psychanalyse, na3, 1932, pp. 391-401.
10
Pierre Ansart, La gestion dêspassionspolitiques. Lausanne, Paris: UAge d’Homme, 1983; idem, Lês
cliniciens dês passions politiques. Paris: Editions du Seuil, 1997.
eles, as mesmas reações emocionais e as mesmas atitudes. Fato difícil de admitir. É preciso,
portanto, refletir com mais acuidade sobre o papel daqueles que poderíamos chamar de
”provocadores” de ressentimento.
A quinta proposição diz respeito às conseqüências e manifestações do
ressentimento. Sobre este ponto, encontramos a mesma hesitação nas três definições
lembradas. Todas sublinham o caráter de inibição e impotência do ódio. Nietzsche opõe o
que denomina de ”ódio recalcado”, próprio do ressentimento, à agressividade direta do
guerreiro quando em combate. Max Scheler ressalta a ”ruminação” própria do homem do
ressentimento. Robert Merton, por sua vez, associa o ressentimento à impotência,
caracterizando-o, como frisamos anteriormente, como ”a experiência continuamente
renovada de impotente hostilidade”. Se seguirmos estas indicações, seria necessário limitar
os efeitos do ressentimento unicamente ao psiquismo dos indivíduos e construir a hipótese
de que a expressão, a manifestação e a exteriorização do ódio teriam como conseqüência
seu desaparecimento. As descrições de Nietzsche e de Scheler são, nesse ponto, hesitantes:
elas insistem ora na ruminação, na incapacidade do indivíduo de manifestar seu
ressentimento, ora na extensão dos signos, dos sintomas e das manifestações abertas ou
desviadas dos ressentimentos. Estas hesitações apontam para uma questão essencial:
dificilmente se jpode aceitar a hipótese de que um sentimento, do qual sublinhamos a
intensidade e a força, não tenha conseqüências nem manifestações nas condutas dos
indivíduos. O ódio recalcado de que fala Nietzsche é dinâmico, indissociável de certas
aspirações, particularmente dos desejos de vingança. Max Scheler assinala esta dinâmica do
ressentimento como criadora de valores, ou seja, de finalidades sentidas como desejáveis
pelos indivíduos e que eles buscam realizar. A questão essencial colocada, às vezes de
difícil resposta, é a necessidade de compreender e explicar como o ressentimento se
manifesta, a quais comportamentos serve de fonte e que atitudes e condutas inspira,
consciente ou inconscientemente. Sem dúvida, localiza-se aqui um ponto essencial e
particularmente significativo.
Este movimento que conduz à ação, à exteriorização, esclarece-se ao considerarmos
as satisfações e benefícios secundários que os ressentimentos podem proporcionar.
Nietzsche evoca no início de La généalogie de la morale a redefinição do bom e do mau, do
bem e do mal, que se opera no ressentimento. Se somos vítimas de indivíduos que nos
prejudicam e ferem nossas liberdades, experimentamos e estimamos que estes indivíduos
sejam malévolos, enquanto nós seríamos os bons. As forças que me são hostis são nefastas
e perversas, enquanto eu próprio sou justo e inocente do mal que me é feito. Portanto, os
ressentimentos, os sentimentos compartilhados de hostilidade, são um fator eminente de
cumplicidade e solidariedade no interior de um grupo, e suas expressões, as manifestações
(as ”explosões de sentimento”, como diz Nietzsche) podem ser gratificantes. D ódio
recalcado e depois manifestado cria uma solidariedade afetiva que,
extrapolando as rivalidades internas, permite a reconstituição de uma coesão, de uma forte
identificação de cada um com seu grupo. Daí, hoje em dia, a facilidade
com a qual indivíduos se reagrupam para gritar sua agressividade e inventar signos festivos
que exprimam seu desejo de vingança: apedrejar os símbolos do inimigo, queimar
personagens representadas em efígies etc.
Nas disputas políticas, o ódio comuin possibilita o esquecimento das querelas
internas e assegura a união em uma mesma comunhão de ódio. Marx observou o fato,
estudando os debates da Assembléia Nacional, em Paris, em 1848-1849, e mostrou como as
facções políticas em desacordo quanto a todos os problemas podiam se unir em torno de um
mesmo ódio contra o inimigo comum: ”[...] o partido da ordem”, escreve Marx, ”apresenta
num primeiro momento o aspecto de um amontoado de diferentes facções realistas que não
apenas fazem intrigas entre si, para que cada uma possa elevar seu próprio pretendente ao
trono e excluir o pretendente da facção adversa, mas também reúnem-se todas em um
mesmo ódio e mesmos ataques contra a ’República’”.11
As questões que teremos de examinar referem-se a estas situações: qual é a
solidariedade viabilizada pelo ressentimento coletivo? Como se operam os movimentos que
conduzem à ação? Como os provocadores, os demagogos utilizam os ressentimentos para
suscitar fusões emocionais e assegurar-se, desta forma, do apoio dos cidadãos?
Estas observações precisam, ainda, ser completadas por urna reflexão sobre os
sentimentps e emoções criadores de ressentimento. Max Scheler cita, dentre eles: a inveja, o
ciúme, o rancor, a maldade e o desejo de vingança.12 São necessários acréscimos a esta
lista: em primeiro lugar, a experiência da humilhação e, igualmente, experiência do medo.
A humilhação não provém apenas de uma inferioridade. Ela é a experiência do amor-
próprio ferido, experiência da negação de si e da auto-estima suscitando o desejo de
vingança. Quanto ao medo, de que Maquiavel faz o principal motor do ódio, ele não se
constitui, em certos casos, em um dos sentimentos poderosos que conduzem ao
ressentimento e que explicam, por exemplo, as explosões de vingança de uma população
muito tempo dominada e mantida sob temor?
Democracia e ressentimento
11
Karl Marx, Lê Dix-Huit Brumaire de Louis Bonaparte [1852]. Paris: Editions Sociales,1969, p. 46.
12
Entre as emoções e os sentimentos que contam, é necessário colocar antes de tudo: o rancor e o desejo de se
vingar, o ódio, a maldade, o ciúme, a inveja, a malícia.” Max Scheler, op. cit., p. 14.
13
Alexis de Tocqueville, De Ia démocmtie en Amérique [1835-1840]. Paris: Gallimard, Folio, 1961.
14
Jurgen Harbermas, Morale et communication: conscience et activité communicationnelle [1983]. Paris:
Editions du Cerf, 1986.
espaços de diálogos e de reflexão, tendo como efeito liberar as expressões e superar os
ódios através do reconhecimento das pessoas e de seus direitos. O diálogo democrático teria
como conseqüência permitir a expressão das hostilidades e, portanto, sua transformação em
reivindicações racionalizadas e o seu abrandamento pela tomada de consciência das
oposições de interesses. A eficácia da democracia permitiria romper os sentimentos de
impotência, arrancando os indivíduos de suas ruminações rancorosas, fazendo deles seres
responsáveis por si próprios e membros ativos de uma sociedade participativa.Trata-se aqui,
sem dúvida, de um ideal, de um conjunto de valores a serem perseguidos e de uma
ideologia política, ou seja, de um conjunto de representações e objetivos que constituem
modelos de ação, mas ultrapassam consideravelmente as realidades do presente e têm, em
geral, como finalidade ou resultado ocultar seus limites e fracassos.
Tanto a psicanálise como a antropologia nos convidam a temperar aquilo que
poderia constituir nossas ilusões nesse domínio.
A advertência de Freud
Freud lembra-nos que seria ilusório esperar, a não ser no mundo da utopia, a erradicação
completa dos ressentimentos. Sua resposta a este problema não se situa no interior de uma
investigação histórica, mas no plano mais geral e antropológico das pulsões. Freud insiste
em que a análise das pulsões inconscientes nos confronta à dualidade pulsional do amor e
do ódio. O exame do masoquismo, dos processos de identificação, dos comportamentos de
agressão ou de ciúme conduzem à redescoberta desta dualidade incessantemente posta e
recomposta.15 Nesse sentido, certos psicanalistas, como Mélanie Klein, vão mais além,
fazendo da experiência infantil primitiva a experiência inevitável do ódio e da
agressividade.16 Estas observações bastam para nos lembrar que, seguindo as indicações da
psicanálise freudiana ou kleiniana, devemos duvidar de que algum tipo de sociedade possa
fazer desaparecer a experiência do ódio, do ciúme, da inferioridade, da humilhação e das
potencialidades permanentes de agressividade.
Da mesma maneira, se considerarmos a formação do eu, a estrujturação da
personalidade, a elaboração dos mecanismos de defesa, não podemos imaginar a eliminação
da agressividade. O sujeito busca, da melhor forma, integrar as pulsões de agressão e,
assim, o ódio lhe é parcialmente estruturante.17 Para um grupo, a ideologia política,
designando claramente os alvos do ódio e do desprezo, pode fornecer aos membros do
coletivo um reforço da auto-estima e da segurança interior. Esta dinâmica geral é
encontrada nos grandes grupos, como se vê nas múltiplas formas de nacionalismo. A
exaltação do grupo nacional fornece ao sujeito um objetivo para suas necessidades de
vínculo, embasamento para sua auto-estima e orgulho pessoal, ao mesmo tempo que
equilibra este vínculo pela difamação das nações rivais. Este fenômeno não é próprio
15
Sigmund Freud, Malaise dans Ia civilisation (Das unbehagen in der kultur [1930]). Paris: Presses
Universitaires de France, 1971.
16
Mélanie Klein e Joan Rivière, L’Amour et Ia haine [1937]. Paris: Payot, 1968. Micheline Enriquez, Aux
carrefaurs de la haine. Paranóia, masochisme, apathie. Paris: Epi, Desclée de Brouwer, 1984.
17
Sigmund Freud, Malaise...,op. cit.,cap. VIII.
apenas do nacionalismo. Podemos observá-lo nas comunidades religiosas, nas seitas e em
toda coletividade que se encontra em rivalidade com outras.
Estas análises das raízes da vida psíquica colocam em dúvida as afirmações de
Nietzsche sobre a história do ressentimento. Para Freud, não importa quais sejam as
particularidades das evoluções históricas, devemos esperar que as hostilidades e os ódios,
assim como sua inibição, renovem-se sob formas variadas em todas as sociedades e em
todas as culturas. Freud dá dois exemplos em sua obra de 1930, Malaise dans Ia
civilisation:18 a propósito da Revolução Comunista de 1917, exprime seu ceticismo em
relação à esperança e à ilusão de que a supressão da propriedade privada, colocando um fim
ao ressentimento dos pobres contra os ricos, marcaria o fim de todo o ressentimento
coletivo.19 Afirma que, em virtude da necessidade permanente dos homens e das sociedades
de encontrar inimigos a serem odiados, uma sociedade comunista não se furtaria a recriar
outros inimigos e outros ressentimentos. Por outro lado, retoma a questão de Nietzsche
acerca do recalque do ódio, do sofrimento, da culpabilidade, mas confere às condições da
vida comum papel determinante. No lugar de atribuir o ódio recalcado e a culpabilidade a
uma religião, reconhece suas origens nas necessidades gerais da vida em comum, na cultura
e nas necessidades normativas da cultura que se opõem inelutavelmente às pulsões
individuais, introduzindo o ”malestar” na civilização.
Se seguirmos o ceticismo de Freud (ou, poderíamos pensar, sua lucidez),
deveríamos perder as ilusões sobre o fim do ressentimento e não esperar de uma
organização política e, portanto, da democracia a erradicação das invejas, dos ciúmes e dos
ódios impotentes. Mas Freud não nega, de forma alguma, que os sistemas políticos possam
favorecer, em maior ou menor intensidade, os ressentimentos ou que conjunturas
particulares, como as guerras, levem à exacerbação dos ódios e provoquem, segundo suas
palavras, o desencadeamento da barbárie.20 A questão da democracia como um sistema que
incita ou modera os ressentimentos precisa, portanto, ser colocada, mesmo afastando a
utopia de sua eficácia completa nesse domínio: a democracia real é favorável ou não ao
desenvolvimento dos ressentimentos?
Castas e ordens
18
Idem, op. cit., p. 66.
19
Idem, op. cit., pp. 67-68.
20
Idem, ”Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort” [I9l5] in Essais de
psychanalyse.Píris:Payoí,l977.
21
Max Scheler, op. cit., p. 37.
projeções rancorosas em relação às castas superiores.22Já em uma sociedade fundada sobre
o interesse individual e a busca incessantemente insatisfeita de igualdade, os ressentimentos
podem mais facilmente se exprimir. Alexis de Tocqueville faz observação semelhante a
propósito do Antigo Regime, lembrando que uma sociedade fundada sobre a distribuição
aparentemente inelutável em ordens hierarquizadas favorecia a aceitação das diferenças que
eram vividas, pelo menos até o Renascimento, como sagradas.23
Pode-se acrescentar, ainda, que os regimes totalitários, fascista ou comunista,
tiveram como estratégia ideológica favorecer a formação de um ódio dominante, um ódio
exclusivo, e exacerbá-lo com fins de mobilização coletiva. Para o regime nazista, ódio dos
governantes e das nações vitoriosas em 1918; para o regime stalinista, ódio dos capitalistas
e proprietários. Estes regimes tiveram em comum integrar em sua ideologia um ódio
dominante, um ressentimento de Estado, que possibilitava a ocultação dos ressentimentos
internos contra os dominantes e governantes no interior do regime estabelecido.
Nesta comparação entre os regimes políticos, a democracia ocupa, portanto, um
lugar particular distante das cidades de outrora, dos regimes de castas ou ordens, sem falar
das pequenas comunidades com forte integração estudadas pelos etnólogos. Instituindo o
individualismo político, a liberdade de expressão, a pluralidade reconhecida das opiniões
em um regime de economia de mercado, a democracia torna possível as expressões de
ciúme e inveja, suas manifestações, sua projeção sobre inimigos diversos, econômicos,
políticos ou religiosos, sobre as instituições ou representações individuais.
A ideologia liberal tem como evidente que o funcionamento da democracia deva ter
como efeito moderar os ódios sociais e os ressentimentos pela legalização das oposições. O
sufrágio universal e secreto representaria, assim, uma técnica de desapaixonar. Isolando
cada eleitor, separando-o, na cabine de voto, do élan das paixões coletivas, o regime
eleitoral tenderia a fragmentar os ressentimentos e, em princípio, a enfraquecê-los. com
efeito, desde o século XVIII, uma longa história política não cessou, por caminhos
múltiplos, de confirmar esta confiança nos efeitos moderadores da democracia.
Simultaneamente, entretanto, o regime democrático, repousando sobre a pluralidade
dos partidos em situação de concorrência, constrói e coloca em cena o encontro conflituoso
das frustrações e das hostilidades. Cada partido é levado pela concorrência política a
insurgir-se contra a injustiça fundada ou suposta da situação que limita o poder, ao qual,
segundo ele, teria direito em razão da justeza de sua causa. É levado a acusar os partidos
adversos de torpezas reais ou imaginárias, a denunciá-los por incapazes, desonestos e,
finalmente, perigosos para a coletivi-dade. Assim, o apelo aos ressentimentos e sua gestão
constituem uml verdadeiro manancial para os líderes políticos desenvolverem
ressentimentos para mobilizar eleitores a seu favor. A referência aos ressentimentos e
insatisfações constitui, assim, um fundo, um capital indefinido de argumentos no interior do
campo político, nas lutas que lhe são inerentes.
A gestão democrática dos ressentimentos é, portanto, menos simples do que pensam
os ideólogos da democracia. Este sistema, possuindo a vocação de respeitar uma certa
liberdade de expressão e de tolerar as manifestações de hostilidade, é levado a organizar o
que podemos chamar de uma ”gestão” dos ressentimentos, entendendo por isso não uma
22
Louis Dumont, Homo hierarchicus. Le système des castes et ses implications. Paris: Gallimard, 1979.
23
Alexis de Tocqueville, op. cit., tomo I, p. 44.
iniciativa premeditada de alguns rnanipuladores de opinião, mas a ação não programada,
embora relativamente coerente, das instituições e seus agentes. O regime democrático é, na
verdade, o regime que, contrariamente aos regimes autoritários ou absolutistas, possui a
vocação de ouvir os ecos dos ressentimentos, dar-lhes um certo direito de expressão, nos
limites das leis, e favorecer a superação dos ódios pela discussão e pelas concessões. Os
ressentimentos têm um lugar, um papel no mecanismo político: por exemplo, a
manifestação pública constitui-se em um procedimento legalizado de expressão dos
descontentamentos e uma ameaça simbólica aos representantes que permanecem
indiferentes a esta expressão. A história das políticas sociais, desde a metade do século
XIX, é feita das manifestações múltiplas do ressentimento das classes operárias, das classes
desfavorecidas e das ações, ora evasivas, ora efetivas, que tentam responder às revoltas e
acalmar sua violência. Legislações do trabalho, instituição de salários mínimos etc., todas
estas iniciativas são respostas aos ressentimentos e tentativas de transformar o Estado em
Providência tranquilizadora.24 Os regimes atuais social-democratas apresentam esta
vocação essencial para gerir os ressentimentos econômicos e moderá-los; as políticas
sociais, pode-se dizer, são práticas que visam atenuar as indignações, visam impedir que os
descontentamentos transformem-se em ressentimentos perigosos.
A questão dos ressentimentos nos defronta com uma dificuldade permanente das
ciências históricas: a de restituir e explicar o devir dos sentimentos individuais e coletivos.
Mas, esta dificuldade ganha, no caso dos ressentimentos, um relevo excepcional.
Certamente é muito mais difícil traçar a história de ódios do que a história de fatos
objetivos. O historiador das nações balcânicas nos diz, antes de mais nada, os fatos, as datas
dos conflitos que opuseram, desde o século XIV, as populações que se nomeiam hoje
sérvios e albaneses no Kosovo, os deslocamentos de fronteira, as tensões para a ocupação
das terras, as circunstâncias da ocupação alemã. Entretanto a tarefa do historiador é
infinitamente mais delicada quando se propõe a analisar e compreender a evolução das
hostilidades emocionais entre estas duas populações que, na realidade, viviam em harmonia
e sem exclusão recíproca. Ao mesmo tempo, o historiador não duvida da importância
decisiva dos ódios coletivos, embora encontre extrema dificuldade de compreendê-los em
todas as suas nuanças e contradições.
A dificuldade é redobrada quando se trata não somente de analisar os ódios, mas de
compreender e explicar aquilo que precisamente não é dito, não é proclamado; aquilo que é
negado e que se constitui, entretanto, como um móbil das atitudes, concepções e percepções
sociais. O objeto esquiva-se; é preciso formular a hipótese de sua importância e reconstituir
o invisível que, se não é totalmente inconsciente, ao menos em parte é não consciente. É
preciso formular a hipótese do papel do inconsciente na política, hipótese audaciosa em seu
princípio e em suas realizações.
O historiador encontra-se na obrigação de acumular o estudo dos indícios, dos
signos, dos traços: estudar a distribuição dos camponeses nos solos, estabelecer as curvas
dos casamentos mistos, observar as estratégias de afastamento, considerar os limites das
24
Pierre Rosanvallon, La crise de l’Etat Providence. Paris: Editions du Seuil, 1981.
terras e os litígios, recompor os rituais religiosos, observar qual imagem do outro é aí
apresentada, retraçar a história particular de um estupro e dos rumores que o tornaram
público e o transformaram em crime simbólico etc. Tarefa delicada que diz respeito mais ao
estudo dos costumes, dos usos da vida cotidiana que à grande história política. O
historiador tem, também, a obrigação de estudar as linguagens, os modos de comunicação e
transformá-los em sintomas: as distâncias alimentadas pela incompreensão recíproca das
línguas, pelas imagens depreciativas nos contos ou nas brincadeiras familiares, nas
representações agressivas veiculadas pelas religiões. E, no final de todo este trabalho, será
preciso ainda mostrar como estes costumes, estas atitudes, estas linguagens articularam-se
para embasár ressentimentos e, eventualmente, permitir que se atravessasse a distância entre
este ressentimento e a violência aprovada e encorajada.
Não se pode atingir a clareza que proporciona o estudo dos fatos objetivos.
Consideremos, por exemplo, o fenômeno recente da freqüente participação de crianças e
pré-adolescentes em práticas de agressão marcadas pelo ódio coletivo. Os exemplos
multiplicaram-se durante a guerra entre Irã e Iraque, de 1980 a 1988, na guerradas pedras na
Palestina, na Revolução Cultural na China, de 1966 a 1977, no Camboja ou na África
negra. Que tipo de educação, de transmissão de estereótipos habilitam estas crianças a
consentir com tanta facilidade na violência e, às vezes, a praticar assassinatos sem
culpabilidade? Situamo-nos aqui nas fronteiras do conhecível, nos limites dos
conhecimentos seguros; o estudo e a consideração dos ressentimentos nos conduzem
necessariamente a estas zonas confusas e, em parte, incertezas.
As memórias dos ressentimentos comportam estas mesmas incertezas.
Literalmente, “pés negros”, expressão pela qual são chamados os franceses que habitavam a Argélia (N. da
T.)
25
Gérard Namer, Batailles pour Ia mémoire. La commémoration en France, 1944-1982. Paris: Papyrus, 1983.
26
Jean Michel Chaumont, La concurrence dês vitimes: génocidc, identité, reconnaissance. Paris: La
Découverte, 1997.
uns como os outros foram vítimas da mesma ferocidade. Daí a organização de processos
confusos, onde as diferentes versões da história e as diferentes memórias pessoais e
familiares opuseram-se.
A intensificação. O quarto e último caso é aquele que se poderia chamar de
reiteração ou exasperação do ressentimento, e que pode assumir a forma de um verdadeiro
delírio de ressentimento, como constatamos no totalitarismo nacional-socialista. Sabe-se do
uso repetitivo que a propaganda hitlerista, após a subida ao poder em 1933, fez da
humilhação de 1918 e do desejo de revanche e vingança. Da forma exasperada como foi
desenvolvido o ódio pela riqueza capitalista, o ódio contra os judeus e contra os franco-
maçons. Mas o que dizer da memória destes ressentimentos? Somos capazes de sustentar o
esforço que implica pensar o ódio delirante? As vítimas são capazes de buscar a
reconstituição do ódio assassino, como o são de evocar os fatos da perseguição? Não nos
situamos aqui nos limites das possibilidades da memória, além daquilo que a memória pode
suportar?
Na profusão de ensaios escritos pelas vítimas das perseguições, encontram-se
relativamente poucas análises aprofundadas sobre os ressentimentos próprios de seus
perseguidores. Os trabalhos que trataram esta questão com mais profundidade são
originários não das memórias individuais, mas de pesquisas de caráter científico e histórico.
Dois trabalhos deste tipo respondem, por exemplo, a este problema: a obra de Hannah
Arendt, Eichmann à Jerusalém,27 e a de D. J. Goldhagen, Lês bourreaux volontaires de
Hitler.28 Talvez estas obras, que defendem teses divergentes, possam nos auxiliar a
compreender a profunda reticência das memórias em reconstituir estes ressentimentos.
Porque, como desenvolve Hannah Arendt, o ódio delirante torna-se inútil para a realização
dos massacres coletivos, a lógica da burocracia de Estado substitui-se às paixões do ódio.
Ou então, como desenvolve Goldhagen, uma crença elementar no suposto perigo sobre uma
população bastaria para suscitar a “boa vontade” entre os cidadãos comuns, a fim de efetuar
as perseguições. Nas duas hipóteses, não é certo que a memória possa ir até o fim na
reconstituição do passado. Sem dúvida, tocamos aqui os limites das possibilidades da
memória e somente a pesquisa histórica para considerar estas questões.
Para finalizar, e voltando a Lagénéalogie de Ia morale, poderíamos retomar a lição
de Nietzsche, que indiretamente adverte sobre a importância da reflexão sobre o
ressentimento em razão da extensão de suas conseqüências e de seu caráter destrutivo.
Talvez seja urgente manifestar uma vigilância maior em relação às ameaças provocadas
pelos encorajamentos atuais a novos ressentimentos e sua legitimação pelo Estado. É
inquietante, por exemplo, ouvir a propaganda oficial instigar vigorosamente o ódio contra
inimigos reais ou supostos, transformando, assim, muitos jornalistas e manipuladores de
opinião em militantes das causas governamentais contra novos bodes expiatórios. Um
deslocamento produz-se sob os nossos olhos, deslocamento já estigmatizado por Platão e
que conduz do desprezo ao ódio; o ódio ocupando confusamente o lugar do desprezo.
Desprezo dos ricos pelos pobres, desprezo de uma poderosa classe dirigente pelas
oposições a seu poder, desprezo que pode se transformar em ódio quando os dominantes se
27
Hannah Arendt, Eichmann à Jerusalém. Rapport sur la banalité du mal [1963]. Paris: Gallimard, 1966.
28
Daniel Jonah Goldhagen, Lês bourreaux volontaires de Hitler, lês allemands ordinaires et l’Holocauste
[1996]. Paris: Editions du Seuil, 1997.
sentem ou se acreditam ameaçados em sua hegemonia e interesses. Situa-se certamente aqui
uma nova dimensão do despotismo democrático temido e anunciado por Tocqueville.
Capítulo 2
Estas reflexões inserem-se numa pesquisa mais abrangente - De Todas as Memórias, a Memória: Estudos
sobre a Memória Histórica -, que procura apreender as relações tecidas entre história e memória, recorrendo a
um enfoque transdisciplinar, que privilegia sobretudo a literatura (as obras de M. Proust) e a filosofia (H.
Bergson, G. Bachelard e F. Nietzsche). Tal pesquisa é financiada pelo CNPq.
1
Em Los judios, Ia memória y ei presente. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996,
p. 247.
2
Não são numerosos os trabalhos historiográficos dedicados a refletir sobre as relações memória-história.
Ver, a respeito, J. Lê GorF, ”Memória”, in Enciclopédia Einaudi. Einaudi, Imprensa Nacional, Casa da
Moeda, 1984, vol. l - Memória-história, pp. 11-47; os seguintes ensaios de Pierre Nora ao longo dos volumes
Essa reflexão, entretanto, parece iluminar-se no âmbito da transdiciplinalidade, a
partir da construção de tramas que coloquem a história em diálogo com campos do saber e
da sensibilidade que também, e de forma diversas, tematizaram a problematizaram a
memória. A partir desse olhar, muitas interrogações se apresentam: ora, é legítimo
pensarmos num estatuto teórico próprio à memória especificamente histórica? Seria tal
formulação pertinente: a particularidade de uma memória histórica, distinta por exemplo da
memória literária ou, ainda, da memória constitutiva do indivíduo enquanto tal? Sem
enfrentar a questão, ou driblando-a com mais ou menos sutilezas, a historiografia tem
procedido como se a resposta a essa problemática estivessa a priore dada, contituida por um
inequívoco e inexplicitado “sim”, que se impõe na medida mesmo em que são
desconsideradas muitas das categorias e conteúdos da memória definidos “fora” do campo
de investigação historiográfico e que a tem singularizado e definido enquanto tal. Como se
a memória, em sua relação com a história, deixasse em grande medida de ser memória para
enquadrar-se nos preceitos teóricos-metodológicos da(s) historiografia(s), como se ela
espontanemante se redefinisse, abandonando pedaços importantes que a definem, no
contato taumatúrgico da história.
Uma primeira questão que gostaria de levantar é o verdadeiro parti pris constituido
pela consideração da memória voluntária, ocupando todo o espaço conceitual consagrado à
temática, regulando as relações entre memória e história, entre memória e esquecimento,
entre memória e conhecimento. Buscar traçar a genealogia de tal postura nos remete aos
antigos gregos, ou melhor aos gregos da época clássica, que em vários campos realizaram
uma aproximação fecunda e problemática entre memória e história, a primeira consituindo-
se finalmente como o meio privilegiado de acesso ao verdadeiro conhecimento. Essa noção,
que retém dominantemente a memória como faculdade intelectual, a memória-
conhecimento, alimentou toda a tradição platônica e neoplatônica que, por sua vez,
fecundou a Idade Média, de onde, a partir da importancia da concepção agostiniana de
memória, 3 influenciou toda a cultura racionalista posterior. A adequação entre memória e
história possui, portanto, raízes sólidas e longas. Mas a memória apreendida unicamente em
sua função cognitiva não é algo evidente ou “natural”, mas profundamente histórico, que se
insere numa epistemologia específica e supoe uma trajetória (digamos, uma trjetória de
“exílios”). Vale ressaltar aqui (ainda que não nos detenhamos nessa análise) que as
“categorias arcaicas da memória” retém a sua trifuncionalidade, como memória-ação,
memória afetiva e memória-conhecimento.4
de Les lieux de mémoire: ”Entre mémoire et histoire - La problématique dês lieux” (Paris: Gallimard, 1984,
vol. l - La Republique, pp. XV-XLII) e ”LÈre dês commémorations” (1992, vol. 3 -”- Lês France, pp. 4.687-
715); Thomas Butler (org.), History, culture and the mind. Londres: Basil Blackwell, 1989, especialmente
Peter Burke, ”History as social memory”, cap. V. Ver, igualmente, o dossiê ”Trabalhos da memória”, Revista
Projeto História. São Paulo, n” 17, nov., 1998.
3
Ver o importante livro de Patrick J. Geray, La mémoire et 1’oubli à la fin du premier millénaire. Paris:
Aubier, 1996, pp. 38-41, Coll. Histoires.
4
Ver, a respeito, M. Simondon, La mémoire et l’oubli dans la pensée grecque jusqu’a la fin du Vème siecle.
Paris: Lês Belles Lettres, 1982. Essa questão encontra-se aprofundada em meu artigo “Comemorar entre
memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica”, História: Questões &Debates. Associação
Paranaense de História, Programa de Pós-Graduação em História, UFPR, jan.-jul., 2000.
Recentemente, a partir do início da década de 80, a historiografia vem afirmando
noção diversa; ela toma consciencia de que a relação memória-história é mais uma relação
de conflito e oposição do que de complementaridade, ao mesmo tempo – aqui se increve a
novidade da crítica – em que coloca a história como senhora da memória, produtora de
memórias.
A oposição entre memória e história, no entanto, é contruída sem que haja ruptura
efetiva com a tradição aristotélica que entende a memória (ou melhor, a reminiscencia, o
ato de lembrar), sobretudo em sua função cognitiva, como conhecimento do passado.
Ao redebruçar-se sobre a memória, a historiografia contemporânea pouco tem
recorrido às reflexões da filosofia ou da literatura, mas tem estabelecido com a sociologia
seu diálogo preferencial. De fato, é a sociologia da memória de Maurice Halbwachs que se
constitui na base teórica fundamental à maioria dos trabalhos historiográficos. Neste
sentido, é importante assinalar a influência da sociologia de Halbwachs que elabora, em
1925, uma sociologia da memória coletiva - sobre Pierre Nora, que no terreno
historiográfico elaborará a divisão e oposição entre memória e história. Escreve Nora, em
1984, de forma provocativa: ”Memória, história: longe de serem sinônimas, tomamos
consciência de que tudo as opõe”.5
Nora retoma e apropria-se6 das idéias básicas de Halbwachs - a oposição que
estabelece entre memória individual e memória coletiva e, sobretudo, entre memória
coletiva e história. À memória coletiva, Halbwachs confere o atributo de atividade natural,
espontânea, desinteressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil
para criar um elo entre o presente e o passado, ao contrário da história, que constitui um
processo interessado, político e, portanto, manipulador. A memória coletiva, sendo
sobretudo oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de narrativas; a história é uma
atividade da escrita, organizando e unificando numa totalidade sistematizada as diferenças e
lacunas. Enfim, a história começa seu percurso justamente no ponto onde se detém a
memória coletiva.
Em suas reflexões sobre memória e história, Pierre Nora as oporá ainda mais
radicalmente. Afirma que é impossível, hoje, operar-se uma distinção clara entre memória
coletiva e memória histórica, pois a primeira passa necessariamente pela história, é filtrada
por ela; é impossível à memória escapar contemporaneamente dos procedimentos
históricos. Assistimos hoje ao fim das ”sociedades-memórias”, e o que evidenciamos como
uma revalorização retórica da memória esconde, na verdade, um vazio. “Fala-se tanto de
memória precisamente porque ela não existe mais.”7
Nora organiza uma classificação rígida e dicotômica entre memória e história. A
memória é a tradição vivida- ”a memória é a vida”8 e sua atualização no ”eterno presente” é
espontânea e afetiva, múltipla e vulnerável; a história é o seu contrário, uma operação
profana, uma reconstrução intelectual sempre problematizadora que demanda análise e
5
“Entre mémoire et histoire”, in Lês lieux..., op. cit., vol. l, p. xix.
6
Utilizo-me aqui do conceito de apropriação conforme elaborado por R. Chartier. Ver, em especial, “História
intelectual e história das mentalidades”, in A história cultural-Entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Difel, Bertrand Brasil, 1985; idem, ”O mundo como representação” [1989], Estudos Avançados, 11, 5,
1991,pp. 173-91.
7
Nora, “Entre mémoire et histoire”, op. cit., vol. l, p, xvii.
8
Idem, op. cit., p. xix.
explicação, uma representação sistematizada e crítica do passado. A memória tece vínculos
com a tradição e o mundo pré-industrial, a história, com a modernidade; neste sentido, a
história-memória é sobretudo conservadora; a história-crítica é subversiva e iconoclasta.
Tudo aquilo a que chamamos hoje de memória, conclui Pierre Nora, já não o é, já é história.
A memória encontra-se, assim, prisioneira da história ou encurralada nos domínios
do privado e do íntimo, transformou-se em objeto e trama da história, em memória
historicizada. Esse movimento é inexorável e sem volta, toda memória hoje em dia é uma
memória exilada, que busca refúgio na história: restam-lhe, assim, os lugares de memória
(de uma memória que apenas vive sob ”o olhar de uma história reconstituída”)9 como seu
grande testemunho.
A recente historiografia anglo-saxônica,10 igualmente sensibilizada pelas novas
velhas questões relativas à memória e suas relações com a história, vem apontando para
outros enfoques que, partindo da crítica à oposição halbwachsiana entre memória coletiva e
história, buscam conferir maior autonomia à memória. Mas, apesar de partir de
pressupostos diversos e enriquecida por valiosos estudos e pesquisas empíricas (sobretudo
no campo da história oral), ela vai desembocar, trilhando caminhos diversos, na mesma
apropriação da memória pela história operada pela historiografia francesa. No esforço de
recompatibilizar memória e história, a temática da memória é aproximada em demasia da
noção de história, de tal forma que uma união simbiótica se efetua e se acaba por aplicar
aos procedimentos e mecanismos da memória, aqueles que reconhecemos de longa data
como historiográficos. Enfim, acaba-se por não se reconhecer uma distinção clara entre
memória e história, operando-se uma identificação entre elas.
No lugar do caráter espontâneo e natural, ressaltam-se os empreendimentos
deliberados de reconstrução empreendidos pela memória, que responde por via de regra a
demandas e interesses políticos precisos.Toda memória é fundamentalmente “criação do
passado”: uma reconstrução engajada do passado (muitas vezes subversiva, resgatando a
periferia e os marginalizados) e que desempenha um papel fundamental na maneira como
os grupos sociais mais heterogêneos apreendem o mundo presente e reconstroem sua
identidade, inserindo-se assim nas estratégias de reivindicação por um complexo direito ao
reconhecimento.11 O que é aqui colocado em primeiríssimo plano é, portanto, a relação
entre memória e (contra)poder, memória e política.
A memória é ativada visando, de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto,
do presente). Reformar o passado em função do presente via gestão das memórias significa,
antes de mais nada, controlar a materialidade em que a memória se expressa (das relíquias
9
Idem, op. cit., p. xxiii. No ensaio “A era da comemoração” [1992], Pierre Nora retoma essa mesma idéia: “O
que chamamos hoje de memória, no sentido que falamos de uma memória operária, occitana, feminina, é ao
contrário [...] a consciência histórica de uma tradição morta, a recuperação reconstituidora de um fenômeno
do qual estamos separados e que interessa mais diretamente àqueles dos quais estamos separados [...]. Esta
memória é de fato sua história”. Lês lieux..., op. cit., vol. 3, p. 4.704.
10
Ver, em especial, os trabalhos de Keith Michael Baker, “Memory and practice”, Representations,XÍ, 1985,
pp. 134-64; Thomas Butler (org.), History, culture..., op. cit.; James Fentress e Chris Wíckham, Social
memory. Oxford: Blackwell, 1992 [Lisboa: Teorema, 1994]; Patrick J. Geray, La mémoire et 1’oubli..., op.
cit.; Michael S. Roth, The ironists cage - Memory, traume and the construction of the history. Nova York:
Columbia University Press, 1995; bem como o número dedicado à memória no Journal of American History,
LXXV, nº 4, 1989.
11
Ver, a respeito, Claudine Haroche, “Lês exigences de reconnaissance dans lês sociétés démocratiques”, pp.
203-16.
aos monumentos, aos arquivos, símbolos, rituais, datas, comemorações...). Noção de que a
memória torna poderoso(s) aquele(s) que a gere(m) e controla (m).
Nessa abordagem, a função da memória, potencializada particularmente nos
momentos de crise e ruptura históricas, é a de servir à história, o que a aproxima do enfoque
de Pierre Nora - da noção de ”memória historicizada” -, ainda que se diferenciem sob vários
outros aspectos. Ao querer abolir a relação dicotômica entre memória coletiva e história (o
”tudo as opõe” de Nora), elas são aproximadas em demasia, de tal forma que a memória,
essencialmente seletiva, reveste-se por inteiro dos traços atribuídos à história. Difícil, então,
perceber quaisquer distinções entre memória e história (ainda que não sejam
dicotômicas...), porque memória passa a identificar-se com história. Ou seja, a memória e o
esquecimento aqui também só existem sob os olhares da história, investindo-se na
reconstrução de novas identidades, a partir de um critério utilitário-político. ”Toda
memória, seja ela ‘individual’, ‘coletiva’ ou ‘histórica’, é uma memória.para qualquer
coisa, e não se pode ignorar esta finalidade política (no sentido amplo do termo).”12
Se em Nora toda memória é apropriada e historicizada, aqui toda memória é
imediatamente história; uma diferença, portanto, de grau, mas não de qualidade,
distinguiria, grosso modo, as historiografias dedicadas hoje ao estudo da memória e da
história.
Há dois efeitos importantes derivados desta contemporânea apropriação da memória
pela história sobre os quais gostaria de deter-me. Apropriação esta que se viabiliza, em
grande medida, pela consciência historiográfica que se constitui, desde Tucídides,
realizando precisamente a crítica da memória, desincompatibilizando-se com ela. Ou seja, a
historiografia deixando de se colocar como um dos campos constitutivos da memória para
posicionar-se ”fora” dela, numa postura vigilante e crítica; sobre a memória paira,
doravante, nesse longo percurso em que a história busca se constituir como um saber
científico, o ”olho”13 vigilante da história.
Um primeiro efeito desta recente apropriação da memória pela história é a sua
extrema operacionalidade e produtividade. E o ”frenesi de memória” (segundo a expressão
de Arno Mayer)14 das duas últimas décadas, fenômeno novo e sem dúvida salutar, que está
na raiz de importantes movimentos identitários (sociais e/ou políticos) e de afirmação de
novas subjetividades, de novas cidadanias. Responsável pelo resgate de experiências
marginais ou historicamente traumáticas, localizadas fora das fronteiras ou na periferia da
história oficial ou dominante. Responsável, igualmente, por um debate historiografia) que
teve como desdobramento o aparecimento de novas noções, como as de “memórias
subterrâneas”, “lembranças dissidentes”, “lembranças proibidas”, “memórias enquadradas”,
“memórias silenciadas”, mas não esquecidas,15 e outras que buscam dar conta da
complexidade dos fenômenos contemporâneos da memória.
O segundo efeito, que se entrelaça com o primeiro, concerne a sua vulnerabilidade
teórica, pois, no mesmo momento em que se levanta o divisor de águas entre história e
12
Patrick J. Geray, La mémoire et l’oubli..., op. cit., p. 31.
13
O olho (opsis) é uma metáfora cara a Tucídides, que identifica a ”pesquisa da verdade” histórica com o ”ver
o que há de claro nos fatos passados”. Cf. A Guerra do peloponeso (trad. de Anna Lia Amaral de Almeida
Prado). São Paulo: Martins Fontes, 19199, vol. l, pp. 29-31.
14
Em ”Lês pièges du souvenir”, Esprit, ns 7, jul., 1993, pp. 45-59.
15
Cf. Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio”, Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº 3, vol. 2,
1989, pp. 3-15.
memória para, em seguida, destruí-lo, não se discutem finalmente os mecanismos de
produção e reprodução da memória, seja ela coletiva ou histórica. Apenas se designam
algumas de suas características, definidas em relação ao próprio paradigma histórico,
apresentado em toda sua positividade e voracidade. Tudo se passa como se a memória só
existisse teoricamente sob os refletores da própria história, postura que não resiste a uma
observação mais atenta e descentrada. Assim, a afirmação sedutora de Pierre Nora de que,
se ainda habitássemos nossa memória, não haveria necessidade de lhe consagrar lugares
específicos desconsidera um traço instituidor da memória, que é precisamente a
espacialização do tempo16(retomaremos, a seguir, essa noção) e, precisamente, o exprimir-
se, materializar-se e atualizar-se através de lugares. Os lugares de memória, neste sentido,
representariam menos uma ausência de memória ou a manifestação de uma memória
historicizada do que irrupções afetivas e simbólicas da memória em seu diálogo sempre
atual com a história. É porque habitamos ainda nossa memória- tão descontínua e
fragmentada quanto o são as experiências da modernidade - e não porque estejamos dela
exilados que lhe consagramos lugares, cada vez mais numerosos e, freqüentemente,
inusitados (ao menos ao olhar sempre armado da história).
Por outro lado, enfatizar exclusivamente a função política da memória de controle
voluntário do passado (e, portanto, do presente) não significa inibi-la ou deixar de
reconhecê-la em outras de suas facetas, funções e movimentos diferentemente políticos?
Memória = história; memória versus história; memória e história: descaracterizada
ou só reconhecida parcialmente - naquilo que mais a aproxima dos procedimentos
voluntários, sistêmicos e intelectuais da história-, abocanhada pela voracidade
historiográfica, a memória no entanto parece perseverar, de forma clandestina e poderosa, à
maneira que lhe é própria, em sua relação sempre atual com a história.
Se nos interrogarmos sobre o que, enfim, a insistência historiográfica exclusiva na
memória voluntária está deixando de lado, uma reflexão nova pode se desvelar, apontando,
então, aspectos até agora pouco considerados: a dimensão afetiva e descontínua das
experiências humanas, sociais e políticas; a função criativa inscrita na memória de
atualização do passado lançando-se em direção a um futuro, que se reinveste dessa forma de
toda a carga afetiva atribuída comumente às utopias e aos mitos. Em poucas palavras: se
buscamos refletir sobre as relações entre memória e história, penso ser necessário iluminar
a memória também a partir de seus próprios refletores e prismas; necessário, portanto,
incorporar tanto o papel desempenhado pela afetividade e sensibilidade na história quanto o
da memória involuntária. Necessário, igualmente, atentarmos para o movimento próprio à
memória humana, ou seja, o tempo-espaço no qual ela se move e o decorrente caráter de
atualização inscrito em todo percurso de memória.
A releitura de Mareei Proust e de Henri Bergson pode trazer, nesse sentido, à
reflexão historiográfica importantes e sugestivos pontos de apoio.
16
Ver, a respeito, meu artigo “Os tempos da memória: a (des)continuidade. Reflexões sobre a memória
histórica”, encaminhado para publicação.
Proust, assim como Bergson, em muitas passagens de sua obra alertou para o fato de
que seria mais legítimo falarmos de memórias, no plural; memórias (e esquecimentos)
desiguais e de estatutos diversos que ocupam lugares diferentes nos diversos planos que
constituem a memória em seu percurso. Essas várias memórias não possuem o mesmo
alcance e nem a mesma consistência; essa distinção fundamental possibilitou a Proust
realizar uma crítica veemente e desabusada da memória intelectual, ao menos aos nossos
ouvidos historiográficos. Escreve ele: ”Cada dia atribuo menos valor à inteligência. Cada
dia percebo melhor que é apenas fora dela que o escritor pode apreender alguma coisa de
nossas impressões passadas [...]. O que a inteligência nos dá sob o nome de passado não é
ele”.17
Para Bergson, assim como para Proust, a memória voluntária não atinge o pleno
estatuto da memória,18 ela configura uma memória menor, essencial à vida, porém
corriqueira e superficial, pois atada ao hábito e à ”vida prática”, à repetição passiva e
mecânica. Ela é, segundo o filósofo, na melhor das hipóteses, ”o hábito iluminado pela
memória ao invés da memória ela mesma”,19 insere-se no presente do mesmo modo que
nosso hábito de andar ou de escrever; ao invés de representar o passado, ela simplesmente
o ”executa”, repete-o, sendo por definição sensorial e motora.
Para Proust, igualmente, a memória voluntária não é nada além da anódina
”memória dos fatos”,20 representando na realidade um obstáculo à expressão da verdadeira
memória. Estima que é necessário, antes de mais nada, “ romper com todas as forças o gelo
do hábito”,levantar “”o véu pesado do hábito (hábito imbecilizante que durante todo o
curso de nossa vida nos oculta mais ou menos todo o universo)”.
Encontramos em Proust uma radicalização da crítica à noção de memória
voluntária: aviltada pelo hábito, certamente, mas também pela inteligência. Proust afasta-se
aqui de Bergson, criticando a memória voluntária enquanto memória intelectual. “Para
mim”, escreve Proust,
17
Proust, Contre Saint-Beuve. Paris: Gallimard, Pléiade, 1971, p. 211.
18
As distinções entre memória voluntária e memória involuntária e suas relações com a história são tratadas
em meu artigo “Os campos (in)elásticos da memória: reflexões sobre a memória histórica”, in M. S. Bresciani,
M. Brepohl e J. A. Seixas, Razão e paixão na política. Brasília: Editora da UnB, no prelo.
19
Matière et mémoire. Paris: PUF, Quadrige, pp. 89-90.
20
Pastiches et mélanges, àpud Georges Poulet, Etudes sur lê temps humain. Paris: Êditions du Rocher, vol. l,
p. 409.
“Swann expliqué par Proust”, in Essais et articles. Paris,: Editions du Rocher, vol.1, p.409.
La fugitive. Paris: PUF, Quadrige, pp.89-90.
“Swann expliqué par Proust”, op. cit., p. 558.
sentido, observa Proust, “podemos prolongar os espetáculos da memória voluntária que não
exige de nós mais forças do que folhear um livro de imagens.” Em Proust, a memória
involuntária é aquela que rompe com o hábito (que constitui a camada mais superficial da
memória voluntária), mas sobretudo rompe com todo esforço vão de busca e captura
intelectual do passado. Buscar o passado por meio do gesto voluntário da inteligência é, a
um só tempo, desgastante e infecundo: este o julgamento do narrador adulto ao defrontar-se
com a verdadeira memória e seu poder de “fazer reencontrar os dias antigos, o tempo
perdido, face aos quais os esforços de minha memória e de minha inteligência sempre
fracassaram”.
Com a noção de memória involuntária atingimos, tanto na ótica bergsoniana quanto na
proustiana, um outro plano da memória humana, somos conduzidos a uma memória “mais
elevada”, à “verdadeira memória”. Espontânea, ela é feita de imagens que aparecem e
desaparecem independentemente de nossa vontade, revela-se por “lampejos bruscos, mas se
afasta ao mínimo movimento da memória voluntária”. Ambas as memórias para Bergson,
“a memória que imagina e aquela que repete, vão “lado a lado e se apóiam mutuamente”.
A memória involuntária, em Proust, é instável e descontínua, não vem para
preencher os espaços em branco, supõe as lacunas e constrói-se com elas. Ela não soma
enem subtrai, ele condensa. Neste sentido, memória voluntária e involuntária preocupa-se
em “colocar traços no rosto de uma passante, quando no lugar do nariz, das faces e do
queixo deveria apenas existir um espaço vazio onde, no máximo, viesse brincar o reflexo de
nossos desejos”. Esse espaço vazio, no entanto, é denso, pois percorrido por tempos
múltiplos, passíveis de ser atualizados pelas arttimanhas da memória involuntária.
A memória é portanto algo que “atravessa”, que “vence obstáculos”, que “emerge”, que
irrompe: os sentimentos associados a este percurso são ambíguos, mas estão sempre
presentes. Não há memória involuntária que não venha carregada de afetividadee, ainda
que a integralidade do passado esteja irremediavelmente perdida, aquilo que retorna vem
inteiro, íntegro porque com suas tonalidades emocionais e “charme” afetivo.
Mas recoloquemos a questão: o que essencialmente, a memória voluntária deixa
escapar? Toda dimensão afetiva e descontínua da vida e das ações dos homens. Nesse
sentido, Swann, envelhecido observa o narrador proustiano, podia falar serenamente dos
dias em que fora amado por Odete, valendo-se comprecisão de frases que eram “outra
coisa” que aqueles dias; mas o personagem experimentava “dor súbita”, uma emoçãoa
Le temps retrouvé. Paris: Gallimard, La Pléiade, 1954, tomo III, p. 873.
Op. Cit., tomo III, p. 871.
Sodome et Gomorrhe. Paris: Gallimard, La Pléiade, 1954, tomo II, p. 984. Cito: “[...] há outras memórias,
mais elevadas, mais instáveis também”.
Bergson, Matiere..., op. Cit., pp. 89 e 168, respectivamente. O termo “memória involuntária” não aparece
em Bergson, mas “memória espontanea”, “memória lembrança”.
Idem, op. cit., p. 93.
Idem, op. cit., p. 168.
Le temps..., op. cit., tomo III, p. 1.045.
O registor dos limites e esforços sempre inúteis da memória voluntária – “sem dúvida”, ele lembrava [dos
fatos de sua infância], mas sem sua cor, sem seu charme’ – é seguido pela observação enfática de como a
memória plena se torna, enfim, acessível: “[...] todas as flores de seu jardim [...] e toda Combray e seus
arredores, tudo que toma forma e solidez saiu, cidades e jardins, de sua xícara de chá”. M. Proust, “Swann
expliqué par Proust”, op. cit., p. 558.
rrebatadora, quando sua lembrança de Odete era involuntariamente despertada e conduzida
pela “pequena frase” musical da sonata de Vinteuil, que lhe “devolvia” aqueles dias.
A observação proustiana é de tal modo instigante para o historiador que, de
imediato, impõe-se algumas considerações de ordem historiográfica.
A primeira delas parte de uma constatação: os “planos” de memória em seu contato
com a história têm sido aqueles traçados pela memória voluntária, ou seja, as relações entre
memória e história têm se dade excluindo sistematicamente, a faceta involuntária e afetiva
inerente à memória. Parece existir uma eleição, se não uma “afinidade eletiva”, no campo
historiografia), no que concerne ao trânsito memória e história: a historiografia elegeu a
memória voluntária, desqualificando, memória involuntária tida como constitutiva de um
terreno de irracionalismo(s) e, por essa razão, avessa à história.
Mas, se este procedimento encontra uma explicação em termos estritamente
metodológicos e disciplinares, isto é, no esforço reiterado ao longo dos séculos
(particularmente os séculos XIX e XX), por parte de correntes historiográficas diversas, e
rhuitas vezes antagônicas, de pensar (e construir) a história como ciência, será ele ainda
hoje pertinente e fecundo? Ora, a dimensão afetiva e descontínua relegada pela memória
voluntária é a dimensão exilada que parte das ciências humanas tem buscado precisamente
integrar, com o estudo dos mitos, das sensibilidades e paixões políticas,33 da imaginação e
do imaginário na história. São os movimentos tecidos pela memória involuntária, é o
horizonte teórico e temático que ela descortina, é sua “irrupção” na cidadela histórica que
parecem abrir a esta última algumas das reflexões postas pela modernidade, particularmente
as relativas às problemáticas da (desre)construção das subjetividades e da ação histórica.
Mesmo a noção de resgate ou de recuperação da memória dos excluídos e dos vencidos da
história (tão cara à historiografia social contemporânea, herdeira a um só tempo de Walter
Benjamin e de E. P. Thompson), na verdade, aplica-se apenas se referida à memória
voluntária. Pois há uma diferença profunda entre a memória reconstruída, resgatada
voluntariamente pela razão historiográfica, e aquela retomada e reconstruída
involuntariamente. Desnecessário lembrar quanto a história contemporânea tem presenciado
a manifestação dessa instável memória involuntária, carregada de emoções, freqüentemente
avessa às clivagens ideológicas e políticas tradicionais. Memórias que parecem emergir,
irromper àe. um passado mais-que-morto para assombrar o nosso presente concebido,
contra todas as evidências, segundo os cânones da ideologia do progresso.
Mas que tempo é este que a memória articula ou, formulado de outro modo, quais
são os tempos da memória? Recorrerei, ainda uma vez, à narrativa proustiana... avessa
às noções de duração linear e de progresso.
Le temps..., op. cit., tomo III, p. 869.
33
Acerca do papel das paixões e dos sentimentos na constituição do político, ver o trabalho pioneiro de Pierre
Ansart, La gestion dês passiofrs politiques. Paris: L’Age d’Homme,1983. Ver, também, do mesmo autor, Lês
clinicieris dês passions politiques. Paris: Seuil, 1997.
A respeito da função de reatualização que se inscreve no percurso temporal da
memória, escreve Proust: “Nada mais do que um momento do passado? Muito mais, talvez;
alguma coisa que, ao mesmo tempo comum ao passado e ao presente, é mais essencial do
que ambos”.34 Compreender a complexa noção de tempo em Proust exige como postura
preliminar a atenta consideração da distância que a separa da duração bergsoniana, apesar
de a crítica literária e filosófica ter insistido, durante décadas, sobre o bergsonismo do
escritor. Proust falará de tempos diversos e múltiplos, colocando a descontinuidade em
primeiríssimo plano, juntamente com o instante único e isolado que guarda latente a
possibilidade da memória. De uma memória também fugidia, que se movimenta para frente
e para trás sem obedecer a qualquer sucessão necessária.De fato, a reatualização operada
pela memória se dá num instante (categoria inexistente em Bergson) que não possui
duração maior que a de “um relâmpago”. Por isso, a materialidade da memória aparece-nos
como algo que ”irrompe”, como uma irrupção. É este trazer à tona que constitui o
fundamento mesmo da memória, pois o passado que “retorna” de alguma forma não passou,
continua ativo e atual e, portanto, muito mais do que reencontrado, ele é retomado,
recriado, reatualizado. Por isso o sentimento proustiano de que o passado outrora vivido é
ressuscitado no presente: ”[...] a impressão foi tão forte que o momento que eu vivia [no
passado] pareceu-me ser o momento atual”.35
“E para melhor fundir todos os meus passados...”, observa Proust.36 A memória
proustiana opera fusão, conseguindo resgatar esta ”superposição” de tempos, tempos
múltiplos, precisamente porque incorpora o instante, colocando-o na condução da memória.
Esse jogo explicitase claramente na seqüência final de Em busca do tempo perdido, na
extraordinária matinée Guermantes, quando o narrador, procurando a causa de sua sensação
de bem-estar e felicidade, percebe que ”se forma” nele, graças ao ato de memória, uma
idéia original do Tempo.37
Porque funde instante e duração, Proust cria esteticamente uma dimensão particular
do tempo: o “fora do tempo”, o “atemporal”; este “hors du temps” proiistiano que só
emerge, entretanto, porque trama todos os tempos descontínuos e assimétricos constitutivos
de uma duração. O ”fora do tempo” não me parece absolutamente designar um instante
imobilizado entre o presente e o passado, uma paralisação momentânea e metafísica no
fluxo irreversível do tempo;38 ao contrário, em meu ponto de vista, o hors du temps
proustiano é ao mesmo tempo um dans le temps -- expressão com a qual Prougt finaliza sua
obra -, efetuando a reconciliação do instante com a duração.
34
Le temps..., op. cit:, tomo In, p. 872.
35
Op. cit., tomo In, p. 868.
36
Op. cit., tomo In, p. 1.031.
37
“Ora, esta causa”, escreve Proust, “eu a adivinhava comparando as diversas impressões felizes e que
possuíam em comum que eu as experimentava ao mesmo tempo no momento atual e no momento distante, até
sobrepor o passado ao presente, e fazendo-me hesitar em saber em qual dos dois eu me encontrava; na
verdade, o ser que então experimentava em mim esta impressão experimentava-a no que ela tinha de comum
antigamente e agora, no que ela tinha de extratemporal, um ser que aparecia apenas quando, por uma dessas
identidades entre presente e passado, podia encontrar-se no único meio onde poderia viver, gozar da essência
das coisas, isto é, fora do tempo” (grifos nossos). Lê temps..., op. cit., tomo In, p. 871.
38
Ponto de vista sustentado por Joyce N. Megay, Bergson et Proust - Essaide mise aupoint de la question de
1’influence de Bergson chez Proust. Paris: J. Vrin, 1976.
A memória introduz o passado no presente sem modificá-lo, mas necessariamente
atualizando-o; é preciso considerar atentamente que o passado é por via de regra plural, um
pulsar da descontinuidade. Há um confronto de memórias na matinéeGuetmuntes... a do
narrador e a rne-^ mória voluntária de seus personagens emblemáticos. Encontro com
Odete, com a duquesa de Guermantes, com Gilberte... a memória proustiana recupera-as
integralmente porque funde na Odete envelhecida, por exemplo, todas as outras que a
precederam.
A dimensão espacial do tempo proustiano é um tema bastante realçado pela crítica
literária. A obra proustina representando não apenas uma busca do tempo perdido, mas,
também e concomitantemente, do espaço perdido,39 dos inúmeros lugares idos e vividos. A
espacialização do tempo é aqui, contrariamente àquela que encontramos em Bergson,
operada sem desconfortes e sem ”perdas”. Ao contrário, os lugares de memória acoplam-se,
formam encruzilhadas, retas, transversais, cada um deles formando ”mimdos” à parte,
passíveis de ser colocados em comunicação pela memória. Mundos intermitentes e
vacilantes, integrados como num caleidoscópio (a metáfora da ”lanterne magiqué” é
extremamente atuante em Proust), pelos poderosos movimentos da memória.Uma vez
desencadeada, a espiral da memória pode levar a lugares diversos; mas esses planos
descontínuos e lacunares da memória proustiana constróem uma continuidade (distante da
duração bergsoniana porque aqui é o próprio instante que é o portador da duração).40 Por
isso a idéia em Proust de que nossa ”vida é vagabunda, nossa memória é sedentária”,41 ou
seja, à descontinuidade das experiências ao longo do tempo, a memória, igualmente
descontínua, revela a possibilidade de algo único.
A memória, portanto, constrói o real, muito mais do que o resgata. Há em Proust a
noção de uma otimista memória construtivista. Esta instigante sugestão parece-me abrir à
historiografia novas possibilidades de interpretação das encruzilhadas que aproximam
história e memória. A memória age ”tecendo” fios entre os seres, os lugares, os
acontecimentos (tornando alguns mais densos em relação a outros), mais do que
recuperando-os, resgatando-os ou descrevendo-os como ”realmente” aconteceram.
Atualizando os passados - reencontrando o vivido ”ao mesmo tempo no passado e no
presente”42 -, a memória recria o real; nesse sentido, é a própria realidade que se forma na
(e pela) memória. O tempo perdido e reencontrado (no sentido de retomado, de um tempo
quecomeça de novo, e não do eterno retorno do mesmo) não se refere apenas ao passado,
mas também ao futuro, ou melhor, como observou G. Poulet, à capacidade há tanto tempo
esquecida de ”ter fé em um futuro”.43
Fazendo com que a realidade se situe precisamente nesta dimensão construtivista,
fundindo instante e duração num continuum tecido a partir do que é, por definição,
descontínuo. E, ao designar esta dimensão da experiência dos homens construída pela
memória de atemporal, Proust o faz, sem dúvida, enquanto recurso e linguagem estéticos,
pois para ele há um local privilegiado e exclusivo deste encontro de desiguais, a arte, a
39
Comentário de Georges Poulet, l’espace proustien, op. cit., p. 19.
40
“[...] entre ele e o instante presente, todo este passado indefinidamente transcorrido que eu não sabia que
carregava” (Lê temps,.., op. cit., tomo In, p. 1.047).
41
Op. cit., tomo In, p. 989.
42
Op. cit., tomp III, p. 872.
43
Georges Poulet, Etudes sur le temps humain, op. cit., vol. 4, p. 326.
única, em seu ponto de vista, a conseguir operar a síntese entre instante e duração. Mas, ao
fazê-lo, deixa ao historiador, aproximando estética, sensibilidade e história, a sugestão de
uma outra maneira de proceder para entender as relações tecidas entre memória e história,
procedimento que incorpore as descontinuidades e, sobretudo, a importância da função de
atualização das experiências passadas inscrita no ato da memória.
E se a memória existe ”fora de nós”, como pretendem Bergson e Proust, inscrita nos
objetos, nos espaços, nas paisagens, nos odores, nas imagens, nos.-monumentos, nos
arquivos, nas comemorações, nos artegatos e nos lugares mais variados, é preciso
reconhecê-la também em seu próprio movimento, ao mesmo tempo espontâneo e
interessado, sempre descontínuo e atual, o que pode conduzir a história a uma abertura em
direção a outros lugares, ainda que desconcertantes e imprevisíveis ao estrito cálculo e
razão historiográficos.
A abertura para além do estritamente historiografia), ainda que essas fronteiras
primem pela mobilidade, impõe certos cuidados. A intenção não é a de transplantar, como
uma prótese mal ou bem finalizada, reflexões sobre a memória realizadas pela filosofia e
pela literatura para o terreno da história e, a partir daí, medir sua adequação ou inadequação.
Muito pelo contrário. Penso que há, lato sensu, uma problemática da memória, que circula
por vários campos do conhecimento e da sensibilidade e que é precisamente elaborada,
neste percurso, e da qual a história não está excluída. Pensar, portanto, as relações entre
memória e história é colocar-se no interior desses diálogos-postura à qual a história,
ingênua ou arrogantemente, tem-se furtado, ao reconhecer na memória apenas aquilo que
reflete sua própria imagem e semelhança. Reafirmando portanto esse cuidado, gostaria de
levantar e discutir alguns aspectos, buscando balizar problemáticas atuais que historicizem
a memória sem, no entanto, anulá-la.
O primeiro deles trata da possível relação atual entre memória e ética, e o segundo,
da função utópica e mítica desempenhada pela memória.Não é, sem dúvida, fortuito que a
revalorização da temática e das práticas de memória date precisamente das duas últimas
décadas, “coincidindo” com acontecimentos históricos espetaculares (a implosão da URSS,
a queda do Muro de Berlim, a explosão da ex-Iugoslávia, os conflitos étnicos e religiosos
que irrompem de uma forma política impensável, a força da massificação e do
“consentimento sem consentimento” obtidos pelo fenômeno da globalização...), que nos
recolocam com ímpeto em face do passado experimentado como vencedor ao longo deste
denso século XX, de nossa própria identidade, em face dos outros, da sociedade onde nos
inserimos, em face de nossos sonhos e projetos de futuro.
É do interior deste caldeirão, carregado de fortes sentimentos e emoções, que memórias
extremamente diversificadas irrompem e invadem a cena pública, buscam reconhecimento,
visibilidade e articulação, respondendo provavelmente a uma necessidade que a
racionalidade histórica é impotente para exprimir e atualizando no presente vivências
remotas (revisitadas, silenciadas, recalcadas ou esquecidas) que se projetam em direção ao
futuro.
Nesse sentido, a memória parece responder, hoje, mais a umajunção ética do que a
uma função cognitiva, valorizada pela tradição racio nalista desde Platão e Aristóteles, não
nos esquecendo, obviamente, de Tucídides, o pioneiro na busca de uma ”verdade histórica”.
O caráter atualizador da memória e seu vínculo institutivo cpm a ação são um traço
fortemente enfatizado pelos autores modernos - Bergson e Proust, mas também Bachelard,
Nietzsche... - que, no entanto, permanece desconsiderado pela historiografia. Retomando,
portanto, os modernos e tomando uma certa distância da tradição clássica que privilegia a
memória-conhecimento em detrimento dos outros traços constitutivos da memória, é útil
reconsiderarmos que uma das funções da memória é a de atualizar as lembranças agindo.
A historiografia em seus caminhos tem enfatizado o lado ”interessado” e mesmo
utilitário da memória (a memória entendida como reconstrução, apropriação e/ou
manipulação do passado), mas deixa de lado seu compromisso espontâneo e muitas vezes
não consciente com a ação, inscrito em seu próprio movimento.
Lembramos menos para conhecer do que para agir, sublinham os autores modernos.
Nessa perspectiva, a memória é menos um entender o passado do que um agir;
impossibilidade, portanto, de se cogitar uma memória desinteressada, voltada para o
conhecimento puro e descompromissado do passado. Bergson é insistente a este respeito,
afirmando que a memória tem um destino prático, realiza a síntese do passado e do presente
visando ao futuro, contrai os momentos passados para deles se servir” e para que isso se
manifeste em ações interessadas.44 A memória carregaria, assim, um atributo fortemente
ético, incidindo sobre as condutas dos indivíduos e dos grupos sociais. Não que interfira
direta e voluntariamente sobre as ações e seus objetivos, fixando-os s calculando-os
previamente, mas atuando no sentido essencialmente ético de induzir condutas, de interferir
na (im)possibilidade meyna das ações.45
O prisma ético vem, portanto, conferir outra dimensão tanto ao “direito à memória”
como ao ”dever de memória” contemporâneos, esta interdição do esquecimento,
remetendo-o a sua relação inexpugnável com a memória. Assim, podemos melhor
compreender os comentários de Habermas e Todorov, dentre outros, sobre a necessidade de
”mantermos viva a memória” do holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial, menos para
pedir reparações ou repor ritualisticamente os sofrimentos e a culpa, mas principalmente
“para estarmos em alerta sobre situações novas e, no entanto, análogas”. O recente debate
europeu desencadeado pelas polêmicas declarações do escritor Martin Walser sobre a
inoportunidade da construção, no centro da ”nova” Berlim, de um memorial às vítimas do
holocausto, porque as novas gerações reivindicam o direito de esquecer, sem dúvida
extrapola a discussão sobre a memória comemorativa, inserindo-a numa complexa teia de
significações que engaja o campo de possibilidades das ações futuras.
Não é à toa que Bergson insistiu longamente sobre o vínculo inextricável entre a
memória, as ações úteis e a liberdade (não se referia, evidentemente, à memória-hábito que
nos remete ao terreno da necessidade), traçando a dimensão eminentemente ético-política
em que se move a memória. Penso localizar-se aqui uma das problemáticas históricas atuais
a ser relevadas e aprofundadas para a compreensão das expressões materiais e simbólicas da
memória.
Por outro lado, a força e “irresistibilidade” (retomando a célebre expressão de
Hannah Arendt) com que a memória se inscreve na contemporaneidade, assim como o
significado de sua relação atual com a história, podem ser buscadas, igualmente, na
44
Matiíre et mémoire, op. cit., em especial p. 248.
45
Utilizo aqui o conceito de ética desenvolvido por Michel Foucault em suas últimas obras.
impertinência de uma hipótese: a de que o “frenesi de memória” a que assistimos represente
o contraponto à timidez, recuo ou crise das utopias racionalistas, particularmente sensível
nas três últimas décadas do século XX.
A memória viria, assim, ”sem nos consultar” - como diria Bergson -, substituir-se às
utopias. Ou seja, não mais as utopias, mas a(s) memória(s) estaria(m) apontando os lugares
de realização histórica. Como se a desconfiança e a renúncia ao futuro que o desencanto
com as utopias históricas sugere não se completassem efetivamente, a esperança no futuro
se recolocando, renovada e ainda balbuciante, nesse fenômeno de revalorização da
memória, na insistência de sua aproximação e inserção no âmbito da história.
Nesse sentido, os discursos e as manifestações poderosas da memória se colocariam
atualmente à história como uma ”palavra de oráculo”, cumprindo funções que até
recentemente (década de 60, provavelmente...)46 as utopias históricas preenchiam. Assim, o
sonhar coletivo e individual sem o qual não há ação possível, o lançar-se coletivamente em
direção a um futuro representado como ”melhor” investir-se-iam não mais nas utopias
históricas, mas valer-se-iam da memória para projetarse e atar passado e futuro.
É apenas considerando a função prospectiva e projetiva da memória (ressaltada
tanto por Bergson como por Proust), portadora a um só tempo de passado e futuro, que
podemos estabelecer este vínculo instigante com a utopia e com a história. Pois a memória
compartilha com a utopia de certos predicados distinguidores: a dimensão do tempo futuro,
a designação de lugares. Este último, precisamente, aponta para a expressão hoje dominante
para se designar o contato memória-história, os estudos históricos da memória, os lugares
de memória.
Outra relação profícua que merece ser aprofundada é entre memória e mito. Mito
entendido não como uma manifestação pré-científica deslocada da modernidade, mas na
acepção soreliana47 do complexo ao mesmo tempo racional e afetivo ”que leva à ação”. E
se é verdade que a presença e intervenção dos mitos políticos na história potencializam-se
nos momentos agudos de crise,48 então podemos compreender o alcance da força da
memória na construção dos mitos identitários que tem informado contemporaneamente as
ações de reconhecimento social e político.
46
Pierre Nora considera o Maio de 1968 precisamente o término de uma tradição revolucionária encarnando
espontaneamente o ”império da memória comemorativa”. Em ”L’Ère dês commémorations”, in Lês lieux...,
op. cit., vol. 3, p. 4.689.
47
Ver G. Sorel, Réflexions sur Ia viólence. Paris, Genebra: Slatkine, 1980 (lª ed., 1908)
48
Cf. Raoul Girardet, Os mitos políticos. São Paulo: Ática, s.d.
Capítulo 3
*
Tradução: Carlos Galvão e Cristina Meneguello
A dor é uma contração irracional; suas formas são: pena, rancor, inveja,
ressentimento, pesar, sofrimento, mágoa, angústia, confusão. A pena é uma
dor [sentida] por alguém que sofre sem o merecer; o rancor é uma dor
referente aos bens de outros; a inveja é a dor por outro possuir coisas que se
deseja para si; o ressentimento é a dor por alguém possuir aquilo que
também se possui”[.’..] (Diógenes Laércio, 7.U 1).
Imediatamente fui ao original em grego, para ver qual a palavra usada para
ressentimento. Era zêlotupia, algo surpreendente, visto que essa palavra é usualmente
traduzida para o inglês pela palavra “inveja”. E, de fato, inveja talvez seja a melhor escolha;
afinal, sentir-se magoado por alguém possuir o que também possuo não corresponde ao que
eu comumente classificaria como “ressentimento”. Com as mãos atadas por esse resultado,
acreditei ser melhor mudar de tática e indagar, em primeiro lugar, o que ressentimento
significa em inglês, para então ver se algum termo em grego ou latim coincidia com ele,
independentemente daquilo que diziam os textos traduzidos. Mas ressentimento, como os
participantes da presente conferência sabem melhor do que ninguém, é uma noção
complexa e bastante difícil de precisar. Enumerei três amplas conotações para o termo, que,
por conveniência, denominarei de psicológica, social e existencial.
O sentido psicológico de ressentimento é algo como a raiva ou a irritação perante
uma desfeita; além disso, P. E Strawson, em seu famoso ensaio ”Freedom and resentment”
[Liberdade e ressentimento] (1974), define ”ocasiões para ressentimento” como ”aquelas
situações em que alguém é ofendido ou injuriado pela ação de outro”. Gostaria de
acrescentar à descrição de Strawson a idéia de que ressentimento é geralmente um
sentimento duradouro, não fugaz: o ressentimento é cultivado e acalentado. Não se
descreveria, penso eu, uma breve explosão de raiva como ressentimento. Conforme observa
Robert Plutchik (1991, p. 16), ”a reação de raiva causada em um sujeito normal, expressa
completamente em alguns minutos, não é a mesma coisa que o ressentimento crônico dos
pacientes de Wolff que apresentam úlcera péptica” - a referência é a uma série de testes
clínicos conduzidos em pacientes ansiosos ou deprimidos.
Para o sentido social de ressentimento, cito um ensaio inédito de Roger Petersen
intitulado Fear, hatred, resentment: deüneatingpaths to ethnic violence in Eastern Europe
[Medo, ódio, ressentimento: delineando vias para a violência étnica na Europa do Leste],
citado no livro de Jon Elster, Alchemies of the mind [Alquimias da mente] (p. 74, nota 50).
Petersen define o ressentimento como ”a emoção que deriva da percepção de que o grupo
ao qual se pertence está em uma posição injustamente subordinada em uma hierarquia de
status”. Dois pontos merecem nota quanto a definição: primeiro a referência ao
pertencimento a um grupo; segundo a noção de umt ratamento injusto ou parcial. Na
compreenção que Petersen possui do termo, enraizada nas teorias sociológicas de Robert K.
Merton, o ressentimento é uma resposta não apenas a uma ofensa ou injúria, como na
descrição de Strawson, mas mais particularmente ao que chamaríamos de preconceito ou
discriminação. Depende de uma ou mais características que se compartilham com outros e
que expõem alguém à desigualdade como membro de um grupo.1
1
Barbalet (1998, p. 63) define ressentimento como “a apreensão emocional de uma vantagem imerecida” (cf.
p. 68), o que se aproxima da coifapreensão de Aristóteles de nêmese ou indignação. Desse modo, parece um
sentimento completamente pessoal. Mas Barbalet afira que ”emoção é inerente simultaneamente a indivíduos
Finalmente, há o sentido existencial do termo. Esse uso tem suas raízes em uma
moderna tradição especulativa ou filosófica que se inicia com Dostoievski e Nietzsche,
subseqüentemente desenvolvida por Max Scheler, Martin Heidegger e outros. Desde
Nietzsche e Scheler, tornouse costume distinguir, em inglês, essa conotação particular ao
empregar o termo em francês, ressentiment, que R. I. Sugarman, em seu livro Rancor
against time: thephenomenology of ”ressentiment” [Rancor contra o tempo: a
fenomenojogia do “ressentiment”] (1980), por exemplo, explica como sendo um
”adiamento e sublimação” do ressentimento comum. Scheler, em seu estudo seminal
intitulado Ressentiment (1998; orig. 1915), define a idéia da seguinte maneira:
De que modo esses três sentidos de ressentimento estão relacionados e quais podem
ser identificados (se possível) com algum conceito correspondente no léxico clássico
das emoções?
Observamos que, mesmo em seu sentido popular, o ressentimento parece sugerir um
estado ou sentimento persistente, em vez de uma reação a um estímulo particular e
imediato. É certo que a raiva pode se prolongar ao longo do tempo, mas tal duração não faz
parte de sua definição. Assim Aristóteles, define a raiva (orgê) como “um desejo seguido de
dor, por uma vingança percebida, por conta de uma afronta recebida por parte de pessoas
que não podem fazer desfeitas a você ou aos seus” (Retórica, 2.2.1378a31-33). O relato de
Aristóteles é indiferente ao fato de a vingança ocorrer instantaneamente ou apenas após um
período de tempo.2
e às estruturas sociais e relações nas quais os indivíduos estão imbricados” (p. 65). Segundo Barbalet, a
emoção ”é exatamente a experiência de estar pronto para a ação” (p. 66) e assim se encaixa na esfera da
motivação. Mas, em seguida, esse autor qualifica sua descrição ao observar que ”as emoções implicam a ação
por meio da avaliação da circunstância do sujeito” (p.67) e que, como resultado dessa dimensão de avaliação,
”emoções podem ser entendidas como relações sociais” (ibidem), porque as causas de vantagens desiguais
localizam-se em tais relações. Quando o ressentimento resulta em ação, tal ação deriva de ou dirige-se a
vantagens injustas que estão implícitas na desigualdade de classes” (p. 68).
2
Cultivar a raiva era uma prática malvista, e mnêsikakia (a lembrança da ofensa) era tida como um vício. O
escólio antigo ou “D” da Ilíada de Homero define mênis, palavra que abre o poema, referindo-se à ira de
Aquiles, como “uma raiva ou cólera duradoura” (orgên, kholon epimonon). Cf. também o Epimerismoi ad
loc., que deriva mênis de menô, “perseverar”, e acrescenta: ”[...] mênis é diferente de kotos: kotos significa
uma raiva duradoura [orgê] que busca retribuição da dor, enquanto mênis é simplesmente mnêsikakia” (devo
essas referências a Ineke Sluiter; cf. Muellner, 1996, p. 2). A etimologia é falsa, embora Homero pareça jogar
com a semelhança entre as palavras em l .488-92 (autar ho mênie... authi menôri). No geral, entretanto, nada
indica que a mênis humana ou divina seja necessariamente um estsfcjfo duradouro: o kholos kai mênis de
Zeus (”ira e cólera”), na Ilíada 15.122, por exemplo, são respostas imediatas à desobediência às suas ordens.
(Embora eu não possa entrar nos detalhes disso aqui, não concordo com Muellner,1996, p. 17, em que o
propósito de mênis na épica é ”reforçar a ordem cósmica”.) As palavras poéticas kotos (verbo koteô) podem
significar algo como ”cultivar um rancor” (cf. lUada, 1.80-82, 13.517; Odisséia, 11.101-03), embora, de novo,
A raiva, conforme definida por Aristóteles, é inteiramente pessoal. De fato,
Aristóteles chega a ponto de afirmar que só se pode sentir raiva por um indivíduo - por
Cleonte, por exemplo - e não por uma classe de pessoas ou pela humanidade de modo geral
(Retórica, 2.2.1378a34-35). A raiva em Aristóteles, assim, talvez se aproxime da noção
psicológica simplificada de ressentimento segundo Strawson, de uma resposta a uma
situação ”na qual uma pessoa é ofendida ou injuriada pela ação de outra”, exceto por uma
condição, a de que, para Aristóteles, o insulto venha de ”pessoas que não têm mérito
suficiente [prosêkôn] para fazer desfeitas a você ou aos seus”. Essa cláusula final sugere
que Aristóteles tinha em mente, em sua análise da raiva, não apenas indivíduos
isoladamente, mas grupos ou categorias. Poderíamos então afirmar que, em sua discussão
sobre a raiva, Aristóteles se aproximou daquilo que chamei de sentido social do
ressentimento?
