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Cogitamus
Seis cartas sobre as humanidades científicas
Quarta carta
Estimada aluna,
Concordo. É minha culpa. Sei que você já tem suficien-
tes horas de aula; é o problema de nossa escola: os estudantes
ficam tão carregados quanto os burros. Dito isto,. considero
suas objeções tão justas que a perdoo com muito prazer, ainda
mais por seu diário de bordo transbordar casos fantásticos. É
preciso reconhecer que, entre a pandemia de gripe HlNl e as
soçobras da Reunião de Copenhague, não corremos o risco de
ficar sem material ... Acredito que agora, diante da proliferação
de controvérsias sobre feitos que aparentemente seriam os mais
aptos para obter o acordo universal dos espíritos, todos os alu-
nos compartilham a angústia que você sentia no início.
Ao ler o livro de Alexandre Koyré (1892-1964), você se
deparou com a verdadeira questão sobre filosofia da história
que já a preocupava durante nossa primeira conversa e que fez
com que você decidisse continuar este curso. Você tem razão,
essa questão essencial é a que vincula as três contradições que
sinalizamos até aqui. A primeira, que obriga a abordar as ciên-
cias em sua dependência e, simultaneamente, em sua autono-
mia; a segunda, que nos força a compreender a mesma histó-
ria como um grande relato de emancipação e como uma mul-
tiplicação de correlações cada vez mais íntimas; e a terceira, a
que nos convida a acreditar em uma distinção radical entre de-
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Quarta carta
:::-,......
,..l
, . em deixat'de nos mostrar que essa mes-
monstraçáo e reronca, s . ' b te em um mundo fechado, obrigados a habitar um cosmos.
. . _ - sentido. S1m, voce perce eu com toda a
ma d1stmçao nao tem . Ademais, me parece que o vasto material reunido em nossos
d estão é estabelecer se somos os herdeiros da
clareza: a gran e qu . , . . diários de bordo nos permitirá esboçar uma resposta para a sua
· tt'fica" ou se herdamos outra h1stona mfinita-
- c1en
"revo1uçao pergunta.
mente mais complicada.1
Na época de Koyré, nem sequer se concebia a questão: to- Há alguns dias, em Copenhague, me vi diante
dos sentiam com clareza que se havia passado - como diz 0 de um edifício imponente: a Torre Redonda, o obser-
título de seu livro - "do mundo fechado ao universo infini- vatório mais antigo da Europa (é o que diz a placa),
to". O mundo fechado, naquela época, era o cosmos do mun- fundado pelo rei Christian IV em 1642 e integrado
do antigo, o da Idade Média e o de Aristóteles (e também os a uma igreja onde está exposto o busco de Tycho
cosmos indígenas: exóticos, tropicais, estudados pelos etnólo- Brahe (1546-1601), o grande astrônomo também
gos). "O universo", ao contrário, era o efeito dessa sucessão de patrocinado pelo rei. Estamos em pleno século XVII
revoluções - de Copérnico a Laplace - , pelo qual se tinha a e, portanto, em pleno período "revolucionário".
certeza de viver, desde então, para sempre. No início da déca- Contudo, o que mostra a inscrição ao pé da es-
da de 1950, Koyré tinha essa certeza, enquanto nós, no co- tátua é um "belo agregado", um cosmos, em virtude
meço do século XXI - e aí se encontra a acuidade de sua per- do qual um príncipe reconstrói, em memória de um
gunta-, não a temos mais. É como se tivéssemos deixado de ascrônomo apreciado, em uma igreja reformada, uma
viver nesse universo infinito; como se tropeçássemos novarnen- ciência nova para um novo poder e um novo Deus.
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.,...,
l
'
conseguíssemos nos entender para controlar o nosso 23 de novembro de 2009: " - 'Os climacéticos' fa-
desenvolvimento: zem circular, nos meios de comunicação e na inter-
net, informações que desmentem a influência das ati-
vidades humanas no clima. Essas informações refle-
tem um verdadeiro debate científico? - [Thomas
Scocker] Não. Aliás, eu não classificaria essas pessoas
como 'céticas', pois o ceticismo é uma postura neces-
sária para produzir todo o progresso da ciência. Cha-
maria essas pessoas, de preferência, de 'negadoras'
(' deniers', em inglês), termo mais apropriado, visto
que ignoram os dados que as ciências do clima tor-
naram evidentes há quarenta anos. E se o discurso
Não se trata mais - como era para Tycho - desses negadores se intensifica, isso acontece porque
de observar o céu para a maior glória de Deus e de é agora o momento de tomar medidas intensas, a fim
um príncipe, senão de se decidir agir ou não para de que seja estabelecido um objetivo climático e nos-
modificar o quadro comum de nossa existência co- sas emissões sejam reduzidas".
letiva. Passaram-se quatrocentos anos, mas sempre Todo o alvoroço que se armou em corno desse
existem os príncipes e os homens de ciência e ... há assunto demonstra como os jornalistas, os políticos
muito mais príncipes e muito mais cientistas! É pro- e inclusive os cientistas estão mal preparados para
vável que você me considere um pouco obcecado, acompanhar uma controvérsia mais ou menos vivaz.
mas ali vi uma verificação de uma de minhas leis Alardear que é fraude porque os pesquisadores dis-
da história, visto que, quatro séculos depois, o vín- cutem entre si e não conseguem reunir as provas da-
culo entre a assembleia política e o curso da nature- quilo que lhes fazem dizer do clima! E que imagina-
ainda mais explícito e, ao mesmo tempo, mais vam? Que o clima falaria por si mesmo?
inumo.
