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Arte, Cultura e Imaginário:

reflexões interdisciplinares
Maria Auxiliadora Fontana Baseio
(Organizadora)

Arte, Cultura e Imaginário:


reflexões interdisciplinares
© Maria Auxiliadora Fontana Baseio (org.), 2020.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
quaisquer meios sem a autorização prévia da E ditora.

Conselho E ditorial
Terceira Margem E ditora

Conselho Científico
Alzira Lobo de Arruda Campos – UNISA
Luciane Alves Santos – UFPA
Manoel Francisco Guaranha – UNISA
Marcelo Rito – FRS
Maria Zilda da Cunha – USP
Marília Gomes Ghizzi Godoy – UNISA
Sandra Trabbuco Valenzuela – FATE C/FAM

Colaboração E ditorial
Angela Divina Oliveira
Isabella Tavares Sozza Moraes
Lucciano Franco de Lira Siqueira

Revisão e Preparação de Texto


Maria Auxiliadora Fontana Baseio

INLOTHE S TE SAURO E INFORMAÇÃO

I 585 Arte, Cultura e Imaginário: reflexões interdisciplinares /


Organizadora: Maria Auxiliadora Fontana Baseio -- São Paulo:
Terceira Margem, 2020, 14x21 - 458p.

ISBN: 978-65-89372-01-1

1. Interdisciplaridade
2. Ciências Humanas
3. Relações Culturais
4. Cultura
I. Título CDD 389.9 389
Sumário

Apresentação
Maria Auxiliadora Fontana Baseio 07

Heitor Villa-Lobos, a formação musical da criança e do


jovem entre o estético e o ideológico
Marcos Julio Sergl 11
Maria Auxiliadora Fontana Baseio
Maria Zilda da Cunha

Narrativas Mitopoéticas dos Mborai (Cantos Guarani


Mbya)
Alzira Lobo Arruda Campos 33
Marília Gomes Ghizzi Godoy

A construção do imaginário da morte e as práticas de


sepultamentos no Brasil oitocentista
Juliana Maria Martins 65

Jogos simbólicos e o imaginário na educação infantil


Maria de Lourdes Perez 91
Talita Destro Rost

Bruxaria contemporânea: imaginário e identidade na


religião wicca
Lucciano Franco de Lira Siqueira 103
Paulo Fernando de Souza Campos

Reflexões sobre o conceito de banalidade do mal, de


Hannah Arendt, sua interface com o imaginário e seu
diálogo com a atual conjuntura política brasileira
Marcial Ribeiro Chaves 121

Cultura digital, educação e o imaginário na sociedade


pós-moderna
Angela Divina Oliveira 147
Cidadão Kane e Boca de Ouro: ficção e realidade
Audrey Cristina Barbosa 185
Gleiciane Silva Santos Ózio
Rodrigo Nazario Geronimo Pinto

Contos de fadas e a Base Nacional Comum Curricular:


reflexões sobre a formação da criança
Luana Grohe Canto 197
Maria Auxiliadora Fontana Baseio

A constituição do eu no imaginário do sujeito e sua


reconstrução em análise
Maria Cecilia de Almeida Parasmo 213

Morte, simulacros e luto: uma análise do 1º E pisódio da


Temporada 2 da série Black Mirror
E dnaldo Torres Felicio 229

Philip K. Dick e E quipe de Ajuste : análise do conto e da


adaptação para o filme os Agentes do Destino
Sandra Trabucco Valenzuela 261

Imaginário e cultura organizacional: uma contribuição


ao gerenciamento de riscos
Márcia Maria da Graça Costa 293
Luís Carlos Gruenfeld

Literatura e música: diálogos interdisciplinares


Lilian Fernandes Carneiro 313
Marcos Julio Sergl
Maria Auxiliadora Fontana Baseio

O imaginário nas narrativas dos educadores sociais da


pastoral do menor sobre “Projeto E scola de Cidadania”
na formação do adolescente
João Clemente de Souza Neto 337
Leandro Alves Lopes
Sebastião Jacinto dos Santos
O conto “Seminário dos Ratos”: uma construção estética
dos elementos contemporâneos do fantástico de Lygia
Fagundes Telles
Lorraine Martins dos Anjos 361

Categorias de análise da educação inclusiva: imaginário


pedagógico sob o véu da questão social
Vanderlei Fernandes Barreto 379

Tristão e Isolda: o amor-paixão em tradução intersemiótica


Jéssica Avelino Irmão 397

O imaginário na obra de Sophia de Mello B reyner


Andresen e a formação do leitor
Gorete Marcolino Pereira 417

E ntrevista com Durval Muniz de Albuquerque Junior


437
A construção do imaginário da morte e as
prátic as de sepultamentos no Brasil
oitocentista

Juliana Maria Martins1

E ste capítulo trata de compreender as atitudes diante


da morte no cotidiano oitocentista brasileiro e suas
representações fúnebres culturais. Para isso, identifica-se como
se desenvolveu o imaginário da morte, tendo como base
registros que trazem referências para a compreensão do
cotidiano social oitocentista em torno do tema.
A proposta de desenvolver um diálogo sobre a morte
e os mortos, neste contexto, partiu-se do pressuposto de que,
no século XIX, a relação entre os vivos e os mortos foi
constituída a partir de uma natureza dramática, que transitava
entre o Paraíso e o Inferno. A igreja, no que lhe diz respeito,
procurava funcionar como uma instituição que administrava
todo o processo do funeral, era um espaço sagrado que
promovia o convívio direto entre os vivos e seus entes
queridos. No entanto, grandes transformações ocorreram no
momento em que os corpos foram proibidos de ser enterrados
nas igrejas. E ste episódio foi considerado o pontapé inicial
para a consolidação do surgimento dos cemitérios públicos.
É sabido que os costumes funerários eclesiásticos são
de influência europeia e foram difundidos pelos portugueses
desde o início do período colonial, sendo adotados com maior
rigor até meados de 1850. A base do funeral ocidental cristão