Pode-se iniciar por indagar sob que circunstâncias uma pessoa pode, segundo
Aristóteles, fazer desfeitas que não podem ou não devem originar raiva. Uma ofensa,
explica
Aristóteles, consiste em uma palavra ou gesto que ativa a crença de que o outro não possui
valor. A resposta apropriada para tal depreciação é restaurar a opinião sobre o valor de
alguém por meio de alguma forma de retaliação. Mas alguém que é de fato superior, seja
em termos de família, poder, riqueza, ou de uma habilidade em particular, espera (do
inferior) uma prova de deferência (2.2.1378b34-1379a6). Por sua vez, as pessoas são
particularmente predispostas a se enraivecer perante uma ofensa por parte de alguém que,
de fato, não possui valor. Pois, como diz Aristóteles, ”assumimos que a raiva ante uma
ofensa se dirige àqueles que não deveriam [mê prosênkontes] agir desse modo, e os
inferiores não deveriam ofender [os que lhes são superiores]” (2.2.1379bll-13).
Assim, argumenta Aristóteles, uma vez que a raiva é incompatível com o medo, não
se pode reagir com raiva perante uma ofensa vinda de alguém que tenha um poder muito
maior que o seu. Escravos, ^desse modo, não estão na posição de sentir raiva contra seus
senhore* mas devem saber como acalmar a fúria deles, por exemplo, humilhando-se,
confessando suas faltas e não lhes retrucando (2.3.1380al5-180).
Está claro que a raiva, para Aristóteles, depende do entendimento dos níveis de
status, assim como da opinião pública. Ele especifica, por exemplo, que somos mais
propensos a ficai: com raiva quando somos diminuídos na presença de outras pessoas com
quem sentimos estar em situação de competição (2.2.1379b24-26). Pode-se qualificar isso
como ressentimento? Recordemos a definição de ressentimento de Petersen: “[...] a emoção
que deriva da percepção de que o grupo ao qual se pertence está em uma posição
injustamente subordinada em uma hierarquia de status’. Aristóteles, no entanto, aceitou
como fato uma situação social mais alta ou mais baixa, não levantou a questão de tais
distinções poderem ser injustas em uma dada sociedade. A raiva surge quando alguém de
um nível ou ordem inferior age de modo presunçoso em relação a quem lhe é superior,
o termo pareça se referir igualmente à raiva ordinária ou a antagonismo. A raiva impotente de Aquiles diante
do insulto que sofreu parece, sim, sef ressentimento, mas não há um termo especial na épica para descrever
esse sentimento. O verbo mnêsikakeò aparece pela primeira vez em Hecataeus. A referência é de Diodoro da
Sicília (10.25.4). O termo é comum nos oradores áticos e é usado particularmente com referência ao período
que se segue a um conflito na cidade, quando é necessário imitar as vinganças e vendettas entre as classes em
conflito. Cf. também Aristóteles, Ética a Nicômaco (l 125a2), sobre mnêsikakos (adjetivo).
desse modo sugerindo uma igualdade ou, no caso de iguais, uma superioridade - que não
lhe cabe. A raiva é, assim, uma resposta de cima para baixo, oposta ao ressentimento, que,
na descrição de Petersen, vem de baixo para cima. Mais do que uma reação ao modo pelo
qual se trata um grupo, ou um membro daquele grupo, a raiva no sentido de Aristóteles
resulta da percepção de que alguém foi erroneamente classificado ou diminuído em relação
a sua classe. É por isso que a raiva paça Aristóteles é desencadeada por uma afronta pessoal
à dignidade ou à honra, mas jamais dirigida a um grupo.
Aristóteles não inclui em sua discussão emoções dolorosas que envolvem
essencialmente a noção do que é justo ou correto. O que ele chamou de nêmese talvez esteja
mais próximo à noção moderna de ressentimento, definido como a dor sentida devido ao
sucesso não merecido de alguém. Aristóteles contrasta essa indignação ou nêmese com a
pena, que é motivada pela desgraça não merecida do outro (2.9.l386b9-12). Ambas as
emoções, Aristóteles acrescenta, sãosinais de um bom caráter, pois as pessoas não deveriam
nem prosperar nem sofrer de forma injusta. Mas a nêmese, assim como a pena, refere-se ao
mérito pessoal e não ao coletivo. Além disso, nenhum desses sentimentos envolve a
percepção da diminuição ou desprezo em relação a alguém, vinculados à noção de
ressentimento. Por essas razões, a nêmese é, creio eu, mais bem traduzida por indignação
doque por ressentimento.
A inveja, segundo Aristóteles, é em certo sentido oposta à pena, visto ser uma ”dor
perturbadora resultante do bem-estar de outrem” (2.9.1386bl8-19; cf. 2.10.1387b22-24),
diversa da dor que resulta das desgraças de alguém. No entanto a inveja vem à luz pelo
simples fato de ser aquele que prospera um igual (2.9.1386bl9-20), independentemente do
mérito. Aristóteles especifica, um pouco mais adiante, que o objeto da inveja não é querer
possuir uma coisa, mas querer que o outro não a possua (2.10.1387b23-24). Esta última
qualificação diferencia a inveja do estímulo competitivo que Aristóteles define como ”um
tipo de dor diante da presença de coisas boas e honradas que se pode conseguir para si
mesmo e que pertencem a pessoas que são de natureza similar [à sua], não porque o outro
as tem, mas porque você não as tem” (8.11.1388a30-33). A rivalidade é, assim, uma
emoção recomendável, segundo esse autor, enquanto a inveja é vil, pois a emulação
estimula a obtenção de boas coisas, enquanto aqueles que sentem inveja apenas buscam
privar seu próximo de possuí-las (8.11.1388a33-36).
Nenhuma dessas emoções parece ser uma boa candidata para o equivalente grego do
ressentimento, em seu sentido social, e a razão disso me parece evidente. Aristóteles
pressupõe uma sociedade na qual aqueles que são iguais disputam entre si a posse de coisas
boas, inclusive reputação, e podem experimentar uma justa indignação ou compaixão
quando percebem outros em situação de injusta vantagem ou desvantagem. Perdas e
ganhos, nesse sistema, são normalmente uma questão de conquista individual, não de classe
social. Quanto àqueles de nível inferior, estes estão onde deveriam estar, e não deveriam ser
presunçosos perante seus superiores; como classe, eles não estão sendo maltratados. A
ideologia da cidade-Estado grega clássica como uma sociedade de iguais, distintos, por seus
direitos de cidadãos, dos estrangeiros, escravos e outros grupos sem cidadania, não deixa
espaço para um sentido coletivo de pesar. Ou, ao menos, assim foi retratado por Aristóteles
em sua análise das emoções.
Certamente há diferenças de posição social dentro do corpò*cidadão da.pólis
democrática, determinadas antes de tudo pela distribuição de riqueza. Apesar da ideologia
comunitária projetada por tais cidades, havia conflitos de classe que por vezes explodiam na
forma de guerra civil. Pode-se ver, em tais contextos, a noção de raiva ou agressividade
assumindo as características de um ressentimento das classes baixas contra as ricas. As
vespas, de Aristófanes, por exemplo, dramatiza o fascínio dos cidadãos mais pobres pela
função de júri nas cortes de Justiça, quando exultavam por sua capacidade de humilhar os
ricos e poderosos (548-58; cf. 620-30). Aristófanes indica a mordaz irascibilidade dos
jurados ao compará-los a vespas, sempre prontos a ferroar quando provocados. Eles são
altamente sensíveis ao insulto ou engodo; assim, no julgamento de Cleonte, o demagogo
populista, eles manifestam uma extrema ira (orge) perante o dinheiro que Laches, um rico
general, acumulou, segundo crêem, de forma injusta (240-44; sobre a questão ver
Konstan,1995; cf. também Allen, 2000, pp. 128-33). Um século mais tarde, Menandro, em
sua peça intitulada O rabugento (Duskolos), ou, alternativamente, O misantropo, retratou
um amargo velho fazendeiro - a personagem do título - cuja filha despertou o amor de um
rico jovem da cidade. O misantropo tem um enteado pobre, embora trabalhador, que é mais
controlado do que ele e que aconselha o jovem amante sobre como abordar o velho: tire seu
manto luxuoso, aconselha, e deixe sua pele ficar bronzeada, trabalhando no campo. No
início, porém, o enteado está igualmente desconfiado em relação ao rico janota e denuncia
suas intenções de corromper uma garota livre (290-91) durante seu tempo ocioso, enquanto
outros têm de trabalhar. Mais adiante, ele adverte que um mendigo ao qual se fez mal é o
mais tolo dos homens: o termo é duskolôtaton (296), usado em todas as outras partes dessa
comédia apenas quando se fala do misantropo (como no título da peça). Menandro parece
estar deliberadamente associando a disposição do enteado de sentir raiva com a do velho
misantropo, tratando tal irascibilidade como uma característica dos fazendeiros pobres de
modo geral (ver Konstan, 1995). Novamente, a raivaaparece como uma característica da
sensibilidade dos cidadãos de classe baixa ao que entendem ser uma ”posição injustamente
subordinada em uma hierarquia de status”.
Foi dito que o ressentimento em seu sentido psicológico é comumente
compreendido como um estado ou condição duradoura, em vez de breve expressão de uma
emoção, e tal característica explica em parte por que o mesmo termo pode ser aplicado aos
socialmente descontentes: é provável que a estigmatização de classe possa ser caracterizada
como raiva que se consome lentamente, uma frustração de longa duração ou percepção de
uma injustiça contra a qual não se tem o poder, ao menos no momento, de reagir.
É muito mais provável encontrar tal sentimento em um Estado democrático, no qual
os cidadãos acreditam que são pares uns dos outros; nesse caso, a desigualdade social
coexiste com um ideal de igualdade política. Tal sentimento também emerge entre classes
que perderam, ou estão perdendo, sua posição historicamente privilegiada: Scheler observa,
a esse respeito, que o desaparecimento da classe de artesãos e da pequena burguesia em
nossa era (p. 74) é uma instância comparável, embora mais complexa, à existência precária
do pequeno fazendeiro na Atenas clássica. A qualidade de provação é também a ligação
com o terceiro tipo de ressentimento, que denominei existencial.
O ressentimento existencial é duradouro não por ser um sentimento de impotência
diante de um superior, mas porque se volta contra tudo e contra nada em particular. Scheler
observou: ”Normalmente os objetos da vingança e da inveja são específicos. Estes
sentimentos não surgem sem uma razão específica; eles se voltam contra objetos definidos
e persistem enquanto persistirem estes motivos”. ”O impulso de causar dano”, que Scheler
vê como passo seguinte em direção ao ressentimento propriamente dito, ”não está associado
a objetos específicos - o ressentimento surge sem um motivo claro e definido” (p. 30).
Da mesma forma, Robert C. Solomon, no livro The passions [As paixões] (1993),
descreve o ressentimento como “a paixão mais vil uma das emoções mais obsessivas e
duradouras, envenenando a subjetividade, elevando-se a um estado de humor e ao mesmo
tempo se voltando contra um sem-número de ofensas que pressente ser contra si mesma”
(p. 290). Solomon identifica, como objetos do ressentimento, “virtualmente todo mundo.
Possivelmente também Deus e suas criaturas, árvores, prédios, rochas, leis, governantes, o
sucesso dos outros, despertadoresetc.” (p. 291). De acordo com Solomon, foi a partir desta
“visão do homem ressentido e passional como um inferior, impotente, perseguido e tratado
injustamente”, que surgiu a terapia ou doutrina filosófica do Absurdo, que Camus define
como o!”confronto entre o homem e o universo” no qual a vida humana perde significado
através do “silêncio desumano” do mundo (apud Solomon, p. 38). Percebem-se aqui as
sementes da visão do homem do submundo de Dostoievski, dos prisioneiros de Kafka, do
Sísifo de Camus. Os ressentidos metafísicos se voltam contra tudo.
Teriam tido os gregos e romanos um conceito de ressentimento com esse
significado? É tentador ver nessa concepção de ressentimento um traço caracteristicamente
moderno, um sintoma da perda do sentido de comunidade e de fé. Analisemos, entretanto,
mais de perto o estatuto dessas emoções difusas e generalizadas, sem um objeto claramente
definido e voltadas contra tudo o que existe. Talvez não se trate aqui de uma evolução, no
sentido de termos desenvolvido conceitos inexistentes entre os gregos, moral e
psicologicamente mais sofisticados, mas do fato de interpretarmos as emoções de forma
distinta. Nesse caso, temos tanto a aprender com os conceitos do mundo clássico como os
antigos teriam a aprender com os nossos.
Em geral, os gregos parecem conceber as emoções como sentimentos intimamente
ligados a objetos ou ocasiões específicos. Isso é verdadeiro tanto para as reflexões abstratas
dos filósofos sobre as paixões como para as descrições mais informais encontradas nos
textos literários. Vimos anteriormente como Aristóteles trata várias emoções e como
descreve a raiva como uma resposta à ofensa, a pena como uma reação ao sofrimento
injusto do outro, a inveja como resultante do fato de sabermos que nossos pares possuem
algo que não temos, e assim por diante. Em cada um desses exemplos, o estímulo está claro
e bem definido e, de fato, é parte essencial da definição das paixões.
A abordagem dos estóicos ao problema é muito semelhante à de Aristóteles. Vale a
pena lembrar que o locus clássico para a discussão sobre as paixões na literatura clássica
são os tratados de retórica, começando com a Retórica de Aristóteles ou a Rhetoríca ad
Alexandrum, um pouco mais antiga, passando pelos textos de Cícero sobre oratória, até os
manuais tardios, como, por exemplo, o de Apsines, um autor do século In d.C. Esses
trabalhos de cunho prático tinham por intuito treinar o orador no uso de técnicas retóricas,
para inflamar ou atenuar as emoções dos juizes e jurados. Para tanto, era necessário que o
orador conhecesse os personagens, situações e eventos aos quais as pessoas normalmente
respondem com pena, raiva, afeição, hostilidade, e assim por diante, para que pudesse
manipular ou, em termos menos rudes, direcionar os veredictos.; Portanto, a raison d’être
desses manuais pressupunha que as emoções fossem reações ao que as pessoas viam ou
ouviam. Em outras palavras, as emoções eram concebidas como, por natureza,
fundamentalmente cognitivas.
Os estóicos levaram essa opinião ao extremo. Diógenes Laércio, em uma passagem
citada anteriormente (7.111), observa: “Eles supõem que as paixões são juízos de valor [...],
pois a ganância pressupõe que o dinheiro seja digno, e pensam de maneira semelhante sobre
a embriaguez e indisciplina e outras [...]” (trad. Inwood e Gerson, p. 141).
Independentemente do mérito dessa opinião - e deve-se acrescentar que, nos últimos 20
anos, vários estudos interpretam as emoções como processos cognitivos -, chama a atenção
o fato de essa tese pressupor que as emoções tenham um conteúdo específico e conhecido.
De novo, na tradução de Inwood e Gerson: “[...] a inveja é a dor por outro possuir coisas
que se deseja para si; o ressentimento (zêlotupia) é a dor por alguém possuir aquilo que
também se possui”, e assim por diante. É possível julgar-se erroneamente a natureza
daquilo que se teme ou se deseja, mas a paixão sentida depende da avaliação que se faz do
objeto em particular.
Ocasionalmente, os teóricos antigos de fato teciam comentários sobre um
comportamento emocional que parecia não corresponder a nenhum objeto claramente
identificável. Aristóteles, no tratado De anima (1.1.403a23-24), observa que “mesmo
quando não há motivo aparente para se ter medo, as pessoas experimentam os sentimentos
da-queles que temem” (mêthenos gar phoberou sumbainontos em tois pathesi gignontai tois
tou phoboumenoií). Nessa passagem, Aristóteles descreve um estado transitório,ainda que
inexplicável, e seu breve comentário não se aproxima de uma definição ou de uma noção de
ansiedaae como um estado duradouro de medo sem relação com nenhum contexto externo
de perigo. No curto ensaio Dos sonhos, Aristóteles ilustra como, quando dormimos,
podemos ver imagens, embora nenhum estímulo externo esteja presente. Aristóteles
aproveita a oportunidade para fazer digressões sobre como, sob a influência de uma
emoção, um objeto que apresente semelhança, ainda que distante, com o objeto que
amamos ou tememos freqüentemente nos induzirá a confundi-lo com o original: o covarde
verá nele o seu inimigo; o amante, sua amada; e assim por diante. “Quanto maior o domínio
da emoção, menor será a necessidade de semelhança para produzir em nós uma falsa
impressão” (3.460.b3-8).
Podemos tecer dois comentários a partir dessas observações. Primeiro, no caso das
emoções, diferentemente do que ocorre com os sonhos, existe algum estímulo externo,
mesmo se confundirmos a sua natureza. Em segundo lugar, o objeto imaginado é ele
mesmo específico e não geral. De acordo com essa opinião, um indivíduo com raiva pode,
precipitadamente, ver um insulto onde não se pretendia ofender. Porém isso não implica a
presença de um estado permanente de raiva contra quaisquer e todas as coisas. Os epicureus
constituíam, talvez, a única escola filosófica da Antigüidade clássica a atribuir um papel
central às emoções cuja causa, ou estímulo, era não só super ou subestimada, mas
simplesmente não reconhecida conscientemente. Eles supunham que o medo da morte fosse
a razão dos comportamentos irracionais e que os indivíduos fossem capazes de esconder
isso de si próprios, a ponto de se suicidarem para escapar desse terror anônimo que
ininterruptamente os assolava.
No século II d.C., Diógenes de Oenoanda (cidade situada hoje no sudoeste da
Turquia) inscreveu um resumo da doutrina epicurista em um mural, para proveito e
educação de seus concidadãos. com o tempo, o mural desabou parcialmente, mas cm um
segmento (35.11 Smith) ainda se pode ler:
De fato, este medo é às vezes claro e às vezes obscuro. O medo é claro
quando evitamos alguma coisa manifestamente prejudicial como o fogo
porque temos medo de morrer queimados. Obscuro quando, enquanto a
mente está ocupada com outras coisas, ele se insinua na nossa natureza e [lá
se esconde] [...] (trad. Smith, 1993, p. 385).
A palavra ”esconde” se obtém a partir de uma reconstrução do texto grego, mas não
é, de forma alguma, a única possível. Depois dessa frase, a inscrição é interrompida. Creio,
entretanto, que esse medo obscuro ao qual Diógenes se refere seja o medo da morte; de
qualquer modo, parece-me que Diógenes se aproxima da descrição da ansiedade como um
medo sem objeto. Minha digressão para discutir exemplos de medo difuso é importante
porque, na minha opinião, a ansiedade é, em sua natureza, uma emoção semelhante ao
ressentimento*e a uma série de outros sentimentos e estados que parecem não ter relação
alguma com um objeto específico ou que pelo menos (o que pode significar a mesma coisa)
possuam campos de referência tão amplos que incluam virtualmente tudo e todos. Entre
esses outros sentimentos estão a culpa, em oposição a um sentimento de responsabilidade
por um erro particular; raiva do mundo, em oposição a uma raiva dirigida; enfado, em lugar
do simples tédio; e depressão ou melancolia, em contraste com a tristeza devida a uma
causa específica.
Comparemos à carta que Edgar Allan Põe escreveu para “Annie” Ingram em 1849:
“A minha depressão não se deve a quaisquer considerações mundanas [...]. Não, a minha
tristeza é inexplicável e isso me torna mais triste”. ”Estou pleno de maus presságios” (apud
Wyatt-Brown, 1999, p. 16). Há também estados emocionais positivos, tais como a condição
de êxtase em contraste com a felicidade por uma razão específica, ou, talvez, o amor
universal em oposição ao amor parcial imposto pelo cristianismo.3 O ressentimento
existencial, portanto, parece estarpara, digamos, nêmese ou indignação como a ansiedade
está para o me-i do: o primeiro é, em cada caso, a versão sem objeto do segundo.
É claro, a minha lista de pares de emoções não pretende sçr exaustiva, e os termos
que emprego não têm um status científico. Além disso, que eu saiba, os gregos antigos
nunca tentaram compilar uma tabela comparativa de paixões contrárias. No restante deste
artigo, gostaria de considerar o status teórico das emoções sem objetos e refletir se, de fato,
esses estados emocionais são modernos. Se e este for o caso, gostaria de comentar as
implicações disso para a nossa compreensão da Antigüidade e do mundo moderno.
No seu recente livro intitulado The art of living [A arte de viver] (1998), Alexander
Nehamas nos lembra que, de acordo com Kierkegaard, a ironia, no seu significado mais
importante, “volta-se não contra esta ou aquela entidade específica, mas contra toda uma
determinada realidade em um certo tempo e sob certas circunstâncias” (p. 71, citando
Kierkegaard, 1989, p. 254)- Nesse sentido, a ironia é infinita, negativa e absoluta - como o
*
Aqui o autor faz uma distinção entre ressentimento (resentment) e ressentimento (ressentiment). É a esse
último que se refere. (N. dos Ts.)
3
Bodei (1991, p. 21) comenta sobre uma classe de desejos (incluídos numa categoria de “paixões de
expectativa”) que não anseiam por satisfazer impulsos ou necessidades específicas, mas se voltam para
aspirações indistintas de obter felicidade, excitadas em qualquer oportunidade ou pretexto (a felicidade, a
recompensa indeterminada e não programada dos desejos, parece, nesse caso, complementar a ansiedade, pelo
menos enquanto medo sem um objeto). Esses desejos são, crê o autor, particularmente característicos da
modernidade e do capitalismo de consumo de massa. .
ressentimento, podemos acrescentar. Nehamas reconhece que esse é um conceito difícil.
Wittgenstein acrescentaria que ele é fundamentalmente incoerente. Wittgenstein ministrou a
sua Lecture on ethics [Conferência sobre ética] em 1929 ou 1930, publicada postumamente
em 1965. Ali, ele abordava o status das proposições éticas a partir de uma análise da noção
do bem absoluto. Como ilustração, ele diz (p. 8): “Se eu disser ‘eu duvido da existência do
mundo’, estarei usando a linguagem incorretamente. Deixe-me explicar: faz todo sentido
dizer que eu duvido que algo seja assim” - por exemplo, que um cão seja particularmente
grande. Isso faz sentido, continua o autor, ”porque eu posso conceber um cão de um outro
tamanho, ou seja, de tamanho comum, do qual não duvidaria”. Wittgenstein prossegue:
”Mas é um absurdo dizer que duvido da existência do mundo, porque eu não posso
imaginá-lo não existindo”. Parece que a condição de dúvida é semelhante àquela da ironia
kierkegaardiana, que tem por objetivo negar não só algumas coisas, mas tudo. Assim, posso
sentir raiva ou indignação por es,te ou aquele comportamento, porque posso imaginar um
comportamento que não cause em mim a ira. Dizer, contudo, que eu tenho raiva do mundo,
agora é sempre isto é, que tenho ressentimento, no sentido existencial do termo -, é usar a
linguagem erroneamente.
Wittgenstein observa o mesmo com respeito à culpa. Deve haver sempre, diz ele,
um ponto de comparação para as afirmações de valor terem algum sentido; “uma símile
deve sempre ser uma símile de alguma coisa” (p. 10). Seja lá qual for o mérito da discussão
de Wittgenstein sobre a possibilidade de ética, ela é pertinente, acredito, no que se refere
aos juízos universais implícitos nos sentimentos como ansiedade e ressentimento, que
pressupõem que tudo é amedrontador e mau.
Retornemos, por um momento, ao significado social de ressentimento. Podemos ver
como essa afirmação não necessariamente cionstitui um abuso de linguagem, no sentido de
Wittgenstein, pelo menos enquanto a presente ordem das coisas, compreendida como
opressora e exploradora, é comparada, no mínimo implicitamente, com um arranjo
possivelmente melhor. Podemos conceber uma sociedade livre do conflito de classes ou do
racismo, ou, por exemplo, uma outra que sirva de contraponto para julgarmos os defeitos do
presente sistema. Da mesma forma, Aristófanes e Menandro também apelaram para uma
época, lembrada ou imaginada, em que a riqueza era mais bem distribuída entre os cidadãos
(cf. Zeitlin, 1999). Somente quando o ressentimento chega a ponto de condenar tudo (toda a
sociedade e todo o universo), a comparação cessa e o ressentimento lembra uma símile que
é uma símile do nada.
Podemos, é claro, aceitar que o ressentimento também imagine um mundo melhor -
um paraíso ou um Éden do qual fomos expulsos e para o qual é impossível ao homem
retornar, dado o presente estado do homem depois da queda. Tal concepção pôde parecer
cristã, e é tentador imaginar o ressentimento existencial como um sentimento de pecado
secularizado no qual a culpa perante os olhos de Deus é substituída por uma raiva contra o
cosmo impessoal, sem esperança de redenção. Creio haver um pouco de verdade nessa
descrição, mas é importante lembrar que o mundo clássico também tinha suas visões
utópicas de uma Idade do Ouro e que Platão acreditava que a nossa existência corporal se
assemelhava mais à morte que à vida. De fato, é estranho que esse filósofo que postulou a
natureza transcendental do desejo não tenha refletido sobre as conseqüências de uma raiva
irreparavelmente frustrada - a menos que, com o furioso Trasímaco da República, Platão
esteja insinuando essa desesperada paixão.
A ruptura entre a emoção e o seu objeto, que se verifica também no ressentimento
existencial, é algumas vezes interpretada como um sintoma da alienação característica da
vida na sociedade moderna. Os indivíduos estão mais isolados no anonimato das grandes
cidades do que nas comunidades tradicionais das aldeias e, portanto, mais suscetíveis à
solidão, melancolia e tédio, formas essencialmente modernas de um malestar difuso. Além
disso, a ideologia radical do individualismo propicia uma percepção das emoções como
experiências internas, desconectadas de estímulos imediatos. Como observa Stacey Oliker
(1999, p. 20): “O etos cultural do individualismo encoraja as pessoas a verem a si próprias
como entes distintos, complexos e interessantes - a desenvolverem identidades que não
podem ser especificadas pelos seus papéis sociais”; como resultado, os indivíduos tendem à
introspecção e ao cultivo ”de si próprios e de suas vidas interiores”. Essa ênfase colocada
no eu interior, somada à sensação de possuir uma personalidade ímpar e ao isolamento dos
outros, pode alimentar uma visão de um eu totalmente autônomo e isolado do resto do
mundo exterior, de uma mônada no interior da qual as emoções se revolvem
ininterruptamente em órbitas sem fim, alimentando a si próprias. O grito, de Edvard
Munch, representa bem a imagem desse homem torturado e prisioneiro de si mesmo.
Frederic Jameson (1984, p. 61) chama essa pintura de ”a expressão canônica da temática
modernista da alienação, anomia, solidão, fragmentação social e isolamento” com certeza, a
condição de anomia social e a alienação que dela advém têm precedentes em período mais
remoto que o da sociedade capitalista moderna. Já na virada do século XVIII, o francês
Abbé Du Bos (1993) explicava a atração do teatro como um substituto glamouroso para o
enfado da vida comum, e PeterToohey (1988,1990) localiza a invenção da apatia no século
II d.C., invocandp, mais uma vez, o surgimento do anonimato urbano como explicação.
Qualquer que seja a relação que possa existir entre o Zeitgeist moderno e estados
emocionais como, por exemplo, ansiedade, melancolia e ressentimento, é preciso ter em
mente que são as teorias contemporâneas das paixões que nos permitem pensar esses
sentimentos indefinidos como verdadeiras emoções. Tal fato talvez não esteja
completamente independente das condições sociais e econômicas que contribuíram para a
manifestação desses sentimentos.
Desde Descartes e Locke, costuma-se pensar sobre as paixões a partir de uma
perspectiva de oposição à razão e, portanto, considerá-las incapazes de julgar. De acordo
com essa visão, as paixões representariam uma forma de energia ativada pela percepção,
não necessariamente definidas com referência aos seus objetos e operações. Além disso,
desde a publicação, em 1872, de The expression ofthe emotions in man and animais [A
expressão das emoções nos homens e animais], de Charles Darwin, as pesquisas sobre o
tema tendem a se concentrar nas reações visíveis e claramente relacionadas à adaptação, tais
como agressão, medo e adulação, assim como, também, nas repostas ao estresse (choro e
riso involuntários, hábiros de sono etc. - formas de comportamento que não se qualificam
como emoções de acordo com a definição aristotélica do termo). As pesquisas buscam
também, principalmente, focalizar os aspectos fisiológicos das emoções, tais como a
freqüência cardíaca, níveis de açúcar no sangue, produção de adrenalina e serotonina,
resposta galvânica da pele e respiração. Finalmente, a teoria freudiana da repressão oferece
uma explicação para a maneira como as emoções se desligam dos seus objetos primários e
se transformam em estados sentimentais duradouros. Como observou Jonathan Lear (2000,
p. 39), “aquilo que desejamos - na realidade, um encontro sexual proibido - também pode
ser aquilo que rejeitamos, e é este conflito que causa [...] ansiedade”. Se conscientemente
acreditarmos que merecemos o objeto que censuramos, iremos nos sentir - de uma forma
vaga, mas generalizada-como se tivéssemos sido injustamente tratados: eis a definição
própria de ressentimento, e eis também a sensação de um paraíso perdido, já que nosso
objeto de desejo se situa em nosso passado.
É claro, a perda de continuidade entre o sentimento e o objeto pode ser explicada
com referência a outras teorias que não a freudiana. A psicologia, recentemente, identificou
vários tipos de trauma qjie podem ocultar o objeto de uma emoção. Mas seja qual for a
teoria invocada, atribuir os estados de ansiedade, depressão ou ressentimento persistente ao
estresse infantil ou à predisposição hereditária, isto é, aos paradigmas freudianos e
darwinianos, constitui hoje quase uma segunda natureza. Wyatt-Brown, cujo artigo citei
acima, sobre a carta de Poe à irmã, explica (1999, p. 21): “A fonte da alienação de Põe
repousa nos traumas pessoais que o afetaram no início da vida”, e complementa logo a
seguir: “A genética pode ter contribuído para a depressão de Põe, uma condição hereditária
que podemos somente sugerir, na ausência de uma investigação clínica moderna”. Em
ambos os casos, falta uma referência à causa real.
Mencionei anteriormente que, nas duas últimas décadas, os filósofos começaram, de
novo, a enfatizar a dimensão cognitiva das emoções, retornando a um estilo de interpretação
característico dos pensadores da Antigüidade tais como Aristóteles e os estóicos. Entendida
dessa forma, uma resposta emocional mal dirigida ou mal direcionada pode ser corrigida
quando se revela o real objeto dessa resposta. A falta de identificação do objeto pode então
ser explicada não como resultante de um trauma, mas como um erro ou falha da razão. Eis,
portanto, o porquê da natureza eminentemente intelectual das antigas terapias do desejo,
para usar uma frase expressiva de Martha Nussbaum (1994). Mesmo no epicu^ismo, que
mais se aproxima de reconhecer um estado generalizado de ansiedade, a causa é
identificada como uma percepção enganosa sobre a natureza da morte, que pode ser
remediada com uma forte e saudável dose de física materialista. Uma crença desloca a
outra. Não está claro, aqui, se a noção do inconsciente é necessariamente relevante (Mitsis e
Gladman, 1997).
Em suma, os autores antigos reconheciam algo semelhante ao ressentimento no
sentido psicológico da palavra, embora o campo das emoções fosse muito diferente do
nosso. Havia também uma noção de ressentimento social como uma função da hierarquia
de classes, emboraos filósofos não teorizassem sobre esses conceitos excplicitamente.
Porém o ressentimento existencial como um estado afetivo que tem por objeto,
simultaneamente, tudo ou nada em particular é estrangeiro à orientação cognitiva do coneito
clássico das emoções. É claro, os antigos concebiam a idéia de traços da personalidade tais
como rabugice ou irritabilidad, que estão caracterizados habilmene nas vinhetas elegantes
dos caracteres de Teofrasto. Porém, nesse texto, esses traços aparecem como predisposições
a certos hábitos e não paixões. Ao falar de ressentimento, um psicólogo grego reconheceria
não mais do que mau comportamento. E, afinal de contas, talvez essa opinião não seja de
todo tola.
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Parte I
PERCURSOS DE MEMÓRIA E DE HISTÓRIA
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO:
LINGUAGENS E NARRATIVAS
Capítulo 4
Tentarei pensar nas questões que nos ocupam durante este colóquio, questões
políticas e éticas, questões dolorosas, a partir de alguns conceitos emprestados da filosofia
de Walter Benjamin. com efeito, Benjamin não é somente, pela sua biografia, um
representante destes exilados-refugiados-sem papéis nem teto que encontramos hoje por
todas as nossas cidades e que talvez sejam a figura de nosso próprio exílio. O pensamento
de Benjamin se ateve a questões que ele não resolveu e que ainda são nossas, questões cuja
irresolução, justamente, torna-as urgentes. Talvez nossa tarefa consista em colocá-las de
forma diferente.
Uma dessas questões essenciais e sem resposta poderia ser definida, em termos
benjaminianos, como o fim da narração tradicional. Ela se coloca com força em toda a
literatura moderna e contemporânea, na reflexão filosófica atual - chamada ou não de ”pós-
moderna” - sobre o ”fim das grandes narrativas”, nas discussões históricas e
historiográficas de hoje. Essa discussão também sustenta as narrativas, simultaneamente
impossíveis e necessárias, nas quais a memória traumática, apesar de tudo, tenta se dizer,
narrativas e literatura de testemunho que se tornaram um gênero tristemente recorrente do
século XX, em particular (mas não só) no contexto da Shoah.
Especialmente dois ensaios de Walter Benjamin, quase contemporâneos, tratam
desse tema: Experiência e pobreza, de 1933, e O narrador, escrito entre 1928 e 1935. Por
que partir desses dois textos? Porque iniciam com descrições semelhantes, às vezes
literalmente semelhantes, para chegar a conclusões que podem parecer opostas,
Este artigo foi escrito, primeiramente , para o colóquio Memória e Desaparecimento, que aconteceu na Uerj,
no Rio de Janeiro, de 26 a 27 de agosto de 1999. para o colóquio da Unicamp, sofreu algumas pequenas
modificações.
“La fin des granou récits”, ver Jean-François Lyotard, La condition postmoderne. Paris: Minuit, 1979.
Palavra hebraica que significa “catástrofe”, usada sobretudo na França para substituir “holocausto”. É
também o título do filme de Claude Lanzmann, de 1985. (N. do E.)
contraditórias até. É a presença dessa oposição que nos assinala, [justamente, a gravidade
da| questão colocada. Ambos os ensaios partem daquilo que Benjamin chama de perda ou
de declínio da experiência (Verfall der Erfahrung), isto é, da experiência no sentido forte e
substancial do termo, que a filosofia clássica desenvolveu, que repousa sobre a
possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana, tradição
retomada e transformada, em cada geração, na continuidade de uma palavra transmitida de
pai para filho. A importância dessa tradição, no sentido concreto de transmissão e de
transmissibilidade, é ressaltada, em ambos os ensaios, pela lenda muito antiga
(provavelmente uma fábula de Esopo) do velho vinhateiro que, no leito de morte, confia aos
filhos que um tesouro está escondido no solo do vinhedo. Os filhos cavam, cavam, mas não
encontram nada. Em compensação, quando chega o outono, suas vindimas se tornam as
mais abundantes da região. Os filhos então reconhecem que o pai não lhes legou nenhum
tesouro, mas uma preciosa experiência, e que sua riqueza lhes advém dessa experiência.
Pode-se, naturalmente, interpretar essa fábula como a ilustração da nobreza do trabalho e do
esforço. Benjamin não a usa com esses fins moralizantes. É a encenação dessa história que
lhe interessa. Não é o conteúdo da mensagem paterna que importa; aliás, o pai promete um
tesouro inexistente e prega uma peça nos filhos para convencê-los. O que importa é que o
pai fala do leito de morte e é ouvido, que os filhos respondem a uma palavra transmitida
nesse limiar e reconhecem, em seus atos, que algo passa de geração para geração; algo
maior que as pequenas experiências individuais particulares (Erlebnisse); algo maior que a
simples existência individual do pai, um pobre vinhateiro; algo, porém, que é transmitido
por ele; algo, portanto, que transcende a vida e a morte particulares, mas nelas se diz; algo
que concerne aos descendentes. Uma dimensão, portanto, que transcende e,
simultaneamente, porta a simples existência individual de cada um de nós. Podemos
chamá-la o simbólico ou mesmo o sagrado; Benjamin não nomeia essa dimensão, e essa
omissão também é o signo de um grande pudor. Ele insiste, aliás, muito mais na perda da
experiência que a fábula de Esopo encenava. A perda da experiência acarreta um outro
desaparecimento, o das formas tradicionais de narrativa, de narração, que têm sua fonte
nessa comunidade e nessa transmissibilidade. As razões dessa dupla desaparição provêm de
fatores históricos que, segundo Benjamin, culminaram com as atrocidades da Grande
Guerra - hoje, sabemos que a Primeira Guerra Mundial somente foi o começo desse
processo. Os sobreviventes que voltaram das trincheiras, observa Benjamin, voltaram
mudos. Por quê? Porque aquilo que vivenciaram não podia mais ser assimilado por
palavras. Nesse diagnóstico, Benjamin reúne reflexões oriundas de duas proveniências: uma
reflexão sobre o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica, em particular sua
aceleração a serviço da organização capitalista da sociedade, e uma reflexão convergente
sobre a memória traumática, sobre a experiência do choque (conceito-chave das análises
benjaminianas da lírica de Baudelaire), portanto, sobre a impossibilidade, para a linguagem
cotidiana e para a narração tradicional, de assimilar o choque, o trauma, diz Freud na
mesma época, porque este, por definição, fere, separa, corta do sujeito o acesso ao
simbólico, particularmente à linguagem.
É justamente essa impossibilidade de uma resposta simbólica clássica que pode nos
ajudar a compreender por que Benjamin desenvolve conseqüências tão diferentes nos dois
textos em questão, apesar da identidade do ponto de partida, da constatação da perda da
experiência e da narração tradicional.
No curto texto Experiência e pobreza, Benjamin insiste iras mutações que a
pobreza, justamente, de experiência acarreta para as artes contemporâneas. Não se trata
mais de ajudar, reconfortar ou consolar os homens pela edificação de uma beleza ilusória.
Contra uma estética da interioridade, da harmonia, da suavidade e da graça, Benjamin
defende as provocações e a sobriedade áspera das vanguardas. São seus famosos exemplos,
emprestados da arquitetura, do material moderno, o vidro, elemento frio, cortante,
transparente, que impede a privacidade e se opõe aos interiores aconchegantes, repletos de
tons pastel e de chiaroscuro, nos quais o indivíduo burguês procura um refúgio contra o
anonimato cruel da grande cidade (e da grande indústria). Emblema desse ideal ilusório: o
veludo, exato oposto do vidro, o veludo macio, acolhedor e, sobretudo, profundamente
impregnado de privacidade, porque é nele que o feliz proprietário deixa, com a maior
facilidade, sua marca, a marca de seus dedos, contrariando a regra de ferro que governa a
vida moderna, a saber, não deixar rastros.
É nesse contexto que Benjamin cita o famoso poema de Brecht, Verwisch die
Spuren. Deve-se ressaltar que o poema é aqui citado de maneira positiva contra as ilusões
consoladoras e harmonizadoras das práticas artísticas ”burguesas”, como Benjamin e Brecht
as chamam. Práticas que não levam em conta a ruptura essencial que a arte contemporânea
não pode eludir: que a experiência - Erfahrung- não é mais possível, que a transmissão da
tradição se quebra e que, por conseguinte, os ensaios de recomposição da harmonia perdida
são logros individualistas e privados (resta saber se essa harmonia perdida realmente
existiu, mas isso é uma outra questão). Esse ponto me parece ter uma importância decisiva
para refletirmos juntos, na esteira das análises benjaminianas, sobre as dificuldades
objetivas que se opõem ao restabelecimento da tradição e da narração em nossas sociedades
“pós-modernas” e pós-totalitárias; isso significa também que, infelizmente, os bons
sentimentos nunca bastam para reparar o passado.
Claro, a citação do poema de Brecht também possui um valor crítico de denúncia
porque evoca, de maneira simultaneamente profética e sobria as práticas do Estado
totalitário moderno. Cito as duas últimas estrofes desse poema:
O que você disser, não diga duas vezes.
Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-o. •
Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato
Quem não estava presente, quem nada falou
Como poderão apanhá-lo?
Apague os rastros!
Remeto aqui ao artigo de Gérard Namer que tem o título sugestivo de “La confiscation sociopolitique du
besoin de commémorer”, Autrement. Paris, nº 54, jan., 1999. Travail de mémoire 1914-1998.
Primo Levi, É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 60.
Esses “abusos da memória”, pararetomar o título provocativo de Todorov, comportam
vários perigos. Só citarei dois deles: uma fixação doentia ao passado - o que Nietzsche, no
fim do século passado, já tinha diagnosticado como um dos diversos sintomas do
ressentimento -, isto é, também a incapacidade de bem viver no presente; e, na esteira dessa
fixação, a identificação, muitas vezes patológica, por indivíduos, que não precisam nem ser
os herdeiros diretos de um massacre, com um dos papéis da díade mortífera do algoz e da
vítima: como se a busca de si tivesse de ser a repetição do (neo)nazi ou, ainda mais
dramaticamente, talvez, a construção de uma infância no campo de Majdanek (o famoso
”caso” de Binjamin Wilkomirski, aliás, Bruno Doessekker).
As reflexões de duas descendentes de sobreviventes do genocídio armênio, Hélène
Piralian e Janine Altounian, podem nos ajudar nesse contexto. Esse genocídio é tanto mais
terrível que continua, até hoje, sendo ignorado e denegado pela comunidade política
internacional. É como se houvesse herdeiros de mortos que, simbolicamente falando, nunca
existiram, que não pertenceram aos vivos e não podem, portanto, pertencer hoje aos mortos,
tornando seu luto tão difícil; uma dificuldade análoga, quase uma impossibilidade,
atormenta os familiares dos “desaparecidos” na América Latina. Agora, como tentar pensar
um lugar fora desse círculo de fixação e de identificação? Não temos de pedir desculpas
quando, por sorte, não somos os herdeiros diretos de um massacre; e se, ademais, não
somos privados da palavra, mas, ao contrário, se podemos fazer do exercício da palavra, um
dos campos de nossa atividade (como, por exemplo, na universidade), então nossa tarefa
consistiria, talvez, muito mais em restabelecer o espaço simbólico onde se possa articular
aquilo que H. Piralian e J. Altounian chamam de “terceiro”, isto é, aquilo que não faz parte
do círculo infernal do torturador e do torturado, do assassino e do assassinado, aquilo que,
“inscrevendo um possível alhures fora do par mortífero algoz-vítima, dá novamente um
sentido humano ao mundo”. No sonho de Primo Levi, deveria ser a função dos ouvintes,
que, em vez disso e para desespero do sonhador, vão embora, não querem saber, não
querem permitir que essa história, ofegante e sempre ameaçada por sua própria
impossibilidade, alcance-os, ameace também sua linguagem ainda tranqüila; mas somente
assim poderia essa história ser retomada e transmitida em palavras diferentes. Nesse
sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; a testemunha não
seria somente aquele que viu com os próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha
direta.Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezem a história do outro: não por
culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida
Tzvetan Todorov, Les abus de Ia mémoire. Paris: Arléa, 1995.
Alusão ao livro Fragmentos, publicado em 1995 na prestigiosa editora Suhrkamp, traduzido para várias
línguas, inclusive a brasileira, festejado como um dos mais pungentes testemunhos sobre a Shoah e
denunciado de maneira convincente, em 1998, como uma autobiografia fictícia escrita pelo falsário (?) ou
esquizofrênico (?) Bruno Doessekker, suíço de uns 50 anos, filho ilegítimo de uma empregada e adotado,
ainda criança, por um casal de médicos de Zurique.
“Celui qui, inscrivant un possible ailleurs au couple meurtrier, bourreau-victime, redonne un sens humain au
monde”, H. Piralian, “Ecriture(s) du genocidaire”, in Parler des camps, penser les génocides (textos reunidos
por Catherine Coquio). Paris: Albin Michel, 1999, p. 541. A esse respeito ver, do mesmo autor, “Maintenir les
morts hors du nánt”, Autrement, op. cit. Ver também Janine Altounian, “Lês héritiers d’un génocide”, in
Parler des camps..., op. cit.
apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado
pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a
inventar o presente.
Capítulo 5
A confluência de duas figuras por uma equação declarativa enuncia a obra. Por um
membro dessa equação, ela afirma a subjetividade de uma composição discursiva, bem
identificando a figura do sujeito, indivíduo humano, que é seu autor: Tucídides de Atenas.
Por outro, proclama, entretanto, que é narração objetiva, a expor os acontecimentos
mesmos: nela se fixa textualmente “a guerra dos peloponésios e atenienses como eles
combateram uns contra os outros”. Então, assim Tucídides postula para sua obta a
qualidade de espelhamento transparente dos acontecimentos sob forma discursiva, de modo
que nesta se transpõem em palavras os modos efetivos da manifestação fenomênica
daqueles.
Com Tucídides, no horizonte de sua retórica agonística de polêmica epistemológica
contra o prestígio das histórias míticas, o projeto historiográfico alcança formulação radical:
(historiografia é história do presente, temporalidade demarcada pela ação Guerra do
Peloponeso, categoria por que se dá a concomitância entre atualidade dos fatos e atualidade
de seu registro e narrativa. Assim pode a história tucididiana, enquanto composição
A guerra dos peloponésios e atenienses, 1.1.
narrativa, fundar plenamente suas pretensões de veracidade pelo princípio epistemológico
da presença cognitiva como condição informativa dos acontecimentos.
Sua história projeta, portanto, adelgaçar a memória do tempo histórico, reduzir ao
máximo sua densidade temporal memorizada, encurtando a distância que separa o tempo do
acontecimento (passado) do tempo da narrativa (presente). Almeja, pois, livrar a memória
do tempo histórico das aderências temporais de sua sobrecarga mítica, das sobreposições de
sentidos que a memorização do fato adquire com o decorrer do tempo, as quais desvirtuam
e mesmo falseiam a verdade dos fatos, já que sacrificada aos apelos espúrios de
entretenimento dos auditórios virtuais a que se destinam suas narrações, quer os
embelezamentos engrandecedores com que os poetas os revestem de sublimação heróica,
quer os agrados de contos maravilhosos com que os logógrafos atendem aos prazeres de
seus ouvintes. Pelas narrações de ambos, poetas (Homero) e logógrafos (Heródoto),
sedimenta-se o primado do fabuloso, do mythodes, que adere às realidades antigas
memorizadas pelas tradições, obnubilando a percepção de sua verdade histórica.
Assim, Tucídides firma para a história o primado da verdade como princípio
teleológico de sua ambição epistemológica,. Pretensão epistemológica da história
tucididiana de dupla eficácia, pois faz de uma pretensa perda um ganho real: troca o falso
do mítico, que obnubila a percepção da práxis humana sacrificada aos desvios de apelos
fugazes de fruição momentânea, pela clarividência da realidade factual, que projeta a
permanência de sua valia futura pela ordenação política que ela enseja.
Então, por uma ambivalente declaração a fechar seu proêmio, em que tanto reduz
quanto amplia os horizontes de valia do saber histórico, Tucídides encerra as reflexões
porque principia a composição de sua obra, firmando a que valores e fins ela responde:
A guerra dos peloponésios e atenienses, I.20-21.
A guerra dos peloponésios e atenienses, I .22.4.
A história tucididiana, enquanto ciência humana, privilegia, assim aludida
metaforicamente, uma epistemologia que fundamenta sua virtuosidade cognitiva pelo
primado informativo da percepção direta, especialmente visual, dos acontecimentos.
Conseqüentemente, o historiador ordenou a heurística de sua informação observadora dos
fatos consagrando o princípio da autópsia como condição: ou ele mesmo os presenciara ou
acolhera relatos por quem os presenciara.
Mas, pela trama de tais declarações, fica intrigado um jogo Ambíguo que tanto
distingue quanto confunde a observação historiante dos fatos pelo historiador com a
percepção informativa dos acontecimentos pelos que deles foram participantes. E tanto
mais ambíguo quanto se trata de intriga aporética, jogando a narração historiográfica diante
de um penoso impasse, ainda mais irônico porquanto inerente, implicado justamente pelo
princípio da presença cognitiva. Pois, por menor que seja a distância temporal entre tempo
do acontecimento e tempo da narrativa, há sempre, mediando ambos, um ato de
memorização do fato, pelo qual a percepção visual do sujeito que presencia o
acontecimento transmite sua realidade perceptiva traduzida por consoante relato discursivo,
o qual informa a composição narrativa da obra historiográfica. Todavia, essa intermediação
informativa dispõe singular aporia para a constituição de uma história de veracidade factual
unívoca, tanto mais inevitável quanto implicada justamente pela imposição de um tal
princípio epistemológico de presença cognitiva. Pois, sentencia ainda Tucídides, assim que
firmou a orientação por que comporia em sua obra o relato das ações praticadas na guerra,
“penosamente as apreendi, porque os que estiveram presentes a cada um dos
acontecimentos não diziam as mesmas coisas acerca dos mesmos fatos, mas sim conforme
sua inclinação por um dos lados ou sua memória”.
O historiador aponta aqui, como aporia informativa básica para a sua narração dos
fatos bélicos, o dilema posto pela diversidade discordante de relatos, entretanto,
concernentes a uma unicidade factual: sobre os mesmos acontecimentos, distintos
observadores dão informes divergentes.
E o impasse é inerente ao fato da presença, pois os informantes que presenciaram os
acontecimentos os presenciaram porque participavam de suas ações. E eram partícipes
porque engajados por algum dos lados diversamente envolvidos nas disputas do conflito
beligerante. Então, ao ensejo determinante dessa participação, viram e, pois, informaram os
fatos (pré)dispostos por suas precípuas determinações subjetivas, quer delimitações
idiossincrásicas de (in)capacidades mnemônicas, quer enviesamentos perceptivos
comprometidos pela ótica contaminada de seu engajamento. Dessa forma, sua percepção
dos fatos e seu condizente relato comprometem-se por essa parcialidade de seu olhar, não
apenas e tanto porque se trate de subjetividades diversas, mas, sobretudo, porque, devido a
engajamentos antagônicos, respeitam a enfoques inerentemente conflitantes de constatação
informativa dos acontecimentos presenciados.
Porém, assim advertidos nós, leitores, de tais aporias e impasses, constatamos - um
tanto perplexos, algo decepcionados, ou por vezes mesmo incrédulos, se não desconfiados
A guerra dos peloponésios e atenienses, I. 22.3.
Confiram-se as indicações bibliográficas constantes em Murari Pires, Mithistoria, a retórica do método, pp.
277-92.
- que pouco, se quantificado pelo total da obra, dessa dialética dos informes fatuais
comparece expressamente inscrito na narrativa tucididiana dos eventos bélicos, não mais
que uma dezena de passagens.
Diversamente da de Heródoto, a narrativa historiográfica tucididiana não faz aflorar
a dialética de suas fontes informativas e tampouco revela os procedimentos de sua
metodologia crítica, porque derivou a reconstituição dos fatos consagrados na redação de
sua história. “Na narração propriamente dita”, observa Butti de Lima, “o historiador,
enquanto historiador, está ausente”, e nela deparamos antes ”a apresentação direta dos
fatos.” O discurso narrativo tucididiano é predominantemente, se não avassaladoramente,
composto por impressões de apenas resultados fatuais, quaisquer que sejam as
identificações dos informantes e quaisquer que sejam as operações analíticas de uma sua
suposta crítica averiguado rã de veracidade.
Perpassa, assim, pela obra um certo silêncio metodológico operado por um
ocultamente do historiador, o qual, antes de integrar a dialética de sua heurística, oblitera-a
e, antes de expor quais sejam as determinadas regras e preceitos de sua crítica, dá esta
apenas por pressuposta e realizada. Tudo o que Tucídides revela nesse sentido reduz-se à
mínima declaração programática de seu dito capítulo ”metodológico”: na reconstituição dos
acontecimentos, o historiador almejou sempre alcançar a precisão, acribia.
“[...] ao passo que Heródoto associa freqüentemente o leitor a suas investigações, lhe desvenda as origens e
lhe dá a conhecer suas próprias reflexões e arrazoados, Tucídides limita-se manifestamente a descrever de
uma vez por todas seu método histórico-crítico, e a expor, para o restante, o resultado de suas pesquisas”
(Schepens, 1980, p. 96). ”[...] Tucídides difere de Heródoto ainda a outro respeito. Heródoto freqüentemente
nos informa sobre as versões conflitantes de suas fontes. Nós podemos ver os dilemas que ele enfrentou ao
escolher entre elas e os critérios que adotou ao ajuizar seu valor. Ocasionalmente ele confessa dúvidas
pessoais quanto à verdade de um ato ou de uma história. Outras vezes deixa o leitor decidir no que acreditar,
dispondo-se apenas a um papel de Repórter. O método de Tucídides é bem diferente. O que Tucídides
apresenta são as conclusões que ele alcançou. Raramente sequer identifica suas fontes ou especifica pontos em
que elas concordavam ou discordavam; nem expõe os critérios que usou para ajuizar a verdade ou para
expressar quaisquer dúvidas que possa ter tido (uma passagem como8.44 é incomum). [...] O resultado, então,
é que Tucídides nos apresenta a fachada de um edifício tão completamente acabado que nós podemos apenas
conjeturar em que alicerces se apoia e qual é a estrutura interior que suporta o exterior por nós visto” (T. J.
Luce, The Greek historiam, p. 71).
Razão por que, mais recentemente, as projeções da crítica moderna de reconhecimento de sua identidade
historiográfica nos historiadores antigos andaram saudando a “melhor cientificidade metodológica”
herodotiana, em prejuízo da mais afamada tucididiana, veleidade esta de ajuizamento, entretanto, não imune a
certos percalços, pois nem sempre “os princípios que levaram Heródoto a indicar suas fontes correspondem
certamente àqueles que hoje se definem como científicos” (Butti de Lima, L’Inchiesta e Ia prova, p. 102).
Idem, op. cit., p. 96.
“A fórmula sucinta do diz-se que (légetai) basta para transpor a narração do nível dos fatos ao da história”
(ibidem). “Mas, quando a história se torna pesquisa da verdade, o narrador não tem outra coisa a fazer que
retirar-se [...]. Ele é este narrador ausente, que deixa falar os fatos: objetivo” (Hartog, 1982, p. 26).
Para a questão do entendimento da concepção tucididiana de acribia como precisão, veja-se, por último, o
minucioso estudo de Crane, 1996, pp. 50-65. As reflexões de G. S. Shrimpton, todavia, advertem da
(con)fusão de conceitos que também nessa questão pode estar operando a crítica moderna: “Direi que os
olhos de um historiador antigo não são os de um empirista que experiência, testa e verifica, mas os de uma
testemunha que viu e lembra. Os historiadores antigos preservavam a memória antes do que praticavam a
história como ela é feita hoje em dia. Assim, eles não mensuravam a precisão histórica por padrões empíricos”
(History andmcmory in aneient Greece, p. 52). Confira-se, por fim, o recente artigo deste último crítico no
The Aneient History Bulletin, 1998, 3 (”Accuracy in Thucydides”).
Tucídides mesmo, em seu texto, revela apenas e tão-somente não as soluções por ele
precipuamente alcançadas, mas antes as dificuldades por ele “metodologicamente”
advertidas. Como as superou, por quais eventuais procedimentos e operações analíticas,
Tucídides não diz. Aqui, mais do que tudo, imperam os silêncios do estilo elíptico
tucididiano.
Não haveria, então, ainda lugar para interrogarmos também justamente outras razões
desse silêncio e inquirirmos algum seu sentido na trama mesma do discurso “metodológico”
tucididiano? Tal silêncio e elisão não são tanto algo a ser estranhado, pielo contrário, eles
condizem mesmo com a intriga tecida pela própria arquitetura retórica de formulação de
pensamento dessa sua reflexão metodológica, toda ela comandada por uma ordenação de
natureza quiástica, plena de figuras de antíteses e de reversões assertivas.
Inicialmente, quando tratava da reconstituição dos discursos, Tucídides principiou
suas considerações declarando quais eram as dificuldades, justamente postas por um
reclamo de acribia., dificuldades estas de tal monta que inviabilizaram o procedimento
narrativo de simples reprodução dos relatos recolhidos junto dos informantes. Então, postas
tais dificuldades, o historiador contornou esse primeiro impasse firmando que ele mesmo,
nominalmente, apreenderia, por seu parecer, a realidade dos discursos, fundando-a a partir
dagnóme efetivada por cada um e pautando-se pela acribia possível de aproximação do que
fora realmente dito. Depois, passando então à questão da reconstituição das ações, ou seja,
dessa categoria de acontecimentos contraposta aos discursos, Tucídides reverteu os
procedimentos adotados. Agora, ao revés do que fez para os discursos, dispensou seu ato
nominal de emissão de um parecer pessoal enquanto sujeito da narrativa, preferindo, ao
invés, acolher os relatos dos informantes, justamente dispensados no caso dos discursos. E,
assim bem os acolhendo, lembrou novamente, como para os discursos, que também sobre
eles imperava o reclamo da acribia. Daí, terminou por declarar quais eram então as
dificuldades. Em síntese, para os discursos, aludiu às dificuldades para apresentar as
soluções; já para as ações, aludiu às soluções para bem realçar, pelo contrário, as
dificuldades.
Ora, mas uma análoga intriga retórica tramada pela obra narrativa tucididiana
encontra-se também no proêmio do célebre discurso fúnebre atribuído a Péricles. Neste
seu pronunciamento de abertura, o discurso marca, em relação à própria prática
institucional da oração fúnebre em honra dos guerreiros que tombaram pela cidade, uma
reivindicação de originalidade crítica, a discordar da praxe consagrada de iniciar a
peroração tecendo louvores ao legislador que instituiu tal prática:
Para T. J. Luce, “a antítese é o aspecto mais característico da escrita tucididiana” (top. cit., p. 72).
Já Woodman chamou a atenção para este ponto: “Observe-se que a ênfase é totalmente colocada sobre a
dificuldade do processo antes do que sobre os resultados alcançados” (1988, p, 16).
Entre outros, vejam-se os comentários de Gaiser, 1975, pp. 24-27; e Loraux, 1981, pp. 232-41.
Já destacado por Orwin, 1994, p. 16.
homens cujo valor traduziu-se em atos, fossem prestadas
homenagens
igualmente por atos, como vedes que se faz hoje nas medidas oficiais
aqui tomadas para seu sepultamento. Os méritos de todo um grupo
não dependeriam de um único indivíduo, cujo talento maior ou
menor lhes coloca em causa o crédito. Pois é difícil adotar um torn
justo, num assunto em que a simples apreciação da verdade encontra
penosamente bases seguras: bem informado e bem disposto, o
ouvinte pode muito bem julgar a exposição inferior ao que ele deseja
ou sabe; mal informado, pode, por inveja, estimá-lo exagerado,
quando aquilo que ele ouve ultrapassa suas próprias capacidades;
pois não se toleram ilimitadamente elogios pronunciados a respeito
de um terceiro, cada um o fazendo na medida em que se acredita
capaz de realizar, ele mesmo, os feitos que ouve relatar; além disto,
com a inveja, nasce a incredulidade.
A guerra dos peloponésios e atenienses, II.35. l -2 (a partir da tradução francesa de J. de Romilly).
Considere-se, paralelamente, a similar intriga retórica figurada pelo discurso de Otanes, no célebre Debate
persa herodotiano (III. 80), ao denunciar a irracionalidade da inveja e a inconseqüência das calúnias da figura
do tirano nas relações com seus súditos, o qual, nas cortesias moderadas que estes lhe dirigem, acusa falta de
adulação, mas, nas adulações exageradas, vil bajulação.
paradoxalmente, logo a seguir, antes a enceta e cumpre, efetivando-a enquanto tal. Daí um
preciso sentido e finalidade retórica embutidos por este seu procedimento convencional de
captatio benevolentiae: se ele realiza o, todavia, impossível enquanto proposição
discursiva, algo que não há fórmula retórica que viabilize, tanto melhor se pode apreciar a
excelência e o mérito singularmente excepcional do orador que, assim mesmo e todavia,
realizou-o. E, para realizar essa modalidade discursiva de elogio, não há nenhuma solução
determinada, imperam apenas as impossibilidades postas pelas dificuldades, pelas aporias
claramente afirmadas.
Ora, mas ocorre, com esta projeção tucididiana da excelência retórica pericliana
consagrada por esse seu suposto desempenho ao iniciarse a Guerra do Peloponeso, algo
similar ao que se passa, no texto da Odisséia, com os elogios firmadores da excelência no
domínio das artes do canto e narração das gestas heróicas - quer aquele com que Odisseu
distingue Demódoco, quer o outro em que é Alcino quem antes assim honra o herói
mesmo: os ecos de ambos alcançam e. ressoam sua projeção valorativa na figura do
sujeito poético que os memorizou, tradicionalmente representado pelo nome de Homero.
Igualmente, o modo discursivo por que o historiador reconhece e consagra na memória
histórica a perícia retórica de Péricles proclama, pela sutil inteligência de um mesmo belo
silenciamento de si mesmo, antes a sua própria, pessoal, arte retórica, deste sujeito
historiante da guerra cujo nome chancela o texto desde sua abertura: Tucídides de Atenas!
E não poderíamos ainda reconhecer homólogos procedimentos de arrazoado retórico
nesse outro proêmio discursivo da obra tucididiana, o qual insere no seu bojo a apreciação
da suposta questão metodológica de reconstituição dos acontecimentos bélicos? Aqui,
também, Tucídides aponta incontestáveis dificuldades de realização, porém não tendo por
finalidade fundamentar uma argumentação de sua desistência e renúncia, pois ele obra
justamente o contrário, consumando, a seguir, a realização narrativa que, paradoxalmente,
supera-as. E supera-as justamente aparentando apenas pressupor uma solução determinada,
mesmo porque solução assim sugerida como indeterminável. A finalidade retórica é apenas
firmar as dificuldades e não anunciar suas soluções. Assim, tanto mais se aprecia a
capacidade historiográfica de quem, entretanto, transpõe não regras metodológicas
descobertas, mas, pela obra narrativa de fato consumada, os impasses então declarados,
pois, das dificuldades e aporias, a Guerra dos peloponésios e atenienses não revela mais os
traços, a não ser por algumas ínfimas alusões esparsas. E a capacidade historiográfica por
tal excelência distintiva que configura a autoridade de seu sujeito humano em padrões
heroicizantes.
Vejam-se as obras citadas anteriormente de Gaiser e de Loraux; por outro lado, considerem-se as justas as
advertências ponderadas por Hornblower (1987, pp. 101 e ss.) acerca do alcance dos ajuizamentos que
apontam as relações entre a obra discursiva tucididiana e a sistematização teorizante da arte retórica.
Odisséia, VIII.486-498 e XI..363-376.
Uma similar reflexão metodológica que opera por retórica ambivalente comparece também na crítica
tucididiana respeitante à veracidade dos fatos do passado, em que o historiador tanto firma categoricamente
um princípio metodológico denunciador da inconfiabilidade de certos informes (as narrativas poéticas e as
tradições orais) quanto, todavia, a seguir deles se vale (das narrativas homéricas na dita ”Arqueologia”, das
tradições orais nas correções acerca da tirania dos Pisistrátidas) para compor o arrazoado comprovador de
suas teses. Devemos particularmente a lembrança dessas considerações (além de outras) aos apontamentos
críticos por que nosso artigo foi ajuizado pelo corpo editorial do The Ancient History Bulletin.
Se, então, o sentido retórico da reflexão tucididiana é expresso justo por seu silêncio
“metodológico” como (ir)resolução da aporia da dialética heurística expressamente
apontada, retórica do silêncio que não solicitaria de nós, leitores, acusar a falha do vazio
informativo cujo reclamo ambicionaríamos preencher, talvez se possa buscar outras
aproximações hermenêuticas para entendermos a historia tucididiana.
Uma via de aproximação vislumbra-se além de Tucídides, adiante, pela reflexão
filosófica aristotélica, quando ela equaciona em sua ética o conceito do phrónimos, o
homem de prudência sapiente, que, contra as aporias da dialética conflitante polarizada
pelos extremos opostos do erro, ou por falta ou por excesso, discerne, pela virtude de sua
distintiva .inteligência superlativa, o acerto do justo meio. Pierre Aubenque, em sua obra
sobre a concepção aristotélica da prudência, analisou como a . essência ao phrónimos
(homem prudente), enquanto figura de autori?dade, dá-se como personificação de instância
ou centro de julgamento, que têm por fundamento axiológico a regra correta que determina
o justo meio. Para essa teorização, a memorização da figura histórica de Péricles fornece o
modelo da reflexão enquanto tal persona, e por esse modelo projeta-se, pela ética
aristotélica, a permanência de um ideal ético heroicizante arcaico de fundo aristocrático.
Paralelismo com a figuração do Péricles tucididiano que mais a aproxima da persona do
historiador Tucídides, se considerarmos que a referência aos homens prudentes (tois
sóphrosi ton anthropon), que ajuizaram com melhor sensatez, em contraposição aos meros
modos impulsivos das paixões populares, os episódios da assembléia ateniense que debateu
o prosseguimento da campanha de Pilos-Esfactéria, possa aludir também à sua própria
pessoa, supostamente lá presente, naquela assembléia.
Outra via de aproximação descortina-se aquém de Tucídides, antes, pela concepção
arcaica da figura do histor, conceito inaugural que catalisa os princípios da práxis
historiográfica helênica.
Histor, historia, de que para nós adveio, via latim, história, compartilham com oida,
ao que ensina o saber filológico consagrado, uma mesma raiz fundante de sua semântica,
*weid (presente também no videre latino), a referenciar, pois, um modo de cognição
fundado pelo ato de ver, observar pessoalmente, ser testemunha ocular: eu sei por ter visto é
como se traduz, consoante tal entendimento filológico, oida. Então, histor, designativo do
sujeito, e historia, de sua obra, segundo essa lição filológica, integram-se em uma vertente
epistemológica helênica que consagra o primado da autópsia, da percepção pessoal,
especialmente visual de testemunha ocular, assinalada por vários registros de sua
memorização textual preservada.
P. Aubenque, La prudence chez Aristote. Paris: PUF, pp. 33-63.
Assim, na célebre história herodotiana da contemplação da rainha nua por Giges, Candaule, o rei Lídio que
peca pela inépcia de seu orgulho, proclama: “as pessoas confiam menos nos ouvidos do quê nos olhos”, dito
sapiencial também consagrado em registros do lógos filosófico. Assim, diz-se que Tales de Mileto,
interrogado sobre qual era a distância entre a verdade e a mentira, respondera: “tão grande quanto a distância
entre o olho e o ouvido”. Para saber é preciso ter visto, argumentava Xenófanes de Cólofon; “pois os olhos
são testemunhas mais exatas que os ouvidos”, sentenciava Heráclito de Éfeso, epistemologia do primado da
cognição humana visual que ganhou formulação axiomática com Aristóteles, logo na abertura da Metafísica:
“Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal disto é o prazer que nosproporcionam os nossos
sentidos; pois, ainda que não levemos em conta a sua utilidade, são estimados por si mesmos; e, acima de
todos os outros, o sentido da visão, com efeito, não só com o intento de agir, mas até quando não nos
propomos a fazer nada, pode-se dizer que preferimos ver a tudo o mais. O motivo disso é que, entre todos os
Mas, pelo que ainda ensina esse saber filológico consagrado,
Há, assim, uma intriga condensada pelo conceito que joga dialeticamente com a
consciência da temporalidade, pois, embora a percepção fundante suponha sua realização
efetiva numa atualidade passada, ela, entretanto, bem existe na atualidade presente pelo
conhecimento que dela é afirmado discursivamente por um sujeito humano.Entre fugaz
percepção passada e atual narração presente, medeiam os nexos de um processo de
memorização de que esse sujeito humano constitui a instância histórica depositária.
Assim, o histor, dada essa vinculação etimológica com oida, enquanto sujeito
humano que ajuíza e firma no presente o conhecimento acerca do fato ocorrido no passado,
não se identifica necessariamente com quem presenciou e viu sua manifestação mesma. É
assim que André Sauge alerta, por instigantes reflexões analíticas, a consciência crítica do
entendimento daquele conceito arcaico. Pois, na célebre cena do Escudo de Aquiles em que
o ensejo a reclamar a figura do histor advém de uma disputa jurídica respeitante ao preço
compensatório de um crime de sangue em litígio, nem mesmo se tem definido quem, assim,
de princípio é nomeado como histor porque privilegiado pela sua condição de testemunha
ocular, mas quem, dentre os anciãos da comunidade, acertar o melhor juízo ordenador do
conflito, só se identificando, portanto, ao fim do processo. Aos ensejos de outra situação de
desavença conflituosa, agora composta pelos desaforos por que se desentenderam Ajax
Oileu e Idomeneu a rivalizar quem, por melhor tirocínio, antecipava o conhecimento do
resultado da corrida de carros nos jogos fúnebres de Pátroclo, o histor, então indicado, fora
Agamenon, todavia, também ele distante da cena dos acontecimentos, como os demais
heróis que aguardavam o desfecho da cprrida, retirados lá na linha de chegada, ao passoque
era Fênix, o venerando ancião, quem fora designado por Aquiles para testemunhar o que sé
passasse junto do marco de viragem, ponto crucial da prova, onde presumivelmente se
decidia o jogo da vitória. E ainda, lembra André Sauge, na intriga contenciosa das versões
ao fato ocorrido, porque o poeta Arion lançou acusação contra os marinheiros coríntios
encarregados de seu retorno naval à cidade após a bem-sucedida turnê siciliana, quem
historia o fato por ele divulgado é ninguém menos do que Periandro, o tirano, todavia,
presente em Corinto o tempo todo e que nada presenciara da viagem.
Pelo que destaca a análise de Sauge, o reclamo da intervenção do histor a historiar o
fato advém aos ensejos de uma situação litigiosa, marcadamente envolvendo ou um
contexto jurídico mesmo ou uma ambiência judicante, por que duas partes conflitam
sentidps, é a visão que põe em evidência e nos leva a conhecer maior número de diferenças entre as coisas”
(Aristóteles, Metafísica, I.1.980a25, trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, p. 36).
J. Brunschwig, Le savoir grec, p. 116.
divergentes asserções de veracidade quanto a um fato, assim, confrontando reclamos de
direitos antagônicos. Litígio, desavença, confronto e dissidência entre partes ou instâncias
da comunidade que, colocando em questão a verdade de um fato, situam uma ameaça de
ruptura da ordem social por dissolução de alguma de suas normas estabilizadoras. Perante
essa suspensão do estabelecimento cognitivo da veracidade do fato e a correspondente crise
dialética de posicionamentos de reclamos de direitos, a intervenção do histor, a equacionar
e resolver o conflito, é tanto mais necessária quanto a situação inviabiliza sua solução mais
imediata pelo apelo ao recurso do testemunho ocular de quem presenciou o fato, todavia,
nestes casos, inviabilizado, dado o impasse disposto pelo confronto de suas óticas parciais,
enviesadas por comprometimentos subjetivos, já que apenas as duas partes envolvidas no
episódio, que dele participaram, compõem as testemunhas oculares do fato.
As circunstâncias conflitantes que questionam, interrogam a veracidade de um fato,
interpelam, portanto, a figura do histor, dele reclamando o saber de uma estratégia
inteligente de deliberação e decisão correta e justa, de quem, mesmo não tendo visto ou
presenciado os acontecimentos implicados, assim o obra discursivamente como se o tivesse
feito. O histor é, portanto, aquele que alcança a verdade, não propriamente porque viu ou
presenciou o fato, mas porque o faz ver discernindo quem diz verídico de quem diz falso.
Por sua ação historiante, dispõese a visão atualizada do fato em sua tradução discursiva. Ao
atinar a verdade do fato, o histor, por sua arbitragem judicante, então atesta a legitimidade
que hierarquiza as pretensões conflituosas segundo sua devida ordem estabelecida. Por
quais virtudes ou méritos se qualifica a condição judicante do histor, de modo que assegure
caráter imperativo a suas decisões? Pelos exemplos destacados por Sauge, indicia-se a
confluência de duas figuras de autoridade variamente conjugadas em cada personificação
do histor: por mérito de sapiência e por título de poder. O título de poder é qualificação por
condição de princípio impositivo, e o mérito de sapiência é qualificação por finalização de
performance persuasiva consensual. Assim, no caso de Agamenon, rei de decisões e
iniciativas comunitárias antes desencadeadoras de conflitos e desarmonias, assim
estigmatizado por certa inépcia no exercício do poder (especialmente deliberativo), o
reclamo de sua figuração como histor propende antes pelo título hegemônico do que pelo
mérito sapiente. Já no caso dos anciãos na cena do Escudo, é antes a virtude da sapiência o
aspecto destacado como distinção superlativa, ao passo que o título antes os equaliza.
Assim, conclui Sauge, o histor designa de maneira geral aquele que faz ver a
verdade discernindo, pela ação historiante que confronta as versões contadas, quem diz a
verdade ou que um tal diz verídico e que, portanto, faz atestar e autenticar a verdade de
apenas uma posição.
Talvez aqui possamos retornar a Tucídides e acompanhar como o historiador
ajuizou e narrou a verdade do fato no episódio da segunda assembléia ateniense que
deliberou o prosseguimento da campanha de Pilos (IV.26-28).
O episódio põe em cena a figura do demagogo, especificamente Cleonte, como
emblema de modalidade de liderança política reinante em Atenas após a morte de Péricles.
Uma possibilidade de leitura e entendimento do fato pode, então, ser apreendida pelas
significações implicadas pelo conceito de demagogia, que Tucídides justamente elabora por
contraposição ao de democracia na célebre passagem do livro II em quetece uma apreciação
apologética da correção da modalidade de liderança pericliana, contrastando-a com os
desvios de conduta pública vigentes com seus sucessores (II.65-6). Por essa contraposição,
a modalidade de liderança pericliana consagra o comando da razão, cuja lógica de atuação
deliberativa reclama a inversão dos (des)propósitos emanados das manifestações impulsivas
das massas, assim as enfrentando, contestando e recusando. O domínio da política pelo
comando da razão democrática se dá pela ação da liderança que contraria as paixões da
multidão. Já pela modalidade de liderança demagógica, a deliberação se torna antes
concessão aos agrados populares, subserviência ao querer das massas, acolhimento e
satisfação de seus pendores momentâneos. Pela demagogia, o domínio da política pelo
império das paixões se dá pela ação da liderança que favorece o querer da multidão.
Então, pela caracterização tucididiana, a narrativa tece uma percepção da assembléia
compondo duas imagens. Uma capta a assembléia conformada às práticas dos tribunais
populares, com a multidão empolgada por seu papel de juiz no jogo de acusação e defesa
travado entre os protagonistas do debate. A outra imagem enfoca o processo determinante
das decisões da assembléia como uma espécie de diálogo, que nela se trava entre o querer
coletivo da multidão e os posicionamentos singulares do demagogo.
Na atuação da multidão, a narrativa desnuda a irracionalidade das paixões
impulsivas que a comandam. Daí a volubilidade que marca suas decisões, sujeitas às
reviravoltas do ânimo popular. Segundo os caprichos dos momentos, ora manifestam uma
propensão - almejam a paz -, ora se inclinam pelo oposto - promovem a guerra. Ora
confiantes e decididas, exultam com uma decisão, ora confusas e receosas, arrependem-se
dela, reconhecendo-a errônea. Irresponsáveis, as massas não admitem o erro como decisão
sua, antes, de imediato, identificam o culpado e contra ele voltam sua animosidade
catártica: o demagogo que as levou, conduziu, ao erro. Então, irritadas e agastadas, dão
vazão à descompostura tumultuada de seu vozerio e berros. Mas, para elas, a assembléia é
também divertimento, em que o, demagogo é o palhaço: comprazem-se em encurralá-lo,
hilariam-se com suas gabolices.O pólo complementar das massas, o demagogo. Móbíl
exclusivo de sua atuação: interesses pessoais, a sorte dèsua fortuna política. Não pauta sua
conduta por nenhuma ética: inescrupuloso, a mentira e a calúnia constituem seu modo
habitual de (não) debate. Porque se orienta exclusivamente em termos de sua promoção
pessoal, não pondera nem reflete suas propostas. Estas são levianas, inconseqüentes,
estapafúrdias, carentes de toda moderação. A audácia de suas assertivas nada mais é do que
jactância inconsistente e vazia, que desmorona em medo assim que, frustrada sua manobra
de blefe, elas ganham realidade efetiva. Palhaço e bobo das massas, adula-as e satisfaz seus
caprichos, pois suas propostas não resultam de iniciativa própria e autônoma, mas
simplesmente ecoam as inclinações impulsivas da multidão.
