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E EXISTENCIA
FILOSOFIA E LOUCURA
"M" LedilttborearArs
Comité Cientifico
(ORGANIZADORES)
ESTÉTICA E EXISTÊNCIA:
FILOSOFIA E LOUCURA
1ë ediçäo‘ '
LiberArs
Sa“o Paulo — 2018
ESTÉTICA E EXISTÊNCIA: FILOSOFIA E LOUCURA
© 2018, Editora LiberArs Ltda.
ISBN 978-85-9459-093-0
Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho
Revisäo técm‘ca
Cesar Lima
Editoraçâo e capa
Editora LiberArs
Ioice Cristina Soares
ISBN 978-85-9459-093—0
CDD 100
CDU l
Todos os direitos reservados. A reproduçâo. ainda que parcial, por qualquer meio,
das pa’ginas que compôem este livro, para uso nâo individual, mesmo para fins didâticos,
sem autorizaçâo escn'ta do editor, é ilfcita e constitui uma contrafaçäo danosa à cultura.
Foi feito o depôsito legal.
APRESENTAÇÂO ....................................................................................... 9
DO ABISMO À OBRA
VÉRONIQUE DONARD ................................................................................. 15
FILOSOFIA, LOUCURA
E EXISTÊNCIA SINGULAR
IRAQUITAN DE OLIVEIRA CAMINHA.................................................... 25
SENSATE’Z E LO’UCURA ’
NA TRAGEDIA AIAX, DE S’OFOCLES
ORLANDO LUIZ DE ARAUIO ...................................................................... 47
ANTONIN ARTAUD:
o SUICIDA/DO DA SOCIEDADE
MARINÊ DE SOUZA PEREIRA ................................................................... 59
LOUCA CULTURA:
BARBARIE E FENOMENOLOGIA
DA VIDA DE MICHEL HENRY
GILBERTO APARECIDO DAMIANO......................................................... 69
A MANIA DO AMOR
SOLANGE MARIA NORIOSA GONZAGA ................................................ 123
(LOU) CURE-SEL-
UMA ABORDAGEM ARTAUDIANA_DA EXISTÊNCIA EM
INSTAURAÇÔES CÊNICAS NO HOSPITAL
PSIQUIÂTRICQDR. IOÂO MACHADO
JOSADAQUE ALBUQUERQUE DA SILVA
NARA SALLES
JÉSSICA CEREIEIRA ...................................................................................... 147
FILOSOFIA, ARTE
E LOUCURA COMO METAFORA
GILFRANCO LUCENA DOS SANTOS ....................................................... 171
APRESENTAÇÂO
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do seu amado Alcibiades da tirania de si mesmo e dos desejos desmedidos, que
nada têm a ver com o bem e unidade da comunidade ateniense. Nesse aspecto,
o Eros socrâtico, que é sempre filosôfico, assume, no âmbito do diâlogo Primei-
r0 AIcibz’ades, uma postura dialética que é capaz de, com a permissâo do da-
i’môn do mestre, educar a alma. A esperança é depositada na filosofia que, na
visäo de Sôcrates, era a u’nica capaz de livrar Alcib1’ades da loucura da ignorân-
cia e o conduzir para o caminho da loucura filosôfica.
Josadaque Albuquerque da Silva, Nara Salles e Iéssica Cerejeira discutem
os procedimentos, métodos, teorias e pra’ticas da cena de uma pesquisa de
mestrado, do Programa de Pôs-Graduaçâo em Artes Cênicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Tal pesquisa foi realizada em formato de resi-
dência artistica durante os anos de 2014 a 2016 no Hospital Psiquia’trico Dr.
Ioa”o Machado, localizado na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. 0 traba—
lho deles faz parte do Programa lntegrado de Pesquisa, Ensino e Extensäo de-
nominado “Arte Contemporânea e Cultura Investigadas Para Conhecer
Apreender e Transformar", do Nu’cleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes
Cênicas e Espetaculares e de sua coligaçäo de pra’tica da cena o CRUOR Arte
Contemporânea, do Departamento de Artes, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. A loucura foi pensada a partir de sua articulaçâo com a arte.
A experiência vivida na interaçâo de corpos que se encontra e trocam afetos foi
possîvel fazer da loucura arte e da arte loucura.
