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Bruno Latour

Cogitamus
Seis cartas sobre as humanidades científicas

Tradução de Jamille Pinheiro Dias


r. ---

Quarta carta

Estimada aluna,
Concordo. É minha culpa. Sei que você já tem suficien-
tes horas de aula; é o problema de nossa escola: os estudantes
ficam tão carregados quanto os burros. Dito isto,. considero
suas objeções tão justas que a perdoo com muito prazer, ainda
mais por seu diário de bordo transbordar casos fantásticos. É
preciso reconhecer que, entre a pandemia de gripe HlNl e as
soçobras da Reunião de Copenhague, não corremos o risco de
ficar sem material ... Acredito que agora, diante da proliferação
de controvérsias sobre feitos que aparentemente seriam os mais
aptos para obter o acordo universal dos espíritos, todos os alu-
nos compartilham a angústia que você sentia no início.
Ao ler o livro de Alexandre Koyré (1892-1964), você se
deparou com a verdadeira questão sobre filosofia da história
que já a preocupava durante nossa primeira conversa e que fez
com que você decidisse continuar este curso. Você tem razão,
essa questão essencial é a que vincula as três contradições que
sinalizamos até aqui. A primeira, que obriga a abordar as ciên-
cias em sua dependência e, simultaneamente, em sua autono-
mia; a segunda, que nos força a compreender a mesma histó-
ria como um grande relato de emancipação e como uma mul-
tiplicação de correlações cada vez mais íntimas; e a terceira, a
que nos convida a acreditar em uma distinção radical entre de-

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Quarta carta
:::-,......
,..l
, . em deixat'de nos mostrar que essa mes-
monstraçáo e reronca, s . ' b te em um mundo fechado, obrigados a habitar um cosmos.
. . _ - sentido. S1m, voce perce eu com toda a
ma d1stmçao nao tem . Ademais, me parece que o vasto material reunido em nossos
d estão é estabelecer se somos os herdeiros da
clareza: a gran e qu . , . . diários de bordo nos permitirá esboçar uma resposta para a sua
· tt'fica" ou se herdamos outra h1stona mfinita-
- c1en
"revo1uçao pergunta.
mente mais complicada.1
Na época de Koyré, nem sequer se concebia a questão: to- Há alguns dias, em Copenhague, me vi diante
dos sentiam com clareza que se havia passado - como diz 0 de um edifício imponente: a Torre Redonda, o obser-
título de seu livro - "do mundo fechado ao universo infini- vatório mais antigo da Europa (é o que diz a placa),
to". O mundo fechado, naquela época, era o cosmos do mun- fundado pelo rei Christian IV em 1642 e integrado
do antigo, o da Idade Média e o de Aristóteles (e também os a uma igreja onde está exposto o busco de Tycho
cosmos indígenas: exóticos, tropicais, estudados pelos etnólo- Brahe (1546-1601), o grande astrônomo também
gos). "O universo", ao contrário, era o efeito dessa sucessão de patrocinado pelo rei. Estamos em pleno século XVII
revoluções - de Copérnico a Laplace - , pelo qual se tinha a e, portanto, em pleno período "revolucionário".
certeza de viver, desde então, para sempre. No início da déca- Contudo, o que mostra a inscrição ao pé da es-
da de 1950, Koyré tinha essa certeza, enquanto nós, no co- tátua é um "belo agregado", um cosmos, em virtude
meço do século XXI - e aí se encontra a acuidade de sua per- do qual um príncipe reconstrói, em memória de um
gunta-, não a temos mais. É como se tivéssemos deixado de ascrônomo apreciado, em uma igreja reformada, uma
viver nesse universo infinito; como se tropeçássemos novarnen- ciência nova para um novo poder e um novo Deus.

Mas o que me fascinou ainda mais é que, a tre-


1 zentos metros do observatório do rei Christian, na
O clássico livro de Alexandre Koyré, Du monde cios à t'unívers infini, fachada do edifício em que se reuniam os negociado-
Paris, Gallimard, 1962 (disponível em edição de bolso, coleção "Te!"_) [e~.
res de Copenhague (foi um mês antes do fiasco da
bras.: Do mundo fechado ao universo infinito, Rio de Janeiro, Forense Um~ers•_-
tária, 1979], junco com o de Thomas Kuhn, La structure des révo/utions sczen~- reunião dos chefes de Estado sobre o aquecimento
jiques, Paris, Flammarion, 1983 (também em edição de bolso de "Champs ) climático), havia outro exemplo do vínculo ainda
[ed. bras.: A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 197 5), mais explícito entre uma ciência, uma organização,
l'l formam ª base indispensável para as humanidades científicas. Para dispor de os príncipes e um público. Veja você este cartaz:
um contraste crítico, é possível agregar àqueles dois O de Paul Feyerabend, Co~-
"Bend the Trend!" ["Desviemos a tendência!"]. Ob-
tre
1979la méthode: esquisse d'une théorie anarchiste de la connaissance, PariS, Seuil,
(também em edição de bolso da coleção "Points") [ed. bras.: Contra O mé- serve o gráfico. Em cinza-escuro é possível ver o que
todo, São Paulo Edito U 200 ] , - mais nos acontecerá, a todos os terrestres, se não fizermos
. , . ' ra nesp, 7 , e se o que se procura e uma versao
htstonca e de fácil , , • L ré-
volution. sczentifique,
. cit. e poss1vel recorrer ao livro de Steven Shapm, a
acesso, nada; em cinza-claro está o que nos aconteceria se

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Cogitamus
.,...,
l
'
conseguíssemos nos entender para controlar o nosso 23 de novembro de 2009: " - 'Os climacéticos' fa-
desenvolvimento: zem circular, nos meios de comunicação e na inter-
net, informações que desmentem a influência das ati-
vidades humanas no clima. Essas informações refle-
tem um verdadeiro debate científico? - [Thomas
Scocker] Não. Aliás, eu não classificaria essas pessoas
como 'céticas', pois o ceticismo é uma postura neces-
sária para produzir todo o progresso da ciência. Cha-
maria essas pessoas, de preferência, de 'negadoras'
(' deniers', em inglês), termo mais apropriado, visto
que ignoram os dados que as ciências do clima tor-
naram evidentes há quarenta anos. E se o discurso
Não se trata mais - como era para Tycho - desses negadores se intensifica, isso acontece porque
de observar o céu para a maior glória de Deus e de é agora o momento de tomar medidas intensas, a fim
um príncipe, senão de se decidir agir ou não para de que seja estabelecido um objetivo climático e nos-
modificar o quadro comum de nossa existência co- sas emissões sejam reduzidas".
letiva. Passaram-se quatrocentos anos, mas sempre Todo o alvoroço que se armou em corno desse
existem os príncipes e os homens de ciência e ... há assunto demonstra como os jornalistas, os políticos
muito mais príncipes e muito mais cientistas! É pro- e inclusive os cientistas estão mal preparados para
vável que você me considere um pouco obcecado, acompanhar uma controvérsia mais ou menos vivaz.
mas ali vi uma verificação de uma de minhas leis Alardear que é fraude porque os pesquisadores dis-
da história, visto que, quatro séculos depois, o vín- cutem entre si e não conseguem reunir as provas da-
culo entre a assembleia política e o curso da nature- quilo que lhes fazem dizer do clima! E que imagina-
ainda mais explícito e, ao mesmo tempo, mais vam? Que o clima falaria por si mesmo?
inumo.
Gostaria de abordar a sua inquietude por meio da página
Você também tem razão de se concentrar no cli- de um livro de Owen Gingerich, notável de qualquer ponto de
2
mategate; é, realmente, um exemplo fascinante. Os vista, sobre a difusão da muito pouco lida obra de Copérnico.
"climacéticos", que inclusive alguma vezes já foram
chamados de "negacionistas", parecem atualmente 2 Com relação à interpretação desta imagem, verifique o apaixonante

capazes de fazer pender a balança. Do Le Monde de livro de Owen Gingerich, 7he Book Nobody Read: Chasing the Revolutions of