Gostaria de abordar a sua inquietude por meio da página
Você também tem razão de se concentrar no cli- de um livro de Owen Gingerich, notável de qualquer ponto de
2
mategate; é, realmente, um exemplo fascinante. Os vista, sobre a difusão da muito pouco lida obra de Copérnico.
"climacéticos", que inclusive alguma vezes já foram
chamados de "negacionistas", parecem atualmente 2 Com relação à interpretação desta imagem, verifique o apaixonante
capazes de fazer pender a balança. Do Le Monde de livro de Owen Gingerich, 7he Book Nobody Read: Chasing the Revolutions of
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L
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... .
1
. . d d d" , . de bordo _ se é que se pode chamar as- Figura 4.1
Foi ora a o iano ' , Galileu Galilei, "Bifólio das Sete Luas", 2v, Ms 48,
.
sim - que Gal"l
1 eu mantinha _ como voce e como eu - e
. . e
Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze, reproduzido em
datada de 19 de janeiro de 1610. Nela vemos um do~ pnme1- Owen J. Gingerich, 7he Book Nobody &ad, cic., p. 198.
ros desenhos das crateras lunares entrevistas por Galileu com
· · · lente astronômica · Esse mesmo desenho deixou
sua pnmmva
tanto os historiadores da arte quanto os da ciência apaixona-
l dos, pois se Galileu não tivesse sido um bom desenhista - e
desenhista acostumado a seguir as leis recém-descobertas da
1 perspectiva - , nunca teria interpretado as sombras que via so-
bre a Lua como a projeção de montanhas; de certo modo, não
:1 teria "visto" nada em sua lente, a não ser algumas manchas fur-
ta-cor. (Digo isso para lembrá-la de que as evidências apenas
são evidentes graças a uma grande quantidade de condições
prévias. O que não é equivalente a dizer que "alguém vê ape-
nas aquilo que já conhece". Significa que alguém só pode des-
cobrir coisas novas com a condição de aprender a ser sensível
àquilo que deve impressionar nossos sentidos.) O que me cha-
ma a atenção nessa página é que, justamente debaixo da Lua,
desenhada pela primeira vez, descobrimos o esboço de um ho-
róscopo que Galileu calculava para o aniversário de seu senhor
e mecenas (atualmente diríamos sponsor) Cosme II de Médici
A primeira solução consistiria em eliminar o desenho de
(1590-1621). Você não acha que esta página resume bastante
bem nosso problema? (Figura 4. l) baixo, esquecendo pudicamente que o Galileu que "revolucio-
nà' a astronomia é o mesmo que faz um horóscopo. Assim pro-
cedeu a maior parte dos tratados desde o século XIX: publica-
ram a parte de cima dessa página, cortando a parte de baixo!
Isso porque essa censura era bastante cômoda: esquecendo por
Nico/aus Copernicus, Nova York, Penguin, 2004, a respeito das anotações feitas
tempo suficiente e com grande obstinação que se trata da mes-
ao longo do tempo pelos leitores do livro de Copérnico. A propósito do mes-
mo episódio, é possível ver também o encantador livro de Erwin Panofsky, Ga- ma página, pode-se dar a impressão de um Galileu genial que
lilée, critique d'art (traduzido por Nathalie Heinich), seguido de Attitude e fhé- descobre a astronomia "fora de contexto". "Fora do solo", co-
5
tique et pensée scientifique, de Alexandre Koyré, Bruxelas, Impressions Nouvel-
les, 2001. mo se fala das hortaliças cultivadas. Basta ignorar a história das
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..;;;:._
,,....-- ..,........--
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..,.......--- ...
e • 'ter de um sistema, de uma estru-
dência de lhe conrenr O cara _ " ,, saem textos em que, de uma maneira ou de outra, as coisas das
l , . Ora eu utilizo a noçao de cosmograma
tura d e uma og1ca. , d d quais falamos testemunham elas mesmas essa mistura tão par-
para' segmr
. assoc1açoes
• - que parecem, pelo menos es e o Re-
A~ ticular de diferença e de semelhança entre uma prosa e a ins-
.
nascimento, cons tantemente perturbadas. Por que. . Por causa
. crição que comenta. Dessas formas originais de visualização,
· -
d a irrupçao de novos seres aos quais não se permite que seJam por uma admirável sucessão de invenções, surgiram rodas as
. d' ,, D
inseridos na trama usual das "cosmologias m 1genas . e on- provas que chamamos de científicas.
de vêm esses novos seres? Um pouco de todo lugar, e certamen- Na realidade, o laboratório amalgama muitas tradições di-
te da imensa circulação dos mercados e do comércio, das ino- ferentes. Descende, em primeiro lugar, do ateliê do artesão. 7
vações dos ateliês, dos achados que surgem nos estúdios dos ar- Nesse ateliê, desde o fim do Neolítico, os materiais - a argi-
tistas, das guerras e das desgraças dos tempos, sem esquecer os la, os metais, o vidro, a madeira, os têxteis, o couro, os álcoois
ratos, os micróbios e as pestes, mas também, em uma propor- - são transformados por mãos cada vez mais especialistas de
ção nada desdenhável, desses lugares que são chamados de la- artesãos cada vez mais especializados. Submetido ao fogo, à
boratórios e cuja importância e ubiquidade não deixaram de pressão, ao amassamento, ao estiramento, à fermentação, eis
crescer desde o século XVII... e aos quais eu gostaria muito que que cada ser do mundo perde sua aparência para adquirir uma
meus alunos se apegassem. Queria tentar introduzi-los na vida completamente diferente. A lista de qualidades que definiam a
:1 de laboratório sem submergi-los de imediato na grande narra-
;1 areia ou a argila se transformou por completo: a areia aqueci-
tiva da revolução científica. Como falaríamos de nosso passa- da se converte em vidro transparente; a argila se converte em
:11 1
.
