Você está na página 1de 21

ESTÉTAICA

E EXISTENCIA
FILOSOFIA E LOUCURA

Iraquitan de Oliveira Caminha


Maria Gorette Bezerra de Lucena
(Orgamz'adores)

"M" LedilttborearArs
Comité Cientifico

Ary Baddini Tavares


Andrés Falcone
Alessandro Octaviani
Nascimento
Daniel Arruda
Eduardo Saad-Diniz
Isabel Lousada
Jorge Miranda de Almeida
Marcia Tiburi
Marcelo Martins Bueno
Miguel Polaino-Orts
Maun’cio Cardoso
Maria I. Binetti
Michelle Vasconcelos de Oliveira Nascimento
Paulo Roberto Monteiro Arau’jo
Patricio Sabadini
Rodrigo Santos de Oliveira
Sandra Caponi
Sandro Luiz Bazzanella
Tiago Almeida
Saly Wellausen
IRAQUITAN DE OLIVEIRA CAMINHA
MARIA GORETTE BEZERRA DE LUCENA

(ORGANIZADORES)

ESTÉTICA E EXISTÊNCIA:
FILOSOFIA E LOUCURA

1ë ediçäo‘ '

LiberArs
Sa“o Paulo — 2018
ESTÉTICA E EXISTÊNCIA: FILOSOFIA E LOUCURA
© 2018, Editora LiberArs Ltda.

Direitos de ediçâo reservados à


Editora LiberArs Ltda

ISBN 978-85-9459-093-0

Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho

Revisäo técm‘ca
Cesar Lima

Editoraçâo e capa
Editora LiberArs
Ioice Cristina Soares

Dados lnternacionais de Catalogaçâo na Publicaçäo — CIP

Caminha, Iraquitan de Oliveira (org.)


Cl9le Estética e existência: filosofia e loucura / Iraquitan de
Oliveira Caminha, Maria Gorette Bezerra de Lucena
(organizadores) - Säo Paulo: LiberArs, 2018.

ISBN 978-85-9459-093—0

1. Filosofia 2. Reflexäo Filoso’flca 3. Filosofia - Loucura 4.


II Colo’quio Estética e Existência I. Titulo

CDD 100
CDU l

Biblioteca’ria responsàvel: Neuza Marcelino da Silva — CRB 8/8722

Todos os direitos reservados. A reproduçâo. ainda que parcial, por qualquer meio,
das pa’ginas que compôem este livro, para uso nâo individual, mesmo para fins didâticos,
sem autorizaçâo escn'ta do editor, é ilfcita e constitui uma contrafaçäo danosa à cultura.
Foi feito o depôsito legal.

Editora LiberArs Ltda


www.1iberars.com.br
con tato@liberars.com. br
SUMÀRIO

APRESENTAÇÂO ....................................................................................... 9

DO ABISMO À OBRA
VÉRONIQUE DONARD ................................................................................. 15

FILOSOFIA, LOUCURA
E EXISTÊNCIA SINGULAR
IRAQUITAN DE OLIVEIRA CAMINHA.................................................... 25

ETERNIDADE, POBREZA E FILOSOFIA


EM DOM QUIXOTE DE LA MANCHA
ROBSON COSTA CORDEIRO ...................................................................... 33

SENSATE’Z E LO’UCURA ’
NA TRAGEDIA AIAX, DE S’OFOCLES
ORLANDO LUIZ DE ARAUIO ...................................................................... 47

ANTONIN ARTAUD:
o SUICIDA/DO DA SOCIEDADE
MARINÊ DE SOUZA PEREIRA ................................................................... 59

LOUCA CULTURA:
BARBARIE E FENOMENOLOGIA
DA VIDA DE MICHEL HENRY
GILBERTO APARECIDO DAMIANO......................................................... 69

A ARTE E A PRESENÇA DO DIVINO


OU ADA LOUCURA
ANGELO MONTEIRO ..................................................................................... 89

DANS LE CORPS D'ANTONIN ARTAUD:


UNE LANGUE OSMOTIQUE DU VIVANT
BERNARD ANDRIEU ..................................................................................... 93
LOUCURA E TIRANIA NA ALMA
MARIA GORETTE BEZERRA DE LUCENA
IRAQUITAN DE OLIVEIRA CAMINHA ................................................... 103

SUPERSTIÇÂO E CRENÇA EDIFICANTE


NO ROMANCE SPINOZA
DE BERTHOLD AUERBACH
SÉRGIO LUÎS PERSCH .................................................................................. 109

A MANIA DO AMOR
SOLANGE MARIA NORIOSA GONZAGA ................................................ 123

HY'BRIS E MANIA NO DIÂLOGO


PRIMEIRO ALCIBIA'DES DE PLATÂO
ERICK VINICIUS SANTOS GOMES .......................................................... 129

(LOU) CURE-SEL-
UMA ABORDAGEM ARTAUDIANA_DA EXISTÊNCIA EM
INSTAURAÇÔES CÊNICAS NO HOSPITAL
PSIQUIÂTRICQDR. IOÂO MACHADO
JOSADAQUE ALBUQUERQUE DA SILVA
NARA SALLES
JÉSSICA CEREIEIRA ...................................................................................... 147

AMARRAÇÔES DO CORPO_N’A CLÎNICA COM PS’ICÔTICOS:


UMA QUESTÂO PARA A ESTETICA_E A PSICANALISE
FRANCISCO DE ASSIS BEZERRA DOS SANTOS................................. 165

FILOSOFIA, ARTE
E LOUCURA COMO METAFORA
GILFRANCO LUCENA DOS SANTOS ....................................................... 171
APRESENTAÇÂO