1
Mestre em Ciências Humanas e E specialista em Arqueologia, História e
Sociedade pela Universidade Santo Amaro (UNISA). Programa de pós-
graduação lato sensu em andamento, no curso de Anatomia Funcional:
Humana e Comparada, pelo Instituto de Ciências Biomédicas da
Universidade de São Paulo (ICB-USP). Licenciada em História pelo
Centro Universitário E stácio de Sá. Membro no grupo de pesquisa Arte,
Cultura e Imaginário – UNISA. Atualmente, é devidamente filiada à
Associação Brasileira de E studos Cemiteriais (ABE C).
68 A construção do imaginário ...
valorizava fortemente a realização dos ritos fúnebres de
maneira coletiva. Tudo era explícito no momento da inumação
do corpo e as igrejas eram vistas como o local sagrado de
aprendizagem. Não era um tabu sentar nas covas dos mortos,
mesmo tendo que suportar os odores indesejados que o
ambiente proporcionava.
Já era de se esperar que a campanha sanitarista
intervisse, fortemente, no hábito de conviver com os mortos,
de maneira tão próxima. Para a medicina social, o convívio
com os mortos no núcleo urbano traria fortes consequências.
Os cadáveres eram fontes de poluição e doenças, por isso as
práticas de sepultar os mortos nas igrejas deveriam ser
realocadas para outra localidade, fora desses espaços. Não foi
fácil trazer à luz uma proposta que acabaria interferindo em
práticas culturais tão enraizadas. A ideia de cemitérios
extramuros provocaria a insatisfação do clérigo e dos fiéis
que ainda almejavam ter uma cova em solo sagrado. Ainda
assim, não demoraria para que os efeitos epidêmicos
impulsionassem, por definitivo, a prática de utilizar os
cemitérios públicos.
E ste é um tema bastante complexo, porque forma
confluências culturais que perduram até os dias de hoje, mesmo
de maneira menos tradicional. Para analisar este percurso,
demarcado por uma concepção que incorpora o imaginário da
morte, a passagem dos mortos para o “outro mundo” e a
configuração de um novo espaço funerário, foram tomados como
referencial teórico os autores: Arnold van Gennep, Philippe Ariès,
Jacques Le Goff, João José Reis, José Carlos Rodrigues e Cláudia
Rodrigues – pesquisadores que trazem estudos influenciados pela
Antropologia e História das Mentalidades.

1. O imaginário da morte, as regras eclesiásticas


e destino do corpo no século XIX

A morte

A morte vem de longe


Do fundo dos céus
Arte, Cultura e Imaginário 69
Vem para os meus olhos
Virá pra os teus
Desce das estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
E la que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida
(MORAE S, 2005, p. 41).

No ano de 1909, com a publicação do antropólogo


Arnold Van Gennep em L es Rites de Passage, verifica-se que os
rituais deveriam ser mais bem observados no âmbito social,
principalmente, no que tange aos seus mecanismos, com o
propósito de obter leituras a respeito da relação dos indivíduos,
dos grupos aos quais pertencem e de sua posição em
determinado contexto social (GE NNE P, 1960; DAMATTA,
2000). Q uando se trata de compreender as sociedades
tradicionais, tais estudos foram de suma importância, porque
a vida sempre esteve cercada de inúmeras passagens ou ritos
cerimoniais específicos. Um deles é, sem dúvida, o funeral.
E sse é um dos ritos mais importantes, porque
podemos observar o comportamento social em relação às
atitudes a serem seguidas pelos vivos quanto a seus mortos.
Arnold Van G ennep (2011) não deixou passar por
despercebido que as práticas mortuárias carregam consigo
estruturas ritualísticas, que podem ser observadas em três fases
distintas: o momento em que o morto é separado da vida
terrena, a liminaridade e a consolidação do morto no “outro
mundo”.
No livro Tabu da Morte, o historiador José Carlos
Rodrigues (2006) compreende que a separação do morto
representa, de maneira simbólica, o afastamento da vida
humana na Terra, com o propósito de consolidar sua passagem
no “mundo invisível” dos ancestrais. Nessa perspectiva,
70 A construção do imaginário ...
compreende-se que este é um processo penoso, porque exige
o máximo de esforço social coletivo, no que diz respeito à
etapa inicial de desagregação e introdução do morto no mundo
do além, geograficamente idealizado no imaginário da
sociedade da época.
Quer dizer que todos os esforços do funeral, na esfera
coletiva, estão vinculados a muitas categorias ou padrões
específicos de cada sociedade, principalmente, no domínio
cultural e social. Por esse motivo, a etapa do
[...] enterro, bem como as outras maneiras de lidar
com o corpo morto, é um meio de a comunidade
assegurar a seus membros que o indivíduo falecido
caminha na direção de seu lugar determinado,
devidamente sob controle (RODRIGUE S, 2006,
p. 42).