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L
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Cogitarnus
... .
1
. . d d d" , . de bordo _ se é que se pode chamar as- Figura 4.1
Foi ora a o iano ' , Galileu Galilei, "Bifólio das Sete Luas", 2v, Ms 48,
.
sim - que Gal"l
1 eu mantinha _ como voce e como eu - e
. . e
Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze, reproduzido em
datada de 19 de janeiro de 1610. Nela vemos um do~ pnme1- Owen J. Gingerich, 7he Book Nobody &ad, cic., p. 198.
ros desenhos das crateras lunares entrevistas por Galileu com
· · · lente astronômica · Esse mesmo desenho deixou
sua pnmmva
tanto os historiadores da arte quanto os da ciência apaixona-
l dos, pois se Galileu não tivesse sido um bom desenhista - e
desenhista acostumado a seguir as leis recém-descobertas da
1 perspectiva - , nunca teria interpretado as sombras que via so-
bre a Lua como a projeção de montanhas; de certo modo, não
:1 teria "visto" nada em sua lente, a não ser algumas manchas fur-
ta-cor. (Digo isso para lembrá-la de que as evidências apenas
são evidentes graças a uma grande quantidade de condições
prévias. O que não é equivalente a dizer que "alguém vê ape-
nas aquilo que já conhece". Significa que alguém só pode des-
cobrir coisas novas com a condição de aprender a ser sensível
àquilo que deve impressionar nossos sentidos.) O que me cha-
ma a atenção nessa página é que, justamente debaixo da Lua,
desenhada pela primeira vez, descobrimos o esboço de um ho-
róscopo que Galileu calculava para o aniversário de seu senhor
e mecenas (atualmente diríamos sponsor) Cosme II de Médici
A primeira solução consistiria em eliminar o desenho de
(1590-1621). Você não acha que esta página resume bastante
bem nosso problema? (Figura 4. l) baixo, esquecendo pudicamente que o Galileu que "revolucio-
nà' a astronomia é o mesmo que faz um horóscopo. Assim pro-
cedeu a maior parte dos tratados desde o século XIX: publica-
ram a parte de cima dessa página, cortando a parte de baixo!
Isso porque essa censura era bastante cômoda: esquecendo por
Nico/aus Copernicus, Nova York, Penguin, 2004, a respeito das anotações feitas
tempo suficiente e com grande obstinação que se trata da mes-
ao longo do tempo pelos leitores do livro de Copérnico. A propósito do mes-
mo episódio, é possível ver também o encantador livro de Erwin Panofsky, Ga- ma página, pode-se dar a impressão de um Galileu genial que
lilée, critique d'art (traduzido por Nathalie Heinich), seguido de Attitude e fhé- descobre a astronomia "fora de contexto". "Fora do solo", co-
5
tique et pensée scientifique, de Alexandre Koyré, Bruxelas, Impressions Nouvel-
les, 2001. mo se fala das hortaliças cultivadas. Basta ignorar a história das

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Cogitamus
..;;;:._
,,....-- ..,........--

afinco para que as ciências deixem de ter


ciências com bastante permite definir dois termos particularmente obscuros: "moder-
aiguma história .. • , mais honesta, mas nem por isso mais
• nidade" e "modernização". É moderno quem foge de um pas-
A segunda so uçao e1 , . . d . sado em que a verdade dos feitos e as ilusões dos valores se mis-
. onservar toda a pagma, am a que seJa pa-
crível· consiste em c "d" "d"d turam de um modo inextricável; é moderno quem pensa que,
· .
ra explicar que Gal"leu
i possui uma alma 1v1 1 ad entre dois
em um futuro próximo, a Ciência finalmente vai se apartar, de
"· " . odernidade", representada por seu esenho da
mundos . a m d , . . ,, forma completa, da confusão arcaica com o mundo da políti-
L ua, e "os resq ui'ci·os de apego a um passa o m1st1co e arcaico
, . ca, dos sentimentos, das emoções, das paixões. O moderno, o
É possível perdoá-lo com boa vontade porque, nessa epoca, modernizador, é, portanto, aquele que sempre está fugindo em
sem Centro Nacional de Pesquisas Científicas e sem Instituto direção a um futuro radiante, que só é possível capturar quan-
Max Planck, o pobre infeliz tinha que viver às custas de um do em contraste com um passado odioso. 3
príncipe. A julgar por esse relato, o de que estava conectado a Existiria uma terceira solução? Acredito que sim, mas com
esse "resquício de arcaísmo", Galileu teria sido completamen- a condição de que essa grande encenação do front de moderni-
te moderno e apenas desenhado crateras lunares, e nada de ho- zação incessantemente deslocado para a frente seja um pouco
róscopos. Assim como a própria Lua, o "pai da revolução cien- modificada. Estou certo de que você percebeu a estranheza da
tífica" - como é chamado - tem seu lado luminoso voltado versão precedente, que pintava todos os cientistas como almas
ao Iluminismo e seu lado sombrio submerso na obscuridade. "liberadas" em tudo o que têm de moderno e "atadas" ao que
Dessa forma, Galileu chega a ser uma figura de "transição" en- ainda conservavam de arcaico. O que aconteceria se essa estra-
tre o antigo cosmos - onde os horóscopos ainda eram úteis nha psicologia fosse modificada e tanto as fontes de conexão
para bajular um cortesão - e a Lua do universo, que muito com o passado quanto os graus de liberdade fossem redistri-
em breve seria infinito. Com similar interpretação (da "tran- buídos? Tentaríamos seguir, de preferência, em um determina-
sição à modernidade"), transformamos Galileu não em uma do período, a lista dos seres aos quais os cientistas se sentem ape-
personalidade múltipla em um mundo múltiplo, como qual- gados e que se esforçam para recombinar, para levar em conta a
quer um de nós mas si·m • fjA •
multiplicidade das injunçóes contraditórias que sua época pare-
' em um esqu1zo renico em um mun-
do também dividido d · O , ce lhes impor. A encenação mudaria em um instante. As almas
Gaston Bachelard t em · ois. grande epistemólogo frances
eonzou ao extremo sobre essa dualidade, não estariam mais divididas entre a vinculação e a desvincula-
tornan do essa esquizofre . , . ção; isso não faria sentido algum. Tais almas teriam obrigato-
busca de " , . . Iliaª propna definição do cientista em
seu espmto cient'fi " D .
sador seria aqu l l i co · e acordo com ele, o pesqm-
e e que uta cons· b
trai do passado igo mesmo, que sempre se su - 3 Sobre as definições destes termos: moderno, modernização, modernis-
escuro que d
E . ameaça evorá-lo mo, leia, de Bruno Latour, Nous n'avons jamais été modemes: essai d'anthropolo-
m outro livro aliás d . .
ideia de umfiont ' '. esenvolvi o enfoque de que esta gie symétrique, Paris, La Découverte, 1991 [ed. bras.: Jamais fomos modernos:
sempre adiado ensaio de antropologia simétrica, São Paulo, Editora 34, 1994].
e renovado da Ciência é o que
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Cogitamus