O presente livro tem a intençâo de convidar você para apreciar e discutir


diferentes compreensôes sobre a relaça”o entre filosofia e loucura. Todos os
textos sa”o frutos das apresentaçôes dos trabalhos no II Colôquio Internacional
Este’tica e Existência, realizado pelo Grupo de Filosofia da Percepçäo com o
apoio do Programa de Po’s—graduaçâo em Filosofia e do Centra de Ciências Hu-
manas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paral’ba, na cidade de Ioâo
Pessoa-PB, em novembro de 2016, que discutiu as relaço”es entre Filosofia e
Loucura.
Reunimos diferentes pensadores para debater sobre as aproximaçôes que
podemos estabelecer entre a pra’tica do filosofar e a expressâo da loucura. Os
resultados dessas discussôes deram origem ao conjunto desses textos da cole-
tânea organizada por Iraquitan de Oliveira Caminha e Maria Gorette Bezerra
de Lucena. Convidamos o leitor para dialogar sobre a possibilidade de compre-
ender o ato de ser filo’sofo e o de ser louco como manifestaçôes do sofrimento
humano, que busca expressar diferentes modos de existir.
Véronique Donard trata do tema da relaçäo entre arte e loucura. Ela conside-
ra o termo "loucura" com contornos imprecisos, por demais indutor de imaginé—
rios litera’rios para se adequar ao sofrimento de quem sofre de um transtomo
mental. Ela revela com maestria que caracterizar de “louco” uma pessoa que pade-
ce de uma doença que afeta sua capacidade de raciocînio e de percepça”o da reali-
dade é, na verdade, condena’-lo à exclusâo da sociedade. O propo’sito é mostrar que
é possîvel vislumbrar que aquele que experimenta a devastaçâo da loucura pode,
de alguma forma, perceber, no olhar dos outros, que seu lugar no mundo mâo foi
vam'do pelo julgamento excludente de sua familia e de sua sociedade.
Iraquitan de Oliveira Caminha se propo”e a pensar a tarefa do filo’sofo que visa
alcançar a postura de desconstruça"o e ressignificaçâo do legado filoso’fico ja’ conso-
lidado. Segundo o autor, é no ato de esvaziar-se e de recomeçar, apontando novos
horizontes para o pensar, que encontramos caminhos para aproximar o ato de
filosofar com a loucura. O arriscar—se do filo’sofo para ver de forma diferente lhe
coloca na condiçâo de expressa”o da loucura enquanto um perturbador da ordem
que rompe com o habitual.
Robson Costa Cordeiro realizou um estudo sobre Don Quixote de Cervan-
tes a partir das obras Meditaço”es do Quixote, de Iose’ Ortega y Gasset, Vida de
Don Quu'bte y Sancho e DeI Sentimiento Trâgico de la Vida, de Miguel de Una.
muno. A vida humana foi mostrada sob a perspectiva do heroismo ou da tragé.
dia, da realidade e da irrealidade. Desse modo, na busca pela autenticidade da
vida, foi posslvel fazer o encontro do louco com o filôsofo.
Orlando Luiz de Arau’jo mostra a sensatez e a loucura na tragédia Ajax de
Sôfocles. Ele revela que, ao subverter o modelo épico, Sôfocles coloca em cena
um caràter avesso ao mundo no qual se desenvolve a democracia ateniense.
Suas reflexo'es apresentam duas facetas da tragédia de Sôfocles: de um lado,
apresenta-nos um herôi sensato, afim aos valores aristocrâticos da épica, de
outro, um herôi louco, inadequado ao desenho do novo sistema politico. Assim,
podemos identificar a transitividade do sa"o para o louco no contexto da
literatura clâssica grega.
Marinê de Souza Pereira apresenta Antonin Artaud na sua busca de ex-
pressar sua existência ainda que suspensa no ato de criaçâo. mutilada, frag-
mentada ou, em suas palavras, “mesmo que abortada”. Ele é mostrado como
um cri’tico da cultura ocidental, que é vista, por ele, como doente em seus en-
quadramentos, fechada em leis, sistemas, museus, mausoléus de arte e de vida.
Sua loucura se faz intensa por ser um artista que na"o concebe a arte separada
da Vida e que faz do pensamento um ato criativo.
Gilberto Aparecido Damiano nos mostra a perspectiva filosôfica de Michel
Henry, sua fenomenologia da Vida (ou fenomenologia nâo intencional), o surgi-
mento da barbarie no mundo moderno galileano e sua ideologia tecnocientffica -
que pretende expulsar a Sensibilidade, a Afetividade ou a Subjetividade, que sa"o
essenciais no mundo da vida (Lebenswelt). O autor mostra que Michel Henry com—
preende que o fundamento da existência e’ o invisivel, implicando noutro modo de
revelaçäo, cuja fenomenalidade nâo estâ no plano de luz do mundo e, sim, no do
pro’prio invisfvel que foge à toda representaçâo. Pelos caminhos da invisibilidade
podemos pensar possiveis relaço"es entre a filosofia e loucura.
Ângelo Monteiro tem como objetivo discutir a arte e a presença do divino
ou da loucura. Nesse sentido, a loucura brota da irrupçäo do divino, que é mais
significativa para o nosso interesse estético e para a prôpria Historia, do que
aquela causada pelas convençôes ou mâscaras sociais, segundo os estudos de
Michel Foucault. Assim, a loucura de Nietzsche e de Holderlin, jâ clâssicas na
literatura e na filosofia, constitui-se no exemplo mais simbôlico do cara’ter, por
assim dizer transcendental, dessa loucura.
Bernard Andrieu nos revela que falar com o corpo na"o define como falar o
corpo. Ele discute sobre a linguagem secreta do corpo, que pode expressar o
surgimento do corpo vivo em uma comunicaçâo na”o-verbal. O corpo vivo por
microorganismos involuntarios dos mu’sculos, as microtensôes dos membros, a
emotividade dos traços do rosto, das mâos, das pernas e dos pés na'o é apenas
na"o-verbal mas cinética de acordo com a Ciência criada por Ray Birdwhistell. A
partir dessas consideraçôes, Bernard Andrieu mostra, seguindo as inspiraçôes
de Foucault, como Artaud na”o busca evocar a sua loucura, mas manter-se nela
e mante“-lo como se ele mesmo estivesse ao longe. Pela arte. a loucura ganha
expressäo e se faz presente na sociedade para dizer sua verdade.
Maria Gorette Bezerra de Lucena e lraquitan de Oliveira Caminha discutem
sobre a origem da loucura e da tirania na Repu’bh’ca de Platäo. Consideram que a
reflexa'o sobre esse tema incide na teoria platônica da alma. Tal reflexa"o foi feita
a partir do livro lV da Repu’blica, em que o filôsofo apresenta a tese da tripartiçâo
da psyché e do livro IX com o exame acerca do modo como o homem tirânico
governa sua alma. Além da Repu’blica, foi também investigado o diélogo Timeu,
em que Platao aprofunda questôes concernentes à natureza da alma. pontua
regiôes especificas de assento no corpo (sôma) para as potências da psyché e
define a loucura (mania) como uma doença (nôson) da psyché. Destaca-se tam-
be’m o exame de alguns passos do Fedro em que o filôsofo apresenta va’rias for-
mas de manifestaçôes da loucura. Os autores concluem que, no contexto da
Repu’blica, a loucura e’ delineada como desraza”o (a’noian) e resulta da guerra
intema (sta’sis) entre as potências da psyché provocada pela associaçäo desme-
surada de Eros, o impulso ero’tico que tudo tenta, como os desejos na"o-
necessa’rios.
Sérgio Lul’s Persch apresenta o romance Spinoza de Auerbach. Ele revela
que o romance e’ dominado por conflitos sociais e psicolôgicos vividos pelo
autor no contexto da sua e1aboraça”o. O que nele predomina é a exteriorizaçâo
colérica do sentimento do autor em consequência das repreenso”es que surpre-
enderam o jovem estudante universita’rio. Esse sentimento se prolonga em
forma de uma experiência carregada de angu’stia ao longo de va’rios anos que
se seguiram à publicaçâo do romance. Desse modo, podemos ver a filosofia
saindo da academia e encontrando lugar na vida cotidiana. A revolta de Auer—
bach contra a sociedade do seu tempo pode fazer ligar filosofia e loucura.
Solange Maria Norjosa Gonzaga explorou as manifestaçôes da loucura
(mania) conhecidas na Antiguidade, em especial, a loucura ero’tica que So’crates
considera a mais bela e como o amor atinge nossa alma. A autora examina o
dia’logo Fedro de Platâo para tratar do amor, do belo e da genul’na arte de falar,
ou reto’rica. Sua intençäo e’ mostrar que no conjunto da obra contém uma criti—
ca à reto’rica do se’culo V e IV a. C em Atenas, na qual Plata”o associa a dialética à
verdadeira reto’rica enquanto arte de conduzir almas (psykagogia). Por este
caminho, e’ possivel conceber o amor como uma forma de loucura e seus bene—
f1’cios na"o podem ser compreendidos enquanto na"o conhecermos a natureza da
alma, suas paixôes e operaçôes.
Erick Vinicius Santos Gomes mostra Sôcrates, na condiçâo de amante da
alma de Alcibl’ades que deseja, por meio de procedimentos diale’ticos. indicar o
caminho da filosofia para “curar” ou “livrar”, na medida do possïvel, a psyché