do se fôssemos capazes de restituir as proezas da ciência uma
vez libertas da crença de que essas proezas nos teriam feito pas-
sar do cosmos finito ao universo infinito? Espero poder mos- 7
Não há síntese alguma sobre a história do laboratório, e apenas existem
l trar a você, em seguida, que, ao nos permitirmos herdar outro obras especializadas, algumas centradas na etnologia dos laboratórios, como a
de Bruno Latour e Steve Woolgar, La vie de laboratoire, Paris, La Découverte,
passado, provavelmente estamos em condições de imaginar ou-
1988 [ed. bras.: A vida de laboratório, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997],
tro futuro.
ou a de Sophie Houdart, La cour des miracles: ethnologie d 'tm laboratoire japo-
nais, Paris, CNRS Éditions, 2008, e estudos por disciplina como o de Adele
Na carta anterior eu já a havia deixado às portas do labo- Clarke e Joan Fujimura (orgs.) , La matéria/iti des scirow: savoir-faire et instru-
ments rians /es sciences de la vie, Paris, La Découvene, 1996; e outros mais téc-
ratório, bem na interface, fina como uma folha de papel, na
nicos como Karin Knorr-Cetina, Epistemic Cu/tures: How the Sciences Make
qual o texto em prosa de um artigo publicado por uma insti- Knowledge, Cambridge, Massachuseus, Harvard University Press, 1999. Pro-
tuição científica insere - de uma forma que tem variado cons- vavelmente, o melhor seja ler o excelente e bastante acessível livro de James
tantemente há três séculos - o documento extraído de um D. Watson, La double hélice, Paris, Robert Laffont, 1968 (edição de bolso), que
instrumento qualquer. É necessário levar a sério essa bela pala- situa com precisão o lugar da experiência e das práticas de laboratório na exis-
tência cotidiana dos pesquisadores no transcurso de uma descoberta de impor-
vra "instrumento", o que permite instruir-nos. Do laboratório tância capital.
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Cogitarnus
Ili
r --- ,..
• ·ca· o suco d e uva passa a ser uma bebida forte. Muito
ceramt , , • · · 1 lênios antes da nossa era, e se imaginar equipada com um esti-
. •
antes de ex1snrem os laboratonos, e:x1st1am esses ugares um
. • de segredos às Vf:reS zelosamente guardados , lete de chifre e uma tabuinha de argila? A princípio, sua fi.m-
pouco mistenosos, . .
ção seria, a serviço de seu amo, marcar com um sinal cada far-
nos quais• se m etamorfoseavam os materiais
. do mundo.. Atra-
do de grão que entrasse ou saísse desse celeiro. 8 Dizendo de
vés do ateliê e no ateliê, o mundo vai mudando de qualidades.
outra maneira, peço a você que se ponha no papel de um escri-
A Enciclopédia de Diderot se maravilha com isso, e com razão.
turário mesopotâmico ... O que vai acontecer em seguida? Vo-
Em medicina, em biologia, em física, em arquitetura, em óp-
cê e os demais escribas (ainda que eu duvide que tenha havido
tica ou em armamento, o artesão precede sempre ao engenhei-
mulheres nesse cenáculo) se encontrarão rodeados de tabuinhas
ro, a quem o cientista tenta alcançar de longe. A situação ape- que marcam, de diversas formas, a entrada e a saída dos grãos,
nas consegue se inverter em um período já bem avançado do as placas de sal, os zebus, as peles de cordeiro etc. Inevitavel-
século XIX, e somente no caso de alguns ofícios. Ainda hoje, mente, você e também os demais escribas começarão a consi-
se você entrar em um laboratório, irá se assombrar ao ver a derar essas marcas, não mais vinculando cada uma com um far-
multiplicidade de provas às quais submetem os seres dos quais do ou uma placa, mas, sim, entre si. Rapidamente você esque-
falávamos antes, pesquisadores definidos antes de tudo pela ha- cerá - ao menos durante uma parte de seu tempo - que o
bilidade de seus gestos, pelo cuidado que dedicam a seus ins- objetivo desta burocracia é servir ao príncipe e validar as dívi-
trumentos, pela dureza e pela extensão de seu aprendizado. das e os impostos. Simplesmente, começará a contar por con-
Não há dúvida de que as mesas abarrotadas de um laboratório tar. Em pouco tempo, submeterá os aprendizes a exames refe-
contemporâneo conservam algo do ateliê do artesão, para não rentes não a esse ou àquele bem, mas, sim, a tal ou qual signo
dizer do forno do cozinheiro. desses bens. Irá abstrair signos para associá-los a outros signos.
Tudo isso é bem conhecido. Mas talvez você se assombre E assim você terá inventado a abstração, ficará maravilhada
se digo que o laboratório descende também do escritório, ou, diante do feito de que as cifras entre si, separadas daquilo que
~ais precisamente, desses lugares tão protegidos quanto o ate- elas contam, se descobrem portadoras de propriedades tão no-
he do artesão, em que se inventaram durante milênios isso que vas e imprevistas como o couro tingido ou o mineral fundido.
fazemos bem em chamar d e "tecno1og1as · mte
· 1ectua1s · " . A pro- Você passará a calcular algoritmos, sequências de cálculos cada
va do fogo met e · h' vez mais distantes das preocupações do seu príncipe. E, muito
outros tipos de pamorroseia
- os _materiais mais diversos. Mas
_ ª
rovaçoes, nao menos materiais, que sao ca- rapidamente, por jogo, por entusiasmo, por estupefação dian-
pazes de metamorfosear · ·d d " ,, · ·d d s te dos poderes da abstração sobre tabuinhas de argila, começa-
"abstratas,, e de tra 6 at1v1 a es concretas em anv1 a e
, bros de sábios!
em cere ns ormar pouco a pouco cérebros comuns
Você pode se tran , • 8 Inspiro-me muito livremente no capítulo de James Ritter, "Chacun sa
mara firesca de um ceie. sportar
d . por meio do pensamento a ca-
.
vérité: les mathématiques en Égypte et en Mésopotamie", em Michel Serres
iro e tngo na Mesopotâmia, alguns mi- (org.), Éleménts d'histoire des sciences, cit., pp. 39-61.