riamente seus vmc , ulos, suas ligações, mas se esforçariam d l para


do universo; e, depois, o que haveria de chamar, de acordo com
unir de outra fiorma os elementos disjuntos. quan o e es se tor-
o belo termo de William James, o multiverso ... (Se você acha
nam ouco a pouco incompatíveis entr_e si. . -
P . b bri·r semelhante via para a descnçao que estou indo muito rápido, sinto muito, não é minha culpa;
Pois em, para a , . .em- acontece que tenho que resumir várias sessões ... )
, . d os mund os c·ientíficos ' seria necessario
pinca _ . abandonar
, A
inte-
gralmente a grande narrativa da revoluçao cientifica. Voce bem
Na verdade não é tão difícil se isso for feito passo a pas-
sabe que os historiadores ficam horrorizados diante desse ana-
so. Em primeiro lugar, deveríamos considerar de maneira mais
cronismo que transforma as pessoas do passado em precurso-
séria esse termo: "revolução" .4 Podemos revisar a "revolução
res de um futuro que não conheciam e em direção ao qual não
científicà' do mesmo modo que os historiadores não cessa-
tendiam. Infelizmente, no caso das ciências, esta história re-
ram, desde Tocqueville, de reexaminar a "Revolução France-
trospectiva tem diante de si um futuro venturoso: de Arquime-
sà'. Houve, claro, acontecimentos trágicos que foram interpre-
des a Hawking, é como se nunca tivesse havido mais que um
tados por alguns de seus protagonistas utilizando o tema da "re-
único grande movimento contínuo, um único gesto heroico, volução", mas podemos dizer que por isso esses acontecimen-
em que cada cientista apenas teria sido um ator balbuciante e tos eram "revolucionários"? Aos olhos de Tocqueville, e mais
transitório. Se pudéssemos nos desfazer desse erro de método, recentemente de todos os que, depois dele, reinterpretaram a
não passaríamos mais de um cosmos (arcaico e finito) a um história, esta seria uma conclusão demasiadamente rápida. Ain-
universo (moderno e infinito), mas, sim - e aqui reside toda da mais porque o termo "revolução", no sentido de uma sub-
a dificuldade-, passaríamos de um cosmos a outro cosmos, em versão radical que permite traçar uma linha distintiva entre o
que os seres antigos, tanto quanto os novos, teriam sido rear- passado e o futuro, provém das ciências, e de modo algum da
ranjados de forma gradual. Inclusive, se quiséssemos resumir política. Basta ler o excelente livro do mestre francês da etimo-
em apenas uma frase a filosofia dessa história alternativa das logia, Alain Rey, para reparar que na realidade foram os cien-
ciências, seria preciso dizer que passamos de um cosmos - o
do século XVU - a outro cosmos d , 1 XXI d
. d - o o secu o - e-
p~i~ e um período, no fim bastante curto, em que teríamos re-
sidido em um universo lh . d ' 4
Sobre o termo "revolução", ver, de Alain Rey, "Rivolution". histoire d'un
.
acreditado estar em um , ou, · me or ain a, em que tenamos mot, Paris, Gallimard, 1989. Sobre um exemplo de corte radical, ver, de Bcr-
.
trospectivamente de queuniverso
s antes
d de nos darmos conta re- nadette Bensaude-Vincent, "Lavoisier: une révolucion scicntifiquc", em Michel
• e tratava e um cosmos como os de- Serres (org.), Éleménts d'histoire des scimct!S, cit., pp. 363-86. A respeito de
mais, mas com outros ingred· d,I',
Então , para peno
. d·izar grosseiram
tentes 1:Jerentemente combinados. outra periodização, ver, de Stephen Toulmin, Cosmopolis: The Hiddm Agenda
ofModernity, Chicago, University of Chicago Press, 1990. O livro essencial so-
primeiro distingu· , , ente esses episódios imensos, bre todo esse período é o de Elisabcth Eisenstein, La rtvolution t:k /'imprimi
ltlamos a epoca do . .
te, dos - cosmos· e .d - ou, mais prec1samen- dans l'Europe des premiers temps modernes, Paris, La Oécouverte, 1991; Hachet-
, m segui a, do século XVII ao século XX, a te "Poche", 1993.
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.........--- ...

a pouco o sentido tradicional


· t ansforrnararn pouc0 cada vez que o termo for utilizado, acenda a luz de warning... )
nstas que r l . nário corno aquele que volta, deli-

I· (0 q ue concebe o revo uoo


carnente, ao mesmo; por ex
um senndo,. e·
com erelto,
, - - b l
- )
ernplo os astros e as estaçoes em
novo , de urna subversao tao a so uta
Peter Sloterdijk- que, de acordo com o que sei, é muito com-
batido na Alemanha - propõe o termo, muito esclarecedor
em minha opinião, "explicitação": ''A história é a da Explicita-
'
d e um passad o Par..
.,, semt1re
, ultrapassado. E se " chega a essa
• mu- ção, e não a da Revolução ou a da Emancipação". 5 A seus
·
d ança em v1rtu e d de urna amálgama entre 'A Revoluçao _Glo- olhos, a história nunca rompe com o passado, mas permanen-
nosa

1nglesa - conceb1'da, aliás , como
» •
, .uma ,, Restauraçao
. . da temente torna explícitos cada vez mais elementos com os quais
ordem perturbada - e a "revolução qwm1ca de Lav01s1er, que temos que aprender a viver, elementos que serão compacíveis
ele tenta a todo custo separar de forma radical da alquimia, à ou incompacíveis com os já existentes.
qual se juntarão, finalmente, as "revoluções do Globo" descri- Será que o que comentei com você é o suficiente para fa-
tas por Cuvier: os imensos cataclismos geológicos. Assim co- zer surgir o contraste entre interpretar a página do diário de
rno a palavra "racional", "revolução" é, portanto, um termo de bordo de Galileu de acordo com os modelos opostos da revo-
guerra na boca de combatentes que procuram tornar irreversí- lução e os da explicitação? Se escolher o primeiro, irá se per-
veis as transformações que, sem sua intervenção, correriam o guntar como um homem profundamente original, moderno e
risco de se reverter bastante depressa. Esse termo, cheio de ar- racional como Galileu podia condescender a ainda traçar ho-
dor belicoso, é o que os revolucionários tomariam dos cien- róscopos no ano de 1610. Mas, com o segundo, você tentará
tistas para marcar no âmbito da política uma ruptura igual- compreender que outros elementos terão que ceder seu lugar a
mente radical, tornando-a - assim ao menos acreditaram - partir do momento em que Galileu agregar ao cosmos uma Lua
irreversível. feita da mesma matéria - aparentemente corrupúvel - que
Negar que a revolução científica ou - ainda melhor - a Terra. Será necessário abandonar o geocentrismo; já os ho-
que as revoluções científicas tenham sido revolucionárias não róscopos, aparentemente não; a fé católica, tampouco; a inter-
é equivalente a dizer que nada aconteceu. Não se trata - co- pretação literal de certos episódios da Bíblia, sim; já o patrocí-
mo se poderia pensar de forma apressada - de uma posição nio principesco, definitivamente não ... E assim irá passando,
"reacionária"·, alias' , vo ce' compreen d era' fac1·1 mente que os d 01s
· de elemento em elemento, cada um dos quais será avaliado,
termos "revoluçã0 " " - ,,
' e reaçao , nascem da mesma filosofia da julgado, modificado, recombinado. Dito de outro modo, será
história. Quer dizer qu d
,. , e, no curso e grandes acontecimentos, pedido à história das ciências que designe o que é compatível
dramancos, tragicos de · · l
. ' cisivos - esco ha o adjetivo mais gran-
dioso que você quiser
·c - aconteceu, entretanto, algo comple-
tamente dllereme do ue . 5 A obra de Peter Sloterdijk, Écumes. Sphrm III (traduzida por Olivier
radical. (Al, d' q , Sugere a Interpretação da revolução
em isso, voce pode . " ,, Mannoni) , Paris, Maren Sell, 2005, pode oferecer outras pistas sobre a ideia de
soviética, islâmica d' . l conunuar com as revoluções humanidades científicas pelo interesse colocado nas condições da cultura ma-
' igua , sem se es quecer d as ".m d ustnais. . ,, ; terial que permitem o surgimento da sobrevivência dos seres humanos.
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. .
_ , h ce completamente o estranho costume seres humanos ou não humanos cujas condições de existência vão
e o que nao e, que rec a . . . - .