A liminaridade, por sua vez, é a etapa da viagem do


morto, entretanto, “[...] sem ainda ter deixado o mundo terreno
e sem ter passado ainda a pertencer ao outro mundo”
(RODRIGUE S, 1997, p. 173). Até o momento, vê-se que,
para compreender todas as etapas, não é tão simples como
parece, principalmente, se dentro de uma mesma sociedade
houver concepções distintas sobre o que aguarda os vivos
após a morte (GE NNE P, 2011).
O historiador João Reis (1991), em A morte é uma festa,
ao contextualizar a concepção da morte no Brasil oitocentista,
explica que os ritos de separação estão interligados a várias
etapas no funeral brasileiro, principalmente, a lavagem do
corpo, o transporte, o processo de se desfazer dos objetos do
defunto e vários outros tabus que estavam interligados ao
luto. E ra uma época em que os mortos dependiam dos vivos
para completar a sua passagem. Afinal, a “passagem” para o
Paraíso ou o Inferno não ocorria de maneira instantânea,
exceto para aqueles que não cumprissem com as rígidas regras
eclesiásticas. Se levarmos em consideração que as sociedades
interpretam a existência do corpo como uma forma de
“cosmo” que, em determinado instante, passará de um estágio
a outro, como no momento em que o “[...] homem passa da
pré-vida à vida e finalmente à morte [...]” (E LIADE , 1992, p.
Arte, Cultura e Imaginário 71

87), o funeral seria um meio de garantir a continuidade da


vida eterna.
É fundamental salientar que “[...] o ritual de morte é
compreendido como um rito de separação e se relaciona com
as concepções de sobrenatural e à diversidade social como
resultados das variáveis: sexo, idade e status” (RIBE IRO, 2007,
p. 58). De fato, a trajetória dos indivíduos nessa empreitada,
repleta de ritos, corresponde à necessidade dos seres humanos
em transformar o mundo e a si mesmos, para que possam
conviver e fazer parte de determinada sociedade.
Quando o antropólogo Roberto D aMatta (1992)
afirmou, em seu livro A casa & a rua, que muito antes dos
brasileiros terem consciência de que o significado da morte
estava relacionado com o não-ser e o nada, a maioria dos
indivíduos adquiria, a princípio, ciência dos mortos da própria
família, da “[...] casa, vizinhança, comunidade, nação e século”
(1992, p. 103).
“E ssas ‘pessoas’ que, na forma de espíritos, almas,
espectros, heróis e fantasmas aparecem aos seus
conhecidos, colegas, compatriotas e confrades
para pedir alguma reza, missa, favor ou
homenagem” (DAMATTA, 1997, p. 103).

Neste caso, não é à toa que o funeral do morto era


um dos momentos mais importantes, porque consiste em um
evento que demonstra o comportamento social em
coletividade, não somente diante da morte, mas como
determinada atitude pode mudar, principalmente, quando se
trata daqueles que não conseguiam seguir com as regras
difundidas pelos representantes da igreja (RE IS, 1991).
E ntender o imaginário da morte na sociedade
oitocentista brasileira é, de fato, uma jornada que nos leva ao
contexto religioso e anseios sociais. “E mbora as igrejas fossem
o local ideal de enterro, havia entre elas e dentro delas uma
geografia da morte que refletia hierarquias sociais e outras
formas de segregação coletiva” (RE IS, 2019, p. 99). O que de
fato acreditava-se sobre o mundo dos mortos, a maneira como
os vivos se preparavam para a morte no decorrer da vida
terrena, a forma como os mortos seriam sepultados e o destino
72 A construção do imaginário ...

final da alma, de certa forma, estavam presentes nas


representações sociais oitocentistas (RE IS, 2019).
Para melhor compreender a construção em torno da
morte e dos mortos na concepção cristã, inicialmente,
compreendia-se que não havia a morte, era o fim do corpo (a
matéria) e o início de uma nova jornada do espírito no mundo
que lhe proporcionaria a vida eterna. Esse imaginário do além-
cristão não foi construído sob uma perspectiva saudável.
Segundo Cláudia Rodrigues (1997), foi difundido com
fundamentos em uma natureza dramática, devido ao medo
do homem de morrer e o seu espírito não conseguir a vida
eterna ao lado da “graça divina” de Deus. Quanto mais as
pessoas tomavam consciência da existência de um possível
juízo final, momento em que todos seriam julgados pelas más
condutas praticadas em vida, tornaria o cotidiano social um
processo de manipulação e medo constante.
Assim, no fundo da espiritualidade, para que todos
tivessem uma boa morte, havia a necessidade de tomar todas
as precauções com antecedência. Desse ponto de vista, se
por qualquer motivo não prevalecessem os mandamentos
eclesiásticos, certamente, isso impediria o morto de instruir
“[...] sobre como dispor de seu cadáver, de sua alma e de seus
bens terrenos” (RE IS, 1991, p. 192).
Quando o historiador francês Jacques Le Goff (1995)
traz, em O nascimento do purgatório, essa natureza de drama
explícito, afirma que boa parte dessa ideologia de pensamento
teve o seu processo de consolidação entre os séculos XII e
XIII, período em que as almas já transitavam entre o Inferno
e o Paraíso. Nos primeiros momentos do século XII, constata-
se que o imaginário em torno do bem e do mal, ambos
atribuídos ao êthos humano, já estava bem definido no plano
social (LE GOFF, 1995). E videntemente, todos já estavam
cientes de que a “[...] sua sorte será essencialmente
determinada pela sua conduta em vida: a fé e as boas obras
decidirão a salvação, a impiedade e os pecados criminais
conduzirão ao Inferno” (LE GOFF, 1995, p. 163).
Posteriormente, outra categoria de homem surgiria,
aquela que daria uma terceira chance para a salvação da alma,
e que Jacques Le Goff (1995) afirma estar nos textos de Santo
Arte, Cultura e Imaginário 73
Agostinho, cujo homem não era visto como um ser totalmente
bom, tampouco totalmente mal. É possível que dessa nova
classificação tenha surgido o purgatório, com o intuito de dar
uma nova oportunidade ao homem de alcançar o “paraíso”,
um lugar onde as almas seriam direcionadas para aguardar
seu julgamento, um espaço de castigo temporário.
A construção de um território físico ou imaginário
no “outro mundo” é um fenômeno que está muito presente
na cosmovisão cristã. Le Goff acredita que esse fenômeno
está diretamente relacionado com a
[...] maneira como essa sociedade organiza o seu
espaço aqui embaixo e o espaço no além, pois os
dois espaços estão ligados através das relações que
unem as sociedades dos mortos e as sociedades
dos vivos (LE GOFF, 1995, p. 18).