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Cogitamus
b- as
, ra, a e1a b orar razoamentos cada vez mais longos, a .fazer de-
...........---
1' qual, de todos os modos, terá que continuar servindo para con-
servar sua "autonomià'.
Paris, Éditions des Archives Comemporaines, 2008. O livro mais detalhado
do ponto de vista dos métodos, ainda que de leitura técnica, continua sendo o
de Edwin H1,1tchins, Cognition in the Wild, Cambridge, Massachusens, MIT
Ninguém se esquece do artesão que nos permite ter vasi- Press, 1995, mas é possível encontrar alguns trabalhos em francês do autor pa-
lhas, cadeiras, mesas, computadores e eletricidade. No entan- ra ter uma ideia da noção de cognição "distribuída": "Comment le cockpit se
P.;
r to, é cometido com frequência o erro de deduzir, demasiada- souvient de ses vitesses", em Socio/ogiedu Travai/, nº 4, 1994, PP· 451-74. Uma
revista científica, a Revue d'Anthropo/ogie des Connaissances, dedica-se atual-
ll ~ . f:. pe enc1as e nçoes. tante acessível livro de Delphine Gardey, Écrire, calcukr. classer: comment une
N ao caia, por avor no erro d · révolution de papier a transformé ks sociités contemporaines (1800-1940), Paris,
. 'A e esquecer as provas e as técmcas
·f que perm1tem a voce possuir a abstraça-o e o cál culo. Se am . da La Découverte, 2008.
. , 1de um ateliê com uma técnica intelec- "livro da natureza escrito em linguagem matemáticà'. Boyle,
0 contro improvave . - d -
en d iência à expenmentaçao, e o anesao ao por sua vez, aceita não apenas simplificar os fenômenos, mas
tual Passa-se a exper
·. . uida ao químico, notando que a prova a também produzir outros novos artificialmente, graças a instru-
alqmm1sta, e em seg
·das as matérias desemboca agora em um do- mentos custosos (por exemplo, a bomba de vácuo) financiados
que foram su bme t1 .
cumento, uma m · scriça- 0 • Nasceu o mstrumento, esse pequeno por instituições às quais se deve dotar e cujos resultados são vi-
m1.1agre por me1·0 do qual os seres do mundo se tornamlo não síveis aos olhos de uma comunidade de testemunhas confiáveis
apenas capazes de metamorfoses, mas capazes de falsear,. . eles (que deverá ser criada a partir do zero). Tal comunidade será
próprios, 0 que dizem a respeito deles. E se trata dec1d1damente mantida por meio de um estilo particular - o relato de expe-
de inscrição. riência - , que deverá se ocupar das interpretações muito vas-
É provável que isso tenha ao menos duas origens. 11 Pode- tas e dos usos rapidamente utilitários. Ambas as correntes ape-
ríamos dizer, para fixar as ideias: uma, do lado de Galileu, na nas irão se fundir no século XIX, com a invenção de instru-
:1 1 Itália, que não tem necessidade de laboratório (quando faz uma mentos com quadrante, telas ou interfaces legíveis, que farão
'!
1 ! experiência diante de seu mecenas, apenas deve tirar o mamei testemunhar diretamente os fenômenos - isto é, muito indi-
1
da mesa do banquete principesco ... ), e a outra, do lado de Ro- retamente - por meio de símbolos matematizáveis como con-
bert Boyle, na Inglaterra. Galileu inventa dois dos ingredien- tadores, sensores, anotadores de todas as espécies e modelos.
tes essenciais: o primeiro refere-se a não ser possível produzir Todo paciente que hoje se submete a exames em um laborató-
provas sem rarefazer imensamente os fenômenos que estão sen- rio médico está habituado a essas mil maneiras de fazer com
do abordados (de todos os tipos de movimento, considera ape- que seu corpo seja legível, visível, cifrável e calculável (e, além
nas um, a queda dos corpos pesados, e deixa de lado a fricção); disso, sabe que a cada vez isso tudo custa uma pequena for-
a outra, também fundamental, consiste em fazer com que o ob- tuna, o que vai lhe evitar todo o idealismo sobre as condições
jeto de experiência seja compatível com um formato vindo an- reais de um conhecimento exato ... ) (Figura 4.2).
tes da geometria, e em seguida da álgebra. É o famoso tema do Ainda é preciso que os fenômenos sejam chamados a com-
parecer no seio de uma assembleia interessada em seu testemu-
t 10 nho (escolhi deliberadamente termos procedentes dos tribu-
:! 11
S'inscrire en faux, em francês. (N. da T.)