de submeter os cienns · tas da época a esta mqms1çao, por meio
. pouco a pouco se tornando explícitas no transcurso das provas sub-
da qu al se enumeran
. ·a tudo aquilo ao que aderem em duas . hs- metidas pelas disputas.
·m de arcaico, outra para o que tenam de
tas: uma para o que te . . - . Por exemplo, na controvérsia do climategate, não é apenas
"moderno. " ou a1·nda dizer· os cientistas serao libertados da es- o clima que está em jogo. Cada um dos protagonistas coloca-
magadora obrigação de se liberar constantemente de um pas- rá a ênfase em uma disciplina que lhe pareça mais confiável,
sado que os acorrentaria. em um tipo de dados mais ou menos convincentes, mas tam-
Para fazer este exercício - o terceiro que peço a todos os bém em um procedimento de validação, na confiança que ins-
·i l'
if 1i
meus alunos - , reutilizo a p al avra "cosmos" , mas toman d o-a pira um tipo particular de especialistas. Não é que a Ciência
' 1 no sentido qué costumam lhe dar os antropólogos: o arranjo esteja de um lado e o disparate de outro, mas, antes, ocorre a
., i
: ! de todos os seres que uma cultura particular reúne em formas de eleição de uma ciência em meio a outras e, inclusive, dentro
1
vida prática. E quando os antropólogos dizem "todos os se- dessa mesma ciência, de uma forma de fazer, de um paradig-
. res", devemos ter um espírito amplo e o coração aberto: são os ma, de um estilo de pesquisas, até de um centro de pesquisa
1, deuses, os espíritos, os astros, tanto quanto as plantas, os ani- particular cujos resultados inspiram maior confiança. Mas os
·mais, a parentela, os utensílios ou os rituais. Eu poderia utili- protagonistas diferem também pela nacionalidade, o modo de
zar a palavra "cosmologias", no plural, mas isso daria muita financiamento, as ideias que têm sobre o desenvolvimento eco-
coerência a conjuntos de vínculos que devem ser explorados nômico, a política, as condições de vida que imaginam para
um a um e, frequentemente, na desordem e no modo da bri- seus filhos e também pelas memórias que têm do clima de sua
colagem. Se a história retrospectiva supõe um erro de méto- infância. Não se trata apenas de que têm "valores" diferentes
do, encerrar os seres do passado em cosmologias muito siste- ou "visões de mundo" distintas, mas sim de que, diante de um
t
3 má~icas também seria. É por isso que pego emprestado de meu novo acontecimento, deverão traçar novamente, para si mes-
amigo John Tresch o termo, mais modesto, "cosmograma". 6 mos, no calor da discussão com seus aliados ou seus adversá-
~ntão, peço aos alunos que, a partir de um caso atual, recons- rios, a rede completa daquilo em que creem e daquilo que lhes
tituam os cosmogram as d as d"Irerentes
e · ·
partes que parucipam importa. Traçar os cosmogramas significa se tornar sensível a
da controvérsia Eles d d . • essas listas de associações e de duelos lógicos sem recorrer à dis-
J • evem apren er a descrever as assoczaçoes
ae conveniência de co ·st • · J tinção entre o racional e o irracional, o moderno e o arcaico, o
' exz encza, ae oposição e de exclusão entre
sistemático e o assistemático.
6 É verdade que, na boca dos antropólogos, um "cosmos"
Não existe outra definição do termo que a referida por John Tresch em ou uma "cosmologia" se refere, com mais frequência, àquilo
seu artigo "Cosmogram", publicado em Melik Ohanian e Jean-Chriscophe
que dura ou que apenas se modifica lentamente ou por catás-
Royoux (orgs.), Cosmograms, Nova York, Lukas and Sternberg, 2005; mas e ce
livro não é fácil de encontrar. 5 trofes repentinas. Aliás, esta é a razão de existir semelhante ten-

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..,.......--- ...
e • 'ter de um sistema, de uma estru-
dência de lhe conrenr O cara _ " ,, saem textos em que, de uma maneira ou de outra, as coisas das
l , . Ora eu utilizo a noçao de cosmograma
tura d e uma og1ca. , d d quais falamos testemunham elas mesmas essa mistura tão par-
para' segmr
. assoc1açoes
• - que parecem, pelo menos es e o Re-
A~ ticular de diferença e de semelhança entre uma prosa e a ins-
.
nascimento, cons tantemente perturbadas. Por que. . Por causa
. crição que comenta. Dessas formas originais de visualização,
· -
d a irrupçao de novos seres aos quais não se permite que seJam por uma admirável sucessão de invenções, surgiram rodas as
. d' ,, D
inseridos na trama usual das "cosmologias m 1genas . e on- provas que chamamos de científicas.
de vêm esses novos seres? Um pouco de todo lugar, e certamen- Na realidade, o laboratório amalgama muitas tradições di-
te da imensa circulação dos mercados e do comércio, das ino- ferentes. Descende, em primeiro lugar, do ateliê do artesão. 7
vações dos ateliês, dos achados que surgem nos estúdios dos ar- Nesse ateliê, desde o fim do Neolítico, os materiais - a argi-
tistas, das guerras e das desgraças dos tempos, sem esquecer os la, os metais, o vidro, a madeira, os têxteis, o couro, os álcoois
ratos, os micróbios e as pestes, mas também, em uma propor- - são transformados por mãos cada vez mais especialistas de
ção nada desdenhável, desses lugares que são chamados de la- artesãos cada vez mais especializados. Submetido ao fogo, à
boratórios e cuja importância e ubiquidade não deixaram de pressão, ao amassamento, ao estiramento, à fermentação, eis
crescer desde o século XVII... e aos quais eu gostaria muito que que cada ser do mundo perde sua aparência para adquirir uma
meus alunos se apegassem. Queria tentar introduzi-los na vida completamente diferente. A lista de qualidades que definiam a
:1 de laboratório sem submergi-los de imediato na grande narra-
;1 areia ou a argila se transformou por completo: a areia aqueci-
tiva da revolução científica. Como falaríamos de nosso passa- da se converte em vidro transparente; a argila se converte em
:11 1
.
do se fôssemos capazes de restituir as proezas da ciência uma
vez libertas da crença de que essas proezas nos teriam feito pas-
sar do cosmos finito ao universo infinito? Espero poder mos- 7
Não há síntese alguma sobre a história do laboratório, e apenas existem
l trar a você, em seguida, que, ao nos permitirmos herdar outro obras especializadas, algumas centradas na etnologia dos laboratórios, como a
de Bruno Latour e Steve Woolgar, La vie de laboratoire, Paris, La Découverte,
passado, provavelmente estamos em condições de imaginar ou-
1988 [ed. bras.: A vida de laboratório, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997],
tro futuro.
ou a de Sophie Houdart, La cour des miracles: ethnologie d 'tm laboratoire japo-
nais, Paris, CNRS Éditions, 2008, e estudos por disciplina como o de Adele
Na carta anterior eu já a havia deixado às portas do labo- Clarke e Joan Fujimura (orgs.) , La matéria/iti des scirow: savoir-faire et instru-
ments rians /es sciences de la vie, Paris, La Découvene, 1996; e outros mais téc-
ratório, bem na interface, fina como uma folha de papel, na
nicos como Karin Knorr-Cetina, Epistemic Cu/tures: How the Sciences Make
qual o texto em prosa de um artigo publicado por uma insti- Knowledge, Cambridge, Massachuseus, Harvard University Press, 1999. Pro-
tuição científica insere - de uma forma que tem variado cons- vavelmente, o melhor seja ler o excelente e bastante acessível livro de James
tantemente há três séculos - o documento extraído de um D. Watson, La double hélice, Paris, Robert Laffont, 1968 (edição de bolso), que
instrumento qualquer. É necessário levar a sério essa bela pala- situa com precisão o lugar da experiência e das práticas de laboratório na exis-
tência cotidiana dos pesquisadores no transcurso de uma descoberta de impor-
vra "instrumento", o que permite instruir-nos. Do laboratório tância capital.