Por essa percepção catalisada pela narrativa, o demagoga aparece como marionete
manipulada ao ritmo dos ímpetos, de ira ou de divertimento, das massas e cujos
pronunciamentos simplesmente prestam voz discursiva ao que os desejos da multidão
descortinam. De modo que, por essa percepção, as paixões populares momentâneas criam,
geram a proposta política, compõem-na como sujeito, ao passo que o demagogo apenas a
ecoa enquanto objeto e mesmo efetivamente só a assume por imposição do querer das
massas quando, por elas totalmente acuado, não tem mais por onde fugir de (suas)
responsabilidades por meio de manobras evasivas nem como delas desobrigar-se.Todavia,
por esse mesmo relato tucididiano, também se indiciam, embora ofuscados pela figuração
Analisamos mais detidamente a constatação desses indiciamentos em Mithistória, pp. 364 e ss.
contrária, dominante, dessa primeira percepção no corpo maior do texto, relances de um
Cleonte, supostamente demagogo, surpreendente: antes audaz do que temeroso, resoluto do
que esquivo, informado do que leviano, ciente do que inconseqüente e diligente do que
passivo. Mais ainda, indicia-se também que a formulação final de sua proposta de
expedição beligerante obedece a uma estratégia de combate coincidente com aquela
definida previamente por Demóstenes (e, depois, levada a cabo com pleno êxito), de que
ele, Cleonte, estaria, suposta e um tanto enigmaticamente pelo que dão a (dês) entender os
silêncios ou esquecimentos da narrativa tucididiana, ao par.
Então, o paradoxo, se não a contradição, implicado pela narrativa tucididiana
consiste precisamente no faço de que o desfecho da participação do demagogo na
assembléia - a ordem de comandar por aquela estratégia de combate o renovado esforço
bélico de Atenas -, que a narrativa tucididiana apresenta como o cometimento em que
Cleonte envidou todos os esforços no sentido de dele desobrigar-se, só o tendo assumido a
contragosto por obediência as imposições impulsivas da multidão, é justamente não só o
meio eficaz quanto o resultado precípuo de proposição política que se coaduna
perfeitamente com o que fora sempre a sua linha característica de atuação e liderança no
Estado ateniense. Assim a atuação do demagogo na assembléia aparece, pela narrativa
tucididiana, como o ato de submissão ao querer das massas, o qual, todavia, atende
precisamente o que as iniciativas da política do demagogo supostamente almejam.
Poder-se-ia, então, equacionar tais paradoxos entendendo que, oculto
recessivamente sob a memória dominante do fenômeno da demagogia, ter-se-ia um outro
registro de memorização, que antes o supõe obra de uma práxis de jogo astucioso por
eficácia de manobra dolosa. A lógica que comanda tal modo de ação inteligente opera pela
criação de aparência dissimuladora, em que a intenção que se manifesta na ação, a intenção
apresentada como tal, realiza a identidade oposta do que originalmente é a proposição de
sua identidade mesma. A eficácia dolosa atua pela produção de aparência dissimuladora,
que oculta a sua identidade pela e na ação mesma de desvendar-se. Dessa forma, o outro
desse jogo doloso- no caso da demagogia, a multidão congregada em assembléia - atua
iludido pela aparência simuladora da ação demagógica, sem se dar conta do engano, do
engodo, de
que foi efetivamente objeto, antes do que sujeito.
Nesses termos, a atuação do demagogo na assembléia, antes de ser conduzida ao
sabor das vicissitudes da irracionalidade das paixões populares, conduziria o movimento
destas, por essa modalidade de ação inteligente que os gregos conceituavam como métis.
Então, pela inteligência da métis dolosa, a modalidade de liderança demagógica
operada por Cleonte, como a modalidade de liderança democrática consagrada pela
narrativa tucididiana na figura de Péricles, reverte as disposições de ânimo da multidão, só
que pelo modo oposto de atuação: não pela contraposição e enfrentamento positivo e
declarado, como na representação da liderança pericliana, mas pelo acolhimento e
favorecimento negativamente aparentado. Assim a modalidade de liderança política que a
Connor (1992, p. 134) sintetiza os tópicos centrais da linha de atuação política de Cleonte em Atenas: “[...]
mão forte sobre o império, nenhuma concessão aos peloponésios e democracia popular em Atenas”.
Para os conceitos de métis e dolo, vejam-se as análises de Jaa Torrano, O sentido de Zeus, pp.95-102.
No paralelo shakespeariano do célebre discurso fúnebre de Marco Antônio em honra de César, toda a
manobra de reversão das (in)disposições furiosas da plebe é conduzida por reiteradas declarações em que o
demagogia constitui só aparece como expressão do império das paixões pela percepção
dominante que a obra da memória histórica tucididiana decanta, a qual, entretanto, assim se
constitui porque elide, oculta como recessiva a percepção que nela aprecia a ação da razão
astuciosa.
E, todavia, mesmo essa percepção do desenrolar dos acontecimentos na assembléia
pela inteligibilidade projetada pelo conceito de métis dolosa não alcança ainda um outro
registro de memorização presente no relato tucididiano e tanto mais recessivo. Pois nem
tudo na ação demagógica de Cleonte é necessariamente (dis)simulação de aparência
enganosa. Pelo contrário, suas réplicas aos antagonistas primam pela logicidade positiva de
justa argumentação arrazoadora com que ele então desfaz e liquida as obj ecoes que
colocam em impasse o encaminhamento de sua proposta política no curso da deliberação.
Desse modo, pela memória dominante do texto tucididiano, o demagogo aparece
como o bobo das massas, marionete manipulada ao (dês) compasso de seus caprichos e
divertimentos, papel a que ele mesmo se presta acumpliciado em vista da inescrupulosidade
de suas exclusivas motivações pessoais interesseiras. Então, à futilidade dos propósitos das
massas na assembléia, ele (cor) responde com a leviandade de sua atuação política. Por essa
memorização, a métis do demagogo aparece rebaixada a seu nível ínfimo de esperteza a
mais rudimentar, assim confinando com a sua caracterização caricata presente nas comédias
aristofânicas, em que se a degrada por tons exacerbados de escárnio aviltador.
A essa memória pode-se contrapor a figuração recessiva, que igualmente
transparece como leitura possível da narrativa tucididiana, especialmente se apreciada à luz
da inspiração shakespeariana. Aqui, invertese a dialética do jogo astucioso entre massas e
demagogo, esses ambíguos parceiros e disputantes que a demagogia articula. Pois a figura
caricata de estupidez palerma, vítima grosseiramente insciente de ludíbrios e engodos, fica,
agora, concentrada nas massas, o demagogo sendo antes apreciado pela inteligência mais
refinada de sua arte astuciosa, que opera pela dissimulação discursiva formulada por
negação de identidade. Mas apreensão esta da métis dolosa do demagogo que, se levada ao
alcance extremo de sua explanação dos fatos, de modo que entenda a totalidade das
manobras do demagogo como atos de dissimulação dolosa, implicaria supor, em sua
pessoa, virtudes de planejamento de razão previsiva por domínio pleno do desenrolar dos
acontecimentos, especialmente dos modos de reação tanto das massas quanto de seus
oponentes na assembléia, que beira as projeções da representação dos poderes dos entes
divinos. E sobre ela paira a nebulosidade de’urna teleologia hermenêutica na operação de
nossa leitura, pois não estaríamos caindo então na figuração sarcástica denunciada já por
um antigo comediógrafo, anonimamente referido por Luciano, ao dar da suposta métis de
orador assevera não se dispor a fazer o que de fato, entretanto, efetivamente faz: (não) elogiar César, (não)
contestar a honorabilidade de Bruto, (não) contraditar a acusação conspiratória acerca da ambição de César,
(não) comover a afeição popular por César, (não) pretender rebelar a plebe espicaçando-a contra os
conspiradores, (não) ler o testamento de César. Por este último passo, respeitante à leitura do testamento, de
poder sedutor especialmente irresistível, uma vez que desperta na plebe o apelo de seus interesses materiais
mais imediatos, o círculo do jogo dissimulante do demagogo se fecha, pois agora é por insistente e inflamada
solicitação, ordem mesmo, da plebe que se autoriza o demagogo a consumar aqueles atos, aos quais ele
protestava se indispor de início e só então os perpetrando por estrita obediência às manifestações imperativas
do querer da plebe.
Remeter-se, novamente, às nossas considerações analíticas externadas em Mithistória, pp.371 e ss.
Cleonte a seguinte definição, por paradoxal ironia: “um Prometeu após os
acontecimentos”.
A essas memorizações, que (con)figuram a métis do demagogo, seja em seus
registros mais rebaixados de esperteza, seja nos mais elevados de primorosa inteligência,
contrapõe-se o terceiro registro, este também recessivo no texto tucididiano, que apreende
antes a atuação de Cleonte determinada pelas soluções que a lógica da razão positiva
descortina consoante as circunstâncias, também imponderáveis, do jogo a cada momento
atualizado pela evolução dos debates na assembléia.
No mosaico desses registros de memorização do fato demagógico pela narrativa
tucididiana^da assembléia ateniense, há um tópico crucial para a determinação de seu
sentido: a apreensão das disposições e atos manifestados pela multidão no desenrolar
daquela. Uma delas, em especial, polariza toda a construção do sentido do fato narrado,
pois por ela entrecruzam-se os deslizes e desvios hermenêuticos das distintas percepções
conceituais da demagogia. Quando os mensageiros que haviam trazido as novas da situação
em Pilos propuseram, caso a assembléia não confiasse na verdade de seu relato, como o
acusara Clepnte, que se enviassem observadores a averiguar in loco o que Se passava, e o
demagogo tomou novamente a palavra a redirecionar os encaminhamentos da deliberação,
Tucídides aludiu às reações da multidão, expressando-as nestes termos:
Identificar, no texto tucididiano, o justo momento em que a narrativa inicia o relato do desenrolar da
assembléia compõe mais outro de seus dilemas exegéticos, que os críticos situam ou em 27. l ou em 27.3,
assim integrando nesse desenrolar a progressão de estados de (des)ânimo dos atenienses ou fazendo-os
anteceder à assembléia mesma (se os forem da assembléia e não de ajuizamentos tucididianos, como sugere
Hornblower). Como em 27.3 fica determinado, na narrativa, que a assembléia está certamente em curso, pois
diz da réplica de Cleonte motivada pela hostilidade dos atenienses para com ele em reação aos teores
negativos da mensagem comunicada pelos enviados de Pilos, parece-nos que fica assim implicado que tanto
essa comunicação mais as (con)seqüentes reações dos atenienses integram-se ao relato da assembléia.
Todavia, das mazelas de buscar uma maior precisão de determinação factual por todos os seus aspectos
constitutivos, leva a análise a descair por desvios hermenêuticos positivistas, os quais apontamos já em nosso
texto “Leões alados e círculos triangulares”, incluído em Mithistória, pp. 433 e ss.
A guerra dos peloponésios e atenienses, IV.27. l.
frustradas suas ambições de aprisionar os espartanos, os quais certamente escapariam da
ilha de um modo ou de outro, seja devido ao “afrouxamento da vigilância ateniense”, seja
porque aproveitassem uma “oportunidade de fuga utilizando as embarcações que
clandestinamente lhes traziam víveres”. Medos desdobrados em um alarmado sentimento
de insegurança ao conjeturarem o destino da guerra: presumiam que, “se os espartanos não
mais lhes enviavam legações (a propor a paz), era porque tinham alguma razão de
fortalecimento”. E essa progressão negativa e desalentadora porque seguiu o ânimo da
assembléia dos atenienses redundou finalmente em ”arrependimento por não terem
concluído a paz” com Esparta, quando esta a solicitara cerca de um mês antes.
Pelo arrependimento, as massas reconhecem o erro de sua decisão anterior. De
imediato, porém, elas identificam e localizam o culpado, o qual responsabilizam por ter
incorrido em tal erro: Cleonte, que impedira a conclusão do tratado. Contra ele, então,
dirigem sua desconfiança e voltam sua animosidade. O demagogo, de seu lado, é sensível
no captar as inclinações momentâneas dos ânimos populares. Ele percebe de pronto o
desfavor de sua posição perante as massas: elas estão agastadas com ele. Procura safar-se.
Toma imediatamente a ofensiva, como çstratégia de desvio do rumo pessoal adverso que os
debates iam tomando. Desloca, assim, sua posição de acuado, assumindo a de acusador:
denuncia inverdades no relato dos mensageiros que informava o estado de coisas em Pilos.
Os mensageiros, atingidos pela manobra desse contra-ataque, são reduzidos à
defesa: “sugerem que, caso não se confiasse neles, fossem enviados alguns observadores”, a
fim de se apurar a verdade de seu relato. A assembléia acolhe tal proposta e decide já
indicando os observadores: “o próprio Cleonte mais Teágenes”. Dessa proposta,
encampada pela assembléia, resulta novamente a reversão do jogo de acusação e defesa que
lá se trava: outra vez é Cleonte quem está acuado. A decisão volta contra ele sua própria
astúcia: ele é pego pela própria armadilha, vítima da própria artimanha.
Desse modo, o demagogo prontamente compreende a enrascada em que se meteu, já
que apurar a verdade é fatal para sua forma de atuação política: ela a revela ou como pura
calúnia ou pura mentira! Mas astúcias de desvencilhamento e faro popular apurado são o
que não lhe faltam. Rapidamente, Cleonte opera a articulação eficiente dessas capacidades.
Já captou a alteração dos ventos que sopram da multidão e arma sua nova proposta nessa
direção. Sustenta, agora, o envio imediato de reforços bélicos a Pilos.
Assim, a reconstituição tucididiana dos debates inaugurais da assembléia tece, por
sua memorização dominante, o retrato com que desqualifica a atuação do demagogo,
denunciando sua ação particular inconsistencia: opera essencialmente recorrendo a calúnia
mentirosas e infundadas. Para Tucídites, não pairam dúvidas: a suspensão da verdade do
relato dos mensageiros, que Cleontes lhes assacra, não tem nenhum fundamento, não passa
de estratagema inventado pelo demagogo para safar-se da situação malparada em que se
encontrava. E a certeza dessa apreciação, de que a conduta política do demagogo consiste
Confira-se a tradução do texto tucididiano (A guerra dos peloponésios e atenienses, IV.27-28),
acompanhada de comentários analíticos de seu entendimento, por J. B. Wilson,1979, pp. 27ess. e 96 e ss.
Há dúvidas quanto à precisa leitura do nome: ou Teágenes (adotado por Gomme, p.468) ou Teógenes
(adotado por Hornblower, p. 186), provavelmente o mesmo que aparece como um dos atenienses signatários
do Tratado de Paz de Nícias em 421 (V.19.2).
em mentiras infundadas( e, assim caluniosas), é fundamental para consolidar a percepção
historiográfica de que são exclusivamente interesses pessoais – sua própria sorte – que
mobilizam os atos do demagogo.
Mais ainda: para o desencadeamento do pânico pessimista por que principiou a
deliberação da assembléia, a desembocar em sua animosi* dade irada contra Cleonte, o
relato dos mensageiros foi peça fundamental em termos de sua razão fundamentadora. Pelo
que dá a entender a narrativa tucididiana, não há dúvidas de que esse relato fosse verídico,
pois ela declaradamente denqncia como calúnia infundada a acusação de Cleonte que o
desqualificava como mentiroso! Para a memorização historiográfica conformada pela
narrativa tucididiana, trata-se mesmo de um fato: a situação militar real vigente em Pilos!
Ora, mas como a narrativa tucididiana constrói essa certeza factual?
Ressaltam dois momentos do texto. O primeiro é constituído pelo quadro que o
historiador traça do desenrolar do cerco de Pilos-Esfactéria, referindo os acontecimentos
passados após o fracasso das negociações de paz. E a composição desse quadro na narrativa
antecede imediatamente o relato da sessão da assembléia. Ficamos, assim, nós, leitores,
desde esse momento inteirados de que a guarnição lacedemônia na ilha sustentava sua
posição (conhecimento este ancorado na exposição dos expedientes empregados pelos
espartanos no sentido de remeter-lhes os alimentos), como também ficamos inteirados de
que as forças atenienses enfrentavam dificuldades. E o relato da sessão da assembléia, por
sua vez, abre-se precisamente pelo registro sintético, meramente enunciativo, desse duplo
conhecimento factual apresentado pelas notícias trazidas pelos mensageiros vindos de Pilos:
”chegam alimentos ao contingente espartano bloqueado na ilha e o exército ateniense
enfrenta adversidades”.
Portanto, antes mesmo de iniciar a narrativa do relato dos mensageiros na
assembléia, a veracidade de seu conteúdo está antecipadamente prefigurada pelas
asseverações do historiador então apresentadas como fatos. Sua verdade é posta em
princípio.
O segundo momento dot exto, em que Tucídites afirma a certeza da verdade do
relato dos mensageiros, denuncia expressamente, ao contrário, a mentira de Cleonte. E por
um artifício narrativo. O historiador tece então um comentário em que apreende as razões
da manobra do demagogo, como que perscrutando o diálogo mudo que se travava na
consciencia deste.E esse diálogo dissipa persuasivamene quaisquer incertezas, pois por ele
se dá que Cleonte tem a mais absoluta (cons) – ciência de que está mentindo!
A guerra dos peloponésios e atenienses, IV.27. l.
Os comentadores modernos acusam uma certa impropriedade no procedimento tucididiano de assim
projetar as motivações secretas dos pensamentos de Cleonte que o historiador jamais poderia ter conhecido
(confiram-se as observações de Hornblower,1987, p. 78). O historiador antigo, entretanto, não raro opera a
dialética dos nexos de determinações entre a composição da figura de caráter e os atos praticados por um dado
personagem como uma espécie de instância de mútua veracidade, como bem o aponta G. S. Shrimpton (“a
caracterização, seja de povos ou de políticos e estadistas individuais, compunha uma justificação para a escrita
da história (em muitos casos) e bem regularmente uma fonte de verificação para a narrativa. Isto implica que a
narrativa tendia a constituir um argumento para a caracterização, que por sua vez verificava a narrativa”,
History..., op. cit., p. 22; confiram-se igualmente
as considerações externadas à p. 115: “os historiadores desde Tucídides usavam o caráter (éthos) em suas
narrativas para verificálas. O êxito do lagos construído tendo por base o éthos retroage positivamente sobre o
éthos. Assim, lagos e éthos existem paralelamente em uma relação de mútua confirmação”). Assim, Heródoto
(Histórias, VI. 123) recusa a verdade da história que denunciava o medismo dos Alcmeônidas por ocasião de
Então, pelo primeiro momento da narrativa, é o tempo posterior da ação
compositiva pelo historiador que catalisa a certeza de uma apreciação ajuizadora da mentira
de Cleonte, alicerçando-a na lógica da trama dos fatos e informes que a constitui. Pelo
segundo momento, e graças àquele artifício narrativo, essa certeza é retroativamente
projetada para o tempo mesmo do acontecimento, lá ancorada, pois assim apresentada como
uma das vicissitudes efetivas dos debates da assembléia. O fazer ver o acontecimento que a
historia tucididiana trama em sua narrativa opera, pois, uma (con) fusão de temporalidades
que condensa na memória do texto a percepção da ação passada (os debates da assembléia)
pela narração presente (o texto tucididiano) a decantar a meditação do saber futuro
(conceito de demagogia).
Mas, por um lado, o debate que se seguiu na assembléia ao relato dos mensageiros e
que antecedeu a intervenção de Cleonte compunha, baseado no duplo conteúdo de seus
informes, um retrato altamente negativo, todo pessimista, quanto ao prosseguimento do
cerco, retrato esse, todavia, no mínimo questionável. Pois um de seus pontos básicos- o
receio de que o inverno viesse a surpreendê-los, agravando ainda mais as dificuldades de
aprovisionamento de víveres das forças atenienses - especulava com a vinda da má estação,
quando havia ainda três meses de época normal de campanha e um mês e meio de verão!
E, por outro lado, o tempo da assembléia é o tempo da indeterminação. Lá, a fala
dos mensageiros é questionada na sua veracidade. Ora, nesse lugar institucional das práticas
dá assembléia, como pode uma fala firmar a certeza de sua verdade? Na assembléia, dá a
entender o próprio Tucídides, a (in)definição da verdade fica submetida à confiança e
convencimento momentâneos da multidão persuadida pelas falas em debate. Ambos,
mensageiros e Cleonte, reconhecem-no expressamente. Os primeiros, quando admitem que
a assembléia coloque em suspensão (e, portanto, sob suspeição) a verdade de seu relato,
caso não depositasse confiança neles. O segundo, quando concede que a assembléia possa,
pelo contrário, acolher tal relato, caso lhe parecesse verdadeiro. Ali, no tempo da
assembléia, verdade ou mentira do relato não são tanto uma questão de fato em si, mas de
ato político, porque se persuade ou dissuade tal ou qual proposição deliberativa. Pode, lá na
assembléia, ficar mesmo irrelevantemente suspenso ou sob suspeição.
Assim, a manobra de Cleonte que acusava a inveracidade do relato dos mensageiros
é politicamente tão (in)consistente no âmbito das práticas da assembléia quanto a dos
mensageiros que asseverava, pelo contrário, sua veracidade. Se apreciada apenas como
manobra astuciosamente caluniosa, como o faz Tucídides, perde-se outra vez a percepção
de sua coerência de racionalidade positiva.
Mais ainda, a argumentação de Cleonte implicitamente acusa um movimento de
persuasão da assembléia no sentido de levá-la a desistir do cerco. Tal movimento aparece
Maratona figurando a identidade de sua defesa da causa da liberdade por permanente combate à’tirania.
Dessa forma, Aristóteles (Atbenaion politeía, VI.3) igualmente denuncia a falsidade da história que acusava o
envolvimento pessoal de Sólon na falcatrua tramada por seu círculo de amigos a explorar os benefícios da
sisactia. E assim ainda Aristóteles compõe as figuras de caráter dos Pisistrátidas memorizadas consoante a
fama de seus atos (Athenaíon politeía, XVIII. l-2; confiram-se nossos comentários ao texto aristotélico, pp.
189-90, nota 2).
Para essas considerações respeitantes à (con)fusão de temporalidade operada pela narrativa do fato, veja-se
nosso ensaio “A vigia do acontecer e a história do acontecimento”, incluído em Mithistória.
Confiram-se as estimativas calculadas por Gomme (1956, p. 478).
na narrativa tucididiana registrado como aquela progressiva cadeia de reações negativas
suscitadas no ânimo da assembléia em decorrência de projeções tiradas das notícias
transmitidas pelos mensageiros: confusão e perplexidade, que dão lugar a preocupações e
incertezas quanto às perspectivas de prosseguimento do cerco, cujo êxito se acredita já
irremediavelmente comprometido, antevendose mesmo seu fracasso, de forma que gera
receios e inseguranças tais que terminam em arrependimento, logo desafogado em
hostilidade contra a política bélica agressiva propugnada pela liderança de Cleonte.
Todavia, pela percepção dominante da memprização historiográfica tucididiana, as
implicações dessa ótica são antes silenciadas, pois as atuações de seus sujeitos proponentes
(primeiro os mensageiros, depois Nícias e os estrategos) ficam difusas nas penumbras da
narração dos acontecimentos, totalmente ofuscadas pelo fulgor das luzes com que a
narrativa enfoca o diálogo central entre o demagogo e a multidão.
Intentar dirimir, na figuração da demagogia de Cleonte, a (ir) realidade dessas
distintas contraposições enreda-nos então nas teias emaranha-: das de seus registros de
memorização conjugados a seus interstícios de silenciamentos, com efeitos especialmente
ruinosos se as ajuizarmos pelos reclamos de um princípio de criteriosidade mutuamente
excludente, de modo que imponha a positividade homogeneizante exclusiva de um deles
contra os outros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Considere-se, igualmente, o indício exarado pela declaração final de Cieonte, em que definia
substantivamente sua proposta de expedição de reforço ao cerco de Esfactéria: ”não temia os lacedemônios...”
(vejam-se nossas indicações em Mithistóría, pp. 64 e ss.).
“ Em Mithistóría (p. 381, nota 55) sugerimos uma aproximação dessa problemática dos delineamêritos da
categoria de complementaridade por Niels Bohr no âmbito filosófico das teorias da mecânica quântica.
COGAN, M. The human thing. Chicago: Chicago University Press,1981.
LORAUX, N. ”Thucydide n’est pas un collègue”, Quaderni di Stroia, 12, 1980, pp. 55-81.
Ítalo Tronca
Departamento de História -
Universidade Estadual de Campinas
Texto baseado em meu estudo de história cultural. As máscaras do medo – Lepra e aids. Campinas: Editora
da UNICAMP, 2000.
Cf. Jacy A. de Seixas, “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais”, nesta obra.
ser simplesmente “louca”, mas vai além ao declarar que é através de um “lugar” da obra na
linguagem que ela se relaciona com a loucura. Como?
Segundo Foucault, obras têm uma dupla relação com a linguagem: a linguagem de
um trabalho constitui aquilo que a obra diz, mas ela constitui também “aquilo através do
qual a obra fala”. Neste segundo nível, afirma, a linguagem é “transgressão pura”, porque,
embora não seja uma categoria psicopatológica como o delírio, ela é delirante por contar
com uma estrutura infundada e infundável. Quer dizer com isso que, em princípio,
linguagem é delírio, dado que não pode explicar-se ou julgar a si mesma. E acrescenta, ao
analisar a linguagem poética e seu impulso para a autodestruição, que seu diagnostico não é
mera abstração, mas relações históricas que nossa cultura terá de examinar caso alimente
esperança de encontrar a si mesma.
Foucault argumenta que a loucura designa o “vazio” que a linguagem, sobretudo no
momento “modernista”, localiza em si mesma, instituindo-se como Ser. De que maneira se
daria essa instituição? Adianta uma explicação em dois movimentos: primeiro, o discurso
poético torna-se uma coisa ao ser escrito como conjunto de signos e, em seguida, ao se
conectar às condições de existência que não são limitadas ou confinadas ao social, ao
político ou a formações históricas. Para ele, essa estranha existência da linguagem,
digamos, à margem da matéria- nem bem uma coisa nem plenamente “significante” - passa
como sendo constitutiva do Ser. A própria ausência de fundamento do Ser no mundo só é
concebível como sendo de natureza lingüística: a ”estranha existência” de signos fornece a
estranheza da existência, e não o contrário. Portanto, para analisar essa estranheza ou
“loucura”, deve-se examinar estruturas lingüísticas, especialmente aquelas que Foucault
chama de ficção.
Num ensaio posterior sobre a poética de Mallarmé, aprofunda suas idéias sobre a
natureza da linguagem. Para ele, a crítica não examina a relação ”do homem com o mundo,
de um adulto com suas fantasias ou sua infância, nem a de um litterateur com uma
linguagem, mas a relação de um sujeito falante com um ser singular, difícil, complexo,
profundamente ambíguo (desde que ele designa todos os outros seres, conferindo-lhes
existência, ele próprio incluído) - o qual é chamado linguagem”, ou seja, seu procedimento
em relação à obra literária introduz uma radicalidade que subverte as explicações
psicologizantes ou sociologizantes da maior parte da crítica e da teoria da literatura ao
enunciar seu método arqueológico.
Ressalve-se aqui que Foucault discorre particularmente sobre o discurso poético,
mas o descolamento da linguagem do referente “real” ocorre também, a meu ver, nos
discursos ficcionais em prosa, mediante as transfigurações, essencialmente poéticas,
operadas pela linguagem no romance e no conto, por exemplo. Embora não pretenda
abalançar-me a teórico da literatura, constatei no decorrer de uma pesquisa sobre a história
cultural da doença algo que não é propriamente uma nqyidade, ou seja, a fascinante tensão
criativa entre as áreas da ciência e a arte. Uma diferença em relação ao “delírio” na poesia
talvez resida na tendência mimética, na verossimilhança, perseguidas pelo naturalismo e
pelo realismo literários predominantes em certos momentos nas obras ficcionais em prosa
Simon During, Foucault and literature. Towards a genealogy of writing. Londres:
Routledge, 1992.
Idem, op. cit., p. 72.
no “Modernismo”. Mas Isso não as destituiria de sua existência delirante que as constitui
em Ser, coincidindo - acredito com algo bem próximo do pensamento de Foucault.
Nesta perspectiva, a da natureza da linguagem, a lepra e a aids, no quadro de uma
história cultural, são dois exemplos paradigmáticos da relação simbiótica entre o biológico
e a cultura, quer dizer, uma relação entre o corpo sob ameaça de morte e linguagens, que,
numa espécie de louca orquestração de gêneros, institui uma “nova” doença. Supondo que
esta digressão em torno da natureza da linguagem apresente alguma coerência, como fica a
questão principal colocada aqui - sua relação com a memória -, ela também ”involucrada”
em linguagem(ns), quer dizer, uma memória delirante apropriada pela historiografia que,
por sua vez, transfigura-a numa história da doença?
Uma maneira de tornar mais clara essa problemática um tanto abstrata é oferecer
alguns exemplos dos procedimentos essencialmente alegóricos do fazer histórico, cruzando
a literatura de ficção que elege a doença como tema com o discurso médico, científico ou
antropológico. Chega a ser pungente descobrir a interdependência entre ambos - a narrativa
ficcional supostamente presa ao subjetivo, à invenção e à fantasia e, portanto, ao irreal, e o
outro, assumido como expressão do objetivo, da verdade factual. Na verdade, tanto um
quanto o outro são cativos de uma linguagem polissêmica, dotada de vários significados o
procedimento fundamental da alegoria -, um modo simbólico de pensamento cuja
expressão, complexa e inerentemente ambígua, remete à existência delirante referida por
Foucault. De uma perspectiva lingüística - levanto a hipótese -, são essas narrativas que
instituem a memória do passado da doença, determinam durante um largo período as
políticas públicas de saúde no presente e, nos casos da lepra e da aids, induzem
procedimentos futuros.
Examinemos, ainda que de forma esquemática, alguns exemplos historiográficos em
que memória e história se imbricam, fundem-se de uma maneira que a idéia de doença
acaba resultando numa prótese, num simulacro daquilo que poderia ter sido o real. É como
se a linguagem sobre a moléstia, ou aquilo considerado como tal, ao descolaf-se do
fenômeno biológico, desmaterializasse seu referente físico e se transformasse em um ser
moralizado pela cultura.
Tomando o caso da lepra, chama a atenção do historiador o fato de que os registros
sobre a doença, que constituem uma certa memória voluntária, “científica” e religiosa da
lepra, a partir aproximadamente do final do século XVI, desaparecem praticamente das
crônicas e narrativas no Ocidente. Subitamente, no século XIX, eis que começam a se
acumular, produzidas por pesquisadores europeus, particularmente ingleses e alemães,
pesquisas no quadro de novas disciplinas - geografia médica e uma antropologia da doença
-, relatos sobre a descoberta de novas moléstias tropicais, entre as quais ganha destaque um
revival, um renascimento da lepra nas fronteiras da expansão colonial das grandes
potências, a Inglaterra à frente. São relatos, na maioria das vezes, alarmistas, marcados pelo
medo de uma nova onda leprosa invadindo a Europa, num movimento de reativação da
memória medieval, quando só no território da França atual, por exemplo, crônicas dos
séculos XII e XIII mencionam a existência de cerca de 2 mil leprosários.
Analisado hoje, o período da segunda metade do século XIX, as narrativas sobre a
doença particularmente, induz-nos a pensar que a questão da linguagem desempenhou um
papel decisivo ao construir e, ao mesmo tempo, isolar a idéia de doença de seu referente
material. Ao executar esse duplo movimento, a linguagem como que amalgamou de modo
inextricável as noções de memória e história. Nessa época, as narrativas descrevem a
descoberta daquilo que foi rotulado como uma epidemia de lepra no Havaí, coincidindo
com a expansão ocidental no Oriente. De fato, a constelação histórica da segunda metade
do século XIX no Havaí é profundamente marcada pela descoberta da lepra durante
oapogeu da expansão ocidental no Oriente. Este período testemunhou ama notável
transformação no padrão e na magnitude da migração mundial e a “abertura” de novos
territórios. Não apenas europeus estacam buscando em massa espaços no exterior.
Como diz o antropólogo da medicina Zachary Gussow - autor de um dos melhores
trabalhos sobre a história contemporânea da lepra, no qual estes dados estão baseados -, um
grande número de asiáticos, particularmente indianos e chineses, deslocava-se para o sul e
para o leste, em direção à Austrália, ao Havaí e aos Estados Unidos. Certas etnias e povos,
principalmente chineses, outros asiáticos e negros, estavam sendo identificados como
populações prevalecentemente leprosas. Casos e mais casos da doença, reais ou
imaginários, eram relatados no exterior. Acreditava-se que a lepra estava aumentando em
níveis alarmantes, a tal ponto que os europeus “haviam cessado de demonstrar imunidade à
doença, que se supunha ser seu privilégio”.
Doenças “novas” e moléstias familiares, sob outras formas, descobertas pelos
europeus em terras estrangeiras, entre povos de aparência e cor de pele diferentes,
renovaram o interesse pela geografia médica. O mapeamento da distribuição geográfica das
doenças florescera na Europa de meados do século XVIII até o final do século XIX, quando
as espetaculares descobertas em bacteriologia ”pareciam haver tornado [...], novas
pesquisas em outras direções [...] supérfluas”.
Embora a prática da geografia médica tenha alcançado um ponto de saturação nas
últimas décadas do século passado em relação às doenças européias, as pesquisas
continuaram a existir sob o rótulo de medicina tropical.
Zachary Gussow, Leprosy, racism and public health: social policy in chronic disease control. Boulder:
Westview Press, 1989.
Idem, op. cit., p. 64.
Com base nestes argumentos, historiadores ingleses atuais criticam seus colegas do
século XIX por terem tentado localizar a origem da lepra na antiga Bretanha. No século
passado, por exemplo, um dos primeiros historiadores da doença, August Hirsch, afirmava
sua convicção de que não era lepra, mas provavelmente sífilis, a afecção que os antigos
cruzados trouxeram do Oriente para a Europa.
Diante do surto epidêmico no Havaí, a lepra - conhecida pelos europeus como uma
doença pertencente exclusivamente ao passado passou então a ser observada na carne,
segundo Gussow, entre povos estranhos, de terras distantes, recentemente anexadas pelo
movimento expansionista ocidental. Da longa lista de grandes epidemias que acompanhou o
desenvolvimento e a expansão das nações ocidentais, a Europa exportou algumas e recebeu
outras, num dinâmico processo de intercâmbio de aflições transnacionais e transoceânicas.
A lepra, porém, foi a única das grandes moléstias que povos “inferiores” podiam transmitir
para o “civilizado” Ocidente.
Com efeito, o período entre o final da década de 1880 e o início dos anos 90 assinala
o paroxismo alarmista na Inglaterra. Ao mesmo tempo, torrentes de informações sobre a
lepra, sua presença e disseminação, estavam sendo propagadas mundialmente. Opiniões,
estatísticas e projeções variavam, mas firmara-se um consenso então de que a doença
aumentava firmemente e ameaçava tornar-se pandêmica.
O receio, evidentemente, era de que a lepra alcançasse o centro da civilização
ocidental. Sir Morrell Mackenzie, pesquisador inglês, “descobria mais casos na Europa e
nos Estados Unidos. Num artigo publicado em 1890, “O terrível ressurgimento da lepra”,
deixava clara a ameaça que pairava sobre a Europa:
Nos Estados Unidos, outros profetas sombrios faziam coro com sir Morrell. O
doutor Leonard Pitkin, por exemplo, esperava encontrar, ”dentro dos próximos dez anos,
pelo menos 250 mil a 500 mil leprosos entre a população americana”.
Escrevendo sobre o perigo na área do oceano Pacífico, o médico James Cantlie,
num ensaio premiado sobre a lepra, faz soar outro alarme: “Um oceano inteiro está
ameaçado. A lepra já o atravessou. O Havaí era o degrau para a Califórnia, e a Califórnia é
o novo e perigoso centro de distribuição da doença”.
Coincidentemente, cerca de um século depois, a Califórnia, particularmente a cidade
de San Francisco, seria erigida pela epidemiologia, ao lado de Nova York, em cenário
Sir Morrell Mackenzie, “The dreadful revival of leprosy”, Wood’s Medicai and Surgical Monographs. Nova
York, William Wood and Co., 1890, p. 614.
L. Pitkin, apud James Cantlie, “Report on the conditions under which leprosy occurs in China, Indo-China,
Malaya, the Archipelago and Oceania”, apud Z. Gussow, op. cit.
Sir Morrell Mackenzie, apud Z. Gussow, op. cit.
geográfico da nova Gomorra contemporânea - sede da “peste gay”, como foi rotulada a aids
no início dos anos 80. Na segunda metade do século XIX, em toda parte o mundo civilizado
via-se sob ameaça, até mesmo em países cujo padrão “civilizacional” era freqüentemente
considerado duvidoso. “Está se espalhando [a lepra] em grau alarmante na Rússia”, notou
sir Morrell Mackenzie. Infatigável em sua cruzada contra a doença, Mackenzie atacou, em
1890, aqueles que não estavam convencidos de ser a lepra uma moléstia grave. Embora as
evidências de que era contagiosa estivessem se acumulando, não havia unanimidade a
respeito do assunto. Alguns ainda chamavam a lepra de doença ”telúrica” - urna daquelas
que, na antiga tipologia, brotavam da terra -, mal cuja etiologia residiria no solo, no ar, no
fogo ou na água. Outros defendiam a idéía de que o mal seria devido, de alguma maneira, à
alimentação, ao mesmo tempo em que se opinava tambem que a forma anestésica
(“tuberculóide”, numa classificação posterior) não era contagiosa. Além disso, havia uma
grande controvérsia em torno da questão de se saber como era a lepra contagiosa e quais
seriam seus mecanismos de transmissão. (Interessante notar que o problema dos
mecanismos de transmissão permanece em aberto até hoje.)
Não obstante a autêntica campanha de terror desencadeada naqueles anos, a doença
não se disseminou pandemicamente pelo mundo ocidental. “No entanto, o medo da lepra e
o alarme de uma pandemia montaram na onda de forças racistas e do perigo amarelo que
invadiu as nações ocidentais”, diz Gussow. De fato, estava em plena construção a imagem
do “perigo amarelo”, que alcançou o ápice mais ou menos na mesma época da doutrina do
racismo e era endereçada aos povos e nações do Oriente, mais especificamente aos
chineses.
Em suma, o “perigo” é construído como vindo sempre do “exterior”, tanto para a
lepra como para a aids. No caso desta última, durante a década de 1980, sua história ainda
incipiente registra uma série de acusações cruzadas, com os norte-americanos atribuindo
aos negros africanos ou aos haitianos a disseminação da síndrome entre os gays da
Califórnia e de Nova York; os soviéticos, alemães e franceses, por sua vez,
responsabilizando os ianques pela introdução do HIV em seus países, todos respaldados por
teorias epidemiológicas que mal conseguem disfarçar seus pressupostos fundados seja no
preconceito racial, seja na ideologia política.
Assim, não seria extemporâneo adiantar desde já, do ponto de vista de uma história-
memória cultural, a existência de uma analogia na dimensão simbólica entre a lepra e a
aids, uma vez que a memória desse imaginário social e as representações construídas sobre
ambas compartilham, como diria Foucault, da mesma epistéme, da mesma sensibilidade,
dos mesmos” “medos”. De fato, uma comparação histórica entre as duas moléstias,
sobretudo da linguagem que as representa, constata uma espécie de comunhão léxica:
doença desconhecida, preço do sexo anômalo, quarentena, regime asilar, medo... Pode-se
aventar (falo em hipótese) que essa sintonia entre tais representações não diria respeito à
epistéme do século XIX apenas, mas recuaria aos tempos medievais.
A caricatura publicada na União Soviética pelo Pravda, em 1986, mostra um general
americano comprando um tubo de laboratório contendo vírus HIV flutuando como suásticas
Erwin Ackerknecht, History and geography of the most important diseases. Nova York: Hafner Publishing
Co., 1965.
Z. Gussow, op. cit.
nazistas, simbolizando o poder da aids. Abaixo, aparecem os pés das vítimas da doença,
que se teria voltado contra seus próprios criadores - os especialistas em guerra
bacteriológica em conjunto com cientistas do Centro de Controle de Doenças, nos EUA.
A memória da lepra, assim como a da sífilis, reteve durante séculos o estigma da
sexualidade. Seu significado maior reside na idéia de que a doença e o desejo de fornicação
incontido, a luxúria, caminham juntos. A ênfase nesses dois elementos confere à moléstia
um significado moral que se torna transparente, por exemplo, na lenda medieval deTristão e
Isolda. Numa de suas versões, os amantes adúlteros são condenados ao fogo. Tristao
consegue escapar, mas Isolda é levada ao estrado onde seria queimada. No derradeiro
momento, surge um grupo de leprosos, e seu líder propõe ao marido traído, um nobre, que
ela lhe seja entregue, sugerindo-lhe uma punição mais perfeita para o crime cometido.
Isolda deveria sofrer uma morte desonrosa, mas o castigo pelo fogo não era suficientemente
humilhante. Pondera então o líder leproso: “Veja, Senhor, tenho aqui cem companheiros;
dê-nos Isolda e ela será possuída em comum. Jamais uma mulher teve um fim pior. Sire,
habita em nós um ardor tão grande que não existe mulher na terra capaz de suportar nosso
intercurso por um único dia”.
A associação da lepra com a moralidade não se encerrou com a Idade Média.
Narrativas literárias e médicas indicam que essas sobrevivências culturais continuaram
vivas na memória do século XX, expressando-se através de alegorias. Embora não vá
fazer uma análise detalhada dessa antiga memória sobre a lepra, cabe aqui uma breve
reflexão.
Os relatos médicos sobre a doença geralmente concordam em que, durante o século
XVI, a lepra deixou de ser prevalecente na Europa e tornou-se limitada a certas áreas
isoladas. Não obstante, a moléstia permaneceu como uma poderosa imagem literária,
sugerindo que, mesmo para aqueles segmentos do público não familiarizados com a lepra e
carentes de uma experiência direta com a doença, a memória medieval deixou seqüelas.
É da maior oportunidade observar, a partir destas narrativas literárias sobre a
doença, a fascinante tensão entre memória histórica e ficção, ou seja, o processo de lembrar
como (re)criação do passado, no interior do qual o passado é matéria-prima da memória
histórica, em que o tempo e transfigurado em texto, em historiografia (ou ficção...). A
propósito, ao anaÜsar a relação entre memória e história, Cinthia Brown escreve:
Nathaniel S. Brody, Leprosy: disease of the soul; leprosy in medieval literature. Nova York: Cornell
University Press, 1974.
Trato do tema da configuração alegórica assumida pelas teorias explicativas sobre a origem da aids em As
máscaras do medo - Lepra e aids. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000.
concretização e ; mesmo a imobilização da memória d<i> passado. A
memória assim ; congelada acaba por se tornar uma das poucas
expressões tangíveis do tempo corrido; concretiza-se, porém, em
diferentes formas de representação. Na medida em que o escritor
determina essas formas, ele exerce um poder maior ou menor sobre o
passado.
Cinthia J. Brown, “Memoire et histoire: la déformation de la realité chez les rhétoriqueurs à la fin du
Moyen Âge”, in Paul Zumthor e Bruno Roy (orgs.), Jeux de mémoire. Montreal: Presses de 1’Université de
Montreal, 1985, pp. 43-44.
Cinthia J. Brown, “Memoire et histoire: la déformation de la realité chez les rhétoriqueurs à la fin du
Moyen Âge”, in Paul Zumthor e Bruno Roy (orgs.), Jeux de mémoire. Montreal: Presses de 1’Université de
Montreal, 1985, pp. 43-44.
asilos-colônias, ora alvo da caridade religiosa. Onofra inscreve-se em um enorme elenco de
histórias de vidas infames, anônimas, transfiguradas em alegorias estéticas e
científicas.Onofra e tantos outros companheiros de infortúnio só existiram como lázaros.
arte. Viam-se ainda as marcas dos dedos que os acalcaram.” Chama por alguém, sem
resposta. Resolve jantar. Terminada a refeição, deita-se numa rede e entrega-se a devaneios
sensuais.
Bernardo Élis, “A morfética”, in Ermos e gerais: contos goianos. Goiânia: Bolsa de Publicações Hugo de
Carvalho Ramos, 1944.
Baseei o relato a seguir no trabalho de Randy Shilts, o jornalista americano especializado em aids que
realizou mais de mil entrevistas com os principais personagens envolvidos na saga da epidemia nos Estados
Unidos, desde meados dos anos 70 até 1987. An the band played on. Politics, people and the aids epidemic.
Nova York: Penguin Books, 1987-1988.
O novo grupo de risco propunha ainda mais enigmas a equipe, que estava apenas
começando a sondar os mistérios por trás dos casos de GRID diagnosticados no ano
anterior. Falava-se sobre rituais de vodu que poderiam facilitar o contágio pela via
sangüínea. A pesquisa tornava-se ainda mais difícil por causa da barreira da língua e da
desconfiança dos haitianos em relação a qualquer coisa ligada ao governo, uma atitude
compreensível depois de uma vida inteira passada sob os mais cruéis ditadores já
financiados pelos Estados Unidos. Murmuravam aos intérpretes, em seu dialeto crioulo, que
Haverkos, com suas jaquetas coloridas, era um agente da CIA. Haverkos descobriu que era
quase impossível rastrear seus familiares ou amigos porque todos os refugiados haviam
entrado na América ilegalmente, e poucos pacientes estavam dispostos a expor os amigos
ao risco de serem deportados.Essas pessoas eram realmente gays, tendo contraído a doença
de novaiorquinos em férias no Haiti? Teriam contagiado os gays de Manhattan em fins de
semana? Estaria a doença se disseminando através do sangue de ferimentos provocados em
rituais de vodu?
Haverkos preparou rapidamente um estudo de controle de caso que o GCD deveria
conduzir sobre os haitianos. Qualquer coisa que eles tivessem em comum com gays e
usuários de drogas intravenosaspoderia dar aos cientistas a chave da epidemia. Mas, da
mesma forma que inúmeros outros projetos, sua proposta foi esquecida porque o CCD não
dispunha de verba. No momento em que o estudo foi iniciado, dois anos depois, todos ia
sabiam o que estava causando a doença; a pesquisa tornou-se um exercício acadêmico que
produziu algumas informações interessantes, mas não essenciais.
Página vazia
Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora
Sabemos pelos escritos deixados por Euclides da Cunha que o nosso grande escritor
partiu para o sertão da Bahia embalado com a idéia de que por aquelas bandas ensaiava-se
um grande movimento monárquico e anti-republicano do porte da Vendéia francesa.
Inspirado pelas leituras de Michelet e principalmente pelo livro de Victor Hugo Quatre-
vingt trèize, o nosso valoroso e idealista escritor ofereceu-se ao jornal O Estado de S. Paulo,
em 1897, para ir ao sertão baiano como seu correspondente. Animava-o a idéia de
presenciar a derrota dos vendeianos brasileiros, assim como tinha acontecido em solo
francês pela ação arrebatadora dos exércitos da revolução.
Desde o início de seu apostolado republicano, Euclides costumava bradar contra
todos os inimigos da República: “a república vence-los-á, afinal, como a grande revolução à
Vendéia, com uma diferença fundamental porém - a glória do republicanismo francês foi
verdadeiramente brilhante, graças à própria grandeza dos vencidos...” (7 de abril de 1892).
Este virulento proselitismo, é born que se diga, cristalizou-se numa paixão desmedida de
Euclides pela Revolução Francesa, que ele adquiriu pela leitura de obras como as de
Michelet, Carlyle e, decisivamente, de Victor Hugo. Tal entusiasmo alcançaria o seu clímax
justamente quando, por meio da imprensa diária, Euclides tomou conhecimento do
movimento de Canudos, e ele não demorou a encontrar ali a nossa Vendéia. A caminho de
Canudos, no dia 10 de agosto de 1897, ele se deixa levar pelo mais puro sentimento
patriótico e proclama a imortalidade da República. Divaga então o nosso entusiasmado
republicano:
Eu nunca pensei que esta noção abstrata de pátria fosse tão ampla que, traduzindo em
síntese admirável todas as nossas afeições, pudesse animar e consolar tanto aos que se
afastam dos lares tranqüilos, demandando a agitação das lutas e dos perigos. Compreendo-
o agora. Em breve pisaremos o solo onde a República vai dar com segurança o último
embate aos que a perturbam. [...] Que a nossa Vendéia se embuce num largo manto
tenebroso de nuvens avultando além como a sombra de uma emboscada entre os
deslumbramentos do grande dia tropical que nos alenta (Obras completas,1899, vol. 2, p.
522).
Alguns anos depois da derrota de Canudos, o autor publicaria sua maior obra, Oi
sertões, um dos maiores mea-culpas da literatura nacional, reconhecendo, tragicamente,
que’a grandeza dos vencidos tinha aviltado e maculado a glória dos vencedores. A
República já era, assim, a representação de um espetáculo num cenário em ruínas. Analisar
como o autor se defrontou com este dilema, ao mesmo tempo de ordem histórica, mas
também revelador da impostação literária no Brasil, será, então, o objetivo de nosso
trabalho.
Ruínas de civilização
Por uma magia só concebível àqueles que são capazes de se embrenhar pelas
entranhas da natureza, o sertanejo de Euclides levanta o arraial de Canudos. Afinal, assim
como o sertão é a degeneração da natureza no tempo, o sertanejo é a degeneração histórica
da raça. Ambos já são ruínas do tempo. Contudo, por se completarem numa simbiose tão
grande, natureza e homem agigantam-se para dar forma a uma cidade assustadora: “a urbs
monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro
de algumas semanas, já feito ruínas” (op. cit., vol. 2, p. 227). Ruínas que, por sinal, tinham
um sucedâneo na natureza desértica dos sertões, que era também resultante da ação
predadora do homem natural da terra. A propósito dos desertos, segundo o autor, muitos
Alguns autores já trataram do tema das ruínas na obra literária de Euclides da Cunha. Dentre eles, destacam-
se pioneiramente F. Foot Hardman, “Brutalidade antiga: sobre história e ruína em Euclides da Cunha”,
Estudos Avançados. São Paulo, n2 26, 1996, e depois Luiz Costa Lima, Terra ignota: a construção de Os
sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. O belo texto de Foot faz incursões nos escritos de
Euclides anteriores e posteriores à obra Os sertões e, em busca do tema da ruína, acaba descobrindo uma fértil
literatura romântica realista. Isto pode ser percebido pelo modo como Euclides estaria ainda marcado por
autores como Victor Hugo e F. Volney: ”A história produtora de ruínas, no entanto, está disseminada pelo
conjunto da obra euclidiana. Sua matriz estético-literária está bem longínqua, remetendo, entre outros autores,
às obras de Burke e Volney, no século XVIII, que terão repercussões por todo o alto romantismo do XIX,
chegando até Hugo, com fortes ressonâncias no Brasil”. Sem discordar de Foot, gostaria de dar continuidade
ao debate, sugerindo, entre outras coisas, que a percepção das ruínas por Euclides tem nuanças e diferenças,
conforme sua experiência pessoal vai se transformando. Dos primeiros escritos aos últimos, há diferentes
percepções da ruína e, como Foot já havia notado, em alguns momentos, o viés cientificista supera #a
experiência do sublime. Mas, antes destes comentários muito pertinentes, devemos lembrar também o
magnífico ensaio de Brito Broca, “Euclides da Cunha: realista e romântico”, publicado na coletânea Pontos de
referência. Rio de Janeiro: MEC, 1960. Parece-me que e o ensaio pioneiro sobre a combinação do estilo
deles são resultantes dos hábitos humanos, e para este processo de desertificação
concorreram tanto o indígena como o europeu.
Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável - o homem. Este não raro reage
brutalmente sobre a terra e entre nós nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da
história, o papel de um terrível fazedor de desertos. Começou isto por um desastroso
legado indígena. Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental - o
fogo. .[...] O aborígene prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas
alargando o círculo dos estragos [...], Veio depois o colonizador e copiou o mesmo
proceder. Engraveceu-o ainda com o adotar, exclusivo, no centro do país, fora da estreita
faixa dos canaviais da costa, o regime francamente pastoril [...] (op. cit., pp. 137-38).
romântico e do realismo em Euclides da Cunha, elegendo, principalmente, o tema das ruínas na obra do autor.
Brito Broca chega a sugerir até mesmo que o realismo de Monteiro Lobato deve-se, fundamentalmente, à obra
de Euclides da Cunha.
[...J quem segue as considerações que alinhei acerca da nossa gênese, se compreende que de rato não temos
unidade de raça, admite também que nos vários caldeamentos operados eu encontrei no tipo sertanejo uma
subcategoria étnica já formada (p. 108) liberta pelas condições históricas (p. 112) das exigências de uma
civilização de empréstimo que lhe perturbariam a constituição definitiva. Quer isto dizer que neste composto
indefimvel o brasileiro - encontrei alguma cousa que é estável, um ponto de resistência recordando a molécula
integrante das cristalizações iniciadas. E era natural que, admitida a arrojada e animadora conjectura de que
estamos destinados à integridade nacional, eu visse naqueles rijos caboclos o núcleo de força da nossa
constituição futura, a rocha viva da nossa raça. Rocha viva... A locução sugere-me um símile eloqüente. De
fato, a nossa formação como a do granitp surge de três elementos principais. Entretanto quem ascende por um
cerro granítico encontra os mais diversos elementos: aqui a argila pura, do feldspato decomposto,
Essa rocha viva, o sertanejo fazedor de desertos, merece de Euclides da Cunha uma
atenção desmedida e projeta-se metonimicamente como símbolo da nacionalidade e do
povo. De acordo com a própria percepção euclidiana, o sertanejo está no ato de enunciação
do Brasil, sendo ele mesmo um oxímoro, rocha viva. Esta dimensão da natureza e do
homem sujeitos à ação destruidora do tempo da história o autor nos sugere antes mesmo de
sua obra maior, Os sertões, ter sido escrita, abrindo horizontes para uma percepção de um
Brasil constituído das ruínas do passado.
Esta relação de ambivalência das ruínas com a modernidade já habitava a mente de
Euclides. Até mesmo outros homens de sua época e outros autores, lidos pelo próprio
Euclides, já haviam antecipado a fundação do Brasil assentada nas ruínas do passado. Para
não nos estendermos demais no tratamento de outros autores, mencionamos pelo menos a
obra literária fundadora da nacionalidade, O guarani, de José de Alencar. Nela, as ruínas de
um passado colonial de traços ibéricos vão sendo deixadas para trás em nome de um outro
tempo histórico, fundador da nacionalidade.
Às margens do rio Paquequer, o índio Peri observa a distância a destruição do
mundo colonial num grande incêndio, ao mesmo tempo em que, por ato premonitório,
presencia a cena do antigo fidalgo português destruindo o próprio domínio antes que as
tribos bárbaras dos aimorés possam se apossar do lugar. Há neste ato de destruição de um
mundo já em via de desaparecimento o rito de purificação do passado através do fogo de
um enorme incêndio, visto a distância pelo herói da nacionalidade, Peri.
variavelmente colorida; além a inica fracionada, rebrilhando escassamente sobre o chão; adiante a arena
friável, do quartzo triturado; mais longe o bloco mõutonné, de aparência errática; e por toda a banda a mistura
desses mesmos elementos com a adição de outros, adventícios, formando o incaracterístico solo arável,
altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra.
Os elementos esparsos, em cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto guarda até os materiais
estranhos trazidos pelos ventos, ali estão, embaixo, fixos numa dosagem segura, e resistentes, je íntegros.
Assim à medida que aprofunda o observador se aproxima da matriz de todo i definida, do local. Ora o nosso
caso é idêntico - desde que
sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão. A princípio uma dispersão estonteadora de
atributos, que vão de todas as nuances da cor a todos os aspectos do caráter. Não há distinguir-se o brasileiro
no intricado misto de broncos. Negros e mulatos de todos os sangues e de todos os matizes. Estamos à
superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação de há pouco, calcamos o húmus indefinido
da nossa raça. Mas entranhando-nos na terra vemos os primeiros grupos-fixos- o caipira, no Sul, e o tabaréu,
ao Norte - onde já se tornam raros o branco, o negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz,
entretanto, ainda todas as varieda,des das dosagens dispares do cruzamento. Mas à medida que prosseguimos
estas últimas se atenuam. Vai-se notando maior uniformidade de caracteres físicos e morais. Por fim, a rocha
viva - o sertanejo.”
“Sobre o montão de ruínas formado pela parede que desmoronara, desenhavam-se as figuras sinistras dos
selvagens, semelhantes a espíritos diabólicos dançando nas chamas infernais. [...] Tudo isso, Peri viu de um só
relance de olhos, como um painel vivo iluminado um momento pelo clarão instantâneo do relâmpago. Um
estampido horrível reboou por toda aquela solidão: a terra tremeu, e as águas do rio se encapelaram como
batidas pelo tufão. As trevas envolveram o rochedo há pouco esclarecido pelas chamas, e tudo entrou de novo
no silêncio profundo da noite. [...] As árvores arrancadas dos seus alvéolos, a terra revolta, a cinza enegrecida
que cobria a floresta, anunciavam que por aí tinham passado algum desses cataclismas que deixam após si a
morte e a destruição. Aqui e ali entre os cômoros das ruínas aparecia alguma índia, resto da tribo dos Aimorés,
que tinha ficado para chorar a morte dos seus, e levar às outras tribos a notícia dessa tremenda vingança.
Quem plainasje nesse momento sobre aquela solidão, e lançasse os olhos pelos vastos horizontes que se
abriam em torno, se a vista pudesse devassar a distância de muitas léguas, veria ao longe, na larga esteira do
Paraíba, passar rapidamente uma forma, vaga e indecisa. Era a canoa de Peri, que impelida pelo remo e pela
O passado colonial português, embora destruído, estará purificado no ato de criação
da memória nacional, procurando-se com isto a definição de uma identidade nacional
marcada pelos valores da conciliação entre passado e presente. Todas as fendas que
pudessem ser expostas pelas ruínas deveriam ser fechadas num pacto conciliatório e utópico
selado pela união amorosa das duas raças mais consistentes para a formação do ideal
nacional, a branca e a indígena. Entretanto, antes do desfecho do romance, José de Alencar
também traça de modo muito singular a figura do herói fundador da nacionalidade, o índio
Peri, que também ilude o olhar do homem branco civilizado. O sertanejo de Euclides da
Cunha, que revela sua força quando está em seu hábitat, o sertão, assemelha-se muito ao
índio Peri, quando este se encontra no seu sertão, a floresta.
Ao final do romance, o mito do dilúvio acaba por fundir as lendas cristãs e
indígenas. Valéria de Marco, em seu livro sobre o romance histórico de José de Alencar, A
perda das ilusões, chama-nos a atenção para a presença do mito do dilúvio nas lendas
indígenas, citando a transcrição de lendas indígenas recolhidas por Simão de Vasconcelos.
Esse dilúvio purificador irá aparecer também nas prédicas de Antônio Conselheiro e tomará
lugar de destaque na obra de Euclides: “[...] Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia
para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão”. Em ambos os casos
existem a projeção de um futuro utópico sobre as ruínas do presente e o rito de purificação
pelas águas de um dilúvio. Em José de Alencar, tanto o fogo como a água são símbolos da
purificação. Em primeiro lugar, o passado colonial é reduzido a ruínas, mas o português é
purificado pelo incêndio que ele mesmo provoca. No momento seguinte, por meio do
dilúvio há a purificação e o renascimento. O índio Peri com a sua Ceci tornam-se os
fundadores de uma nova nacionalidade e pais fundadores da história da conciliação. Nas
prédicas do Conselheiro, não há propriamente espírito de conciliação e tampouco a vontade
de projetar uma história do futuro, com a devida recomposição do passado. No caso em
questão, trata-se mais de uma tentativa de fuga do tempo da história e da degradação, pela
purificação das almas em um dilúvio anunciador do reino milenar.
A atração pelas ruínas e o modo como elas são representadas ao longo da trajetória
de Euclides assinalam uma percepção de um passado cujas raízes se deitavam no mundo
colonial português e que, de modo ambivalente, perpassa por sentimentos e atitudes sociais.
Ainda em plena juventude, Euclides escreve poemas evocando as catas do ouro das antigas
Gerais e contrasta as ruínas deste sertão com as magníficas cidades da modernidade
européia. Em versos banhados de sentimentos românticos, as ruínas são o refúgio daqueles
que recusam o intrépido mundo das grandes metrópoles e representam verdadeiras
necrópoles sagradas, “cheias de sombras e paz [...]”. Muito antes de adentrar os sertões da
Bahia, percebe-se em Euclides uma predileção pelos cenários de ruínas, e é possível
viração da manhã , corria com uma velocidade espantosa, semelhando uma sombra a fugir das primeiras
claridades do dia” (José de Alencar, “O guarani”, in Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar,1964, vol. II,
pp. 225-26).
Assim aparece a figura do índio Peri no romance O guarani: “No meio de homens civilizados, era um índio
ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia e marcava o lugar de cativo. Embora para
Cecília e D. Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo. Aqui, porém, todas as distinções
desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o
senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da coragem: As altas montanhas, as nuvens, as
catadupas, os grandes rios, as árvores seculares, serviam de trono, de dossel, de manto e cetro a esse monarca
das selvas cercado de toda a majestade e de todo o esplendor da natureza” (idem, op. cit., pp. 261-62).
perceber o modo como esta sensibilidade vinha se alterando no decorrer do tempo. Na
poesia As catas, o autor ainda tem uma visão bastante sublime do cenário em ruínas da
região aurífera de Minas, ao passo que, em Os sertões, sua percepção do mundo em ruínas
estará marcada por um forte sentido realista. Sua escrita, neste momento, está imbuída de
um ideal cientificista que almeja decodificar os tempos da natureza e da história
depositados nas ruínas do deserto. Há, contudo, em ambas as referências literárias uma
espécie de fuga do presente, ainda que esta dimensão esteja mais escondida em Os sertões.
As ruínas, sejam as das catas mineiras, sejam as do arraial de Canudos, sejam aquelas que
Euclides conheceu
na viagem ao Amazonas, sejam aquelas mencionadas por ele em visita às antigas fazendas
do decadente Vale do Paraíba, povoam o universo literário deste escritor e são como que os
cenários mais marcantes da história do Brasil e de suas fronteiras com a América Latina.
Aos poucos podemos ir nos familiarizando com este mundo decaído, mas em que,
ao invés de morte, encontramos, surpreendentemente, a vida. Em sua obra maior, a ameaça
da morte, apesar de! sempre anunciada, é sinal de força e de vida para o sertanejo, até o
momento em que as prédicas do Conselheiro alertam de que a morte que ronda o sertão virá
de fora dele.
Há uma outra vida que se desenha por entre as ruínas e, manifestando-se, acaba por
revelar os traços da brasilidade, em figuras como a do sertanejo, do caipira e do caucheiro.
Há neste modo de caracterização sociopsicológica do homem nacional uma dose muito
marcante da imagem que o próprio Euclides da Cunha faz de si mesmo, cujas primeiras
impressões ele presume advir da memória da infância. Ele mesmo se considerava um
homem dos sertões e mais de uma vez declarou-se um filho da terra. Para descobrirmos a
vida que se embrenha pelas ruínas da imensidão brasílica e sul-americana, construídas pelo
texto euclidiano, comecemos pelo poema As catas, da época em que o autor tinha 29 anos e
ainda não tinha vivido a experiência de Canudos. Nele já se projeta esta predileção pelos
desertos e pelo mundo do passado, havendo já uma alusão ao espírito heróico de
bandeirantes e de sua coorte. Nesse sentido, podemos considerá-lo como poesia de uma
brasilidade tornada ruína em contraste com a civilização moderna. Num outro sentido, vale
considerar também o modo como o autor universaliza o mundo das rumas e do passado
submerso pelas correntes do progresso, alertando que, por debaixo desta monumental
aparência de modernidade, ocultase a memória silenciosa de uma coorte de multidões de
vidas que ergueram os muros triunfantes de cidades, hoje em ruínas. Na poesia euclidiana
sobre as catas mineiras, percebemos de modo muito especial a atitude do espectador
Euclides diante dos arroubos do progresso. A poesia é, antes de tudo, ato de reflexão.
Euclides nesta poesia se coloca a distância da vontade e do desejo de progresso e, por
conseqüência, do devir e da história. Nas ruínas do passado, ele pode se tornar o espectador
deste cortejo avassalador e refletir sobre as ambigüidades e contradições do progresso. Por
isso mesmo, não estou de acordo com uma leitura romântica e sublime desta percepção de
Euclides sobre as ruínas. Aliás, sua atitude nessa poesia assemelha-se àquela adotada na
obra Os sertões. Nessa obra ele também se coloca como espectador da história, procurando
refrear o seu desejo de história e de futuro, procurando contraditoriamente conter o desejo
de manipular o tempo da história. Vejamos alguns versos euclidianos de As catas:
Que outros adorem vastas capitais
Aonde, deslumbrantes,
Da Indústria e da Ciência as triunfais
Vozes se erguem em mágico concerto;
Eu, não; eu prefiro antes
As catas desoladoras do deserto,
Cheias de sombra, de silêncio e paz.
Eu sei que à alma moderna - alta e feliz,
É grande, e iluminada,
Não pode sofrear estes febris
Assomos curiosos que a endoidecem
De ir ver, emocionada,
Os milagres da Indústria em Grande Essen,
E a apoteose do século em Paris!
Não invejo, porém, os que se vão
Buscando, mar em fora,
De outras terras a esplêndida visão
Fazem-me mal as multidões ruidosas
E eu procuro, nesta hora,
Cidades que se ocultam majestosas
Na tristeza solene do sertão. [...]
Levantou-lhes os muros triunfantes
Heróica e sonhadora,
A coorte febril dos Bandeirantes,
Nas marchas triunfais pelos sertões.
Mas passaram - e o sol que tremeu
A seus passos, deserto,
Revolto e infinito, e como um mausoléu
Imenso que pelo sertão se estende...
Calcando-o, sentis perto,
Um deslizar sinistro de duende:
O fantasma de um povo que morreu.
Viajantes que rápidos passais
Pelas serras de Minas,
Vindos de fulgurantes capitais,
Evitai as necrópoles sagradas,
Passai longe das ruínas,
Passai longe das Catas desoladas
Cheias de sombra, de tristeza e paz.
Sabemos pela informação valiosa de Brito Broca que os originais deste poema se encontram na Seção de
Manuscritos da Biblioteca Nacional. A transcrição do poema nas Obras completas de Euclides da Cunha,
editadas por Afrânio Coutinho na editora Nova Aguillar, tem várias modificações e mudanças na pontuação.
Entretanto, os elementos mais contrastantes entre o passado e o presente e uma
elaboração mais consistente desta fissura da história, bem como a exposição de tipos
nacionais como produtos arruinados dessa mesma história, ainda não estão presentes nessa
poesia. A experiência de Canudos acabou se constituindo num corte radical da percepção
do Brasil por parte de uma camada urbana de intelectuais, da qual Euclides da Cunha fazia
parte, no final do século XIX. As imagens de ruínas e de deserto e também de catástrofes
culturais ainda estavam marcadamente envoltas num véu romântico e alegórico, como
podemos observar na poesia As catas. Muito diferente é o modo como Euclides passa a
caracterizar os tipos nacionais resultantes das ruínas da civilização, principalmente depois
de sua experiência em Canudos. Nessas novas imagens das ruínas, já existe um forte apelo
realista, e os traços psicossociais dos tipos humanos analisados por Euclides são marcados
por sinais que se opõem e se digladiam numa luta infernal, e, também, a caracterização
desses tipos formadores da nacionalidade resulta de uma pretensão científica de análise da
realidade em detrimento dos apelos ficcionais.
Muito distante se situa o Euclides do poema As catas daquele que em Os Sertões
considera até mesmo a possibilidade de o progresso científico acabar com as ruínas do
deserto. Neste sentido, as ruínas, historicamente produzidas, têm os seus agentes
responsáveis e, lendo Euclides, não há como escapar do julgamento histórico dos
responsáveis por esta devastação. O crime das nacionalidades é também o crime da
apropriação predatória que a colonização ibérica realizou nas Américas, e os sertões
nordestinos comparam-se, enquanto ruínas, às terras desoladas deixadas por Pizarro e
Cortez na conquista do México e da região andina. Apesar de todo o traço romântico que
perpassa pela obra de Euclides através das fortes imagens de ruínas, maior é o seu desejo de
transformá-las, porque elas são, segundo o autor, o resultado de um certo modo de
realização histórica. De um lado, há em Euclides aquelas ruínas que são os traços de uma
natureza corroída pelo tempo e, neste caso, o traço romântico é mais sugestivo; de outro
lado, outras são as ruínas resultantes da ação predadora dos homens, como os desertos. No
poema As catas, as ruínas são lugares de memória de um passado de grandeza, ao passo
que, em Os sertões, as ruínas criadas pela ação dos homens produzem muito mais os
sentimentos-limite de violência primitiva, fazendo daqueles homens uma força regressiva
da história.
Neste sentido, é absolutamente decisiva a mobilização das imagens de ruínas para
Euclides, porque elas dão a medida da catástrofe da história e quais os meios para superar
este estado de degradação. Mas há ainda um outro fator mais decisivo. Na literatura
euclidiana, a ruína é também o limite de sua capacidade para enxergar o outro, seja ele o
sertanejo, o caipira ou o cauchejro. A ruína desvela o modo como o olhar do civilizado a
observa, e ela é assustadora na obra de Euclides porque está a todo momento devolvendo
para ele o outro que ficou à margem da história. Ela também tem uma dimensão política,
O historiador e intérprete de Euclides da Cunha, Olímpio de Souza Andrade, em História e interpretação de
Os sertões. São Paulo: Edart, 1966, oferece-nos um maravilhoso inventário das figuras e imagens literárias
criadas por Euclides para se referir a Canudos. Segundo Olímpio, “As alusões e definições relativas a
Canudos, consideradas só em sua generalidade e ainda que incompletas nesta cata que procedemos,
constituem exemplo de riqueza do escritor que entrevemos rebuscando tudo atrás de uma palavra esquiva com
pouquíssimas repetições no decorrer de todo o livro, o vilarejo se apresenta como ‘arraial de Canudos’, ‘terra
da promissão’, ‘cidade selvagem’, “rancharia esparsa”, “canaã sagrada”, “antro dentro de uma fuma”, “clã
principalmente na obra Os sertões, na medida em que mostra a discrepância entre a idéia
oficial de história, do progresso, da República e a brutal realidade desses mesmos sertões.
Contudo, não há, em nenhum momento da obra de Euclides, nenhuma insinuação de uma
alternativa histórica a partir da visão de mundo destes personagens que estão à margem da
história e, por isso mesmo, as imagens da ruína e da barbárie são um limite do pensamento.
Veja-se, neste sentido, o modo como o próprio autor desfaz a sua idéia de Canudos como
uma Vendéia brasileira, por não enxergar uma alternativa histórica possível para o bando do
Conselheiro. Entretanto, mesmo sem admitir alternativas ao sertanejo, ela serve para o autor
denunciar a mistificação da história oficial republicana, em cuja elaboração ele mesmo
havia ajudado:
tumultuário”, “grei revoltada’, “polipeiro humano”, ’cosmos”, “homizio de famigerados facínoras”, “refluxo
em nossa história”, “sociedade morta”, “o mais lendário dos vilarejos’, “Tróia de taipa’, ‘média entre
acampamento de guerreiros e vasto kraal africano’, “Tebaida turbulenta”, “Jerusalém de taipa”, “nossa
Vendéia”, “ceva monstruosa”, “arraial”, “tapera colossal”, “urbs monstruosa de barro”, ‘objetivação de
insânia imensa’, “civitas sinistra do erro”, “arraial sedicioso”, ‘falanstério de Antônio Conselheiro’, “tapera
enorme”, “montão de casebres”, “conjunto assombroso”, “cidadelamundéu”, “casaria compacta em roda da
praça”, ‘baluarte formidável’, “enredamento de casebres”, “ilusória fragilidade”, “humílimo vilarejo”,
“fossado monstruoso”, “povoado revolto e miserando”, “arraial convulsionado e imenso”, “barricada
monstruosa”, “Coblentz de pardieiros”, “tapera miserável”, “misteriosa cidade sertaneja”, “cidadela de
expugnação dificílima”, “dédalo de sangas”, ‘praça de armas colossal’, “casaria humilde”, “enorme cata
abandonada”, “Vilarejo aberto do sertão”, “arraial intangível”, “tapera babilônica”, “emaranhado de
casebres”, ‘arraial compacto como as cidades do Evangelho’, ‘cova’, ‘cidade bárbara’, ‘arena do combate’,
‘cidadela’, “feição original e bárbara”, ‘deserto e mudo como uma tapera antiga’, ‘um povoado dos sertões’,
‘arraial enorme’, ‘cidadela de barro’, ‘necrópole antiga’, “cata enterroada e enorme”, “Babilônia de casebres”,
“população entocada”, “cinco mil e duzentas vivendas”, “sendal de brumas”, “monstruoso anfiteatro”,
‘matadouro’, ‘fuma enorme’, “parênteses”, ‘hiatus’, “casario em ruínas”, ‘resvalar estonteador por alguns
séculos abaixo’, ‘povoado’, “população entocada”, “esterquilínio de cadáveres e trapos , casario fulminado”,
“afloramento originalíssimo do passado”, “cerne de uma nacionalidade’, “rocha viva da nossa raça”,
“habitáculos em fogo”, ‘brasileiros enormes’, ‘arraial extremis’, “caqueirada humana’” (pp. 334-35).
[...] registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as põe-se manifesto quanto
eram elas afinal inóquas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o que
nelas vibra, em todas as linhas, é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca
significação política permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O
rebelado arremeda com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de
delícias prometido. Prenunciava-o a república - pecado mortal de um povo- heresia suprema
indicadora do triunfo efêmero do Anti-Cristo [...] eram realmente fragílimos aqueles pobres
rebelados... (op. cit.,pp. 244-46).
A ruína seria, portanto, um limite de pensamento e, por isso mesmo, torna-se tão
decisiva no conjunto da obra euclidiana. Ela é a presença incômoda do outro, como
passado, como presente e como futuro e, por esta razão, deve ser capturada pelo
conhecimento e pelo saber, mais do que servir aos enlevos românticos do poeta. Não há por
que se surpreender, portanto, quando, nas páginas finais do capítulo “A terra”, nosso autor
discorre sobre os vários métodos de se acabar com os desertos, valendo-se inclusive da
própria experiência histórica de outros povos, com os romanos e o Saara na Antigüidade ou
os franceses dando continuidade a esta obra no final do século XIX. Como diz o nosso
autor: “A França salva os restos da opulenta herança da civilização romana, depois desse
declínio de séculos” (op. cit., vol. 2, p. 142).
Mas não devemos nos ater apenas a estes arroubos progressistas de Euclides. A
ruína como limite do pensamento e como a imagem do outro, do bárbaro e da degradação,
insinua-se também em vários outros momentos da obra de Euclides. Vejamos o modo como
o autor nos apresenta o sertanejo, o caipira e o caucheiro e observemos como há, nestes
modelos de caracterização destes personagens, uma oscilação entre imagens degradantes e
imagens positivas. A mais conhecida dessas imagens e também a mais envolvente e
desconcertante é, sem dúvida, a do sertanejo, dentre todos os tipos, aquele que Euclides
acredita ser a rocha viva da raça brasileira:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços
neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a
plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações
atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade
típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a
translação de membros desarticulados. E o homem permanentemente fatigado. Reflete a
preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto
contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência
constante à imobilidade e à quietude. [...]
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. [...] Nada é mais surpreendedor do que
vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos,
transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o
desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. [...]
Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo momento, em todos os
pormenores da vida sertaneja - caracterizado sempre pela intercadência impressionadora
entre extremos impulsos e apatias longas (op. cit., pp. 179-80).
Dando continuidade à galeria dos tipos humanos identificados por Euclides como
fazedores de ruínas e também produto delas, há ainda para destacar o caucheiro, ou, se
quisermos, o seringueiro. Assim como ps outros tipos elaborámos por Euclides, ele também
é produto do meio em que vive, mas, ao contrário dos outros, é a mais pura tradução do
personagem sinistro de Joseph Conrad no romance O coração das trevas. O caucheiro,
assim como o sanguinário comerciante Kurtz, o inglês embrenhado nas selvas africanas e
decidido a criar o seu próprio império colonial, seria também, segundo Euclides da Cunha,
“um tipo inédito na história”, caso vulgar de um civilizado que se barbariza, num recuo
espantoso em que lhe apagam os caracteres superiores das formas primitivas da atividade”.
Entretanto, as aparências enganam, e ele se revela um tipo ainda mais incógnito.
É um caso de mimetismo psíquico de homem que se finge bárbaro para vencer o bárbaro.
O dualismo curioso de quem procura manter intactos os melhores ensinamentos morais ao
lado de uma moral fundada especialmente para o deserto reponta em todos os atos da sua
existência revolta. O mesmo homem que com invejável retitude esforça-se por satisfazer os
seus compromissos, que às vezes sobem a milhares de contos, com os exportadores de
Iquitos ou Manaus, não vacila em iludir o péon miserável que o serve [...]; ou passa por
vezes da mais refinada galanteria à máxima brutalidade [...]. A selvageria é uma máscara
que ele põe e retira à vontade [...]. O caucheiro é irritantemente absurdo na sua brutalidade
elegante, na sua galanteria sanguinolenta e no seu heroísmo à gandaia. É o homúnculo da
civilização [...]. Atira-se às florestas; enterreira e subjuga os selvagens; resiste ao
impaludismo e às fadigas [...] acumula alguns milhares de soles e desaparece de repente...
Surge em Paris. Atravessa em pleno esplendor dos teatros ruidosos e dos salões, seis
meses de vida delirante, sem que lhe descubram, destoando da correção impecável das
estes e das maneiras, o mais leve resquício do nomadismo profissional. Arruína-se
galhardamente; e volta... Novo salto sobre o oceano; e quase sempre novo volver ansioso
Não podemos esquecer que a evocação destas imagens depreciativas do homem do campo não é
exclusividade de Euclides. Outros escritores, como Monteiro Lobato, por exemplo, foram também
responsáveis pela elaboração dessas imagens pouco lisonjeiras do caipira. Contudo, não devemos descartar a
hipótese de que o próprio Euclides tenha sido um dos responsáveis pela elaboração dessas imagens. Apesar
disso, o que importa é o lugar que estas personagens em ruínas ocupam no imaginário euclidiano e de que
maneira elas representam em sua obra, como já foi salientado, o outro como o limite do pensamento. Muito
sugestivo também é o comentário de Brito Broca a propósito das relações entre os escritos de Euclides e a
obra de Monteiro Lobato: “Quero crer mesmo que grande parte de Urupês saiu de ‘Entre Ruínas’. E que o
famoso artigo “Velha Praga” publicado no ‘Estado de São Paulo’, que constitui o início da carreira de
Monteiro Lobato, senão a reprodução com outras palavras, da página de Euclides ‘Fazedores de Desertos’,
incluída como ‘Entre Ruínas’, no livro Contrastes e Confrontos” (op. cit., p. 97).
em busca da fortuna perdidiça, numa oscilação estupenda das avenidas fulgurantes para as
florestas solitárias (op. cit., pp. 289-90).