nais). Porque, na ampla genealogia do laboratório, é necessá-
1 Sobre a origem destas duas grandes tradições - em pnme_ . theª
· iro lugar,
galileia - , ver Mario Biagioli, Galileo, Courtier: lhe Practice of Sczence ~n
rio introduzir uma terceira filiação: a da Academia, no sentido
de uma comunidade habituada à controvérsia filosófica - ou
1H Cu/ture ofAbso/utism, Chicago, Chicago University Press, 1993, que P 0 e s~r
! complementado com o admirável livro de Stillman Drake, Ga/ilte, Actes Su ' seja, à argumentação - , que o pauocínio dos príncipes man-
Ade,, 1980, 1986. A "gund, u,diçáo _ , da ape<iênda - é muim be: teve protegida das exigências muito urgentes, muito rigorosas
1 descrita
h na obra fundadora de Steven Shapin e Simon Schaffer, Lroiathan an e muito arbitrárias de outras comunidades: comerciais, religio-
t e Azr-Pump:
. Hobbes, Boyle, and the Experimental Life, Princeton, p rmce
· con sas ou políticas. Existe toda uma bibliografia sobre a invenção
University Press, 1985, além do já citado livro de Christian Licoppe.
125
Quarta carta
124 Cogitamus
l:..
,..
. , • dessas comunidades "relativamente autôno- nais de avental branco possuem um léxico imenso para distin-
e a pers1stenc1a A • ,
,, sa~o que resume - voce Jª deve ter compreendido guir com cuidado a boa e a má experiência, o bom do mau co-
A• ,
_ uma forma de relação de dependencia que obrem, graças a lega, e sabem reconhecer em uma proposição aquela que é "cá-
um intercâmbio de serviços, certa independência (sabemos, " "fi . ,, ur d ,, (( . l h ,, (( al ,, "
1id a , na , recun a , s1mp es e engen osa , m igna , ren-
desde Arquimedes, que não era possível se tratar de "autono- tável" e até - acho esta expressão maravilhosa - "a que nem
mia científica", no sentido extraterritorial que com frequência ao menos é falsà' . Devemos nos voltar a este léxico corrente e
é dado a essa expressão). Se os cientistas (termo surgido no sé- banal para compreender os hábitos profissionais que as expres-
culo XIX) foram chamados durante um longo tempo de "filó- sões "método" ou "espírito científico" não nos permitem qua-
sofos" ou "filósofos naturais", é porque eram herdeiros de uma lificar com precisão. Foi muito atinado escrever "discursos do
tradição argumentativa com dois milênios de antiguidade que método" e fixar "regras de método". Existe ali todo um jargão
:/:
li
muito tempo antes havia sabido misturar os recursos da retó-
rica com todas as exigências da demonstração.
profissional que se deve aprender a respeitar, mas do mesmo
modo que alguém deve respeitar a linguagem própria dos ju-
l
l
ristas, dos especialistas em informática ou dos encanadores. Es-
:! Figura 4.2
ses dialetos do método científico só fazem sentido para os ho-
À esquerda, Sophie Houdart (foco: Bruno Lacour) ,
à direita, Jean Rossier (foto: Émilie Hermanc).
mens de avental branco e unicamente enquanto permanecem
em contato com o laboratório. Não é uma língua universal que
se estenderia por todas as partes, a todos e a tudo, sem esforço
e sem custo algum.
Quando se esquece do laboratório, corre-se o risco de de-
fender simples banalidades em nome do método científico.
Quando se insiste aos principiantes com o famoso "método hi-
potético-dedutivo", característico, segundo se afirma, da "ra-
cionalidade científica", está-se esquecendo que cada um de nós,
para decidir se vai comprar no mercado cerejas ou morangos,
se vai pegar o ônibus ou o metrô, se vai pagar com dinheiro ou
com cartão, não deixa de aplicar exatamente as mesmas regras
Já aqui você entenderá por que eu não podia empregarª do método, apresentando primeiramente hipóteses, submeten-
distinção
d radical entre retórica e demonstração, criticada pre- do-as em seguida a provas que possam ser revisadas depois,
ce entemente. O que permite . passar de uma eIoquencta débil
A • comprovando sua falsidade ou confirmando sua veracidade ...
ª urna eloquência forte é a instituição do laboratório, sempre Neste sentido, não há nada menos "científico" que esse famoso
esquecida quando se fala de argumentação. Aliás, os profissio- "método". Se tal método parece dar frutos tão admiráveis, isso
..
126
..