Para compreender melhor a questão do espaço


imaginário, é necessário ater-se ao fato de que os espaços são
demarcados quando estabelecemos uma fronteira, como, por
exemplo, o que separa um pedaço de chão do outro
(DAMATTA, 1997). Não é prioridade deste texto debater a
natureza e o alcance do conceito de espaço em sua totalidade,
uma vez que seria um empreendimento de largo fôlego. Não
existe alguma
[...] medida orgânica, natural ou fisiológica de uma
categoria de pensamento e ação tão complexa quanto o
espaço, do mesmo modo que não há um órgão do corpo
para medir o tempo (DAMATTA, 1997, pp. 21-22).

Se retomarmos a ideia da remodelação cartográfica


do além, por exemplo, que consiste na elaboração de um novo
espaço, ajudaria a compreender que o Purgatório foi
desenvolvido com o propósito de duplo julgamento aos
mortos. O primeiro julgamento iniciaria no momento da
morte, e a segunda etapa seria concretizada apenas no dia do
juízo final. Diante dos fatos, a lógica do Purgatório está na
maneira mais rápida de aprovação das almas, que também
dependiam das penitências dos vivos a favor da “salvação da
alma” (LE GOFF, 1995).
74 A construção do imaginário ...

No que diz respeito às crianças, principalmente aquelas


que morriam sem passar pelo processo do batismo, não
existiria o Céu, tampouco o Inferno, apenas o Limbo 2. A
expressão limbo surgiu “[...] entre os séculos XII e XIII para
designar o ‘lugar de repouso’ destas crianças (o ‘limite’ das
regiões inferiores)”3. O limbo não corresponde ao mesmo
plano do Céu ou do Inferno, visto que os recém-nascidos
sequer cometeram pecados em vida. À vista disso, carregam
apenas o pecado original (BE TTE NCOURT, 1959; LE GOFF
1995).
E sses requisitos também se apresentavam como
exigência para os índios que ainda não haviam passado pelo
batismo. Muitos que faleciam nessa situação eram vistos como
cadáveres desprovidos de alma, logo, não seriam dignos de
receber um funeral adequado. O mesmo tratamento era dado
aos africanos (homens, mulheres e crianças) escravizados que
já estavam no Brasil. A eles eram impostas as regras da igreja,
todos passavam pelo batismo, recebendo um nome de origem
cristã. Todavia, os negros “[...] nunca abandonaram
inteiramente a tradição” (RE IS, 2019, p. 76).
Em suas irmandades eles africanizaram o catolicismo,
celebrando santos patronos com mascaradas, a
percussão dos atabaques, danças cheias de energia
corporal, canções cantadas em línguas nativas e a eleição
fictícia de reis e rainhas negros. Por outro lado, o
catolicismo barroco, com sua efusão de ritos, símbolos
e cores, e com sula cultura processional de rua, não era
de todo estranho a eles. E , dada a flexibilidade da
religiosidade africana, havia sempre lugar para novos
rituais, símbolos e deuses (REIS, 2019, p. 76).

2
Comissão Teológica Internacional. A esperança da salvação para as
crianças que morrem sem Batismo, n. 24. Disponível em: < http://
www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/
rc_con_cfaith_doc_20070419_un-baptised-infants_po.html> . Acesso
em: 02 jan. 2020.
3
Comissão Teológica Internacional. A esperança da salvação para as
crianças que morrem sem Batismo, n. 26. Disponível em: http://bit.ly/
2YCqMok. Acesso em: 02 jan. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 75

Apesar da resistênc ia por parte do sistema


fundamentalista da igreja católica, o clérigo foi pressionado a
aceitar, ou “[...] pelo menos fechar os olhos para os
africanismos nas cerimônias fúnebres. Contudo, não havia
dúvidas de que as regras c atólicas predominavam,
especialmente no lado público dos funerais” (RE IS, 2019, p.
77).
Os registros históricos do artística de Jean-Baptiste
Debret, no documento intitulado V iagem pitoresca e histórica ao
Brasil, trazem cenas diversas sobre a vida cotidiana dos negros,
inclusive, momentos de cortejos funerários diversos
(DE BRE T, 1972).

F igura 1: Cortejo fúnebre do filho de um rei negro

Fonte: Jean Debret. Convoi funèbre dun fils de riu nègre. Disponível
em: < https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3452> . Acesso em:
04 mai. 2020.
76 A construção do imaginário ...

F igura 2: E nterro de uma mulher negra

Fonte: Jean Debret. E nterrement d’une femme nègre. Disponível em: <https:/
/digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3452>. Acesso em: 04 mai. 2020.