118
Quarta carta 119
Cogitarnus

Ili
r --- ,..
• ·ca· o suco d e uva passa a ser uma bebida forte. Muito
ceramt , , • · · 1 lênios antes da nossa era, e se imaginar equipada com um esti-
. •
antes de ex1snrem os laboratonos, e:x1st1am esses ugares um
. • de segredos às Vf:reS zelosamente guardados , lete de chifre e uma tabuinha de argila? A princípio, sua fi.m-
pouco mistenosos, . .
ção seria, a serviço de seu amo, marcar com um sinal cada far-
nos quais• se m etamorfoseavam os materiais
. do mundo.. Atra-
do de grão que entrasse ou saísse desse celeiro. 8 Dizendo de
vés do ateliê e no ateliê, o mundo vai mudando de qualidades.
outra maneira, peço a você que se ponha no papel de um escri-
A Enciclopédia de Diderot se maravilha com isso, e com razão.
turário mesopotâmico ... O que vai acontecer em seguida? Vo-
Em medicina, em biologia, em física, em arquitetura, em óp-
cê e os demais escribas (ainda que eu duvide que tenha havido
tica ou em armamento, o artesão precede sempre ao engenhei-
mulheres nesse cenáculo) se encontrarão rodeados de tabuinhas
ro, a quem o cientista tenta alcançar de longe. A situação ape- que marcam, de diversas formas, a entrada e a saída dos grãos,
nas consegue se inverter em um período já bem avançado do as placas de sal, os zebus, as peles de cordeiro etc. Inevitavel-
século XIX, e somente no caso de alguns ofícios. Ainda hoje, mente, você e também os demais escribas começarão a consi-
se você entrar em um laboratório, irá se assombrar ao ver a derar essas marcas, não mais vinculando cada uma com um far-
multiplicidade de provas às quais submetem os seres dos quais do ou uma placa, mas, sim, entre si. Rapidamente você esque-
falávamos antes, pesquisadores definidos antes de tudo pela ha- cerá - ao menos durante uma parte de seu tempo - que o
bilidade de seus gestos, pelo cuidado que dedicam a seus ins- objetivo desta burocracia é servir ao príncipe e validar as dívi-
trumentos, pela dureza e pela extensão de seu aprendizado. das e os impostos. Simplesmente, começará a contar por con-
Não há dúvida de que as mesas abarrotadas de um laboratório tar. Em pouco tempo, submeterá os aprendizes a exames refe-
contemporâneo conservam algo do ateliê do artesão, para não rentes não a esse ou àquele bem, mas, sim, a tal ou qual signo
dizer do forno do cozinheiro. desses bens. Irá abstrair signos para associá-los a outros signos.
Tudo isso é bem conhecido. Mas talvez você se assombre E assim você terá inventado a abstração, ficará maravilhada
se digo que o laboratório descende também do escritório, ou, diante do feito de que as cifras entre si, separadas daquilo que
~ais precisamente, desses lugares tão protegidos quanto o ate- elas contam, se descobrem portadoras de propriedades tão no-
he do artesão, em que se inventaram durante milênios isso que vas e imprevistas como o couro tingido ou o mineral fundido.
fazemos bem em chamar d e "tecno1og1as · mte
· 1ectua1s · " . A pro- Você passará a calcular algoritmos, sequências de cálculos cada
va do fogo met e · h' vez mais distantes das preocupações do seu príncipe. E, muito
outros tipos de pamorroseia
- os _materiais mais diversos. Mas
_ ª
rovaçoes, nao menos materiais, que sao ca- rapidamente, por jogo, por entusiasmo, por estupefação dian-
pazes de metamorfosear · ·d d " ,, · ·d d s te dos poderes da abstração sobre tabuinhas de argila, começa-
"abstratas,, e de tra 6 at1v1 a es concretas em anv1 a e
, bros de sábios!
em cere ns ormar pouco a pouco cérebros comuns
Você pode se tran , • 8 Inspiro-me muito livremente no capítulo de James Ritter, "Chacun sa
mara firesca de um ceie. sportar
d . por meio do pensamento a ca-
.
vérité: les mathématiques en Égypte et en Mésopotamie", em Michel Serres
iro e tngo na Mesopotâmia, alguns mi- (org.), Éleménts d'histoire des sciences, cit., pp. 39-61.

120
121
Quarta carta
Cogitamus
b- as
, ra, a e1a b orar razoamentos cada vez mais longos, a .fazer de-
...........---

tem dúvidas, tente rememorar o tempo que foi necessário,


- que em segui·da submeterá a. outros escnbas, seus quando era criança, para aprender a tabuada e, em sua adoles-
1 monstraçoes
, · condi"çóes de apreciar essas
.
cunosas
.
m1s- cência, para adquirir os hábitos da demonstração das equações
co legas, os umcos em . . . _ .
·
turas d e Jogos de engenho , de ritos de m1c1açao, de aprend1za- de segundo grau ou do cálculo infinitesimal. Você provavel-
em e de descobertas fulgurantes sobre as.relações que mantêm mente gosta de matemática; sim, mas ela não nasceu de um re-
!s números entre si, mas que nunca haviam se manifestado sem polho. Por sorte, temos aos montes psicólogos e especialistas
as técnicas inventadas nesse laboratório de papel ou, melhor em ciências cognitivas para nos ajudar, ainda hoje, a distribuir
dizendo, de papiro e argila. as competências entre nossos cérebros, nossos hábitos e nossas
Certamente você já percebeu para onde aponto. Se os ma- técnicas intelectuais. Regra de método: "Dai a César o que é
teriais dos artesãos sofriam no ateliê transformações inusitadas, de César e aos instrumentos o que é dos instrumentos". Com
ainda mais reais são as mudanças que experimentarão nossas isso quero dizer: distribua entre o gabinete, os colegas e as téc-
capacidades mentais, uma vez submetidas à prova da escritu- nicas de inscrição isso que se supõe seja produzido apenas den-
ração e ao fogo das tecnologias intelectuais. À condição de se tro das cabeças. 9
manter arquivos, de se manter, tanto no escritório quanto na Como definir o laboratório atualmente? Acho que não
escola, a disciplina rigorosa dos escribas, você então poderá ob- simplificaria demais dizendo que é um "requintado cadáver",
ter de seu cérebro - sempre no interior da esfera protetora de
um recinto fechado - capacidades de cálculo e de abstração
sem precedentes. Isso não quer dizer que você será mais inteli- 9 Sobre a história das tecnologias intelectuais, há inúmeros desenvolvi-

11 gente do que era, mas sim que se encontrará em um gabinete,


mentos no livro de André Leroi-Gourhan, Le geste et la parok, cit., mas não
existe nenhuma obra de síntese. Um bom livro é o de Mary Carruthers, Le li-
rodeada de colegas e de arquivos, manipulando materiais frá- vre de la mémoire: la memoire dans la culture midiévak (traduzido por Diane
geis encobertos de inscrições, aprendendo os ritos de sua pro- Meur), Paris, Macula, 2002. É possível encontrar indicações úteis em Claude
1 fissão e sempre submetida ao patrocínio de um príncipe ao Rosental e Bernard Lahire (orgs.), La cognition au prisme des sciences sociaks,

1' qual, de todos os modos, terá que continuar servindo para con-
servar sua "autonomià'.
Paris, Éditions des Archives Comemporaines, 2008. O livro mais detalhado
do ponto de vista dos métodos, ainda que de leitura técnica, continua sendo o
de Edwin H1,1tchins, Cognition in the Wild, Cambridge, Massachusens, MIT
Ninguém se esquece do artesão que nos permite ter vasi- Press, 1995, mas é possível encontrar alguns trabalhos em francês do autor pa-
lhas, cadeiras, mesas, computadores e eletricidade. No entan- ra ter uma ideia da noção de cognição "distribuída": "Comment le cockpit se
P.;

r to, é cometido com frequência o erro de deduzir, demasiada- souvient de ses vitesses", em Socio/ogiedu Travai/, nº 4, 1994, PP· 451-74. Uma
revista científica, a Revue d'Anthropo/ogie des Connaissances, dedica-se atual-

!j mente depressa, as tecnologias intelectu"cu.is , q ue conseguem o b -


ter de nossas capacidades inatas outras com tA . fu
mente a essas questões. Sobre um enfoque mais histórico, é possível ler o bas-

ll ~ . f:. pe enc1as e nçoes. tante acessível livro de Delphine Gardey, Écrire, calcukr. classer: comment une
N ao caia, por avor no erro d · révolution de papier a transformé ks sociités contemporaines (1800-1940), Paris,
. 'A e esquecer as provas e as técmcas
·f que perm1tem a voce possuir a abstraça-o e o cál culo. Se am . da La Découverte, 2008.