Mais do que as semelhanças com o romance de Joseph Conrad, que por sinal são
muitas, o que nos deixa mais perplexos é saber que, mesmo diante de imagens forjadas por
teorias mesológicas altamente duvidosas, defrontamo-nos com uma narrativa da realidade
profundamente envolvente. Fica-se mesmo com a impressão de que, mais do que qualquer
artifício estilístico, essas teorias, consideradas científicas na época de Euclides, foram muito
eficientes para forjar tipos humanos de forte apelo literário. Muito provavelmente, se
Euclides da Cunha tivesse seguido os conselhos, por exemplo, de Sílvio Romero, ele não
teria escrito páginas tão arrebatadoras. Este eminente crítico literário faz restrições
consideráveis ao modo como Euclides explica os tipos humanos constitutivos da
nacionalidade e considera o seu olhar excessivamente, produzindo uma visão da realidade
inacabada, incompleta e insatisfatória. Entretanto, o próprio Sílvio Romero reconhece que
este inacabamento é o que confere força às imagens do sertanejo ou do caucheiro. Mas,
antes de reproduzir esta posição do crítico, seria conveniente observar que existe uma
crítica
aos procedimentos teóricos e conceituais da obra euclidiana. É importante mencionar isso,
porque normalmente se reproduzem citações de comentários de crítica literária e, poucas
vezes aparecem comentários que ejnfocam a insuficiência das matrizes teóricas mobilizadas
por Euclides da Cunha. Por várias vezes vemos comentários de como são infundadas as
teorias mesológicas e raciais utilizadas por Euclides para a representação da realidade
brasileira, mas não é comum apanharmos comentários de época que relativizem em grande
medida o olhar euclidiano. Na obra clássica História da literatura brasileira, Sílvio Romero
pondera que os tais personagens de Euclides
Entretanto, o próprio Sílvio Romero reconhece que a força das imagens de Euclides
vem desta visão expressionista da realidade fundà^ da em duvidosas teorias mesológicas e
raciais que transformam Euclides em um pintor monumental de fisionomias:
Sílvio Romero, História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, vol.5, p. 1.786.
Ainda neste passo é indispensável que me contenha, enviando o leitor para o corpo
do livro. É para não se dar o bis in idem. Nessas páginas é que o grande pintor
retrata as fisionomias de José Venâncio, Pajeú, Lalau, Chiquinho, João da Mota,
Pedrão, Estêvão, Joaquim Tranca-Pés, Raimundo Boca-Torta, Macambira, Vila
Nova, João Abade, Antônio Beatinho, José Felix, o Taramela e Manuel Quadrado,
os mais notáveis heróis de Canudos.
É uma vasta galeria de indivíduos que são como índices ou sumários de um meio,
de uma situação, de um momento social.
São como feixes de fatos, cada um com seu rótulo, sua rubrica inapagável e terna;
são como expoentes indicadores das correntes subalternas das multidões; fórmulas
lógicas, obtidas por processos indutivos, como integração completa de milhares de
fenômenos observados.
Mas são definições ditadas pela própria natureza: cada indivíduo é um resumo, é um
compêndio. Ali estão cristalizações humanas obtidas por quatrocentos anos do
labutar duma meia cultura incongruente, cheia de enormes falhas de toda a casta. E
todas são reais e pegadas em flagrante. Parecem páginas do Purgatório ou os
quadros tétricos de Dostoievski.
Romântico e realista Euclides foi, principalmente, no seu livro máximo Os sertões. O que o
levaria a tomar com tal ardor o partido dos jagunços, senão a atitude romântica de simpatia
por quem nessa luta inglória para os dois antagonistasl representava o lado mais fraco. No
jagunço bárbaro e fanático, via ele, antes de tudo, o sertanejo, o homem do deserto, do
Idem, op. cit., pp. 1.795-96.
Segundo o Dicionário Aurélio, o quiasma seria uma “construção anômala, originada do cruzamento de
construções normais; cruzamento sintático, contaminação sintática. Ex.:‘O homem que é forte / Não tema da
morte; /Só teme fugir’ (gonçalves Dias, Obras Poéticas, II, p. 42)”
deserto que o fascinava, o companheiro fraterno das solidões ”cheias de sombra, de
silêncio e paz”.
Em outro momento do artigo, Brito Broca volta a insistir no modo de ser romântico
e realista de Euclides e, referindo-se ao capítulo “Entre ruínas” do já citado Contrastes e
confrontos, comenta:
Assim, mesmo que possamos utilizar o par romântico-realista muito bem delineado
por Broca, insistiríamos na perspectiva de que há um movimento do simbólico em direção
ao conceito interpretativo e a uma fílosofia da história, no tratamento dado às ruínas por
Euclides da Cunha.
Ainda que tenha feito das ruínas um cenário recorrente de seus escritos, a prosa
euclidiana anuncia também as ruínas da literatura na virada do século. No agitado ambiente
intelectual e político das últimas décadas do século, Euclides escolheu a prosa literária para
falar das ruínas da nacionalidade, mas acabou tematizando também a precariedade das
letras nacionais em seus modos de representação da realidade brasileira. Os seus tipos
humanos chocaram a sensibilidade do público leitor e abriram brechas para que uma outra
representação da realidade se tornasse possível. Os sertões, malgrado as distâncias,
enquadram-se muito bem nos comentários de Erich Auerbach a propósito dos romancistas
do século XIX, que “acusam o público de possuir um gosto estragado e corrompido, de
preferir falsos valores, [...] de ler como passatempo confortável e soporífero livros que
acabam bem e não colocam ao leitor problemas sérios. Em lugar disso, oferecem ao público
um romance verdadeiro, que procura o seu tema na rua [...]”. Com certeza, Euclides não
estava sozinho em seu clamor por uma renovação dos enredos históricos e literários no
Brasil, mas foi sem dúvida um dos pioneiros a arrancar a máscara de civilidade por trás da
qual se escondia, com extrema hipocrisia, a barbárie nacional, e para falar dela teria de se
tornar, segundo as lições de Taine, em alguém mais aproximadamente como o caucheiro
amazonense, “un barbare parmi les barbares”.
Foi, contudo, mais além, além-do-homem, se quisermos, no sentido em que
Nietzsche empregou o termo em Zaratustra. Reproduzindo as próprias palavras de
Brito Broca, op. Cit., p. 98.
Idem, op. Cit. P.95.
Erich Auerbach, Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 451.
há uma tradição já consagrada de associar o primeiro capítulo, “A Terra”, de Os Sertões aos preceitos do
cientificismo do século XIX, pelos quais o homem, além do seu conteúdo biológico, seria produto do meio
que o circunda. Há, entretanto, uma outra possibilidade de leitura do capítulo “A Terra”, talvez mais próxima
da idéia do super-homem de Nietzsche. Literalmente falando, não devemos esquecer que homem, no sentido
etimologico, vem de humus, quer dizer, terra, humanus, nascido da terra. O sertanejo e o caucheiro euclidiano
seriam, portanto, numa aproximação nietzschiana, aqueles que, por serem nascidos da terra e se sacrificarem
por nela, tê-la-iam como o além-do-homem, a sua travessia, a sua passagem. Zarastruta ama os homens “que
Euclides, “um caso de mimetismo psíquico de homem que se finge de bárbaro para vencer
o bárbaro. A selvageria é uma máscara que ele põe e retira à vontade. Foi o super-homem
do deserto [...]”. Mas, pensando nesta travessia, da qual fala Zaratustra, percebemos de que
modo Euclides e Joseph Conrad se aproximam. Em ambos os autores as figuras da natureza
são emblemáticas, sendo em um deles o sertão e, no outro, o mar. Mas o mar e o sertão de
um e de outro representam, enfim, a travessia que irão realizar por meio de suas escrituras.
O mar e o sertão ficam, portanto, metaforizados jtiuma escritura que, para um deles, é uma
aventura imensa, pois trata-se do domínio de uma outra língua, a inglesa, já que Joseph
Conrad é polonês. No caso de Euclides, a literatura brasileira é o seu sertão, e através dela
ele irá caminhar, embrenhar-se e dedicar-se ao extremo para fazê-la renascer das ruínas. De
volta dos sertões baianos, Euclides irá, portanto, realizar a sua travessia, assim como o
sertanejo Conselheiro esperava que o sertão se fizesse mar e o mar se fizesse sertão. Na
aridez de um vernáculo empertigado, Euclides procurará resolver o enigma de sua escritura
por meio de oxímoros, de imagens extremadas, que ilustram ainda melhor a armadilha na
qual ele próprio se viu enredado. Euclides, de volta dos campos de luta, recolhe-se no
interior de São Paulo e irá fazer da escrita a sua travessia pelo sertão da literatura nacional.
Nesta escritura, em sua travessia para o mundo da literatura, ele irá escrever sua grande
obra sobre um dos maiores crimes cometidos em nome da nacionalidade, a guerra de
Canudos. Assim, diante da impossibilidade de modificar pela sua ação e vontade os rumos
da história nacional, Euclides irá se dedicar à escrita cortante e dilacerante que criará
imagens inesquecíveis das ruínas da nossa nacionalidade. Assim, no trabalho da memória, a
escrita de Os sertões vai ganhando forma, mas o conteúdo dessa escrita é o esquecimento. É
na necessidade de se escrever sobre o acontecimento, de olhar com horror os escombros e
as ruínas do passado, como o Ângelus Novus de Paul Klee, que a memória euclidiana se faz
escritura, expondo a ferida identitária da nação, projetando na história o lugar de uma perda
irreparável.
Capítulo 8
se sacrificam à terra, para que a terra um dia se torne o além-do-homem. Perigosa travessia, perigoso à-
caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar”. Nessa ultrapassagem estariam as marcas de
uma nacionalidade nascida na travessia da civilização de empréstimo do litoral para o humus do sertão.
“CONCILIAÇÃO” E ESQUECIMENTO: NABUCO E A REVOLUÇÃO
Izabel Marson
Universidade Estadual de Campinas
“Há na Odisséia, disse eu, um episódio que pode servir de parábola, a nós
abolicionistas. E Ulisses dizendo a Polifemo que se chamava Ninguém, e
depois o Ciclope com a pupila abrasada, atroando os ares com os gritos da
sua cegueira e respondendo aos gigantes que lhe perguntavam quem lhe
causara tais sofrimentos e lhe arrancava tais clamores no sossego da noite
divina.” Foi Ninguém. “Se não é ninguém”, respondiam os ciclopes, “se
estás só, não te podemos valer contra o golpe com que Júpiter te fere!”.
Senhores, não é nenhum de nós que mata a escravidão, é o espírito do
nosso tempo, e por isso o nome verdadeiro do Abolicionismo é Ninguém; e
eu náo quero outro para mim nesta causa. Sim senhores, o que eu desejo é
que depois da luta terrível entre abolicionistas e escravocratas a
emancipação seja realizada entre as alegrias da nação unida, e que nós
todos, como os atenienses para conciliar as divindades inimigas,
levantemos no lugar da discórdia o altar do Esquecimento.
J. NABUCO, Conferências
VIRGÍLIO, Eneida
Esta comunicação integra uma pesquisa financiada pelo CNPq.
J. Nabuco, “Terceira conferência no teatro S. Isabel”, Recife, 16/11/1884, in Conferências, p. 345.
Analisando o episódio do embate entre Ulisses e Polifemo, Olgária Matos comenta: “Odisseu tem como raiz
Udeis, que significa em grego ninguém [...]. Os ciclopes são gigantes de um único olho no meio da testa, o que
significa que eles desconhecem a tridimensionalidade do espaço, desconhecem o universo da cultura. Ulisses
havia sido advertido por Circe de que não deveria amanhecer na ilha dos Ciclopes para não ser por eles
atacado. Porém, sua curiosidade faz com que imagine um estratagema para poder explorar a ilha sem correr
risco de vida. Embriaga Polifemo e, enquanto este se encontra adormecido, fere seu olho, cegando-o.
Polifemo desperta com a dor, gritando Udeis me feriu’. Os demais ciclopes acorrem, mas quando ouvem,
‘ninguém me feriu’ recolhem-se novamente, como Ulisses havia calculado. Portanto, uma vez consolidada
esta racionalidade astuciosa, Ulisses ganha este nome”. Olgária Matos, “A melancolia de Ulisses: a dialética
do iluminismo e o canto das sereias”, in S. Cardoso et ai., Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986, pp. 144 e 156. Sobre esta leitura do mito grego, ver também T. Adorno e M. Horkheimer,
Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos (trad. Guido A. de Almeida). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.
“Poupar os submissos e debelar os soberbos”, Eneida, 6, 853. Foi lema do gabinete Macaé (2/2/1844), que
propôs a primeira configuração da política de conciliação entre os partidos do Império, fundada na
“moderação”, na paz e na lei. Aludia diretamente à obra heróica dos romanos por saberem reger o mundo, na
passagem em que Enéias, em sua descida aos infernos, ouve os conselhos do pai sobre a construção do futuro
império. Virgílio, Éneide, 12a ed. (org. Henri Goelzer). Paris: Lê Belles Letres, 1966.
Incontáveis conflitos de natureza diversa integraram a história do Brasil durante o
Império e se exteriorizaram numa multiplicidade de acontecimentos indicativos de uma
sociedade matizada e complexa em sua configuração e essencialmente competitiva em seus
interesses. Nos recintos parlamentares, eles afloraram na acirrada disputa entre grupos ou
partidos políticos. Assim, durante o Primeiro Reinado, enfrentaramse portugueses e
brasileiros, pugnando por diferentes projetos políticos; na Regência, opuseram-se
restauradores e liberais, de diferentes modalidades - exaltados, moderados e conservadores;
e, no Segundo Reinado, liberais e conservadores ocuparam a cena política até 1870, quando
a emergência oficializada em partido dos republicanos veio adensar a disputa partidária. Em
todos os momentos, as questões que fundamentaram este embate originaram-se das
divergentes concepções sobre o pacto j que legitimaria e normalizaria a sociedade civil,
assim como da concorrência pelo exercício dos direitos inscritos na cidadania.
Todavia, fora do Parlamento, a agitação e o conflito foram mais contundentes,
denotando que a luta parlamentar foi pálida representação de continuada guerra civil, típica
de uma sociedade pautada pela compe-j tiçao por negócios e direitos políticos e fundada em
relações de domínio garantidas pela violência. Ao longo da história da monarquia, os
principais centros urbanos (Rio de Janeiro, Salvador, Belém e Recife) assistiram a inúmeros
episódios de confronto físico entre nacionais e portugueses, que disputavam negócios de
várias modalidades, desde empreendimentos “de grosso trato” até o comércio a retalho e o
artesanato, disputas que motivaram as temidas manifestações denominadas mata-
marínheiro. Ocorreram também, particularmente na Regência, movimentos de
insubordinação da tropa de linha reivindicando melhores soldos e o direito de participação
política, ou atuações de militares em eventos mais significativos, como na abdicação de
Pedro I, em 1831, e nos acontecimentos que se seguiram. Notou-se, ainda, intenso
engajamento dos cidadãos proprietários nas vilas e cidades, organizados por sociedades
patrióticas de tendência restauradora ou liberal. Entre 1824 e 1848, explodiram levantes
liberais de diferentes matizes, organização e composição social: a Confederação do
Equador, a Farroupilha, a Sabinada, a Revolução de1842 em São Paulo e Minas Gerais e a
Praieira. Por sua vez, os homens livres pobres e os escravos aquilombados marcaram
presença em insurreições como as Cabanadas do Pará e de Alagoas, a Balaiada, o Ronco da
Abelha e o Quebra-Quilos. E, acompanhando esses episódios de maior projeção, é
importante lembrar a atuação escrava, tanto nos enfrentamentos cotidianos e nas rebeliões
localizadas quanto na revolta dos Males na Bahia, em 1835. Foram estas circunstâncias
históricas que justificaram para garantia da ordem, num primeiro momento, a criação de
uma Guarda Nacional cidadã e, posteriormente, quando da Guerra do Paraguai, a
constituição de um exército nacional.
Tal quadro de confrontos e tensões foi, certamente, uma forte razão para que o tema
da revolução se projetasse na história do Império em todo seu percurso. Sem dúvida, ele é o
ponto de referência principal do debate político desde a Independência até 1850, debate
revigorado na década de 1870 com a emergência dos “novos liberais” e seu projeto de
reforma da monarquia e da proposta republicana cobrando a finalização do regime
monárquico. Todavia, apesar da multiplicidade dos confrontos políticos, apenas quatro
eventos se destacam nos textos que fundaram a memória e a trajetória deste tema no século
XIX: a Independência, a revolução de 7 de abril, a Praieira e a Abolição da escravidão.
Buscando motivos destas privilegiadas referências simplificadoras da complexidade
a história da revolução no Império, poderíamos considerar o fato de que estes episódios
arcaram, de acordo com os critérios da sociedade civil, os momentos cruciais da definição
da monarquia constitucional, da cidadania e da nação-proprietária. Mas uma razão
essencial desta correspondência também se esclarece quando localizamos a fonte que
cristalizou estes recortes. Ou seja, percebemos que os textos que hegemonicamente
informaram os historiadores do século XX sobre a revolução no Império são as obras de
Joaquim Nabuco Um estadista do Império e O abolicionismo e que, por meio delas, o
historiador delimitou um perfil exclusivo e uma memória para a revolução. Mais ainda,
notamos que a concepção nelas projetada sobre este tema foi configurada a partir de um
princípio político essencialmente restritivo e autoritário - o lema da “conciliação”, poupar
os submissos e debelar os soberbos-, retomado na mesma acepção em que se alicerçaram os
impérios de Atenas e Roma. Percebemos ainda que tal princípio fundamentou tanto os
procedimentos do
Nabuco político quanto os do historiador. Enquanto método aplicado ao texto
historiografico, o lema da “conciliação” pressupôs, ao mesmo tempo, uma
associação/exclusão de depoimentos e deu ensejo à confecção de uma memória da
revolução, que se tornou simultaneamente rememoração e esquecimento. Dessa forma, ela
criou fatos, no sentido conferido ao termo por Lucien Febvre - a Revolução Praieira, o
Feudalismo, a Escravidão e o Abolicionismo -, que tornaram unifacetadas e petrificadas no
tempo experiências em sua origem remetidas a múltiplas ocorrências e significados,
experiências que submetem as fontes a propósitos políticos específicos. Para isso, poupou,
adaptando, os testemunhos submissos e debelou, excluindo, a presença dos rebeldes. Ou
seja, a interpretação de Nabuco teceu imperialmente a memória da revolução,
particularmente a da Praieira.
Lembra-nos Hannah Arendt das singularidades que estes conceitos assumiram na revolução americana e na
francesa, singularidades que se expressariam nitidamente no Brasil. H. Arendt, Da revolução (trad. José R.
Miney). São Paulo: Ática; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1988.
As citações destas obras estão remetidas a Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, Um estadista do
Império: Nabuco de Araújo - Sua vida, suas opiniões, sua época, 2 vols., 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936 U- ed., 1897-1899); e idem, O abolicionismo, 51 ed.
(introd. Marco Aurélio Nogueira). Petrópolis: Vozes, 1988 (l1 ed., 1883).
O meu primeiro trabalho foi ler todas as peças e documentos e tirar deles o que pudesse
figurar na Vida que eu planejava. Esse trabalho preparatório ocupou-me de 1893 a 1894,
principalmente durante os meses da revolta [...]. Uma vez terminado o trabalho de
separação ou de eliminação, tratei de reunir e dispor cronologicamente o material escolhido,
ligando-o peça por peça de modo a formar o arcabouço completo da obra. Depois de ter
dado esta primeira forma, já de vida, à obra toda, foi que comecei aprontar para a imprensa
os primeiros capítulos [...].
A decisão de preparar a biografia de Nabuco de Araújo era uma idéia antiga, planejada desde 1881, quando
Nabuco se “exilou” em Londres pela primeira vez, e foi mencionada em carta ao barão de Penedo. Todavia,
outras tarefas mais prementes da campanha abolicionista adiaram o projeto. J. Nabuco, “Carta a Penedo de
8.6.1881”, in Cartas a amigos. São Paulo: Ipê, 1949, vol. l, p. 48; Carolina Nabuco, A vida de Joaquim
Nabuco. Rio de Janeiro: Americ-Edit., s.d., p. 149; idem, “Prefácio”, in op. cit., pp. VII-VIII.
Fundamentando-se nestas premissas, criou sua leitura dos acontecimentos ocorridos
entre 1822 e 1853. Representou o Império como um ser vivo e construiu a história de sua
vida conciliando o depoimento (e os documentos) de Nabuco de Araújo com informações
de outras fontes. O apelo ao imaginário orgânico possibilitou uma analogia entre a vida de
Nabuco de Araújo e o percurso da monarquia, pressuposto que lhe permitiu projetar o
testemunho do pai como experiência modelar na compreensão da trajetória e constituição
do Império e da prática liberal no Brasil. Assim, a infância e a adolescência do estadista
coincidem com o nascimento e a mocidade da nação, a saber, a Independência e o período
da Regência.
Responsabilizou a herança dos monopólios do Antigo Regime, o feudalismo, os
latifunãia, a servidão, pelo fomento das revoluções jacobinas do Impénd, das quais o 7 de
abril e, especificamente, a Revolução Praieira haviam sido o exemplo mais acabado.
Apoiando-se nos escritos do pai, historiou detalhadamente os acontecimentos de
Pernambuco e criou uma interpretação para a revolta da Praia que a tornou o modelo mais
elaborado da revolução entendida como desordem, imaturidade e despreparo: identificou-a
com aspirações políticas díspares, mescla de republicanismo e socialismo, e estabeleceu
suas origens numa intrincada gama de motivações, dentre as quais O feudalismo vigente em
Pernambuco, tese apresentada por Nabuco de Araújo, teve um significado essencial.
Um dos principais ataques da Praia era contra o “feudalismo” dos senhores de engenho.
Forte na capital, ela sentia dificuldade de avançar no interior, fechado pela grande
propriedade, a cuja sombra viviam as pequenas povoações, semeadas em suas cercanias;
daí a guerra que ela movia à grande propriedade, superior à justiça publica. Nesse ponto a
invasão Praieira era uma imposição necessária; depois viria, ou não, a reconstrução
democrática; o essencial desde logo a conquista do interior pela lei. Tanto na Justa
Apreciação como na tribuna da Câmara, em 1843, Nabuco de algum modo o reconhece.
Ele não contesta o benefício dessa campanha, lastima somente que os atos não
correspondam às palavras e que de uma obra social de vasto alcance se faça uma estreita
perseguição partidária. Em 1843 ele enumerava entre as causas do estado violento e
excepcional de Pernambuco e outras Províncias do Império essas influências do interior,
que têm por timbre proteger a certo número de indivíduos que as cercam e são
instrumentos de seus caprichos e vinganças. Essas influências [...]sempre existiram, mas
adquiriram força com a fraqueza do poder [na Regência], fraqueza que resulta das leis que
a evolução nos legou. Em 1847, diante dos atos de intervenção enérgica com que Chichorro
Para os acontecimentos de 1822 a 1837, recorre também a Raiol, Motins políticos-, Abreu e Lima,
Compêndio de história do Brasil; Pereira da Silva, História do Brasil de 1831 a 1840-, Melo Morais, A
Independência; visconde de Goiana, Apontamentos da vida política do visconde de Goyanna; artigos do
Correio Mercantil da Bahia e do Rio de Janeiro; e ao depoimento do barão de Penedo, Francisco Inácio
Carvalho Moreira.
A narrativa destaca a coincidência entre os marcos da vida do biografado e os da monarquia. Por exemplo,
em 1823 acontecem as guerras da Independência da nação e a morte da mãe de Nabuco de Araújo; em 1831, a
abdicação e o ingresso do biografado na Academia de Olinda; em 1840, a maioridade e o casamento do jovem
político; em 1850, a afirmação do Império e o reingresso de Nabuco de Araújo na vida parlamentar; em 1878,
a morte do senador e o início do declínio da monarquia.
Especialmente Justa apreciação do predomínio do partido Praieiro ou História da dominação da Praia e As
eleições para senadores em Pernambuco. Recife: Tip. União, 1847.
assombrou as influências do interior, o escritor do partido da Ordem [...] não ataca a
intervenção, mas o modo e o espírito partidário: “Falais do feudalismo dessa família e dizeis
que os membros dela encastelados em suas propriedades eram inacessíveis à autoridade
pública, mas esse feudalismo, esse espírito altivo e arrogante que quer sotopor a autoridade
pública, ou dominar, ou desprezá-la, é só próprio e exclusivo, a alguns Cavalcantis? Não,
mil vezes não. Esse espírito anti-social, absurdo e perigoso é um vício radicado entre os
proprietários do interior de Pernambuco, e quiçá do Império, é um v/cio que nasceu da
antiga organização e que as nossas revoluções e civilização ainda não puderam acabar.
Não eram somente alguns Cavalcantis que nutriam este espírito, senão muitos outros. Esse
espírito anti-social, ou esse feudalismo, como chamais, vós o teríeis atacado radicalmente
rendendo dest’arte um importante serviço ao país, se dominados pelo patriotismo [...] vós
tivésseis aproveitado da revolução que causastes na sociedade com o vosso triunfo e
dominação [...] Mas, não. Excitastes essas idéias generosas para carrear a popularidade e
para triunfar, mas ao depois e na prática tendes respeitado e consolidado esse feudalismo
dos vossos, e só combatido o dos adversários [...]”.
J. Nabuco, Um estadista do Império, op. cit., p. 63. A citação de Nabuco (entre aspas) foi retirada do
opúsculo de Nabuco de Araújo, Justa apreciação..., op. cit.
J. Nabuco, Um estadista do Império, op. cit., pp. 74-75.
quem, na maioria das circunstâncias, tinham uma relação antiga e estável. Neste episódio, o
autor recorreu, uma vez mais, aos escritos de Nabuco de Araújo:
Foi tal o terror que se incutiu na população que os moradores dos engenhos, - que desde
tempos imemoriais têm considerado aos senhores de tais propriedades como seus
sustentáculos e protetores, que hão sempre tido para com estes um justo respeito
reverenciai [...] esses homens, dizemos nós que se uniam aos senhores de engenho pela
força do hábito, pela influência dos costumes antigos, pelos laços de gratidão, antes
quiseram votar com a polícia que os aterrava do que com os seus patronos naturais que os
sustentavam [...]. A polícia destruiu assim ajusta relação que existia ..., entre os
proprietários dos engenhos e os seus moradores, alterou os costumes, e só produziu males,
porque tais homens não podem mais ficar nos engenhos, que atraiçoaram de certo modo.”
Idem, op. cit., p. 65. Neste caso, Nabuco recolheu um fragmento do opúsculo As eleições para senadores...,
op. cit., p. IX. Nesta passagem, uma vez que queria destacar tão-somente o ato de força da Praia, Nabuco de
Araújo, diferentemente do trecho citado, conferiu um sentido positivo às relações entre moradores e senhores
de engenho, sentido que Nabuco também preservou. Pode-se perceber, então, que as relações feudais
assumem significados diferentes de acordo com as circunstâncias e os interesses do autor (tanto Nabuco de
Araújo quanto o historiador Joaquim Nabuco). Quando se trata de avaliar as relações entre os senhores e o
Estado, elas são negativas; quando se refere aos dependentes (no enfrentamento com os praieiros), tornam-se,
dependendo das situações, até positivas.
Idem, op. cit., p. 72.
J. M. Figueira de Melo, Chronica da Rebellião Praieira em 1848 e 1849. Rio de Janeiro: Typographia do
Brasil de J. J. da Rocha, 1850. A segunda edição foi publicada pelo Senado Federal em 1978.
assim como o pai do escritor, haviam testemunhado e refletido sobre os episódios
revolucionários das décadas de 1820 a1860. Foram eles John Armitage, Francisco de Sales
Torres Homem, o Timandro, Justiniano José da Rocha eTeófilo Ottoni. No entanto,
apesar da intenção de fidelidade aos documentos, manifestada pelo escritor no prefácio da
obra, quando retomadas, suas fontes revelam outros entendimentos sobre a Revolução
Liberal, a monarquia e a sociedade monárquica, diversos daqueles projetados pelo
historiador Nabuco. Verifica-se que haviam sido “conciliadas” para compor uma
interpretação outra que, desconsiderando suas proposições básicas, anulava-as. Além disso,
quando contrapostas, demonstram uma ágil barganha de argumentos, testemunhando que o
tema da revolução realizou um percurso ao longo da vida do Império, percurso ignorado
pelo texto que as registrou.
Desta forma, o comerciante inglês John Armitage, assíduo freqüentador do Paço
Imperial durante o Primeiro Reinado, escrevendo em 1835, sob o impacto do falecimento
de Pedro I e das decorrências do Ato Adicional, desenhou uma revolução necessária,
quando conduzida por mãos habilitadas, como um momento inevitável na construção da
civilização e do progresso. E, nas circunstâncias da Independência e do 7 de abril, o autor -
pressupondo a razão e a ação conseqüente dos políticos brasileiros - considerou-a madura e
pertinente para o aperfeiçoamento da monarquia constitucional. Isto porque as
circunstâncias políticas e sociais do Império brasileiro não espelhavam, exatamente, as
européias, na medida em que, aqui, o feudalismo fora uma criação artificial e tardia,
instituída no reinado de Pedro I. No Brasil, o feudalismo fora uma prática agregada a uma
sociedade que, embora ainda abrigasse a barbárie da escravidão e tivesse convivido com o
despotismo político inerente à condição colonial, vinha sendo gerenciada por cidadãos
sensatos e inteligentes que aprendiam rapidamente, desde a Independência, o exercício
conseqüente e moderado da monarquia constitucional.Neste sentido, Armitage valorizou a
revolução de inspiração francesa e girondina como prática instauradora da civilização.
Entendimento um pouco diverso projetaria o deputado liberal Torres Homem, o
Timandro, quando, em 1849, engajado na defesa da Rebelião Praieira, escreveu O libelo do
povo. Preservando o sentido inequívoco de progresso e a prevalência da razão para avaliar
todas as experiências revolucionárias dirigidas pelos cidadãos proprietários, alinhou, num
mesmo processo, a Revolução da Independência, o 7 de abril e a Revolta Praieira.
Espelhando-se nos exemplos da revolução americana e das revoluções liberais européias de
1848, ele compreendeu estes confrontos como atos políticos, encaminhamentos adequados
e incontornáveis na conquista e conformação da soberania da nação e da monarquia
constitucional, direitos representativos do progresso e afinados com as idéias do século.
Nesta medida, os patriotas brasileiros, assim como os cidadãos da república americana e
dos reinos europeus, enfrentavam a resistência e as reiteradas intervenções de forças
absolutistas e retrógradas que procuraram fazer naufragar este processo de construção da
Respectivamente: John Armitage, História do Brasil, 2a ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP,
1981; Francisco de Sales Torres Homem, “O libelo do povo”, in Magalhães Jr., Três panfletários do Segundo
Reinado. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, pp. 47-126; Justiniano José da Rocha, “Ação,
reação, transação: duas palavras acerca da atualidade”, in Magalhães Jr., op. cit., pp. 161-218; Teófilo
Benedito Ottoni, Circular dedicada aos senhores eleitores de senador pela província de Minas Gerais no
quatriênio actual e especialmente dirigida aos senhores eleitores pelo 2º districto eleitoral da mesma província
para aproxima legislatura, pelo ex-deputado Teophilo Benedicto Ottoni, 2ª ed. (prefácio de Basílio de
Magalhães). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Revista do IHGB, 1916, tomo LXXVIII, 2ª parte.
soberania da nação em 1824, 1837 e 1848. Descartando a idéia de que resquícios do
passado colonial pudessem se tornar entraves à construção dessa soberania, como a
escravidão, por exemplo, Timandro interpretou a situação brasileira como perfeitamente
preparada para assumir o perfil da república norte-americana ou das monarquias
constitucionais da Europa. Ainda, considerou-a, do ponto de vista político, mais avançada
do que a européia, fato sobejamente comprovado pelo desempenho da nação na experiência
regencial. Para Timandro, a revolução é legítima porque foi uma luta dos cidadãos contra a
tirania.
Na interpretação realizada em 1855 pelo deputado conservador Justiniano José da
Rocha, viria um contundente contraponto. Certamente inspirado por leituras críticas da
Revolução Francesa, considerou as revoluções experimentadas, tanto no 7 de abril quanto
na rebelião pernambucana - dados os seus parentescos com a democracia -, como
sintomáticas da imaturidade e inexperiência da nação. Valorizando a obra a independência -
especialmente a intervenção do príncipe e dos “homens provectos” que acabaram por criar
uma Constituição moderna -, Rocha, embora compreendendo o 7 de abril e a Revolta
Praieira como inevitáveis, avaliou negativamente suas realizações, especialmente o Ato
Adicional, a recorrência às armas e a proposta de uma Constituinte feita pelos praieiros.
Para ele, a revolução que resultará na abdicação ao imperador - sinônimo de desordem e
anarquia - fora potencialmente uma etapa, porém não necessariamente um passo da nação
rumo à maturidade. A lei do progresso não se revelaria a partir do desenvolvimento
espontâneo e linear das sociedades, mas da intervenção deliberada de alguns homens
argutos e experientes, preparados para o exercício da política como razão. A eles caberia a
missão de reverter o repetitivo movimento de ação/reação, inscrito nas leis mais primitivas
da natureza, que dominava a história dos povos ainda imaturos, povos que, a exemplo do
Brasil até aquele momento, faziam desta história tão - somente um império de paixões. O
progresso, resultado da atuação de verdadeiros estadistas, etapa subseqüente à ação e à
reação, consolidar-se-ia numa transação política, entendida como “conciliação” entre alguns
princípios democráticos e práticas já comprovadamente eficientes da reação monárquica.
Estes seriam os fundamentos de uma sólida monarquia constitucional.
Outro, ainda, seria o entendimento do veterano político liberal Teófilo Ottoni. Na
Circular endereçada a seus eleitores, quando do pleito para a Câmara temporária de 1860,
denunciou as arbitrárias intervenções do poder moderador, que vinham inviabilizando uma
política de efetiva “conciliação” entre os partidos e a vigência de uma genuína monarquia
constitucional. Nela, a revolução de 7 de abril assume contornos já consagrados por
Armitage e Timandro, ou seja, havia sido sinônimo de progresso, de procedimento
presidido pela razão e de ponto de chegada inevitável, porque sintonizado com as
A semelhança entre as colocações de Timandro e as dos revolucionários americanos projeta-se quando
acompanhamos a análise de Hannah Arendt para aquela revolução. H. Arendt, op. cit., pp. 53-78 e 113-43.
É difícil avaliar com precisão os textos que fundamentam Rocha, assim como os de outros políticos
interpretadores da revolução ocorrida no Império, uma vez que, salvo raras exceções, eles não citam suas
fontes. Entretanto, é possível perceber, nos argumentos de Rocha, ressonâncias de uma tradição liberal
autoritária e crítica da Revolução Francesa, cujos primeiros expoentes foram Burke e Hegel. Sobre estas
matrizes do pensamento concra-revolucionário e romântico, ver a análise de R. Romano, “O sublime e o
prosaico. Revolução contra reforma”, Revista Brasileira de História, 10, 20, mar.-dez., 1990, pp. 39-62. Sobre
a presença hegelíana no texto de Rocha, assim como sobre seu significado político, ver Maria de Lourdes M.
Janotti, ”A falsa dialética”, Revista Brasileira de História, 2, 3, mar., 1982, pp. 3-17.
conquistas do século. Contudo, lembrando Rocha, admitiu que os políticos e a sociedade do
Império não estavam preparados para realizá-la. As revoluções intentadas na
Independência, no 7 de abril e na revolta de São Paulo e Minas Gerais haviam sido ainda
prematuras para as circunstâncias do país. Embora signatárias do progresso e desta
atualidade e concretizadas por alguns políticos efetivamente imbuídos de born senso e de
espírito liberal, que perseguiam uma aproximação com as nações mais avançadas do tempo
- sobretudo com a república norte-americana e com algumas monarquias européias -, elas
não haviam atingido os objetivos esperados. Refém dos 300 anos de convivência com a
escravidão e ainda enredado no movimento mecânico e natural de ação e reação, o Império
era, por um lado, presa fácil do reacionarismo de muitos políticos apegados ao absolutismo
e, por outro, ameaçado pela anarquia e desordem típicas da ignorância que ainda dominava
grande parte da população. Esta imaturidade política também se expressou nos equívocos
de seus ministros e parlamentares que, pautando sua conduta na lisonja e nos interesses
pessoais, vinham confundindo o poder moderador com o poder pessoal do imperador,
inviabilizando o sucesso das revoluções progressistas e a prática de uma verdadeira
monarquia constitucional. Desta maneira, a intervenção dos retrógrados, dos moderados,
dos exaltados e de uma “oligarquia” que se estabelecera no poder no Segundo Reinado
desviara a revolução de seu curso natural - a construção de uma monarquia constitucional
modelar, regime intermediário entre a monarquia e a República a ser construído pela
intervenção do Parlamento.
Quando cotejada com suas fontes, a leitura que Joaquim Nabuco criou em Um
estadista para as revoluções ocorridas na história do Império revela-se uma (re)criação de
proposições originalmente díspares, que tiveram seus argumentos desmembrados e
habilidosamente, algumas vezes, ”conciliados”, outras vezes problematizados, outras,
recusados. Tal interpretação, inscrita num texto que assumiria o estatuto de conhecimento,
projetou as revoluções como uma prática política irremediavelmente signatária da república
girondina (ou jacobina) e da democracia como sinônimo de anarquia, desordem e
inexperiência, procedimento efetivado sob o domínio das mais primitivas leis da natureza e,
portanto, sob o império dos instintos, exceção feita à Praieira, na qual Nabuco considera,
além destas razões, ter havido abusos cometidos por potentados locais, verdadeiros
senhores feudais que dominavam Pernambuco. Afinado com intérpretes profundamente
críticos da revolução a exemplo de George Sand, Taine e Renan - e, possivelmente, com
estudiosos da psicologia das massas que escreveram no final do século XIX, Nabuco viu
A sintonia com os objetivos da revolução americana é fundamental na concepção de Ottoni, assim como
fora também para Timandro. Mas, ensaiando uma leve autocrítica sobre sua atuação no 7 de abril e em 1842,
seu texto associa alguns traços da argumentação contra-revolucionária de Rocha.
Em estadia de um ano na Europa (1873-1874), Nabuco teve a oportunidade de conhecer pessoalmente
George Sand, Renan e Taine. Em sua autobiografia, comenta ter sido este o momento em que se decidiu
definitivamente pela monarquia. J. Nabuco, Minha formação, caps. 6 e 7; L. Viana Filho, A vida de Joaquim
Nabuco. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, cap. IV - A viagem romântica, pp. 47-60. O texto
também sugere conhecimento dos debates sobre os comportamentos das massas, que seriam divulgados, no
momento em que Nabuco escreve Um estadista, nos livros de Gustave Le Bon (La psycologie des foules,
1895) e Gabriel Tarde (Essais e mélanges, 1895). A importância dos acontecimentos da Comuna na definição
das concepções contra-revolucionárias de Taine, Renan e Sand, assim como os argumentos desqualificadores
incorporados pelos estudiosos da psicologia das multidões, é apresentada por Dominique Cochart, “As
multidões e a Comuna. Análise dos primeiros escritores sobre a psicologia das multidões”, Revista Brasileira
de História, 10,20,mar.-ago., 1990, pp. 13-128. Sobre o percurso da revolução, de tema da política a objeto da
as revoluções como fenômenos típicos da adolescência do país e como um testemunho da
imaturidade de uma nação não constituída. Assim, nela ainda imperavam relações feudais,
herança da escravidão, traço denotativo de seu descompasso com os regimes europeus já
integrados à civilização, cujo exemplo maior era a monarquia constitucional inglesa. Tais
revoluções poderiam ter sido evitadas se a nação, superando as práticas fundadas nos
instintos, tivesse sido conduzida, todo o tempo, por estadistas sábios e experientes, a
exemplo do imperador Pedro I e daqueles que haviarri atuado no Primeiro e Segundo
reinados: Caxias, Honório Hermeto, Eusébio de Queirós, o visconde do Rio Branco ou
mesmo o senador e cpnselheiro Nabuco de Araújo. Apenas estadistas deste porte poderiam
contornar as revoluções, que evidenciavam os erros inevitáveis às sociedades inexperientes
e ainda presididas pelo impulso mecânico das ações e reações inscritas na natureza. Quando
retomamos os textos utilizados como fontes por Nabuco, percebemos que as imagens e
concepções sobre a Revolução Liberal, a monarquia constitucional e a sociedade
monárquica projetadas por Um estadista resguardam vestígios e conciliam entendimentos,
mas também ocultam outras leituras dissonantes feitas no passado. Na verdade, elas
denotam mais um momento da polêmica e movimentada história da revolução no Império,
aquele em que se construiu a mais severa e restritiva versão da Revolução Liberal, que
ocultou qualquer vínculo dessa revolução com a experiência americana, pois nela
imperaram as mais desencantadas versões francesas e inglesas sobre a revolução.
ciência, ver M. Stella M. Brésciani, “Da perplexidade política à certeza científica: Uma história em quatro
atos”, Revista Brasileira de História, 12, 23-24, set., 1991-ago., 1992, pp. 31-54; e Carlyle, ”A Revolução
Francesa e o engendramento dos tempos modernos”, Revista brasileira de História, 10, 20, mar.- dez., 1990,
pp. 101-12.
Hannah Arendt constata a hegemonia da concepção de revolução relacionada à Revolução Francesa, mesmo
na América: “Foi a Revolução Francesa, e não a Americana, que ateou fogo ao mundo, e foi,
conseqüentemente, do curso da Revolução Francesa, e não o desenrolar dos acontecimentos na América, ou
dos atos dos ‘Pais Fundadores’ que oatual uso da palavra revolução recebeu suas conotações e matizes em
todos os lugares,inclusive nos Estados Unidos”. H. Arendt, op. cit., p. 44.
Além dos entendimentos divergentes sobre a nação e a revolução, os textos também
conceberam de forma diversa a singularidade do Brasil diante das nações européias. Em
Armitage (l 836), a singularidade advém do fato de o país estar atravessando, com a
revolução, um momento de passagem entre a barbárie e a civilização, no qual se deparava
com problemas e vantagens advindos do passado colonial. Por um lado, colocavam-se os
empecilhos representados pela ausência de sociabilidade, a ignorância, a violência e a
presença da escravidão. Por outro, havia traços específicos da formação social que
favoreciam a incorporação mais rápida do progresso: a ausência de uma nobreza laica e
eclesiástica tradicionalmente estabelecida e poderosa e a participação política mais ampla
das camadas proprietárias. Por isso, os obstáculos vinham sendo gradativamente vencidos
pela elite política, que naquele momento já estava acompanhando - apesar da escravidão -,
quase compassadamente, o curso da história palmilhado pela Europa. Em Timandro (1849),
as revoluções presenciadas desde a Independência eram um testemunho da afinidade com o
tempo do progresso e da civilização, e a singularidade se expressa justamente no fato de o
país partilhar de uma condição americana, considerada - apesar da sobrevivência da
escravidão - uma vantagem em relação à Europa. Desta maneira, a nação não carregava
nem a inconveniente herança do Antigo Regime - os direitos da realeza, os privilégios da
nobreza e “o fanatismo, o gênio da servidão” - nem as decorrências indesejáveis do
progresso em curso em algumas nações européias: ”o embrutecimento e degradação das
classes industriais”. Daí resultaria o preparo para a concretização da mais alvissareira das
revoluções.
Em Rocha (1855), instaura-se significativa inversão na leitura tanto da revolução -
vista como desordem e anarquia - quanto da singularidade da nação - entendida como
descompasso em relação à Europa, de difícil, mas possível, superação naquele momento.
Assim, o traço que a singulariza é o fato de o país ainda permanecer num estágio primitivo
da evolução das sociedades, no qual a política se encontrava à mercê do princípio instintivo
de ação/reação e, por isso, tornava-se presa fácil das revoluções ou do despotismo. Esse
estágio poderia, entretanto, ser superado em circunstâncias precisas, mediante a atuação dos
estadistas, homens que partilhavam de um tempo signatário da razão e do progresso,
nivelado com as sociedades civilizadas. Sua competente e segura interferência na história
poderia ser capaz de romper o ciclo de ação/reação e atingir, não obstante a presença das
práticas escravistas, o estágio superior da transação.
Em Ottoni (1860), tem-se uma combinação de seus antecessores Armitage,
Timandro e Rocha. Por um lado, a reiteração do descompasso do conjunto da sociedade em
relação aos povos que haviam superado a barbárie, especificamente os Estados Unidos,
resquício dos prejuízos do legado colonial: a subordinação ao princípio de ação/reação, o
despotismo e a escravidão. Por outro, a certeza da identidade americana e, com ela, a
esperança de superação desse descompasso justamente pela reedição da Revolução Liberal)
moderada - já tentada na Regência com o Ato Adicional -, regeneradora da monarquia
parlamentar. Ottoni anota a emergência de um povo acomodado na ignorância, sem opinião
e moralidade, despreparado para a vivência republicana e impedido de atingir a maturidade,
devido ao descaminho da revolução e do sistema parlamentar. Mas também reconhece que
tais problemas poderiam ser superados pela conciliação de políticos responsáveis engajados
na tarefa de instaurar uma verdadeira monarquia constitucional, da qual fossem banidos o
poder moderador, o Conselho de Estado e o Senado vitalício.
Em Nabuco (1896), retomando Rocha de forma privilegiada, se bem que não
idêntica, trata-se de uma ”conciliação” autoritária com os liberais históricos, no sentido
pleno em que aquela “conciliação” havia sido praticada no Império. Ou seja, “poupando os
submissos” - submetendo Armitage e Ottoni, várias vezes lembrados - e “debelando os
soberbos” Timandro, Melo Morais e Abreu e Lima. No tratamento deste tema, só foi dado
a estes o direito de figurar numa única nota de rodapé. Assim, fundando seu relato
basicamente em fontes conservadoras devidamente arranjadas - os escritos do pai, o
depoimento de Penedo e as publicações do visconde de Goiana e de Justiniano José da
Rocha -, Nabuco construiu a mais severa e desencantada das versões sobre a Revolução
Liberal, tornando-a um “turbilhão popular”, exteriorização dos instintos e ressentimentos,
tão-somente anarquia. Representando-a com imagens da Roma antiga e da Europa feudal,
inscreveu-a na infância e adolescência das civilizações. Desta forma, a singularidade da
nação diante dos estados europeus civilizados - modelarmente reconhecidos na Inglaterra -
transfigurou-se em despreparo e imaturidade intrínsecos a uma nação criança, cuja
superação dependeria, além da intervenção dos estadistas, da lenta evolução de um natural
tempo orgânico. Nesta leitura, não há salvação possível para as revoluções liberais
espelhadas nos Estados Unidos ou nas rebeldias européias de 1830 e1848.
A concepção de Nabuco sobre a singularidade da nação instrumentou a história para
configurar o argumento que explicou seu descompasso em relação à Europa. Desta maneira,
a sociedade monárquica teria, no século XIX, práticas e instituições signatárias da barbárie,
inscritas no passado dos povos: o feudalismo, a servidão e a escravidão. Este pressuposto,
sistematizado na expressão feudalismo, latifundia, servidão, escravidão, foi essencial a
Nabuco para atrelar a história do Império única e exclusivamente à experiência européia.
Isso porque o historiador tinha também um mdisfarçável desprezo pela política americana,
atividade ali abandonada - devido à preocupação essencial dos homens de bem em ganhar
dinheiro - a indivíduos corruptos e pouco preparados para exercê-la, antevê esta opinião
pelo menos até o momento em que redigiu Minha formação, texto no qual deixou egistradas
as razões de sua paixão pela Inglaterra e suas objeções à política americana.
Entretanto, o argumento utilizado para estabelecer vínculos entre o Brasil e a Europa
não era inédito. Investigando suas origens e usos no Brasil, verifica-se que ele vinha
Nabuco também ignorou, desta vez completamente, o outro Timandro, João Francisco Lisboa, o Tímon, do
Maranhão, jornalista e historiador analisado por M. L. janotti, João Francisco Lisboa, historiador.
“Aquilo de que não havia ainda exemplo nas monarquias modernas, a criadagem da casa do rei ultrajar
impunemente aos depositários do governo da nação, estava reservado a esta triste época.” Essa reverberação
de Timandro (vide p. 152 nota), ainda sob a impressão da época, aplica-se a uma frase do deputado Jobim,
médico do Paço: “Apresentei-me no palácio de São Cristóvão, abri o reposteiro, encontrei um grupo,
cumprimentei-o e dirigi-me para diante. O grupo era o ministério”. Idem, op. cit., op. 67. Por sua vez, o
republicano Melo Morais e o “socialista” Abreu e Lima foram lembrados em duas notas de rodapé nas pp. 17
e 22. Da obra de Morais, A Independência, Nabuco incorpora a informação de qje o “ato violento” de Pedro I,
do qual resultaram a dissolução da Constituinte e a expulsão dos Andradas, fora o responsável pelos dez ou 12
anos de tranqüilidade que se seguiram. E do Compêndio de história do Brasil e da Synopsis, obras que
recrimina porque ”Os livros não têm valor histórico, contendo escandalosas apropriações da obra de
Armitage”. Nabuco reproduz o relato do General das Massas, um dos réus da revolução condenada, sobre as
cenas de barbárie ocorridas na Setembrizada, rebelião da tropa de linha ocorrida em Recife em 1831, sobre a
qual Abreu e Lima registrara depoimentos de contemporâneos.
J. Nabuco, Minha formação, p. 130.
fundamentando, durante o século XIX, textos e projetos de matiz, liberal-reformista e
autoritário, proponentes de reformas pacíficas ou revoluções sociais substitutivas de
revoluções políticas, questionadoras dos mecanismos restritivos da monarquia. Percebese
que Nabuco retomou e (re)criou esse argumento, sobretudo, para explicar e avaliar uma
experiência de revolução republicana e jacobina que tornou exemplar: a Praieira. Quais
seriam as possíveis razões da manipulação das fontes e da recorrência ao argumento
conservador para estabelecer o mais restritivo dos julgamentos sobre a revolta da Praia? Até
aqui apontamos os motivos mais evidentes do entendimento da Praieira projetado por
Nabuco em Um estadista: condenar o jacobinismo e reiterar o veredicto do pai sobre os
rebeldes. Mas, se atentarmos para as mediações entre os procedimentos do político e os do
historiador, talvez possamos vislumbrar outros. Ao identificar as revoluções jacobinas com
a menoridade do Império e valorizar as revoluções sociais pacíficas implementadas, pela
via parlamentar, pelos grandes estadistas, Nabuco não apenas flagrou o descompasso da
história do país com a da Europa, mas também, substituindo a Independência e o 7 de abril,
tornou a Abolição da escravidão o grande marco sinalizador do início da maioridade da
nação. Ou seja, exercitando plenamente pressupostos e métodos do princípio da
“conciliação”, num mesrno movimento, submeteu depoimentos díspares, debelou
testemunhos rebeldes, ngendrou a “verdadeira” revolução, sepultou no “altar do
esquecimento” circunstâncias que poderiam conferir outras origens, identidades e percursos
à nação e, principalmente, imperou sobre a memória desta.
USOS (DIREITO E/OU DEVER) DE MEMÓRIA
Capítulo 9
[...] Não seria antes forçoso admitir que toda definição, toda tentativa
de fixar a essência do político entrava o livre movimento do pensar e
que este, ao contrário, só se sustenta com a condição de não prejulgar
os limites do político, de consentir numa exploração cujos caminhos
não são de antemão conhecidos? [...]
CLAUDE LEFORT
PIERRE ANSART
Refiro-me especificamente ao edifício no qual está sediado o Museu Paulista. A denominação “Monumento
do Ipiranga” tem sido usada, atualmente, para designar o conjunto arquitetônico projetado por Ettore
Ximenes, erguido na década de 1920 para celebrar o centenário da Independência.
Sobre a dimensão urbanística e arquitetônica do edifício, há interessantes considerações em Às margens do
Ipiranga, 1890/1990, Catalogo da exposição do centenário do edifício do Museu Paulista da Universidade de
São Paulo. São Paulo: Museu Paulista-USP, 1990. Consultar também a descrição do monumento feita por
Alfredo Moreira Pinto, A cidade de São Paulo em 1900. Impressões de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1900.
saber sobre a nação, servindo como “meio de instrução para o povo” e de “exploração
cientifica para o Estado”.
Ao longo, principalmente, das três primeiras décadas do século XX, consolidaram-
se os liames entre o monumento-museu e a memória da Independência. O lugar escolhido
para demarcar a origem do Brasil nação e o lugar destinado à ciência transformaram-se,
também, no palco para a realização de festividades cívicas que reavivavam e até hoje
atualizam representações sobre o passado.
Mas a definitiva conformação da imagem de memorial deu-se durante a gestão de
Afonso d’Escragnolle Taunay, que passou a dirigir o Museu Paulista em 1917. Valendo-se
do apoio político e financeiro de autoridades e empresários, este engenheiro e historiador
imprimiu novos rumos à instituição e aos acervos, tendo em vista a abertura de um “museu
histórico” na cidade, o que, a seu ver, faria justiça ao ”local glorioso” em que se
achava.Quando do centenário da Independência, em 1922, Taunay empreendeu uma de
suas principais obras: a decoração interna do edifício, preservada até hoje.
Os políticos que projetaram o monumento, os que dele se serviram para criar o
Museu Paulista e ainda outras fontes daquela época foram unânimes em afirmar que a
razão da existência do majestoso palácio sempre foi comemorar a data de 7 de setembro de
1822. E que a apropriação do edifício para a organização de um museu de história natural e,
posteriormente, de um museu de história revigorava esse sentido original. No entanto, como
lembrou Claude Lefort, na sociedade moderna a recriação do passado faz-se enquanto
representação mediatizada pela historicidade do momento em que foi elaborada. Ou seja, a
cada vez que os mortos são ressuscitados, celebram-se aparentemente os mesmos fatos e
personagens, mas revestidos de sentidos particulares e inconciliáveis. A associação que
Alfredo Moreira Pinto, op. cit., p. 85. Sobre o caráter e significado dos museus de história natural no Brasil
do século XIX, ver Maria Margareth Lopes, As ciências naturais e os museus no Brasil do século XIX. São
Paulo: Hucitec, 1997; e Ana Maria de Alencar Alves, Um museu científico na história de São Paulo: o Museu
do Ipiranga. Dissertação de mestrado, USP. São Paulo, 1998.
Sobre a trajetória desse historiador, ver Míriam Ellis e Rosemarie Erika Horch, Affbnso d’Escragnolle
Taunay no centenário do seu nascimento: 11 de julho de 1876/20 de março de1958. São Paulo: Secretaria de
Estado da Cultura, Ciência e Tecnologia, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1977; Odilon
Nogueira de Matos, Affonso de Taunay, historiador de São Paulo e do Brasil: perfil biográfico e ensaio
bibliográfico. São Paulo: Museu Paulista, Universidade de São Paulo, 1977; Maria José Elias, Museu Paulista:
memória e história. Tese de doutoramento, USP. São Paulo, 1996; e Ana Claudia Fonseca Brefe, Um lugar de
memória para a nação. O Museu Paulista reinventado por Affonso d’Escragnolle Taunay. Tese de
doutoramento, UNICAMP. Campinas, 1999.
Relatório administrativo do Museu Paulista referente ao ano de 1922 apresentado por Affonso d’Escragnolle
Taunay, a 23 de janeiro de 1923, aAlarico Silveira, secretário do Interior. Serviço de Documentação Textual e
Iconográfica, MP-USP, p. 4.
Descrição detalhada da decoração interna do edifício pode ser encontrada em Afonso d Escragnolle Taunay,
Guia da seção histórica do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1937, pp. 52 e ss.
Reriro-me, especialmente, às interpretações veiculadas pelos jornais O Estado de S. Paulo e Diário Popular,
nos dias 7 e 8 de setembro de 1895, por ocasião da inauguração oficialdo Museu Paulista. Serviço de
Documentação Textual e Iconográfica, MP-USP. Além disso, quase todos os memorialistas da cidade de São
Paulo cuidaram de propalar a associação entre o edifício, o museu e o lugar originário da Independência e da
nacionalidade brasileiras. Ver, por exemplo, Jorge Americano, São Paulo, naquele tempo, 1885-1915São
Paulo: Saraiva, 1957.
Claude Lefort, As formas da história (trad. M. Chaui e L. R. S. Fortes). São Paulo: Brasiliense, 1979,
especialmente pp. 211 e ss.
Joaquim Ignácio de Ramalho, presidente da comissão de construção do monumento,
estabeleceu entre Independência e fundação do Império não estava, certamente, nos
horizontes dos republicanos jacobinos que se apropriaram do monumento para transformá-
lo no Museu Paulista, espaço no qual a estátua de Marienne ooabitava com coleções de
ciências naturais e história-pátria. Por outro lado, a congregação de escolares reunidos, em
1912, em torno do monumento museu para celebrar os 90 anos de emancipação, que o
primeiro diretor, Von Ihering, fez questão de enfatizar em seus registros, pouco tinha a ver
com as práticas e concepções expressas por Taunay na “fantasipagórica” decoração do
prédio, que significou, entre outros procedimentos, a definitiva substituição, no nicho da
escadaria principal, da estátua de gesso de Marienne pela imponente escultura de dom
Pedro I, de bronze. Isto não quer dizer que não houvesse o enraizamento de tradições
celebrativas, herdadas do século XIX e reinventadas nas primeiras décadas do século XX.
Tampouco coloco em dúvida a presença de fundamentos políticos e historiográficos
comuns às recriações da Independência, das quais o monumento foi palco, por exemplo, nas
celebrações de 1912 e depois de 1922.
Mas quais seriam os desígnios dos políticos do Império que nas décadas de 1870 e
1880 decidiram construir em São Paulo um monumento à Independência? Que memória
histórica pretendiam projetar e quais seriam seus fundamentos?
O majestoso edifíco erquido no Ipiranga a partir de 1885 talvez tenha sido o mais
polêmico, mas não foi o único minumento à Independencia construído no século XIX. Do
ponto de vista da conformação da memória sobre a data de 7 de setembro, as décadas de
1860 e 1870 foram marcadas pela exteriorização de projetos, formulados, particularmente,
por gabinetes e políticos conservadores, concernentes à transposição da narrativa histórica e
das tradições orais para outros suportes, dotados de tangibilidade e, por isso mesmo,
interpretados como recursos capazes de resguardar o episódio e alguns de seus
protagonistas do desgaste provocado pelo tempo e pelos conflitos políticos. Como observou
Fernando Catroga, políticos de variados matizes, em Portugal nessa mesma época, estavam
empenhados na instauração de cultos cívicos a heróis nacionais, pois viam nos
monumentos, nos túmulos e nos rituais celebrativos modos de gerir a memória e impedir
que o “esquecimento” semeasse a “morte dos imortais”.
Data de 1862 a inauguração da estátua eqüestre de dom Pedro I, na Praça da
Constituição, e de 1872 a inauguração da escultura em homenagem a José Bonifácio, no
Largo de São Francisco, ambas no Rio de Janeiro. Curiosamente, nessa mesma época
Sobre o tema, consultar Suely Robles Reis de Queiroz, Os radicais da República. São Paulo: Brasiliense,
1986.
Utilizo a expressão inspirando-me em Claude Lefort quando observa que, no movimento recorrente e
contraditório de revivificação do passado pelo presente, homens e acontecimentos se transformam em
“sombras sem corpos”, reatualizando-se na dimensão imaginária da sociedade moderna a inversão que preside
as relações sociais, em que as pessoas aparecem como coisas e objetos inanimados ganham vida própria.
Claude Lefort, op. cit., pp. 230 e ss.
“Fernando Catroga, O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos. Coimbra: Minerva,
1999, p. 323.
Sobre a estátua eqüestre em homenagem a dom Pedro I, consultar Stanislaw Herstal, D. Pedro: estudo
iconográfico. Lisboa: Casa de Moeda de Lisboa; São Paulo: MEC, 1972, vol. l, pp. 218-68; Iara Lis S.
Carvalho Souza, A pátria coroada. São Paulo: UNESP, 1999. Sobre a escultura de José Bonifácio, ver José
vieram a público os relatos do coronel Marcondes e do tenente Canto e Melo, testemunhas
oculares do “brado do Ipiranga” que reproduziram, com pouquíssimas alterações, o
depoimento do padre Belquior, divulgado em 1826, peça-chave na delimitação espacial e
temporal do ato que teria fundado a nova nacionalidade. E foi também nessa ocasião que
ganhou ressonância a proposta de se construir um monumento “paulista” à Independência.
Jacintho Ribeiro, Cronologia paulista ou relação histórica dos fatos mais importantes ocorridos em São Paulo,
desde Marfim Afonso de Souza até 1898. São Paulo: Tip. do Diário Oficial, 1901, vol. 2, pp. 446-47.
Os três relatos mencionados foram reproduzidos por Francisco de Assis Cintra, D. Pedro I e o grito da
Independência. São Paulo: Melhoramentos, 1931. Importantes considerações a respeito, especificamente, do
movimento de construção da data nacional de 7 de setembro podem ser encontradas em Maria de Lourdes
Vianna Lyra, “Memória da Independência: marcos e representações simbólicas”, Revista Brasileira de
História. São Paulo, ANPUH, Contexto, nº 29, 1995, pp. 173-206.
Relatório apresentado pelo conselheiro Joaquim Ignácio de Ramalho a 7 de setembro de 1885. Serviço de
Documentação Textual e Iconográfica, MP-USP, Coleção Barão de Ramalho, pp. 5-11.
Op. cit., p. 5.
o Brasil já não era colônia Portuguesa”. E assinalou que do “facto glorioso nasceo a idéia
d’um Monumento na collina do Ypiranga”.
Transcorrido tanto tempo, a fala de Ramalho resguardava, do movimento de lutas
políticas da década de 1820 e dos inúmeros e contraditórios significados atribuídos à
Independência durante o século XIX, um episódio reificado e “naturalizado”, produzido por
protagonistas metamorfoseados em personagens de uma cena dramática. Tratava-se de uma
data, um fragmento, retirados do imenso quadro de eventos que se supunha ser a história,
mas aos quais se atribuíam o caráter de divisor de águas e o poder de instaurar a nação e a
nacionalidade.
O peso desses enunciados no delineamento da associação entre Independência e um
“fato” delimitado no tempo e no espaço pode ser mais bem avaliado quando se levam em
conta duas circunstâncias. Em primeiro lugar, registros textuais e iconográficos fazem
supor que, especificamente em São Paulo, festividades destinadas à rememoração do 7 de
setembro foram realizadas na colina do Ipiranga antes da construção do monumento. E,
segundo Azevedo Marques, cronista da província, houve ocasiões em que os festejos
reuniram “numeroso concurso de povo”, como em 1825, quando se deu a colocação de
marco de pedra para sinalizar o lugar da proclamação de 1822.
Em segundo lugar, no entanto, é preciso considerar que o dia 7 de setembro somente
foi relacionado entre as datas nacionais a partir de 1826 e que, ao longo do Império, outras,
datas se equiparavam a esta ou mesmo superavam sua importância, a exemplo das
comemorações do juramento à Constituição de 1824 e da coroação de dom Pedro II. Ao
lado disso, por vezes, e dependendo de condicionamentos políticos, era nesse dia que se
procedia a eleições provinciais e gerais. Mas, mesmo quando são considerados os
momentos em que a Independência foi rememorada de modo mais pomposo, como ocorreu
em 1862, as festividades tiveram lugar na Corte e não em setembro, mas em março, uma
vez que o gabinete conservador, naquela ocasião, procurou articular, em torno da
inauguração da famosa estátua eqüestre de dom Pedro I, dois episódios: o “grito” do
Ipiranga e a Constituição do Império.
Nesse sentido, o monumento erguido no Ipiranga reveste-se de feições muito
singulares. Idealizado por políticos conservadores na década de 1880, foi imaginado por
Op. cit., pp. 6-12. Certamente Ramalho se fundamentou nos relatos das testemunhas oculares do “grito”,
como o padre Belquior, o coronel Marcondes e o tenente Canto e Melo. Mas, na recriação que elaborou,
provavelmente se fundamentou também na produção literária e histórica local, especialmente a que se forjou
na Academia de Direito da qual era professor. Ver Ana Luiza Martins e Heloísa Barbuy, Arcadas. História da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, 1827/1997. São Paulo: BM&F, Alternativa, 1998.
Sobre essa concepção de “fato histórico” e suas implicações na produção de um saber sobre a história, são
fundamentais as reflexões de Lucien Febvre, especialmente na obra Combats pour l’histoire, 2ªed. Paris:
Armand Colin, 1965.
Ver Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e
noticiosos da província de São Paulo até o ano de 1876. São Paulo: EDUSP, Itatiaia, 1980, vol. l, verbete
“Ipiranga”; Maria de Lourdes Vianna Lyra, op. cit. Em termos iconográficos, cabe lembrar a aquarela
produzida por Miguelzinho Dutra em 1847, registrando a passagem de dom Pedro II pelo Ipiranga um ano
antes. Acervo MP-USP.
Uma das principais referências às ligações entre o projeto de um monumento no Ipiranga e a atuação de
políticos do Partido Conservador, tanto na província de São Paulo quanto na Corte, está na coincidência entre
o encaminhamento das obras e os momentos em que gabinetes e presidentes de província conservadores estão
no poder, e omo ocorreu entre 1885 e 1888. Ver Paula Beiguelman, Formação política do Brasil. São Paulo:
eles como local destinado a comemorações e como “lugar de memória”, na acepção que
Pierre Nora atribuiu a essa expressão. Como sugerem os Relatórios produzidos pelo
conselheiro Ramalho, ele e seus companheiros nessa empreitada partilhavam propostas
muito claras no sentido de criar um marco definitivo e imorredouro do lugar da
proclamação, transformando-o em espaço celebrativo do episódio e da fundação do
Império.
[...] Ainda em 1876, um Monumento na Collina do Ypiranga não passava d’uma idéia
patriótica, mas irrealizavel por falta dos fundos necessários; e hoje é um vasto edifício em
construcção que, do alto da collina, a todos convence de que a despeito das contrariedades
dos homens e da acção destruidora do tempo, o lugar em que o fundador do Império
proclamou a liberdade da pátria [...] já está e ficará perpetuamente assignalado [...]
Pierre Nora sugere que os “lugares de memória” são erguidos quando aquilo que
procuram defender se encontra ameaçado, e particularmente a narrativa de Ramalho vai ao
encontro dessa percepção, pois, caso o monumento não fosse bem-sucedido, era uma
determinada memória da história da nação que, a seu ver, correria o risco de ser olvidada
para sempre. Mas de qual memória se tratava? Qual o significado da valorização, pelos
conservadores, do 7 de setembro como marco instituidor da nação?
Penso que considerações de Eric Hobsbawm podem auxiliar no encaminhamento
dessas questões, pois a construção do monumento poderia ser interpretada como momento
específico do percurso histórico da “invenção de tradições” a partir do lugar do exercício do
poder político.
Em suas reflexões, Hobsbawm acentua que as tradições inventadas fazem parte dos
processos de ritualização e formalização de práticas políticas na sociedade moderna,
estabelecendo relações entre essas manifestações de caráter prescritivo e momentos
históricos marcados por profundas transformações do ponto de vista das relações de poder e
das relações sociais. Além disso, ressalta que, a despeito de as tradições inventadas se
fundamentarem numa releitura de fragmentos culturais de longa duração, presentes na
sociedade anteriormente à sua emergência, seu investimento direcionou-se
predominantemente para símbolos, festejos, celebrações e suportes textuais que dessem
visibilidade à nação. Considera, igualmente, que, se a configuração de rituais e simbolismos
inventados pelas sociedades européias, particularmente na segunda metade do século XIX,
teve repercussão limitada no âmbito da vida privada das pessoas, exerceu peso decisivo na
vida pública dos cidadãos, revestindo de forte carga emotiva os sinais emblemáticos da
Pioneira,1967, vol. l; e Eugênio Egas, Galeria dos presidentes de São Paulo, 1822/1889. São Paulo: Imprensa
Oficial, 1926, vol. I
A expressão “lugar de memória” foi formulada por Pierre Nora na apresentação da coletânea Les lieux des
mémoires. Paris: Gallimard, 1984, vol. l, pp. VTI-XLII. Ver também os relatórios elaborados pelo conselheiro
Ramalho, presidente da comissão encarregada das obras do Monumento do Ipiranga, para prestar contas à
comissão e ao público do empreendimento (1885-1889). Serviço de Documentação Textual e Iconográfica,
MPUSP, Coleção Barão de Ramalho.
Relatório do presidente da comissão do Monumento do Ypiranga, lido na sessão de 7 de setembro de 1886.
São Paulo: Typografia King, 1886, p. 3. Serviço de Documentação Textual e Iconográfica, MP-USP.
Eric Hobsbawm, ”Introdução: a invenção das tradições”, in Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.), A
invenção das tradições (trad. Celina C. Cavalcanti). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
identidade e soberania nacionais, como bandeiras e hinos, por exemplo. E, questão que
interpreto como essencial na argumentação do historiador, as tradições inventadas recriaram
e transformaram a história da nação, instituindo saberes e memória a partir dos quais se
selecionaram, institucionalizaram-se e propagaram-se rituais, práticas e representações que
conformaram a constituição “subjetiva” da nacionalidade.
É possível aliar as formulações depor David Cannadine a respeito da proliferação de
estátuas comemtihitivas e monumentos, na Europa e nos Estados Unidos, entre os fins do
século XIX e início do XX.
O autor observou que não foram apenas os governos monárquicos europeus,
especialmente o inglês, que recorreram a construções majestosas, representativas do
“prestígio nacional” e da instituição da realeza. Enquanto, na Inglaterra, monumentos
urbanos passaram a configurar o cenário para cerimoniais pomposos e sofisticados, nos
Estados Unidos aperfeiçoaram-se os rituais relativos à Casa Branca, e a própria residência
presidencial foi ampliada, ganhando dimensões e requintes até então desconhecidos.
Ademais, Cannadine chama atenção para o fato de que os monuã mentos e os rituais
recriados em torno deles foram instrumentos ticos usados para compor novas imagens sobre
o governo e a nação, dicando o enorme apelo popular desses procedimentos que envolviam
também, a recuperação e transformação do calendário de datas nacionais. A respeito dessa
questão em particular, Christian Amalvi debruçou-se sobre as complexas circunstâncias
político-partidárias e simbólicas das quais resultou a definição, em 1880, do dia 14 de julho
como principal data nacional da França. Além da reconstituição dos enfrentamentos em
torno de como e o que celebrar, Amalvi levanta questionamentos que podem subsidiar
reflexões sobre a especificidade do Monumento do Ipiranga como lugar de celebração e de
reatf|lização da monarquia e da memória histórica.
Resguardando-se a singularidade política do Império na década de 1880, o
Monumento do Ipiranga poderia ser interpretado como a pressão mais visível de
procedimentos adotados por políticos conservadores e por dom Pedro II na direção de
deslocar o marco celebrativo do Império. Na França, como observou Amalvi, a Queda da
Bastilha e o 14 de julho, a despeito das controvérsias, configuraram-se como bolos capazes
de aplainar circunstancialmente as profundas divergências que antagonizavam os
republicanos em seu próprio campo. No caso do Império, a valorização da data de 7 de
setembro poderia ser interpretada de modo semelhante, mas no âmbito dos monarquistas.
Diante do questionamento do poder moderador e dos pressupostos político-jurídicos que
fundamentavam o governo monárquico, as datas de 25 de março e 7 de abril eram alvos de
polêmicas e antagonismos, amplamenteexplorados por liberais e republicanos. Além do
mais, o monumento poderia externar a configuração de imagens renovadas e atualizadas da
monarquia, em momento assinalado por severas críticas ao desempenho do monarca e do
regime.
Idem, op. cit., pp. 9-23.
David Cannadine, “Contexto, execução e significado do ritual: a monarquia britânica e a ‘invenção da
tradição’, c. 1820/1977”, in Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.), op. cit., pp. 111-71. Sobre as relações
entre política, definição de espaços urbanos, práticas cívicas e monumentos comemorativos de episódios e
heróis nacionais, ver Maurice Agulhon, Histoire vagabunde. Paris: Gallimard, 1988, vol. l, pp. 101-85.
Consultar também a já citada obra de Fernando Catroga.
Christian Amalvi, “Le 14 - juillet. Du dies irae à jour de fete”, in Pierre Nora (dir.), Les lieux des mémoires,
op. cit., pp. 421-72.
O estilo adotado na construção, a disposição interna das salas, os nichos delineados
propositadamente pelo arquiteto e engenheiro tornmazzo Bezzi, a acústica que possibilita
alta fidelidade dos sons, assim como o esboço de uma decoração interna que não chegou a
ser executada naquela ocasião, conduzem à percepção de que o espaço do monumento fora
projetado para ser lugar de celebrações, envolvendo discursos, música e hinos. Ou seja,
enquanto os opositores da obra - entre os quais se encontravam liberais, republicanos e
também conservadores - avivavam, na Corte, na Assembléia Provincial e na imprensa, as
discussões a respeito da ocupação “utilitária” do prédio, aventando hipóteses sobre se seria
mais coerente com o “progresso” de São Paulo alocar ali um instituto científico de
educação popular, uma universidade ou um museu, seus idealizadores não se desviaram do
percurso traçado originalmente: a construção de um memorial.
E para complementar o espaço simbólico ensejado pelo prédio, a ele foi
acrescentado o painel Independência ou morte. Elaborada em Florença por Pedro Américo
de Figueiredo e Mello, entre 1886 e 1888, a tela constitui, sem sombra de dúvida, a
representação iconográfica mais divulgada do episódio de 7 de setembro de 1822.
Apropriada, de forma sistemática, para ilustrar manuais escolares e obras de cunho histórico
e historiográfico, encontra-se estampada em selos, moedas, medalhas comemorativas,
cartões-postais, porcelanas, propagandas e em inúmeros outros suportes, além de ter servido
de inspiração para caricatufas e Produções cinematográficas.
Durante o século XIX, diversos artistas, por meio de pinturas e gravuras,
procuraram retratar o episódio e seu protagonista. No entanto, foi a criação de Pedro
Américo, talvez por força de sua difusão sob diferentes formatos e nuanças, a que mais
profundamente se enraizou no imaginário, tornando-se parte integrante de nossas heranças
culturais, tanto quanto o episódio que procurou perpetuar.
Além disso, universalizou-se e ainda encontra respaldo o entendimento de que
representação e “fato representado” estariam articulados por vínculos de distanciamento e
similaridade, como se o passado pudesse ser recuperado tal como foi. Mas o solo político
Sobre detalhes arquitetônicos e estilísticos do edifício, consultar José Sebastião Witter e Heloísa Barbuy
(orgs.), Museu Paulista, um monumento no Ipiranga. São Paulo: FIESP,1997. Especificamente sobre alta e
baixa fidelidade dos sons e sua importância na configuração da paisagem urbana, ver R. Murray Schafer, “O
mundo dos sons”, Correio da UNESCO, jan., 1977, pp. 4-8.
Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Óleo sobre tela, 7,60 m x4,15 m.
O Museu Paulista conserva muitas dessas peças, entre as quais se encontram, por exemplo, medalhas de
bronze dourado e alumínio, produzidas especialmente para o centenário da Independência, e uma salva de
prata, de origem portuguesa, datada de 1934. Referências às caricaturas podem ser encontradas na obra de
Álvaro Cotrim, Pedro Américo e a caricatura. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1983. Em relação ao cinema,
refiro-me especialmente a Independência ou morte, exibido em 1972. Estrelado.por Tarcísio Meira e Glória
Menezes, o filme foi produzido por Oswaldo Massaini e dirigido por Carlos Coimbra e desde 1990 se
encontra disponível em vídeo.
Refiro-me, particularmente, ao óleo sobre tela elaborado, em 1844, por François René Moreaux, que integra
o acervo do Museu Imperial de Petrópolis. Encontra-se reproduzido na obra de Staniskw Herstal, op. cit., p.
194. Na mesma obra (vol. l, pp. 198 e 200) podem ser encontradas, também, outras idealizações do “grito” de
7 de setembro, especialmente uma litografia anônima, provavelmente da década de 1860, na qual uma das
figuras centrais da cena é um índio, e uma xilogravura produzida por Harzal, na década de 1870, que, segundo
Herstal, teria se inspirado em um esboço de Pedro Américo.
Sobre a concepção “realista” do conhecimento, assim como sobre a crítica a essa concepção, ver Claude
Lefort, op. cit., pp. 256 e ss.; e Carlos Alberto Vesentini, A teia do fato. São Paulo: Hucitec, Programa de Pós-
Graduação em História Social da USP, 1997. A esse respeito, são instigantes, também, as reflexões de Ecléa
e cultural no qual se delineou essa percepção remete ao século XIX e aos procedimentos
que ensejaram a feitura do painel e definiram o lugar de sua pública e permanente
exposição: o Salão de Honra do Monumento do Ipiranga. Quando, a 7 de setembro de 1895,
ocorreu nesse espaço celebrativo a solene e festiva inauguração do Museu Paulista,
diferentes órgãos de imprensa da capital foram unânimes em registrar a presença do painel
e, também, em apontar a beleza e arrojo arquitetônico do monumento que conjugava, em
um único lugar, produção de saber científico e “recordação histórica”, consubstanciada na
imagem que a tela projetava e que já se configurava emblemática.