F igura 3: Cortejo fúnebre de uma criança negra

Fonte: Jean Debret. Convoi funèbre de négrillons. Disponível em: < https:/
/digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3541> . Acesso em: 04 mai. 2020.
Arte, Cultura e Imaginário 77

Pelo visto, a Figura 1 demonstra que os cortejos


fúnebres dos negros aparentavam ser festivos, com traços
tradicionais da sua cultura. Quando observamos a dinâmica
do cortejo,
[...] na frente vai o Negro Fogueteiro soltando
fogos de artifícios; em seguida o Mestre de
Cerimônias abre passagem; os Negros
Volteadores fazem piruetas e saltos mortais entre
eles para animar o cortejo, inclusive um deles toca
o tambor; a Porta B andeira antecede ao
encaminhamento da rede que traz o corpo do
morto coberto por um pano mortuário onde
consta uma cruz; seguem o Diplomata vestido de
preto e outros ajudantes. Ao fundo, esfumaçado,
vemos um corredor de pessoas paradas assistindo
e comemorando a passagem do cortejo funerário
(BORGE S, 2016, p. 452).

Na Figura 2, nota-se que o enterramento da mulher


difere dos enterros dos homens negros, pois era acompanhado
apenas por mulheres, com exceção dos carregadores do caixão,
o mestre da cerimônia e, principalmente, de quem toca o
tambor no decorrer do caminho. Vez ou outra, durante o
cortejo, ouviam-se rufos lúgubres que os negros faziam com
a ajuda do tambor (DE BRE T, 1979).
E ntre os moçambiques as palavras do canto
fúnebre são especialmente notáveis pelo seu
sentido inteiramente cristão, pois entre os outros
limitam-se as lamentações acerca da escravidão
[...] (DE BRE T, 1979, p. 178).

Se o defunto fosse de classe indigente, o funeral não


seria tão tradicional. Os amigos e parentes depositavam o
corpo em uma rede para transportá-lo até a igreja. E ntão, o
corpo era deixado no muro do templo ou próximo à porta de
algum comércio local. Após essa exposição pública, era de
costume uma das mulheres presentes no cortejo,
[...] conservar acesa uma pequena vela junto à
rede funerária e recolhendo dos passantes
78 A construção do imaginário ...
caridosos módicas esmolas para completar a
importância necessária às despesas de
sepultamento [...] (DE BRE T, 1979, p. 178).

Nos funerais apenas de influência católica, os


brasileiros mantinham o hábito de velar os mortos em casa,
deixando o corpo exposto,
[...] durante o dia ou mais, deitado, completamente
vestido, no caixão aberto e colocado sobre um
estrado fornecido pelo armador. Fecha-se o caixão
no momento de retirar o corpo para transportar
para a igreja onde é novamente aberto (DE BRET,
1979, p. 178).

E ra comum presenciar o ato da extrema-unção nos


cortejos fúnebres, ambos em público.
Um personagem bastante requisitado nos velórios foi
a c arpideira, aquela que organizava os prantos, as
“choradeiras”. Presenciava-se esse tipo de anunciação em
Portugal ou em determinadas colônias portuguesas na África.
Eram mulheres contratadas para lamentar a morte do defunto.
E ssas práticas ritualísticas do catolicismo perduraram até o
final do século XIX (RE IS, 2019).
Por certo, com tantas regras e devoções, ser enterrado
em lugares inapropriados causaria pânico em qualquer devoto.
Certa vez, quando Saint-Hilaire viajava pelo interior de Minas
Gerais, no ano de 1817, deparou-se com uma cruz na beira
da estrada que, segundo os relatos da época, foi posta por um
viajante que passava pelo local. De acordo com os rumores,
o viajante desconhecido relatou ter visto algumas almas do
Purgatório em forma de pomba. Todas rodeavam o seu cavalo
para solicitar preces. A cruz foi deixada na estrada como
símbolo da aparição das almas. No entanto, a cultura de
demarcar as estradas com cruzes pode ter outros significados,
principalmente, em memória de alguém que morreu no local
por situações diversas. Com relação a esse episódio, a cruz
foi posta na estrada como forma de lembrar a todos que
passavam pela local da obrigatoriedade em rezar pelas almas
que suplicavam por orações (RE IS, 2019).
Arte, Cultura e Imaginário 79

Com certa frequência, as vítimas de assalto eram


assassinadas e enterradas na beira da estrada e, consequen-
temente, privadas de ter um funeral adequado. E m 1820,
quando o alemão Rugendas viajava entre os E stados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro, também relatou ter visto uma cruz
no meio do caminho. De acordo com os relatos do viajante,
quando as vítimas eram assaltadas, nem a montaria escapava
da morte, eram abatidas e deixadas no local cujo morto foi
enterrado (RE IS, 2019). Com toda essa crença em torno do
Purgatório, esse tipo de enterramento, com
[...] sepultura ao léu, em terra profana, ao lado de
animais, era uma fórmula perfeita de tormento para
as almas dos assim mortos e enterrados. Para salvá-
las faziam-se necessárias muitas rezas. As bases
daquelas cruzes se enchiam de pedras que
contabilizavam as preces ditas na intenção dos
mortos ali representados, ajudando-os a atravessar
o estado liminar em que viviam e integrando-se
definitivamente ao outro mundo (REIS, 2019, p. 74).