122 Quarta carta l 23


Cogitamus
11111!":
...,......--- ..
1 1 ·t
,,
1

. , 1de um ateliê com uma técnica intelec- "livro da natureza escrito em linguagem matemáticà'. Boyle,
0 contro improvave . - d -
en d iência à expenmentaçao, e o anesao ao por sua vez, aceita não apenas simplificar os fenômenos, mas
tual Passa-se a exper
·. . uida ao químico, notando que a prova a também produzir outros novos artificialmente, graças a instru-
alqmm1sta, e em seg
·das as matérias desemboca agora em um do- mentos custosos (por exemplo, a bomba de vácuo) financiados
que foram su bme t1 .
cumento, uma m · scriça- 0 • Nasceu o mstrumento, esse pequeno por instituições às quais se deve dotar e cujos resultados são vi-
m1.1agre por me1·0 do qual os seres do mundo se tornamlo não síveis aos olhos de uma comunidade de testemunhas confiáveis
apenas capazes de metamorfoses, mas capazes de falsear,. . eles (que deverá ser criada a partir do zero). Tal comunidade será
próprios, 0 que dizem a respeito deles. E se trata dec1d1damente mantida por meio de um estilo particular - o relato de expe-
de inscrição. riência - , que deverá se ocupar das interpretações muito vas-
É provável que isso tenha ao menos duas origens. 11 Pode- tas e dos usos rapidamente utilitários. Ambas as correntes ape-
ríamos dizer, para fixar as ideias: uma, do lado de Galileu, na nas irão se fundir no século XIX, com a invenção de instru-
:1 1 Itália, que não tem necessidade de laboratório (quando faz uma mentos com quadrante, telas ou interfaces legíveis, que farão
'!
1 ! experiência diante de seu mecenas, apenas deve tirar o mamei testemunhar diretamente os fenômenos - isto é, muito indi-
1
da mesa do banquete principesco ... ), e a outra, do lado de Ro- retamente - por meio de símbolos matematizáveis como con-
bert Boyle, na Inglaterra. Galileu inventa dois dos ingredien- tadores, sensores, anotadores de todas as espécies e modelos.
tes essenciais: o primeiro refere-se a não ser possível produzir Todo paciente que hoje se submete a exames em um laborató-
provas sem rarefazer imensamente os fenômenos que estão sen- rio médico está habituado a essas mil maneiras de fazer com
do abordados (de todos os tipos de movimento, considera ape- que seu corpo seja legível, visível, cifrável e calculável (e, além
nas um, a queda dos corpos pesados, e deixa de lado a fricção); disso, sabe que a cada vez isso tudo custa uma pequena for-
a outra, também fundamental, consiste em fazer com que o ob- tuna, o que vai lhe evitar todo o idealismo sobre as condições
jeto de experiência seja compatível com um formato vindo an- reais de um conhecimento exato ... ) (Figura 4.2).
tes da geometria, e em seguida da álgebra. É o famoso tema do Ainda é preciso que os fenômenos sejam chamados a com-
parecer no seio de uma assembleia interessada em seu testemu-
t 10 nho (escolhi deliberadamente termos procedentes dos tribu-
:! 11
S'inscrire en faux, em francês. (N. da T.)
nais). Porque, na ampla genealogia do laboratório, é necessá-
1 Sobre a origem destas duas grandes tradições - em pnme_ . theª
· iro lugar,
galileia - , ver Mario Biagioli, Galileo, Courtier: lhe Practice of Sczence ~n
rio introduzir uma terceira filiação: a da Academia, no sentido
de uma comunidade habituada à controvérsia filosófica - ou
1H Cu/ture ofAbso/utism, Chicago, Chicago University Press, 1993, que P 0 e s~r

! complementado com o admirável livro de Stillman Drake, Ga/ilte, Actes Su ' seja, à argumentação - , que o pauocínio dos príncipes man-
Ade,, 1980, 1986. A "gund, u,diçáo _ , da ape<iênda - é muim be: teve protegida das exigências muito urgentes, muito rigorosas
1 descrita
h na obra fundadora de Steven Shapin e Simon Schaffer, Lroiathan an e muito arbitrárias de outras comunidades: comerciais, religio-
t e Azr-Pump:
. Hobbes, Boyle, and the Experimental Life, Princeton, p rmce
· con sas ou políticas. Existe toda uma bibliografia sobre a invenção
University Press, 1985, além do já citado livro de Christian Licoppe.

125
Quarta carta
124 Cogitamus

l:..
,..
. , • dessas comunidades "relativamente autôno- nais de avental branco possuem um léxico imenso para distin-
e a pers1stenc1a A • ,

,, sa~o que resume - voce Jª deve ter compreendido guir com cuidado a boa e a má experiência, o bom do mau co-
A• ,

_ uma forma de relação de dependencia que obrem, graças a lega, e sabem reconhecer em uma proposição aquela que é "cá-
um intercâmbio de serviços, certa independência (sabemos, " "fi . ,, ur d ,, (( . l h ,, (( al ,, "
1id a , na , recun a , s1mp es e engen osa , m igna , ren-
desde Arquimedes, que não era possível se tratar de "autono- tável" e até - acho esta expressão maravilhosa - "a que nem
mia científica", no sentido extraterritorial que com frequência ao menos é falsà' . Devemos nos voltar a este léxico corrente e
é dado a essa expressão). Se os cientistas (termo surgido no sé- banal para compreender os hábitos profissionais que as expres-
culo XIX) foram chamados durante um longo tempo de "filó- sões "método" ou "espírito científico" não nos permitem qua-
sofos" ou "filósofos naturais", é porque eram herdeiros de uma lificar com precisão. Foi muito atinado escrever "discursos do
tradição argumentativa com dois milênios de antiguidade que método" e fixar "regras de método". Existe ali todo um jargão
:/:
li
muito tempo antes havia sabido misturar os recursos da retó-
rica com todas as exigências da demonstração.
profissional que se deve aprender a respeitar, mas do mesmo
modo que alguém deve respeitar a linguagem própria dos ju-
l
l
ristas, dos especialistas em informática ou dos encanadores. Es-
:! Figura 4.2
ses dialetos do método científico só fazem sentido para os ho-
À esquerda, Sophie Houdart (foco: Bruno Lacour) ,
à direita, Jean Rossier (foto: Émilie Hermanc).
mens de avental branco e unicamente enquanto permanecem
em contato com o laboratório. Não é uma língua universal que
se estenderia por todas as partes, a todos e a tudo, sem esforço
e sem custo algum.
Quando se esquece do laboratório, corre-se o risco de de-
fender simples banalidades em nome do método científico.
Quando se insiste aos principiantes com o famoso "método hi-
potético-dedutivo", característico, segundo se afirma, da "ra-
cionalidade científica", está-se esquecendo que cada um de nós,
para decidir se vai comprar no mercado cerejas ou morangos,
se vai pegar o ônibus ou o metrô, se vai pagar com dinheiro ou
com cartão, não deixa de aplicar exatamente as mesmas regras
Já aqui você entenderá por que eu não podia empregarª do método, apresentando primeiramente hipóteses, submeten-
distinção
d radical entre retórica e demonstração, criticada pre- do-as em seguida a provas que possam ser revisadas depois,
ce entemente. O que permite . passar de uma eIoquencta débil
A • comprovando sua falsidade ou confirmando sua veracidade ...
ª urna eloquência forte é a instituição do laboratório, sempre Neste sentido, não há nada menos "científico" que esse famoso
esquecida quando se fala de argumentação. Aliás, os profissio- "método". Se tal método parece dar frutos tão admiráveis, isso