Quarta carta 127
Cogitamus
. pletamente específicos, aos quais se apli-
d aos objetos, com dm'
se eve _ muns. Se as pessoas a iram uma espe- 12
chama Wunderkammer e que dará lugar às coleções e aos mu-
sas regras tao co , d
cam es
.alista dos receptores de acetilcolina por seu meto
d . o científi- seus. Ainda mais porque essas formas chegaram a ser inumerá-
ci
co e nao _ a mim,. quando compro morangos ou ecido1 pegar 0 veis, visto que atualmente há laboratórios distribuídos por to-
'
ônibus, e, por causa da novidade . da montagem que e a conse- das as partes: fala-se de laboratórios de controle, de diagnósti-
gum . que seus receptores acettassem. Em. todo o resto, . ela arra- co, de metrologia; você os poderia encontrar tanto nos mata-
zoa tao _ bem ou tão mal quanto eu; a diferença . reside
. nas, coi- douros quanto onde se fabricam cubas, nas fábricas de aviões
as das quais ela se ocupa e que consegwu tornar arttculaveis ... e no consultório do médico. 13
s Uma vez que O laboratório seja relocalizado claramente na Mas o detalhe importa pouco. O verdadeiramente impor-
cena, podemos afirmar que os pesquisadores dizem o que di- tante aqui é recordar que se trata de lugares precisos, ocupados
riam as coisas das quais falam se elas pudessem falar, e, de resto, por pequenos grupos de pessoas argumentando que submetem
as fazem falar ou, antes, testemunhar por meio dos instrumen- os fenômenos em que se especializaram a provas particulares,
tos. Assim iniciam um novo ciclo de interpretação hesitante, mediante o emprego de instrumentos frequentemente comple-
no curso do qual as testemunhas convocadas para acompanhar xos e custosos, que obtêm como resultados parciais fragmen-
a prova experimental (por testemunho direto ou escrito, me- tos de inscrições que acabam confirmando, assegurando, inva-
diante conferência ou experiência pública) devem decidir ago- lidando, perturbando outras escrituras, acarretando consigo
ra se os primeiros pesquisadores haviam sido cabalmente auto- pouco a pouco uma convicção, por meio de um processo de
rizados pelas coisas das quais falam ao falar em seu nome. Ain- interpretações contraditórias que não cessam de se complicar
da que o termo "hermenêutica" sirva, com frequência, para e se estender e que, às vezes, cristalizam-se em um resultado as-
descrever - sobretudo na Alemanha, seu país - as ciências segurado e passam então aos manuais, em que servem de pre-
chamadas "de interpretação", em oposição às ciências chama- missas para outros razoamentos segundo as regras hesitantes de
uma hermenêutica refinada, cuja literatura científica (para vol-
das "da natureza", você compreenderá sem dificuldade que es-
sa palavra, como a palavra "eloquêncià', aplica-se a todas as dis-
ciplinas capazes de fazer testemunhar aquilo a respeito do que
12
falam e de abrir uma controvérsia no sentido definido anterior- "Gabinete de curiosidades", em alemão. (N. da T.)
mente Uma vez. · · 13
· mais, cogztamus, e não cogito . Sobre esta história complexa será preciso ler simultaneamente os dois
Retraçar toda a h· t , · d l b , . fil' - grandes clássicos de Míchel Foucault, Naissance de la clinique: une archéologie
. is ona os a oratonos e de suas 1açoes
ocuparia volumes A0 1· , . du regard médica/, Paris, PUF, 1963 [ed. bras.: O nascimento da clínica, Rio de
preciso agregar
. • ate te, ao escritório e à academia sena Janeiro, Forense Universitária, 1977], e Surveilkr et punir, Paris, Gallimard,
to, a escrivaninha
. . - eparao ser. completo - o gabinete do erudi- l 975 [ed. bras.: Vigiar e punir, Petrópolis, Vo'll!S, 1977]. Mas convém comple-
tar essa leitura com a bastante erudita e intrigante obra de Horst Bredekamp,
essa institui· - d h' ª~~uivo do tribunal, a cura do exegeta e
çao e 1stona · La nostalgie de /'antique: statues, machines et cabinets de curiosités (traduzida por
apaixonante que em seu idioma se Nicole Casanova), Paris, Diderot Éditeur, 1996.
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li 111111
...
erior) oferece um seguimento bastante bom
tar ao curso ant , única das proezas de Arquimedes, conferindo-lhe ao mesmo
rtir da numeraçao das bases de dados. Voce'
so bretu do a Pa tempo seu papel decisivo.
compreenderá- tenho certeza - que ~ss~ bacharelada volun- Retorno sempre ao "grande engenheiro" por causa de seu
tariamente arrevesada não tem outro obJetlvo que não seja im- ponto fixo, desse fulcrum que permite deslocar tudo, inclusive
pedir que se escondam assim as-humildes redes de laboratórios a própria Terra. É que, com efeito, a metáfora da alavanca, des-
com O imenso manto da revolução científica (você perceberá sa relação entre o pequeno e o grande, estabelecida por meio
que não me esqueci de sua pergunta inicial). Para respondê-la, do cálculo, define às mil maravilhas a eficácia própria do labo-
tento manter, o quanto possível, em estado o mais fragmenta- ratório e o vínculo que este mantém com aquilo que vai mo-
do, reversível e descontínuo aquilo que a grande narrativa revo- dificar tão profundamente. Dito de outro modo, a metáfora da
lucionária vai tentar unificar, sem encontrar resistência, para 0 alavanca permite compreender o efeito do laboratório de ou-
tornar irreversível. tra perspectiva, diferente da noção de "aplicação" da ciência ao
mundo real. Conforme você verá a seguir, não se trata bem de
Por que esta insistência e obsessão - talvez você diga: aplicação, mas de implicação, e mesmo de complicação...
provocação - por não querer falar prontamente de "continui- Para a melhor compreensão dos alunos, recorro ao caso
dade"? Por conta de um fenômeno essencial que eu chamo de exemplar do relojoeiro John Harrison (1693-1778), sobre
mudança de escala e que a interpretação revolucionária frequen- quem Dava Sobel escreveu um livro para o grande público e a
temente esquece. Sabemos desde Arquimedes que o laborató- respeito do qual existe também um excelente filme. 14 O que
rio - se você aceitar que remontemos até Arquimedes esse ter- um relojoeiro perdido na campina inglesa podia fazer pela Ma-
mo anacrônico - é capaz de se insinuar em todos os cursos de rinha Real Britânica? Aparentemente, não muita coisa; nada
ação para modificar sua composição; também entendemos - permitiria vincular, associar ou traduzir um para a outra. Ex-
0
exemplo era impressionante o bastante, ainda que se trate de
um mito - que a introdução das leis de proporção calculadas
14 U ma h"1scona
, · bastance acess1ve
' 1 so b re o cronometro
• mann. h o e' a apre-
pela geometria havia permitido modificar a dimensão, ou, me-
nd 0 sencada por Dava Sobe!, Longitude: l'histoire vraie du génie solitaire qui résolut
lhor ~ o, dimensionamento, das máquinas de guerra que le plus grand probleme scientijique de son temps (traduzido por Gerald Messadié),
defendiam Sira T: b , que
cusa. am em discernimos como uma vez Paris, J. C. Lactes, 1996 [ed. bras.: Longitude: a verdadeira história de um génio
a geometria oper d . '. d d táo solitário que resolveu o maior problema científico do século XVIII, São Paulo,
ou esse esv10, a arte militar fo1 es e en
recomposta, visto na Companhia das Letras, 2008); um complemento útil é Dava Sobe! e William
. ,.