A sinonímia entre “fato”, lugar e imagem foi-se sedimentando à medida que, desde
os primeiros anos do século XX, o monumento-museu e seu entorno foram guindados à
condição privilegiada de palco para festividades cívicas. Mas a enorme visibilidade
alcançada pelo painel e a reiteração da prática de reproduzi-lo e banalizá-lo datam,
certamente, do centenário da Independência, momento em que, às múltiplas facetas
assumidas pelas comemorações aliaram-se a concepção e implementação da decoração
interna do edifício, o que veio consolidar, de modo quase inquestionável, a representação de
que a cena elaborada por Pedro Américo constituía um registro preciso do instante em que a
Independência foi proclamada.
Contraditoriamente, porém, o mesmo movimento que presidiu a incorporação da
imagem ao universo de circulação e consumo de bens culturais e simbólicos promoveu a
esgarçadura e o obscurecimento das condições particulares nas quais foi produzida.
Refiro-me, por um lado, ao jogo de bastidores que antecedeu a encomenda e envolveu
cuidadosa estratégia de Pedro Américo, pela imprensa e por meio de políticos da Corte, na
direção de pressionar a Comissão de Obras para que o acerto fosse sacramentado. E, por
ourro, ao fato de que, quanto mais a tela se tornou conhecida e familiar, mais
profundamente foram sombreadas as significações históricas e historiográficas de sua
emergência no âmbito da conformação da memória com a qual nos tem sido dada a
conhecer a Independência. E nesse sentido que adquire relevo a versão do pintor a respeito
da própria produção e do “fato histórico” que se propôs a representar, expressa no folheto O
brado do Ypiranga ou a proclamação da Independência do Brasil. Algumas palavras
acerca do facto histórico e do quadro que o commemora, impresso em Florença, em 1888.
Bosi sobre os “trabalhos da memória”, em Memória e sociedade. Lembranças de velhos, 1ª reimpr. São Paulo:
T. A. Queiroz, 1983.
Ver especialmente as edições de O Estado de S. Paulo e do Correio Paulistano do dia 8 de setembro de
1895, bem como a edição do Diário Popular de 9 de setembro do mesmo ano.
Por intermédio dos relatórios e da correspondência expedida e recebida por Afonso de Taunay, é possível
acompanhar os procedimentos e as propostas concernentes à decoração interna, ainda hoje preservada. Em
linhas gerais, o conjunto figurativo e escultórico, idealizado e executado entre as décadas de 1920 e 1930,
contempla três momentos da trajetória de formação do Brasil-nação: o descobrimento e a colonização; a
expansão e conquista do território pelos bandeirantes; e a Independência. Aliando os “destinos de São Paulo”
aos “destinos do Brasil”, Taunay atualizava práticas e concepções presentes, desde a segunda metade do
século XIX, nas falas de políticos paulistas de diferentes matizes, dando-lhes novas dimensões não apenas por
dotá-las de tangibilidade, mas por envolvê-las numa ambiência de forte cunho emocional, particularmente
exeqüível dadas a grandiosidade e a imponência do edifício transformado em museu. Ver, sobre o tema,
Afonso d’Escragnolle Taunay, op. cit.
Referência fundamental para o encaminhamento dessa questão é o trabalho de Walter Benjamin, “A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in Magia e técnica, arte e política (trad. S. P. Rouanet), 3ª ed.
São Paulo: Brasiliense, 1987, vol. l, pp. 165-96.
De fácil e prazerosa leitura, a narrativa de Pedro Américo instiga a reflexão não só
acerca da interpretação sobre a Independência que expôs como em relação às práticas de
investigação adotadas para realizar a transposição da “verdade” e de situações verossímeis,
contidas nos registros escritos e orais que compilou, em imagem capaz de aprisionar o olhar
e a sensibilidade do espectador.
A descrição do 7 de setembro elaborada pelo artista constitui, à primeira vista, a
reiteração quase literal das considerações que Joaquim Ignácio de Ramalho formulou acerca
do “fato” e que serviram de inspiração para a concepção do palácio-monumento, como já
foi observado.
No entanto, enquanto a narrativa formulada por Ramalho “despolitizou” o tema da
Independência no passado e no presente, opacificando os condicionamentos da construção
do monumento e daquilo que celebrava, Pedro Américo, mesmo reproduzindo uma
descrição formalizada, conferiu outra dimensão não só ao “facto” como à representação
verossímil que dele traçou. Se Ramalho aparentemente restringiu o sentido da proclamação
de 7 de setembro a uma oposição de caráter colonial, que evidenciou por meio de menção
às cortes em Lisboa, o artista construiu uma relação entre a particularidade do evento e a
dimensão universal da “onda da liberdade” que motivara o “espírito humano” a “quebrar a
cadêa de ferro com que jazia agrilhoado ao cepo do despotismo”. Ou seja, Pedro Américo
procurou recriar as circunstâncias mais abrangentes que davam significado ao episódio e
recuperou a luta entre “liberdade e tirania”, desencadeada pela Revolução Francesa, que,
“semelhante à vaga dos mares intertropicais, em sua vertiginosa carreira de continente em
continente e de sociedade em sociedade illuminava com sua grimpa de fogo as fragas e
escolhos que se opunham à sua passagem”.
Teria sido esse movimento impetuoso, que aliava a libertação dos povos da
“opressão e dos privilégios” ao perigo de total destruição representado por Napoleão, que
promovera a vinda do regente português ao Brasil, “onde já cruentas expiações haviam
sanctificado a terra destinada às grandes conquistas e posto em evidencia a hediondez das
represálias sanguinolentas exercidas contra o sacerdócio da liberdade”. A essa menção
sutil aos inconfidentes, Pedro Américo vinculou a forte presença de “sonoros echos” da
Revolução Francesa no Brasil. E, espelhando-se na metáfora das ondas do mar, compôs sua
narrativa como se as repercussões revolucionárias advindas da Europa explodissem nas
costas do Brasil, primeiro na forma da circulação de idéias, depois na da vinda da corte
portuguesa e, em uma terceira ocasião, por meio da Revolução do Porto. Mas esse terceiro
momento teria sido definitivo, pois, a contar dele, o “nosso país” estaria atrelado “ao carro
do progresso universal”. Os episódios de 1820 e 1821 teriam provocado “uma nova aurora
Sobre as relações entre imaginário, paixões políticas e pintura histórica, ver José Mutilo Carvalho, A
formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 10-11;
e Pierre Ansart, “Les passions politiques”, Encyclopédia Universalis. Paris, 1978, pp. 1.252 e ss. Consultar
também, do mesmo autor, Lagestion des passions politiques. Paris: UAge d’Homme, 1992.
O brado do Ypiranga ou aproclamação da Independência do Brasil. Algumas palavras acerca do facto
histórico e do quadro que o commemora. Florença: Typographia da Arte delia Stampa, 1888, in Cecilia
Helena de Salles Oliveira e Claudia Valladão (orgs.), O brado do Ipiranga. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 13.
Op. Cit., p. 13. sobre a imagem da iresistibilidade das revoluções modernas, bem como sobre as metáforas
que procuravam traduzir a inevitabilidade da história e da revolução nos séculos XVIII e XIX, ver Hannah
Arendt, Sobre la revolución (trad. P. Bravo). Madri: Ediciones de Ocidente 1967.
O brado do Ypiranga..., op. cit., p. 14.
no vasto horizonte da terra brasileira”, ao libertá-la da “acção de uma corte que perpetuava
as crenças absolutistas e a exclusiva influencia européa, causas perennes do estiolamento
nacional”. Além disso,
a parte mais selecta da sociedade, ou pelo menos a mais propensa à idéia de autonomia
nacional sob uma dynastia popular e sympatica, fitava o olhar no augusto moço [...] e o
compeüia a declarar independente a sua nova pátria. Elle é que ainda hesitava, porque à
glória de fundar um grande Império via ligada a dor de lacerar o reino do seu próprio pae. A
eloqüência dos factos era, entretanto, superior à vontade humana. A nação maior, mais
pujante, mais esperançosa e mais rica, não podia curvar-se aos decretos e ainda menos
aos caprichos da menor, e mais dependente de alheias perturbações e mais pejada de
preconceitos medievais, e mais fraca, finalmente, em todos os sentidos. O cabo
interoceanico que as unia estava gasto no ponto em que a decrepidez pretendia absorver a
juventude. Para o quebrar bastaria o impulso desta [...].
Foi neste quadro histórico e político que Pedro Américo introduziu o “facto 7 de
setembro”, reproduzindo a descrição circunstancial formulada pelo conservador conselheiro
Ramalho. No entanto, em sua versão, não recuperava argumentos de liberais, a exemplo de
Timandro e Teófilo Ottoni, a. figura do príncipe e seu gesto heróico foram resguardados,
mas apresentavam-se revestidos de outros sentidos. O ato da proclamação não exprimia
uma decisão propriamente pessoal e não se limitava a um confronto de cunho colonial, mas
se constituía na manifestação particularizada de um processo revolucionário presidido pelas
leis universais, incontornáveis e naturais do “progresso” social.
Por essa razão e por reconhecer a dimensão do quadro e do lugar a que se destinava,
Pedro Américo apontou, em seu relato, as dificuldades do artista-historiador na busca dos
elementos que pudessem “revestir das aparências materiais do real todas as particularidades
de um acontecimento que passou-se há mais de meio século”. “Um quadro histórico”,
considerava,
deve, como síntese, ser baseado na verdade e reproduzir as faces essenciais do fato, e,
como análise, em um grande número de ra ciocínios derivados a um tempo da ponderação
das circunstâncias verossímeis e do conhecimento das leis e das convenções da arte. A
realidade inspira e não escraviza o pintor [...].
Op. cit., p. 15.
Ibidem.
Ver Francisco de Sales Torres Homem (o Timandro), “O libelo do povo” (1849), in R. Magalhães Jr., Três
panfletários do Segundo Reinado. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, pp. 62-123; eTeófilo
Ottoni, Circular dedicada aos srs. eleitores de senadores pela província de Minas Gerais (1860). Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1916.
O brado do Ypiranga..., op. cit., p. 19.
presenciar, in loco, a topografia, a paisagem e a “atmosfera diáfana” de São Paulo.
Fundamentando-se nessas incursões e em práticas historiográficas vigentes em sua época,
idealizou o cenário e as figuras a partir de opções estéticas e, segundo ponderou, foram
projetadas para “não desfigurar” o “fato” e para “revesti-lo dos esplendores da
imortalidade”. A garantia da “veracidade” e da pretendida reconstítuição do passado tal e
qual estava, portanto, na investigação detalhada que realizou e que recebeu o
reconhecimento e o acolhimento de autoridades incontestáveis do mundo artístico e político
quando a tela foi exposta pela primeira vez, E certamente essas circunstâncias também
contribuíram para que até hoje o quadro seja interpretado não como representação, mas
como registro fidedigno e indelével da fundação nacional.
A obra de Pedro Américo e a construção do monumento sugerem que, do ponto de
vista histórico e historiografia), ambas as idealizações e transposições delimitaram a
configuração do “fato Independência”, projetando sólida memória que acabou por
enclausurar o saber sobre o passado. E, se apontam para os nexos indissolúveis que
entrelaçam história, memória histórica e política, seja em termos das relações de poder, seja
em termos da cultura e do imaginário pelo qual a sociedade projeta e oculta a dinâmica
contraditória de seu engendramento, motivam reflexões que se debruçam não apenas sobre
a Independência e as formas e conteúdos de suas múltiplas rememorações.
Penso ser possível e pertinente problematizar duas outras dimensões desses suportes
materiais, baseando-me em argumentações formuladas por Claude Lefort e Pierre Ansart.
Claude Lefort observou que “os sinais do político” se encontram nos lugares em que
são, com mais constância, “ignorados ou denegados”, compreendendo a política como “a
dimensão simbólica do social”.
[...] O político revela-se assim não no que se nomeia atividade política, mas nesse duplo
movimento de aparição e de ocultação do modo de instituição da sociedade. Aparição, no
sentido em que emerge à visibilidade o processo crítico por meio do qual a sociedade é
ordenada e unificada, através de suas divisões; ocultação, no sentido em que um lugar da
política (lugar onde se exerce a competição entre os partidos e onde se forma e se renova a
instância geral do poder) designa-se como particular, ao passo que se encontra dissimulado
o princípio gerador da configuração de conjunto [...].
Em carta, infelizmente sem data e registro de lugar, mas provavelmente de 1887, Pedro Américo dirigiu-se
ao barão Homem de Melo, queixando-se não só de “incômodos do fígado” como da “honrosa oposição do
Imperador”, o que dificultava ainda mais os estudos preparatórios do painel. Foi nessa ocasião que descreveu
rapidamente sua visita ao “formoso domínio do Ipiranga”. Transcrição datilografada de original pertencente
ao acervo do Arquivo do Museu David Carneiro. Serviço de Documentação Textual e Iconográfica, MP-USP,
Coleção Monumento do Ipiranga.
O brado do Ypiranga..., op. cit., p. 27.
Claude Lefort, Pensando o político. Ensaios sobre democracia, revolução e liberdade (trad. E. Soza). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1991, pp. 9 e 15.
Idem, op. cit., p. 26.
como relações de dominação. Nele, “autores” e “atores” parecem configurar um drama
histórico assistido a distância por “espectadores”, testemunhas passivas do fluir do enredo.
A imponência do edifício e de sua ambiência interna, reafirmada pelo imenso painel, não
poderia ser reconhecida, por essa via, como tradução formal de discriminações que
singularizam e antagonizam o universo dos cidadãos e os que foram excluídos da
cidadania? Não seria esse o desígnio do pintor ao colocar na tela, em posição subalterna, a
figura de um homem do povo movimentando um carro de bois, a olhar estupefato para o
“grande acontecimento” que se passava a seu lado?
Por outro lado, ao debruçar-se sobre as imbricações entre política, paixões e
sentimentos coletivos, Pierre Ansart ponderou que palavras e declarações explícitas
representam apenas uma das linguagens que motivam e exprimem emoções. “Os gestores
da sensibilidade política”, argumenta, esforçam-se por criar lugares, formas, espaços
carregados de afetos que no silêncio participarão na modelagem de atitudes coletivas. E os
monumentos seriam, entre outras formas, locais emblemáticos dessa educação silenciosa.
Além disso, referindo-se especificamente a rituais da monarquia francesa, no século XVII,
interroga-se sobre o caráter da “estratégia de sedução” empregada pelos detentores do poder
àquela época: seria a conseqüência de projeto explícito e voluntário ou””a reativação de
estrutura socioafetiva própria à monarquia e à sua longa cultura anterior”?
A despeito de elaborados a partir de circunstâncias históricas e políticas particulares,
esses argumentos ajudam a problematizar uma outra dimensão do Monumento do Ipiranga.
No projeto de delimitação do novo marco celebrativo do Império, os políticos
conservadores não teriam formulado igualmente uma ”estratégia de sedução”? O palácio
não teria sido pensado, também, como lugar motivador de sentimentos capazes de reavivar
a tradição monárquica, assim como a autoridade e a ordem imperiais? Concomitantemente,
porém, o monumento era recurso metafórico para pontuar uma ruptura e a possibilidade da
renovação do regime, em outros termos, precisamente quando a figura do monarca, o
exercício do poder moderador e os instrumentos políticos e jurídicos do Estado eram
repensados e passavam por dura crítica, formulada tanto por republicanos como por liberais
e conservadores.
Ramalho e seus companheiros de partido idealizaram um espaço celebrativo que
ainda constrange, motiva e agasalha olhares, sentimentos, gestos e comemorações. Não
foram seus gestores diretos, mas os republicanos jacobinos que transformaram o palácio em
museu público souberam com maestria recriar “estratégias de sedução”, revestindo-as de
matizadas facetas. Foram eles que conformaram, por intermédio do Monumento do
Ipiranga, a “tradição” de festejar a data de 7 de setembro da forma como nos tem sido dada
a conhecer.
Capítulo 10
Pierre Ansart La gestion des passions politiques.op. cit., p.80.
Idem, op. cit., p. 35.
RESSENTIMENTO E UFANISMO:
SENSIBILIDADES DO SUL PROFUNDO
Este texto tem mais de uma finalidade: a primeira delas diz respeito a uma sorte de
“implicância”, talvez até uma espécie de irreverência, para com o Rio Grande do Sul. Mas
julgo que, mesmo sendo uma visão “desde dentro” (porque, como é sabido, eu “sou de
lá”...), representa um esforço de distanciamento daquilo que se vive, para melhor entender o
que se vive. E, neste ponto, a designação de “Sul profundo” é uma sorte de alusão a outras
formas estereotipadas de pensar identidades, tal como a France profonde...
Por outro lado, foi a maneira que encontrei de pensar esta temática do
ressentimento, por meio do imbricado processo de produção das sensibilidades, temática
que
se relaciona, por sua vez, com a história, a memória, a identidade, a alteridade.
Lidar com sensibilidades é tarefa difícil, mas, sobretudo, instigante, pois não se trata
de algo que se situe no domínio do explícito, mas das insinuações, dos silêncios, dos
recursos metafóricos da linguagem, das dimensões implícitas no jogo do social.
Foi a partir de tais pressupostos que me dispus a ler no que se diz - o ufanismo -, o
que não se diz - o ressentimento -, tomando como recorte de análise o Rio Grande do Sul -
o Sul profundo... - da segunda metade do século XIX às primeiras décadas do século XX.
Tomei como ponto de partida um dado editorial que julgo importante. Em 1992, a
Editora da Universidade, em Porto Alegre, lançava, com grande sucesso, uma obra coletiva,
Nós, os gaúchos, reunindo grande número de autores que, por meio de ensaios curtos,
abordavam a decantada identidade regional, em torn ora irônico, ora sério.
Ora, o ensaio, forma escolhida para os textos apresentados na coletânea, é, como se
sabe, uma forma de tateamento ou exploração intelectual de algumas idéias ou noções sobre
ps quais não há um consenso. Neste sentido, o ensaio recolhe do social questões candentes
ou talvez, até então, despercebidas e as discute e argumenta, dispondo, de forma não
conclusiva, idéias que instigam a novas reflexões.
Pois bem, o conjunto dos autores da obra acima citada, com diferentes formações
intelectuais, áreas de atuação e estilos diversos, converge, em seus textos, para duas formas
de sensibilidades que fundamentam a percepção do mundo a partir do que chamamos de
“Sul profundo”: o Rio Grande do Sul, estado extremo meridional do Brasil e assaz
conhecido pelo espírito regional muito forte.
Estes dois “vetores” de sensibilidade são, no caso, o ressentimento e o ufanismo,
“sintomas” que perpassam, de forma aberta ou camuflada, pela maioria dos textos. A
recorrência deste enfoque vem indicar que se trata de atitudes ou predisposições
disseminadas no Rio Grande, introjetadas em um modo de ser, exteriorizadas em
Sérgius Gonzaga e José H. Dacanal (orgs.), Nas, os gaúchos. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992.
Cf. Jacques Leenhardt, ”Angel Rama, uma figura-chave da crítica latino-americana”, in Lígia Chiappini e
Flávio Wolf Aguiar (orgs.), Literatura e história na América Latina. São Paulo: EDUSP, 1993.
comportamentos estereotipados e que se prestam a questionamentos de tipo intelectual ou
de senso comum, seja esse questionamento expresso pelo deboche e irreverência de alguns
dos artigos, seja pela análise grave e acadêmica de outros tantos.
Entendemos que as sensibilidades são formas pelas quais os indivíduos e os grupos
se dão a perceber, a si e ao mundo. A sensibilidade é, pois, capacidade humana, que
fundamenta a apreensão do real; é uma habilitação sensorial que marca a capacidade de ser
afetada pelo mundo ou de reagir a estímulos físicos ou psíquicos por meio das sensações.
Por outro lado, a sensibilidade estaria na base do próprio conhecimento sobre o
mundo que o espírito é capaz de produzir. Entretanto, o , conhecimento sensível marca um
assalto contra o pensamento cognitivoracional. Porque opera na esfera das sensações e
pertence à ordem da intimidade, porque atua na esfera dos sentimentos e fundamenta a
percepção, interpretando e
qualificando o mundo, o conhecimento sensível não segue exatamente as regras da
racionalidade, mas não deixa, com isso, de produzir verdades, valores, ou seja, critérios de
interpretação da realidade.
Neste sentido se encontram as acima citadas posturas do ressentimento e do
ufanismo. Espécie de binômio ambivalente na construção da identidade regional, estes dois
sentimentos estão na base de uma comunidade simbólica de sentido que proporciona a
coesão social e dá a sensação de pertencimento.
Eles, de certa forma, presidem a cristalização de uma atitude - no caso, de um
sentimento -, de que houve perdas, desprestigies, isolamentos, exclusões, provocados por
terceiros que são vagamente designados como “centro”, “eles”, “os outros”, processo de
percepção este que se encontra em violento contraste com a auto-imagem do estado,
supervalorizada e mesmo glamourizada. Segundo esta outra atitude, surpreende-se a
afirmação de um ufanismo identitário que dota de positividade exacerbada tudo e todos que
se referem ou pertencem ao contexto regional.
Ora, esta tradução sensível das emoções e sentimentos passa pelos caminhos da
percepção, ou seja, implica processos mentais, de interpretação, qualificação e significados
de pessoas, coisas e práticas sociais. Todo este processo de formação de sentimentos, que se
exterioriza na formulação identitária, é, como sempre, datado, mas se apresenta como se
tivesse existido desde sempre.
Na indagação desta questão sensível que preside a apreensão do mundo, vamos em
busca dos traços que possibilitaram tais atitudes de avaliação, o que foi feito pelo
cruzamento de textos de natureza diversa.
Os indícios da postura ufanista talvez sejam os mais fáceis de resgatar. Basta
percorrer os caminhos da construção identitária para recompor o processo de montagem
que, esboçado no século XIX, assume o seu contorno estruturado nas primeiras décadas do
século XX.
Como é quase de praxe, o texto literário precede o de natureza propriamente
histórica na apreensão destas impressões de ordem moral, afetiva e estética com relação ao
mundo. A tradução da realidade exterior no interior, abrigando-se na intimidade, encontra
na literatura e na poesia um veículo privilegiado para a recuperação do sensível.
Fredéric Laupies, Leçon philosophiquc sur Ia sensibilité. Paris: PUF, 1998, p. 19.
Os elementos do kit identitário aparecerão assim dispersos, rifes disponíveis para
serem recolhidos, sistematizados e organizados em um todo coerente pela fala autorizada da
história que sucedeu o registro literário.
É assim que se torna possível resgatar os traços que constróem o mito das origens, a
designação dos pais fundadores, o panteão dos heróis, os feitos memoráveis, as datas a
lembrar, os sítios emblemáticos de culto. Todos eles se constituem como lugares de
memória ou espaços de ancoragem no tempo, que, dispersos, serão depois codificados.
Comecemos pela obra divina pastora, segundo romance da literatura brasileira,
publicado por José Antônio do Vale Caldre e Fião em1847, que já traz consigo os
princípios que depois seriam consolidados no delineamento ufanista do perfil gaúcho:
altivez, bravura, espírito indômito.
Não será demais lembrar que tal texto é composto no imediato da Revolução
Farroupilha, a guerra dos dez anos que o Rio Grande de São Pedro manteve com o Império
brasileiro e da qual não saiu vencido, ao assinar com o “centro” os termos de uma paz
“honrosa”, em 1845.
O desdobramento desta imagem romanesca, que se inspira no perfil medieval dos
heróis de tradição romântica, teria continuidade no segundo romance de Caldre e Fião, O
corsário, publicado em 1849, no qual um personagem central da trama se afirma, em trova
gauchesca: ”Nestes pagos sou muito conhecido/ por monarca de grande opinião”.
A expressão se desdobrará mais tarde na designação “monarca das coxilhas”, no
drama de mesmo nome levado à cena em 1867 pelo teatrólogo português Augusto César de
Lacerda. O delineamento do tipo ideal estava lançado e ajustou-se, de forma perfeita, à
expressão sugerida em 1870 por José de Alencar, em O gaúcho: “centauro dos pampas”. A
imagem do centauro é inequívoca quanto à positividade da ”invenção do gaúcho”: da
metade homem, herda os princípios da nobreza de alma; da metade animal, a força, a
intrepidez e a mobilidade de quem não conhece jugos.
A designação de “monarca” no texto literário vem, por sua vez, ao encontro da
linguagem popular dos chamados “ditos gauchescos” antigos, como a expressão “moço
monarca não se assina, risca a marca”.
A tradução desta expressão regional, que faz do gaúcho uma espécie de “Zorro dos
pampas” (!), alerta que aquele tipo altaneiro, verdadeiro rei do ambiente em que vive,
assinala sua presença e passagem por marcas visíveis e mais convincentes do que uma
assinatura formal... Ou seja, a bravura e outras qualidades guerreiras inatas do gaúcho
dispensam explicação e são uma espécie de verdade evidente por si mesma.
Como construção regional ou designação atribuída desde fora, o registro de
linguagem é extremamente significativo e fixa um núcleo de positividade, dotado de grande
apelo e força coesiva.
As dimensões de espaço e tempo contribuem, por sua vez, para solidificar este
padrão de referência: o espaço é sempre o do pampa, com um delineamento que aponta a
imensidão, a liberdade e o entrosamento com a natureza; o tempo é o da Revolução
José Antônio do Vale Caldre e Fiáo, A divina pastara. Porto Alegre: Tip. Brasiliense, 1847.
Idem, O corsário. Rio de Janeiro, 1849 (publicado em folhetim no jornal O Americano).
Idem, O corsário. Porto Alegre: Movimento, 1979, p. 167.
Augusto César de Lacerda, O monarca das coxilhas. Porto Alegre: IEL, 1991.
José de Alencar, O gaúcho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 313.
Farroupilha e das guerras de fronteira com os castelhanos, mas é um tempo trabalhado pela
glamourização positivada que a articulação identitária exige. Um tempo, a rigor, mítico,
porque aprisiona percepções e induz à apreciação sem maior julgamento.
Tal perfil, assim como essas dimensões de espaço e tempo, seria retomado por
autores do Partenon Literário, sociedade criada em Porto Alegre, em 1868, que reunia os
cultores das belas letras e que, pelo nome atribuído à agremiação, bem atestava as altas
aspirações de seus membros. A vertente regionalista do Partenon Literário se incumbiu de
difundir as virtudes “inatas” dos rio-grandenses: a valentia, a hombridade, a defesa das
causas justas e a perseguição dos ideais de liberdade.
Apolinário Porto Alegre, poeta e escritor, celebrou, em sua obra, esses homens que
morrem, não se entregam, que são da liberdade os cavaleiros, e utilizou a figura do
monarca das coxilhas em um conto de mesmo nome.
Ora, o mundo da ficção literária - esse mundo verdadeiro das coisas de mentira - dá
acesso, ao historiador, às sensibilidades e formas deapreensão e de olhar sobre a realidade
de uma época. Isto vale tanto para nós, historiadores da contemporaneidade, quanto para
aqueles historiadores do passado que, na senda aberta pelo texto literário, deram forma
estruturada aos componentes básicos da postura ufanista.
A contribuição pessoal ao padrão de referência identitário se apoia, sobretudo, nos
atributos da área científica que representam e se exteriorizam na autoridade da fala sobre o
passado. Assim, fixam e congelam uma temporalidade que serve para ancorar a memória: a
idade de ouro, das guerras heróicas pela posse da terra e do gado e da posição adquirida na
defesa da fronteira.
Dão veracidade à designação celebrada pela adjetivação - monarcas, centauros,
libertários - e pelo oferecimento de uma galeria de heróis e seqüência de fatos exemplares.
Mas, mais do que isso, socializam a imagem pela organização didática e exemplar da
narrativa histórica. Realizam a extensão do tipo regional a todos os rio-grandenses,
independentemente do tempo, etnia e posição social.
Assim é que a História do Rio Grande do Sul para o ensino cívico, de João Maia,
publicada pela primeira vez em 1898 e que recebeu a medalha de ouro na Exposição
Nacional de 1908, apresenta um curioso intermezzo, que seqüencialmente expõe os
acontecimentos do passado aos leitores.
Em dado momento, o autor interrompe a narrativa propriamente histórica dos fatos
para delinear o “tipo rio-grandense”. Esta explanação tem o objetivo de melhor fazer
compreender a performance gloriosa da história gaúcha e a maneira exemplar de ser dos
filhos da terra, em tudo melhores que os “outros”. Esta última consideração é, no caso,
insinuada e não afirmada.
No início do século XX, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
consolidaria tal postura, consagrando a sensibilidade ufanista que se revela no alto conceito
Apolinário Porto Alegre, ”Canto do pampeiro”, in Arcadia. Rio Grande do Sul, 1869, apud Regina
Zilberman et al., O Partenon Literário: poesia e prosa. Porto Alegre: Instituto Cultural Português, Escola
Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980, p. 38.
Idem, “O monarca das coxilhas”, in Paisagens. Porto Alegre: Movimento, MlNC, Pró Memória, INL, 1987,
p. 106.
João Maia, História do Rio Grande do Sul para o ensino cívico. Porto Alegre: Selbach, 1908, pp. 43-54.
de si próprio. A história consolidava, pelos caminhos da ciência, o que a literatura e a
poesia haviam já enunciado.
Significativamente, na História literária do Rio Grande do Sul, publicada em 1924,
João Pinto da Silva afirma que “o símbolo histórico do Rio Grande teria de ser sempre,
fatalmente, um guerrilheiro”. Ou seja, o atavismo, o meio e a “vocação” eram tão fortes
que não havia como escapar: os gaúchos eram, intrinsecamentç, bravos e justos, a lutar
sempre pelas boas causas.
Alguns poucos anos mais tarde, tencionando realizar uma análise sociológica, Jorge
Salis Goulart escreve A formação do Rio Grande do Sul, publicada em 1927, exemplar
para a análise deste processo. Nesta obra, o autor recupera todos os elementos que
delineiam o que chama a “superioridade dos habitantes dos pampas”, a tendência inata
para a democracia, combinada com a natureza, a altivez e a “inigualável abnegação” para
dedicar-se às causas da pátria.
Ora, o sentimento ufanista, que se difunde de tais círculos letrados para o conjunto
da população a partir do ensino regular do civismo, apóia-se em alguns pressupostos, a
principiar pela unidade entre a terra e o homem ou a articulação personagem-paisagem.
O Rio Grande do Sul identifica-se com a sua dimensão rural, e o gaúcho,
personagem-símbolo da região, é, por excelência, um homem do campo. Em uma evocação
telúrica, fundem-se a imensidão do campo e o caráter “indômito” do personagem típico.
Monarca das coxilhas ou centauro dos pampas, ele é algo que mistura o componente
selvagem, de exacerbação permanente, com a altivez inata de quem habita imensidões sem
fim. As coxilhas estendem-se na paisagem sem limites do pampa, da mesma forma que o
seu habitante é um ser criado sem restrições.
Por outro lado, como que sendo uma extensão da natureza, o tipo social é, por
natural decorrência, born e puro, porque se situa próximo das virtudes mais simples,
profundas e naturais emanadas da terra.
Tal visão é respaldada pelo viés determinista e evolucionista das primeiras décadas
do século, que “assegura” ao perfil tendências inatas, intuições originárias e pendores para
as causas justas. O meio natural, de campo aberto e de fronteira, garante o destino
manifesto para a defesa da pátria e da liberdade.
Neste ponto, o sentimento ufanista se hipertrofia, pois ser gaúcho é ser brasileiro por
deliberada vontade. Mesmo tendo em conta a visão predominantemente aceita na época - a
de Alfredo Varella, de que a Revolução Farroupilha foi uma revolução separatista -, a
avaliação identitária postula que ninguém é mais brasileiro que os rio-grandenses. Não só
defenderam a pátria de todos os ataques estrangeiros, como até desistiram de unir-se aos
castelhanos do Prata, para permanecerem ligados ao Brasil, na celebrada Paz de Ponche
Verde, em 1845. Ou seja, se quisesse, o Rio Grande poderia ter ficado independente, mas
decidiu ser brasileiro. Em última análise, ser gaúcho é ser um pouco mais, ou é ser mais
brasileiro que os demais.
João Pinto da Silva, História literária do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1924, p. 9.
Jorge Salis Goulart, A formação do Rio Grande do Sul, 2ª ed. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia
São Lourenço de Brindes; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1978, p. 61.
Ibidem.
Idem, op. cit., p. 77.
Até aí, o ufanismo, sentimento construído da segunda metade do século XIX até as
primeiras décadas do século XX, apóia-se na seqüência que vai do meio físico ao tipo social
e desta ao destino manifesto ou à vocação política.
De lá para cá, o movimento ufanista teve fluxos e refluxos, com momentos de
aceleração, como o do fim dos anos 40 e início dos anos 50, com o surgimento dos Centros
de Tradições Gaúchas (CTGs), para recobrar força extraordinária a partir dos anos 80, com
a proliferação desses mesmos CTGs, com seus-, festivais de música, com o grande apoio da
mídia e o reconhecimento de sua força pelos distintos partidos políticos.
Mas estamos falando em dois vetores de sensibilidade, que atribuem significado ao
real, moldam o comportamento, pautam ações. Entra em cena, então, o ressentimento,
postura sensível que se agudiza quando em confronto com o ufanismo. Referimo-nos à
sensação generalizada, presente no Sul, de que ”algo não deu certo”. Espécie de “amargura
provinciana”, este sentimento coabita e se confronta com a aludida auto imagem positiva.
Expressa-se com um vago mal-estar e uma sensação de perda, que percorre diferentes
momentos. Poder-se-ia dizer, talvez, simplificando, que “tudo começou com Vargas”, pois
é depois deste período que o ressentimento se agrava, com a incômoda sensação de que o
Rio Grande “ficará para trás”.
Parecia que, com um gaúcho no poder central - o celebrado Getúlio Vargas, herdeiro
local na condução do republicanismo rio-grandense -, finalmente se cumpriria o destino
glorioso da terra... Mas a reversão de expectativas não se fez esperar. Vargas passara a
realizar uma política “nacional” e não “regional”, cercando-se dos “outros”... O revide veio
violento, em discursos inflamados do político gaúcho João Neves da Fontoura, que, do
Congresso Nacional, bradava: “vencedor de 1930, que fizeste do Brasil?”
Em outro apelo significativo, expondo a “traição” de Vargas ao Rio Grande, o
mesmo João Neves clamaria: “A criatura, guindada ao poder, apunhala o criador [...]”. Ou
seja, sintomas começavam a surgir, insinuando que “algo não dera certo”...
Antes de 30, pode-se dizer, de certa forma, que o sentimento ufanista prevalecia na
composição do padrão identitário regional, guiando a percepção do passado, explicando o
presente e orientando as expectativas em relação ao futuro. Mas, ao dizer que o ufanismo
“prevalecia” como atitude, o que quero é acentuar que esta era a forma pela qual se
exteriorizavam os sentimentos, pois minha intenção é ir no encalço das dimensões
implícitas do ressentimento que se ocultavam por trás daquela atitude. Mas, para encontrar
tais indícios, traços, marcas, sinais, é preciso “garimpá-los” em textos de naturezas
diversas. Estes verdadeiros fragmentos se tornam legíveis à luz desta preocupação ou
pergunta que se impõe, convertendo-se em ”sintomas” do ressentimento.
Entendo o ressentimento como uma forma de sensibilidade que coabita com o
ufanismo, como duas faces de uma mesma moeda, em unidade relacionai tão íntima como
aquela que preside o binômio identidade-alteridade.
Ora, a exaltação do passado e a exacerbação do local, construídas como sentimento
confortador que faz o Rio Grande “bastar-se a si mesmo”, foram também uma recusa ao
enfrentamento em outros campos que não fossem o das armas. Econômica ou socialmente,
João Neves da Fontoura, Discursos parlamentares (sel. e introd. Hélgio Trindade). Brasília: Câmara dos
Deputados, 1978, p. 471.
Idem, op. cit., p. 393.
é a exaltação da diferença que prevalece e não a possibilidade de comparação com o
chamado “centro”.
Politicamente, a tradução local da diversidade que individualiza se dá em termos de
isolacionismo e articulação de um modus vivendi. Ou seja, o Rio Grande, até 30, não
disputa, politicamente, o poder central, refugiando-se no feudo do Partido Republicano Rio-
Grandense, uma vez que apresentava uma divisão interna muito acirrada entre dois blocos
políticos rivais (chimangos e maragatos). Mas, justamente por isso e para conseguir
proveitos para o Sul, pactua com a política que critica, o que, no mínimo, relativiza seus
critérios morais em termos de conduta ética. Sendo, por definição, “diferente” e por possuir
“princípios próprios”, assume uma cômoda situação que disfarça o ressentimento.
Despreza o Nordeste, mas sobre ele se apoia politicamente, para barganhar em
causas próprias junto do poder central, como é notório e paradigmático na República Velha
da pré-guerra. Referimo-nos, no caso, à figura do senador gaúcho Pinheiro Machado, o
“coronel dos coronéis”, com sua estratégia de ação junto dos pequenos estados do Nordeste.
Não se trata, pois, de indiferença, conformismo ou apatia diante dos jogos do poder, mas de
um endosso do político que preserva e confronta a auto-imagem.
Ao abordar o ressentimento como atitude sensitiva ligada ao etos regional, lidamos
com um sentimento que não pode ser lido no discurso, pois jamais isto é enunciado, salvo
no plano do ataque a uma política que contraria os interesses locais e em que, por
inflamados discursos no Congresso, defendem-se pontos de vista locais em desacordo com
o centro. Se, durante a Velha República, o governo gaúcho alertava, nas mensagens
enviadas à Assembléia, que só os estados cafeicultores tinham renda superior à do Rio
Grande, logo complementava essa afirmação, dizendo que, em compensação, sofriam as
conseqüências das enormes dívidas que deviam contrair para a defesa daquele produto e
que absorviam grande parte daqueles recursos...
Trata-se de um ressentimento velado que, no jogo identitário, insinua-se com o
desejo de ser o “outro”. Este “outro” desejado, que se busca ser, mas não se tem condições
de alcançar, traduz-se ainda na recusa de ser um “outro”, à feição do Nordeste, diante do
centro. A única alteridade admitida é que o Rio Grande do Sul possa ser “um outro centro”,
mas jamais um “outro” subordinado.
Se há uma identidade que não se quer assumir é a de ser um “novo Nordeste”, como
futuramente daria alerta Franklin de Oliveira, escrevendo, no início dos anos 60, sobre os
efeitos dos anos JK. Desalojados dos centros decisórios do poder nacional e não
participando do novo eixo de desenvolvimento econômico implantado no país, o futuro
parecia sombrio para os gaúchos. A denúncia, lançada pelo autor da obra citada, de que “o
Rio Grande ficara para trás” mobilizou economistas locais a refletirem sobre os perigos de
uma “nordestinização” do estado. O ressentimento passava a mostrar-se, ameaçando a auto-
imagem. A identidade desejada, enquanto prática e projeção, era aquela do CentroSul, que
controlava o país.
Neste contexto, o ressentimento é a outra face da moeda do ufanismo, ou o
ufanismo é a máscara pela qual se apresenta uma região que tem dificuldade para lidar com
menor disponibilidade de capital, menor representação da sua elite, menor projeção
Mensagem apresentada à Assembléia de Representantes do Estado do Rio Grande do Sul feio presidente
Antônio Augusto Borges de Medeiros, 1913. Porto Alegre: A Federação, 1913, p. 67.
Franklin de Oliveira, Um novo nordeste. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.
cultural. Quanto a este último ponto, são significativos os comentários de João Pinto da
Silva, em sua História literária do Rio Grande do Sul, sobre as relações entre progresso
econômico e produção intelectual. Pinto da Silva referia-se à falta de equivalência entre
ambos, o que poderia ser apreciado no caso paulista e no gaúcho. São Paulo ficava a dever,
na cultura, em comparação ao seu progresso econômico. Já o Rio Grande, que até bem
pouco tempo era um estado pobre, devido aos gastos e sacrifícios de caráter militar,
começava a desenvolver-se, processo que precedia a intensificação e o refinamento do labor
literário.
Ora, no balanço das contas, São Paulo, com pujança mais antiga, estava a dever nas
manifestações culturais, enquanto o Rio Grande do Sul já se encaminhava para tal. Ou seja,
havia a insinuação fina de que o Rio Grande compensava, pela cultura, o que lhe faltava em
desenvolvimento econômico.
Já a História de João Maia, acima referida, expõe toda uma saga de
enfrentamentos conduzidos pela elite local, com abusos e desmandos externos, em que a
satisfação de lutar não se dá em causa própria, mas por motivos justos, e a recompensa é
sempre pouca. Em suma, o Rio Grande muito dá e pouco recebe da nação, mas deste
ressentimento teria motivos de orgulho, pelo menos no plano do simbólico. É, pois, pela
construção de um imaginário que, apontando para o ufanismo, mascarase e oculta-se o
ressentimento latente.
Por outro lado, como compensação a um sentimento de perda diante da
metropolização do Rio de Janeiro e da vizinha Buenos Aires, todos os livros de história, as
poesias e as peças de prosa apontam um horizonte rural e escorado no passado. O marco
espaço-temporal é dotado de uma positividade que busca anular frustrações. É o caso, por
exemplo, das inúmeras crônicas de Aquiles Porto Alegre, que, publi;adas em jornais e
depois reunidas em livros, falam da cidade.
Mas a urbs que emerge dessas crônicas é, antes de tudo, uma espécie de pacata
aldeia. O olhar do cronista se refugia no passado e é capaz de ler, no panorama da cidade, a
antiga Porto Alegre que existiu um dia. O velho Porto dos Casais, quase aldeia, é anticidade
que se impõe como refugio e que conforta a visão saudosista, que tem o passado como
horizonte. Este saudosismo, ou nostalgia ressentida, traduz sentimentos de perda, de
vulnerabilidade e mesmo de uma inferioridade. Ou seja, o passado fornece segurança,
diante de um presente que oferece frustrações.
Talvez se possa dizer que não se trata, no caso, de verdadeiro ressentimento, mas de
uma postura que, diante das mutações urbanas em curso, ancora-se no sentimento que dá
abrigo e conforto. A cidade que não pode acompanhar o progresso de outros centros
refugia-se na quase aldeia de outros tempos, sempre evocada. A julgar pela recepção de
suas crônicas, este tipo de visualização do passado pelo presente tinha um número
considerável de simpatizantes.
João Pinto da Silva, op. cit.
João Maia, op. cit.
Flores entre ruínas. Porto Alegre: Wiedman & Cia., 1920; Noutros tempos. Porto Alegre: Globo, 1922;
Paisagens mortas. Porto Alegre: Globo, 1922; Noites de luar. Porto Alegre: Globo, 1923; Serões de inverno.
Porto Alegre: Selbach, 1923; Através do passado. Porto Alegre: Globo, 1940; História popular de Porto
Alegre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal, 1940; Revivendo apossado, 2a ed. Porto Alegre: Sulina, 1953.
A manifestação mais contundente de um ressentimento deu-se por conta da postura
que chamamos de “amargura provinciana”, de uma geração de intelectuais do início do
século que radicava o seu inconformismo no maior centro urbano de então, a cidade de
Porto Alegre, a capital à beira do Guaíba, até onde chegavam os ventos da modernidade
urbana. Falar mal da cidade, queixar-se da pequenez do ambiente, denunciar a
incompreensão do meio diante das manifestações culturais mais avançadas, criticar o
abismo existente entre Porto Alegre e o resto do mundo...
Eis alguns dos traços recorrentes de uma certa tendência literária no Rio Grande do
Sul, demonstrando o seu inconformismo diante da cidade real. Seu horizonte está lá fora, no
paradigma idealizado de uma metrópole que passa longe do horizonte porto-alegrense. Este
“fosso cultural” é potencializado pela formação cultural de tais escritores, que não coincide
com a ambiência da cidade em que vivem.
Podemos talvez classificar esse inconformismo por viverem numa cidade onde nada
acontece, em umafin de siècle vazia e sem emoção, como uma espécie de ressentimento.
Um inconfortável confrontamento alteridade/identidade estabelecia contrastes evidentes
entre a situação vivida e a desejada. Esta jeunesse dorée, que vivia com a cabeça em Paris,
os olhos no Rio ou em Buenos Aires e, lamentavelmente, os pés em Porto Alegre, era,
contudo, explícita: amarga e ressentida, expunha seu inconformismo diante do abismo a
separar o Sul profundo do resto do mundo civilizado. Como se dizia numa crônica da
revista Kodak: “Porque, afinal de contas, é preciso reconhecer como verdade aquelas
palavras proféticas de Lord Beaconsfield: O mundo é Paris e Londres, o resto é
paisagem...”. A célebre frase de Benjamin Disraeli, repetida por Elísio de Carvalho em
Esplendor e decadência da sociedade brasileira, resume bem o drama porto-alegrense:
estar ao lado da paisagem, o que era lamentável e irremediável, queixavam-se aqueles
moços que suspiravam por cultura e por uma modernidade que ocorria alhures...
O ressentimento assume o contorno de uma exclusão: no conjunto, esses rapazes
com pretensões literárias se sentem excluídos do mundo da cultura e da civilização, numa
terra onde nada acontecia de expressivo:
Santo Deus, fazer vida intelectual em Porto Alegre [...]. Então o senhor pensa que gênios
literários se fazem e que dizer literatura é recitar o “Ouvir estrelas” e cantar os louvores à
“mulher brasileira” pelos poetas patrícios? Vade retro... [...]. Porque é preciso que se diga a
verdade: entre nós a literatura é uma entidade que não mereceu as honras de uma
aceitação distinta, ela rasteja muito embaixo, ainda estarrece nos folhetins jocosos dos
jornais da terra e nada mais...
Esta geração, que gravitava em torno dos jornais da época, contava com os nomes de Paulino Azurenha,
Eduardo Guimarães, Souza Lobo, José Picorelli e outros tantos, perdidos no anonimato de alcunhas a
disfarçar a identidade: Rastignac, Chevalier de la Lune, Gavarni.
“Ressonâncias mundanas”, Kodak. Porto Alegre, 8 set., 1917.
Elísio de Carvalho, Esplendor e decadência da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1911, p.219.
Carlos Novaes, “Indiscrições”, Kodak. Porto Alegre, 17 jan., 1914.
sentimento ressentido. Se alguém, nascido no Sul profundo, encarava esse fato como uma
fatalidade, era porque não havia para tal geração uma imagem glamourosa que compensasse
a falta de horizontes e de reconhecimento.
Tais processos de percepção do real são resgatados a partir deum recorte temporal
preciso: da segunda metade do século XIX à emergência do Rio Grandedo Sul Republicano,
Período no qual dois vetores de sensibilidade formavam como que um binômio ambivalente
na construção da identidade local. No decorrer das décadas seguintes, tais sentimentos
sofreram fluxos e refluxos, de ascendência e queda, mas, de certa forma, pode-se dizer que
ainda guiam as sensibilidades locais de perceberse e colocar-se no mundo.
Reiteramos que, no contraponto que o ufanismo faz ao ressentimento, o maior
perigo visualizado é a nordestinização, fantasma que assusta e se coloca a uma região que
rejeita esta imagem. Ser o “outro” indesejável com o qual o Rio Grande do Sul não quer se
identificar é a pedra de toque que, por sua vez, desnuda a verdadeira identidade desejada:
ser “centro”.
Estes, porém, são territórios do não dito ou mesmo do não provado, porque
pertencem à esfera do sentimento, que tocam não só na subjetividade, mas também no
coletivo. Cabe ao historiador, preocupado com a cultura e o mundo do sensível, resgatar
tais indícios na construção das identidades locais que se afirmam em relação à nacional,
visualizando alteridades e expressando os sentimentos que tais correspondências
comportam.
O ressentimento busca formas de compensar insatisfações e perdas, e o ufanismo
cria modelos de referência imaginários, o que faz que sejam, na realidade, formas de
sentimento relacionais, em profunda correspondência. Não há provas, só há indícios, traços
de sentimento, que se insinuam em discursas, práticas e imagens, os quais permitem este
“tateamento intelectual’, de tipo ensaístico, para exploração desta ordem sensível de
percepção da realidade.
Capítulo 11
O Gaúcho e os gaúchos
Muy Sr. mio; Haviendo tenido noticia que algunos gahuchos se havian dejado ver a Ia
Sierra, mande a los Tenientes de Milícias dn. Jph Picolomini, y dn. Clemente Puebla,
passasén a dicha Sierra con una Partida de 31 hombres entre estos algunos soldados dela
Batton a fim de azer una descubierta en la expresada Sierra, por ver si podiah encontrar los
malechores, y al mismo tiempo viesen si se podia recoger algún ganado; y haviendo
practicado etc.
Cf. Augusto Meyer, Gaúcho, história de uma palavra. Porto Alegre: Cadernos do Rio Grande, IEL, Divisão
de Cultura, SEC, 1957.
J. H. Boehm, “Mémoires relatifs à 1’expedition au Rio Grande do Sul”, Anais do Simpósio Comemorativo
do Bicentenário da Restauração do Rio Grande (1776-1979). Rio de Janeiro, IHGB, IGHMB, 1979, vol. In, p.
164.
Ver glossário de termos gauchescos ao final do texto.
Fernando O. Assunção, El gaúcho - Estúdio sócio-cultural. Montevidéu: Universidad de la República,
Direccion General de Extension Universitária, 1979, p. 424.
Auguste de Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
USP, 1974, pp. 108 e 138.
Nicolau Dreys, Noticia descritiva da província do Rio Grande de São Pedro do Sul, 41 ed. Porto Alegre:
Nova Dimensão, Editora da PUC-RS, 1990, p. 122.
Pereira Coruja, o gaúcho é o “índio errante dos campos”. Posteriormente, o mesmo autor
cita a existência de tropas de ”Belendengues que em ocasiões de guerra se arrebanhavam
entre os gaúchos e vagabundos dos campos para servirem de isca ao inimigo nas
guerrilhas”.
No século XIX, o Rio Grande do Sul passou por grandes transformações. Pouco a
pouco as estâncias foram sendo delimitadas, os campos cercados e os gaúchos nômades
foram sendo incorporados ao trabalho pastoril como peões. Foram eles também que
compuseram a maioria das tropas rio-grandenses que atuaram nos conflitos armados em
que o Rio Grande do Sul e o Brasil se envolveram (até mesmo a Guerra doParaguai).
Assim, aos poucos, aqueles grupos de gaúchos foram desaparecendo.No entanto,
sua incorporação como trabalhadores de estância não significou, automaticamente, seu fim,
pois os peões eram recrutados entreos gaúchos naquela época, ficando assim difusos os
limites entre os dois grupos.
Foi na segunda metade do século XIX que, com base no grupo social dos gaúchos, a
figura do gaúcho começou a ser construída e exaltada, num processo que seguiu até o
século XX. Neste sentido, uma contribuição importante foi dada pelos literatos locais,
reunidos numa associação cultural criada em 1868, denominada Partenon Literário.
É interessante notar que, no início, ainda havia restrições a esse termo. Segundo
Carlos Dante de Moraes, um fator que influenciou na mudança que o vocábulo sofreu foi a
Guerra do Paraguai, dada a participação e destaque nacional das tropas rio-grandenses, o
que teria feito com que “gaúcho” fosse visto com “louvor e admiração”, com efeito, foi o
escritor José de Alencar (que nem sequer conhecia o Rio Grande do Sul) o primeiro a
escrever um romance em que o gaúcho aparece como herói. Dada a importância de José de
Alencar naquela época, é possível que sua influência tenha sido um dos fatores de mudança
na atitude dos intelectuais locais em relação ao gaúcho. Teria sido, assim, a valorização
nacional externa à região o fato desencadeador de uma nova visão dos rio-grandenses sobre
o tipo local, o gaúcho.
Nesse período, veiculou-se a idéia do gaúcho como o “monarca”, tema que aparecia
anteriormente na literatura oral, nos chamados ”cantos de monarquia”, os quais, segundo
Augusto Meyer, já existiam em 1835, como, por exemplo, o Soneto monarca:
Antônio A. Pereira Coruja, apud Carlos Dante de Moraes, Figuras e ciclos da história riograndense. Porto
Alegre: Globo, 1959, p. 184.
Antônio A. Pereira Coruja, Antigualhas. Porto Alegre: União de Seguros Gerais, ERUS,
1983, p. 78. Pereira Coruja editou este capítulo pela primeira vez em 1887.
Carlos Dante de Moraes, op. cit., p. 185.
Augusto Meyer, Guia do folclore gaúcho. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Aurora, 1951, p. 110.
Ibidem. O autor coloca que este soneto seria anterior a 1835, comunicado por José Gabriel Teixeira, de Rio
Pardo, à redação do anuário de Graciano A. de Azambuja em 1891.
A imagem do gaúcho como “monarca das coxilhas” aparece num conto de um dos
principais integrantes do Paternon Literário, Apolinário Porto Alegre (sendo, até mesmo,
seu título), como também num poema de Múcio Teixeira, Canto do monarca:
O gaúcho era, então, cantado por literatos estabelecidos na cidade sem maiores
relações com o campo e o universo das estâncias, mas que, mesmo assim, influenciaram
na visão idílica do pampa e na formação da figura do gaúcho.
De certa forma, esta situação remete às idéias de Todorov sobre o exotismo: “La
connaissance est incompatible avec l’exotisme, mais la méconnaissance est à son tour
inconciliable avec l’éloge dês autres; or, c’est précisément ce que 1’exotisme voudrait etre,
un éloge dans la méconnaissance. Tel est son paradoxe constitutif”. Neste caso, um
“exóico” muito próximo geograficamente, porém muito distante socialmente.
Mas, se o gaúcho era cantado como “monarca” pelos literatos locais, no início do
século XX o termo “gaúcho” ainda não era, generalizadamente, utilizado como sinônimo de
sul-rio-grandense, embora Cezimbra Jaques, em 1912, assinale que “hoje denomina-se
gaúcho ao platino e ao rio-grandense em geral”. É no decorrer do século XX que, aos
poucos, o uso como um gentílico se estabelece para toda a população do Rio Grande do
Sul.
Neste processo de construção de uma identidade regional, no Rio Grande do Sul
ocorreu uma dupla necessidade: afirmar-se enquanto gaúcho (diferenciando-se dos
habitantes de outros estados do Brasil) e enquanto brasileiro (diferenciando-se dos gaúchos
uruguaios e argentinos - os platinos) e, assim, afirmar-se como gaúcho brasileiro.
Aqui nos limitaremos a tratar do movimento tradicionalista que existe no Sul do
Brasil, e assim trata-se, em princípio, de um fenômeno regional. Basicamente, refere-se ao
estado do (Rio Grande do Sul, a região brasileira do gaúcho, onde tradicionalismo e seu
congênere, o gauchismo, nasceram e possuem força considerável. No entanto, nas últimas
décadas, o movimento ultrapassou as fronteiras estaduais em função das levas
Múcio Teixeira, Flores do pampa, 1877.
Regina Zilberman assinala a ótica externa da vida rural campeira citando outro poema de Múcio Teixeira,
em que se verifica um desconhecimento dos hábitos dos gaúchos, ao mesmo tempo em que se apresenta uma
visão idílica de sua vida. Regina Zilberman, Literatura gaúcha. Temas e figuras da ficção e da poesia do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: L&PM, 1985, pp. 23-24.
Tzvetan Todorov, Nous et lês autres. Paris: Seuil, 1989, p. 298.
João Cezimbra Jaques, Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: União de Seguros Gerais, 1979, p.
166. Este autor também coloca que, “Além deste tratamento (continentinos) com que éramos distinguidos por
essa raça valente, da qual em grande parte descendemos, e do título muito honroso de sul-rio-grandense, temos
sido conhecidos pelos três apelidos seguintes: Monarca da Coxilha, Guascas e Gaúcho” (p. 54).
Embora seja necessário um estudo mais aprofundado sobre o tema, é interessante notar que, no início da
Revolução de 30, o jornal Correio do Povo não utilizava gaúcho como sinônimo de rio-grandense de maneira
geral. A partir de outubro (salvo engano, a partir de 9 de outubro), este uso é constante. Isto não descarta que
o vocábulo tenha tido talutilização anteriormente, mas é mais um dado sobre seu uso.
colonizadoras de rio-grandenses que se dirigiram aos outros estados da federação e que
difundiram o gauchismo pelo Brasil afora, atraindo participantes que não possuem origem
nem relações diretas com o Rio Grande do Sul. Recentemente (final do século XX,
possivelmente final dos anos 80), foram criadas Confederação Brasileira de Tradições
Gaúchas e, mais recentemente ainda, a Confederação Internacional de Tradições Gaúchas.
O culto às tradições realizado pelo tradicionalismo no Rio Grande do Sul é
estruturado e organizado por uma espécie de federação, o Movimento Tradicionalista
Gaúcho (MTG), o qual se estrutura em associações tais como os chamados Centros de
Tradições Gaúchas (CTGs), os piquetes (ou piquetes de laçadores) e ainda outras com
denominações diversas, porém com as mesmas características e objetivos.
O culto a que se propõe o tradicionalismo se efetua, fundamentalmente, pela
recriação de um determinado modo de vida associado aos gaúchos - o que implica recriar a
vida das estâncias e o passado local. De maneira geral, pode-se dizer que o eixo em torno
do qual o movimento se constrói é um espaço-tempo idealizado a partir de elementos
pertencentes ao imaginário local recriado segundo critérios contemporâneos, o que levaria a
uma atualização do passado. É este o campo no qual o movimento atua, num processo de
construção e afirmação identitária que acaba por criar uma cultura tradicionalista, diferente
da cultura tradicional, com a qual, porém, mantém relações.
Embora as representações associadas ao gaúcho geradas pelo tradicionalismo
tenham se estabelecido como “oficiais”, ou seja, foram adotadas pelos poderes públicos, no
Rio Grande do Sul, o processo que lida com “o que é” e “como é” o gaúcho extrapola os
limites do MTG. com o tempo, surgiu aquilo que é chamado de gauchismo, um termo
muito genérico que indica “tudo o que se refere ao gaúcho” e não, necessariamente, só o
que é ligado ao tradicionalismo. De fato, há uma série de contestações ao modelo e à prática
do MTG, e as divergências são tanto externas quanto internas, o que expressa uma luta para
estabelecer quem tem poder para falar sobre o gaúcho.
O gauchismo é algo difuso, contendo também aqueles que se intitulam “nativistas”,
que não aceitam o tradicionalismo e tentam manter uma independência em relação a este.
Dentro do gauchismo há, portanto, não apenas o tradicionalismo de maneira geral, como o
MTG, sua parte organizada e a que consegue impor sua perspectiva em relação ao gaúcho e
às tradições como legítima e “oficial”, mas todas as manifestações, estruturadas ou não, que
operam com um processo identitário relacionado ao Rio Grande do Sul e ao gaúcho.
Em primeiro lugar caberia situar, em grandes linhas, de qual gaúcho se está aqui
falando, dado que sob esta denominação podemos nos referir tanto a todos os sul-rio-
grandenses (um gentílico) como também ao homem das estâncias ligado às atividades
pastoris (de ontem e de hoje), como também é possível pensar em uma figura emblemática,
construída a partir do homem do campo e que acaba implicando todos os nascidos no
estado. Em outras palavras, é criada, a partir de uma série de representações ligadas ao
homem do campo (que serve como referencial básico) que fazem parte do imaginário local
(constituem e alimentam-no), uma figura que serve como modelo, implicando o
conhecimento e reconhecimento de todos os gaúchos. E é assim que o gaúcho passa a ser o
Gaúcho.
Esta é uma das questões básicas quando se lida com processos identitários, pois está
presente o fato de que o Gaúcho é considerado um “tipo social”, o que leva a questionar o
uso e os pressupostos desta idéia que implica a tipificação e a construção de estereótipos,
remetendo a formas pré-conceituais de reconhecimento e a pré-julgamentos.
Quando são feitas referências a um “tipo”, seja ele chamado de “característico” ou
“social”, está-se referindo a um modelo, uma imagem cristalizada, fruto de um processo
redutor que, ao generalizar determinados atributos (sejam eles imaginários ou não),
simplifica a complexidade cultural do grupo ao qual esse “tipo” concerne, reduzindo a
expressão identitária desse grupo a uma figura a quem são atribuídas determinadas
características tidas como “definidoras” ou “identificadoras” do grupo e condensando,
assim, idéias relativas a ele.
Seu uso enquanto uma referência identitária serve para afirmar diferenças que
estabelecem distinções entre grupos, contribuindo assim para o reconhecimento do grupo ao
qual esse “tipo” está relacionado e em referência ao qual ganha sentido. No entanto, implica
operar e estabelecer formas de reconhecimento relacionadas, em que frases tais como “o
Gaúcho é assim ou assado” (ou, conforme o caso, o baiano, o mineiro, o nordestino, o
bretão, o siciliano, ou qualquer outro nacional ou internacional) referem-se a uma
generalização de todo um grupo social sintetizado numa só figura.
Para a construção deste modelo (ou tipo), recorre-se à história, às tradições, aos
costumes locais, enfim, a determinados elementos que ganham significado quando
articulados de maneira que forme um todo diferenciado e singular, por meio do qual se
condensam e se expressam imagens, valores e idéias sobre como seriam os componentes do
grupo que estaria sendo representado por esse tipo, e assim estabeleça balizas identitárias.
Este fato lembra uma situação descrita por Manuela Carneiro da Cunha ao tratar
da cultura na diáspora, em que, de uma “bagagem cultural” são selecionados e retirados
elementos que vão ao encontro dos interesses do grupo em questão. Assim, não é toda a
“bagagem” que é utilizada; são escolhidos determinados elementos culturais tidos como os
que poderiam, da melhor maneira, representá-los diante dos demais, tornando-se, assim,
sinais diacríticos.
Pensando neste caso, a construção de tipos ou figuras emblemáticas requer também
uma “bagagem” fornecida pela história, a memória e as tradições e costumes locais. Porém
nem tudo é utilizado, somente aquilo que pode atender às necessidades identitárias do
grupo, construindo algo que seja capaz de efetuar uma identificação. O caso da
ressemantização do Gaúcho parece ter algo a ver com este processo: do passado, recolheu-
se a idéia de valentia e liberdade, deixando de lado a crueldade e a violência inerentes a
estes bandos dos primeiros gaúchos.
Esse processo que estabelece as características do grupo e do tipo a ele relacionado,
definindo o que está dentro e o que está fora, o que pertence e o que não pertence, leva a
pensar numa situação de “pureza e perigo”, tal como descrita por Mary Douglas,
guardadas as devidas proporções e diferenças. Para o tradicionalismo, o puro, o não
contaminado, o nativo, o espontâneo, seria assim o “verdadeiro”. O estrangeiro, o
alienígena, o que sofreu influências, o que se transformou, seria o “falso” e, portanto, o
Sobre o assunto, ver Maria Eunice Maciel, “Os tipos característicos. Região e estereótipos regionais”,
Humanas, vol. 8, n21/2, jan.-dezl, 1995.
Manuela Carneiro da Cunha, Antropologia do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1986.
Mary Douglas, Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.
perigoso. Sua atuação na preservação das tradições seria justamente zelar pelo que
considera, segundo seus critérios, o autêntico.
O passado, neste quadro, torna-se uma “garantia de veracidade” e o fator
legitimador de um costume ou de uma manifestação cultural, já que nele são encontradas as
tradições e é ele o manancial em que são buscados os elementos que serão os traços ou
marcadores de uma dada identidade. O critério “antigüidade” é confundido assim com
“autenticidade”, ou seja, quanto mais remoto, mais legítimo se torna.
Autêntico, numa dada concepção, opõe-se à cópia, ao falso, o que, no caso em
apreciação, reflete-se numa busca pelo “autêntico gaúcho” portador das “autênticas
tradições gaúchas”, o que implica falar no “verdadeiro gaúcho”. No entanto, numerosos são
os autores que mostraram como esta autenticidade é construída, assim como as tradições
nas quais ela se baseia. Porém, na ótica essencialista operada pelo tradicionalismo e o
gauchismo, a “identidade gaúcha” é naturalizada. Assim, a partir desta idéia, existiria uma
essência no “ser gaúcho” que o definiria como tal e essa assim chamada “essência” seria
traduzida e sintetizada e expressa pela figura emblemática do Gaúcho.
No que se refere ao discurso, dentro desta perspectiva essencialista, “o Gaúcho”
torna-se uma figura que, embora sem existência concreta, possui uma personalidade, uma
vida, tornando-se assim um referencial ao qual o grupo se volta e o utiliza para se definir
perante os outros.
Como o passado é legitimador, são as tradições as evocadas para estabelecer um elo
entre os homens do passado e os do presente. Mas o que se entende por tradição merece
uma apreciação.
Geralmente tradição é pensada como algo que é recebido do passado e mantém uma
permanência no presente, conservando-se de forma que mantenha uma configuração
idêntica à do modelo original. Esta noção pertence ao senso comum, mas também é
utilizada por muitos dos que trabalham com tradição e folclore. No entanto, ela é criticada
no sentido de que as manifestações ditas “tradicionais” também têm uma história que inclui
mudanças e variações e, se elas se mantêm no presente, não o fazem da mesma forma que
no passado, sendo, portanto, outro o seu significado.
A idéia de tradição como sobrevivência como algo cristalizado no tempo e no
espaço, faz com que se percam justamente à dinâmica e o sentido de determinada
manifestação cultural. Lévi-Strauss, falando sobre os rituais de Natal. Assim coloca: “As
explicações por sobrevivência são sempre incompletas; porque os costumes não
desaparecem nem sobrevivem sem razão. Quando eles subsistem, a causa se encontra
menos numa viscosidade histórica do que na permanência de uma função que a análise do
presente deve permitir a desvendar”. Fundamental, neste trecho, é a idéia do presente
como a referência que faz com que tal costume exista, não porque tenha escapado do
desaparecimento, um resíduo anacrônico do passado que se mantém por sua “bizarrice”,
mas por possuir um determinado significado para os homens do presente.
Eric Hobsbawm, fazendo uma diferenciação entre tradição, tradição inventada e costume, mostra como tais
manifestações são construídas e a que objetivos sua permanência serve. Eric Hobsbawm e Terence Ranger, A
invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e mm Terra, 1984. ”
Cf. Gérard Lenclud, “La tradition n’est plus ce quelle était...”, Terrain, n2.9, out., 1987 p. 110.
Claude Lévi-Strauss, apud Belmont, Arnold Van Gennep - Créateur de l’ethnographie française. Paris: Petit
Bibliotèque Payot, s.d., p. 25.
J. Pouillon, outro autor que trabalha a noção de tradição, afirma: “não se trata de
colocar o presente sobre o passado, mas de encontrar neste o esboço de soluções que nós
acreditamos justas hoje não porque das foram pensadas ontem, mas porque nós as
pensamos agora”. Comentando esta afirmação, G. Lenclud conclui que a tradição não é
(ou não é necessariamente) aquilo que sempre foi, ela é aquilo que nós a fazemos ser”.
Procurando definir tradição, Lenclud a percebe não como im produto do passado recebido
passivamente pelo presente, mas como um “ponto de vista”, uma interpretação desse
passado.
Desta forma, para diversos autores, a tradição é vista pelo caminho inverso, isto é,
ela adquire significado hoje para os homens do presente, ou, como diz Ortega y Gasset, “a
tradição é uma colaboração que nós pedimos ao nosso passado para resolver nossos
problemas atuais”.
Assim, a perspectiva por meio da qual as tradições geralmente são vistas é alterada,
passando o seu referencial do passado para o presente, e isto nos traz de volta à questão
inicial acerca da cultura tradicional e tradicionalista e, para tal, é necessário percorrer um
pouco a história e as idéias do gauchismo em geral e do tradicionalismo em particular.
[...] no solo asumió Ia defensa memoriosa dei gaúcho que desapa-recía dei horizonte real
de Ia pátria, sino que intento una suerte de , “ressurreccíon material” dei gauchaje, con Ia
fundación de Ia ”Sociedad Criolla”, que hoy ostenta orgullosa su nombre, Ia que se
convertió en sarítuario y pontual centro de reunión de sus românticos evocadores.
Pouillon, apud Gérard Lenclud, op. cit., p. 118.
Cf. ibidem.
Ortega y Gasset, apud Paul Zumthor, “Uoubli et la tradition”, in Politiques de 1’oubli. Le genre humain.
Paris: Seuil, 1988, p. 105.
Assunção, op. cit., p. 451.
durante a infância e a juventude, fazendo com que viesse a familiarizar-se com o modo de
vida deles muito cedo.
Cezimbra Jaques entrou para o exército em plena Guerra do Paraguai. Terminada a
guerra, permaneceu no exército como militar profissional, fazendo carreira nos cursos e
escolas militares e chegando ao posto de major. Sua atividade no exército fez com que
conhecesse grande parte do território rio-grandense, tanto geograficamente quanto no que se
refere à população, particularmence aos grupos indígenas, pois falava o idioma guarani e
manteve vários contatos com esse povo. Destas experiências e observações surgiram sete ou
oito livros, sendo o primeiro Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul, publicado
pela primeira vez em 1883.
Em sua obra, é possível observar a forte influência de Augusto Comte,
principalmente nas concepções positivistas sobre a família, a hierarquia social e,
fundamentalmente, no que concerne a este trabalho, a tradição. Mas cabe lembrar que,
mesmo sendo um adepto de Comte, o positivismo de Cezimbra Jaques fazia parte daquele
positivismo à la gaúcha, isto é, uma versão particular do comtismo que existiu no Rio
Grande do Sul, em que se aproveitava o que interessava à elite no poder e se esquecia (ou se
omitia) o que não atendia aos seus interesses. Esse positivismo “rio-grandense”, ou seja,
reinterpretado às condições locais, foi possuidor de uma grande força política e influenciou,
mesmo que de maneira difusa e confusa, vários aspectos da vida intelectual da região (entre
eles a historiografia local, o tradicionalismo e as concepções relativas à figura do gaúcho).
Segundo Nelson Boeira, especialmente após a morte do principal líder republicano local,
Júlio de Castilhos, passou-se a “sublinhar, de preferência, as virtudes moralizadoras do
comtismo. Procura-se então aproximar as fórmulas positivistas das Virtudes naturais do
gaúcho’”. As idéias e a prática de Cezimbra Jaques ilustram bem esta situação.
A justificativa para a criação do Grêmio Gaucho mostra alguns dos principais traços
e concepções que balizaram o tradicionalismo de outrora que ainda hoje são encontrados,
de uma outra forma, no tradicionalismo atuall. As razões para a criação do grêmio
situavam-se, segundo Cezimbra Jaques, nas características de sua época, a qual ele
descrevia como sendo de “indiferentismo e decadência”, quando as “tradições caíam no
esquecimento”, e de “desprezo ao nosso passado”, o que levaria à necessidade de “manter
vivas as tradições”, que são o elo com esse passado, relacionando tradição com atualidade e
cotidiano:
Certos elementos permitem vislumbrar o referencial utilizado pelo autor, tal como a
idéia de evolução. Cezimbra Jaques refere-se constantemente ao “progresso”, mas a um
progresso que não rompa com o passado, ponto no qual entra a atuação do grêmio. É a idéia
positivista de progresso e evolução, Conjugada com a de conservação (da qual fazem parte
também “ordem e progresso”); que norteia a criação do Grêmio Gaúcho.
Sobre a atuação da associação, Cezimbra Jaques propõe algo que será característico
da atuação do moderno tradicionalismo gaúcho, ou seja, mais do que formar um “museu
com peças antigas”, a associação deveria manter a vivência de determinados costumes,
como as danças e as músicas gauchescas, os “exercícios de cavalhada” e outros mais
.
Cultivemos, dentro dos limites de nossa sede social tudo quanto toca às honrosas e
gloriosas tradições dos nossos maiores, não nos limitando a guardar no museu da mesma
sede, no qual tudo é morto, artigo de usos do passado. Demos vida a tudo quanto é alegre,
nobre e grandioso pertencente aos nossos maiores, a tudo quanto mostrar possa os seus
bons caracteres.
Hoje, pode-se dizer que existe uma tendência de atribuir às tradições inventadas
recentemente, como as que o tradicionalismo e o gauchismo trabalham, uma antigüidade.
Pode-se mesmo dizer que toda uma série de representações que tocam à figura do gaúcho
transmitidas pela mídia, pelo discurso oficial e pela escola são, em grande parte, justamente
aquelas criadas pela cultura tradicionalista e que dentro dela adquirem sentido. No entanto,
são adotadas como “oficiais” e tidas como “tradicionais”. Mas, para isso, deve-se ver o que
é e como se construiu esta situação.
A assim chamada “cultura tradicionalista” foi definida por um dos fundadores do
tradicionalismo gaúcho desta nova fase, Barbosa Lessa: ”O âmago da questão era o
seguinte: com base na cultura tradicional - que respeitaríamos em todos aqueles elementos
que pudessem ser mantidos em Porto Alegre e alhures - teríamos de criar uma cultura
tradicionalista, adaptável às mais diversas situações de tempo e espaço”. Podemos observar
que a pretensão de seus fundadores era construir algo novo, um culto às tradições baseado
na cultura tradicional que implicou a criação da cultura tradicionalista - fruto desse culto e
por meio da qual :ste se realiza -, passível de ser utilizada em qualquer circunstância.
Barbosa Lessa; descrevendo o início do tradicionalismo em sua nova mais
importante fase, traça um quadro no qual um grupo de jovens, tia maioria estudantes com
menos de 20 anos, em 1948, na capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, cria o primeiro
Centro de Tradições Gaúchas, estopim do que viria a ser o Movimento Tradicionalista
Gaúcho e que institui formalmente o culto às tradições. Trata-se do 35 Centro de Tradições
Gaúchas, modelo para ajs demais associações tradicionalistas que foram sendo fundadas,
conhecidas em geral pela sigla CTG.
Em sua maioria, esses jovens eram provenientes de cidades do interior, tendo vindo
morar em Porto Alegre ern função de estudo. Poder-se-ia chamá-los de “jovens
provincianos”, não provenientes do campo, mas de pequenas cidades. Portanto, não se
tratava de um grupo de rústicos recém-vindos do campo sem saber como se comportar na
cidade, ou guascas, para utilizar o linguajar local. No entanto, a capital os impactava,
atingia-os de certa forma, especialmente no que se refere à modernidade e aos produtos
estrangeiros ali encontrados, como coloca Barbosa Lessa ao lembrar aquela época:
L. C. Barbosa Lessa, Nativismo, um fenômeno social gaúcho. Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 63.
Idem, op. cit.
Porto Alegre nos fascinava com seus anúncios luminosos a gás néon, Hollywood nos
estonteava com a tecnolorida beleza de Gene Tierney e as aventuras de Tyrone Power,as
lojas de discos punham em nossos ouvidos as irresistíveis harmonias de Harry James e
Tommie Dorsey mas, no fundo, preferíamos a segurança que somente nosso “pago” sabia
proporcionar, na solidariedade dos amigos, na alegria de encilhaar o “pingo” e no singelo
convívio das rodas de galpão.
Aqui trazemos um convite aos gaúchos que, embora residindo na capital e tendo hábitos
citadinos [sic], guardam ainda nas veias o sangue forte da terra rio-grandense. É sobre a
fundação de um clube -. tradicionalista. Terá por finalidade reunir no mesmo rodeio os
guapos das muitas querências do Rio Grande, mas agora residindo em Porto Alegre. No
primeiro sábado de novembro realizaremos uma reunião preparatória das atividades, para
que todos sejam orientados, e assim entrem na cancha, em março, de relho em pé, prontos
para a vitória. Viva o Rio Grande do Sul.
Idem, op. cit., p. 56.
Idem, op. cit., p. 57.
“Causos” são pequenas histórias contadas no Rio Grande do Sul que fazem parte das tradições orais da
região
espaço privilegiado para este intento, pois é justamente o local oposto ao de trabalho,
dedicado apenas ao descanso e ao lazer. Estes gaúchos pretendiam, recriando na cidade um
elemento próprio do campo, assumir-se enquanto Gaúchos. Não havia uma pretensão à
pesquisa ou ao estudo, mas à vivência, no que Barbosa Lessa é claro: “[...] não
pretendíamos escrever sobre o gaúcho ou escrever sobre o galpão: desde o primeiro
momento encarnamos em nós mesmos a figura do gaúcho, vestindo e faiando à moda
galponeira, e nos sentíamos donos do mundo quando nos reuníamos, sábados à tarde em
nosso fogo-de-chão” (grifo no original).
Movimento urbano, o tradicionalismo gaúcho nasceu e implantouse nas cidades,
recriando, porém, um modelo rural. Expandindo-se como gauchismo, indo além dos limites
do MTG, exprime-se por um grande número de práticas e manifestações culturais nas quais
a figura do gaúcho é vivenciada, ou seja, os participantes personificam, quase que
“encarnam” uma figura (o gaúcho), um tempo (o passado) e um espaço (o pampa)
imaginários. Os participantes procuram reconstituir determinados usos e costumes ditos
“tradicionais” e, assim, “viver o gaúcho” vive-se um outro e vive-se em um outro.
E é daí, desta vivência, que trabalha com o imaginário (incluindo a fantasia), que
advém grande parte da força do movimento: cada um pode viver o seu gaúcho, tal como o
imagina. Assim, seja a quem for, o gauchismo oferece uma possibilidade de vivenciar uma
figura altamente prestigiada, fornecendo um patrimônio cultural e o inscrevendo numa
história coletiva, mobilizando, assim, expectativas e sentimentos, dentre os quais o de
pertencer a um grupo.