..
126

..
Quarta carta 127
Cogitamus
. pletamente específicos, aos quais se apli-
d aos objetos, com dm'
se eve _ muns. Se as pessoas a iram uma espe- 12
chama Wunderkammer e que dará lugar às coleções e aos mu-
sas regras tao co , d
cam es
.alista dos receptores de acetilcolina por seu meto
d . o científi- seus. Ainda mais porque essas formas chegaram a ser inumerá-
ci
co e nao _ a mim,. quando compro morangos ou ecido1 pegar 0 veis, visto que atualmente há laboratórios distribuídos por to-
'
ônibus, e, por causa da novidade . da montagem que e a conse- das as partes: fala-se de laboratórios de controle, de diagnósti-
gum . que seus receptores acettassem. Em. todo o resto, . ela arra- co, de metrologia; você os poderia encontrar tanto nos mata-
zoa tao _ bem ou tão mal quanto eu; a diferença . reside
. nas, coi- douros quanto onde se fabricam cubas, nas fábricas de aviões
as das quais ela se ocupa e que consegwu tornar arttculaveis ... e no consultório do médico. 13
s Uma vez que O laboratório seja relocalizado claramente na Mas o detalhe importa pouco. O verdadeiramente impor-
cena, podemos afirmar que os pesquisadores dizem o que di- tante aqui é recordar que se trata de lugares precisos, ocupados
riam as coisas das quais falam se elas pudessem falar, e, de resto, por pequenos grupos de pessoas argumentando que submetem
as fazem falar ou, antes, testemunhar por meio dos instrumen- os fenômenos em que se especializaram a provas particulares,
tos. Assim iniciam um novo ciclo de interpretação hesitante, mediante o emprego de instrumentos frequentemente comple-
no curso do qual as testemunhas convocadas para acompanhar xos e custosos, que obtêm como resultados parciais fragmen-
a prova experimental (por testemunho direto ou escrito, me- tos de inscrições que acabam confirmando, assegurando, inva-
diante conferência ou experiência pública) devem decidir ago- lidando, perturbando outras escrituras, acarretando consigo
ra se os primeiros pesquisadores haviam sido cabalmente auto- pouco a pouco uma convicção, por meio de um processo de
rizados pelas coisas das quais falam ao falar em seu nome. Ain- interpretações contraditórias que não cessam de se complicar
da que o termo "hermenêutica" sirva, com frequência, para e se estender e que, às vezes, cristalizam-se em um resultado as-
descrever - sobretudo na Alemanha, seu país - as ciências segurado e passam então aos manuais, em que servem de pre-
chamadas "de interpretação", em oposição às ciências chama- missas para outros razoamentos segundo as regras hesitantes de
uma hermenêutica refinada, cuja literatura científica (para vol-
das "da natureza", você compreenderá sem dificuldade que es-
sa palavra, como a palavra "eloquêncià', aplica-se a todas as dis-
ciplinas capazes de fazer testemunhar aquilo a respeito do que
12
falam e de abrir uma controvérsia no sentido definido anterior- "Gabinete de curiosidades", em alemão. (N. da T.)
mente Uma vez. · · 13
· mais, cogztamus, e não cogito . Sobre esta história complexa será preciso ler simultaneamente os dois
Retraçar toda a h· t , · d l b , . fil' - grandes clássicos de Míchel Foucault, Naissance de la clinique: une archéologie
. is ona os a oratonos e de suas 1açoes
ocuparia volumes A0 1· , . du regard médica/, Paris, PUF, 1963 [ed. bras.: O nascimento da clínica, Rio de
preciso agregar
. • ate te, ao escritório e à academia sena Janeiro, Forense Universitária, 1977], e Surveilkr et punir, Paris, Gallimard,
to, a escrivaninha
. . - eparao ser. completo - o gabinete do erudi- l 975 [ed. bras.: Vigiar e punir, Petrópolis, Vo'll!S, 1977]. Mas convém comple-
tar essa leitura com a bastante erudita e intrigante obra de Horst Bredekamp,
essa institui· - d h' ª~~uivo do tribunal, a cura do exegeta e
çao e 1stona · La nostalgie de /'antique: statues, machines et cabinets de curiosités (traduzida por
apaixonante que em seu idioma se Nicole Casanova), Paris, Diderot Éditeur, 1996.

..
128

Cogitamus Quarta carta

...
129
li 111111
...
erior) oferece um seguimento bastante bom
tar ao curso ant , única das proezas de Arquimedes, conferindo-lhe ao mesmo
rtir da numeraçao das bases de dados. Voce'
so bretu do a Pa tempo seu papel decisivo.
compreenderá- tenho certeza - que ~ss~ bacharelada volun- Retorno sempre ao "grande engenheiro" por causa de seu
tariamente arrevesada não tem outro obJetlvo que não seja im- ponto fixo, desse fulcrum que permite deslocar tudo, inclusive
pedir que se escondam assim as-humildes redes de laboratórios a própria Terra. É que, com efeito, a metáfora da alavanca, des-
com O imenso manto da revolução científica (você perceberá sa relação entre o pequeno e o grande, estabelecida por meio
que não me esqueci de sua pergunta inicial). Para respondê-la, do cálculo, define às mil maravilhas a eficácia própria do labo-
tento manter, o quanto possível, em estado o mais fragmenta- ratório e o vínculo que este mantém com aquilo que vai mo-
do, reversível e descontínuo aquilo que a grande narrativa revo- dificar tão profundamente. Dito de outro modo, a metáfora da
lucionária vai tentar unificar, sem encontrar resistência, para 0 alavanca permite compreender o efeito do laboratório de ou-
tornar irreversível. tra perspectiva, diferente da noção de "aplicação" da ciência ao
mundo real. Conforme você verá a seguir, não se trata bem de
Por que esta insistência e obsessão - talvez você diga: aplicação, mas de implicação, e mesmo de complicação...
provocação - por não querer falar prontamente de "continui- Para a melhor compreensão dos alunos, recorro ao caso
dade"? Por conta de um fenômeno essencial que eu chamo de exemplar do relojoeiro John Harrison (1693-1778), sobre
mudança de escala e que a interpretação revolucionária frequen- quem Dava Sobel escreveu um livro para o grande público e a
temente esquece. Sabemos desde Arquimedes que o laborató- respeito do qual existe também um excelente filme. 14 O que
rio - se você aceitar que remontemos até Arquimedes esse ter- um relojoeiro perdido na campina inglesa podia fazer pela Ma-
mo anacrônico - é capaz de se insinuar em todos os cursos de rinha Real Britânica? Aparentemente, não muita coisa; nada
ação para modificar sua composição; também entendemos - permitiria vincular, associar ou traduzir um para a outra. Ex-
0
exemplo era impressionante o bastante, ainda que se trate de
um mito - que a introdução das leis de proporção calculadas
14 U ma h"1scona
, · bastance acess1ve
' 1 so b re o cronometro
• mann. h o e' a apre-
pela geometria havia permitido modificar a dimensão, ou, me-
nd 0 sencada por Dava Sobe!, Longitude: l'histoire vraie du génie solitaire qui résolut
lhor ~ o, dimensionamento, das máquinas de guerra que le plus grand probleme scientijique de son temps (traduzido por Gerald Messadié),
defendiam Sira T: b , que
cusa. am em discernimos como uma vez Paris, J. C. Lactes, 1996 [ed. bras.: Longitude: a verdadeira história de um génio
a geometria oper d . '. d d táo solitário que resolveu o maior problema científico do século XVIII, São Paulo,
ou esse esv10, a arte militar fo1 es e en
recomposta, visto na Companhia das Letras, 2008); um complemento útil é Dava Sobe! e William
. ,.
Poliorcettca que passou a compreender - ao menos
- o tal fim J· H. Andrews, The Jllustrated Longitude, Nova York, Walker & Company,
Por menos que res ento.
e o cálculo dos engenheiros. Por
d m-
' 1998, assim como o filme Longitude, de Charles Scurridge, disponível em
posiçõ penemos o conjunto dos desvios e asco DVD . Sobre a história do tempo, é possível ler o clássico artigo de Éviacar Ze-
es que eu reagrup . b , ,, b mos rubave1, "La stan d ardization du cemps: une perspecuve · soc10
· h"1sconque
· " , em
como d b ei so o vocabulo "traduçao , sa e
es aratar a ar d"lh usa

.
ma 1 a que faria da matemática a ca Politix, nº 10-11 , 1990, pp. 21-32.