Francisco de Assis Bezerra dos Santos nos fala sobre a clfnica psicanalftica
com psico’ticos que e’ desafiadora, mas na"o impossîvel. Ele revela que o sujeito
esquizofrênico consegue apaziguar a angu’stia de na”o ter o proprio corpo, de
na“o estar no pro’prio corpo através de maneiras de manter esse corpo mini-
mamente ligado. Nesse sentido, uma saida para a difi’cil relaçâo com o corpo,
caracteristica da esquizofrenia, é a invençäo por meio dessas ligaçôes. O esqui-
zofrênico inventa. Francisco Santos e Sebastiäo se ligam por meio da ana’lise
para constituir um lugar de fala onde o louco pode inventar—se enquanto lin-
guagem.
Gilfranco Lucena dos Santos produz seu escrito considerando o “conceito”
de loucura como meta’fora. Na”o parte de casos Clinicos, nem estuda esse con—
ceito desde a perspectiva da psiquiatria, da psicologia ou da psicanâlise, para
quem a “loucura”, ou aquilo que se chamou como “doença mental" ou “psiqui—
ca", é propriamente um “objeto” de estudo. Ela é bordada por ele como metâfo-
ra de um modo de comportar-se que, tendo—se feito objeto e conceito para essas
ciências, se tornou uma experiência limite de referência para outros modos de
comportamento. Desse modo, a loucura foi considerada na filosofia e na arte
como metâfora, como experiência limite, à qual o comportamento poético,
filosôfico ou mistico se assemelha, e se deixa descrever analogamente.
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Esperamos que esse percurso possa indicar caminhos para se pensar a re-
laçâo entre filosofia e loucura no contexto da este’tica e da existência. Conside-
rar o filo’sofo e o louco como afirmaçôes da existência pode ser o sinal de que
se é possivel deixar marcas singulares de um estilo de existir no mundo em que
si vive. Compartilhar a filosofia e a loucura como expressôes da dignidade de
ser humano e’ a esperança presente em todos os textos ofertados generosa-
mente para você.
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DO ABISMO À OBRA
Véronique Donard'
PREÂMBULO
' Prof“. Dr". do Programa de Pôs—Graduaçäo em Psicologia Cll’nica; Universidade Catôlica de Pemambu-
co — UNICAP.
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Começaremos por discutir a relaçäo entre genialidade, melancolia e ma-
nia. que jä fora. hâ 2500 anos aträs, apontada e interrogada por Aristôteles de
uma forma que permanece extremamente atual. Prosseguiremos explicitando
dois pontos chaves da teoria winnicottiana, que dizem respeito às experiências
de agonia primitiva que podem 5er vividas pelo bebê, e que imprimem ao de-
senvolvimento psicoafetivo uma falha que pode comprometer o equilibrio
psiquico de sua vida adulta. Por fim, revisitaremos o conceito freudiano de
sublimaçäo, tratando de aportar um enfoque diferente para a questäo. Para
tecer pontes entre teoria e experiência, ilustraremos nossas asserçôes psicana-
liticas com a historia e os escritos de um dos grandes gênios do teatro francês
do século XX, Antonin Artaud (1896-1948).
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dade. Na”o obstante, constatamos que a fragilidade das bases psiquicas, ou as
tormentas induzidas por oscilaçôes hormonais ou neurolo’gicas, impelem im-
periosamente o sujeito ao ato psiquico. Como se näo houvesse outra saîda
frente a0 abismo sem fundo. Dar sentido, dar forma, confrontar-se ao nada,
lutar com o abismo e extirpar vigorosamente dele o que ali jaz de subjetivaçâo
e de sentido de ser (no sentido winnicottiano de sense of being), nos parece ser
o que caracteriza a essência do gesto criador, quando o artista se encontra
convocado ao ato pela sua prôpria fragilidade.
Sou um completo abismo. Aqueles que acreditavam que eu era capaz de uma
dor inteira, de uma bela dor, de angu’stias repletas e carnudas, de angu’stias
que sa'o uma mistura de objetos. uma trituraçâo efervescente de forças e nâo
um ponto suspenso
— com, no entanto, impulsos movimentados, desenraizantes, que vêm da con-
frontaçâo de minhas forças com esses abismos de absoluto oferecido,
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[do confronta de forças de potente volume) e somente restam os volumino-
sos abismos, a interrupçäo. o frio - aqueles. portanto, que me atribufram
mais vida, que me pensaram num grau inferior à queda de si proprio, que me
creram mergulhado num barulho torturado, numa escuridäo violenta coma
qual eu lutava — encontram-se perdidos nas trevas do homem.