Desta forma, o gauchismo opera a partir de uma visão do passado rural, o que
implica a criação e a recriação de manifestações associadas à figura do gaúcho, e é desta
atualização do passado que emerge a cultura tradicionalista, como mostra Barbosa Lessa:
Quando algum elemento faltasse para a nossa ação, nós teríamos de suprir a lacuna de um
jeito ou de outro. Assim, por exemplo, qual o adjetivo que daríamos a nós mesmos quando
estivéssemos vestidos à gaúcha? Alguém sugeriu “aperado”. Mas ”apero” é arreiamento, é
roupa de cavalo, o termo não ficava bem. Então, na atade 8 de maio de 1948 o secretário
Antônio Cândido se lembrou que pilcha é dinheiro ou o objeto de uso pessoal que possa ter
um valor pecuniário. ”Vamos oferecer ao patrão de honra, Paixão, um churrasco, ao qual a
indiada deverá vir toda pilchada”. E esse invento colou.
O próprio Paixão Cortes, há alguns anos, foi intensamente criticado por ter realizado
um comercial para uma marca de café solúvel dizendo chega de café de chaleira”. Para
alguns integrantes do movimento, este ato foi considerado um crime capital e ainda hoje é
lembrado.
Na medida em que cultura tradicional e cultura tradicionalista são confundidas, o
critério “autenticidade e pureza” adquire contornos próprios. Entre os participantes do
gauchismo e sobretudo entre os tradicionalistas (compreendendo até mesmo alguns de seus
dirigentes), é corrente a idéia de que, ao personificarem o gaúcho, estão, objetivamente,
restabelecendo o gaúcho original, tal como existia no passado.
J. C. Paixão Cortes, Falando em tradição e folclore gaúcho, 1981, p. 21.
Autenticidade, tal como é trabalhada no gauchismo, é um conceito ambíguo.
Podemos ver este fato no caso de uma nova composição ser au não aceita pelos critérios de
autenticidade. Um poncho, ou pala, com as cores da bandeira do Rio Grande do Sul,
vermelho, amarelo e verde, por exemplo, não é “tradicional”, pois não é uma sobrevivência
de uma vestimenta do passado - não nessas cores -, porém não há problema maior em sua
utilização para o gauchismo, não por ser considerado “autêntico”, mas “aceitável”, pois é
uma forma de expressar o sentimento de pertencimento. Já não seria “aceitável” se fosse
com outra combinação de cores.
Desta forma, o gauchismo em geral e o tradicionalismo em particular constróem a
chamada “cultura tradicionalista” como uma “cultura de evocação” de inspiração
essencialista, fundamentada num passado rural idealizado, glorioso e idílico, mas ancorada
nas necessidades dos homens do presente. Ou seja, a personificação do gaúcho é feita por
homens do presente e, sobretudo, das cidades, por meio da evocação do homem da estância.
Ao tentarem reproduzir os homens do passado e do campo, jogam com memórias e
vivências a partir de idéias, valores e julgamentos do presente. Desta maneira, trabalhando
com os elementos tradicionais, o gauchismo constitui uma atualização do passado que
pretende a autenticidade, mas implica a criação e recriação, a cultura tradicionalista.
Implica, de fato, permanente transformação, na qual, cada vez mais, surgem novas formas,
novos termos, novos sentidos. A capacidade de viver “um outro”, quase como num
processo de “carnavalização”, propiciando que os gaúchos vivam “um gaúcho”, ou, no
caso, “o Gaúcho”, a partir de um modelo - a figura emblemática - livre das amarras do
cotidiano, cantado e glorificado, é um de seus principais atrativos, e não é por acaso que o
gauchismo, assim, tem tanto sucesso.
GLOSSÁRIO
Aperado -Vem de aperos, arreios. Não confundir com aperreado, tristonho, deprimido,
enfraquecido.
Boleadeiras - Instrumento composto de três pedras redondas envoltas em couro e ligadas
entre si. Era lançado em direção das patas de um animal para, enroscando-se, fazê-lo cair.
Bombachas - Calças largas presas aos tornozelos. Parte da vestimenta típica do gaúcho.
Capataz - Encarregado de chefiar os trabalhadores da estância e/ou administrá-la no que se
refere às lides pastoris.
Chula - Dança que consiste em sapateado e outras figuras performativas ao redor de um
bastão ou lança.
fogo -de-chão - Fogueira em torno da qual as pessoas se reúnem.
Galpão - Construção existente nas estâncias e fazendas para abrigar pessoas, animais, servir
como depósito de arreios, grãos e materiais diversos. No tradicionalismo, sede do CTG.
Gaudério - Pessoa sem ocupação regular. Vagabundo, andarilho. Buapo - Forte e valente,
bonito.
Invernada - Campo cercado para diversos usos relacionados ao gado. Departamento de um
CTG.
Pala - Poncho leve.
Pilcha - Dinheiro, adorno, jóia ou roupa, sempre algo de valor. A partir do tradicionalismo,
vestimenta típica de gaúcho.
Piquetes - No sentido do texto, um tipo de associação tradicionalista. É, originalmente,
usado para indicar um pequeno espaço para os animais de uso diário, em geral perto da
casa, ou uma tarefa cotidiana.
Poncho - Espécie de capa retangular com abertura no meio, por onde passa a cabeça.
Prenda - Mulher tradicionalista.
Querência - Lugar de nascimento ou de criação.
Sota-capataz - Numa estância, aquele que está imediatamente abaixo do capataz. Cargo de
diretoria de um CTG.
Tirador - Espécie de avental de couro usado pelos laçado rés para protegerem-se do atrito
do laço.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELMONT, Nicole. Arnold Van Gennep -Createur de l’ethnographie française. Paris, s.d.,
Petit Bibliotèque Payot.
CEZIMBRA JAQUES, João. Assuntos do Rio Grande do Sul. Portei Alegre: ERUS, 1979
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HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
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LENCLUD, Gérard. “Latradition n’est plus ce qu’elle était...”, Terrain, nfl9, out., 1987.
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MORAES, Carlos Dante de. Figuras e ciclos da história rio-grandense. Porto Alegre:
Globo, OLIVEN, Ruben George. Aparte e o todo. Petrópolis: Vozes, 1992.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: USP, 1974.
Gostaria de propor aqui uma discussão que é fruto de desdobramento de pesquisa mais
ampla, referente ao diálogo entre gerações na produção de uma cultura do cotidiano.
Neste texto, a reflexão ganha feição inédita para atender aos propósitos do debate,
no sentido de ensejar ao outro, isto é, a pessoas das classes populares, o espaço para
registrar o valor de sua biografia. Trata-se de gente cuja voz tem ficado perdida na
memória, em face da exclusão social a que é submetida. A opção de trabalhar com pessoas
sofridas, que vivem e enfrentam muitas adversidades, levou-me ao desafio de aprender a
conviver com uma classe social que não é a minha e a buscar um encontro com o inusitado.
O foco, como é possível depreender, não está nas relações familiares, em si mesmas,
mas na cultura. E duas são as questões centrais: uma diz respeito ao modo pelo qual
gerações diferentes se encontram na vida cotidiana e constróem uma cultura original, que
em muitos aspectos se coloca em nítido contraponto com os valores da sociedade de
Paulo de Salles Oliveira, Vidas compartilhadas. Cultura e co-educação de gerações na vida cotidiana. São
Paulo: Hucitec, FAPESP, 1999.
consumo; a outra é de que modo estas pessoas, avós e netos pobres, modificam-se
reciprocamente, especialmente os avós, contrariando a crença difundida de que uma pessoa,
por ser mais velha, não muda mais.
A intenção é se debruçar sobre o que a sociedade de consumo descarta, sobre
personagens que estão relegadas e que pouco contam nas (representações predominantes no
interior de nossa sociedade. São pessoas excluídas até mesmo gramaticalmente. For
exemplo: não raro indagamos ao velho: “o que o senhor fez na vida?” Ou, então, à criança:
“o que você vai ser quando crescer?” Inadvertidamente, agimos como se, para eles, não
existisse presente: o velho já foi, a criança ainda vai ser.
No entanto, essas pessoas aqui estão. Convivem conosco, neste tempo. Coabitam
este mundo. E teriam muito a nos ensinar, desde que estivéssemos propensos a dar-lhes
atenção.
Para fazer a pesquisa, procurei, em diferentes bairros periféricos, idosos que viviam
a situação de estarem cuidando dos netos. Contei com a colaboração de pessoas que
atuaram como intermediários, gente que me conhecia e conhecia também as pessoas que
seriam entrevistadas. Precisava encontrá-las dispostas a me receber em diversas ocasiões
para as conversas individuais. Mais que isso, necessitava encontrar pessoas não somente
receptivas, mas que estivessem abertas para confiar em mim. Seria importante que
estivessem seguras de que eu não era um fiscal do governo, um assistente social ou então
alguém que estava usando um subterfúgio qualquer para controlar ou se intrometer em sua
vida. Fazia-se necessário, portanto, que elas me enxergassem naquilo que efetivamente sou:
um professor universitário fazendo pesquisa. De minha parte,devia fazer de tudo para
respeitá-las, para discernir, acatar e me adequar à dinâmica de seus hábitos e, assim,
procurar ser merecedor da consideração daquela gente. Esta conquista revelava-se
extremamente importante, pois, desta forma, não obteria respostas protocolares, evasivas ou
apressadas, formuladas de qualquer jeito para se livrarem logo da situação de pesquisa.
Felizmente, consegui travar com elas todas um relacionamento de proximidade, o
que muito me ajudou, pois só se abre o coração a quem mereça apreço. O relacionamento
caloroso reiteradas vezes chegou a me surpreender. E aqui gostaria de dar ao menos dois
exemplos. Um deles foi quando fui conhecer dona Betânia.
Falei duas vezes com sua filha, que trabalha como cozinheira em um supermercado,
para que ficassem acertados o dia e a hora do primeiro contato. Quando finalmente chegou
esse momento, vi-me diante de uma casa ao redor da qual não havia muros tampouco cerca
demarcatória. Percebi que existia na lateral uma porta aberta e resolvi me aproximar a
passos tímidos. Ao chegar junto do batente, notei que uma senhora assistia à televisão
sentada no sofá. Pensei em bater palmas, mas desisti porque achei que poderia assustá-la.
Imaginei que melhor seria cumprimentar. Então, no mesmo instante em que eu disse “boa
tarde”, aquela senhora deu uma volumosa baforada no cachimbo e se voltou para a porta ao
ouvir a minha voz. Saudou-me também e, num gesto ditado pelo costume, estendeu o braço
ao chão para repousar o pito no interior de uma lata, adequadamente colocada ao alcance
das mãos. “Vamos chegar!”, completou ela, pedindo que me sentasse na poltrona a seu
lado.
Iniciei a conversa me apresentando e falando dos contatos que tive antes com sua
filha. Para minha surpresa, ela de nada sabia a meu respeito. Não havia sido comunicada.
Experimentei naquele instante o sabor da surpresa ao distinguir que, nos dias de hoje, uma
pessoa como dona Betânia, que vive entre nós, primeiro pensou em me receber e bem
acomodar para depois indagar do que se tratava. Portanto, considerando apenas este
momento particular, quanto aprendizado ele encerra! Da parte de dona Betânia, a
generosidade, a acolhida fraterna. Como imaginar que algo assim teria lugar neste tempo
em que vivemos? Da parte da filha, o desdém para com os velhos e, numa escala bem
menor, também para comigo. Imagino que ela estivesse pensando que as tratativas iniciais,
que tive com ela , eram pura perda de tempo. Eu deveria ir até lá que a velha iria me atender
sem que nada precisasse ser combinado, Afinal, passava o dia em casa...
Outro exemplo marcante foi o modo pelo qual fui me encontrar com Dona Jacira. Estava no
ponto de ônibus do campus universitário, quando passou o carro do diretor da faculdade.
Pediu ao motorista que estacionasse o veículo e gentilmente se prontificou a me levar ao
centro da cidade. No meio do trajeto, diante da necessidade de alimentar alguma conversa,
surgiu a pergunta inevitável: o que você está pesquisando? Assim que respondi, algo
inesperado ocorreu. O comentário não veio do diretor, mas de Floriano, o motorista, que
considerou o tema muito interessante e se dispôs a me apresentar uma pessoa que cuidava
de muitos netos. Mas as surpresas não ficaram neste aspecto, apenas.
Ao conhecer dona Jacira, soube que ela assumiu esta responsabilidade não só em
relação aos netos, mas acolhia e cuidava de crianças cujas mães vinham pedir para que ela
as olhasse. Estas pessoas que para ali acorriam, é forçoso registrar, eram-lhe até então
totalmente desconhecidas. Fazia isso espontaneamente, sem nada cobrar, movida apenas
por um desprendimento incomum e um sentimento muito forte de solidariedade para com
os outros. A doação desta senhora é tão intensa que envolve a dimensão espacial. Certo dia,
ao chegar em casa, deparou-se com uma mulher que portava uma pequena criança nos
braços. Essa mulher era o que chamaríamos de estranha e estava no interior da casa,
acomodada no pequeno terraço, provavelmente para se abrigar do sol. Se dona Jacira agisse
como proprietária, sua primeira reação seria de espanto imediato com aquela intrusa a
invadir sua moradia. Todavia, em pessoas com o coração voltado para o mundo, inexiste
lugar para reverência ao ter. Não só a partilha incorpora o espaço como é a percepção das
necessidades do outro, de suas agruras e dificuldades, que orienta práticas e pensamentos.
“Sabe, meu filho”, diz-me ela, “eu penso, olho... Dá dó falar que não. Eu fico
aborrecida de recusar. Não, é tanto pela mãe, é pela criança. É por aquela criancinha...”
Imaginamos que pessoas como dona Betânia e dona Jacira só existem nos romances,
no cinema ou na telenovela. Parecem personagens de ficção.No entanto, elas aqui estão,
bem mais perto de nós do que se poderia imaginar.
Não é difícil notar que, para mim, foi intensa a emoção de perceber que a pesquisa
foi mostrando resultados já no momento em que ia sendo elaborada. Não foi preciso esperar
pela transcrição das entrevistas e pela interpretação dos dados. Por isso mesmo, fui levado a
reconhecer que essas pessoas, tanto avós quanto netos, deixaram-me lições surpreendentes.
Sob muitos aspectos, a pesquisa foi além dos seus objetivos nucleares e serviu também
para reeducar o próprio pesquisador.
A igualdade e as diferenças
A primeira grande lição talvez seja o fato de que não procuram camuflar suas
diferenças. Assumem e cultivam suas particularidades na convivência diária, mas o fazem
respeitando o outro na busca de relações igualitárias de existência. Somos iguais nos
direitos enquanto pessoas, mas somos diferentes em nossos traços particulares.
Estamos diante de sujeitos diferentes na idade, mas que coabitam um mesmo
mundo. Esse mesmo mundo, no entanto - em razão das peculiaridades das vivências -, é
visto de modo diverso por velhos e crianças. Um ponto essencial é que a coabitação de
pessoas diferentes não leva necessariamente à co-educação, pois poderia advir, ao contrário,
a rejeição, a recusa de aceitar o outro, tanto como interlocutor quanto como pessoa a quem
possa me dirigir para discutir problemas que me afetam. Neste contexto, prevaleceria a
relutância em identificar, nesse outro, alguém capaz de me entender e me ajudar.
Quando, porém, seres humanos se reconhecem ao mesmo tempo como iguais (nos
direitos enquanto pessoas) e diferentes (em suas particularidades), o cenário muda de
figura. Abre-se terreno para a co-educação, ou seja, cada geração se dispõe a partilhar com a
outra suas maneiras de agir e de interpretar o mundo; cada uma se coloca como emissora e
receptora de cultura alternadamente. A superposição de uma geração à outra não merece o
nome de co-educação, mas de dominação.
Vidas compartilhadas
No caso dos avós e netos pobres, de quem a princípio poucos esperariam alguma
coisa, a premissa de sua Vida é dividir com o outro, ou, numa única palavra, compartilhar.
Para os mais velhos, as crianças são fonte de renovação. Ensinam a ler, a escrever, a
falar (corrigindo seus erros), explicam as matérias da escola, trazem para casa as novidades,
contam as coisas do bairro e não se sentem envergonhados em convidar os avós para
brincar. Quem se lembra de convidar os mais velhos para partilhar alegrias? Os netos de
dona Rosalina tanto faziam que conseguiam que a avó saísse correndo atrás deles na
brincadeira do lenço; os de dona Alda a convidavam para cantar e dançar nas chamadas
festinhas que faziam no terraço. Quem poderia avaliar quanto este gesto - aparentemente
simples e despretensioso - encoraja e leva os mais velhos a buscar e encontrar uma energia
que eles mesmos já julgavam perdida irreversivelmente no tempo?
Não ter vergonha de brincar e de conviver com os velhos, familiarizá-los com as
coisas do mundo que desconhecem, eis uma parcela do ensinamento das crianças com quem
estive. Generosidade, despojamento, percepção orientada para as necessidades do outro,
seja ele alguém próximo, seja um desconhecido, ainda que isso implique (e, na maioria das
vezes, é o que de fato ocorre) enorme sacrifício, eis a grande oferenda e lição dos idosos.
Já aqui se pode antever como a situação criada-de alguém assumir (ou, conforme o
caso, ajudar) a criação dos netos - leva os mais velhos a modificarem seu modo de ser.
Pessoas que, por vezes, achavam-se relegadas, pesadas, na vida familiar, agora têm um
novo e inesperado desafio a enfrentar. E, ao aceitarem esse desafio, já neste ato está
implícita uma mudança nada desprezível. Não se recusando a assumir a responsabilidade
pelas crianças, são levados a alterar muito mais do que a rotina de vida. Abrem-se para uma
nova atuação e para uma nova compreensão das injunções da vida. Redescobrem dentro de
si um vigor que
Já imaginavam perdido; redefinem modos de agir e de pensar. Essas modificações, ás
vezes, escapam-lhes à consciência.Mas, se os velhos não as notam, seus próprios filhos
denunciam aquilo que se afigura, diante de seus olhos, surpreendente tolerância e
benevolência: “com eles [referindo-se às crianças] você faz assim, mas com a gente foi
muito diferente!”
Ao não se dar conta de quanto mudaram, alguns idosos chegam a relutar em admitir
a transformação. Mas, na condição de responsáveis pelos netos, sentem-se novamente
ligados à dinâmica da vida, instalados e reconhecidos como seres viventes. A missão que
têm a cumprir os repõe como seres atuantes no mundo presente. Se outrora se viam
relegados, deslocados, gramaticalmente excluídos, não se percebendo em lugar algum, no
exato momento em que assumem cuidar dos netos, simultaneamente, abraçam um
comprometimento maior com a vida. Recobram ânimo de elaborar um projeto para o
futuro, mesmo que ele se formule, inicialmente, no âmbito restrito de se cuidar mais para a
Pierre Clastres, em A sociedade contra o estado (2a ed., trad. T. Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1978), mostra no capítulo V, “O arco e o cesto”, que há uma simbologia entre os guaiaquis que associa arco-
homem e cesto-mulher. Ela é tão forte que estes são os únicos objetos que não podem ser tocados
indiferentemente por homens e mulheres. Seria uma transgressão séria, pois, se, por exemplo, uma mulher
pegasse um arco, ela atrairia sobre aquele que o possuísse o pane, o azar na caça e suas decorrências. Diz
Clastres que, “[...] quando um homem é vítima dessa verdadeira maldição, sendo incapaz de preencher sua
função de caçador, perde por isso mesmo sua própria natureza e sua substância lhe escapa: obrigado a
abandonar um arco doravante inútil, não lhe resta senão renunciar à sua masculinidade e, trágico e resignado,
encarrega-se de um cesto” (p. 75). O autor descobre que havia, entre eles, dois homens que, em razão dos
azares na caça, eram considerados panema e, assim, eram negativamente identificados e carregavam cestos.
Desses dois, um era homossexual, vivia com as mulheres e adotava atitudes e comportamentos femininos.
Sabia tecer e confeccionava colares com um refinamento de artífice incomum às próprias mulheres. Mantinha
relacionamentos com alguns caçadores, parecia ajustado à sua condição e ali encontrara, por meio de sua
homossexualidade, um lugar no interior do grupo. Era visto com certa indiferença pelas pessoas da tribo, que
não o hostilizavam. Até mesmo o modo de carregar o cesto que adotava, com a tira do suporte sobre a testa,
era o mesmo empregado pelas mulheres. O outro homem tinha uma história diferente. Sem arco, só podia se
dedicar à caça de tatus e quatis, capturados com as mãos. Essa prática, embora comum entre esses índios, não
possuía a mesma dignidade que a caça com arco. Era viúvo, mas, por ser um panema, nenhuma mulher se
interessava por ele, mesmo a título de marido secundário, já que a poliandria era prática adotada nesta tribo.
Este índio também não se integrou com seus familiares, pois a presença de um homem sem competência
técnica para caçar era indesejável: não trazia caça, mas tinha apetite. “Sem esposa porque sem arco, só lhe
restava aceitar sua triste sorte. Nunca acompanhava os outros homens em suas expedições de caça, mas partia
só, ou em companhia de mulheres, em busca de larvas, mel ou frutos que ele antes havia localizado. E, para
poder transportar o produto de sua coleta, munia-se de um cesto que uma mulher lhe havia dado de presente.
Como o azar na caça lhe obstruía o acesso às mulheres ele perdia, ao menos potencialmente sua qualidade de
homem e se achava assim rejeitado no campo simbólico do cesto” (p. 76). Era objeto de caçoada geral, se bem
que - segundo Clastres - desprovida de verdadeira maldade. com ou sem ela, o fato é que “os homens o
desprezavam nitidamente; as mulheres dele riam à socapa, e as crianças tinham por ele um respeito muito
menor do que pelos outros adultos” (p. 77). Mofttava.- se inquieto, nervoso e descontente, pois, embora
tivesse sido obrigado a renunciar parcialmente às determinações masculinas, permanecia um homem e
recusava-se a integrar-se às mulheres. Sua condição era inédita, pois não estava em lugar algum que fosse
nitidamente identificável na lógica dos guaiaquis. Era visto como anormal, daí talvez as hostilidades a ele
dirigidas. Imagina-se que a agressividade contra ele tenha produzido problemas psicológicos agudos de
abandono, de rejeição: Ele se colocava como ponto de contato entre duas regiões consagradamente separadas.
Carregava o cesto, mas “colocava a tira sobre o peito e nunca sobre a testa. Era claramente uma maneira
inconfortável, e muito mais fatigante do que a outra, de transportar a cesta; mas, era também para ele o único
meio de mostrar que, mesmo sem arco, continuava sendo homem” (p. 78).
tarefa que a vida lhes reservou de surpresa. “Peço a Deus saúde para poder olhar por eles
todos. Se não fizer, como há de ser?”, é comum ouvi-los mencionar.
Para as crianças, com os avós ali por perto, fica mais fácil e caloroso encarar o
presente e, além disso, travar contato com coisas preciosas do passado. O passado é narrado
com o calor, o sofrimento, a ternura ou a alegria de quem o viveu. Os avós que entrevistei
foram pessoas do campo ou, então, imigrantes nordestinos. As crianças ficam sabendo,
graças a eles, que água não vem da torneira, e sim do rio, para onde os avós, quando jovens,
eram obrigados a caminhar, por léguas e léguas, para lavar roupa. As roupas iam nas
bruacas, espécie de cestos atados no dorso dos burros, e as pessoas iam a pé. Este pormenor
não deixa de causar espanto nas crianças. Se elas hoje se dão conta de que a vida é dura,
talvez tenha sido ainda mais árdua numa época em que era muito raro aos pobres o acesso à
escola, tempo em que as crianças não tinham voz - eram ensinadas a sair da sala quando
chegasse uma visita e a não interromper nem fazer barulho quando adultos estivessem
conversando. Eventuais desobediências levavam a castigos severos e, muitas vezes, brutais.
Isso existe ainda hoje! - alguém poderia lembrar com justiça. Ocorre que atualmente há, ao
menos, instrumentos legais e uma unânime condenação moral da sociedade em torno das
práticas violentas, coisa que não havia tempos atrás.
A cultura oral
Walter Benjamin, “Experiência e pobreza”, in Documentos de cultura, documentos de barbárie. Escritos
escolhidos (sel. e apres. Willi Bolle; vários trads.). São Paulo: Cultrix, EDUSP,1986, pp. 195-98.
Idem, “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, in Obras escolhidas, 3ª ed. (trad. S. P.
Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 200.
oralidade que se manifesta de modo diverso; é também a expressão de uma cultura que sé
realiza principalmente no fazer e não no consumo de coisas prontas.
Os servicinhos
A prática corriqueira de pedir aos netos para sair e buscar alguma coisa que está
faltando remete-nos aos serviços domésticos. Estas e outras tarefas caseiras são uma
constante na vida cotidiana dessas crianças. Eis uma lista de exemplos: preparar o leite,
limpar o quarto, lavar o banheiro, limpar os móveis, lavar a casa, lavar a louça, recolher os
brinquedos e guardá-los após terminada a brincadeira, passar cera, enxugar a louça, guardar
os utensílios, varrer a casa, passar enceradeira, varrer a frente e o quintal, recolher o lixo,
arrumar as camas, lavar, estender, apanhar, dobrar e guardar as roupas.
As crianças devem estudar - dizem os avós -, mas devem também saber fazer as
coisas. É uma educação no serviço e nas letras, como disse o senhor Benedito, sintetizando
uma preocupação de todos. Assim, essas crianças são formadas por uma educação que não
separa atividades manuais das atividades intelectuais. Os avós querem que os netos ao
menos dominem um ofício para que saibam fazer por eles mesmos.
É importante perceber que, em certas ocasiões, às crianças conseguem transformar
algumas dessas tarefes em quase brincadeiras. Danila me conta como foi que realizou uma
de suas primeiras tarefas domésticas:
Um dia, não é, eu fui lavar a pia e fui botando detergente. Botei um monte de detergente e a
hora em que eu botei a água, foi subindo tudo! Sabe quando a gente aperta, passa, passa...
Não vai fazendo espuma? Vai fazendo espuma e eu não conseguia tirar o detergente! Eu
pelejando e não conseguia tirar! Agora eu já sei. E boto menos.
Interessante notar que foram tarefas concebidas e executadas na íntegra por crianças
que, algumas vezes até de forma bem-humorada, atravessam desafios, superam obstáculos e
trazem alegria para um trabalho sem fim, repetitivo e, por isso mesmo, nada risonho para os
adultos.
A reinterpretação também ocorre na assistência à televisão. De todas as pessoas
entrevistadas, sempre ouvi referências ao programa da apresentadora Xuxa.”O programa da
Xuxa é legal, diz dona Alda, assimilando uma linguagem própria de seus netos. Dona
Betânia disse não entender muito bem “aquelas carreiras lá”, mencionando a velocidade da
sucessão de planos na tela, nos desenhos animados difundidos pelo programa. Muito
embora os avós afirmem, de modo geral, que as crianças assistiriam à televisão o dia todo,
caso eles assim permitissem, o fato é que as coisas não se passam bem assim. As crianças
gostam dos desenhos, dos filmes e, em alguns casos, das novelas, que são o programa
preferido das avós. Algumas chegam a fazer parte das tarefas da escola diante do televisor,
outras não são tão cativas assim. Tão logo aparecem os comerciais, mudam de canal ou
saem para brincar, às vezes deixando ligado o receptor - desperdício sempre condenado
pelos mais velhos. Creio ser importante investigar o modo pelo qual o sentido da imagem é
recebido pelos espectadores. Muitas vezes, os referenciais exteriores nos induzem a ciladas.
Didier, por exemplo, foi um dos poucos que declararam não gostar da apresentadora,
mulher cuja beleza e empatia com as crianças sempre foram exaltadas pela grande maioria.
Indagado sobre a razão, respondeu que “nos jogos ela fica roubando para as meninas só
porque ela é menina!”. Ponderações como esta não pretendem minimizar a influência da
televisão sobre seu público, apenas sugerem que as afirmações sejam matizadas com base
na compreensão dos diferentes modos pelos quais se realiza a percepção. Nem sempre há
uma reprodução mecânica das mensagens no sentido em que foram idealizadas, indicando
que os receptores não assumem inteiramente uma postura de passividade. Pude notar, na
pesquisa, que assistir à televisão é algo que encanta as crianças, mas não a ponto de ofuscar
o interesse pelos brinquedos e pelas brincadeiras em casa, na rua ou na escola.
As brincadeiras e os brinquedos
Os avós, como já foi visto, são convidados a brincar. Além disso, também se
propõem a ajudar na brincadeira dos netos, fazendo ou ensinando a fazer pipas de folhas de
jornal, bonequinhas de pano, pequenos móveis e trenzinhos com material de caixas de
fósforos usadas, além dos vestidinhos para as bonecas mais simples, que as crianças
ganham no Natal e vêm sem roupa alguma, brinquedos simplórios de que se vale o prefeito
para tornar presente sua imagem.
As crianças também estão acostumadas a emprestar os brinquedos e o fazem com
naturalidade, ao menos para pessoas conhecidas, que cuidarão bem daqueles objetos. Ao
indagar a um menino como era a brincadeira de elástico, ele não hesitou em pedir à
irmãzinha que fosse à casa de Aline, sua amiga, para tomar emprestado o dela.
A mesma coisa ocorre com Jerry e um de seus amigos, que já se habituaram a trocar
mudas de plantas, sem que isto vire um toma-ládá-cá, e sim uma relação espontaneamente
cooperativa. Em todas as casas que visitei, há espaços de terra e, neles, árvores frutíferas e
plantas. As crianças crescem travando estreito contato com o solo não impermeabilizado,
diferentemente da maioria das residências da classe média, em que a racionalidade justifica
a prática de cimentar, ladrilhar, enfim, sufocar a terra. Outra constante na vida das pessoas
com quem estive é a convivência com animais, cachorros e pássaros principalmente. Fazem
parte do cotidiano.
São variadíssimos os brinquedos e as brincadeiras, mas chamou-me a atenção uma
delas, o janken-pon: o jogo japonês da tesoura (dedos em v), papel (mão espalmada) e pedra
(mão fechada). Serve para saber com quem vai ficar uma determinada brincadeira. A
tesoura corta o papel, o papel embrulha a pedra, e a pedra quebra a tesoura.
Claro está que nem tudo é ameno ou amigável. Há, na vizinhança, pessoas que
inspiram temor: ladrões, gente briguenta ou que apela sistematicamente para práticas
agressivas e intimidadoras. A violência penetra também brinquedos e brincadeiras. São
conhecidos os ralos de pipa, combates entre os empinadores para procurar cortar a linha do
rival, colando vidro moído e pó de ferro na linha. Brigas ocorrem com muita freqüência, e
as derivações se fazem presentes até mesmo no aparentemente pacato mão-na-mula, que
vira catraca quando as crianças, ao pularem por sobre o corpo de quem está curvado,
forçam-lhe o pescoço. A mesma brincadeira se transforma em esmagar o tomate quando
quem pula projeta e impulsiona seu peso sobre as costas do companheiro.
Não é só a violência física que se faz presente; a simbólica também emerge quando
alguém resolve revelar, a todos que estão próximos, problemas íntimos de determinada
pessoa, causando embaraços e constrangimentos, cuja dor e complexidade ficam difíceis de
aquilatar. Isso ocorre, por exemplo, quando uma criança conta a outras o problema de
incontinência urinaria de um dos colegas.
Os avós que entrevistei sempre tiveram por costume conversar bastante, aconselhar
e até mesmo ralhar com as crianças para definir os limites daquilo que é possível e daquilo
que não é possível fazer. O convívio respeitoso com os outros impõe-nos limites, e as
crianças focalizadas nesta pesquisa têm perfeitas condições de entender isso. Tapas
ocorrem, sim, mas - conforme dizem os avós – “só quando a boca não vence”. Pequenas
surras podem não ser a saída mais adequada, embora certamente não seja eu a pessoa mais
indicada a opinar. Ressalto, todavia, a necessidade do entendimento de que a liberdade
individual, se for irrestrita, poderá anular ou desfigurar a consideração ao outro. Por
exemplo, sujar deliberadamente um espaço significa desprezo ao trabalho que outros,
“curvando suas costas”, fizeram por nós, apagando vestígios e recolhendo nossos resíduos.
Cultivo da simplicidade
A cultura das pessoas pobres é uma cultura que se constrói fazendo. Não que sejam
insensíveis e refratárias às influências da cultura de massa. Sofrem quando seus netos
contam que a criança amiga comprou um sapato, um vestido, uma boneca, um objeto fora
do alcance naquele momento. “Vó, você vai me dar uni?”
Entendem, porém, que a cultura não é a soma de objetos: a coleção de livros, de
estátuas ou de quadros. Cultura é, para eles, no dizer de Alfredo Bosi, ação e trabalho. O
indivíduo será culto se trabalhar; é a partir do trabalho de criação que se formará a cultura.
O que mais interessa é o processo pelo qual se obtém um resultado e não a aquisição de
objetos. A cultura não é vivida como algo ornamental e encontra ali meios de se expressar
de modo não mercantilizado.
O processo de criação dessas pessoas é riquíssimo. Constróem juntas práticas e
significados para sua vida. Assumem, cada qual, o inacabamento. Mesmo os mais velhos
querem mudar, querem aprender e ensinar, querem recuperar a condição de sujeitos de sua
existência. O sinal de que sua vida está inacabada é dado pela presença dos netos. Estes, por
sua vez, percebem-se inacabados diante da riqueza de ensinamentos que recebem das
narrativas e práticas do passado e do presente dos avós. Aquilo que, a princípio, parecia
Ecléa Bosi, Memória e sociedade. Lembrança de velhos, 2ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz,1983, p. 31.
Alfredo Bosi, “Cultura como tradição”, in Gerd Bornheim et ai., Cultura brasileira: tradição/contradição. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, pp. 31-58.
Georges Lapassade, L’entrée dans la vie. Essai sur l’inachèvement de 1’homme. Paris: Minuit,1963.
sofrimento - a necessidade de olhar os netos - inaugura no fazer dessas pessoas um novo
entrar na vida. Não é um momento de retração; ao contrário, é um momento de despertar as
potencialidades que carregamos dentro de nós mesmos. Ao reconhecer o outro como
diferente, somos levados a perceber nosso inacabamento. Estamos diante de outro exemplo
concreto da proposta de Paulo Freire, pois aqui também os homens não se educam
sozinhos; eles se educam entre si, em comunhão.
Aprendemos e crescemos quando as diferenças são mutuamente respeitadas de
modo que um não sufoque o outro. Por isso são vidas compartilhadas, em que, como diria
Simone Weil, “as diferenças não diminuem a amizade e nem a amizade diminui as
diferenças”.
Saber acolher e combinar igualdade e diversidade, eis o desafio; desenvolver uma cultura
verdadeiramente democrática, uma cultura promotora das interações sociais solidárias, em
que existem, sim, conflitos e contradições, mas também o empenho em superá-los sem que
isso implique a anulação do outro.
Ecléa Bosi formula a orientação concisa e profunda: “Quando duas culturas se
defrontam não como predador e presa, mas como diferentes formas de existir, uma é para a
outra como uma revelação”. E assim se mostraram os avós e netos pobres: superaram suas
adversidades, recusaram o quadro sombrio da exclusão, reconheceram-se como iguais e
diferentes ao mesmo tempo, doaram-se reciprocamente e construíram juntos uma cultura
afetiva e solidária. Revelaram-se sujeitos plenos e, ao fazê-lo, mostraram o quilate de seus
ensinamentos como mestres na construção da generosidade, mostrando a grandeza que
encerram seus gestos e práticas singelos.
Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, pp. 27-71.
Apud Ecléa Bosi, Simone Weil, a razão dos vencidos, 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.14.
Idem, “Cultura e desenraizamento”, in Alfredo Bosi (org.), Cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1987, p. 16.
Capítulo 13
Introdução
Fui impulsionada pela colega de linha de pesquisa e amiga Stella Bresciani, que, ao escutar em minha casa a
história de Gabrielle, ao ver fptos de sua vida, disse-me: “O período é o teu, burguesia internacional é com
você mesmo, mas se não fizer um trabalho com essa história, eu faço!” Gabrieíle Brune-Sieler é tia-avó de
meu marido, Alain Jean Costilhes, neto do irmão de Gabrielle, Gustave Eugène.
Meu interesse pelo personagem vem desde meu mestrado, nos anos 1960, quando estudei as relações entre
Getúlio Vargas e a dita “oligarquia paulista”. Preocupava-me o percurso político de GV e não a^tradicional
biografia ”do berço ao túmulo”; era necessário, porém, que lesse suas biografias, em geral pouco objetivas
(claramente pró ou contra). Fui convidada, em meados dos anos 80, para escrever uma biografia de GV, mas
não tinha atração suficiente por ele para ficar sua prisioneira durante o tempo necessário para uma biografia de
alguém daquele porte. Mas, por outro lado, em cursos e outras atividades, fui, meio sem querer, aproximando-
me da biografia. Nos anos 1990, irritava-me perceber que os livros de não-ficção mais vendidos eram todos de
história, muitos deles biografias, mas nenhum escrito por historiador. Em 1994 aceitei convite para uma
pesquisa que resultou no livro Memória paulista (São Paulo: EDUSP, 1997), no qual faço um esboço de
Ao começar a me preocupar especificamente com o debate sobre a biografia, não
tinha idéia de que fosse tão antigo, tão controverso e tão constante e que a bibliografia fosse
tão antiga e volumosa; se alguém se propuser a ler tudo o que encontrei, nunca começará a
biografia que pretende fazer. Ao longo de mais ou menos 2 mil anos, autores viram a
biografia em oposição ou distintamente da história (chamando-a de “gênero compósito”,
“híbrido”, “controverso”, “problemático”,””gênero menor” e mesmo “uma tarefa
impossível ou uma “terra incógnita’), por diferentes razões nos diferentes momentos, num
percurso entre “ciência” e “arte”. Os problemas de interpretação de uma vida são
riquíssimos, pois nos defrontam com tudo o que constitui nossa própria vida e ados que nos
cercam.
Atualmente, a biografia, como aliás quase tudo o mais, é vista como parte da
história. Fala-se em um ”retorno” da biografia. Na verdade não há um retorno, pois
biografias - fatuais e lineares - sempre houve e sempre haverá; além do mais, falar em
retorno é algo bastante francês, pois no mundo anglo-saxão a biografia teve sempre uma
aceitação maior pela história. Percebendo uma grande proximidade entre esse dito retorno
e um outro, o da história política, concluo que seus pontos em pomum provêm da ampla
renovação historiográfica que temos vivido nas últimas décadas. Os motivos do interesse
atual pela biografia podem ser agrupados em dois eixos interligados: um primeiro eixo que
diz respeito aos movimentos da sociedade, e um segundo que se refere à evolução do
conhecimento histórico, a partir das influências interdisciplinares.
No primeiro eixo destaca-se, além de uma importância inicial da experiência
democrática depois da Primeira Guerra Mundial, um reforço enorme do individualismo,
constatado por muitos dos autores: cada vez mais o indivíduo tem seu espaço na sociedade
e cada vez mais o homem se detém nele mesmo. Também tem seu papel o debate sobre a
liberdade do indivíduo e sua relação com a sociedade, por meio da discussão das normas e
valores, a partir, das desilusões já muito discutidas da crise do marxismo e das utopias.
Além de tudo isso, a mídia entretém hoje uma grande fome de imagens e de testemunhos,
uma enorme curiosidade, sobre a vida dos outros: quer-se “consumir a vida/dos outros”,
próximos e longínquos. Acho que o grande e recente boom da memória pode-se entender
biografia de um capitão da Força Pública de São Paulo, o qual deixou curiosa memória sobre a Revolução
Paulista de 1932.
Ao se ler sobre a biografia, percebe-se de imediato quantas áreas importantes da história com ela se cruzam
ou mesmo com ela se confundem, quantos temas nela estão contidos ou próximos: micro-história/estudos de
caso; autobiografia; prosopografia; história oral/ histórias de vida; dicionários biográficos. Também trabalhos
sobre vida cotidiana, sensibilidade, sociabilidade, discussão sobre memória, geração/gênero/família, história
das “minorias”: mulheres, cultura popular etc.
Na França, o chamado retorno deu-se a partir dos anos 1970, com as histórias de vida da sociologia e da
antropologia. Nos anos 80, aparecem ensaios de historiadores que acentuavam “le retour du vécu et de
1’individu”, com uma “avalanche biographique multiforme, du triomphe du ’récit de vie’ à Ia passion nouvelle
des ’grands hommmes’”. Esta tendência toda me parece culminar na afirmação de Jacques Le Goff, no jornal
parisiense Liberation em 7/10/1999, classificando a biografia como le sommet du travail de1’historien”.
Segundo alguns analistas, a dita história total quer tudo englobar, até mesmo, portanto, a biografia. Segundo
P. Lévillaín, a abertura de arquivos privados na França teve também importante papel no retorno; ver Phillipe
Lévillain, “Lês protagonistes: de la biographie”, in Pour une histoirepolitique. Paris: Seuil, 1988 (ed.
brasileira: Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas).
Ver prefácio de G. Balandier em Franco Ferrarotti, Histoire et histoires de vie - La méthode biographique
dans les sciences sociales. Paris: Méridiens Kliencksieck, 1990.
também nessa linha (próxima fundamentalmente à perda de identidade causada pela
massificação, midiatização e pela dita globalização atuais).
Em relação ao segundo eixo, começo por lembrar as também já destacadas
mudanças nas formas de escrever a história, derivadas das crises dos grandes paradigmas
(marxismo e estruturalismo, particularmente na França do desprestígio da forte história
quantitativa/serial). Assim, percebem-se reações contra conceitos totalizantes como classe e
mentalidades, contra categorias predeterminadas (como revolução), e um favorecimento da
experiência. Pode-se lembrar também o triunfo de um polimorfismo do homem (vindo da
literatura, da psicanálise). E ainda um individualismo metodológico, constatação que pode
ser feita em áreas como economia, direito, sociologia, que explica os fenômenos coletivos
pelos comportamentos e estratégias individuais.
GabrielleBrune-Sieler
Próximo a isso, surgiu o interesse pelos “excluídos” ou os “vencidos” da história, a classe operária ou os
trabalhadores e outros grupos mais, como as ditas minorias sociológicas (negros, mulheres, homossexuais etc.)
Ver Phillipe Lévillain, op. cit.
Fotos de Georges Leuzinger fazem parte do catálogo da Mostra do Redescobrimento, O olhar distante. São
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000, pp. 248-51. Ele recebeu a única distinção feita ao Brasil na
Exposição Internacional de Paris, em 1867.
Ver M. Lúcia David de Sanson et ai., O Rio de Janeiro do fotógrafo Leuzinger: ’f 860-1870, Rio de Janeiro:
Sextante Artes, 1998; ver também Laurence Hallewell, O livro no Brasil (sua história). São Paulo: T. A.
Queiroz, EDUSP, 1985.
Como, dentre muitos, Maximiliano da Áustria e o filho do rei francês Louis Philippe, artistas como Charles
de Ribeyrolles, autor de Brasil pittoresco, e o conhecido naturalista suíço Luis Agassiz.
Abreu e Joaquim Nabuco, e, entre outras, Inocência, de A. de Taunay, e A moreninha, de J.
M. deMacedo.
Georges Leuzinger teve 13 filhos, com dez sobreviventes, entre os quais Eugénie
Leuzinger, que se casou aos 23 anos com Gustave Léon Masset, 12 anos mais velho do que
ela; Gustave viera havia aproximadamente 20 anos para o Brasil - em meados do século -,
de família francesa de Annecy, e vivia do comércio de moda, na mesma Rua do Ouvidor
onde o futuro sogro estava instalado e que era o centro do comércio mais elegante da época.
Ao se casarem, foram residir em cima de sua loja, mudando-se mais tarde para uma casa
que construíram em Botafogo, na Rua Dona Mariana. Tiveram, conforme a época, sete
filhos, e todos, exceto um, casaram-se com estrangeiros. Uma das filhas- a quinta, creio -
foi Gabrielle.Sua mãe, Eugénie, ficou viúva aos 34 anos, depois de longa doença do marido,
precedida de uma falência financeira resultante de períodos de longas dificuldades
comerciais, que os forçou a abandonar a residência de Botafogo. Eugénie, sozinha e sem
outros meios de subsistência para educar os filhos, criou e dirigiu um estabelecimento de
ensino, o Colégio Masset, na Rua do Catête, no bairro de Botafogo. Ela resgatou mais
tarde a hipoteca da casa da Rua Dona Mariana com o dinheiro que ganhara com seu
“trabalho honrado”, fato que é um dos orgulhos de seus descendentes. Segundo se lê em seu
belíssimo e comovente diário- que mostra uma mulher que aceitava sua sorte, mas a
enfrentavacomo uma lutadora -, Eugénie dormia entre sua prole em enorme salão do
colégio, e foi nesse seu estabelecimento que os educou, segundo acredita e registra, bastante
bem.
Sua filha Gabrielleescrevia normalmente em francês, como se conversava em sua
família (e como foi escrito o diário da mãe). Segundo depoimentos sobre Gabrielle, ela era
alguém “a par de conhecimentos gerais, de artes, história, política”, “falava vários idiomas e
até escrevia regularmente o francês e o alemão”. Foi criada no catolicismo, pois a mãe era
profundamente praticante. Assim ela viveu a infância e a juventude em meio a uma
sociedade carioca que cultuava a atração pela Europa civilizada e era sobretudo francófila.
Depois de tantos sobressaltos financeiros na infância, Gabrielle casou-se aos 19
anos com um capitalista alemão, Georg Brune, dono de uma casa Oscar Phillipi -
Rio/Manchester, onde provavelmente fez sua enorme fortuna. Não sei claramente se era
representante do Brazilianische Bank fur Deutschland (Banco Brasileiro Alemão), um dos
bancos estrangeiros que participaram de uma moratória no governo Campos Sales e que
emprestaram dinheiro ao Brasil, ou se somente ali tinha parte de sua fortuna. Esse banco
teve enorme papel na vida de Gabrielle, porque não somente seus dois maridos estavam a
ele ligados como nele trabalharam (ao que percebo, introduzidos por Georg Brune) seus
irmãos Gustave e Georges e seu querido sobrinho Paulo Guimarães Masset (filho de
Georges); além disso, sua fortuna brasileira estava (em parte?) nele aplicada.
Vivendo com Brune por volta de 15 anos, Gabrielle definia-se como “esposa”, numa
visão que se poderia esperar na época. Entretanto, aos 9 anos teria, segundo conta,
Em uma das três cartas encontradas, escritas à mãe na França, Gustave Léon menciona as graves
dificuldades que a guerra de 1870 entre França e Alemanha trazia para seu comércio no Rio de Janeiro.
Sua tia, a baronesa de Geslin, já dirigira conhecido colégio para meninas no bairro de São Clemente; mais
tarde, suas sobrinhas-netas reavivaram o Colégio Masset.
Para uma visão sobre mulheres brasileiras desse período, ver Marina Maluf e M. Lúcia Mott, “Recônditos
do mundo feminino”, in Nicolau Sevcenko (org.), História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia
declarado que gostaria de ter um cargo político”; depois, durante sua vida, mencionou por
mais de uma vez desejo de casar-se com algum político importante. Posso imaginar que em
sua casa escutou comentários e informações impressionantes, tanto do marido como de seus
visitantes e contatos, pois afirmava recorrentemente conhecer “segredos incríveis da
política mundial e brasileira , saber de “crimes de banqueiros alemães e políticos
brasileiros” que ela não poderia contar para “o universo não perder a paz”. Brune, 12 anos
mais velho do que ela (e, segundo referências familiares, impotente -- o que deve ter
acontecido somente no final, pois há registro de um aborto em cada casamento), faleceu de
síncope cardíaca em julho de1912. Devido à sua origem alemã, durante a Primeira Grande
Guerra (1914-1918) os países aliados confiscaram seus avultados bens no exterior. Durante
um quarto de século, Gabrielle se esforçou por reavê-los, apelando até para o Tribunal de
Haia; somente em 1937, quando já estava interditada, doente e combalida, três anos antes
de sua morte, esses bens voltaram a sua posse.
Depois de dez meses de viuvez, casou-se novamente, desta vez quase aos 40 anos,
em regime de separação de bens, com Friedrich Wilhem Sieler, o “Willy”. Também
alemão, funcionário do Brazilianische Bank, mas sem fortuna e bem mais jovem do que ela.
Gabrielle reclamava que ele lhe trouxera “dívidas avultadas”. Ela passou a usar, durante
toda a vida, o sobrenome dos dois maridos, por ordem de casamento, com um hífen. Logo
se mudaram pra São Paulo e foram morar na então suntuosa Avenida Paulista (nº 44B),
numa casa projetada pelo famoso arquiteto Victor Dubugras, ao lado do atual Conjunto
Nacional. Gabrielle emprestara ao segundo marido - ou pedira-lhe que administrasse- uma
significativa quantia em dinheiro, que Willy provavelmente movimentava na agência do
Bank da qual era subgerente (ou diretor, são mencionadas as duas funções) em São Paulo.
Depois, arrependida, tentou retirar a quantia, mas não conseguiu; ameaçava-o também com
o divórcio.
Aos 40 anos, em 1914, redigiu com um advogado seu primeiro testamento. Legou
someate uma jóia - um coração de ouro - ao marido, que ela viu como uma imagem do
“coração seu”, que ele “exigia dela”; mas “o sobejo desta minha fortuna particular deixo
para formar uma nova associação que ponha abaixo a lei que uma mulher independente
tenha que suportar maus tratos de seu esposo”. Creio que Gabrielle se referia à legislação de
1890, que conferia ao marido, “sem qualquer dissimulação, a chefia da sociedade conjugal,
bem como a responsabilidade pública da família, além de caber a ele a completa
manutenção dos seus, e a administração e usofruto de todos os bens, inclusive dos que
tivessem sido trazidos pela esposa no contrato de casamento”. E acrescentou, para não
deixar dúvidas: “Esse, fazendo sua fortuna a sua custa, durante dois anos, por [ela] não ter
testemunhas e querer evitar escândalo”. Em 18 de janeiro de 1915, à noite, ern casa, Willy
tentou matá-la, ferindo-a com um tiro no ombro esquerdo, e depois se suicidou. No
inquérito policial, foi apontada como causa de tudo uma “violenta neurastenia” do marido.
das Letras, 1998, vol. 3; e Susan Besse, Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero
no Brasil, 1914-1940. São Paulo: EDUSP, 1999.
Este fato está em memórias da época. Ver Laura Oliveira Rodrigo Octávio, Elos de uma corrente. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p. 235; embora seu sobrenome apareça grafado como Brumm-Ziller.
Ver Marina Maluf e M. Lúcia Mott, op. cit., p. 375.
As memórias acima citadas e a imprensa da época relatam o incidente, além das inúmeras referências no
processo de anulação dos testamentos.
Gabrielle indignava-se com o fato de a família alemã de Willy querer ser herdeira dele,
porque - o que provavelmente mais a irritava - era um dinheiro que, a seu ver, pertencia-lhe
e que ela considerava somente emprestado a Willy e, conseqüentemente, ao banco. Ela
abriu um processo contra o Bank; por causa disso, seu irmão Gustave, que lá trabalhava,
rompeu relações com ela (embora não o tenham feito o irmão menor e o sobrinho, que
estavam na mesma situação). Assim, aos poucos, nessas circunstâncias de vida, foi-se
definindo sua imagem de querelante, de difícil, de esquisita.
Voltando a morar no Rio, ainda muito rica, cheia de propriedades e jóias, sempre
em choque com os familiares, embora freqüentando-os constantemente, Gabrielle levava,
ao que parece, uma vida social ativa. As fotos, os comentários na imprensa, a memória
familiar revelam que chamava atenção pela beleza, pelos trajes que usava nos espetáculos
da temporada lírica no Teatro Municipal (que freqüentava levada pelo sobrinho Paulo). Ela
foi a inspiradora de um personagem (de pequeno destaque) no romance de Afrânio Peixoto
As razões ao coração, publicado em 1924; este descreve a sociedade carioca da época,
com várias referências a uma “bela Madame Klotz” ou ”Mata-Boche”, ”a barbaazul”, ”la
femme qui assassina”, uma figura feminina que circulava nos altos meios, à procura de
mais um marido e provocando inevitáveis comentários.
Para reaver sua fortuna internacional, em boa parte confiscada ou reivindicada na
Alemanha pela família de seus ex-maridos, Gabrielle fez inúmeros apelos por cartas e
empreendeu diversas viagens aos Estados Unidos, à Inglaterra, França, Alemanha etc. Pedia
o apoio de pessoas publicas influentes e contratava conhecidos advogados para que
cuidassem de seus interesses. Sempre muito original, em seu segundo testamento, redigido
em 1924, pede para, depois de sua morte, ter o corpo lançado no Canal do Panamá, pois no
Brasil fora muito maltratada; mas :ambém contratou o famoso jurista carioca Rodrigo
Otávio para a curiosa função - entre outras, é claro - de comprar-lhe um terreno no ílegante
Cemitério São João Batista, onde queria ser enterrada entre os dois maridos.
Em 1924, em Paris, em uma das viagens em busca de seus bens, acabou por se
envolver com a polícia francesa, pois foi presa como suspeita de querer matar o presidente
do conselho, Édouard Herriot, numa tentativa de entrevista. Havia muitos anos (e até o final
da vida), ela carregava um revólver na bolsa e, então, como em outras ocasiões, fez
declarações bombásticas e ameaçadoras, a fim de tentar chamar a “atenção do mundo” para
Ver Afrânio Peixoto, As razões do coração (rev. pelo autor). Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W.
M. Jackson Inc., 1947, vol. V. Outros romances de época que me revelaram aspectos semelhantes da
sociedade carioca, mas desta vez de um ponto de vista feminino, são: Júlia Lopes de Almeida, A viúva Simões
(atualização do texto, introd. e notas Peggy Sharpe) e Inês Sabino, Lutas do coração (atualização do texto,
introd. e notas Susan Canty Quinlan), ambos publicados em Florianópolis: Mulher, EDUNISC, 1999.
la Michelle Perrot afirma: “Un décor urbain sature de figures féminines, telle est dejà la mar- ( que du XIX
ème siècle, Sculptures monumentales, allégories religieuses, affiches publi citaires ou politiques prennent le
corps des femmes comme support de leur message. Au théatre, à 1’Opéra, dans lês caf “cone” elles occupent
la scène, bientôt relayée par les écrans de cinema et la splendeur des siars. Sur les boulevards, dans les salons,
ou au cóífcert, lieux multipk de la réception mondaine, les femmes ont une function de représentation. Leur
élégance, leur luxe, voire leur beauté expriment la richesse ou le prestige de leurs maris ou compagnons.
Spetacle de 1’homme, elles sont aussi 1’object de son désir, aiquisés souvent par les interdits d’une sexualité
contrainte”. Ver Michelle Perrot, Femmes publiques. Paris: Textuel, 1997, p. 17.
As memórias Elos de uma corrente e o romance As razões do coração fazem referência a este problema de
sepulturas juntas ou separadas.
a espoliação que sofrerá. O chefe de polícia de Paris pediu auxílio ao cônsul brasileiro, que
conseguiu repatriá-la, enviando-a para o Rio, sem mais; o incidente acabou sendo rotulado
de “caso sem valor” e não se tornou público na imprensa carioca. Seu irmão Gustave, que
estava naquele momento em Paris com familiares, chamado para apoiá-la pelo cônsul,
amigo da família, negou qualquer auxílio e ainda deixou no depoimento uma imagem
negativa e de suspeição sobre a irmã. Assim sua vida, segundo um dos psiquiatras
pareceristas que a examinaram, foi um “doloroso drama”. Segundo o único juiz a favor de
Gabrielle no processo posterior de anulação de testamento, Edgar Ribas Carneiro, sua vida
se desenvolveu de forma “intensamente dramática” e, por isso, “interessaria ao famoso
Somerset Maugham”, muito em moda no Brasil dos anos 40.
O processo a mostra dizendo-se sempre perseguida por muitos, suspeitando de
familiares, advogados e desconhecidos, chegando até a afirmar ter sido vítima de atentados.
Em 1932, um advogado desconhecido da família iniciou um processo de interdição de
Gabrielle, que não foi adiante; depois, a própria família retomou o pedido. Apesar de ter
tentado obstar o processo, contratando advogados para se defender da pecha de louca,
Gabrielle acabou sendo interditada em 1935, com diagnóstico de “paranóia” e “histeria”.
Controlada em seus mínimos atos cotidianos, os autos dão detalhes de seus tratamentos
dentário» do estado de abandono em que ficaram suas elegantes casas cariocas no Cosme
Velho e na Rua Paysandu etc. Ela tornou-se depois disso uma pessoa misteriosa, ao
procurar escapar de sua tutoria carioca. Escondeu-se em diversos hotéis com nomes falsos,
carregando malas cheias de papéis, jóias e dinheiro, ao que parece, algumas ficando
guardadas sine die nos hotéis. Doente, fugiu depois para Santos em mau estado de saúde,
ficando primeiro no Hotel Parque Balneário e, em seguida, na Beneficência Portuguesa; foi
depois para o Grande Hotel do Guarujá e acabou, afinal, no Hospital Alemão, em São
Paulo. Foi finalmente recapturada e levada para o Rio pela tutoria, ajudada pelo querido
sobrinho Paulo e sua esposa (segundo um filho deste casal, Gabrielle teria “paixão
incestuosa” pelo sobrinho). Todas essas idas e vindas aparecem com grande
sensacionalismo na imprensa da época, com fotos dela nos bons tempos. Gabrielle foi
finalmente para uma casa de saúde na Gávea, onde morreu aos 64 anos; foi enterrada no
belo túmulo art nouveau onde, em 1912, enterrara seu primeiro marido (lá estão também os
despejos do segundo marido, mas o nome dela e dele não consta da lápide).
Como diz Jorge Luis Borges, “um homem não está verdadeiramente morto a não ser
quando o último homem que ele conheceu por sua vez estiver morto”. A memória familiar
de Gabrielle que encontrei até agora lembra-a somente como louca, estágio final do
“doloroso drama” (segundo o juiz do processo) que foi sua vida. Um sobrinhoneto, quando
lhe mostrei um jovial retrato de Gabrielle mocinha, disse-me: “Ah, nesse tempo ela não era
louca!” Morta sem descendentes diretos, seus parentes (nem todos) não aceitaram que sua
imensa fortuna deles escapasse. Cinco meses depois de sua morte, em abril de 1941, a 1ª
Vara Pública de Órfãos e Sucessões do Rio (onde levantei os autos do processo) recebeu
um pedido de anulação de seus testamentos. No processo, desde jovem ela é apresentada
como, no mínimo, uma pessoa “fora do comum” e de “temperamento constitucionalmente
exaltado”, “bizarra”,””excêntrica”, “estranha”... Após a interdição, é apresentada como
claramente sofrendo de paranóia, doença mental apontada como a “ponte por onde a razão
vai à loucura”. Suas variadas atitudes e falas, das mais simples às mais estranhas, são
Apud Jacques Le Goff, “Introdução”, in São Luís: biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 29.
mostradas como desusadas e mesmo “delirantes”, “querelantes” ou “paranóicas”. Por
exemplo: as constantes brigas com a família de origem, as insistentes tentativas de reaver os
bens seqüestrados na Primeira Grande Guerra, as queixas de perseguição e de ameaças, o
revólver sempre na bolsa.
O processo foi vitorioso em terceira instância e publicado como caso exemplar pelo
Supremo Tribunal Federal em 1946, sendo a fonte inicial (um documento principal
riquíssimo e fascinante) de todo o interesse despertado por esta história. Sua incapacidade
para testar foi aceita, e seu dinheiro foi legado aos parentes requerentes. Essa anulação dos
testamentos foi iniciativa, ao que parece, do irmão mais moço, que a ela sobreviveu e com o
qual se dava bem. Segundo se lê no processo de anulação, os autos de interdição eram
volumosos: “cartas e diário de sua volta dos EUA em 1925; requerimentos, memoriais,
escritos a parentes, ao Kaiser, a Presidentes da República como Roosevelt, Epitácio Pessoa,
Artur Bernardes e Washington Luiz, ministros e chefes de governo como Édouard Herriot,
Aristides Briand, Calógeras, Lauro Muller”. Havia quatro malas repletas de rascunhos,
cartas e recortes, “um oceano de documentos”, um “excesso de elementos”, que muito me
entusiasmaram no início da pesquisa, mas, infelizmente, desapareceram; fiz algumas
tentativas de localizá-las, todas infrutíferas. Os autos da anulação, em três volumes repletos
de laudos de psiquiatras, tentando provar sua incapacidade para testar, lembraram ao já
citado juiz Ribas Carneiro a “selva selvaggia com que Dante inicia a Divina Comédia”.
O testamento anulado de 1924 fazia legados a alguns familiares e empregados,
determinava que a maioria das jóias, objetos e roupas fosse vendida, e o dinheiro
distribuído para os pobres das paróquias dos bairros em que Gabrielle morara. O grosso de
sua fortuna - os bens nos diversos países em que os possuía enquanto “herdeira universal de
Georg Brune”, ou seja, Brasil, Argentina, Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha,
Suíça, Itália etc. - seria distribuído benemeritamente. O dinheiro era destinado aos hospícios
de alienados, casas de correção, asilos, “visto que aí estão muitos infelizes inocentes
seqüestrados nos lugares dos culpados, que soltos gozam de seus crimes e continuamnos
indefinidamente, por falta de justiça humana”. Dois anos após amorte de sua mãe, dizia: “à
minha família Leuzinger Masset nada lego, fizeram-me sofrer muito moralmente, com seu
indiferentismo, egoísmo e covardia nas minhas duas viuvezes”.
O perito psiquiatra Antônio Xavier de Oliveira, que a examinara em 1932, em 1943
elogiou este segundo testamento como “não-exclusivista”, “ultrapassando fronteiras de sua
família e nação”, com um alcance “social e cristão”; ele achava que, em 1924, Gabrielle
ainda estava em condições de testar. Em 1944, Ribas Carneiro elogiou seu “nítido traço de
beleza moral e marcante valor social”, sendo contra uma anulação “que privaria centenas e
centenas de infelizes dos benefícios de uma outra infeliz”. Os advogados e psiquiatras
pareceristas do processo eram profissionais eminentes como Luís Gonzaga do Nascimento e
Silva, Américo Jacobina Lacombe, San Tiago Dantas, entre outros. O parecer de San Tiago
Dantas foi publicado também em um de seus livros, Problemas do direito positivo; ele tinha
fortes ligações afetivas com a família Masset Lacombe, que acabou favorecida pela
anulação. Convidado a formular uma das muitas perícias médico-psiquiátricas para discutir
as condições de testar de Gabrielle, Afrânio Peixoto, que além de romancista era ilustre
psiquiatra, recusou-se.
Problemas teórico-metodológicos
Alguns problemas teórico-metodológicos se colocaram, ao procurar pesquisar,
compreender e narrar a vida de Gabrielle; segundo Jacques Le Goff, que completou
recentemente duas biografias, “a biografia histórica é uma das maneiras mais difíceis de se
fazer história”. Acredito que isso se dá devido ao fato de que escrever uma biografia é,
como já dizia Beda, o Venerável, na Inglaterra do século VIII, olhar a história com lente de
aumento. Os problemas que tenho enfrentado, portanto, em nada são diferentes dos que se
enfrentam em qualquer trabalho de pesquisa histórica e, embora eu os coloque
separadamente para uma discussão mais didática, encontram-se bastante imbricados.
Fontes
Como “pas de document, pas d’histoire”, são as fontes documentais que determinam
o nível de profundidade de uma biografia. Como uma historiadora faz suas pesquisas sobre
as mulheres na história? Por meio das vozes delas que nos vêm do passado: a partir de
diários, cartas, livros e contos, escritos sobre os ofícios femininos como cuidar do lar, dos
filhos etc. Gabrielle, porém, foi uma mulher que não se distinguiu nessas áreas. Quando se
trata de recuperar vidas de “pessoas comuns”, são sempre fiozinhos que se recolhem aqui e
ali, com os quais temos de tecer a trama de uma vida... A memória familiar - a presente no
processo e a que tenho recolhido - é um tipo de fonte muito viva e atraente, pois, por meio
dela, Gabrielle aparece-me como que em vida e acenando para mim; mas, nestes
testemunhos, obtenho somente fiozinhos para a tessitura da trama da história de vida de
meu personagem.
A publicação do processo de anulação dos testamentos - um volume de 263 páginas,
com os documentos jurídicos em questão, resumos de cartas, entrevistas sobre Gabrielle em
vários momentos etc. é minha fonte maior, da qual tiro a maioria das informações sobre sua
vida. Os documentos particulares de seu próprio punho (diários, cartas, rascunhos, recortes
etc.) arrolados no processo de interdição desapareceram; constituíam um “oceano de
documentos” (como fala o processo), pois Gabrielle afirmava que “escrever é minha única
defesa”. Quase tudo o que está no processo é recortado com o objetivo de mostrar
Gabrielle” como louca e inapta a testar. Assim, estou muito limitada no aprofundamento de
sua alma; na qual, como toda biógrafa meio voyeuse, de início eu sonhara mergulhar
profundamente; tem sido difícil aceitar essas limitações. Ao pesquisar os documentos que
Ver idem, op. cit.
Giovanni Lévi, uma leitura introdutória rotineira entre nós, acredita haver quatro tipos de biografias, que
you resumir brevissimamente: 1) prosopografia e biografia modal, que visa sobretudo ilustrar formas de
comportamento; 2) biografia e contexto, em que se trata da construção do contexto para explicar o que parece
desconcertante, de se tornar a pessoa “normal”, de se reconstituir o meio em torno do indivíduo; 3) biografia e
os casos extremos: um exemplo diz tudo: o caso de Menocchio, de Carlo Ginzburg, no já clássico O queijo e
os vermes, 4) biografia e hermenêutica: este dirimo tipo é ligado à antropologia, considera que o que se torna
significativo é o próprio ato interpretativo e, para ele, o ato biográfico pode assumir infinitos significados:
poder-se-ia chegar mesmo à impossibilidade de uma biografia. Na prática, porém, alguns tipos por vezes se
combinam.
Essa metáfora é demasiadamente empregada, mas a imagem nela contida mostra com precisão as
dificuldades de um(a) biógrafo(a).
constituíram o processo de anulação, consegui algumas fontes interessantes sobre a última
fase da vida de Gabrielle, após sua interdição.
A segunda grande fonte que possuo ilumina sua infância e, conseqüentemente, sua
vida adulta; é o já mencionado diário de sua mãe, Eugénie, escrito de 1885 a 1889 e
ligeiramente retocado até 1920, dois anos antes da morte desta. Existem também algumas
anotações do irmão mais jovem, Georges, e algumas cartas do pai, Gustave Léon. Tenho
acompanhado também pela imprensa da época o lado público de sua vida.
Michel Trebisch, ao analisar biografias de Lord Byron, faz um gráfico das grandes
etapas que a biografia atravessou. Vê três paradigmas: o clássico, o romântico e o
moderno, e faz quatro comparações nesses paradigmas: a primeira, como o sujeito da
biografia é tratado em cada paradigma: como estátua = estereótipo; homem + identidade da
natureza humana; ou personagem = complexidade; a segunda, qual é o quadro
antropológico em que se pensar o sujeito em cada paradigma: como unidade, como verdade
ou como projeto; a terceira, qual é o procedimento biográfico em cada paradigma: esconder
as loucuras de Byron, revelar o que está atrás das aparências ou por que essa verdade deu
essa aparência; e a quarta e última comparação, qual a atitude do biógrafo em cada
paradigma: ele é o juiz, o observador imparcial ou o biógrafo implicado na relação
biográfica. Eu me percebo no paradigma classificado como moderno, detendo-me na
complexidade da vida de Gabrielle- sempre em movimento não-linear -, que não posso
simplificar, e, sobretudo, sentindo-me implicada nessa relação.
Fui amadurecendo e tenho de amadurecer mais ainda minha relação com Gabrielle.
Estou aprendendo a “aceitá-la”; pensei muito nessa relação sujeito-objeto, nas inúmeras
colocações lidas sobre isso. Evidenciou-se para mim a fascinação que o historiador sente
pelos documentos pessoais, referida por alguns autores na bibliografia. Penso na empatia,
na compaixão, numa suposta evidente “sedução”, num “encanto radical” que não sinto tão
radical assim. Dei muitas voltas na minha cabeça, pensando que não preciso amá-la ou
admirá-la, mas que tenho de entende-la o melhor possível. Mas, de repente, a esta altura da
vida, minha experiência pessoal me mostrou que entender uma pessoa é aceitá-la, é
desculpá-la, é (quase) dela gostar. Penso na famosa “loucura” de Gabrielle (num
movimento interno complexo de atração/medo/repulsa pela loucura), na mesquinharia da
família ao anular seu testamento que muito me irrita, assim como no fato de não terem
Não pretendo, com a reflexão sobre sua infância, “explicar o adulto pela criança, mas perceber como um ser
humano agiliza, atualiza, no curso de sua vida, suas potencialidades”. Ver Anne Levallois, Psychanalyse et
histoire: lêerègne éphemère de la psychohistoire et 1’avènement de la biographie historique en France”, in
Diane Lê Beuf et ai,, Constmire 1’histoire - Monographie de Ia Revue Française de Psychanalyse. Paris:
PUF.jun., 1998, p. 95.
O quadro é traçado a partir de sugestões de Daniel Madelenat e também de André Maurois. Ver Problèmes
et metades da Ia biographie - Actes du Colloque Sorbonne 3-4 Mai 1985. Paris: Publications de la Sorbonne,
1985.
Embora não trabalhe com esse binômio “verdade/aparência”, achei esse quadro uma boa referência.
Refiro-me aqui à Coleção Encanto Radical, sobre personagens históricos, cujo título desnuda aspecto
fundamental da relação biógrafo-biografado. O editor Caio Graco Prado criou a coleção em meados dos anos
80, na editora Brasiliense, em cuja direção se mostrava sempre muito atento aos movimentos da sociedade.
sequer colocado seu nome no túmulo onde está enterrada; isso tudo me induz a
compreendê-la, a tentar explicar essa vida, ao escrever um tipo de breve biografia.
Fica claro para mim como me enriqueço pessoalmente nesta pesquisa. Foi
importante reconhecer, mais uma vez, que não existe uma neutralidade e que o que na
verdade garante a maior objetividade possível é a prática mais estrita e séria do métier do
historiador, com sua pesquisa de provas, de documentos e, sobretudo, sua contraposição
sistemática.
O que quero ao escrever sobre essa vida? Esta foi outra questão que no início muito
me atormentou: escrever a história de uma mulher que não é um personagem famoso, que
não teve atuação importante em nenhum evento histórico conhecido, tem sentido? A
história (assim como a literatura) tem respondido a isso cada vez com mais freqüência,
procurando mostrar não a vida dos heróis, das figuras públicas, mas do homem comum,
seja como figura modal, seja como indivíduo único em toda sua riqueza. E o prazer que a
história pode trazer - a quem a escreve e a quem fica sabendo destas descobertas -
certamente é a maior de minhas motivações.
Um exemplo dessa interface entre a história e a literatura que me cativou recentemente é o livro de Modesto
Carone, Resumo de Ana. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.Inspirou-me também a obra de Natalie
Zelmpn Dâvis,, Ato margens: três.mulheres do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
O meu querido livrinho de iniciação, Apologie pour le metier de 1’histarien (mal traduzido para Introdução
à história), do mestre Marc Bloch, começa na introdução a nos falar desse prazer como uma das legitimações
da história.
Apanhado atual do tema o artigo já citado de Anne Levallois. Para o percurso básico do tema, ver alguns
artigos reeditados de Lucien Febvre em Roger Chartier et ai., La sensibilité dans 1’histoire. Brionne: Gerard
Monfort, 1987; ver ainda Saul Friedlaender, Histoire et psychanalyse: essais sur les possibilites et les limites
de la psycohistoire. Paris: Seuil,1975; Jacques Szaluta, La psycohistoire. Paris: PUF, 1987, Collection Que
Sais-Je. Ver também artigos dos anos 70 da revista The Journal of Psychohistory, de Nova York, e ainda Peter
Gay, Freudpara historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989 (1985).
sua multiplicidade; a importância de seu inconsciente; a impossibilidade de se esgotar a
riqueza do “eu”; para iluminar a questão de se atribuir uma racionalidade ao indivíduo; para
nos fazer perceber a importância de suas origens e seus primeiros anos; para se ver a
importância do detalhe; para evidenciar como é difícil provar todos estes aspectos e como
se pode captá-los somente por formas muito indiretas. E também para, na relação sujeito-
objeto, mostrar a importância da “dominância subjetiva”. Tudo isso nos leva a avaliar o
caráter intersticial de liberdade de que dispõem os sujeitos históricos. Ao pensar no
indivíduo Gabrielle, penso nas normas, nas práticas, nas regras da sociedade e da família
em que foi educada e sob as quais viveu; no pano de fundo de suas ações, está em questão o
papel da razão, qual sua racionalidade/suas paixões/suas neuroses e “loucura”.
A dita “loucura” de Gabrielle me parece ligada claramente à chamada questão de
gênero. Na busca de referências, interessei-me por urn outro caso, ocorrido em São Paulo,
em época e grupo social semelhantes, que apresenta muitos lances de vida parecidos (de
maior e menor porte); esse caso ilumina a compreensão de minha biografada. Trata-se da
lendária “dona Yayá”, cuja história tem aparecido na imprensa em função de sua casa, hoje
monumento do Patrimônio Cultural da Universidade de São Paulo (USP). Yayá
(Sebastiana de Mello Freire), nascida em 1887 em família de proprietários de terras, tornou-
se herdeira de grande fortuna pelo desaparecimento trágico dos pais e do único irmão.
Em 1918 teve a primeira “demonstração de desequilíbrio emocional”, que, segundo
os médicos, evoluiu para um tipo de paranóia de perseguição e, depois, psicose
esquizofrênica. Foi internada após tentativa de suicídio em 1919. Interditada, seu estado de
saúde mental foi objeto de exploração pelo semanário O Parafuso, que se aproveitava do
mistério e da atração pela riqueza e pela loucura, com “lances de ingratidão, mistério,
traição, atitudes heróicas próprias do estilo romântico”. Os primos dela disputavam o
controle de sua fortuna e viveram, ao que parece, à espera de sua herança; depois de sua
morte, houve uma “longa disputa judicial de pretensos herdeiros”.
Marly Rodrigues, ao analisar a história de dona Yayá, fala da
no caso das mulheres, ela era atribuída a distúrbios relativos a seu papel sexual e social.-
{...] No quadro da modernização da sociedade paulista, a psiquiatria não apenas atendeu às
necessidades de controle público das populações, foi também um instrumento usado com
freqüência pelas famílias que pretendiam controlar o comportamento de seus filhos ou
proteger seu patrimônio [...]. A segregação dos loucos aliviava o estigma e a vergonha da
família, também cúmplice da doença que, acreditava-se, era transmitida hereditariamente.
[...] Só poucas famílias, bastante abastadas, tinham a possibilidade de manter seus doentes
isolados em sua própria casa. [...] Os métodos terapêuticos somados à discriminação e à
vergonha advindas da classificação clínica da “doença” não raras vezes criavam condições
para seu agravamento.
José Sebastião Witter, na mesma obra, considera esse caso “um ponto de referência
obrigatório para estudos da história social e de análises de história da loucura, da justiça e
da própria psiquiatria”. Ele se pergunta: “A mim fica sempre a grande dúvida: seria dona
Yayá louca mesmo ou era ela uma mulher diferenciada para a época?” Nessa mesma
linha, pergunto-me se Gabrielle não seria uma “nova mulher”, aquela que, por suas atitudes
de vida - embora distante de uma militância feminista concreta -, ajuda a abalar as
estruturas rígidas do chamado tripé mãe-esposa-dona-de-casa, que sustentava o papel da
mulher “rainha do lar”. Uma obra inglesa nos mostra essas aberturas no papel social da
mulher, escolhendo vozes das duas últimas décadas do século XIX e duas primeiras
décadas do XX. São vozes que se manifestam por meio de novelas e poemas, peças e
canções, em panfletos e na imprensa, em documentos pessoais como cartas e diários. Em
geral vozes femininas, mas também masculinas, provenientes de diferentes grupos e idades,
todas falam sobre a condição da mulher, exprimindo diferentes atitudes, numa variedade
que “deixa claro que a Nova Mulher de há um século é tão difícil de ser caraterizada quanto
a imagem do Novo Homem hoje em dia. [...] Aquelas que questionavam as convenções não
eram, no primeiro grande período do movimento das mulheres, de modo algum a mesma
coisa. [...]”. E é importante lembrar que a quebra dos padrões vigentes exige sempre
exposição e sofrimento.
Reafirmo que não penso em Gabrielle - nem na maioria dessas mulheres lembradas
-; como uma heroína especificamente lutando a favor da mulher, mas, como diz ainda a
mesma obra, ”As [vozes] mais eloquentes, entretanto, são aquelas que simplesmente
depositam diante de nós suas vidas”. Gabrielle acompanhou a vida pública da mãe e, aos 9
anos de idade, declarou que queria exercer a, “política”. Mais tarde, casou-se jovem e, no
papel tradicional de mulher submissa ao primeiro marido, definiu-se como “esposa”. Mais
Ver José Sebastião Witter, “O mundo de d. Yayá”, in Comissão de Patrimônio Cultural da USP, op. cit.
Ver Marina Maluf e M. Lúcia Mott, op. cit., p. 373.
Ver Juliet Gardiner (ed.), The nem woman (womens voices, 1880-1918) (prefácio de Victoria Glendinning).