Quando se tratava do destino do corpo, não era de


costume que as regras fossem aplicadas a todos. Um bom
exemplo disso são as categorias de fiéis que o concílio de
Rouen classificou como aptas a solicitarem um espaço sagrado
para ser enterradas. A seguir, tem-se um trecho do documento:
O concílio de Rouen (1581) classificou em três
categorias os fiéis que podiam reivindicar
sepultura na igreja:

1° “Os consagrados a Deus, em especial os


homens”, a rigor as religiosas “porque o seu corpo
é muito especialmente o templo do Cristo e do
E spírito Santo”;

2° “os que receberam honras e dignidades da


Igreja (os clérigos ordenados) como no século (os
grandes) porque eles são os ministros de Deus e
os instrumentos do E spírito Santo”;
80 A construção do imaginário ...
3° “além disso (as duas primeiras categorias são
de direito, esta é uma escolha) aqueles que por
nobreza, ações e méritos se distinguiram no
serviço de Deus e da coisa pública.” Todos os
demais destinam-se ao cemitério. O concílio de
Reims (1683) distingue também as mesmas
categorias, mas as define de acordo com
características mais tradicionais:

1° duas categorias de direito, os padres e os


patronos das igrejas já reconhecidos na Idade
Média;

2° “aqueles que por nobreza, exemplo e méritos,


prestaram serviços a Deus e à religião”, estes só
são admitidos, conforme costume antigo, com a
permissão do bispo.

Os demais são enterrados no cemitério que,


“outrora os mais ilustres não desprezavam”. A
longa sequência esses textos, quando tomados à
letra, faria crer que a sepultura nas igrejas não
passava de uma exceção mais ou menos rara, mas
uma exceção (ARIÈ S, 1981, p. 52).

Muitos eram sepultados nas igrejas com o propósito


de receberem a proteção dos santos e maior proximidade com
os vivos, tendo em vista que, constantemente, todos ocupavam
o mesmo espaço nas igrejas (ARIÈ S, 2017).
Os mortos eram enterrados em um lugar ao
mesmo tempo de culto e de passagem como a
igreja, a fim de que os vivos se lembrassem deles
em suas preces e se recordassem que, como eles,
tornar-se-iam cinzas. O enterro ad sanetos era
considerado como um meio pastoral de fazer com
que se pensasse na morte e de interceder pelos
mortos (ARIÈ S, 2017, p. 188).

Os enterros nas igrejas tinham muitos significados. Era


o espaço de aprendizagem e celebração cíclica da vida, que
incluía o batismo, o casamento e a morte (REIS, 1991).
Arte, Cultura e Imaginário 81
O utro detalhe eminente é o modo como as igrejas
compartimentavam as covas no seu interior. Não era fácil para
quem frequentava as missas. Não havia muitos assentos, a grande
maioria se organizava de pé, ajoelhada ou sentada no chão, como
podemos observar na Figura 4. Todas as atividades eram
desenvolvidas por cima das sepulturas (REIS, 1991).

F igura 4: Manhã de quarta-feira santa na igreja, Rio de Janeiro

Fonte: Jean Debret. Une matinée du Mercredi Saint, à l’église. Cavalhadas


(tournois). Disponível em: < https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/
3263> . Acesso em: 04/05/2020.

As covas mediam de sete a oito palmos de


profundidade, no subsolo, protegidos por madeira ou pedras
de mármores. E ra costume cobrir os cadáveres com cal,
porque ajudava no processo de decomposição e, em seguida,
depositava-se um montante de terra que era prensada por
calceteiras, trabalho braçal atribuído aos escravos. Certamente,
aqueles munidos de recursos financeiros eram enterrados na
parte interna. Para as pessoas com menor poder aquisitivo,
restava apenas locais de enterramentos no adro, área externa
do templo (RE IS, 1991).
82 A construção do imaginário ...
Nesse período, a igreja não significava apenas um
templo sagrado, era o “[...] cemitério propriamente dito, no
sentido restrito, era, portanto, simplesmente o pátio da igreja
[...]” (ARIÈ S, 1981, p. 56). Para se constituir um cemitério,
construía-se uma igreja para que os corpos pudessem ser
inumados. Ser enterrado na igreja era considerado um ato de
“[...] devoção mais espiritual, mais atenta aos signos físicos,
convidava, portanto, a negligenciar a destinação terrena do
corpo” (ARIÈ S, 2017, p. 188).
Apesar do rigor que esta construção secular de crenças
supõe e provoca no horizonte social, um detalhe em específico
desperta a atenção nas Constituições Primeiras do arcebispado
da Bahia. E m determinado trecho, o documento demonstra
indignação com o costume de enterrar os negros em qualquer
lugar. Por este motivo, foram deferidas algumas multas aos
senhores de escravos que praticassem enterramentos
irregulares (VIDE , 1853).
O LVII das Constituições Primeiras das pessoas, a quem se
deve negar à sepultura eclesiástica determinava a existência de
necrópoles distintas para indivíduos de nacionalidades e/ ou
religiões diferenciadas (VIDE , 1853). Nessa situação, eram
recusadas as sepulturas eclesiásticas para os judeus, hereges,
blasfemos, assassinos, ladrões de igreja, excomungados e
crianças, negros ou índios não batizados.
Ambiente fúnebre tão reconfortante não era o
destino derradeiro de outros estrangeiros, que
eram pagãos ou recém-cristão – os escravos
africanos –, ou mesmo os brasileiros pobres
indigentes, na maioria negros e mestiços. E mbora
muitos escravos recebessem sepultura eclesiástica
em suas irmandades, ou mesmo nas igrejas
paroquianas e conventuais, a maioria era levada a
cemitérios mantidos pelas Santas Casas, ou
enterrados à toa nas fazendas do interior (RE IS,
1997, p. 130).