(ARTAUD, 1925, traduçâo nossa)
Debalx'o dessa crosta de ossos e de pele, que e’ minha cabeça, ha’ uma cons-
tante de angu’stias, na'o como um ponto moral, como os raciocînios de uma
natureza imbecilmente pontilhosa, ou habitada por um fermento de inquie-
tude no sentido da sua altura, mas como uma (decantaça‘o) dentro, como a
espoliaçâo de minha substância vital, como a perda fi’sica e essencial
(quero dizer perda da essência) de um sentido.
(ARTAUD, 1925, traduçäo nossa)
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A CONTINUIDADE D0 SER
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tiva do mundo que o envolve. Ela nasce de um entre dois, de um terceiro mundo,
para dar a sua vez nascimento a um novo mundo, um novo objeto. nessa luta
solita’ria do artista que é a de cada ser humano.
No entanto, na”o estamos tratando, aqui, do viver criativo prôprio a0 ser
humano de modo geral. Estamos tentando compreender como a criaçäo pode
se dar numa existência marcada pelo abismo e pelo nada. O que ocorre quando
a dinâmica transicional se encontra travada, quando o fracasso do trabalho da
desilusa'o e da sobrevivência do objeto à sua destrutividade (WINNICOTT,
[1968] 2000) — que completam a obra da ilusâo — na"o permitiu a0 sujeito ter
acesso à realidade compartilhada por todos?
Aqui, e o exemplo do texto de Artaud o corrobora, Winnicott estabelece
uma relaçäo entre a ilusâo que preside aos fenômenos transicionais. e a loucu-
ra, numa perspectiva voltada para a vida, jâ que, para ele, a dinâmica transicio-
nal é “uma loucura permitida, loucura que existe dentro do quadro da sau’de
mental”, embora pontue que “toda outra loucura e’ deploràvel e deve ser consi-
derada como doença” [WINNICOTT, [1970a] 2000, traduçäo nossa) 1. Essa
loucura permitida persistiria no estado adulto, em zonas de compromisso,
como a arte ou a religiäo, nas quais a “loucura” vivida por uns se vê tolerada
pelos outros. Winnicott explicita entêo que o termo “psicose”, ou seja, a ques—
ta”o da sau’de mental do individuo, so’ aparece quando se vê necessa’rio “mos-
trar-nos particularmente permissivos quanto a0 individuo no que diz respeito
a essa zona intermedia’ria” (WINNICOTT, [1952b] 1992, p. 192-193, traduçäo
nossa). De certa forma, para Winnicott, a questäo da sau’de mental é uma ques-
tâo de tolerância social. Teria Artaud enlouquecido a esse ponto, se, ale’m de
seu consumo de drogas, ele na“o tivesse sido asilado e submetido a intensivos e
sucessivos tratamentos de eletrochoques? Impressiona 1er sua lucidez quanto
à sua fragilidade, anos antes de sua primeira hospitalizaçâo, e ser testemunha
do quanto o escrever lhe permitia “se escrever”, se constituir, se refazer.
Se, pelo menos, fosse possîvel tâo somente saborear seu nada, se fosse pos-
sivel descansar bem no seu nada, e que esse nada nâo fosse um certo tipo de
ser mas nao fosse exatamente a morte.
É tâo duro na”o mais existir. mâo estar mais em algo. A verdadeira dor e’ de
sentir, em si, se mover o pensamento. Mas o pensamento como um ponto
certamente na"o é um sofrimento.
Estou no ponto onde na”o toco mais na vida, embora tenha em mim todos os
apetites e a titilaçâo insistente do ser. Na"o tenho mais que uma u’nica ocupa-
çâo, me refazer.
(ARTAUD, 1925, traduçäo nossa)
1 Vemos que o autor estabelece claramente uma distinçäo entre dois tipos de “loucura”: o primeiro diz
respelto ao fato de se relacionar com uma realidade subjetiva, que foi achada ao tempo que criada, e, por
consegumte, distm'ta da realidade concreta; o segundo é relacionado com a psicose e diz respeito à patologia.
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o TRABALHO DA SUBLIMAÇÂO
Chegamos aqui ao ponto mais crucial de nossa reflexäo. por ser o mais
conceitual. Em psicana’lise, denomina-se sublimaçâo o processo psîquico que
permite dar à pulsa"o, quando esta engendra um conflito psîquico, um destino
que na"o seja patolo’gico — engendrador de novos conflitos —, mas, ao contra’rio,
se veja dirigido para um compartilhamento e um reconhecimento social, mes-
mo que este seja reduzido. Nao se escreve sena”o para ser lido, na“o se expôe
uma obra sena'o para que o olhar do outro a revele, mesmo que seja negando-a.
Embora encontremos o processo de sublimaçâo na continuidade, e às vezes na
aparente banalidade de nossas Vidas, tratarei aqui deste mecanismo quando
ele preside à criaçäo artistica.