Londres: Collins & Brown, 1993. A citação é do prefácio.
madura, aos 40 anos, quis exercer sua independência e controlar sozinha a imensa fortuna,
arriscando-se constantemente em público na tentativa de reaver seus bens. Por tudo isso,
seu percurso não constitui uma história convencional de uma mulher dos fins do século
XIX e primeira imetade do XX. ”
A relação indivíduo-contexto
Este problema teórico é bastante discutido na bibliografia sobre biografias e se apresenta de diversas
formas: por exemplo, para G. Lévi, cuja classificação de quatro tipos de biografias foi lembrada acima, um
desses tipos seria o mais bem-sucedido: o segundo, a biografia e contexto. Seu perigo: fazer algo como um
sanduíche, como brinca Sabine Loriga: uma fatia de vida, uma fatia de contexto, o que percebemos que sucede
com freqüência. Ver Sabine Loriga, “La biographie comme problème”, in Jacques Revel (dir.), Jeux
d’échelles: Ia micro-analyse à l’experience. Paris: EHESS, Seuil, Gallimard, 1996.
Fiz um roteiro cronológico que provavelmente colocarei no começo ou no final.
Como pensar e narrar a temporalidade
O mais sério desafio, o grande problema, parece-me ser trabalhar, ao mesmo tempo,
com a cronologia linear, que parece ser “unidirecional”, e com o percurso de vida, que não
é linear; como trabalhar com o contínuo e o descontínuo, como pensar as diferentes
temporalidades? Como conseguir “um relato impressionista [...] que se recusa a pôr ordem
na desordem da vida”, conforme Sérgio Buarque de Holanda afirma na autobiografia de
Yolanda Penteado, em prefácio a estas memórias?
Atrás disso se esconde um grave perigo, como em qualquer trabalho de história:
apresentar uma visão retrospectiva, “um percurso orientado”, montado num finalismo. Nos
anos 80, P. Bourdieu fez duras e hoje clássicas críticas à “ilusão biográfica”, à linearidade
do percurso de uma vida; ao exaltar demais o papel do habitus, dos laços normativos,
Bourdieu diminui o da individualidade. O risco desse finalismo tem de estar bem claro, e
esse perigo se apresenta de diversas formas. No caso de Gabrielle, trata-se de tomar cuidado
para não mostrar que toda sua vida acabou encaminhando-a para a loucura e ponto final.
Sempre é muito importante aprofundar o problema da necessidade ou determinismo versus
o fluxo “caótico” e aleatório da vida, a questão das potencialidades e possibilidades.
Como isso funcionou em particular para Gabrielle? Qual a ’Verdadeira amplitude de
escolha” que ela teve em sua vida? Este é um nó central. Como tomou as decisões para os
atos que praticou:
evidentemente se decidiu em furição do que sabia na época, do que sentia, do que podia
fazer no momento das decisões; assim, percebo que tenho, de pensar muito, a cada
momento de sua vida que pareça mais decisivo, que determine certa ruptura, sobre quais
eram os problemas é as opções que precederam seus atos. Os atores históricos (nós todos!)
não são modelos de coerênçiaj continuidade, racionalidade; as tensões entre o vivido e o
imaginado e desejado são fundamentais. Estou alerta, como já afirmei, contra um
psicologismo redutor e simplista.
Ao narrar, penso trabalhar concomitantemente diversas temporalidades da vida de
Gabrielle e também da minha; estou nela ligada durante algum tempo - embora tenha
trabalhado de forma muito intermitente na elaboração da pesquisa. Mostrar este laço é algo
que procurei fazer desde o mestrado. Na ordem da narração, penso em começar pela
memória familiar, entremeando observações sobre a pesquisa e o que penso; depois,
tentarei mostrar etapas, rupturas; vou fazer alguns flashbacks, quando couber. A narração
que me agrada é à la manière de Janet Malcolm, ou seja, seguindo os passos da pesquisa. O
trabalho desta americana sobre as biografias escritas acerca da poetisa Sylvia Plath foi o
texto mais instigante que li sobre como escrever uma biografia, e ela o escreve narrando as
Ver Sérgio Buarque de Holanda, “Prefácio”, in Yolanda Penteado, Tudo em cor-de-rosa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1976.
Pierre Bourdieu, “A ilusão biográfica” (1986), in Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado, op. cit.
Foi interessante perceber isso em relação, por exemplo, aos anos 30, vistos como um período de grandes
novas possibilidades. Para o Brasil, ver Vavy Pacheco Borges, “Anos trinta e política: história e
historiografia”, in Marcos C. de Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto,
1998.
Ver idem, “Apresentação”, in Getúlio Vargas e a oligarquia paulista: história de uma esperança e vários
desenganos. São Paulo: Brasiliense, 1979.
dificuldades de sua pesquisa biográfica. Inspirou-me também a autobiografia de Mary
MacCarthy: ela narra tudo o que pensa, tudo o que se aproxima do assunto, todas as dúvidas
que tem sobre a própria memória.
Este será um trabalho de biografia, um trabalho de história do qual fará parte a
memória sobre Gabrielle, sobre sua família, sobre franceses no Brasil, mas do qual fará
parte também minha própria memória de vida e do trabalho que apresento. A narração
supõe muita arte, algo que preciso treinar muito, para chegar a fazer o que Carlyle disse nos
Essaystm 1832: “un miroir à la fois scientifique et poétique, ou, si on veut, à la fois naturel
et magique”; não quero contentar-me em, como foi dito mais recentemente sobre um
trabalho de biografia, “placer les lecteurs devant [une] table de travail bien arrangée”.
Janet Malcolm, A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
Ver Mary MacCarthy, Memories ofa catholic girlhood. Estados Unidos, original de 1957 com inúmeras
reedições.
Além dos já citados, indico ainda trabalhos que me têm sido úteis na preocupação com a memória e com a
biografia: Guy Chaussinand Nogaret, “Histoire biographique”, in Dictionnaire dês sciences historiques. Paris:
PUF, 1986 (ed. brasileira: Rio de Janeiro: Imago, 1993); Jean Orieux, “A arte do biógrafo”, in Georges Duby
et ai., História e nova história. Campinas: UNICAMP; Revue Franfaise de Sociologie: UApproche
Biographique, XXXI-1, jan.-mar., 1990; Biography – Interdisciplinary Quarterly, vol. 13, nº 4.
Apud Daniel Madelenat, La biographie. Paris: PUF, 1984, p. 147. A primeira frase é dos Ensaios, t. II, p.
45, de T. Carlyle, e a última, de Leon Edel, Literary biography. Londres: Rupert Hart-Davis, 1957.
PARTE II
(RES)SENTIMENTOS E INTERIORIDADE:
DIMENSÕES IMPLÍCITAS NA HISTÓRIA
SUBJETIVIDADES E SENTIMENTOS:
O MAL-ESTAR NA CULTURA
Capítulo 14
Carlos Galvão
Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas
NOTAS
1 Cândido, 20 (trad. M. E. Gaivão G. Pereira). São Paulo, 1990, p. 95.
2 Tácito, Annales, 1,1.
3 Idem, op. cit., 1.2.
4 Idem, op. cit., 1.7: “At Romae ruere servitium consules, patres, eques. Quanto quis
inlustrior, tanto magis falsi a festinantes, vultuque composito, ne laeti excessu principis neu
tristiores primordio, lacrimas gaudium, questus adulationem miscebant”.
5 Idem, Historiae, 1.1; Plínio, Paneg., 1.2.
6 Ver R. Mellor, Tacitus. Londres, 1994, p. 89.
7 Tácito, Annales, 1.4; 1.12-14; 3.51; 14.49 etc. Cf. Juvenal, Sat., 4, passim. Ver as
reflexões de J. Gerard, Juvenal et Ia rcalité contempomine. Paris, 1976, pp. 286-96.
8 Em geral, ver K. Hopkins, Death renewal. Cambridge, 1983, cap. 3. Vigilância: ver, por
exemplo, Tácito, Historiae, 4.8; e idem, Annales, 4.67, 69. Dependência: idem, op. cit.,
3.66. Constrangimento: idem, op. cit., 6.48, 13.5 e passim. Ver também os comentários de
C. W. Fornara, The natufe of history in ancient Greece and Rome. Berkeley, 1988, p. 76.
Cf. J. Ginsburg, Tradition and theme in the Annals of Tacitus (1981); e Mellor, op. cit., p.
91: “progressive degeneration of senatorial values” (mas o autor me parece enfatizar demais
o “declínio” moral do comportamento senatorial; ver pp. 103 e ss.).
9 Ver, por exemplo, Juvenal, Sat,, l e 2 (passim); idem, op. cit., 4.34, 4.73-74 (medo da
aristocracia); Plínio, Paneg., 76; cf. FIM, 1.44. Sobre a evidência em Juvenal, ver Gerard,
op. cit., pp. 1-41, 42-54 e 311-52. Talvez se detectem ecos desta mesma crítica em Sêneca,
Apocolocyntosis, 12 e em Petrônio, Satyrícon; ver, também, S. Bartsch, Actors in the
audience. Theatricality and doublespcak from Nero to Hadrian. Cambridge, 1994, pp. 198 e
ss.
10 Como Sêneca ou Plínio. Ver, respectivamente, Tácito, Annales, 14.52; Plínio, Ep., 2.17.
l
11 Por exemplo, Sêneca, Ep., 104; idem, De ira, 2.34.1-3; Plínio, Paneg., passim; e Tácito,
Annales, 14.49; O próprio imperador, Tibério, pelo menos, nos primeiros anos de governo,
falara em “restaurar a República em discursos vazios e absurdos” (idem, op. cit., 4.9: ”[...]
ad vana et totiens inrisa revolutus, de reddenda républica [...]”). Como observa Mellor (op.
cit., p. 89), o próprio Tácito “was a republican in writing history, but remained a monarchist
in practical politics”. Ver também V. Rudich, Political dissience , under Nero: the price of
dissimulation. Londres, Nova York, 1993.
12 Tácito, Historiae, 4.8: “ulteriora mirari, praesentia sequi; bonos imperatores voto
expetere, qualiscumque tolerare”.
13 Ver, por exemplo, idem, Annales, 3.66; Epicteto, Diatribai, 4.1.39-50; e o estudo
seminal de Hopkins, op. cie., pp. 149-66. Destas vantagens também gozava aquele grupo de
nobres das famílias patrícias e tradicionais que o príncipe mantinha sob maior vigilância.
14 Ver Suetônio, Vita Dom., 10-11, 23; Cássio Dio, Hist., 67.8, 67.4.2, 67.3.3 e ss., 67.8. A
consciência da participação, voluntária e involuntária, do Senado nos crimes do regime é
particularmente aguda após Domiciano período em que Tácito escreve. Ver Tácito,
Agrícola, 45: “Non vidit Agrícola obsessam curiam et clausum armis senatum et eadem
strage tot consularium caedes, tot nobilissimarumífeminarum exilia et fugas. Una adhuc
victoria Carus Mettius censebatur, et intra Albanaín arcem sentencia Messalini strepebat, et
Massa Baebius iam turn reus erat: mox nostrae duxere Helvidium in carcerem manus; nos
Maurici Rusticique visus [foedavit]; nos innocenti sanguine Senecio perfudit. Nero tamen
subtraxit oculos suos iussitque scelera, non spectavit: praecipua sub Domitiano miseriarum
pars erat videre et aspici, cum suspiria nostra subscriberentur, cum denotandis tot hominum
palloribus sufficeret saevus ille vultus et rubor, quo se contra pudorem muniebat. Tu vero
felix, Agrícola, non vitae tantum claritate, sed etiam opportunitate mortis”. Ver também
Gerard, op. cit., p. 295. Cf. Sêneca, Apocolocyntosis, 9-11.
15 Tácito, Historiae, 1.1; d.Annales, 1.1. .Até certo ponto, é possível traçar um paralelo
com Cássio Dio, escrevendo história romana, um século depois, sob a ameaça tirânica da
mesma monarquia imperial. Ver o estudo interessante de M. V. Escribano, “Estratégias
retóricas em La historia romana de Casio Dión”, L’Antiquité Classique, 68, 1999,
especialmente pp. 171-77. Ver também J. Bleicken, “Der politische Standpunkt Dios
gegenüber der Monarchie. Die Rede dês Maecenas Buch 52,14-40”, Hermes, 90, 1962, pp.
444-67.
16 F. Nietzsche, “The genealogy of morais”, in The philosophy of Nietzsche. Nova York,
1927, p. 647: “resentment experienced by creatures who, deprived [...] of the proper outlet
for action, are forced to find compensation in an imaginary revenge”.
17 P. Bourdieu, O poder simbólico (trad. E Tomaz). Lisboa, 1989, pp. 60 e ss.
18 R. K. Merton, Social theory and social structure. Nova York, 1968, pp. 209 e ss. Merton
vale-se do trabalho de M. Scheler, L’Homme du ressentiment. Paris, s.d.
19 Merton, op. cit., p. 209.
20 Ver, por exemplo, G. M. White e J. Kirkpatrick (eds.), Person, self and experience:
exploring pacific ethnopsychologies. Betkeley, 1985, pp. 1-4; E. L. Schieffelin, “Anger,
grief and shame: toward a Kaluli ethnopsychology”, in idem, op. cit., p. 169 (inspirado em
Durkheim); R. Rosaldo, “Toward an anthropology of self and feeling”, in R. A. Shweder e
R. A. Levine, Culture theory: essays on mind, self, and emotion. Cambridge, 1984, pp. 137-
57; e G. W. WhiteeC. Lutz, ”The anthropology of emotions”, Ann. Review of
Anthropology, 15, 1986, pp. 417 e ss.
21 Schieffelin, op. cit., p. 169.
22 Ver as reflexões de R Veyne, “O indivíduo atingido no coração pelo poder publico”, in
Indivíduo e poder. Lisboa, 1987.
23 Ver a contribuição de David Konstan, nesta coletânea.
24 Ver, por exemplo, o uso destes termos em Epicteto, Diatríbai, 3.22.13.
25 Sêneca, De ira, 1.4.2: “Iratus potest non esse iracundus; iracundus potest aliquando
iratus non esse”. Cf. 1.4.3 e 2.25.3-4.
26 Idem, op. cit., 1.8.6-7: “At irati quidam constant sibi et se continent. Quando? Cum iam
ira evanescit et sua sponte decedit [...]. Non aliquando in ira quoque et dimittunt incolumes
intactosque quos oderunt et a nocendo abstinent? Faciunt. Quando? Cum adfectus
repercussit adfectum et aut metus aut cupiditas aliquid impetravit. Non rationes tunc
beneficio quievit, sed affectuum infida et mala pace”.
27 Não é o caso aqui de falar sobre as reformas de Augusto que fundaram o Principado.
28 É quase desnecessário citar referências. Basta mencionar um clássico em historiografia
romana, R. Syme, The Roman revolution. Oxford, 1939, pp. 2-3 e caps. 30-33, que hoje
deve ser lido junto com a resenha de A. Momigliano emJRS, 30, 1940, pp. 75-80, e os
ensaios na coletânea de K. A. Raaflaub e M. Toher (eds.), Between Republic and Empire.
Interpretations of Augustus and his Principate. Berkeley, 1990, pp. 1-53.
29 Tácito, Historiae, 1.1 (“rara temporum felicitate”), 4.8; idem, Annales, 14.47. Ver as
observações de S. Dill, Roman society from Nero to Marcus Aurelius. Nova York, 1957, p.
26 (“The good reign of Trajan might be followed by another tyrant”); R. Syme, Tacitus.
Londres, 1958, p. 219; Hopkins, op. cit., p. 170; Mellor, op. cit., pp. 102 e ss. (p. 102: “the
only freedom possible [in the Principate] is freedom from arbitrary rule”). Sobre uma
suposta liberdade de expressão restaurada durante o regime dos Antoninos, ver P. Sinclair,
Tacitus, the sententious historian. A sociology of rhetoríc in Annales 1-6. University Park,
1995, pp. 163-67. Sinclair chama a atenção sobre aquilo que Tácito “não diz”: “there are
few Latin authors who make greater demands on the reader’s ability to understand what is
not said [...]. The arts of self-concealment and allusive speech were fundamental to the
survival and success of anyone [...] under the Principate” (p. 164).
30 Ver, por exemplo, Hopkins, op. cit., pp. 149-56 e 169-74; e H. Galsterer, “The
administration of Justice”, in Cambridge ancient history, 2a ed. Cambridge, 1996, vol 10 -
The Augustan Empire, pp. 412 e ss.
31 A bibliografia sobre este tema é vasta, e os exemplos abundam nas narrativas históricas
do século I. Em Tácito, ver, por exemplo, Annales, 3.38. Em Dio, Hist., 67.12.1-2,67.3.3, e
Dig., 48.5; J. A. Crook, Law and life of Rome 90 bC-ad212. Londres, 1967, pp. 101-2; R.
J. A. Talbert, “The Senate and senatorial and equestrian posts”, in Cambridge ancient
history, 2a ed. Cambridge, 1996, vol. 10 -The, Augustan Empire, pp.324 e ss., com
referências.
32 Tácito, Annales, passim. Ver o estudo de A. Kneppe, Metus Temporum. Zur Bedeutung
von Angs tin Politik und Gesellschaft der romischen Kaiserzeit des l. und2. Jhdts. n. Chr.
Stuttgart, 1994, pp. 143-62 (p. 158: “Atmosphare der Angst”, com referência ao período de
Domiciano). Ver também, por exemplo, Dill, op. cit., pp. 9-15 (sobre Sêneca no período
neroniano); Hopkins, op. cit., pp. 166 e ss.; e P Southern, Domitian. Tragic tyrant. Londres,
Nova York, 1997, p. 120.
33 Tácito, Historiae, 4.8: “animus novo principatu suspensus et vultus quoque ac sermones
omnium circumspectans”.
34 O termo é de N. Elias, O processo civilizador (trad. R. Jungman). Rio de Janeiro, 1993.
5 Cf. Hopkins, op. cit., p. 170.
36 E.g. Tácito, Annales, 6.50 (Tibério), 4.3 (o ressentimento de Sejanus), 13.4 (Nero),
13.15 (Nero), 14.10 (Nero); Suetônio, Vita Gaii, 15 etc.
37 Sinclair, op. cit., p. 164: “Princefs, senator, or historian, everyone was by training (if not
by nature) alert forthe other person’s weakness (whether a fault, a gaffe, or too prominent
virtue) that he could turn to his own advantage”. Ver também pp. 79-83.
18 Suetônio, Vita Gaii, 22.
19 Idem, Vita Dom., 14; cf. idem, Vita Gaii, 30.
40 Idem, Vita Dom., 21.
41 E.g. Tácito, Annales, 4.9, 4.15, 13.28; Suetônio, Vita Gaii, 16.
42 Sobre a ideologia do Principado, ver Suetônio, Vita Augusti, 94.2-6; idem, Vita Vesp.,
5.1-10; Plínio, Paneg., passim; J. Gagé, “La théologie de Ia Victoire impériale”, Revue
Historique, 171,” 1933, pp. 1-43; M. P. Charlesworth, “The virtues of a Roman emperor”,
PBAR, 23, 1937, pp. 105-34; J. Béranger Recherches sur l’aspect idéologique du príncipat.
Bale, 1953.
43 Depois de Augusto até Marco Aurélio, só Trajano foi optimus princeps.
44 E.g. P. Zanker, The power ofimages in the age of Augustus (trad. A. Shapiro). Ann
Arbor,1990; K. Galinsky, Augustan culture. An interpretative introduction. Princeton, 1996,
caps. 2-5; M. Torelli, “Roman art, 43 b.C. to a.d. 69”, in Cambridge ancient history, 2a ed.
Cambridge, 1996, vol. 10 -The Augustan Empire, pp. 934 e ss.; W. Kuhoff, Felicior
Augusto Melior Trajano. Aspekte der selbstdarstellung der romischen Kaiser wahrend der
Príncipatszeit. Frankfurt, 1993; Kneppe, op. cit., pp. 217-77 (“Strategien gegen die Angst:
Die Propagierung von Sicherheit und das Ideal dês vorbildlichen Kaisers”).
45 Ver A. Garzetti, From Tiberius to the Antonines. A history of the Roman Empire AD
14-192 (trad. J. R. Foster). Londres, 1974, pp. 442 e ss.; A. Birley, Marcus Aurelius. A
biography (ed. rev.). Londres, 1993, pp. 134 e ss. Cláudio similarmente teve de aplacar a ira
de um Senado hostil para se manter no poder, no início do seu governo; ver B. Levick,
Claudius. Londres, 1990, pp. 31 e 93.
46 Tácito, Annales, 14.46. Cf. também 13.4, 14.10 e 6.50 (Tibério),
47 E.g. Tácito, Annales, 2.34, 4.64 (Tibério, ao abandonar a cidade), 11.33 e ss. (Cláudio
após ser traído por Messalina), 12.69 (testamento de Cláudio não fora publicado por receio
de que provocasse pena), 14.1, 10, 12 (assassinato de Agripina); Hist., 1.32-33 (ascensão de
Galba) etc.
48 Apedrejado: Suetônio, Vita Claudii, 18; Tácito, Annales, 12.43,10 (amedrontado), 11.22
(atentado contra Cláudio no fórum). Cf. Levick, op. cit., p. 93.
49 Suetônio, Vita Neronis, 39: “Orcus vobis ducit pedes, senatum gestu notarat”. H
50 Tácito, Annales, 3.4.
51 Idem, op. cit., 2.40.
52 Idem, op. cit., 3.44.
53 Ver, por exemplo, Tácito, Annales, 4.28,4.21,4.34-35, 5.7-8 (Publius Vitellius acusado
de apoiar financeiramente uma revolução), 13.20-21, 13.23 (magia); idem, Historiae, 1.16
(discurso de Galba) etc.
54 Suetônio, Vita Tiberii, 63.
55 Idem, Vita Dom., 14: “pavidus semper atque anxius, minimis etiam suspicionibus
praeter modum commovebatur”. Ver Southern, op. cit., p. 120; Dill, op. cit., pp. 56 e ss.
56 E.g. Tácito, Historiae, 4.7; F. Millar, The Emperor in the Roman world (reimpr.). Ithaca,
1992, pp. 341 e ss.; Talbert, op. cit., pp. 337 e ss.; E. Birley, ”Senators in the emperors”
service”, PBAR, 29, 1953. Ver também Hopkins, op. cit., pp. 120 e ss., 149-56, 171 e ss.
(Hopkins desenvolve a tese da divisão da aristocracia romana em dois grupos: “the grand
set” e ”the power set”; só estes últimos participariam da administração, do comando do
exército e do exercício do poder. Talvez, mas isso não invalida as observações que se
seguem); F. Jacques e J. Scheid, Roma e il suo Impero. Istituzioni, economia, religione
(trad. G. V. Marogna). Roma, Bari, 1982, pp. 456 e ss.; P. Garnsey e R. Saller, The Roman
Empire. Economy, society and culture. Berkeley, 1987, p. 113.
57 Ao assumir o poder, Tibério se desculpava, dizendo que não se achava à altura do fardo
do Estado, mas assumiria o que fosse necessário. O senador Asínio Galo o interpela,
perguntando: “Que parte do Estado lhe compete, César?” Tácito, Annales, 1.12. Cf.
também 2.28, 3.12 etc. Ver Garzetti, op. cit., pp. 292 e ss. e 645-68; Hopkins, op. cit., pp.
170-75; cf. K. Dietz, Senatus contra principem. Untersuchungen zur senatorischen
Opposition gegen Kaiser Maximinus Thrax. Munique, 1980, pp. 21 e ss. e 309 e ss.
58 Ver, por exemplo, R. MacMullen, Enemies of the Roman order. Treason, unrest and
alienation in the Empire, 21 ed. Londres, Nova York, 1996, pp. 1-45, esp. 33 e ss.; e
Hopkins, op. cit., pp. 170 e 172.
59 E.g. Tácito, Annales, 2.37, 3.55, 14.52. Sobre o Senado imperial, ver R. Talbert, The
Senate of imperial Rome. Princeton, 1984; e A. Chastagnol, Le Sénat romain à l’epoque
impériale. Paris, 1992.
60 Tácito, Historiae, 1.1; Hopkins, op. cit., p. 156.
61 Ver, por exemplo, Sêneca, Ep., 61; Plutarco, Moralia, 466C (De tranquilitate animae);
Plínio, Paneg., 91.3-92.5; P. Saller, Personalpatronage under the early Empire. Cambridge,
1982, cap. 2, esp. pp. 55 e ss.; Hopkins, op. cit., pp. 120 e ss.; C. Nicolet, Rendre à César,
Économie et société dans Ia Rome antique. Paris, 1988, pp. 224-35; Jacques e Scheid, op.
cit., pp. 459-68; e A. Wallace-Hadrill, “The imperial court”, in Cambridge ancient history,
2a ed. Cambridge, 1996, vol. 10 - The Augustan Empire, pp. 285 e ss., com referências a
publicações sobre o tema.
62 Ver nota 11, acima.
63 Hopkins, op. cit., pp. 150 e 166 e ss. Ver também Saller, op. cit., pp. 55 e ss. e 119 e ss.;
R. MacMullen, Corruption and the decline of Rome. New Haven, 1988, pp. 75 e ss.; J. E.
Lendon, Empire of honor. The art ofgove rnment in the Roman world. Oxford, 1997, PP. 1-
30 e 176 e ss.
64 Cf. Elias, op. cit., vol. 2, cap. 2; Claudine Haroche, Da palavra ao gesto (trad. Ana
Montoia e Jacy Seixas). São Paulo, 1998, pp. 137-40.
65 Ver Veyne, “La famille et l’amour sous le haut-empire romain”, Annales: ESC, 33,
1978,
PP. 38 e ss.
66 Ver notas 14 e 29-31, acima.
67 Epicteto, Diatríbai, 4.1.40.
68 Veyne, “La famille. et 1’amour...”, op. cit., passim; idem, “The Roman Empire”, in P.
Veyne (ed.), History of private life (trad. A. Goldhammer). Cambridge, 1987, vol. l - From
pagan Rome to byzantium, pp. 6 e ss.; M. Foucault, The care of the self (trad. R. Hurley).
Nova York, 1988, vol. 3 -The history of sexuality, pp. 37-96, esp. 92-96.
69 Plutarco, De cob. ira (Moralia), 460D: ”[...] embora as causas da raiva sejam diferentes
[...] em praticamente quase todos os casos de raiva, acompanha também a sensação de se ter
sido objeto do escárnio ou do desprezo”.
67 Hopkins mostra a dissonância entre status e poder que caracteriza a aristocracia
senatorial durante o Império e promove uma diminuição da auto-estima da elite (ver op. cit.,
p. 184). Porém o fenômeno parece não ter sido tão uniforme assim (ver pp. 176 e ss.).
71 Tácito, Annales;2.28: “atque Ínterim Libonem ornat praetura, convictibus adhibet, non
vultu alienatüs, non verbis commotior (adeo iram condiderat)”.
72 Idem, op. cit., 1.11: “Tiberioque etiam in rebús quas non occuleret, seu natura sive
adsuetudine, suspensa sempet et obscura verba: tunc vero nitenti ut sensus suos penitus
abderet in incertum et ambiguum magis implicabantur”.
73 Idem, op. eit., 2.57: “sermo coeptus a Caesare, qualem ira et dissimulado gignit”.
74 Idem, op. cit., 3.22: “haud facile quis dispexerit illa in cognitione mentem principis:
adeo vertit ac miscuit irae çt clementiae signa”.
75 Idem, op. cit., 13.16: “at Agrippina[e] is pavor, ea consternatio mentis, quamvis vultu
premeretur, emicuit [...] Octavia quoque, quamvis rudibus annis, dolorem caritatem omnes
adfectus abscondere didicerat. Ita post breve silentium repetita convivii laetitia”.
76 Ver, por exemplo, Bartsch, op. cit.; e Sinclair, op. cit., p. 164.
77 Ver idem, op. cit., p. 165.
78 Sêneca, valendo-se em parte de modelos helenísticos, estóicos na maioria, escreve
abundantemente sobre isso, teorizando o sentimento de ira e a necessidade da sua
supressão. Tanto ele como Plutarco descrevem estados emocionais distintos da raiva assim
como definida por Aristóteles. Ambos falam de um estado de raiva crônica, de amargor,
irritabilidade e frustração. Ver Sêneca, De ira, 1.2.2, 1.4.2; Plutarco, Moralia, 454B,”460D.
Sobre a supressão, ver Plutarco, Moralia, 453-64; Sêneca, Ep., 96 (“Omnia patienter
ferenda”); idem, De ira, 1.8.4-7 (o indivíduo irado controla sua raiva quando tem medo:
“Cum adfcetus repercussit adfectum et aut metus aut cupiditas aliquid impetravit”), 2.34.1
(“Ergo ira abstinendum est”). Quanto às diferenças em relação aos conceitos de Aristóteles,
ver Sêneca, De ira, 2.26.1 e ss.
79 Hopkins, op. cit., pp. 171 e ss.
80 Ver, por exemplo, idem, op. cit., pp. 178 e ss.; P. R. C. Weaver, Família Caesaris.
Cambridge, 1972; A. Barrett, Agrippina: sex, power andpolirícs in the early Roman Empire.
NewHaven, 1999.
81 Vejam-se as observações de Haroche, op. cit., p. 136.
Capítulo 15
Claudine Haroche
Diretora de pesquisa rio CNRS
TRADUÇÃO: Luciano Lopreto
abster-se disso voluntariamente, aceitar ignorar, talvez por comodismo, complacência ou
sentimento de impotência, ou, ainda, aceitar não ver e não ouvir. Qualquer destes
procedimentos resultaria em submeter-se a um sistema de dominação, às vezes explícito,
mas na maioria das vezes insidioso; em confirmar o recalque, sofrer a frustração e, por
conseguinte, conhecer seus efeitos: o ódio a si mesmo e aos outros.
É para responder a tais questões que tentamos aqui - a partir de alguns trabalhos de
Fromm e de Strauss do início dos anos 1940, assim como outros de Arendt e de Elias, por
ocasião do processo Eichmann - elucidar o enigma profundo que marca a natureza dos laços
entre os fatos e os sentimentos que levam ao ressentimento.
Foram os trabalhos contemporâneos de Strauss sobre o niilismo alemão, de Fromm
dedicados à psicologia do nazismo e de Arendt sobre a psicologia do homem de massa que
forneceram elementos de psicologia, contribuindo para elucidar o nazismo.8 Elias, 20 anos
mais tarde, no início dos anos 1960, acrescentou aos estudos anteriores sua teoria dos
processos sociológicos que estabelecem laços, no nacionalismo, entre tipos de
personalidade e estruturas sociais. Todos abordaram, de modo insistente, mas alusivo e
indireto, a questão do ressentimento, sem fazer dele realmente objeto de uma reflexão
específica.
Se a perspectiva e as premissas de seus trabalhos sobre os tipos de personalidade
engendrados por sistemas políticos diferem, mesmo recortando situações parciais, suas
conclusões sobre o desmoronamento da civilização são análogas. Desconcertados diante da
amplidão de questões complexas e obscuras, tão gerais quanto fundamentais, todos,
escavando durante muito tempo a questão do niilismo (Strauss), do declínio (Fromm), do
mal (Arendt), do desmoronamento da civilização (Elias), esforçaram-se para compreender o
incompreensível.
Todos dizem, em substância, o que Strauss desenvolveu numa conferência notável
sobre o niilismo alemão, que pronunciou em Nova York, na School for Social Research, em
1941. Strauss frisou que o niilismo tem raízes mais profundas que o nazismo, reconhecendo
de antemão que “o fenômeno [...] é bem mais complicado, e muitíssimo pouco explorado”
para ser descrito com precisão. “Posso no máximo”, reconheceu, ”aflorar o problema”.9
Lembrando que o ideal da civilização moderna não tem origem alemã, mas inglesa e
francesa, Strauss explica fundamentalmente o niilismo alemão como uma reação ao espírito
dos séculos XVII e XVIII. Embora respeitando as regras de comportamento inspiradas por
ideais de sociabilidade e civilidade, mesmo reconhecendo direitos políticos e jurídicos do
homem e da pessoa, aos olhos dos niilistas alemães, a Revolução Francesa pretendeu
rebaixar as exigências morais, identificando “a moral com a afirmação dos direitos de cada
um, ou com o interesse pessoal esclarecido.10 Vendo nos direitos morais da pessoa um
profundo “aviltamento”, o niilismo alemão prefere a anulação de si, o sacrifício de si
mesmo em nome do amor grandioso e engrandecedor da coletividade. Convencido de que
“a meta da civilização moderna é inconciliável com as exigências fundamentais da vida
moral”, o niilismo alemão, escreve Strauss, aspira à destruição da civilização moderna. Sob
a pressão das teses niilistas, conclui então, “a felicidade e o senso comum se tornarão
termos quase prescritos na filosofia alemã”.11 Encontramo-nos aqui diante da expressão de
um amor masoquista e (auto)destruidor pela grandeza, origem do ódio a si mesmo e ao
outro, da fascinação pelo absoluto. Deve ser sádico e bárbaro.
No mesmo ano de 1941, em Escape from freedom, Fromm dedica um capítulo à
psicologia do nazismo. Aí encontramos elementos abordados por Strauss no niilismo
alemão, a exemplo do sacrifício de si mesmo. Recorrendo a um certo número de
lembranças históricas, evocando a decepção profunda que a classe operária sofreria depois
de uma sucessão de derrotas, entre as quais a de 1918, Fromm aborda questões que
posteriormente serão desenvolvidas por Elias, como a personalidade social das classes
médias alemãs, que encorajavam o desejo de submissão e de dominação, e a permanência
por muito tempo de traços de personalidade próprios à camada inferior das classes médias.
Destaca “seu amor pela força, seu ódio pelo fraco, sua mesquinharia, sua agressividade, sua
parcimônia em matéria de sentimentos, assim como de dinheiro, sua atitude desconfiada e
odiosa em relação ao diferente” e conclui enfim que “sua existência se baseava num
princípio de poupança, tanto econômica quanto psicológica”.12
É, entretanto, ao descrever os mecanismos sociais em ação nessa psicologia que
Fromm prefigura verdadeiramente as análises de Elias. Uma grande parte da classe média,
consciente do fato de que tinha um lugar definido num sistema social e cultural estável,
beneficiava-se de proteção e estima identificando-se com a monarquia. Sobretudo, o mais
importante é que ela inscreve, no mais profundo de seu ego, de sua auto-estima, de seu
sentimento de existência, sua submissão e lealdade às autoridades reinantes, que parecem
uma solução satisfatória a suas tendências masoquistas, sem no entanto exigir o sacrifício
de si mesma. Esse “arranjo” lhe permitia ”sentir de certa forma o valor de sua própria
pessoa”. Considerando então a falta de auto-estima dos membros dessas classes médias,
Fromm distingue um mecanismo de compensação ambíguo, que coloca em jogo, ao mesmo
tempo, sua identificação com o superior e sua submissão, enquanto subalterno, a um poder
forte.” 13
O período do pós-guerra transtornou profundamente a situação das classes médias,
pois elas, de fato o seu status, sofrem um desmoronamento. Fromm descreve então as
conseqüências psicológicas que esclarecem o crescimento do ressentimento nessas classes:
“O prestígio social da classe operária aumentando consideravelmente e a parte inferior das
classes médias declinando, estas não podiam mais desprezar ninguém”; ora, tratava-se de
um privilégio que “sempre havia constituído”, observa ele, “um dos grandes trunfos da
existência dos pequenos comerciantes”.14
Acentuando a existência de um “sentimento de insignificância e impotência
individual”, Fromm observa que o ressentimento vai progressivamente abranger toda a
sociedade alemã. Sua análise apresenta então um interesse considerável, já que congrega,
integrando e desenvolvendo, elementos do niilismo analisados por Strauss e seu estudo da
psicologia do nazismo, fazendo sempre uso de termos semelhantes aos empregados por
Arendt mais tarde, para qualificar a situação psicológica dos alemães durante o período
nazista.
“O sentimento de impotência, de ansiedade e de isolamento na sociedade, tradicionalmente
sentido pelas classes médias, e a tendência à destruição nessa situação não constituem as
únicas origens psicológicas do nazismo”, escreve Fromm. “O camponês tinha um
ressentimento contra os credores da cidade, junto dos quais ele havia se endividado,
enquanto os operários se sentiam profundamente decepcionados e desanimados pelos
governos que haviam perdido toda iniciativa.”15
Fromm detém-se então no amor pelo poderoso, no ódio pelo fraco, componentes
tanto masoquistas quanto sádicos daquele tipo de personalidade encorajado pelo nazismo: o
desejo de submissão a um poder ilimitado. A sede de destruição do ego é indissociável do
desejo de dominar outrem, particularmente seres impotentes. O nazismo “não cessa de
repetir que o indivíduo não é nada, não tem importância alguma, e que ele deve aceitar essa
insignificância pessoal, dissolver-se num poder mais vasto e se sentir então orgulhoso por
participar da força e da glória desse poder superior”.16 Fromm conclui frisando que aquela
resignação e aquele sentimento de insignificância são intrínsecos a uma organização
política na qual o indivíduo renuncia a expressar suas opiniões e seus interesses pessoais.17
Arendt vai além desse masoquismo, dessa anulação do ego, vendo na lealdade
incondicional e ilimitada do militante a característica dosmovimentos totalitários. Cerca de
30 anos mais tarde, em outubro de 1970, pronunciaria, na mesma School for Social
Research de Nova York, onde Strauss havia tratado do niilismo alemão, uma conferência na
qual abordaria a questão do mal.18
Arendt formula, então, considerações morais, políticas e filosóficas que já havia
abordado antes, de forma fragmentada, em As origens do totalitarismo, a respeito dos traços
de personalidade do homem totalitário, ou seja, a submissão às regras, os automatismos
despojados de pensamento, a falta de classificação, a inutilidade. com isso quis mostrar que
“o mal radical”, verdadeiro desvio dos princípios democráticos, apareceu, pode-se dizer,
ligado a um sistema em que todos os homens se tornaram igualitariamente supérfluos”.19
O que se segue nos parece decisivo e nos interessa por vários motivos. Ainda que a
questão do ressentimento não esteja colocada, os elementos que constituem suas condições
de emergência, assim como os efeitos produzidos por ele, foram abordados. Trata-se aqui
da questão da relação entre a ausência de consciência, a incapacidade de pensar, a
submissão às regras e o mal radical. E também a ausência de sentimentos, no limite, a
impossibilidade de ter sentimentos, observada por Arendt ; enquanto relata o processo
Eichmann, em Jerusalém. “Eu tinha falado da ‘banalidade do mal’”, escreve ela, “entendo
por isso não uma teoria ou uma doutrina, mas algo completamente factual.” Eichmann ”se
distinguia talvez unicamente por uma extraordinária superficialidade [...]. A única
característica manifestada em seu passado e em seu comportamento durante o processo [...]
;era [...] uma autêntica inaptidão para pensar.20
Para Arendt, a origem do mal está nesta ausência de pensamento, que incita os
indivíduos “a se ligarem fortemente a tudo o que podem ser as regras de conduta prescritas
por aquela época, naquela sociedade”. Neste tipo de sociedade, prossegue, os indivíduos se
preocupam “menos com o conteúdo [...] do que a posse de regras sob as quais possam ser
reduzidos todos os casos particulares”.21
Arendt analisa então a psicologia do nomein totalitário, que se que se desenvolve
numa atmosfera de decepção, amargura, frustração, assim como os mecanismos políticos
que encorajam a formação desse tipo de personalidade. O ser totalitário manifesta
claramente sua inaptidão ao pensamento: isolado, desenraizado, sentindo-se supérfluo, ele
dá mostras, frisa Arendt, de uma lealdade absoluta e indefectível e provas de um
conformismo profundo, manifestando uma indiferença completa.
Arendt sublinha a importância do desinteresse em relação a si mesmo, com isso
entendendo que o indivíduo “não é importante a seus próprios olhos, e sente que pode ser
sacrificado”, e que nesse caso não mais se trata “de uma expressão de idealismo individual,
mas de uma expressão da amargura”.22 Ela nota ainda - unindo neste ponto a aná-lise do
niilismo de Strauss e do absoluto, tanto de Fromm quanto de Elias – “a tendência
apaixonada de tomar as noções mais abstratas como regras de vida, e o desprezo global
pelas regras do born senso, mesmo as mais evidentes. [...] Isso leva”, conclui, ”ao
aparecimento deJiomensxuja psicologia não se pode compreender”.23
Reagrupando, aprofundando e sintetizando uma série de questões antes abordadas
por Strauss, Fromm e Arendt, Elias apresenta um quadro de conjunto da gênese e dos
mecanismos do ressentimento. Inscrevendo o ressentimento na longa duração, Elias
descreve um clima geral, resultado de um amálgama de tipos específicos de estruturas
sociais e estruturas de personalidade, parte inerente aos ideais do ego, da formação da
consciência e dos códigos de comportamento. Citando “a amargura quase fanática” que
reinava na Alemanha, Elias frisa logo no início a dificuldade de observar, analisar e
qualificar esse tipo de questões. Nota que “é bastante fácil se enganar sobre a problemática
dos judeus na sociedade alemã, dentro da qual ele cresceu [...] porque nem se vê claramente
a natureza do problema de que se trata”.24 Ele confessa que foi a partir do que observara no
plano pessoal que elaboraria, mais tarde, a teoria das relações entre grupos estabelecidos e
grupos marginais.25 Sua personalidade, seu comportamento e a consciência que tinha de si
próprio decorriam, acreditava, do fato de pertencer a “um grupo minoritário desprezado e
perseguido há séculos”.
Tomando o exemplo dos judeus, que, ao obterem promoções na sociedade,
provocariam o ressentimento entre os alemães das classes médias, ele generaliza suas
observações, notando que
um profundo ressentimento pode surgir [...] entre os membros da maioria, sobretudo entre
aqueles que têm a impressão de que seu status está ameaçado, que crêem ter perdido
valor, que não se sentem mais em segurança. Esse ressentimento surge quando um grupo
marginal socialmente inferior, desprezado e estigmatizado, está a ponto de exigir a
igualdade não somente legal, mas também social; quando seus membros começam a
ocupar, na sociedade majoritária, posições antes inacessíveis a eles.
Tolera-se, acrescenta,
Elias observava que este era o caso da Alemanha, onde se tinha tendência para
passar de um extremo a outro, oscilar entre o sentimento de humilhação desmedido e o de
grandeza sem limites.
Mas é no início dos anos 1960, durante o processo Eichmann, que Elias nos dá suas
análises mais aprofundadas sobre a gênese e os mecanismos do ressentimento entre os
alemães.28 Para tanto, ele retraça a história do desenvolvimento dos termos “cultura” e
“civilização”, situando-os no século XVIII e em processos em movimento, voltados para o
futuro, portadores de ideais de progresso, que se tornaram, no século XX, ideais voltados
para o passado. As condições do ressentimento se desenham neste momento.
Elias prossegue sua análise pela descrição do funcionamento do ressentimento nas
classes médias. Ele insiste, assim, em que a divisão decisiva no interior das classes médias
alemãs não cessa de se acentuar depois de 1870. Uma parte defenderá, graças à idéia de
cultura humanista, “o respeito por si mesmo, a integridade pessoal e o sentimento de seu
próprio valor”. Outra, pregando os ideais do nacionalismo, identificar-se-á com as elites
dirigentes, com o regime, “a despeito de seus aspectos sufocantes e humilhantes [...]. O
Estado, de fato, concedia-lhes o posto de cidadãos de segunda classe em relação à nobreza
privilegiada, negava-lhes o acesso à maior parte das posições de poder no Estado, o acesso
[...] ao prestígio associado a essas posições”.29
Este reconhecimento limitado, levemente humilhante, devia ser gerador de
frustração e de ressentimento que levaria, veremos, a um verdadeiro ódio, não tanto em
relação às elites dirigentes, mas em direção àqueles que, refugiando-se na cultura
humanista, podiam subtrair-se àquela identificação humilhante. O ressentimento se
desenvolve a partir da impossível dominação das classes médias humanistas, liberais, pela
outra parte das classes médias, as nacionalistas, que não suportavam que iguais a elas
pudessem subtrair-se, escapar aos mecanismos do poder. Esta subtração desencadeia então
processos, reações de raiva, de crueldade e de sadismo.
No fato de sentirem desprezo e humilhação por si mesmos, Elias vê a origem do
processo que provoca o ressentimento. Se ele explica, assim, o ressentimento a partir da
emergência progressiva de uma decepção, uma desilusão, uma amargura, uma frustração
rastejante que acaba por se cristalizar em ressentimento, vai mais além. E é precisamente
este ponto que nos parece decisivo: esse processo se exprimirá não em relação a seus
superiores, mas sob a forma de desprezo, de raiva odiosa, obstinada e sistemática ao
inferior, ao fraco, ao marginal em relação às hierarquias sociais e políticas, aos estranhos à
nação. Como membros da classe média4nferior humanista, os judeus serão vítimas
privilegiadas desse ressentimento.Dessa forma, o que devia provocar a raiva dos nazistas é
o fato de não conseguirem dominar as classes médias inferiores em status e poder, uma vez
que as classes humanistas, liberais, subtraíam-se aos mecanismos de poder.
Ele se refere à Alemanha por lá se recorrer a uma metáfora para descrever a
obsequiosidade e o servilismo daquele tipo de comportamento: “Falava-se de alguns tipos
de pessoas como sendo Radfahrer, isto é, ‘ciclistas’, pois curvavam as costas diante dos que
estavam acima deles e desprezavam os que estavam abaixo”.30
Elias fornece, então, considerações gerais sobre os mecanismos emocionais
associados ao nacionalismo. Eles exigiam a anulação de si mesmo e, assim, estariam na
origem do ressentimento: a idéia de que o ressentimento nasceria da negação do valor do
indivíduo e seria, portanto, intrínseco ao nacionalismo. “A coletividade aparecia como
sagrada, superior aos indivíduos em questão: emoções ligadas à coletividade possuíam um
caráter enigmático e obscuro, exterior e acima dos indivíduos.”31
Esta é a dimensão, o componente obscuro e enigmático do mecanismo no qual
pareceu interessante nos determos. Elias fala de uma mistificação da coletividade.
Participando da fabricação de um ego grandioso, esta proporcionava assim um
engrandecimento do ego fantasioso para indivíduos frustrados, amargos e inferiorizados.
Nascidos dele, ou pelo menos associados ao nacionalismo, as emoções e os
sentimentos coletivos seriam - na medida em que são intensos - fontes de orgulho, de
sustentação emocional, assim como fontes de frustração e de humilhação; logo, a longo
prazo, são geradores de ressentimento.
Desenvolvendo o plano histórico e sociológico a análise de Fromm, Elias apresenta
uma síntese deslumbrante, com o intuito de descrever as propriedades estruturais comuns
destas relações emocionais. Retraçando a gênese na história dos Estado-nações, num
estágio de seu desenvolvimento nos séculos XIX eXX. Dessa maneira, reforça que o
ressentimento se explica menos pelo seu ego grandioso do que pela crença nos absolutos,
pelo devotamento completo à nação e aum ideal nacionalista. Para retomar uma expressão
de amargura do que pela crença nos absolutos, pelo devotamento completo à nação e a um
ideal nacionalista. Para retomar uma expressão de Arendt, “o ressentimento implica antes
uma expressão de amrgura do que de idealismo individual”, “algo passionalmente negativo,
niilista em relação ao destino singular da pessoa, muito bem traduzido na expressão black
idealism”. 32
Por meio da história da Alemanha, Elias detém-se, então, nas condições de emergência do
ressentimento. No curso dos séculos, a Alemanha não conheceria senão uma sucessão de
derrotas, um declínio progressivo, uma contínua perda de poder, a despeito do sacrifício de
si, inútil, por isso gerador de amargura, rancor e ressentimento. A história havia, assim,
gerado em cada alemão um sentimento de grandeza perdida, relacionado a uma falta de
confiança em si, a um sentimento de inferioridade, de impotência e, no interior dele, de
frustação e ressentimento
Elias acentua, em seus estudos sobre os alemães dos séculos XIX e XX, a
necessidade de valorizar a aspiração à auto-estima, que encontra uma de suas expressões no
status. É preciso, diz, estudar detalhadamente as ligações entre a perda de poder e a perda
de sentido e de valor que a acompanha, a fim de esclarecer a amargura, a frustração e o
ressentimento ligados a essas perdas.
NOTAS
1 N. Elias, “Interview biographique de Norbert Elias”, in Norbert Elias par lui-même,
Fayard, 1991, p. 99 (versão alemã, 1990).
2 Sobre estas questões, ver os trabalhos de Pierre Ansart, especialmente La gestions des
passions politiques, L’ Âge d’ Homme, 1983; de Eugene Enriquez, De la horde à l’Etat,
Gallimard, 1983 , e Les figures du maître. Arcantère, 1991.
3 S. Freud, Le malaise dans la culture, PUF, Qdrige, 1995; M. Gauchert, “Essai de
psychologie contemporaine”, Le Débat, nº 98, abr., 1998.
4 é preciso sublinhar aqui que o reconhecimentp e o ressentimento, que se situam no cerne
dos sentimentos morais, constituem de certa maneira “ aparte esquecida” dos direitos do
homem, a dos direitos morais. Ver, a respeito, C. Haroche, “Les padoxes de l’égalité: le cas
du droit à la reconnaissance”, in G. Guglielmi e G. Koubi (orgs.), Egalité des droits, egalité
des chances, Editions du cerf, 1994; assim como Axel Honneth, que analisa a falta e a
denegação de reconhecimento em The struggle for recognition, MIT Press, 1996. Sobre a
questão do reconhecimento e do ressentimento nos sentimentos morais, ver “Sentiments,
sentiments moraux”, in M. Canto Sperber (org.) Dictionaire d’ethique de philosophie
morale, PUF, 1997, p. 1.380.
5 Agradeço a Daniel Percheron por ter chamado minha atenção para este texto de Merton,
que, de maneira casual, em passagem breve e instigante, aborda o ressentimento ao tratar a
questão da anomia e do desvio. Ver robert Merton, Eleménts de theorie et de méthode
sociologique. Paris: Plon, 1965, p. 188.
6 Acerca da dificuldade deste gênero de abordagem , ver E. Kant, Anthropologie du point
de vue pragmatique, Garnier Flamarion, p. 270. “Kant avaliara a dificuldade de realizar
uma antropologia: dificuldade nascida do fato de que o homem, quando se procura fazer
dele um objeto de estudo, simula ou dissimula-se; dificuldade ligada, além disso, aos
hábitos e costumes, que, como uma segunda natureza, constituem um entrave à observação
de si e dos outros, ao conhecimento da natureza humana”, C. Haroche, “Le gouvernement
des conduites”, Focault Aujord’hui, Magazine Littéraire, nº 325, out., 1994.
7 Ver, a propósito, S. Freud, Malaise dans la culture, op. cit., assim como “ Au delà du
principe de plaisir” e “Psycholoie collective et analyse du moi”, Essais de psychanalyse;
ver, ainda, “ XXXIème Conférence: Angoisse et vie Pulsionelle” e “XXXVème
Conférence: Sur une Weltanschauung”, Nouvelle Conférences de Psychanalyse (1933),
Folio, Gallimard, 1997.
8 Strauss, “Le nihilisme Alleiriand”, Commentaire, nº 86, verão, 1999; E. Fromm, Escape
from freedom, 1941; H. Arendt, Les origines du totalitarisme, le système totalitaire, Seuil,
1972 (1951), Eichmann à Jerusalém, rapport sur la banalité du mal, Gallimard, Folio, 1997
(1963), Considérations morales, Payot et Rivages, 1996 (1971); N. Elias, The Germans.
Power struggles and the development of habitus in the nineteenth and twentieth centuries,
Polity Press, 1996 ( lª ed. alemã, Studien über die Deutschen, Suhrkamp Verlag, 1989).
9 Strauss, op. cit., p. 311.
10 Idem, op. cit., p. 322.
11 Ibidem.
12 Fromm, op. cit., p. 210 (trad. Luciano Lopreto).
13 Idem, op. cit., pp. 211-12.
14 Idem, op. cit., p. 213.
15 Idem, op. cit., p. 216.
16 Idem, op. cit., p. 231.
17 Idem, op. cit., p. 232.
18 O texto desta conferência foi publicado com o título “Thinking and moral
considerations: a lecture” na revista Social Research, em 1971; em francês, em 1993 e
1996, na editora Payot Rivages, com o título Considérations morales, op. cit.
19 H. Arendt, Les origines du totalitarisme, op. cit., p. 201.
20 Idem, Considérations morales, op. cit., pp. 25-26.
21 Idem, op. cit., p. 55.
22 Idem, Les origines du totalitarisme, op. cit., p. 38.
23 Idem, op. cit., pp. 39 e 47.
24 N. Elias, “Notes sur les juifs en tant que participants à une relation établis-marginaux”,
in Norbert Elias par lui-même, op. cit., p. 150.
25 Idem, op. cit., p. 151.
26 Idem, op. cit., pp. 151-53.
27 Idem, op. cit., p. 158.
28 Idem, The Germans, op. cit., particularmente caps. II -A digression on nationalism e IV -
The breakdown of civilization. .
29 Idem, op. cit., pp. 128 e 130 (trad. Luciano Lopreto).
30 Idem, op. cit., p. 380.
31 Idem, op. cit., p. 146.
32 Ibidem.
33 Idem, op. cit., p. 345.
34 Ibidem.
35 Idem, op. cit., p. 337.
36 Correspondência privada, apud M. I. Brudny-de-Launay, ”Présentation”, in H. Arendt,
Eichmann à Jerusalém, op. cit., p. XXVII, Gallimard, Folio, 1997.
37 Saul Friedlander, Probing the limits of representation, nazism and the “final solution”,
Harvard University Press, 1996. Ver particularmente ”Introduction”; Carlo Ginzburg, “Just
one witness”; e Eric Santner, “History beyond the pleasure principle: some thoughts on the
representation of trauma”, todos na citada obra.
38 Norbert Elias, em termos diferentes, diz a mesma coisa quando afirma em suas
entrevistas: “Deveria haver mais pessoas, como eu, que não têm medo daquilo que
descobrem: Evidentemente, os homens temem as más surpresas se refletirem sobre si
próprios com um pouco de realismo” (Nobert Elias par lui-même, op. cit., p. 64). É
interessante observar que no fim de sua vida, Nobert Elias trabalhava em um manuscrito
consagrado a Freud. Ver, sobre este ponto, Sabine Delzescau, La théorie du lien social selon
l’ceuvre de Nobert Elias. Tese em sociologia. Paris 7, 2000.
39 Santener, op. cit., pp. 153-54
40 H. Arendt, Considérations morales, op. cit., p. 70.
Capítulo 16
Michèle Ansart-JDourlen
Universidade Paris VI – Sorbonne
Tradução: Iara Lis Souza
inaugurar uma política guiada pela razão, de introduzir na nova Constituição uma
declaração dos direitos dos homens, proclamando a igualdade de todos no direito (mas não
de fato...), e o que não era, em 1789, a menor das reivindicações: a exigência do direito à
liberdade de expressão para todos.
No segundo período, a partir da queda da realeza (10 de agosto de1792), depois de
uma insurreição popular e da proclamação da Primeira República, instituiu-se
progressivamente um regime violento e um Terror de Estado. Este período ainda continua
sendo objeto de controvérsias entre os historiadores. Alguns o consideram imposto pelas
circunstâncias: a França estava, então, em guerra contra as principais monarquias européias
e, também, em determinadas províncias (notadamente na Bretanha, na Vendéia, no Sul),
ameaçada por uma guerra civil; assim, a instauração de um poder ditatorial (o Comitê de
Salvação Pública) fazia-se necessária. Durante o segundo período, a participação mais ativa
das massas populares deslocara os centros de conflito: à luta contra a Igreja e aristocracia,
acrescenta-se uma revolta social de revolta social de origem popular contra os burgueses
proprietários. Sobre este aspecto, pode-se seguiras análises de Max Scheler, na obra
L’Homme du ressentiment: as reivindicações populares mostraram o predomínio das
atitudes de ressentimento, tratava-se menos de ideologia que de inveja, o desejo de
vingança de um grupo – cito Max Scheler – que “considera sua própria existência um
motivo suficiente de vingança”.1 Como também enfatiza Hanna Arendt, o espetáculo da
pobreza das massas nas ruas de Paris revelara a miséria de uma classe que exigia que seu
estatuto fosse radicalmente modificado e que se pusesse fim a uma desigualdade de riquesas
intolerável. Ainda que a igualdade de direito fosse proclamada, o ressentimento que a
animava tornava-se legítimo e desempenho um papel determinante na dinâmica
revolucionária.
Quando se olha mais de perto, constata-se, contudo, que a dimensão do
ressentimento é também inseparável da gênese das atitudes revolucionárias desde 1789.
Quando apareceram as expressões de ressentimento? Pode-se seguir Tocqueville, que no
L’Ancien Regime et la Revolution,mostrou a penetração progressiva das idéias filosóficas
na burguesia e também nas classes populares, a revolta se cristalizando no momento em que
se verificou que os nobres não dempenhavam mais o papel respeitado de administradores e
protetores de seus domínios, mas abandonavam seus castelos pafà se transformar em
cortesãos do rei, e, sobretudo, a impotência do regime real para introduzir as reformas
fiscais, para limitar os poderes exorbitantes de uma monarquia absolutista e a manutenção
dos privilégios abusivos, revelando a fragilidade do poder central. As soluções políticas
colocadas pela filosofia das Luzes combatiam um vazio político, e as novas idéias pareciam
poder resolver a crise das instituições.
Podem-se distinguir dois aspectos do ressentimento. Um deles, que se pode
qualificar de “positivo”, continuou presente nos dois períodos da Revolução. Ainda que
“passional”, ele ínspirava-se na razão. Era partilhado por todos aqueles que estavam
indignados e exasperados com os privilégios concedidos aos altos dignitários da Igreja e aos
aristocratas, sentido pelos burgueses e letrados, que se viam excluídos dos cargos de
responsabilidade, e também pelos camponeses oprimidos pelos impostos devidos aos
senhores, pelos artesãos e operários das cidades.2 O ressentimento, em segundo lugar,
exprimiu-se também pelas “reações negativas”, no sentido de que visavam menos a um fim
determinado e racional do que à exteriorização de uma paixão raivosa por muito tempo
recalcada. Quando os camponeses, em 1789, começaram a incendiar os castelos, tratava-se
de uma manifestação “negativa” do ressentimento, expressão de uma fúria incontrolável.
Mas, quando queimaram os arquivos feudais, tratava-se de um ato racional na sua
perspectiva, pois significava destruir a origem jurídica dos direitos dos senhores de lhes
impor dias de trabalho gratuito humilhantes e impostos abusivos.
Um potente afeto estava também na origem do ressentimento: a humilhação, tão
vivamente ressentida pelos revolucionários e também pelos resistentes de 1940 a 1944.
Desde 1789, foi um dos temas centrais da célebre brochura redigida por um eclesiástico, o
abade Sieyès, intitulada Quest-ce que le Tiers-Etat?, que logo obteve sucesso considerável.
Ele utilizava uma argumentação racional em suas críticas ao Antigo Regime, mas liberava
também uma revolta provocada pela arrogância e a consciência de sua superioridade de
casta nobre. “Quando não se possui nenhum privilégio, é necessário que se decida suportar
o desprezo, a injúria e os vexames de toda espécie”, escreve ele.3 O Terceiro Estado era a
ordem social representante do conjunto de deputados, que não fazia parte da nobreza nem
do clero. Seu ressentimento acumulado contra as duas outras ordens privilegiadas foi
liberado quando decidiram, na reunião das três ordens em junho de 1789, constituir, eles
tão-somente, uma Assembléia Nacional, propondo-se a elaborar uma nova Constituição.4
Como o historiador Michelet assinalou, esta decisão do Terceiro Estado não era motivada
apenas pela vontade de defender os interesses unicamente materiais, mas por uma vontade
de afirmar sua identidade e por uma reação de orgulho. Essa reação era capaz de liberar os
deputados do sentimento de ser tratado como uma ordem social de natureza inferior.
Afirmou-se então uma liberação do ressentimento; mas ela se efetuava sobretudo no plano
simbólico, ainda que os movimentos populares violentos tenham sustentado sua ação, como
mostraram a tomada da Bastilha pela massa popular, em julho de 1789, e outros
movimentos populares em outubro do mesmo ano. Na realidade, os lances decisivos
resolveram-se em um assembléia em que o novo poder dos deputados se manifestava pela
liberdade de exprimir suas opiniões, pelas acusações verbais e discurso argumentado e
persuasivos. A liberdade de discussão era o signo de um “retorno do recalcado”, mas as
críticas endereçadas ao Antigo Regime tinham também, em contraponto, a proposta das
novas disposições constituicionais. E a tomada da palavra, sem ser censurada, era difundida
por toda sociedade: nos clubes (no começo, os clubes reuniam sobretudo o público burguês,
mas o Clube dos Cordeliers animado por Danton e Marat - começou a ser freqüentado por
homens saídos dos meios populares), nas seções (equivalentes ao que hoje chamamos de
municipalidades). Assim, realizava-se o que Hannah Arendt considera a própria essência da
liberdade política: o poder de tomar a palavra no espaço público, no qual se discutiam os
problemas relativos à cidade ou à sociedade no seu conjunto.
A autora utiliza a expressão Dérive paranoique. Não se refere exatamente ao “desvio paranóico”, categoria
existente na psicanálise, no entanto trata-se de um processo de desnaturação do comportamento. Apenas a
opção pelo termo “paranóia” não portaria esta idéia de encaminhamento, daí o uso de “extravio em direção à
paranóia”. (N.da T.)
O ressentimento remete a um tempo repetitivo, gerador de fantasmas e pensamentos
hostis, vividos na impotência. O ressentimento, no regime da monarquia constitucional
instaurado depois de 1789, podia, ser considerado dissipado e sublimado pela paixão da
política, graças à liberdade de expressão e ao trabalho de elaboração de novas instituições
até 1792. Mas, durante o segundo período da Revolução, a partir da queda da realeza, os
atores viveram um tempo acelerado: os eventos se precipiraram, e, nas palavras de um
revolucionário, a Revolução tornava-se “uma fortaleza sitiada” pelos exércitos reais em
guerra contra a França e também pela revolta de certas províncias fiéis ao rei e à Igreja, tal
como a Vendéia. As ameaças de repressão feitas pelos chefes dos exércitos estrangeiros
provocaiam então reações violentas. O ressentimento tinha, de início, um sentido defensivo,
aguçado pelo medo de ver destruídas as liberdades que se acreditava adquiridas. Um
manifesto publicado em julho de 1792 ameaçava com represálias rigorosas, de fato, com a
execução, todos aqueles que contribuíram para o enfraquecimento do poder real e que
poderiam ameaçar a vida do rei.5 Esse manifesto destinava-se a aterrorizar, mas, ao
contrário, provocou a cólera e a necessidade de vingança, reforçadas pela cumplicidade
(muitas vezes aberta) dos realistas com os exércitos estrangeiros; e as provas da traição do
rei, quando de seu processo, em fins de 1792, não fizeram mais do que atiçar a indignação.
Também apareceu uma outra forma de ressentimento, fundada no medo, na desconfiança,
na suspeita generalizada. Foram as forças populares que primeiro instigaram o Terror; um
representante da Comuna (isto é, a municipalidade central que corresponde ao que hoje se
tornou a Prefeitura de Paris) propôs perante a Convenção, em setembro de 1793, “colocar o
Terror na ordem do dia”. O Terror não foi apenas de ordem “física”, porém abriu o caminho
ao que se tornou a “lei dos suspeitos”. Ela ameaçava de prisão todo indivíduo cujas
convicções revolucionárias fossem postas em dúvida, pelo exame de sua vida política
passada ou por sua origem nobre. Assim, exerceu-se uma repressão que se pode qualificar
de “moral”. Essas formas de violência não eram contudo destituídas de fundamento. Como
assinalou o historiador americano Robert Palmer, que não pode ser acusado de parcialidade,
“inúmeros eram os mentirosos hipócritas, os falsos delatores”;6 ele designou assim aqueles
que dissimulavam seu ceticismo ou sua hostilidade acerca da Revolução, por trás das
máscaras de revolucionários particularmente ardente. Além disso, uma parte da França
estava invadida, as desgraças militares eram recebidas com angústia, e somava-se a isso
uma crise econômica, provocando manifestações de descontentamente popular.
Para compreender a significação das expressões de ressentimento em que
dominavam a desconfiança e a suspeita, pode-se tomar como exemplo típico uma
personalidade revolucionáriamuito discutida, Jean-Paul Marat. Frequentemente atacado e
difamado por um grande número de colegas da Convenção e considerado um pária pelos
historiadores durante a primeira metade do século XIX, conservou a imagem de
provocador, por seus repetidos apelos à insurreição popular e à violência exercida contra as
personalidade que ficaram populares e que ele acusava de traição. 7 Marat era apresentado
por seus inimigos como um boêmio desclassificado. De fato era médico e tornou-se
jornalista depous de 1789. Um jornalista “tem o direito de dizer tudo”, afirmava.
Desempenhou o papel de “agitador”, próximo das reivindicações populares, empenhou-se
conscientemente, no seu jornal que escandalizava, L’Ami du Peuple, a reanimar o
ressentimento das classes pobres não apenas contra os inimigos externos ou a aristocracia,
mas também contra os burgueses proprietários e os notáveis que pertenciam à
administração, que hoje chamamos de burocracia do Estado. Nesse aspecto, sua hostilidade
contra o poder central e os “burocratas” (de acordo com a expressão de Saint Just) retomava
as teses de Rousseau do Le contrat social, segundo as quais todo poder executivo
tende incessantemente, de acordo com sua própria lógica, a estender suas prerrogativas,
portanto até a ameaçar os direitos dos cidadãos. Era necessário, para Marat, renovar
incessantemente a desconfiança contra os abusos de poder da burguesia, que se tornara a
classe dominante, e também contra o Estado.
O ressentimento então não deveria ser “deslocado”, superado, segundo esta
perspectiva, que se pode qualificar de anarquista; era necessário combater justamente o
esquecimento de diversas tentativas do poder para oprimir e ludibriar o povo. Nietzsche
dizia que o ressentimento nasce de uma impossibilidade de esquecer, de uma ruminação das
injustiças e injúrias sofridas. Ora, os apelos à insurreição e, mais geralmente, à
desconfiança, por Marat, eram típicos desta forma de ressentimento, assim como sua
reiteração no jornal, pelos fantasmas de perseguição que expressava (que indicavam muitas
vezes ameaças reais).8 Excitar e utilizar o ressentimento, as pulsões de vingança e de raiva,
eram uma tática, uma necessidade para Marat: ele receava de fato a indiferença e a
credulidade populares. Certamente conhecera o livro de Étienne de La Boétie, Discours de
la servitude volontaire, e ele próprio publicara uma obra histórica e política sobre as
diferentes formas de opressão, Les chaînes de l’esclavage. Marat sabia que os povos se
inclinam a adotar atitudes de “servidão voluntária”, que estão sempre prontos a recair na
passividade e a demonstrar credulidade nos poderes. Muitas vezes foi acusado pelos
dirigentes revolucionários, que receavam os excessos dos tumultos populares, de considerar
esta violência um fim em si mesmo; eles denunciavam nele aquilo que se pode chamar
familiarmente de mania de perseguição e que nomeamos de paranóia, caracterizada pela
projeção da própria agressividade nos inimigos por vezes imaginários. Apesar disso, no
plano político, Mart foi considerado também um precursor da luta de classes, antes de
Marx, e mais freqüentemente,
por sua personalidade de revoltado e em razão da sua denúncia contra o Estado, aparecia
como um anarquista que encontrava grande eco nas classes populares.9
Marat encorajava então o retorno do recalcado, quando da ocorrência das paixões de
hostilidade e vingança típicas do ressentimento. Certos historiadores, como Michelet,
quiseram apresentar Robespierre, um dos principais dirigentes revolucionários, também
como um “homem de ressentimento”. Darei apenas algumas indicações sobre este aspecto.
Primeiro, porque a ação de Robespierre não pode ser dissociada daquela do Comitê de
Salvação Pública, que governou ditatorialmente a França em 1793-1794, e o exame de suas
ações não remete diretamente ao nosso propósito. Além disso, as críticas formuladas por
Michelet contra Robespierre foram consideradas apaixonadas e muito parciais por inúmeros
historiadores. Entretanto, vale a pena abordar rapidamente o problema posto por estas,
acusações. Robespierre encarnou a moral revolucionária e teorizou, em seus discursos, a
associação necessária entre esta e o Terror. Segundo seus detratores,ia moral proposta por
Robespierre seria a máscara hipócrita do Terror. Segundo a fórmula de Nietzsche,
oconteúdo latente dessa moral (que era a moral cristã, destinada a assegurar o poder dos
“fracos” contra os ”fortes”) continha o seguinte raciocínio: “Visto que somos somente os
‘bons’ (os detentores da moral), todos aqueles que recusam são os ‘malvados’”; Nietzche
denunciava então um maniqueísmo destruidor dissimulado por trás dos bons sentimentos. A
“virtude” proposta pela moral jacobina (aquela de Robbespierre e do Comitê de Salvação
Pública) comportava, de fato uma dimensão maniqueísta. Mas é necessário recolocar as
tentativas de fundar uma moral revolucionária no contexto da época. Robespierre atacava
de fato todos os “corruptos”, que, como mostraram os historiadores, foram numerosos, a
favor das transformações sociais e ecnomicas e aproveitaram a Revolução para cinicamente
enriquecer. Por outro lado, essa moral pretendia sublimar as paixões do ressentimento, ao
retomar a idéia de “virtude” no sentido político que Montesquieu lhe deu. O princípio da
República livre; este era também o princípio enunciado por Maquiavel, no Les discours sur
la première décade de Tite Live.
A adesão à Resistência foi primeiro uma questão de escolha individual daí o papel
central de certas personalidades: De Gaulle, certamente também, no interior da Resistência,
entre outros, Jean Moulin, que continua sendo o símbolo da Resistência, Pierre Brossolette
e Henri Frenay, criador do movimento mais importante na zona não ocupada. E, entre os
intelectuais, Jean Cavaillès, filósofo conhecido, fuzilado no começo de julho de 1944 por
sua atividade de informante a serviço dos Aliados. Marc Bloch, célebre historiador, entrou
na total clandestinidade em 1943 e também foi fuzilado, em junho de 1944. Escolhi precisar
um pouco o caso de Pierre Brossolette, cuja evolução é particularmente esclarecedora para
compreender o sentido das relações entre a desilusão e o ressentimento. Ele fora, antes da
guerra, um jornalista muito conhecido e militante ativo do Partido Socialista. Pôde
descobrir, em 1940, depois da derrota, a amplitude de suas ilusões passadas, pois fora um
pacifista convicto e percebia que seus ideais haviam perdido sentido. E constatar a inércia
dos deputados do Partido Socialista e sua conseqüente demissão logo que a maioria
socialista votou os plenos poderes de Pétain, em julho de 1940. Assim esse intelectual -
especializado em história - decidiu reunir os partidários do general De Gaulle e, como Jean
Cavaillès, mas segundo modalidades diferentes, engajou-se na ação direta. Ele estimara
rapidamente que depois da guerra deveria se instaurar um poder executivo forte, numa
reação contra a moleza e a covardia das democracias ocidentais que cederam à chantagem
de Hitler, para evitar a todo custo a guerra.14 E, num plano estritamente pessoal, pode-se
supor que o choque da derrota provocara um ressentimento feito de pesar e culpa, por ter
desprezado, no intelectual idealista e pacifista, a força destruidora do hitlerismo. Esse
percurso psicológico, aliás, foi o mesmo do historiador Marc Bloch, como testemunhou em
L’Examen de conscience d’um français. Estes conflitos internos foram sublimados pela
ação que Brossolette conduziu, enquanto organizador da Resistência na Franca em missões
perigosas. Ele queria unir os diferentes movimentos de resistência e, antigo militante,
sonhava ultrapassar as clivagens políticas. Foi finalmente preso no começo de 1944 e
suicidou-se, para não falar sob tortura, em março do mesmo ano.
Darei apenas algumas indicações sobre a ação da propaganda a quese consagrou a
maioria dos resistentes, nos folhetos e jornais clandestinos, evocar aqui um deslocamento
do ressentimento icoinpcudvci A pi «dita que se P°de chamar de “simbólica” nos
revolucionários durante a Revolução Francesa. Contra a opressão e a censura, era preciso
provocar as reações no seio da população, dando-lhe informações ocultadas pelos alemães e
pelos jornais de Vichy, e denunciar a propaganda de Vichy. Era a vontade de provocar a
emergência do recalcado, liberando a hostilidade contra os alemães. Nas condições
arriscadas, apesar do terror criado pela polícia alemã, a Resistência reanimava a liberdade
de expressão, que, desde a Revolução Francesa, mantinha-se como exigência fundamental.
Enfim, também se devia lutar contra o esquecimento e, para ultrapassar um sentimento de
impotência, de onde nascia o ressentimento, lembrar-se da tradição revolucionária na
Franca; assim, De Gaulle e os jornais clandestinos evocavam freqüentemente as lutas
conduzidas pelos revolucionários de 1789 e 1793.
NOTAS
Paul Zawadzki
Universidade de Paris l – Sorbonne
tradução: Jacy Alves de Seixas e Luciano Lopreto.
indireta, os trabalhos da Escola de Frankfurt esclarecem igualmente os efeitos políticos
devastadores do ressentimento, por meio de uma ampla reflexão sobre a passividade, a
resignação e a submissão à autoridade. Para além da revolta nazista dos filhos, Erich
Fromm distingue a experiência passiva da “amargura e do ressentimento” da geração dos
pais, saídos das baixas classes médias, cuja perda de prestígio, ligada à falência econômica,
foi grandemente ampliada pelo desmoronamento dos símbolos de autoridade que eram a
monarquia, o Estado e a família.15 Encontramos aqui algumas das perspectivas pesquisadas
pela Escola de Frankfurt, para as quais Fromm muito contribuiu desde a década de 30: a
crise da família burguesa, o declínio da autoridade paterna e a impotência resignada daí
resultante, que leva ao aparecimento de uma espécie antrológica nova (o homem
autoritário), inclinado a submeter-se à autoridade 16 Finalmente, na tradição marxista
iniciada por Engels e prosseguida or G. Lukács ou K. Mannheim, encontramos, se não a
palavra, ao menos nocão de ressentimento como rebaixamento psíquico da falsa
consciência,17 sendo o racismo apenas um exemplo ideológico.18 Sem nos determos nas
conhecidas fragilidades epistemológicas da noção de falsa consciência19 e tampouco na
perigosa facilidade de erigir o ressentimento ern um “conceito que serve para tudo”,20
vamos nos limitar a lembrar que um dos principais interesses da análise scheleriana, apta a
esclarecer os fenômenos de surrealismo ideológico, reside em frisar o papel do
ressentimento na gênese do juízo de valores, no que ele “tende a provocar uma deformação
mais ou menos permanente do sentido dos valores, como também da faculdade de
julgamento”.21 Tomado pelo ressentimento, o sujeito cairia na auto-ilusão22 ou na
heteronomia, que faria dele um ser sem “nenhum ideal, nenhuma substancialidade”,23 o
que, pela desestruturação de sua capacidade de julgar, iria conduzi-lo eventualmente para o
niilismo.24
O fato de o ressentimento ser tão freqüentemente associado aos fenômenos sociais e
políticos que os pensadores democráticos não apreciam (nacionalismo, racismo,
totalitarismo) deveria seguramente aumentar nossa vigilância epistemológica. Mas, além
das inevitáveis distorções induzidas na análise pelas atitudes fóbicas - voltaremos a falar
disso -, há aqui uma pista de reflexão importante, se aceitarmos ver que esses fenômenos
participam da patologia da transição entre duas épocas.25 É possível interpretar o
nacionalismo, o racismo e, de maneira geral, as dinâmicas totalitárias como orientações
políticas paradoxais, no sentido de que constituem negações da modernidade democrática,
nascidas em seu seio, mas desenvolvidas em reação a ela.26 Reativo a alguns elementos
essenciais da cultura democrática, o homem do ressentimento não lhes seria estranho. O
que explicaria, aliás, que o termo datado de 1558 no Dicionário Robertsó tenha sido
realmente elaborado e tematizado a partir do século XIX. Chegamos então à seguinte
interrogação: em que sentido é possível determinar a relação entre o ressentimento, estado
psicológico (e não estrutura)27 provavelmente universal, e o advento da democracia? Em
que sentido a afecção do ressentimento é uma patologia, se não democrática, ao menos em
parte ligada à democratização, sem deixar de constituir uma disposição psíquica e moral
que alimenta, assina, muitas vezes sua negação? A resposta pede, em todo caso, um esforço
de articulação das Dimensões psicológica (individual) e política (coletiva), seguindo dois
grandes eixos que nos propomos esboçar brevemente.
No primeiro eixo, estabeleceremos a hipótese de que a dimensão vingativa do
ressentimento, que aparece sob a forma passional, pode ser analisada em termos de
ferimento moral, que por meio do sentimento de indignação indica uma certa idéia de
justiça. Se a necessidade de justiça parece universal, seus conteúdos (o justo, o injusto, o
legítimo, o ilegítimo) variam em função das escolhas e das orientações culturais não
redutíveis a considerações ligadas à psicologia individual. É por isso que, escolhendo
distinguir inveja (paixão) e ressentimento (sentimento moral), veremos no segundo eixo
que o advento da democracia dá origem a um novo conflito, colocando em confronto
concepções divergentes de justiça e legitimidade, produzindo ao mesmo tempo duas
grandes formas de ressentimento, de significados opostos (igualitário e anti-igualitário).