Poliorcettca que passou a compreender - ao menos
- o tal fim J· H. Andrews, The Jllustrated Longitude, Nova York, Walker & Company,
Por menos que res ento.
e o cálculo dos engenheiros. Por
d m-
' 1998, assim como o filme Longitude, de Charles Scurridge, disponível em
posiçõ penemos o conjunto dos desvios e asco DVD . Sobre a história do tempo, é possível ler o clássico artigo de Éviacar Ze-
es que eu reagrup . b , ,, b mos rubave1, "La stan d ardization du cemps: une perspecuve · soc10
· h"1sconque
· " , em
como d b ei so o vocabulo "traduçao , sa e
es aratar a ar d"lh usa
.
ma 1 a que faria da matemática a ca Politix, nº 10-11 , 1990, pp. 21-32.
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131
Quarta carta
Cogitamus
...............
,.----
cnco, Descartes
. ' na sol'd-
1 ao d e seu gabinete aqueci d o (o que
história da metrologia do tempo. Provavelmente, a maneira mais fácil de se
quer dizer como ,b 'd orientar seja indagando na história da arte, por meio da leitura de dois grandes
.'
de experimental voce em sabe, vinculado a toda comum a- clássicos: Erwin Panofsky, La pmpective comme forme symbo/ique et autres es-
. d , .
. europeia e sua época) imaginará - e isso sais, Paris, Minuit, 1975, e Svetlana Alpers, L'art tÚ dtprindre: la printure hol-
mesmo: imaginar ' landaise au XVII' siecle, Paris, Gallimard, 1990 [ed. bras.: A arte de descrever: a
sim - ª res extensa tal como consegue pensar -
, pensar - a res . arte holandesa no século XVII, São Paulo, Edusp, 1999) •
cogitam. Observe você que digo que se tra-
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136
Quarta carta
Cogitarnus
"'"' .,......--- .
ra do que e, um o bJ'eco imerso no mundo, para todo corpo vi-
sa se poderia compô-lo) ao qual são agregados, como O fundo
vo, para to da a comunidade de pensamento. . , . .
Mas a operação de Descar~es nao ~isa a verossimilhança. de uma tela'. a aposta, o romance, a hipótese, 0 ideal de obje-
. al gO ainda mais sensacional: vai assegurar, sem pagar
Permice tos dos quais apenas se conserva a dimensão e que apenas se
deslocam pelas causas que os precedem. É a matéria pensada
custo algu m , a continuidade de um novo mundo . .e a extensão
,
imediata a rodo O universo dos resultados parciais sa1dos dos pelas ideias. Mas, é claro, o relato que Koyré dá é completa-
mente diferente: nesse relato, por trás de cada descobrimento
laboratórios. Entre todos os objetos díspares que os laborató-
parcial - de Galileu, de Boyle, de Descartes, em seguida de
rios dispersos vão levar pouco a pouco ao conhecimento mul-
Newton, de Laplace, mais tarde de Einstein - , se revela cada
tiforme de disciplinas heterogêneas desenvolvidas por pesqui-
vez melhor um universo material, real e infinito cujas leis são
sadores cão variados quanto o traje do Arlequim, a res extensa
semelhantes em todas as partes.
permitirá agregar a continuidade, que dará a todos os estudio-
É como se os dois relatos invertessem a relação entre o pri-
sos o ardor suficiente para estender-se antecipadamente com o
meiro e o segundo plano. No relato Cogitamus, o que aparece
pensamento por todas as partes. É como se lhes dissesse: "Por
em primeiro plano são os laboratórios, com todos os seus des-
! ! menores, parciais ou incompletos que sejam os resultados saí- vios e composições, seus cosmogramas variados; enquanto o
dos de vossos trabalhos e vossas tentativas, podeis ir por todas que se apresenta como uma continuidade artificial, idealista,
as partes, compreender tudo, deduzir tudo e possuir tudo". Co- quase supérflua (exceto por insuflar paixão no trabalho dos fi-
mo os filósofos naturais podiam resistir? O golpe é genial; a lósofos naturais, resolvendo ao mesmo tempo o problema da
aposta, colossal; os ganhos, astronômicos; a artimanha está ga- indução, visto que cada resultado parcial remete de imediato a
rantida: ao preço de uma inverossimilhança total (visto que uma lei universal) é a res extensa. Por outro lado, no relato Co-
nunca nada se manteve verdadeiramente apenas na extensão gito, o que aparece em primeiro plano é a matéria de um uni-
geométrica), seria possível fazer com que os resultados locais verso infinito com suas amplas concatenações de causas e efei-
fossem válidos em todas as partes. Cada vez que você ler a ex- tos expressos diretamente em sinais matemáticos, e são os la-
pressão res extensa, que se supõe estar designando um cantão boratórios que aparecem em segundo plano, corno um conjun-
d~ universo por oposição a outro, que seria o do pensamento, to de detalhes cuja única importância consiste em servir de oca-
saiba que terá que se pôr a retraçar a extensão fulminante de um siões à simples manifestação das leis universais da natureza (leis
programa ideal de conquista. que os progressos da ciência revelam em urna quantidade cons-
Se você me acompanhou até aqui (isso não conto a meus tantemente crescente de casos, começando pela dinâmica, pe-
alunos· é d · d e
. · emast a o 10rte e suponho que eles fariam um mo- la astronomia, para terminar, no século XX, com a biologia
~tm ... ), compreenderá que o universo - tal o de Koyré-náo molecular, as neurociências, a economia ... ). Em um caso, ares
e uma realidade 0 1' · fí · extensa não se estende a nenhuma parte que não seja ª imagi-
composta ela mes ntod og1ca, mas uma concepção meta s1ca, . nação. No outro, está em todas as partes, já universalmente es-
ma e um cosmos (não vejo de que outra cot-
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Quarta carta
Cogitamus
.-.__
. , h · advertido a você: não podemos nem de-
endida. Eu Ja avia ' 'd d d solutamente não existir... a não ser subjetivamente. Aqui apa-
e
vemos nos coIocar demasiadamente . ' . rap1 o e acor o com 0
rece sobre a mesa de jogo uma conta que teremos que pagar,
- as c1·e·ncias e sua histona.