“Chama-se po(i)esia a causa da passagem do na"o-ser à existência."
(PLATÂO, p.72, traduçäo nossa). Plata"o, e do mesmo modo Aristôteles, nomeiam
poiesis o registro ontolo’gico, causal, do ato criador — mantemos aqui, para eximi-
lo da reduçäo ao gênero litera’rio, o termo poiesis e na"o poesia, que encontramos
em numerosas traduçôes. Sabemos que, para a filosofia grega, a causah'dade se
refere ao ser, e a causa final ao registro metafisico. Se considerarmos o humano
cn'ador desde o ponto de vista psicolo’gico, podemos entêo nos perguntar: qual
seria o nome do mecanismo psîquico pro’prio à poiesis? Se a poiesis consiste em
passar do na"o-ser à existência, o que faz um material psîquico mortl’fero, engen-
drador ou potencializador das pulsôes de morte — fantasias, traços mne’sicos,
energia — se elaborar em representaçôes que teçam os laços caracterîsticos do
trabalho das pulsôes de vida: laços sociais, mas, sobretudo, laços psîquicos?
Creio que a resposta, paradoxalmente, é clara: trata-se precisamente do
mecanismo de sublimaçâo. Paradoxalmente, porque as elaboraçôes freudianas
e os estudos atuais sobre a sublimaçâo ainda na"o integraram de modo esta’vel
tanto as pulsôes de morte quanto a energia que lhes e’ pro’pria. Na"o obstante,
aparece aqui com clareza o quanto o pro’prio do trabalho psîquico sublimato’rio
opera com uma mate’ria prima extremamente mortifera. Continuando o dia’lo-
go com a filosofia grega, e, desta vez, numa perspectiva aristote’lica, conside-
ramos que, para que se possa passar do na"o-ser ao ser, a quididade do que veio
a ser pela poiesis revela que este mesmo ser ja’ se encontrava, em potência, no
na"o-ser. Assim, a sublimaçâo, mais do que transformar o nada em algo, a morte
em vida, seria o mecanismo psiquico que, em vez de travar os processos psi-
quicos os liberta, atrevendo-se a mergulhar nas profundidades do na”o-ser,
para, do abismo. extirpar vigorosamente o que ali jaz de vida. Por isso, e’ um
processo extremamente solita’rio, oculto, dirl’amos ate’ heroico para o sujeito
que se atreve, tal Orfeu — patrono das artes — a encarar o reino da morte, to-
cando e cantando para Hades, beirando o definitivo na"o retorno de seu ser. E,
quando este por fim retorna, sabemos que o faz tragicamente incompleto...
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Me seria, às vezes, suficiente uma u’nica palavra, uma simples pequena pala.
vra sem importância, para ser grande, para falar com o tom dos profetas,
uma palavra testemunha, uma palavra precisa, uma palavra sutil, uma pala.
vra bem macerada nas minhas medulas, safda de mim, que se mantivesse na
extrema ponta de meu ser, e que, para todo o mundo, näo seria nada.
Eu sou testemunha, a u’nica testemunha de mim mesmo.
Essa casca de palavras, essas imperceptfveis transformaçôes de meu pensa-
mento em voz baixa, dessa pequena parte de meu pensamento da qual pre-
tendo jâ tenha sido formulada, e que aborta, sou o u’nico juiz capaz de medir-
lhe o alcance.
(ARTAUD, 1925, traduçäo nossa)
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REFERÊNCIAS
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DANCHIN, L.; ROUMIEUX, A. Artaud et l’asile, t. 2, Paris: Séguier, 1996.
DONARD, V. Du meurtre au sacrfiice. Psychanaylse et dynamique spirituelle. Paris: Cerf.
2009.
PIGEAUD, l. An’stote. L’Homme de génie et la mélancolie. Problème XXX, 1. Paris:
Éditions Rivages, 1988.
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presente Iivro tem a intençâo de convidar você para
apreciar e discutir diferentes compreensôes sobre a
relaçäo entre filosofia e Ioucura. Todos os textos sa'o
frutos das apresentaçôes dos trabalhos no Il Colo’quio
Internacional Este’tica e Existe"ncia, realizado pelo Grupo de
Filosofia da Percepçäo com o apoio Programa de Po’s—graduaça"o
em Filosofia e do Centro de Ciencias Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal da Parafba, na cidade de Joa”o Pessoa-PB,
em 2016, que discutiu as relaçôes entre Filosofia e Loucura.
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YSREï—H 590930