11
do seu amado Alcibiades da tirania de si mesmo e dos desejos desmedidos, que
nada têm a ver com o bem e unidade da comunidade ateniense. Nesse aspecto,
o Eros socrâtico, que é sempre filosôfico, assume, no âmbito do diâlogo Primei-
r0 AIcibz’ades, uma postura dialética que é capaz de, com a permissâo do da-
i’môn do mestre, educar a alma. A esperança é depositada na filosofia que, na
visäo de Sôcrates, era a u’nica capaz de livrar Alcib1’ades da loucura da ignorân-
cia e o conduzir para o caminho da loucura filosôfica.
Josadaque Albuquerque da Silva, Nara Salles e Iéssica Cerejeira discutem
os procedimentos, métodos, teorias e pra’ticas da cena de uma pesquisa de
mestrado, do Programa de Pôs-Graduaçâo em Artes Cênicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Tal pesquisa foi realizada em formato de resi-
dência artistica durante os anos de 2014 a 2016 no Hospital Psiquia’trico Dr.
Ioa”o Machado, localizado na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. 0 traba—
lho deles faz parte do Programa lntegrado de Pesquisa, Ensino e Extensäo de-
nominado “Arte Contemporânea e Cultura Investigadas Para Conhecer
Apreender e Transformar", do Nu’cleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes
Cênicas e Espetaculares e de sua coligaçäo de pra’tica da cena o CRUOR Arte
Contemporânea, do Departamento de Artes, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. A loucura foi pensada a partir de sua articulaçâo com a arte.
A experiência vivida na interaçâo de corpos que se encontra e trocam afetos foi
possîvel fazer da loucura arte e da arte loucura.
Francisco de Assis Bezerra dos Santos nos fala sobre a clfnica psicanalftica
com psico’ticos que e’ desafiadora, mas na"o impossîvel. Ele revela que o sujeito
esquizofrênico consegue apaziguar a angu’stia de na”o ter o proprio corpo, de
na“o estar no pro’prio corpo através de maneiras de manter esse corpo mini-
mamente ligado. Nesse sentido, uma saida para a difi’cil relaçâo com o corpo,
caracteristica da esquizofrenia, é a invençäo por meio dessas ligaçôes. O esqui-
zofrênico inventa. Francisco Santos e Sebastiäo se ligam por meio da ana’lise
para constituir um lugar de fala onde o louco pode inventar—se enquanto lin-
guagem.
Gilfranco Lucena dos Santos produz seu escrito considerando o “conceito”
de loucura como meta’fora. Na”o parte de casos Clinicos, nem estuda esse con—
ceito desde a perspectiva da psiquiatria, da psicologia ou da psicanâlise, para
quem a “loucura”, ou aquilo que se chamou como “doença mental" ou “psiqui—
ca", é propriamente um “objeto” de estudo. Ela é bordada por ele como metâfo-
ra de um modo de comportar-se que, tendo—se feito objeto e conceito para essas
ciências, se tornou uma experiência limite de referência para outros modos de
comportamento. Desse modo, a loucura foi considerada na filosofia e na arte
como metâfora, como experiência limite, à qual o comportamento poético,
filosôfico ou mistico se assemelha, e se deixa descrever analogamente.