No livro História da V ida Privada no Brasil, organizado


por Luiz Felipe de Alencastro (1997), no capítulo “O cotidiano
da morte no Brasil oitocentista”, João Reis menciona que os
Arte, Cultura e Imaginário 83
espaços fúnebres reservados para os estrangeiros foram
construídos “[...] à concepção de uma necrópole longe da
cidade, integrado a um cemitério rural, que estava em moda
na E uropa e, sobretudo, nos E stados Unidos” (RE IS, 1997,
p. 130). Deve-se, sem dúvida, recolocar nesse contexto que,
devido ao medo dos castigos no pós-morte, as “[...]
chamuscaduras do Purgatório ou a perdição eterna na Geena,
levava, com certeza, muitos devotos à contrição e à via estreita
da virtude” (MOTT, 1997, pp. 176-177).
De modo geral, a morada dos mortos “[...] poderia
funcionar como uma excelente ajuda no encaminhamento da
alma e perante a Corte Celeste no instante do julgamento
final, constituindo uma das maiores inquietações das pessoas”
(SILVA, 2012, p. 249). Ao analisar a conjuntura dos eventos,
compreende-se que a sociedade não temia o fenômeno da
morte. A maior preocupação no momento era ter um enterro
digno, pois, “[...] morrer sem enterro significava virar alma
penada” (RE IS, 1991, p. 171).
Todos esses costumes foram tomando novos contornos
e sentidos na segunda metade do século XIX, “[...] após a
ocorrência de alguns fatores históricos, como a campanha
sanitarista realizada por representantes da medicina social no
século XIX” (MARTINS, 2019, p. 99). Essa era uma empreitada
da medicina social, que promovia alternativas a fim de minimizar
as enfermidades que se alastravam nos núcleos urbanos. Com a
justificativa de implantar o processo de higienização pública, as
práticas de sepultar os mortos nas igrejas foram alvos de críticas,
porque, do ponto de vista da medicina social, contribuíam para
o surgimento de doenças (REIS, 1991; RODRIGUES, 1997;
RODRIGUES, 2006; MARTINS, 2019).
Cláudia Rodrigues (1997), em L ugares dos mortos nas
cidades dos vivos, enfatiza que diversas igrejas sofreram duras
críticas no Rio de Janeiro. Além disso, o medo das pessoas
com relação à contaminação pela febre amarela enfraqueceu
o hábito de sepultar os mortos nas igrejas.
O s cemitérios existentes, encarados como
insalubres, sofreram a crítica médica, que
propunha um projeto de cemitério “ordenado” e
“moralizante”, visando a neutralização dos efeitos
84 A construção do imaginário ...

mórbidos causados pelos cadáveres. Buscou-se


uma nova localização e organização interna. Pedia-
se o fim dos enterros em seus locais tradicionais
e a criação de cemitérios afastados da cidade
(RODRIGUE S, 1997, p. 59).

Quanto maior fosse o esforço da medicina em acabar


com essas práticas, mais fundo ela penetrava em costumes
culturais que, de fato, seriam abalados. E ntretanto, algumas
pessoas já relatavam insatisfação com a falta de higiene. Ao
frequentarem as igrejas, as pessoas caminhavam, sentavam e
oravam sobre os mortos, “[...] a todo o tempo sentindo seus
odores, expressando uma determinada sensibilidade olfativa
resultante da fé existente na sacralidade dos sepultamentos
eclesiásticos” (RODRIGUE S, 1997, p. 21). E m determinadas
situações, moradores do núcleo urbano do Rio de Janeiro
relatavam episódios preocupantes.
O morador de uma casa à rua dos Passos, contígua
à igreja de Santa Efigênia, notou que de suas paredes
minava “uma substância gordurosa”, que um médico
atestou originar-se de cadáveres enterrados nos
carneiros do templo. O problema, entretanto, era
mais antigo e nem sempre ligado a situações
epidêmicas. Já em 1831, a comissão da SMRJ
encarregada de estudar o ar carioca denunciaria as
igrejas do Carmo, São Pedro e São Francisco de
Paula, onde “as emanações se filtrarão ao través das
paredes” (REIS, 1991, p. 259).

Para os médicos, o ideal seria construir cemitérios


afastados dos núcleos urbanos, de preferência, em áreas
arborizadas, com muros altos para afastar os animais das covas.
E sse seria um espaço fúnebre mais reservado (RE IS, 1991), a
ideia de um cemitério:

[...] local onde esteja presente a finitude do homem


e sua individualidade. Finitude por estar no mundo
sob Deus, submisso, tornado nada; finitude que
é seu corpo, em suas propriedades, em sua
Arte, Cultura e Imaginário 85
constituição. Individualidade por estar apreendido
em seu túmulo, nome e vida, que é registrada,
anotada, calculada (MACHADO, 1989, p. 292).