que sao d que certamente é bastante "salgadà': há sujeitos sem realidade
Sobrecudo, fui dizendo um pouco epressa que semelhan-
e objetividades sem sujeito. 17
ce mvenco
. - 0 de Descartes - não custou nada. O custo, pe-
Você dirá que se trata de uma visão metafísica, calvez er-
, ·0 , 1•c0 i· i'menso e' no sentido próprio do termo, astro-
lo concran
rônea, mas sem consequência prática. Pois bem, o infinitamen-
nômico. O que acabou desaparecendo durante três séculos é 0
te grave é que, por causa dela, já não será possível nos entender-
que há de res, de realismo, de material nas coisas, nas causas e
'!
mos sobre o mundo, visto que, a partir de então, nada mais liga-
nos assuntos que nos concernem. Tudo se passa como se o
rá os sujeitos aos objetos. Para estabelecer uma ponte, Descar-
mundo tivesse se bifurcado em dois tipos de realidade absolu-
tes, evidentemente, passava por Deus. Mas não é garantido que
tamente incompatíveis.
Deus resista por muito tempo ... O mundo, o acordo sobre o
Como eu disse a você há pouco, o infeliz Galileu se en-
mundo, desapareceram para sempre. Arrepios de horror e de
contrava como um esquizo&ênico em um mundo cindido: pois
prazer: o desencantamento não deixa de crescer, e cada cientis-
bem, nesse mundo dividido em dois temos o responsável pela
ta se sente um herói deliciosamente crucificado por esta reve-
grande narrativa da emancipação. O que aconteceria, com efei-
lação trágica. Sadomasoquismo que, de Descartes à neurobio-
to, se déssemos à res extensa não o sentido utilitário de uma
logia contemporânea, sempre faz as delícias dos departamen-
ideia, de uma imaginação que permite garantir o avanço de
tos de filosofia. Se, como assinalava Pascal, "o silêncio dos es-
uma continuidade suplementar para vincular todas as ocasiões
paços infinitos aterroriza", ele apenas aterroriza àqueles que fi-
lf j
de pensamento e de objetos bruscamente saídos dos laborató-
zeram calar tais espaços - ou seja, os homens de ciências - ,
rios, mas o sentido de uma realidade física? Veremo-nos dian-
que, por mais surpreendente que pareça, são os que fizeram fa-
te de dois conjuntos de realidade: um que em filosofia se chama
lar tão bem esses mesmos espaços infinitos ...
qual!dades primeiras - é o pedaço de cera apenas em sua ex- Como eu gostaria de poder evitar estas cenas doentias! Por
tensao e seu movimento - e outro que é o das qualidades se-
0 sorte, você nasceu depois que o universo deixou de obrigar os
gundas - cheiro, o sabor, o tato, a consistência do pedaço cientistas a acreditarem ter sido expulsos de todo o cosmos, co-
de cera. Uma vez fcei't d' · - · · d D
carres poderia volt a esta· ivisao, nmguém a partir e • es- ,
. sao
nas _ as unicas
, ar. a unir as metades. As qualidades pnma- 17
A expressão "bifurcação da natureza" pertence a um filósofo genial,
. , reais, mas pensadas - preste atenção - por
n1nguem em parei l , . d mas de difícil acesso, Alfred North Whitehead, Le concept de nature, Paris,
de to da ancoragemcu ar, exceto h pelo proprio cogito despoJa .o Vrin, [1920] 1998 (tradução de Jean Douchement) [ed. bras.: O conceito de na-
vo p 1, . ) e sem nen um valor humano (ético, afeu- tureza, São Paulo, Martins Fontes, 1994]. Sua comentadora mais brilhante
, o 1t1co . Quanto ' al'd . tampouco é fácil, mas os espíritos ambiciosos poderiam tentar a leitura de lsa-
de vida d al as qu i ades secundárias, estão cheias
' e v or, de paixõ • . . " . ,, b belle Stengers, Pemer avec Whitehead: une /ibre et sauvage mation de concepts,
es, mas tem o ligeiro defeito de a - Paris, Gallimard, 2002.
140
Quinta carta
dadeiro e perdurável. Creio firmemente que este é O único
amor que merece a geração de vocês. Mas deixaremos isto pa-
ra uma outra carta.
Despeço-me, estimada senhorita, com um cordial cum-
'' primento.
.
142 . 143
Q uinta carta
Cogitarnus