12
Esperamos que esse percurso possa indicar caminhos para se pensar a re-
laçâo entre filosofia e loucura no contexto da este’tica e da existência. Conside-
rar o filo’sofo e o louco como afirmaçôes da existência pode ser o sinal de que
se é possivel deixar marcas singulares de um estilo de existir no mundo em que
si vive. Compartilhar a filosofia e a loucura como expressôes da dignidade de
ser humano e’ a esperança presente em todos os textos ofertados generosa-
mente para você.

lraquitan de Oliveira Caminha e


Maria Gorette Bezerra de Lucena

13
DO ABISMO À OBRA

Véronique Donard'

PREÂMBULO

Tratar do tema da relaçâo entre arte e loucura significa, antes de tudo,


tomar necessa’n‘as precauçôes relacionadas à questa"o. Em primeiro lugar, con-
sideramos o termo "loucur‘a", de contornos imprecisos, por demais indutor de
imagina’n‘os litera’rios para se adequar ao sofrimento de quem sofre de um
transtorno mental. Caracterizar de “louco” uma pessoa que padece de uma
doença que afeta sua capacidade de raciocînio e de percepçäo da realidade é
condena’-lo a‘ exclusa”o da sociedade na qual ele precisa continuar se inscreven-
do, e que deve ajuda’-lo, na"o o categorizando, a manter viva a consciência de
que seu lugar entre os outros existe, e seguira’ existindo aconteça o que aconte-
cer. Com isso, na"o queremos dizer aqui que as hospitalizaçôes sejam desneces-
sa’rias: elas sa"o, às vezes, na”o somente inevita’veis, mas indispensa’veis. No
entanto, aquele que experimenta a devastaça”o de uma psicose deve poder
perceber, no olhar dos outros, que seu lugar no mundo na"o foi varrido pelo
julgamento excludente de sua familia e de sua sociedade. O manicômio mais
implaca’vel e cruel nâo e’ um edifîcio material: ele se concretiza na forma como
a sociedade enxerga a doença mental, excluindo de seu seio todo aquele que a
inquieta, a assusta, ou que, simplesmente, foge à sua norma.
Em segundo lugar, também devemos nos libertar da propensäo romântica
a pensar que a psicose transforma qualquer pessoa em artista, liberando e
potencializando sua criatividade. Isto so’ poderia ser verdade se considera’sse-
mos que todo ser humano possui, de alguma forma, dotes artisticos à espera de
serem despertados. Fora desta o’tica, temos que reconhecer que a doença men-
tal na”o imprime, magicamente, dom nenhum. No entanto, ela pode impelir o
sujeito que tem propensa”o para a arte ao gesto criativo, como uma urgência, e
é deste aspecto que trataremos no presente texto.

' Prof“. Dr". do Programa de Pôs—Graduaçäo em Psicologia Cll’nica; Universidade Catôlica de Pemambu-
co — UNICAP.

15
Começaremos por discutir a relaçäo entre genialidade, melancolia e ma-
nia. que jä fora. hâ 2500 anos aträs, apontada e interrogada por Aristôteles de
uma forma que permanece extremamente atual. Prosseguiremos explicitando
dois pontos chaves da teoria winnicottiana, que dizem respeito às experiências
de agonia primitiva que podem 5er vividas pelo bebê, e que imprimem ao de-
senvolvimento psicoafetivo uma falha que pode comprometer o equilibrio
psiquico de sua vida adulta. Por fim, revisitaremos o conceito freudiano de
sublimaçäo, tratando de aportar um enfoque diferente para a questäo. Para
tecer pontes entre teoria e experiência, ilustraremos nossas asserçôes psicana-
liticas com a historia e os escritos de um dos grandes gênios do teatro francês
do século XX, Antonin Artaud (1896-1948).

ARTE, MELANCOLIA E MANIA

O pn‘meiro espaço para pensar as relaço”es existentes entre sau’de mental e


cn‘aça'o artistica nos é oferecido pelos proprios artistas. Conhecemos tantos
compositores, poetas, dramaturges, pintores, escultores, escritores, filo’sofos que
apresentaram durante sua vida um desequilibrio psfquico, majoritariamente
com caracten’sticas melancôlicas ou mani’acas, que nos perguntamos se, de fato,
nâo existe uma relaçâo entre a Vivência desse tipo de patologia e suas produçôes.
Como apontamos mais acima, nâo se trata de uma interrogaçâo ine’dita, pois ja’
An'sto'teles, num texto que foi durante séculos considerado apôcrifo, mas que
hoje lhe é diretamente atribuido, intitulado “O Problema XXX", formulava a se-
guinte pergunta: “Por que razâo todos os que foram homens de exceçâo, no que
concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes säo manifestamente
melancôlicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile
negra e’ a origem?" (PIGEAUD, 1988, p. 83, traduçäo nossa).
Em sua introduçäo à traduçâo francesa da obra, lackie Pigeaud ressalta
que, se seguirmos o raciocinio de Aristo’teles, a po(i)esia (a criaçäo artl’stica),
longe de ser fruto de uma inspiraçäo divina, como o pensavam seus contempo-
râneos, seria, na verdade, a manifestaçâo de nossa prôpria fisiologia. Efetiva-
mente, vemos que Aristo’teles, acatando a etiologia proposta pela medicina de
sua e’poca, considera a melancolia como um mal que se enraiza numa disfunçäo
fisiolôgica, e nâo psiquica. Ressaltamos aqui o quäo esta visäo é atual, mesmo
se hoje se considera a complexidade da interligaçâo entre os fatores soma’tico e
psiquico. um podendo ser o detonador e o potencializador do outro. Por conse-
guinte, deduz Iackie Pigeaud, segundo Aristôteles, nâo seria o divino quem se
expressa pelo viés de nossa voz no ato criador, como se pensava entêo, mas
sim as “condiçôes de nosso corpo”. (PIGEAUD, 1988, p. 51, traduçâo nossa).
Discutindo esta asserçäo, nâo pensamos que devamos atribuir a um dis-
tu’rbio psicobiolôgico a genialidade propriamente dita, nem mesmo a criativi-