E m Salvador, a proposta de ter um cemitério público


não foi bem aceita pela população. E m 25 de outubro do ano
de 1836, a revolta popular conhecida como “cemiterada” levou
à destruição do cemitério Campo Santo. No entanto, o maior
obstáculo naquele momento seria a própria igreja, pois seus
representantes mantinham interesses econômicos vinculados
às cerimônias mortuárias. “Os interesses eram praticamente
os mesmos que dos investidores que, com o mesmo discurso
higienista, propuseram estabelecimento de cemitérios
públicos, pela Lei n. 17 em 9 de maio de 1835” (RE IS, 1991
apud MARTINS, 2019, p. 117).
A população viria a aceitar o cemitério apenas em
1855, devido ao surto da cólera-morbo, que matou entre 30 a
40 mil pessoas, com oito mil falecidos na capital. Com receio
do contágio, muitos padres e médicos fugiram dos doentes e,
principalmente, dos cadáveres. Por conseguinte, foi devido à
epidemia que o Campo Santo consolidou as atividades de
enterros fora do âmbito da igreja (RE IS, 1991).
Goiás passou pelo mesmo problema. Os cemitérios
públicos surgiram devido ao número elevado de pessoas que
faleceram com a propagação da febre amarela (SILVA, 2012).
Todos os eventos citados referem-se a registros elaborados a partir
dos núcleos urbanos. No âmbito rural, “[...] a assistência paroquial
era diferente pela distância, pela própria ausência de padres e
sobretudo pela população a ser assistida” (REIS, 2019).
Conforme aponta Cláudia Rodrigues (1995), entre os
anos de 1812 a 1885, a zona urbana do Rio de Janeiro teve
maior atenção dos padres em seus funerais. Tirando os
problemas com as epidemias na segunda metade do século
XIX, foi possível contabilizar que 60% dos que faleceram
receberam a etapa do sacramento antes do óbito. Além disso,
foi confirmado que 41% passaram pelas etapas de penitências,
comunhão e extrema-unção.
E m Salvador, em uma média de 712 mortes, em 1835-
1836, pelo menos 52% não tiveram a sorte de receber o
sacramento tão desejado no momento da morte (apud RE IS,
2019, p. 82). Apesar de tantas reviravoltas, enterrar os mortos
86 A construção do imaginário ...
em cemitérios a céu aberto não privaria os indivíduos de
manterem determinados hábitos, como: velórios e cortejos,
com a presença dos representantes da igreja, amigos e
familiares do morto (CASTRO, 2017).
Analisando o contexto social da esfera oitocentista
brasileira, é notória a herança cristã que, naquele momento,
assegurava que o imaginário da morte fosse repleto de opções
no pós-morte, e isso incluiria uma vida eterna ao lado da graça
divina de D eus. A crença na possibilidade de redimir os
pecados cometidos ao longo da vida teve origem apenas no
final do século XII, com o surgimento do Purgatório. É
possível discernir que tais perspectivas consolidar-se-iam no
cotidiano brasileiro de maneira a assegurar que a morte não
fosse temida, pois a maior preocupação era ter um lugar
devidamente adequado para o funeral e o enterro do corpo.
O contexto antropológico sobre os ritos de passagem,
difundidos por Arnold Van Gennep, foi de suma importância
para o entendimento das atitudes diante da morte praticadas
pela sociedade da época. Observar o funeral, do ponto de
vista do afastamento dos mortos, da etapa de liminaridade e
da consolidação da alma no destino final, possibilitou-nos
indagar sobre o quanto compreender o fenômeno da morte
é complexo, principalmente, no domínio das estruturas sociais.
O tema da secularização da morte, difundido pelos
pesquisadores João Reis, Cláudia Rodrigues e José Carlos
Rodrigues, apresenta um cenário da morte associado a uma
sociedade, naquele momento, ainda imbrincada ao imaginário
do Purgatório e a todas as fases tripartidas do funeral. Nessa
conjuntura, o Purgatório entraria como um processo de
revolução mental e social, porque emerge, por definitivo,
substituindo o dualismo que representava as únicas opções
difundidas no início dos primeiros séculos do cristianismo: o
Paraíso e Inferno. Surge, então, um plano intermediário que
resolveria todos os problemas daqueles que temiam não ter a
oportunidade de se redimir dos pecados.
Mais tarde, a fé em obter um lugar no Paraíso se
tornaria um grande negócio para a igreja, tendo em vista que
o mistério da morte e as incertezas do que, de fato, lhes
aguardavam, ainda era desconhecido. Tais afirmações podem
Arte, Cultura e Imaginário 87
ser comprovadas quando João Reis e Cláudia Rodrigues
discorrem no tocante às hierarquias sociais no processo de
ocupação das covas nas igrejas, além do mais, a população
mais privilegiada pela presença de um padre estava nos núcleos
urbanos. Geralmente, a grande maioria dessas pessoas tinham
maior poder aquisitivo, pois todas as etapas do funeral tinham
o seu preço.
Quando Jean-Baptiste Debret veio ao Brasil para
elaborar o registro em relação à sociedade brasileira, não pode
deixar de notar as peculiaridades fúnebres difundidas pelos
portugueses e escravizados, que ainda praticavam a religião
de origem. Havia hierarquias sociais, distinção de gênero,
contudo, a finalidade era a mesma, assegurar uma boa morte.
O que mais chama a atenção em todo o contexto é o fato das
populações restritas nas zonas rurais, sequer ter a certeza de
que teriam um auxílio ou amparo no final de sua vida.
No momento em que os documentos conhecidos por
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia determinam
a existência dos cemitérios rurais para os estrangeiros, ou
quando João Reis menciona que esses espaços também eram
destinados aos negros, índios e crianças não batizadas, sem
falar em toda a população considerada como indigna por não
se enquadrarem na posição de um “cidadão de bem”, de fato,
os enterros, em ambientes rurais, deveriam existir com maior
frequência, fora do teto das igrejas. E sse é um tema pouco
abordado. Os cemitérios rurais merecem maior atenção em
relação às condições do ambiente, padrão de enterramentos,
anseios e atitudes sociais, por não terem a assistência devida.
Levando em consideração o contexto atribuído ao
século XIX e seus eventos históricos, o comportamento diante
da morte tomaria novos rumos com os surtos epidêmicos,
pois as pessoas passaram a ter medo da morte repentina. Um
“imprevisto” desses sequer daria a chance aos indivíduos de
escolher o local do enterro. E sse é o momento em que os
cemitérios públicos conseguem consolidar suas atividades sem
maior resistência. E ntão, conclui-se que, no decorrer das
atitudes diante da morte e dos mortos, os costumes
relacionados ao funeral tomam novos contornos na segunda
88 A construção do imaginário ...
metade do século XIX, sobretudo, com a aprovação da “nova
morada dos mortos”, os cemitérios.

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