Uma breve observação epistemológica, finalmente, para precisar a perspectiva adotada. A
reflexão sobre as expressões políticas e sociais do ressentimento conduz a regiões incertas
em que razões e afetos se tornam dificilmente dissociáveis. Considerando como argumento
central a questão da justiça e nos empenhando em fazer aparecer o que, no ressentimento,
diz respeito ao sentimento de ter sido injustamente tratado,28 decidimos explorar a
dimensão (subjetivamente) racional e compreensível do ressentimento. Além da intensidade
afetiva que ele parece traduzir e de sua irracionalidade aparente, o que nos interessa é
analisá-lo como um sentimento moral29 ligado a uma racionalidade cognitiva, no sentido
em que Raymond Boudon comenta a respeito das crenças coletivas, tão freqüentemente
reduzidas a explicações emotivas ou sociológicas (culturalistas). Em particular, “os
sentimentos de justiça ou de injustiça merecem o nome de ‘sentimento’, pois comportam
uma dimensão afetiva essencial: nada é mais difícil de suportar do que a injustiça. Mas são
ao mesmo tempo fundados em sistemas de razão. E a relação afetiva é mais forte quando as
razões parecem mais sólidas ao sujeito social .
Pensamos, finalmente, que todo método implica uma filosofia, assim como a análise
histórica supõe um pensamento da história. Digamos que o caminho escolhido se afina com
o humanismo racionalista, que nos faz concordar com Aron quando afirma “que estaríamos
errados em considerar definitivamente adquirido o fato da desrazão humana”.31
O preconceito aumenta à medida que a desigualdade é abolida pela lei. Não somente
ele não se reduz a um atavismo, uma persistência do antigo no novo, mas é uma inovação
paradoxal surgida no seio da democracia e diretamente contra ela, perspectiva que Louis
Dumont ou Léon Poliakov não contestariam.97 A explicação de Tocqueville prefigura uma
das teorias sociológicas do ressentimento, sem apelar - e aqui reside sua força - ao
paradigma da falsa consciência ou da alienação.
Se nos interrogarmos sobre o devir dessas duas formas de ressentimento, é claro que
o ressentimento anti-igualitário, aquele que procede da recusa dos princípios da democracia,
parece estar se esgotando. A idéia de uma heterogeneidade radical entre os homens, assim
como a naturalização da desigualdade, perdeu tanto a legitimidade cultural na
democracia109 que até mesmo as extremas direitas, muitas vezes, tiveram de operar a
guinada diferencial, substituindo a raça pela cultura e a desigualdade pela diferença. Um
dos últimos elementos, investido de maneira quase sempre “vergonhosa” pelo pensamento
naturalizante e hierárquico, talvez tenha sido a questão das mulheres. A constatação que
Mareei Gauchet faz a propósito de uma mudança inédita na autonomia das sociedades
democráticas110 coincide, apesar de sua inquietação com certas conseqüências indesejáveis,
com o entusiasmo de Erich Fromm: “a maior glória do nosso século foi ter minado
definitivamente as bases da crença na origem natural ou divina da desigualdade entre os
homens e na necessidade ou legitimidade da exploração do homem pelo homem”.111
Em contrapartida, o individualismo democrático, evidentemente, não esgota a outra
forma de ressentimento. Mas, seguindo algumas das mais sombrias preocupações de
Tocqueville (e também de Rousseau), o mundo no qual nos engajamos hoje em dia não nos
conduziria a uma ampliação e a uma generalização do ressentimento igualitário, agravado
pela impotência do político e pelo desaparecimento do futuro? 112 Nossa época caracteriza-
se ao mesmo tempo pelo triunfo da democrácia sobre seus inimigos históricos, pela
radicalização das exigências igualitárias e também pelo desmoronamento inédito das
grandes ideologias e dos projetos políticos. Ela reatualiza, para alguns, o projeto kantiano
de paz perpétua113 e, para outros, a interrogação hegeliana sobre o fim da história e o tédio
democrático.114 Mudando de forma, a dominação torna-se provavelmente mais soft, mais
insidiosa também, no modelo da barbárie suave115 das injunções paradoxais do tipo: “sejam
autônomos!” Porém, será que uma situação na qual se dissemina um sentimento
desesperador de incapacidade de agir conjugado ao desaparecimento, sem precedentes nos
tempos modernos, de um alhures compartilhado, no qual poderíamos nos apoiar para
criticar o mundo tal como é, não abriria um espaço gigantesco para a ruminação impotente
e passiva dos ressentidos em busca absoluta de reconhecimento? 116 Entretanto o pior nem
sempre é certo. “Abstenhamo-nos de caluniar nosso tempo.”117
NOTAS
Capítulo 18
Stella Bresciani
Universidade Estadual de Campinas
Este artigo é parte do resultado de uma pesquisa financiada pelo CNPq.
imaginária, apresentasse-se? Por fim, seria somente um olhar estrangeiro aquele capaz de
diagnosticar essa nossa obsessão e seu recorrente fracasso?
Tomo o livro de Darcy Ribeiro O povo brasileiro -A formação e o sentido do Brasil
como ponto de chegada do problema levantado nesta comunicação, já que o autor traz para
meados dos anos 1990, na forma de um longo trabalho, a persistente indagação sobre nossa
identidade que, de seu ponto de vista, apresenta-se ainda inacabada. Em linhas gerais, suas
conclusões põem lado a lado a incompletude identitária da população e o fato de o país não
existir para si mesmo, para destacar seu destino de provedor de bens para o mercado
mundial, desde o início de sua colonização. Desse modo, se, para ele, “o Brasil é uma etnia
nacional, um povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado dentro de um
mesmo Estado”, essa imagem positiva se desfaz, dado que a uniformidade cultural e a
unidade nacional teriam sido asseguradas por um processo continuado e violento de
unificação política, de supressão de toda identidade étnica discrepante e opressão de toda
tendência virtualmente separatista. Os movimentos sociais em luta por uma sociedade mais
aberta e solidária, emudecidos sob a violência unificadora, confirmariam a uniformidade
cultural sobreposta a “uma profunda distância social”, ou “estratificação de classes”,
produzida pelo “processo de formação nacional”. Seu texto, entretanto, não se resume à
representação da impotência da sociedade expressa em frases como: “Nós brasileiros somos
um povo em ser, impedidos de sê-lo”. Há nas páginas finais quase que uma aposta na nossa
capacidade de superar a condição de “massa de nativos oriundos da mestiçagem vivendo
por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade, até se definir como uma nova
identidade étnico-nacional, a de brasileiros”. Essa aposta passa pela rápida sugestão de uma
unidade latino-americana semelhante à da comunidade européia, mas, antes de tudo, põe
diante de nós a questão de sermos “um povo na dura busca de seu destino”, numa clara
contraposição ao seu passado de 500 anos, marcado pela inexistência de “um povo livre,
regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade”.
As conclusões de Ribeiro sobre a condição inacabada da nação e, por decorrência,
sobre a problemática da identidade nacional repetem a linha interpretativa de uma sucessão
de trabalhos acadêmicos e não acadêmicos, que também recuaram até os inícios da
colonização portuguesa em busca das razões dessa experiência de identidade inacabada.
Com as conclusões de Darcy Ribeiro e a avaliação de Skidmore, creio que posso
indagar sobre a persistente busca da identidade ainda no final do milênio. O que a motiva?
Nas décadas subseqüentes à independência do país, em 1822, a exigência de
representarmos simbolicamente nossa singularidade ante a ex-metrópole e os outros países
do contexto internacional teria estimulado a formação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e motivado vários intelectuais a se preocuparem em atribuir características
próprias ao país e à sua população. Mais para o final do século XIX e primeiras décadas do
XX, a onda política dos nacionalismos, formada no confronto com a Internacional
proletária, e a rivalidade sem tréguas entre os países europeus, aí incluídos os novos
avanços colonizadores, dariam estímulo a nova busca da identidade brasileira, mais
coerente com as novas instituições republicanas. O que, contudo, até hoje justificaria essa
busca persistente e aparentemente minterrupta?
Não estaria, pergunto, essa persistência fechada num círculo vicioso formado pela
maneira como se buscou e se busca configurar essa identidade? Ou seja, na escolha de um
dado procedimento de retorno às origens, no qual a condição tropical do território e as
características do povo colonizador nos fariam surpreender, exatamente lá, um mau começo
que se teria colado a nosso destino e nos traria aprisionados? Seria essa a chave para o
entendimento da persistente afirmação do inacabamento da nação e, daí, da nacionalidade?
Algo como um mal de origem do qual seríamos herdeiros? A afirmação parece ser
procedente, pois todos (exagero?) os interpretadores do Brasil são unânimes em sua
denúncia da dificuldade em se colonizar um país situado nos trópicos e em listar as
características negativas de nossos colonizadores.
Gilberto Freyre, a quem se atribui ter-nos ensinado anos “reconciliarmos com nossa
ancestralidade lusitana e negra, de que todos nos vexávamos um pouco”, nas saborosas
palavras de Darcy Ribeiro,5 ameniza, é verdade, o peso da herança lusa, revertendo o sinal
negativo das características do homem português, contudo só o faz para o período colonial.
Seus escritos contêm, também, um paradoxo. Seria exatamente durante o domínio colonial
que de modo mais genuíno teria se expressado nossa singularidade cultural; o movimento
de independência, pelo contrário, abrira a nova nação para o mundo. A “reeuropeização do
Brasil”, no começo do século XIX, rompera com “três séculos de relativa segregação” e
empalidecera, diz Freyre, o ”tom oriental da nossa vida”. Ocorrera paralela e
complementarmente à decadência ou desintegração do patriarcado, base da estrutura da
sociedade colonial fundada na grande propriedade e na produção açucareira, “derrotado
pela nova classe ansiosa de domínio burgueses e negociantes-ricos, mercadores de sobrados
e seus filhos bacharéis ou médicos”. Não há continuidade na trajetória vitoriosa do
brasileiro forjado nas lides dos primeiros tempos, mescla de raças diferentes portugueses,
indígenas e africanos -, dilatador das fronteiras com o movimento das bandeiras e
colonizador efetivo com a grande propriedade rural. Suspensa a segregação, com a chegada
da família real em 1808, uma cultura marcada pela sociabilidade urbana viria substituir
modos de ser e de viver da clausura quase oriental da casa-grande subordinada à autoridade
paterna. É interessante notar como Freyre sugere a perda do caráter viril e um certo
amolecimento feminino nos mores. Ao homem forte e autoritário formado no meio rude da
organização das atividades agrícolas se sobrepõe o homem amaneirado da cidade, o meio
urbano sofisticando os costumes, afrouxando a rígida disciplina que subordinara filhos e
filhas no regime conventual da casa-grande. Esmaeciam a figura do patriarca, senhor
absoluto nessa sociedade, e sua autoridade inconteste mesmo diante do Estado e da Igreja.
Nessas interpretações do Brasil, a determinação do meio sobre o homem ocupa
lugar privilegiado, pois atua como elemento explicativo da história. Configura um lugar-
comum a que sempre se recorre, mesmo nas interpretações orientadas pela teoria marxista,
crítica do tripé “positivista”: o meio, o homem e história ou o momento, largamente
difundido no século XIX pelos trabalhos de autores tais comp Henry Thomas Buckle e
Hippolyte Taine.
A partir dessas breves indicações, penso ser pertinente indagar como se formam, de
onde vêm essas convicções tão largamente difundidas. Não estaria o êxito ou o fracasso das
construções identitárias exatamente na maneira pela qual seus autores conseguem entrelaçar
com maior ou menor êxito argumentos racionais e imagens de forte apelo emocional? A
recorrência da imagem fatalista, no caso do Brasil, não estaria relacionada ao argumento
que subordina a uma impossível fuga do meio e da herança mestiça? Argumentos e
imagens estes que os diversos autores recolhem em um mesmo fundo-comum de teorias,
informações e preconceitos e, dessa maneira, permanecem aprisionados a eles em suas
interpretações?6 Nesse sentido, a identidade nacional, qualquer uma, oferece-se enquanto
lugar-comum, possibilitando à pluralidade de falas formuladas em lugares “diferentes”
estabelecer diálogo, comparações e posições contrastantes, a despeito da instabilidade e dos
múltiplos deslocamentos das imagens e representações que as constituem. Lugar-comum, a
imagem resultante, fundo-comum, o material com o qual é elaborada e cuja genealogia
necessita ser
interrogada.
O pecado da origem
A paisagem tropical
Ce qui est plus intéressant pour nous, c’est la différence sensible entre des
espèces d’hommes qui peuplent les quatre parties connues de notre globe.
II n’est permis qu’à un aveugle de douter que lês Blancs, les Nègres, les
Albinos, les Hottentots, les Lapons, les Chinois, les Américains, soient des
races entièrement
dififérentes.22
Je me suis attaché à faire, autant que je l’ai pu, 1’histoire ;de moeurs, des
sciences, des lois, des usages, des superstitions. Je ne vois presque que
des histores des róis; je veux celle des hommes.
VOLTAIRE, Carta a Jacob Vernet, 1744
acre requinte à vida sexual, à alimentação, à religião; sangue mouro e negro correndo nas
veias; homem cosmopolita e plástico, sem quase nenhuma consciência de raça; o ar da
África corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval”; o próprio caráter do
povo explicando o milagre da reprodução e expansão bem-sucedida na terra colonizada a
partir de um punhado de homens, o triunfo dos portugueses onde outros europeus
fracassaram (referência aos holandeses em Pernambuco). Esses mesmos atributos do
português, “população indecisa étnica e culturalmente, bicontinentalismo, gente flutuante,
perturbada por dolorosas hesitações, rica de aptidões que contudo não conciliaria com
expressões úteis e práticas”, como que antecipam sugestivamente o declínio da estrutura da
sociedade colonial a partir de seus próprios fundamentos - a família patriarcal.
Não que Freyre minimize os obstáculos à ocupação do solo em clima tropical. Ele
afirma que, sem a ajuda da moderna engenharia sanitária, “o clima a considerar é o cru e
quase todo-poderoso aqui encontrado pelo português em 1500: clima irregular, palustre,
perturbador do sistema digestivo; clima na sua relação com o solo desfavorável ao homem
agrícola e particularmente ao europeu”. “O português no Brasil”, prossegue, ”teve de mudar
quase radicalmente o seu sistema de alimentação, cuja base se deslocou, com sensível
déficit, do trigo para a mandioca.” A dieta alimentar deficitária colocaria o colonizador
português em nítida desvantagem em relação ao colonizador inglês dos Estados Unidos,
que lá encontrara condições ambientais semelhantes às da mãe pátria. “Tudo era aqui
desequilíbrio. Grandes excessos e grandes deficiências, as da nova terra.” O paralelismo
entre “o difícil triunfo lusitano no Brasil” e o “rápido e sensacional dos ingleses naquela
parte da América de clima estimulante, flora equilibrada fauna antes auxiliar que inimiga
do homem, condições agrológicas e geológicas favoráveis”, constitui outro ponto de
convergência nas análises que avaliam a. formação e o sentido do Brasil.
Há, pois, na literatura acadêmica sobre o “brasileiro” algo como um mal de origem,
um pecado responsável pelos começos menos graves e respeitáveis se comparados ao
caráter quase bíblico da atitude dos Pilgríms anglo-saxões ao se lançarem na costa da Nova
Inglaterra, conscientes na opção de emigrar para terras desconhecidas onde teriam projetado
a possibilidade de liberdade de culto para sua prática religiosa. Origem virtuosa,
moralmente elogiável; todas as boas características conferidas a pessoas ou a um ‘povo”
pelos moralistas do século XVIII recobrem o caráter dos pioneiros da Nova Inglaterra numa
feliz união com o meio favorável. Não há discrepância entre pensamento e ação. Oliveira
Viana estabelece mesmo um vínculo entre os Estados Unidos e a Inglaterra, que,
contrariamente à França e seu idealismo democrático utópico em 1789, seriam centros do
mais puro “idealismo orgânico”, “criação de homens práticos e objetivistas, que os [o inglês
e o americano] elaboraram tendo a ‘sua’ sociedade sempre avista e somente ela”,
idealismos “inaclimáveis sob outros céus políticos que não os americanos e os ingleses”.28
E bem diversa a avaliação da cultura brasileira. Aqui, Oliveira Viana se mostra espantado
pela “cegueira obstinada à evidência das nossas realidades”.””No Brasil não existe ‘povo’
no sentido anglo-saxão, isto é, massas populares esclarecidas e independentes”; do lado da
elite há em sua minoria culta o “quixotismo, esse sentimento todo impregnado de
intelectualismo, em cuja gênese dominam os fatores imaginativos”; há na outra parte dessa
elite “o sentimento de clã, vivaz e enérgico, poderoso pela sua origem hereditária, por que
está nos instintos das raças”.29 Em tom aproximado, os argumentos de Freyre coincidem
com os de Buarque de Holanda na representação da distância a separar “doutores”,
“indivíduos de cultura predominantemente européia e outros [os analfabetos] de cultura
principalmente africana e ameríndia”. Na mesma linha interpretativa do elogio ao exotismo,
adotada por Oswald de Andrade, Freyre relativiza essa polaridade, reconhecendo nela certas
vantagens. “A espontaneidade, o frescor de imaginação e emoção do grande número, e a
ciência, a técnica e conhecimento adiantado da elite adquirido no contato com a Europa”,
características que fundem na mesma identidade cindida do brasileiro o sentimento e a
razão, princípios que em dosagem diferenciada vinham marcando a diversidade dos povos
desde o século XVIII, relidos por Tocqueville, já em meados do século XDC, na
representação das diferenças mesológica e humana nas várias zonas climáticas das
Américas. Freyre consegue fundar nossa originalidade no equilíbrio instável de
antagonismos propiciadores de confraternização e mobilidade social. Instável e precário,
diria eu, pois essa mesma plasticidade levaria de roldão, na enxurrada da reeuropeização de
inícios do século XIX, nossa cultura mais autêntica.
Notável pela grande aceitação até nossos dias é o terceiro lugar-comum decorrente
da identidade brasileira cindida entre a razão européia e o sentimento pátrio, que revela
outra carência nacional. Trata-se de ponto de encontro de extensa produção acadêmica: a
teoria da importação de idéias, instituições, costumes de outros povos, resultado tanto de
nosso mimetismo ou preguiça mental como da nossa incapacidade de ver e avaliar a “real”
situação do país.
Oliveira Viana comunga com Freyre a avaliação de que “o sentimento das nossas
realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães generais, desapareceu com efeito, das
nossas classes dirigentes”. Sua explicação coincide ainda com o marco de 1822 requisitado
por Freyre:
A síntese ressentida
No confronto que faço entre á nossa gente e os grandes povos, que são os
nossos mestres e paradigmas, evidencio muitas deficiências da nossa
organização social e política. Não ponho nisto, porém, nenhum ressaibo de
pessimismo ou descrença. Quis ser apenas exato, sincero, veraz.
OLIVEIRA VIANA (l918)
NOTAS
1 Thomas Skidmore, O Brasil visto de fora. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
2 A coletânea foi editada pela Nova Aguillar e mereceu longo comentário dç José Castello
em parte significativa do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo, de 21 de maio de 2000.
Também no mesmo periódico, o tema dos 500 anos propiciou a produção do Caderno 2 de
22 de abril de 2000, com textos que em diferentes épocas trataram de diversos aspectos da
identidade do país é de seus habitantes. Ainda nesse jornal, lembro a série “Redescobrindo
o Brasil”, que, em 11 de junho de 2000, chegou à sexta reportagem. Por iniciativa do jornal
Folha de S. Paulo, estão sendo reeditadas 12 “das mais importantes obras clássicas sobre a
história, a economia, a sociologia e a literatura do Brasil”, como explica o redator do
caderno Mais! de 2 de abril de 2000.
3 A coletânea foi publicada em São Paulo pela editora SENAC, em 1999.
4 Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
5 Idem, “Gilberto Freyre. Uma introdução à Casa-grande & senzala”, in Sobre o óbvio. Rio
de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 109-73.
6 Os lugares-comuns, na acepção de Myriam R. D’Allonnes, seriam formados por palavras,
crenças, opiniões, preconceitos e argumentos sobre uma comunidade política efetiva que,
embora freqüentemente confusos, erráticos e pouco seguros, deitam raízes profundas na
vida e na experiência das pessoas. Cf. Lê dépérissement de la politique. Généalogie d’un
lieu commun. Paris: Aübier, 1999. À noção de lugar-comum, adiciono a de fundo-comum,
com o sentido de repositório de conhecimentos díspares formados por noções, pré-juízos,
informações, relatos de ordem diversa, em que se colhe material para avaliar, no caso,
países diversos. As concepções mesológicas e raciais constituem um fundo-comum
persistente do qual teorias deterministas retiram sua força explicativa.
7 Esta citação faz parte de um ensaio de Oswald de Andrade de 1966 que, com o sugestivo
título de “A marcha das utopias”, estabelece estreita correlação entre os relatos utópicos,
especialmente o de Thomas Morus e o de Campanella, e a “religião da caravela”, culto dos
moçárabes de Espanha e Portugal. Nele há uma clara denúncia ao eurocentrismo da
“História” e a proposta de voltarmos nossos olhos para a herança semita. Ou, em suas
palavras: “nós, descendentes de portugueses somos o produto de uma cultura miscigenada
que nada deve à árida seara freirática de Port-Royal, a qual deu como chefe de fila o seco
protestante Pascal”, devendo, pois, livrarmo-nos da “História” que beneficiava as “teses
latinas” denegrindo o “meridião semita”. Ver Do pau-brasil à antropofagia e às utopias.
Rio de Janeiro: MEC, Civilização Brasileira, 1972, pp. 145 e ss.
8 Idem, op. cit., pp. 3-10 e 11-19, respectivamente.
9 F. J. Oliveira Viana, O idealismo na evolução política do Império e da República. São
Paulo: Bibliotheca d’O Estado de S. Paulo, 1922.
10 Idem, Populações meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973, vol. I (lª ed.,
1920).
11 Gilberto Freyre, Manifesto Regionalista de 1926, MEC, Serviço de Documentação, s.d.
12 Idem, Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. São Paulo: Círculo do Livro, 1933, p. 54.
13 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969, p. 3.
14 Caio Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1945, p.
21.
15 Ibidem.
16 Paulo Prado, Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998, pp. 58-61.
17 Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e
colonização do Brasil, 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
18 A afirmação consta de cuidadosa e bem argumentada crítica aos trabalhos de Oliveira
Viana, o artigo “Cultura política”, in Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979,
p. 56.
19 Alexis de Tocqueville, A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977 (São
Paulo: EDUSP, 1987).
20 Paulo Prado, op. cit., p. 58.
21 Montesquieu, “De 1’esprit des lois”, in Oeuvres completes. Paris: Gallimard, Pléiade,
1951, vol. II, terceira parte, livro 14 –“Des lois dans le rapport qu’elles ont avec la nature
du climat”, pp. 474 e ss.
22 Voltaire, Essai sur les moeurs. Paris: Garnier Frères, Libraires-Éditeurs, 1878, vol. I, p. 5
(reimpr.: Nendeln, Liechtenstein: Kraus, 1967).
23 Buffon, Histoire naturelle, apud T. Todorov, Nous et les autres. La réflexion française
sur la diversité humaine. Paris: Seuil, 1989, pp. 124-25.
24 Emmanuel Kant, “Sur le sentiment du beau et du sublime”, in Oeuvres philosophiques 1.
Paris: Gallimard, pp. 494-509.
25 As características adiante arroladas foram recortadas de diversas partes de Raízes do
Brasil, op. cit.
26 Sérgio Buarque de Holanda, “Sociedade patriarcal”, in Tentativas de mitologia, op. cit.,
pp. 99-110.
27 Também de partes diversas de Casa-grande & senzala foram retiradas as características
arroladas. Um resumo delas encontra-se entretanto no primeiro capítulo.
28 Oliveira Viana, O idealismo na evolução política ao Império e é» República, op. cit., pp.
36-37.
29 Idem, op. cit., pp. 80-82 e 92.
30 Idem, Populações meridionais ao Brasil, op. cit., p. 19.
31 Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, op. cit., pp. 11, ,16 e 121
32 Idem, op. cit., pp. 116-17.
Capítulo 19
Márcia Naxara
Universidade Metodista de Piracicaba
Olhares sobre si, olhares sobre outros. Elites que excluíram o “povo” ou, melhor
dizendo, grandes parcelas da população brasileira para pensar o Brasil; elites que se vêem
“sem povo” ao pensar o mesmo Brasil. Pensamentos e sensações ambivalentes e mesmo
contraditórios, que afloraram no século XIX, ao longo do qual se procurou definir uma
identidade e um lugar, tanto para a terra brasileira como para a variedade de povos que a
habitavam. Identidade(s) definida(s) na confluência de desejos e ambições contrapostos a
realidades existentes e/ou percebidas e sentidas. Oscilação entre razão, sentimento e
emoção, assim como entre condescendência e rigor. Sentimentos e ressentimentos que
transitaram no limiar do engrandecimento e louvação da nação, por um lado, e de um certo
complexo ressentido, mesclando a inferioridade com relação ao que se considera civilizado
e uma certa superioridade pedante com relação ao próprio país. Ambivalências que
nasceram da distância com relação ao desejo ambicionado.
A intenção de inserir a nossa história na tradição e desenrolar da história ocidental, na
sempre instável relação entre presente e passado, solicitava a elaboração e o
reconhecimento de uma identidade, cuja construção remetia ao passado e às origens,
obsessão presente em qualquer história nacional, colocando a necessidade da narrativa e do
estabelecimento de vínculos e sentido, tanto com o passado colonial como com a formação
racial. com a metrópole portuguesa, porque estabelecia a ponte para a civilização, procurou-
se, de alguma forma, conciliar, fosse pensando a continuidade ou a ruptura; com relação às
origens raciais e ao mestiçamento, procurou-se compreendê-los e inseri-los no quadro
sistêmico de conhecimentos da época de forma que, por meio do domínio do conhecimento,
adquirisse segurança em projetar o futuro. A hierarquia estabelecida entre os homens, a
partir das teorias sobre a evolução das espécies, facilitava a desconfiança com relação à
população mestiça, desconhecida, sem um lugar específico, portanto pouco confiável.
Alguns elementos foram importantes na análise para a apreensão intelectual do
Brasil e a construção da narrativa de sua história, sempre vinculados à aproximação ou
distanciamento da natureza ou da civilização: a natureza em geral; a natureza e condição
humanas em particular; a relação do homem com a natureza; a dos homens entre si, em
meio à natureza.
Procuro aqui acompanhar algumas das fontes que instrumentaram os olhares que se
voltaram para o Brasil no século XIX, contribuindo para o conjunto de idéias e percepções
que a respeito dele foi-se formando - algumas das imagens, tanto escritas como
iconográficas, representativas do cientificismo e da sensibilidade romântica que
perpassaram pelo conhecimento sobre o Brasil, levando, de forma contraditória e
ambivalente, a um enaltecimento da sua complexa natureza, que teve como contrapartida a
desqualificação de grande parte da sua população, efetivada tanto por viajantes e
observadores estrangeiros como por brasileiros.
A natureza! Ela nos cerca e nos possui por todos os lados, sem que esteja
em nosso poder colocar os pés fora de seus limites ou nela, penetrar um
passo sequer. Sem que tenhamos solicitado e sem que nos tenha
advertido, ela nos recebe em seu turbilhão, nos arrasta em sua dança, até
que a lassidão nos tome e deixemos cair os braços. Eternamente, ela
engendra formas novas [...].12
Está cheia de algo que não se parece com água, mas espuma de leite, uma
massa sem superfície, que avança e ofusca, que rodopia e espumeja, que
oferece uma maravilhosa oportunidade para o estudo do líquido em
movimento. E a maravilhosa desordem é uma anarquia bem dirigida: o
curso e a oscilação, a luta e a contorção, tudo se dirige no sentido de livrar
o prisioneiro das paredes da prisão. “Ces eaux! Mais ce sont des âmes”: é o
triunfo do movimento, do móvel sobre o imóvel.21
Burton nos coloca diante do sentimento que excede os sentidos: aquilo que a
princípio parecia “grandioso e sublime” dá lugar a uma “sensação de um temor reverencial
intenso demais para ser, de qualquer modo agradável”. A ambivalência de sentimentos
aparece forte a ponto de levar o viajante a afastar-se para compor-se e dominar as emoções:
“deixei o lugar para que a confusão e a çmoção pudessem passar”.22
Ao lado da natureza e inserida no mesmo contexto, a questão racial. As teorias
raciais formam arcabouço para a compreensão das análises que a respeito da população
brasileira se fizeram, no século XIX. Uma procura do homogêneo na heterogeneidade
considerada aparente. Um povo que “lamentavelmente” não correspondia ao imaginário que
se projetava - a utopia de uma nação branca e civilizada. O povo brasileiro, visto por suas
elites, aproximava-se do atraso e da barbárie, o que acabou levando a uma identificação do
brasileiro pela ausência do que se esperava que ele pudesse ser, ou seja, por aquilo que lhe
faltava. Um povo informe, sem identidade, caracterizado pela pequenez moral, em meio a
uma natureza representada, tanto de pontos de vista pitorescos como sublimes, como
provedora, grandiosa e exuberante. Estava-se diante de um povo mestiço, em momento de
condenação do mestiçamento (com ou sem aval da ciência), diante portanto do que não se
consegue definir e denominar para conhecer efetivamente, condição que o tornava menor
ainda com relação ao meio em que vivia. Este desconhecimento provocava e aumentava a
sensação de insegurança, medo quanto ao futuro e às possibilidades de projeção para bem
pensar o Brasil, ou melhor, um Brasil civilizado. Terra com uma população que se
constituiu mestiça e cruzada, carregando os estigmas daí decorrentes, diante do
conhecimento e sua divulgação, das representações e do imaginário do mundo ocidental.
Com relação às representações sobre a população brasileira, consideremos aquelas
construídas por um outro viajante, o naturalista Luiz Agassiz, suíço radicado nos Estados
Unidos que condenava o mestiçamento. Em algumas de suas manifestações sobre a
população do Brasil, embora tome o cuidado de não explicitar um juízo de valor sobre
brancos e negros, afirma categoricamente a condenação da perda da pureza racial, força
potencial, inscrita na origem:
Aqueles que põem em dúvida os efeitos perniciosos da mistura de raças e
são levados, por falsa filantropia, a romper todas as barreiras colocadas
entre elas, deveriam vir ao Brasil. Não lhes seria possível negar a
decadência resultante dos cruzamentos que, neste país, se dão mais
largamente do que em qualquer outro. Veriam que essa mistura apaga as
melhores qualidades, quer do branco, quer do negro, quer do índio, e
produz um tipo mestiço indescritível cuja energia física e mental se
enfraqueceu [...].23
Esta apreciação é imediata, proveniente dos sentidos que, sem intervenção da razão,
manifestam-se livremente.
Independentemente de compartilharem ou não as convicções de Agassiz quanto aos
males do mestiçamento, outros viajantes que passaram pelo Brasil, embora também
olhassem a população pobre de forma preconceituosa, freqüentemente emitiram juízos
ambíguos a seu respeito. Os elogios mesclam-se à crítica, alternando aprovação e admiração
por suas habilidades com reprovação pelo que se lê como incapacidade ou inferioridade.
Leite Moraes, viajante paulista, ao conhecer o sertão, elabora uma narrativa que se
aproxima do sublime ao contar os perigos e aventuras passados na descida dos rios
Araguaia e Tocantins. Ele é simultaneamente observador e participante da aventura, ainda
que não como protagonista principal, em que se dá um verdadeiro enfrentamento do homem
com a natureza, no caso o rio, caudaloso, exigindo dos homens força, destreza, coragem e
decisão, tudo somado e utilizado no momento exato. O deslumbramento não diz respeito
somente à natureza, mas ao homem:
NOTAS
Roberto Vecchi
Università di Bologna
Elizabeth Cancelli
Universidade de Brasília
É assim que Vitorio Emanuelle Orlando começa a descrever o Brasil quando por
aqui aparece, nos anos 1920. Se pensava que a chegada deixou latentes em todo seu texto,
um inédito depositado no Arquivo de Estado em Roma,5 suas construções de ressentimento
e memória, sua projeção no futuro e a imagem que construiu do “outro”: o além da
fronteira. Texto recheado de metáforas e alusões a Dante, o documento de Vitorio
Emanuelle Orlando é todo ele, na verdade, uma construção que tem a Divina comédia como
sustentáculo.
A princípio, este pequeno texto de pouco mais de 17 páginas registra apenas um
apelo, provavelmente lido no Parlamento italiano, que carrega em seu interior, da maneira
como é tecido, a força e a magia do ressentimento de algo que a Itália, bem como a Europa
inteira, tentava - e tenta aparentemente até hoje - negar: o seu lugar na América.
O texto de Orlando, à primeira vista linear, começa a relatar as impressões cunhadas
por ocasião da primeira partida do autor rumo ao Novo Continente e sua visão do paulatino
afastamento da Itália, depois da Europa, até chegar ao Rio de Janeiro, ponto inicial de uma
visita de duas semanas à América do Sul. Do Rio e das impressões que registra sobre a baía
de Guanabara, Orlando tenta dar a dimensão do continente e do papel das gentes européias
que o habitam, os italianos, para chegar ao ponto que só na aparência parece ser o aceno
final do seu texto: a América do Sul como as “vias do futuro”.
Na verdade, ao retomar a Divina comédia, Vitorio Emanuelle faz muito mais do que
revela à primeira vista a suposta linearidade que apresenta no texto. Ele recupera de
maneira muito forte o ressentimento que Dante Alighieri perpetuou na Divina comédia.
Não em relação a Beatriz, é claro, mas em relação a Florença e, por isso, ao seu desterro.
São duas as passagens de Dante citadas. A primeira está inserida “brevemente na
observação do intelectual italiano:
É assim que Vitorio Emanuelle deita seu olhar sobre a América do Sul. Parte de um
eixo europeu construído para fazê-lo e, mais do que isto, institui como referencial a obra de
Dante e as façanhas de Ulisses. Vê na América uma derivação, mas uma derivação de
exterioridade naquilo que foi criado como novo, que teve um início, para então ser
denominado Novo Mundo, mas que teve o início a partir de uma premissa: a da descoberta
por meio do gênio italiano. Muito mais do que espanhola, muito mais do que portuguesa ou
muito mais do que inglesa, fora da Itália a glória de gênio. Para relembrar suas palavras: “na
inexaurível fecundidade do seu gênio, a Itália havia descoberto aquele mundo mediante um
seu glorioso filho, primeiro e simbólico emigrado italiano na América que, não pelo seu,
mas por outros países, havia lutado, sofrido e vencido”.
O chamamento de Ulisses ao argumento, por meio de Dante e da Divina comédia, e
o paralelo com a figura de Cristóvão Colombo nos sugerem uma nítida tentativa do autor,
Vitorio Emanuelle, de dar ao acontecimento da transposição do oceano Atlântico e da
chegada às terras meridionais a grandiosidade digna da construção de uma epopéia. A
escolha da linguagem feita por Orlando, ao descrever sua própria transposição física do
Velho ao Novo Continente, permite a indução do leitor a uma espécie de ambientação
literária que se recheia poeticamente de feitos extraordinários e ações ilustres: uma nova
Odisséia. Não sem motivo, o primeiro parágrafo do texto é uma breve introdução poética à
noção de pertença européia, o que possibilitará ao autor, a partir daí, aventurar-se pela
presença do mar e introduzir a lembrança de uma epopéia das civilizações que formaram a
Itália, que terminará por fazer ressurgir o herói grego Ulisses:6
Embora seja óbvio que Orlando não faça uso da forma métrica em seu texto para
caracterizar uma composição épica, a conquista e o risco da complicada arte de navegar se
fazem presentes na viagem de visita à América do Sul. Por isso a necessidade de buscar sua
história de italianidade, ou mesmo de europeidade, para poder partir em direção àquela terra
que Ulisses já havia vislumbrado. Este chamamento seria, por si só, na visão do autor, uma
odisséia, tal qual a empreendida por Ulisses. Mesmo não buscando em Homero, mas em
Dante, sua inspiração, vale lembrar que o caráter épico dos feitos narrados pelos gregos
trazia em si a tarefa de aconselhar, advertir, admoestar e exortar,7 e este é justamente o
objetivo primeiro do texto de Orlando - embora carregue vários sentidos. A pretensão do
autor, como veremos, é de que a Itália preste atenção comercial à América Latina. A
odisséia - tanto a de Orlando como a de Homero - é, então, uma advertência que parte de
uma premissa interessante: a dos riscos e perigos da própria odisséia.
Mas Orlando inspira-se em Dante e não em Homero para recuperar a figura do herói
Ulisses. Na Divina comédia, Ulisses está no Inferno, no nono círculo, onde penam traidores
da família, da pátria, dos amigos e dos benfeitores, como narra o poeta italiano: “Ardem no
interior dessa dupla chama Ulisses e Diomedes, unidos no castigo assim como unidos
foram ao merecê-lo. Purgam a traição do cavalo [de Tróia] que de resto foi a porta pela qual
entrou na Itália o gentil sêmen romano; pagam o ardil que levou a morta Deidama a chamar
por Aquiles; pagam o roubo do sacro Paládio”.8
E mais adiante:
Uma interessante escolha metafórica feita por Orlando, quando se sabe que esse
intelectual teve uma expectativa no mínimo simpática aofascismo em seus primeiríssimos
tempos,11 daí a provável identificação com Dante no que se refere à crítica aos maus reis:
negligentes e ímprobos.12
Não seria por acaso que a América, em função dos italianos emigrados, seria o
espaço de definição de uma nova identidade coletiva, mas não autóctone em relação à
cultura de origem. É por isso que Orlando descreve sua satisfação ao encontrar os
conterrâneos na América Latina, parecida àquela descrita por Dante Alighieri:
Não é diferente a maneira pela qual os (irmãos lá de baixo acolhem o
italiano, mesmo se no lugar de uma só pessoa estiver toda uma
coletividade, uma nova Itália. Em Buenos Aires como em São Paulo, em
Porto Alegre como em Ribeirão Preto, em Rosário como em Mendoza,
encontramos o mesmo acolhimento de Roma, Milão, Palermo. Ou melhor
dizendo, o mesmo recebimento proporcional ao número de pessoas; mas,
em solo americano, como aqueles acolhimentos vibram com maior fervor e
entusiasmo nas milhares de pessoas que se aproximam como se
estivessem se aproximando de um irmão! Com qual filial ternura falam ao
mesmo tempo da Itália inteira e de suas pequenas cidades; com quanta
ânsia de saber pedem infinitas notícias a respeito de grandes
acontecimentos e fatos insignificantes; a distância parece atenuar as
dimensões que intercedem entre as coisas e as pessoas, mas em
compensação, tudo aquilo que suscite um afeto, um interesse, até uma
simples lembrança assume da mesma forma significado e valor, porque a
eles fala da Itália, evoca a Itália. Fazem festa a vocês, como se devessem
referi-lo a ela para que tenha a certeza de que lá em baixo tem filhos,
muitos filhos seus que não a esquecem, que preservam o imaculado, na
melhor parte de si, o amor que a distância não enfraquece e o tempo não
apaga. E mais são primitivas as almas, mais esse sentimento de pátria
parece estar enraizado, menos se distanciam. O homem que acredita ser
culto ou querer parecer sem preconceitos, pode algumas vezes fingir sentir-
se cidadão do mundo e renegar ou esquecer o lugar de origem; mas
nenhuma força arrancará do coração dos homens simples as lembranças e
o afeto pela terra que os viu nascer e onde a vida teve, para eles, os
primeiros sorrisos e, ai de mim, os primeiros desconfortes e as primeiras
dores. O pobre tugúrio, a terra banhada com seu suor, o pequeno povoado,
as pessoas conhecidas que o deixaram, tudo está sempre presente em sua
memória; e o encontro com um patriota que veio há muito da Itália, é a
ocasião para reacender de chama mais ardente a lembrança e evocar
tempo longínquo com uma aflição mais apaixonada, com uma comoção
mais brilhante.
Com qual filial ternura falam ao mesmo tempo da Itália inteira e de suas
pequenas cidades; com quanta ânsia de saber pedem infinitas notícias a
respeito de grandes acontecimentos e fatos insignificantes; a distância
parece atenuar as dimensões que intercedem entre as coisas e as
pessoas, mas em compensação, tudo aquilo que suscite um afeto, um
interesse, até uma simples lembrança assume da mesma forma significado
e valor, porque a eles fala da Itália, evoca a Itália. Fazem festa a vocês,
como se devessem referi-lo a ela - para que tenha a certeza de que lá em
baixo tem filhos, muitos filhos seus , que não a esquecem, que preservam o
imaculado, na melhor parte de si, o amor que a distância não enfraquece e
o tempo não apaga.
A escolha do autor em trabalhar a memória num recorte que sirva a seus propósitos
está afinada com a política dos países europeus que insistentemente, ao longo do século
XX, recusaram-se em reconhecer qualquer tipo de responsabilidade civil sobre os
emigrados e seus descendentes. Eximiram-se de assumir obrigações sociais e políticas sobre
a emigração em massa ocorrida para a América nas várias décadas dos séculos XIX e XX.
Retrabalhar a memória a partir do viés ingênuo da saudade e do amor que ela exprime
exime de culpa e responsabilidade e afaste possibilidades de ressentimento.
Mas é na própria dificuldade que os imigrantes europeus tiveram em adaptar-se a
este Novo Mundo, retratada de forma tão expressiva pela literatura e pela historiografia, que
encontraremos, na verdade, expressa a construção de uma memória em que o ressentimento
possui um lugar alavancador.
Tomamos para este exercício “O Profeta”, “A prece” e “Gringuinho”, integrantes do
livro Contos do imigrante, de Samuel Rawet. Em cada um desses contos, as personagens,
todas imigrantes, amalgamam-se naquilo que têm em comum: o ressentimento, a ofensa
recebida, a mágoa de terem sido abandonadas e a solidão advinda do sofrimento e da
diferença. Dois idosos - um homem e uma mulher - e um menino, cada qual em um conto
diferente, são personagens que, em comum, gritam o sofrimento por meio do silêncio e das
lembranças. Não da saudade ingênua, como preferiu Orlando, mas da mágoa das perdas.
Tanto Orlando como Rawet trabalham a América como espaço de definição de uma
nova identidade coletiva, mas não autóctone em relação à cultura de origem. De qualquer
forma, eles trazem impresso como pano de fundo algo que apenas um deles, Orlando, nega-
se a admitir: a diáspora européia. Ou seja, o que têm em comum é que ambos os autores não
partem da Europa como elemento de simbiose com a América. O Novo Mundo não é a
extensão do Velho, mas é um outro mundo. Ele não é mais sequer Novo Mundo, fora
rebatizado no século XIX: América do Norte, América do Sul, América Central. Esta visão
dicotômica parte agora do pressuposto da identidade e da não-identidade. Isto é, a
identidade do que é europeu e está na Europa e a não-identidade em dois níveis: do que é
europeu, mas não está na Europa, e do que |não o é absolutamente.
Em “O Profeta”, por exemplo, o primeiro conto de Rawet, há uma instigante análise
psicológica da personagem. Trata-se de um judeu que aporta no Brasil para morar com o
irmão, a filha, o genro e o neto. Não tem nome, mas acaba por ganhar a alcunha que
zombeteiramente o genro lhe coloca: Profeta. Rawet inicia este conto pelo meio encontrado
pela personagem para fugir da dor de não pertencer: voltar à Europa. Não entende a língua,
os costumes, os valores. Sofre a tortura da não-identidade e do ressentir-se das perdas, dos
olhares, dos gestos. Há apenas o vazio.
A primeira frase do conto é: “Todas as ilusões perdidas, só lhe restava mesmo
aquele gesto”: voltar. E a personagem olha do navio para o cais: ‘Lá em baixo correiras e
línguas estranhas [...]. Pouco lhe importavam os olhares zombeteiros de alguns. Em outra
ocasião sentir-se-ia magoado. Compreendera que a barba branca e o capotão além do joelho
compunha uma figura estranha para eles”.
O Profeta sofre. Era fruto de uma diáspora imediatamente seguinte àquela dos
italianos: a da Segunda Guerra Mundial. Não entendia a alegria de seus familiares e
NOTAS
1 Ver relato desta visita em Francesco Bianco, II paese del avenire. Roma, Milão: A.
Mondari, 1922. Cf. também as informações de Amado Luiz Cervo, As relações históricas
entre o Brasil e a Itália: o papel da diplomacia. Brasília: Editora da UnB; São Paulo:
Instituto Italiano di Cultura, 1992.
2 Cf. Ezio Flávio Bazzo, Rapsódia a Samuel Rawet. Brasília: Anti-Editor Publicadora,
1997.
3 Sobre as metáforas políticas, ver a leitura que Stella Bresciani faz de Paul Ricoeur. Maria
Stella Martins Bresciani, Oliveira Viana revisitado. Campinas, UhllCAMP, 2000, inédito.
4 Ressábio ainda vem de mau humor, do latim vulgar. Cf. Silva Bueno, Grande dicionário
etimolágico da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1968.
5 Archivio Centrale dello Stato, busta 110, fasc. 1.829. Texto sem título, traduzido para o
português por Mabel Malheiros.
6 “Mas quando a roda do tempo chegou ao ano em que os deuses haviam fiado a sua volta
ao lar, em Ítaca, sem sequer então, e na companhia dos entes queridos, ele chegou ao fim de
suas provações.” Homero, Odisséia (introd. e notas Médéric Dufour e Jean Raison; trad.
Antônio Pinto de Carvalho). São Paulo: Abril Cultural, 1981.
7 Cf. Werner Jaeger, Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes;
Brasília: Editora da UnB, 1986; e Walter Benjamin, “O narrador: observações sobre a obra
de Nikola Leskow”, in Textos escolhidos: Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor
Adorno, Jurgen Habermas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, coleção Os Pensadores.
8 Dante Alighieri, “Inferno”, in A divina comédia (trad. Hernani Donato). São Paulo: Abril
Cultural, 1981, canto XXVI, p. 98.
9 Ibidem.
10 Idem, “Purgatório”, in op. cit., canto VI, p. 148.
11 Os fascistas tomaram o controle do governo italiano em 1922.
12 A este respeito, ver o canto VII do “Purgatório”, por exemplo.
13 Sobre o assunto, ver Elizabeth Cancelli, A cultura do crime e da lei (1889-1930).
Brasília: Editora da UnB, no prelo, especialmente cap. I.
14 Diz o autor: “[...] aquela primeira, espontânea, irrefletida sensação de exotismo, ao
entrar-se em contato com uma natureza continental diversa e estranha”.
15 Parece sugestiva esta referência ao fim dos patriarcas. Seria a modernização pela
construção de uma nova ordem? A ordem nos moldes modernizantes do fascismo?
16 Talvez ele perdesse na comparação com o estado de miserabilidade dos emigrados do
Leste Europeu, mas a disputa era acirrada.
17 Cf. Elizabeth Cancelli, op. cit.
18 Em 1929, o Primeiro Congresso de Criminologia realizado no Rio de Janeiro
consagraria as teses sobre a estreita ligação entre a presença de estrangeiros e a
criminalidade. No Rio, dizia-se, “quase todos os crimes sensacionais, os crimes de sangue,
os crimes de roubo e os crime sexuais, são praticados por malfeitores de origem
estrangeira”. A razão seria simples: ‘Sabemos que, em sua maioria, os imigrantes que se
encaminham para o Brasil procedem de países onde o coeficiente de crimes de sangue é
excessivo, como por exemplo, Portugal, Espanha e Itália”. Elysio Carvalho, ‘A
delinqüência dos estrangeiros”, Boletim Policial. Rio de Janeiro, Gabinete de Identificação
e Estatística, Imprensa Nacional, nº 7, ano VII, jun., 1913.
19 Seria uma análise proveniente do pressuposto de que as teorias “científicas” totalitárias
repousavam sobre o sangue, a raça e o solo?
20 Já que ele foi construído pelo autor como o outro, o primitivo.
21 Samuel Rawet, Contos do imigrante. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956, p. 11.
22 Idem, op. cit., p. 25.
23 Ver também, a este respeito, a narrativa de Boris Fausto sobre o tratamento dado pelos
colegas no Colégio Mackenzie aos meninos judeus. Boris Fausto, “Lembrança da guerra na
periferia. Dossiê 50 anos de final de Segunda Guerra”, Revistada USP. São Paulo, mar.-
maio, 1989.
24 Samuel Rawet, op. cit., pp. 44-45.
25 Max Sheler, El resentimento en Ia moral. Buenos Aires, México: Espasa, Calpe
Argentina S.S., 1944.
26 O Profeta inveja o sucesso financeiro do irmão.
RESSENTIMENTOS E IDENTIDADES MINORITÁRIAS
Capítulo 22
O RESSENTIMENTO DO EXÍLIO:
A ESTÉTICA DA PERDA EM ALFRED DõBLIN
No livro dedicado à vida de Rahel Varnhagen,2 Hannah Arendt considera ainda que,
enquanto o parvenu (ou o arrivista) nega-se totalmente, transformando-se em um dos outros
da cultura dominante, pagando a diferença e assimilando-se, o pária (ou o judeu rebelde) é
um outsider, que não nega ou apaga suas diferenças, mas as mantém conscientemente,
transformando sua fraqueza e marginalidade em fonte de força e desafio. São exemplos
como os de Bernard de Lazare, Franz ECafka e Charles Chaplin, que Arendt evoca para
demonstrar sua admiração por esta atitude diante do sofrimento. Atitude que supera a raiva,
a autovitimação ou o próprio ressentimento - se, por este último, intendermos um
sentimento associado à lembrança de uma humilhação, que provoca o desejo de vingança e
se dissimula atrás do rancor, deslocando-se inconscientemente para outros objetos.
Arendt nos leva a pensar se todavia estas três atitudes, por ela desenhadas a partir de
uma perspectiva normativa, podem ser, ao longo de toda a vida de um indivíduo,
rigidamente excludentes. Ainda que a escolha por uma das três possa definir a sua imagem
pública, no que se refere à vida privada, não são móveis as fronteiras entre a memória de
um acontecimento traumático e sua superação?
As reflexões de Arendt sobre as formas de se relacionar com o mundo por parte do
povo judeu estão intimamente associadas ao personagem de que queremos tratar, o escritor
judeo-alemão Alfred Doblin, que foi exilado de seu país em 1933 pelo nazismo e fez, desta
experiência, um profundo reorientar de sua carreira intelectual.
Inspira-nos também a semelhança entre o percurso de Arendt e o deste autor. Como
ela, Doblin foi um judeu assimilado à cultura alemã. Saiu do país de origem, a Alemanha,
em 1933, para Paris e, de lá, para os Estados Unidos; ao final da guerra, recusou-se a
retornar à Alemanha, como Arendt. Ambos nutriam profunda admiração por Rosa
Luxemburgo, Walter Benjamin e Bertold Brecht. Finalmente, em face do anti-semitismo,
engajaram-se em movimentos em favor do povo judeu, o que não estava previsto em seus
projetos iniciais.
Inspira-nos sobremaneira a semelhança entre o livro que comentarei aqui,
Amazonas, de Doblin, e Imperialismo, a expansão do poder, de Arendt. Se neste a autora,
em suas preocupações com a teoria política, detecta no imperialismo elementos de
cristalização que tornaram possível o fenômeno totalitário, Doblin, em face da ascensão de
Hitler, presentifica o passado imperialista para revelar o nazismo.
Doblin e Arendt: dois personagens que não sabemos se tiveram algum contato, mas
que pertenceram a uma mesma geração e passaram pela mesma experiência: o anti-
semitismo, o exílio, o engajamento político. E que guardavam boas razões para nutrir
ressentimentos políticos, uma vez que a eles se impôs um sem-número de perdas, tanto
intelectuais quanto afetivas. E, no caso de Doblin, a quem nos dedicaremos, neste
momento, com maior atenção, que elegeu o ato estético como forma de traçar suas
memórias acerca daqueles acontecimentos.
Sobre o autor
Muitos dentre nós são emigrados. Não temos em torno de nós uma
sociedade que compartilha de nosso destino e que possui o mesmo
indioma que o nosso. Fomos banidos, ao menos fisicamente, para longe
das forças vivas da sociedade na qual vivíamos [...] assim é em todas as
emigrações. Nesta situação, o contista é tentado a produzir o romance
histórico. Lá onde existe a emigração, emerge o romance histórico [...] a
ausência da relação com o presente, [...] o desejo de achar seus paralelos
históricos, de se localizar e de se justificar na história, a necessidade de
retomar suas esperanças, a tendência a se consolar e a se vingar, pelo
menos na imaginação [...].6
Valer-se do romance histórico é ainda, em nossa opinião, uma forma de burlar a
censura, de deslocar um acontecimento presente para o passado, contá-lo com outros
nomes, como o fizeram também, entre outros, Bertold Brecht e Francisco Buarque de
Holanda,7 na tentativa de comunicarem-se com o público leitor. É a um romance deste
gênero que pretendemos dedicar nossa atenção.
O segundo livro, “O tigre azul”, que, segundo a lenda, significa um espírito mal que
tudo destrói, trata das reduções jesuíticas, denominadas indianische Kanaan. Nestas, toda a
riqueza é dividida eqüitativamente. Sua prosperidade é, até mesmo, maior do que a
daquelas onde os índios eram utilizados como mão-de-obra escrava.Logo, tanto a Coroa
quanto a Igreja começam a sentir as reduções como uma ameaça. O papa, sob a suspeição
de que tais padres eram seguidores de Martinho Lutero, e a Coroa, condenando sua
autonomia, literalmente massacram o experimento. Os índios são mortos numa guerra cuja
violência atingia o limite do insuportável e os jesuítas são banidos do Brasil.
“[...] lágrimas, noite e dia. Lamentações e orações, desespero. Até que eles chegaram ao
porto. E nenhum país quis recebê-los. Muitos foram para a Rússia.”10
O terceiro livro, “A nova floresta”, diferencia-se dos dois primeiros no que diz
respeito à dinâmica interna que presidia até então a estrutura da obra. Em primeiro lugar, o
autor realiza um salto cronológico para os anos 1920. Não só um salto cronológico, mas
uma mudança de dimensão. A aJegorização da floresta é outra: a nova floresta não é mais a
amazônica, mas a Alemanha nazista, espaço para onde se desloca a representação da ação.
A dimensão episódica dos fatos é abandonada, em favor de temporalidades difusas. Além
disso, à diferença dos dois primeiros livros, Doblin não trabalha com sujeitos coletivos: os
personagens são indivíduos atomizados, com trajetórias de vida desnorteadas, e mesmo os
vínculos interpessoais são efêmeros e desprovidos, com exceção das mulheres, de vínculo
afetivo.
“A nova floresta” apresenta cinco situações mais importantes elaboradas como
cenas independentes, cujo entrelaçamento não se dá no plano acontecimental, e sim nas
intervenções do narrador - que fixa sua autonomia em relação ao texto, manifestando ao
leitor sua perplexidade em face do destino dos personagens.
A primeira cena estabelece a analogia entre a velha e a nova floresta, entre os
conquistadores do século XVI e os dominadores contemporâneos; ao discorrer sobre a
Primeira Guerra, realiza a seguinte alegoria:
Eles não se reuniam mais nos portos, nos navios, para avançar, com
machados e facões, rumo à floresta. Eles tinham tudo em casa. A terra foi
descoberta e conquistada até os seus confins. A porção que não pertencia
aos brancos era tão boa quanto branca, eles ensinaram aos amarelos, aos
morenos, aos vermelhos e aos negros sua maneira de ser, e estes se
serviam de suas armas e métodos [...]. Doravante não precisavam mais
desembarcar em navios. Não havia mais terra estrangeira em quaisquer
dos além-mares [...] cresciam e entravam na floresta. Pois a floresta era a
Europa.”
Essa canção é uma paródia da canção entoada pelos colonizadores, cuja letra evoca a sede
de enriquecimento (Goldlust) dos europeus que empreenderam a aventura imperialista:
NOTAS
1 Apud Arme Marie Roviello, Sens commun et modernité chez Hannah Arendt. Bruxelas:
OUSIA, 1987 (tradução livre da autora). Sobre esta tipologia, ver também Hannah Arendt,
No sentido literal com todos os dedos das mãos.
La tradition cachês. Breteuil sur Iton: Christian Bourgois, 1987, e A vida do espírito. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
2 Idem, Rahel. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
3 Idem, O sistema totalitário. Lisboa: Dom Quixote, 1978, pp. 100 e ss.
4 Coerentemente à sua militância política, Doblin dedicou-se ao tratamento psiquiátrico dos
operários que residiam no Nikolai Viertel, bairro próximo da Praça Alexander, cenário de
seu romance mais conhecido, Berlin Alexanderflatz.
5 Apud Michel Vanoosthyse, Le roman historique; Mann, Brecht, Doblin. Paris: PUF,
1976, p. 76 (tradução livre da autora).
6 “Der historische Roman und wir”, in Das Wort, 1936, p. l (tradução livre da autora).
7 Do primeiro, cite-se a peça teatral Galileu Galilei; do segundo, Calabar.
8 Alfred Doblin, Amazonas Romantrilogie. Munique: Deutscher Taschenbuch Verlag,
1991, pp. 89 e 94 (tradução livre da autora).
9 Historicamente, Las Casas não morre na América, mas na Europa. No romance,
entretanto, Las Casas morre na floresta, nos braços de uma divindade indígena, o que
representa a simbiose entre cristianismo e as crenças dos indígenas.
10 Idem, op. cit., p. 374.
11 Idem, op. cit., p. 7.
12 Idem, op. cit., p. 138.
13 Para Brüggen, Dõblin atravessa toda a história moderna da Europa tendo como ponto
central o imperialismo, o que, segundo ele, é uma fuga de sua própria subjetividade, que se
desloca para o impulso à destruição. Superar essa fuga significaria aceitar sua dor, ir ao
encontro de seu eu. Hubert Brüggen, Landohne Tod. Eine Untersuchung zur inneren
Struktur der Amazonas Trilogie Alfred Dõblins. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1987.
14 Idem, op. cit., p. 141.
15 Idem, op. cit., p. 114.
16 Alfred Doblin, Schriften zur Politik und Gesellschaft. Olten, Freiburg: Walter-Verlag,
1972, p. 325.
17 Doblin, apud Schmidt-Bergmann, “Der historische Roman und das Exil; Überlegungen
zu Doblins Amazonas Roman”, in Internationales Alfred Doblin Kolloqium. Lausanne:
Peter Lang, 1987, p, 91.
18 Vanoosthyse, op. cit., p. 109.
19 Alfred Doblin, Autobiographische Schriften und letzte Aufzeichnungen. Olten, Freiburg:
Walter-Verlag, 1980, p. 80.
20 Idem, op. cit., p. 107 (tradução livre da autora).
21 Idem, op. cit., pp. 367 e ss.
22 Entrevista concedida a um jornal francês em 12/8/1953, in Doblin Chronik, 1978.
23 Joseph Conrad, O coração nas trevas. São Paulo: Global, 1984.
24 Wolfgang Iser, Der implizite Leser. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 1972.
Capítulo 23
Yves Déloye
Université de Strasbourg III – Sorbonne
Tradução: Roseli de Fátima Dias Barbosa e Celene M. Cruz.
exercício de exegese que tende muitas vezes a reificar a cultura religiosa e atribuir a ela
características imanentes -, o sociólogo deve saber identificar o uso estratégico que as elites
religiosas fazem da cultura da qual elas são porta-vozes, a fim de justificar um certo estado
de mobilização dos recursos normativos e identitários. O que convém observar, então, é a
instrumentalização da qual faz uso a pastoral católica; é, ainda, o trabalho de interpretação
renovado sem cessar - que os bispos dão aos textos religiosos a fim de preservar os
princípios essenciais da tradição católica; e é também o esforço de adaptação da doutrina
católica em face das mudanças políticas da sociedade que a cerca.5
“Filha primogênita da Igreja”, a França foi durante muito tempo confundida pelas
elites católicas6 com uma tradição cultural que proíbe ao Estado-nação qualquer trajetória
que o leve a diferenciar-se de sua matriz cultural. Muitos são os bispos que, à semelhança
daquele de Aire e de Dax, aqui citado, consideram que “a luta é entre aqueles que querem
tirar [da França] sua religião e aqueles que acreditam que uma nação não pode subsistir sem
religião; que sem o cristianismo, que a fez tão grande e forte, a França deixaria de ser a
França” (Mor Delannoy, diocese de Aire e de Dax, 1882). Esses discursos, portadores de
um forte ressentimento com relação aos tempos modernos, defendem uma concepção
naturalista da identidade francesa que vê o cidadão francês como aquele que herdou a
cultura nacional de seus ancestrais. Desmentindo os valores universalistas, dos quais a
cidadania é portadora, os bispos consideram que a nação francesa poderia apenas referir-se
ao passado que ela herda da civilização cristã, com a qual se identifica e que constitui o
caráter comum a todos os habitantes e, em conseqüência, sua identidade nacional:
Pois não foi simplesmente um chefe, mas todo um povo que Saint Rémy
batizou no Natal de 496, e essa conversão de Clóvis pode ser colocada em
paralelo com a conversão de Constantino, no século precedente. O que
esta foi para a Igreja, aquela foi para a França. Desta maneira, segundo a
expressão do cardeal Langénieux, a pia batismal de Reims foi
verdadeiramente o berço da França cristã, Filha primogênita da Igreja.16
Se certas formulações são mais prudentes, todas elas exprimem um receio: o de ver
“a França que Saint-Rémy batizou” trair sua vocação. Sente-se nessa traição o peso de
conseqüências nefastas. Ela dá ensejo a um discurso combativo, que coloca claramente o
princípio segundo o qual toda independência com respeito a esse batismo original só pode
causar prejuízo aos interesses nacionais. A França não apenas trairia, assim, sua identidade
e suas origens, mas comprometeria suas chances de desenvolvimento. Uma tal perspectiva
trágica alimenta, por sua vez, os ressentimentos e a indignação das elites católicas, que se
atribuem por missão revelar esse destino impossível. Adotando uma filosofia da história
providencial, a Igreja Católica, preocupada com os tempos atuais, pretende recordar que a
França não pode se distanciar definitivamente de sua matriz religiosa e histórica, que o
batismo de Clóvis simboliza por si só, sem correr o risco de afundar-se no caos.17 Ao fazê-
lo, as elites católicas se servem de uma retórica reacionária clássica para a qual Albert O.
Hirschman propôs uma análise estimulante.18 Dois temas freqüentes do discurso reacionário
são aqui mobilizados, a fim de marcar o profundo ressentimento experimentado: a
inutilidade e a exposição ao perigo. A tese da inutilidade enuncia que toda tentativa de
escapar ao batismo (apostasia) é natimorta, que as estruturas profundas da sociedade
francesa resistem a todas as investidas de secularização. Aqui, a mudança é negada ou
minimizada. O argumento não se contenta em prever o fracasso ou o caos; pretende
igualmente enunciar a necessidade destes. Afirma que as tentativas de transformação da
ordem estabelecida por Deus são predestinadas ao fracasso pelo fato de se chocarem com o
que Burke - freqüentemente citado pelas elites católicas francesas - chamava “a eterna
constituição das coisas”. O desenvolvimento da sociedade francesa obedece, segundo essa
visão, a leis imanentes de origem divina “que o homem é a tal ponto impotente para
modificar que tentar seria ridículo”.19 A segunda tese, aquela da exposição ao perigo, tira
sua força de persuasão do enunciado das conseqüências nefastas de uma vontade
secularizadora. Ao se distanciar de Deus, a sociedade francesa não é razoável: ela ameaça
suas aquisições anteriores,20 conquistas em grande débito com a escolha divina.21 Mais
grave ainda, a tese da exposição ao perigo vai além ao enunciar que o que se perde tem
muito mais valor que o que se pode ganhar. A retórica do ressentimento identitário
relaciona freqüentemente a nostalgia de uma Idade de Ouro (correspondente aos períodos
da história de uma França fiel às promessas de seu batismo) às previsões de uma vingança
de Deus.22 Constitui uma regressão em direção a uma mentalidade supersticiosa, a
sentimentos primordiais ancorados numa sensibilidade e numa pastoral religiosas que
representam Deus como terrível e vingador. O episódio da Comuna e, em seguida, aquele
da Primeira Guerra Mundial servem freqüentemente para ilustrar os cataclismos que
atingem as coletividades ou as nações ímpias.23
Os discursos e os elogios do cardeal Langénieux, arcebispo de Reims e organizador
das principais manifestações do décimo quatro centenário, ilustram bem esse pensamento
reacionário e historicista:
Igreja ter contado muito com a França e a França ter-se apoiado muito
sobre a Igreja, há entre elas relações muito estreitas e muito antigas de
devoção filial e de predileção maternal; não há razão para que nos
obstinemos sem cessar numa política de não-religião que, levando o país
para fora de suas vias providenciais, paralisa, tanto dentro quanto fora,
suas energias nacionais; pois se é verdade que a história de um povo
revela de uma maneira incontestável a lei de seu destino e o princípio de
sua grandeza moral, a França, melhor que qualquer outra, deve se instruir
a partir das lições do passado.28
Um ressentimento catolicocêntrico
[...] o que é uma pátria? É o sangue que corre nas mesmas veias, o solo
que nos nutre, o ar que respiramos, as fronceiras naturais que delimitam
um país? É o idioma compreendido por todos, a língua com a qual nossas
mães encantaram nossos ouvidos? É tudo isso ao mesmo tempo ou algo
mais? Ou antes, toda essa aglomeração chamada de povo não é apenas
um conjunto fictício, uma justaposição de indivíduos ou de famílias que
tornaram seus interesses solidários e que, um dia, poderiam desagregar-se
uns dos outros sem que se dessem conta? É por uma quimera, por um
preconceito sem fundamento, por vaidade, por uma gloriazinha não
justificada que se vive e, se for preciso, que se morre?
E o autor, à semelhança de E. Renan, que ele cita em nota de rodapé, evoca, então, a
insuficiência de um certo inúmero de critérios que poderiam ter servido para delimitar, no
passado, uma nação: o solo, a língua, as fronteiras naturais...
Se, apesar da ambigüidade de sua teoria de nação,44 E. Renan insere sua definição
sob uma perspectiva voluntarista (o “plebiscito de todos os dias”) e considera que “a
religião não poderia mais oferecer uma base suficiente para o estabelecimento de uma
nacionalidade moderna”,45 o padre jesuíta J. Pacheu lembra, ao contrário, aquilo que “a
alma da França” deve ao catolicismo, pois “a verdadeira Franca, que é cristã, [...] [deve]
encontrar-se a si mesma em seu destino”:
Ferdinand Brunetière, seduzido no entanto pelo catolicismo liberal, não dirá outra
coisa à ocasião da conferência que profere, em 28 de outubro de 1896, para a Associação
dos Amigos dos Antigos Alunos do Liceu de Marselha. Ele também se mostra sensível à
necessária continuidade histórica e espiritual da pátria:
Mais uma vez, não nos queixemos, nós, os franceses, por ter uma história,
mas, ao contrário, lembremos que, assim como nossa literatura, é nossa
história que nos fez ser o que somos. Gregos de Marseille ou de Aries,
gauleses da antiga Gaule, romanos de Nimes ou de Narbonne, flamengos
de Dunquerque e bascos de Bayonne, celtas da Bretanha ou dos montes
da Auvergne, a história, ao fazer de nós operários da mesma obra, fez de
nós a raça francesa. Graças a nossa história, graças às dificuldades
suportadas em comum e àquelas voluntariamente suportadas, graças aos
exemplos e às lições de alguns grandes homens, se há no mundo, para
empregar uma palavra da moda, uma pátria que seja verdadeiramente um
organismo, quero dizer, algo maravilhosamente diverso, harmoniosamente
complexo e, no entanto, verdadeiramente vivo, que não seja uma
abstração, mas uma realidade, um ser, uma pessoa, é a pátria francesa.
[...]
É que nossa história não é apenas, como muitas outras, uma “crônica”,
encadeamento de fatos, sucessão de datas, uma alternância de
prosperidade e insucesso, mas é, ainda e sobretudo, uma tradição. 49
NOTAS
Geneviève Koubi
Université Cergy-Pontoise
Estudando o paradoxo da cultura, E. T. Hall pensou que “em seu esforço para
chegar a uma ordem, o homem ocidental criou o caos privilegiando seus dons de análise à
custa de seus dons de integração da experiência”, para levantar imediatamente “o absurdo
da necessidade institucionalizada de tudo controlar”.1 Assinalando as relações entre a
antropologia e a psicanálise, o homem omite as contribuições da ciência jurídica quando as
funções de regulamentação social e de controle constituem uma das razões de ser das regras
de direito. Mas, se o direito se diz conjunto de regras que organiza os ofícios de poder e
classifica as situações sociais, ele não se preocupa com sentimentos, não se refere a
sensibilidades. E assim que a apreensão da(s) cultura(s) pelo direito forma, deforma e
reforma a percepção da construção das coletividades humanas e das individualidades,
sobretudo na relação que cada um mantém com um grupo ou com um povo. O direito
cristaliza a concepção da coletividade e a percepção da identidade. A gestão da
identificação do grupo, bem como da identidade do indivíduo, é, desse modo, marcada por
métodos de ordenamento ou de classificação.
Ora, em matéria de minorias culturais, o discurso jurídico ajusta a loção de
sentimentos para conformar as .classificações dos indivíduos ;omo grupos minoritários. No
plano individual, esse discurso apela para um “sentimento de pertencimento”. Assim se
revela a primeira impostura: nó direito, se há pertencimento, não é em relação a um grupo
populacional nem mesmo a uma nação ou a um Estado, mas a uma categoria. Nessa área, a
categorização confina à discriminação. No que diz respeito ao grupo, esse discurso se refere
a um “sentimento de solidariedade” que tem por objeto fortalecer a relação de dependência
entre um indivíduo e seu grupo de pertencimento.A categorização consiste aí em
fundamentar a coesão grupai em um conjunto, de traços característicos que arriscam
suscitar nova demonstração do pensamento essencialista.
Como a função instrumental das categorias jurídicas é a de segmentar as
populações, setorizar os problemas políticos, repertoriar caso a caso as respostas às
expectativas sociais, esses procedimentos são fonte de frustrações e de decepções tanto para
os indivíduos quanto para os grupos.
Tradução: Celene M. Cruz e Clémence Jouet-Pastré.
homogênea, o direito nunca sendo unívoco, as sociedades democráticas conhecendo a
pluralidade: as minorias, sempre culturais, estão, desse modo, sempre em movimento,
jamais fixas ou imóveis. Levantar a questão minoritária é assinalar a dificuldade para um
dado grupo populacional de pensar sua ligação com o sistema de valores dominante no
Estado de implantação ou, mais ainda, a dificuldade de conceber ao mesmo tempo sua
incorporação a modelos exteriores ao Estado sqb a influência do qual ele evolui e seu
desenvolvimento neste Estado.2
As primeiras pesquisas feitas sobre os fenômenos minoritários permitiram revelar
critérios objetivos para fundamentar juridicamente a noção de minoria. Fixaram-se as
variáveis de uma relação de dominação-subordinação. Na verdade, não existem minorias
em si, existem apenas situações de minoria. O constrangimento caracteriza a situação de
minoria.
Na relação entre minorias e Estado, “há sempre um constrangimento, mas não,
necessariamente, apenas constrangimento”; A. Fenet observava, com razão, que “a situação
das minorias não se encontra nos traços particulares partilhados pelos membros de um
grupo; encontra-se, antes, na dominação exercida sobre esse grupo em razão do princípio de
unidade particular que o constitui enquanto tal, ou seja, como entidade social”.3 A situação
de minoria pressupõe a submissão, a inferiorização, a desvalorização do grupo considerado.
Apreendida no registro da exclusão e do ostracismo, ela também podia traçar novamente os
fenômenos de expatriação e de relegação.
Essas abordagens foram suplantadas por uma atenção voltada para os sentimentos
experimentados pelos indivíduos e pelos grupos. A consistência de um direito das minorias
é então abalada, e a lógica jurídica se deteriora. A questão das minorias inscreve-se nas
margens do discurso de direito; torna-se uma questão sensível? na medida em que infere as
relações de frustração, os sentimentos individuais e as estratégias comunitárias. A atenção
pode se voltar tanto para cada um como para alguns dos indivíduos que compõem o grupo,
quanto se voltar para a comunidade, para a minoria, para o coletivo do qual os indivíduos
fazem parte. Ora, a consciência de grupo, a idéia de pertencimento a um grupo acentuam a
impressão de similitude, demonstrando a não-diferenciação dos parceiros, invocando o
“sentimento da comunidade de destino”. Desse modo, é possível fazer a pergunta: “Então
encontramos normas de justiça diferentes se a ênfase for colocada no grupo ou no
indivíduo?”5 A frustração nasce deste dilema insuperável.
M. Walzer afirma que””o bem primeiro que distribuímos entre nós e o
pertencimento a uma comunidade humana qualquer”.6 Ele não se questiona sobre o direito
que faz a ligação entre este modelo de pertencimento e a noção de cultura. No entanto, a
relação entre direito e cultura constitui uma trama subjacente ao conjunto de suas análises e
serve para determinar direitos particulares, os direitos específicos das minorias,7 portanto os
“direitos poliétnicos”8 aos quais ele apela. A relação de proximidade que se institui entre o
direito e a(s) cultura(s) inscreve a loção de identidade cultural na base da problemática
minoritária; obriga a pensar as minorias como minorias culturais, lingüísticas ou religiosas
dos sistemas de direito democráticos. A elaboração de um “direito das minorias” é
concebível apenas nessas sociedades, nos Estados de direito; e resolução das questões
minoritárias só pode ser vista no âmbito dos sistemos pluralistas? Oriundas do combate
pela igualdade, essas questões não podem ser colocadas no seio de um país colonizado, de
um regime de apartheid, ou segundo teses nacionalistas e relativas às nacionalidades.10
Haveria um convite para interrogar-se sobre as percepções da igualdade e da não-
discriminação. Elas constituem introduções ao estudo dos conceitos de pertencimento, de
relevância e de referência. Os discursos jurídicos apropriam-se dessas noções para prevenir
desordens e enfrentar os riscos de conflitos sociais, para manter a ordem pública. Essas
noções estão no centro das concepções políticas e jurídicas dos fenômenos minoritários.
Explicam quanto a apresentação de uma definição jurídica consensual, ainda que não seja
unânime, da minoria em direito faz parte de uma “missão impossível”.11 Porém a ausência
de definição de um objeto sobre o qual uma regulamentação parece necessária não onera o
desenvolvimento desse discurso; esta deficiência não impede nem a comunidade
internacional nem os Estados de investir na montagem de um direito das minorias - de um
sistema jurídico relativo aos grupos ditos minoritários instalados em um dado Estado, quer
este Estado os reconheça, quer não, como minorias, ou seja, como grupos socioculturais
particularizados à vista de suas ligações com os valores que lhes são próprios.
Certos Estados escolhem determinar como se compõem esses grupos e quais são as
minorias que, implantadas em seus territórios, merecem atenção; eles as apresentam nos
textos legislativos ou regulamentares, seguindo enumerações às vezes exaustivas e
limitativas, sob diversas denominações. Nesses Estados, modalidades de reconhecimento
desses grupos populacionais consistem em lhes atribuir direitos específicos, assegurando-
lhes representação nas instâncias de poder.12 O método de classificação utilizado, por mais
que pareça respeitar as particularidades culturais, contribui, no entanto, para acentuar o
recalque individual e a esclerose coletiva. com efeito, de um certo modo, conceder direitos
próprios aos grupos culturais ditos “minoritários” é separá-los da sociedade na qual eles
evoluem, designá-los outros, diferentes.13 A diferença é, assim, notificada; é percebida e
concebida como definitiva, invariável, irrevogável, permanente. Essas regulamentações
respondem a estratégias de poder, a necessidades de organização, a lógicas de ordem;
suscitam amnésias a respeito de certos elementos constitutivos das identidades culturais
assim reconhecidas; levam, então, as minorias a reagir, a resistir, a defender-se contra as
“pulsões de destruição” que emanam tanto do Estado quanto de si próprias.14 Essas
confusões criam cesuras nas histórias pessoais e reúnem censuras nas “memórias coletivas”.
Já que o discurso do direito desconfia do tempo, que ele parcela em prazo, termo,
data de entrada em vigor, ele recusa o conhecimento das rupturas para transfigurá-las em
períodos transitórios, exclui a historicidade para preservar a linearidade, a continuidade.
Enquanto organiza o silêncio em seus próprios fundamentos feitos de conflitos, de
violência, impõe às minorias a rigidez de seu passado, o adormecimento de seus desejos, a
atonia de suas ações, negando suas possíveis transformações, suas inevitáveis evoluções,
sua introdução na modernidade, no presente.
Esse modo de apreensão da questão minoritária quebra a dinâmica interativa de toda
cultura e atrela a cultura minoritária. Nega o vigor e a força dos sentimentos individuais e
coletivos que formam as atitudes, forjam os comportamentos, modelam as condutas, geram
a associação, convidam à união, constróem o grupo, formam a minoria. Pode também estar
na origem de um certo ressentimento que os indivíduos e os grupos sentiriam tanto em
relação ao Estado quanto em relação a si mesmos, sem ter como direito a possibilidade de
exprimi-lo, de manifestá-lo. A frustração da identificação cultural pode então se traduzir em
fatalismo e resignação, em revolta e resistência; às vezes, em violência.
Sentimentos: do pertencimento à ilusão da solidariedade
NOTAS
Supervisora de revisão
Katia de Almeida Rossini
Revisão
Vera Caputo
Editoração eletrônica
Eva Maria Maschio Morais
Silvia Helena P. C. Gonçalves
Designer de capa
Adailton Clayton Santos
Aco’mpanhamento gráfico
Ednilson Tristão
Assessor de informática
Carlos Leonardo Lamari
Os textos aqui reunidos propõem a abordagem de questões sensíveis à reflexão sobre as
sociedades hoje – Memória e (res)sentimento.
A indagação inicial está em pensar a memória histórica (e o esquecimento) e como a sua
existência (voluntária ou não), assim como os sentimentos e as emoções que, de alguma
forma, passam pelo seu crivo, intervêm sobre as ações dos homens, sobre como pensam os
acontecimentos presentes e passados e como elaboram e constroem identidade individuais,
nacionais, minoritárias, grupais, etc. Entre os sentimentos, o privilégio do ressentimento de
buscar tecer suas possíveis relações com a história e a memória.