16
dade. Na”o obstante, constatamos que a fragilidade das bases psiquicas, ou as
tormentas induzidas por oscilaçôes hormonais ou neurolo’gicas, impelem im-
periosamente o sujeito ao ato psiquico. Como se näo houvesse outra saîda
frente a0 abismo sem fundo. Dar sentido, dar forma, confrontar-se ao nada,
lutar com o abismo e extirpar vigorosamente dele o que ali jaz de subjetivaçâo
e de sentido de ser (no sentido winnicottiano de sense of being), nos parece ser
o que caracteriza a essência do gesto criador, quando o artista se encontra
convocado ao ato pela sua prôpria fragilidade.

A AGONIA PRlMlTlVA E o ABlSMO D0 NÂO SER

Para tratar do vinculo entre transtorno mental e criaçâo, e’ necessa’rio es—


boçar os contornos do crisol onde se elaboram o sentimento e a experiência de
ser, em seus devaneios e fragilidades. Dito crisol — embora o trabalho que nele
se dâ na"o cesse durante toda nossa vida — se instala na primeira fase de nossa
existência. Esses momentos em que nossa psique ainda na"o integrou os dados
da realidade, näo estabeleceu uma delimitaçâo entre dentro e fora, eu e na"o-eu,
subjetividade e objetividade, sa"o os mais delicados para nossos processos psi—
colo’gicos, pois estes u’ltimos dependem absolutamente dos cuidados proporci-
onados por nosso ambiente. Deste modo, quando o ambiente falha em
demasia, guardamos para o resto de nossa vida traços do que Winnicott deno-
mina agonias primitivas, algo assim como o terror de cair num abismo sem
fundo (WINNICOTT, [197-?]). Abismo que, de fato, ja’ nos engolira quando éra—
mos bebês, nesses momentos em que fomos submetidos aos maus tratos ou,
simplesmente, aos cuidados insuficientemente bons dispensados por nossos
pro’ximos (WINNICOTT, [1952a] 1992). Queda vertiginosa da qual na"o guar-
damos rastros em nossa memo’ria que na"o sejam escuras, tenebrosas, e, às
vezes, terrificas sensaço”es. Sensaço”es que se reativam no decorrer de nossa
Vida, com mais ou menos intensidade, com mais ou menos frequência, fazendo-
nos temer uma queda sem fim que, de fato, ja’ ocorrera quando na"o ti’nhamos
os suficientes recursos lo’gicos e cognitivos para compreender o que sucedia.
Compreendemos melhor as consequências dessas vivências arcaicas, e
sua revivescência nos processos psico’ticos quando lemos o seguinte texto de
Antonin Artaud:

Sou um completo abismo. Aqueles que acreditavam que eu era capaz de uma
dor inteira, de uma bela dor, de angu’stias repletas e carnudas, de angu’stias
que sa'o uma mistura de objetos. uma trituraçâo efervescente de forças e nâo
um ponto suspenso
— com, no entanto, impulsos movimentados, desenraizantes, que vêm da con-
frontaçâo de minhas forças com esses abismos de absoluto oferecido,

17
[do confronta de forças de potente volume) e somente restam os volumino-
sos abismos, a interrupçäo. o frio - aqueles. portanto, que me atribufram
mais vida, que me pensaram num grau inferior à queda de si proprio, que me
creram mergulhado num barulho torturado, numa escuridäo violenta coma
qual eu lutava — encontram-se perdidos nas trevas do homem.
(ARTAUD, 1925, traduçâo nossa)

Até enta'o escn‘tor e ator bem-sucedido do teatro e do cinema franceses,


Antonin Artaud realiza uma viagem ao México, em 1936, para im'ciar-se junto
aos fndios Tarahumaras ao consumo do peiote. Este perfodo, marcado pelo
abuso de drogas, desencadeia. na sua volta à Europa, seu primeiro surto psicô-
tico. Em 1937, ele é expulso da Irlanda por vagabundagem e conduta desordei-
ra, e conduzido em camisa de força, pela policia francesa, ao manicômio.
Tratado com eletrochoques nos começo dos anos 40 — quando dito tratamento
se aplicava sem anestesia geral e com meios ainda rudimentares —, o artista
expressou da seguinte maneira, numa carta à sua mâe, o que sentia depois das
sesso'es: “Esse tratamento é, além do mais, uma horrenda tortura, porque sen-
te-se a cada aplicaçäo sufocar e cair como num abismo de onde seu pensamen—
t0 na'o retoma mais." (ARTAUD, 1944, apud DANCHIN; ROUMIEUX, 1996, p. 64,
traduçâo nossa).
Talvez seja essa a mais pura descriçâo do sentir de um sujeito psico’tico
frente à fragmentaça'o de seu ser: o pavor nâo tanto de que o pensamento se
engolfe no abismo, mas, que, do mesmo, ele na"o retorne mais. Trata-se de uma
experiência de desintegraça"o, de corrosa"o continua — no caso de certas psico-
ses de tipo esquizofrênico - do processo intelectivo e da possibilidade na"o sô
de pensar. mas de “se” pensar, de coincidir com o lugar psîquico desde onde se
pronuncia "Eu". Esse Eu, que e’ para todos o resultado de uma complexa edifi-
caça'o, aparece entêo como uma construçäo cujas bases trincadas pelos maus
tratos vacilam sob o simples sopro de uma brisa ligeira.

Debalx'o dessa crosta de ossos e de pele, que e’ minha cabeça, ha’ uma cons-
tante de angu’stias, na'o como um ponto moral, como os raciocînios de uma
natureza imbecilmente pontilhosa, ou habitada por um fermento de inquie-
tude no sentido da sua altura, mas como uma (decantaça‘o) dentro, como a
espoliaçâo de minha substância vital, como a perda fi’sica e essencial
(quero dizer perda da essência) de um sentido.
(ARTAUD, 1925, traduçäo nossa)

Qual o ato possîvel, entao, frente à desintegraçäo, à destruiçâo, senâo o de


edificar, elaborar? Aqui, cobra todo seu sentido a afirmaçäo de Artaud quando
escreve, pouco antes de sua morte, que:

Ninguém jamais escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, inventou,


que nâo fosse, de fato, para sair do inferno.
(ARTAUD, 1948, traduça'o nossa)

18
A CONTINUIDADE D0 SER

Os cuidados proporcionados por nosso ambiente, quando bebês, nos


permitem experimentar uma continuidade em nosso ser, que nos possibilitarâ
percebermo-nos como seres inteiros, cuja dinâmica vital na"o e’ ameaçada por
perigos sempre iminentes. Segundo Winnicott, nosso encontro com a realidade
exten’or se dâ num entre dois criativo entre mâe e bebê, onde se elabora o
nosso sentimento de existir, que é o centro de gravidade do nosso Self, que, por
sua vez, e’ oriundo de nossa criatividade inata, que Winnicott equipara à nossa,
também inata, capacidade de amar (WINNICOTT, [1951 / 1971] 2000). E, como
vemos, este centro de gravidade se edifica entre a realidade exterior e nosso
espaço psiquico interno, num espaço potencial, ou transicional, marcado por
uma dinâmica de ilusäo (Ibidem). Insisto aqui sobre o fato de que o termo “ilu-
sa”o" deve, na sua asserça”o winnicottiana, ser mantido na radicalidade do para—
doxo que o fundamenta, ou seja, que a realidade é criada ao tempo que e’
encontrada. O pensamento de Winnicott, mantido em sua radicalidade, é pro-
fundamente ontolo’gico, e compreendemos que, segundo ele, a realidade vem a
ser como uma mate’ria malea’vel, na qual e pela qual o ser adve’m, nesse brincar
relacional do sujeito ao seu objeto que permite o desabrochar do ser na”o so’ do
objeto, mas igualmente do sujeito, ambos transformados e verdadeiramente
criados pela mesma relaça”o que os interligou.
A a’rea neutra de experiência constitul’da pelo espaço potencial toma-se,
no adulto, um modo de expen‘mentaça”o interna na qual a dinâmica continua
sendo a da ilusâo (Ibidem). Isto lhe permite transformar a elaboraçâo dolorosa
da oposiçäo entre subjetividade e objetividade numa atividade criativa que
culmina num tipo de acme do Eu e lhe possibilita experimentar a continuidade
de seu ser (WINNICOTT, [1967], 2000). É desse lugar de onde Artaud escreve:

E existe um ponto fosforoso onde se encontra toda a realidade. pore’m modi-


ficada, metamorfoseada, — e pelo que?? - um ponto de uma utilizaça'o ma’gica
das coisas.
(ARTAUD, 1925, traduçâo nossa).

Nessa experiência, a dor se elabora em prazer, e este prazer nascido da uti-


lizaça”o da ilusâo é suscetîvel de se comunicar a outros. Os individuos têm entêo o
sentimento de pertencer a um grupo social, constitul’do pela coincidência de suas
a’reas transicionais e de suas experiências iluso’rias. Assim, a criatividade do
adulto, qualquer que seja sua configuraça"o psicofisiolo’gica, consiste, segundo
Winnicott, em “conservar ao longo da vida algo que, propriamente falando, faz
parte da expen‘ência da primeira infância: a capacidade de criar o mundo."
(WINNICOTT, [1970b] 2000, p. 44, traduça"o nossa). Para o autor, a obra de arte
na"o é o produto puro do psiquismo do artista nem o fruto de sua percepça”o obje-

19
tiva do mundo que o envolve. Ela nasce de um entre dois, de um terceiro mundo,
para dar a sua vez nascimento a um novo mundo, um novo objeto. nessa luta
solita’ria do artista que é a de cada ser humano.
No entanto, na”o estamos tratando, aqui, do viver criativo prôprio a0 ser
humano de modo geral. Estamos tentando compreender como a criaçäo pode
se dar numa existência marcada pelo abismo e pelo nada. O que ocorre quando
a dinâmica transicional se encontra travada, quando o fracasso do trabalho da
desilusa'o e da sobrevivência do objeto à sua destrutividade (WINNICOTT,
[1968] 2000) — que completam a obra da ilusâo — na"o permitiu a0 sujeito ter
acesso à realidade compartilhada por todos?
Aqui, e o exemplo do texto de Artaud o corrobora, Winnicott estabelece
uma relaçäo entre a ilusâo que preside aos fenômenos transicionais. e a loucu-
ra, numa perspectiva voltada para a vida, jâ que, para ele, a dinâmica transicio-
nal é “uma loucura permitida, loucura que existe dentro do quadro da sau’de
mental”, embora pontue que “toda outra loucura e’ deploràvel e deve ser consi-
derada como doença” [WINNICOTT, [1970a] 2000, traduçäo nossa) 1. Essa
loucura permitida persistiria no estado adulto, em zonas de compromisso,
como a arte ou a religiäo, nas quais a “loucura” vivida por uns se vê tolerada
pelos outros. Winnicott explicita entêo que o termo “psicose”, ou seja, a ques—
ta”o da sau’de mental do individuo, so’ aparece quando se vê necessa’rio “mos-
trar-nos particularmente permissivos quanto a0 individuo no que diz respeito
a essa zona intermedia’ria” (WINNICOTT, [1952b] 1992, p. 192-193, traduçäo
nossa). De certa forma, para Winnicott, a questäo da sau’de mental é uma ques-
tâo de tolerância social. Teria Artaud enlouquecido a esse ponto, se, ale’m de
seu consumo de drogas, ele na“o tivesse sido asilado e submetido a intensivos e
sucessivos tratamentos de eletrochoques? Impressiona 1er sua lucidez quanto
à sua fragilidade, anos antes de sua primeira hospitalizaçâo, e ser testemunha
do quanto o escrever lhe permitia “se escrever”, se constituir, se refazer.

Se, pelo menos, fosse possîvel tâo somente saborear seu nada, se fosse pos-
sivel descansar bem no seu nada, e que esse nada nâo fosse um certo tipo de
ser mas nao fosse exatamente a morte.
É tâo duro na”o mais existir. mâo estar mais em algo. A verdadeira dor e’ de
sentir, em si, se mover o pensamento. Mas o pensamento como um ponto
certamente na"o é um sofrimento.
Estou no ponto onde na”o toco mais na vida, embora tenha em mim todos os
apetites e a titilaçâo insistente do ser. Na"o tenho mais que uma u’nica ocupa-
çâo, me refazer.
(ARTAUD, 1925, traduçäo nossa)

1 Vemos que o autor estabelece claramente uma distinçäo entre dois tipos de “loucura”: o primeiro diz
respelto ao fato de se relacionar com uma realidade subjetiva, que foi achada ao tempo que criada, e, por
consegumte, distm'ta da realidade concreta; o segundo é relacionado com a psicose e diz respeito à patologia.

20
o TRABALHO DA SUBLIMAÇÂO

Chegamos aqui ao ponto mais crucial de nossa reflexäo. por ser o mais
conceitual. Em psicana’lise, denomina-se sublimaçâo o processo psîquico que
permite dar à pulsa"o, quando esta engendra um conflito psîquico, um destino
que na"o seja patolo’gico — engendrador de novos conflitos —, mas, ao contra’rio,
se veja dirigido para um compartilhamento e um reconhecimento social, mes-
mo que este seja reduzido. Nao se escreve sena”o para ser lido, na“o se expôe
uma obra sena'o para que o olhar do outro a revele, mesmo que seja negando-a.
Embora encontremos o processo de sublimaçâo na continuidade, e às vezes na
aparente banalidade de nossas Vidas, tratarei aqui deste mecanismo quando
ele preside à criaçäo artistica.
“Chama-se po(i)esia a causa da passagem do na"o-ser à existência."
(PLATÂO, p.72, traduçäo nossa). Plata"o, e do mesmo modo Aristôteles, nomeiam
poiesis o registro ontolo’gico, causal, do ato criador — mantemos aqui, para eximi-
lo da reduçäo ao gênero litera’rio, o termo poiesis e na"o poesia, que encontramos
em numerosas traduçôes. Sabemos que, para a filosofia grega, a causah'dade se
refere ao ser, e a causa final ao registro metafisico. Se considerarmos o humano
cn'ador desde o ponto de vista psicolo’gico, podemos entêo nos perguntar: qual
seria o nome do mecanismo psîquico pro’prio à poiesis? Se a poiesis consiste em
passar do na"o-ser à existência, o que faz um material psîquico mortl’fero, engen-
drador ou potencializador das pulsôes de morte — fantasias, traços mne’sicos,
energia — se elaborar em representaçôes que teçam os laços caracterîsticos do
trabalho das pulsôes de vida: laços sociais, mas, sobretudo, laços psîquicos?
Creio que a resposta, paradoxalmente, é clara: trata-se precisamente do
mecanismo de sublimaçâo. Paradoxalmente, porque as elaboraçôes freudianas
e os estudos atuais sobre a sublimaçâo ainda na"o integraram de modo esta’vel
tanto as pulsôes de morte quanto a energia que lhes e’ pro’pria. Na"o obstante,
aparece aqui com clareza o quanto o pro’prio do trabalho psîquico sublimato’rio
opera com uma mate’ria prima extremamente mortifera. Continuando o dia’lo-
go com a filosofia grega, e, desta vez, numa perspectiva aristote’lica, conside-
ramos que, para que se possa passar do na"o-ser ao ser, a quididade do que veio
a ser pela poiesis revela que este mesmo ser ja’ se encontrava, em potência, no
na"o-ser. Assim, a sublimaçâo, mais do que transformar o nada em algo, a morte
em vida, seria o mecanismo psiquico que, em vez de travar os processos psi-
quicos os liberta, atrevendo-se a mergulhar nas profundidades do na”o-ser,
para, do abismo. extirpar vigorosamente o que ali jaz de vida. Por isso, e’ um
processo extremamente solita’rio, oculto, dirl’amos ate’ heroico para o sujeito
que se atreve, tal Orfeu — patrono das artes — a encarar o reino da morte, to-
cando e cantando para Hades, beirando o definitivo na"o retorno de seu ser. E,
quando este por fim retorna, sabemos que o faz tragicamente incompleto...

21
Me seria, às vezes, suficiente uma u’nica palavra, uma simples pequena pala.
vra sem importância, para ser grande, para falar com o tom dos profetas,
uma palavra testemunha, uma palavra precisa, uma palavra sutil, uma pala.
vra bem macerada nas minhas medulas, safda de mim, que se mantivesse na
extrema ponta de meu ser, e que, para todo o mundo, näo seria nada.
Eu sou testemunha, a u’nica testemunha de mim mesmo.
Essa casca de palavras, essas imperceptfveis transformaçôes de meu pensa-
mento em voz baixa, dessa pequena parte de meu pensamento da qual pre-
tendo jâ tenha sido formulada, e que aborta, sou o u’nico juiz capaz de medir-
lhe o alcance.
(ARTAUD, 1925, traduçäo nossa)

No processo alquîmico, na"o se sublima sena”o a matéria previamente des-


truida. Por outra parte, todas as religiôes se fundamentam sobre um paradig-
ma sacrificial que revela a possibilidade da experiência da transcende“ncia num
aqui e agora que se da’ na morte de uma v1’tima — mesmo sendo esta de origem
vegetal — que, representando o pro’prio sacrificador, permite a este u’ltimo par-
ticipar da realidade divina (DONARD, 2009).
Do mesmo modo, o processo sublimatorio na arte na"o se dâ senâo a partir
da morte, que, como no sacrificio, se da’ por procuraçäo. Morte da matéria,
modelagem do barro, crueldade do processo de escritura, destruiça'o dos es-
quemas de existência para dar origem a um novo sentido. O que ha’ de pior no
homem, seus terrores, sua prôpria destrutividade, seus medos, servem assim
de material para uma elaboraçäo psiquica que, pelo trabalho sobre a matéria
concreta que passa a representar o conteu’do psîquico bruto, permite às pul-
so"es de vida estabelecerem vînculos ali mesmo onde as pulsôes de morte os
estao continuamente destruindo.

*******

Poderl’amos continuar esta reflexäo fazendo-a dialogar com as teorias de


Ferenczi e de Piera Aulagnier sobre as repercusso”es do trauma em nosso devir
psîquico. Para exemplo, Ferenczi atribui ao fator traumatico o despertar e o
acelerar de nossa capacidade intelectiva. Na"o obstante, é hora de deixarmos
Euridice voltar aos braços de Hades. Em outro momento, talvez tenhamos a
oportunidade e o prazer de voltarmos a mergulhar juntos para sondar intelec-
tualmente as profundidades do ser. Mas, do confronto a esse abismo, voltare-
mos sempre sôs e incompletos.

REFERÊNCIAS

ARTAUD, A. (1925). Le Pèse-nerfs. Disponfvel em: <https://wikilivres.ca/wiki/Le_P%C3


%A8se-nerfs>. Acesso em: 19 maio 2017.

ARTAUD, A. (1948). Van Gogh, Ie suicidé de Ia société. Paris: Gallimard, 2001.

22
DANCHIN, L.; ROUMIEUX, A. Artaud et l’asile, t. 2, Paris: Séguier, 1996.
DONARD, V. Du meurtre au sacrfiice. Psychanaylse et dynamique spirituelle. Paris: Cerf.
2009.
PIGEAUD, l. An’stote. L’Homme de génie et la mélancolie. Problème XXX, 1. Paris:
Éditions Rivages, 1988.

PLATON, Le banquet ou De l’amour. Traduction et notice Émile Chambry. Disponivel em:


http: //www.ac-grenoble.fr/ PhiloSophie/0le /file/platon_banquet.pdf. Acesso em: 19
maio 20 17.

WINNICOT’I‘, D.W. De l’individuation (1970a). In: La crainte de l’effondrement et autres


situations cliniques. Paris: Gallimard, 2000. p. 328-329.

WINNICOTT, D.W. (1952a). L’angoisse associée à l’insécurité. In: De la pédiatrie à la


psychanaylse. Paris: Payot, 1992. p. 198-202.

WINNICO’I‘I‘, D.W. (1968). L'utilisation de l’objet et le mode de relation à l’objet au


travers des identifications. In: jeu et réalité. Paris: Gallimard, 2000. p. 162-176.
WINNICOTT. D.W. [197—?]. La crainte de l’effondrement, In: La crainte de I’efi‘ondrement
et autres situations cliniques. Paris: Gallimard, 2000. p. 205-21 6.

WINNICOT’I‘, D.W. (1967). Le concept d’individu sain. In: Conversations ordinaries.


Paris: Gallimard, 2000. p. 23-42.
WINNICOTT, D.W. [1962). Intégration du moi au cours du développement de l’enfant.
In: Processus de maturation chez l’enfant, Développement affectif et environnement.
Paris: Payot, 2000. p. 9-18.

WINNICO'I'I‘, D.W. (195 1/1971). Objets transitionnels et phénomènes transitionnels. In:


jeu et réalité. Paris: Gallimard, 2000. p. 7-39.

WINNICO'I‘I‘, D.W. (1952b). Psychose et soins maternels. In: De la pédiatrie à Ia


psychanaylse. Paris: Payot, 1992. p. 187-197.

WINNICOTT, D.W. (1970b) Vivre créativement. In: Conversations ordinaires, Paris:


Gallimard, 2000. p. 43-59.

23
presente Iivro tem a intençâo de convidar você para
apreciar e discutir diferentes compreensôes sobre a
relaçäo entre filosofia e Ioucura. Todos os textos sa'o
frutos das apresentaçôes dos trabalhos no Il Colo’quio
Internacional Este’tica e Existe"ncia, realizado pelo Grupo de
Filosofia da Percepçäo com o apoio Programa de Po’s—graduaça"o
em Filosofia e do Centro de Ciencias Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal da Parafba, na cidade de Joa”o Pessoa-PB,
em 2016, que discutiu as relaçôes entre Filosofia e Loucura.

Reunimos diferentes pensadores para debater sobre as


aproximaçôes que podemos estabelecer entre a pra’tica do
filosofar e a expressa’b da Ioucura. Os resultados dessas
discussôes deram origem a0 conjunto desses textos da
coletânea organizada por Iraquitan de Oliveira Caminha e Maria
Gorette Bezerra de Lucena. Convidamos o leitor para dialogar
sobre a possibilidade de compreender o ato de ser filo’sofo e de
ser louco como manifestaçôes do sofrimento humano, que
busca expressar diferentes modos de existir.

9
ÎUÎÏÜIÎ ÎWÎIÎIÎ IÎ
YSREï—H 590930

Você também pode gostar