130
131
Quarta carta
Cogitamus
...............
,.----

. m roblema que se tornou público: em 1714,


ceto mediante u P • · d 20 ·t t·b " metros marinhos suficientemente sólidos e precisos para resis-
. l' ofereceu um prem10. e m1 1 ras por
0 Parlamento mg es tir ao espantoso tumulto de um navio de guerra do século
az de determinar a longitude, com uma preci-
um mo de1o cap , l ,, ( . . , XVIII. Seu primeiro protótipo conserva de modo admirável o
sáo de me10 • grau, de um grande circu o ou. SeJa, 55 qmlome- tempo (mas em terra, em sua casa, na sólida campina inglesa,
tros). Não irei ofendê-la lembrando-a amda que, se a lati- ou seja, onde não serve para nada). Pesa mais de cem quilos e,
tude em alto-mar seja quase sempre fac1l de calcular graças à submetido ao meneio dos solavancos, dos balanços e das sa-
elevação relativa das estrelas e do Sol sobre o horizonte, não colejadas (sem esquecer os canhonaços), corre o risco de que-
ocorre O mesmo quando se trata de calcular a longitude, pois brar. O pior, o que arruína a saúde desse pobre inventor, é que
supõe poder determinar a diferença de horário entre o Sol ao John nunca saberá, antes de voltar para a terra, se sua máqui-
meio-dia e a hora que é registrada no mesmo momento no por- na conservou com fidelidade o tempo ou não, o mínimo que
to de partida (por exemplo, Londres). Temos aqui um bom permita estabelecer comparações com outro relógio, igualmen-
exemplo de uma cadeia de traduções: os marinheiros conhe- te volumoso e frágil. Quanta angústia, quantos desaires. (Apro-
cem o problema desde a Antiguidade, mas que apenas se tor- veito para enviar a você o livro de Dava Sobel.) Harrison não
nou um problema sério a partir dos grandes descobrimentos pode apelar ao recurso de Plutarco e dizer que a ciência é su-
e da navegação em alto-mar. Para que a questão interessasse ao blime e sobrenatural e que suas aplicações são desprezíveis.
Almirantado, ao Parlamento e a toda a Inglaterra, era preciso Tampouco pode se contentar com ter razão, afirmar que seu
que já houvesse centenas de barcos navegando e correndo gran- relógio é a solução ideal e lavar as mãos quando se trata de sub-
de perigo de se chocar contra os arrecifes, um império comer- metê-lo à prova até o fim. No início do século XVIII, todo
cial, sociedades de acionistas, almirantes e também relógios mundo podia prever isso (ainda que nessa época houvesse ou-
(cujos componentes saem dos laboratórios de Huygens, dos tras soluções ainda mais difíceis, como seguir as luas de Júpi-
descobrimentos de Galileu etc.). E, além disso, era necessário ter com o telescópio). Não, é preciso que a maldita caixa mon-
que, previamente, o problema houvesse sido formulado sob ª tada sobre uma articulação mecânica não sofra nenhum golpe,
forma. de um p remio,
' ·
como· " h
c amada para apresentaçao - de e isso durante meses e meses. Não haverá "aplicação" do reló-
proJetos"' diríamo al ,
b, s atu mente, que combina em um sopro- gio ideal até o dia em que Harrison consiga estabilizar, minia-
iema toda uma ,1 , fi
- ha, comama. gama
ças. Nao - previa de direito, política e nan- turizar e firmar seus cronômetros para torná-los compatíveis
t to 1 . d posiçao possível sem um mundo já compos-
' amina 0 , compl· d 0 · ·
mas t ornados e l' . •ca , implicado e resumido por pro e-
bl
com a agitação de um navio de guerra. Esta é a razão pela qual
º. infeFz deve acompanhar ele próprio seus protótipos suces-
O. xp icitos pelas instituições. sivos durante viagens intoleráveis (ele sofre de enjoos!) , a fim
interessante do d
sário que t caso e John Harrison é que foi neces- de conseguir fazer com que seus cronômetros sejam comen-
ranscorressem d suráveis com as necessidades, as exigências e os costumes do
incorporad , cerca e trinta anos para que fossern
os a navega - d b ' Almirantado. Espero que você possa apreciar quanto suor há
çao os arcos de Sua Majestade crono-
132

._ Cogitarnus Quarta carta 133


---
. h d asiado limpa, a "tradução". Desde O ins-
palavnn a em •A • d e se orientasse em um mapa: desde então não existe navegação
nessa fala de aplicação de uma cienc1a, to o esse tra-
tante em que se h, que não passe pela indústria relojoeira de ponta. Teremos es-
balho desaparece cº mo por encantamento: . . - a apenas
. ideias
quecido que com o equipamento normal de um navio e seu
sem esforço, e as 1de1as nao transpiram.
que se des1ocam ;, - . . treinamento normal, o marinheiro, todo meio-dia solar, sobre
Que liça-0 Podemos tirar' deste exemplo. E muito simples:
a ponte, lia a hora nas agulhas de seus cronômetros, depois de
que o laboratório apenas s~r~ "ap 1·,1~ave ' l ao ~un d o rea,l" _quan-
tê-los comparado entre si para calcular o erro médio. Tudo is-
do tiver cumprido a cond1çao previa de realizar com exno to- so terá se tornado finalmente evidente. A composição terá fi-
da uma série de operações de alinhavo. Será necessário, pri- cado esquecida. Nem sequer teremos consciência de que para
meiro, que consiga coletar no mundo real, em uma escala de fixar a posição é necessário um cronômetro.
um para um, alguns aspectos dos fenômenos sobre os quais se Estou certo de que você encontrará mil exemplos deste
deseja adquirir o domínio e que em seguida teremos que apren- movimento de alavanca pelo qual os pesquisadores podem se
der a deslocar - sempre a translação, a tradução. Depois, se- introduzir em práticas existentes de grande porte, deslocar cer-
rá indispensável que os cientistas se tornem capazes - desta tos elementos, retratá-los e em seguida reinseri-los na situação
vez protegidos em recintos fechados - de explorar novas so- , de partida, que agora se encontrará modificada de maneira du-
luções submetendo a uma série de provas artificiais os seres que radoura, até que todo esse alinhavo seja naturalizado e esque-
terão sabido domesticar. Mas em seguida será preciso conse- cido.15 Nossos diários de bordo estão cheios de exemplos as-
guir de novo deslocar, desta vez no outro sentido, os resultados sim. Poderia atrever-me a dizer que, para entender a fecundi-
obtidos nos espaços protegidos do laboratório para o mundo dade das ciências, seria necessário um tratado que recapitulas-
real, em uma escala de um para um, e com a condição de ter se todas as posições possíveis (em resumo, um Kama Sutra da
í' feito experimentar - ou ao mundo real, ou aos resultados pro- libido sciendi... ). Cada vez que disserem a você que o pequeno
1
totípicos - suficientes transformações para os tornar compa- sustenta o grande, que o local sustenta o global, que uma mi-
tíveis entre si. O que supõe toda uma série de testes, de provas núscula mudança em um cálculo, em uma teoria, permite mo-
~ais ou menos públicas, cada uma das quais podendo falhar e dificar imensas forças e obter enormes efeitos, não se esqueça
por fim à experiência. Então, e apenas então, se dirá que um
resultado científi " fc . .
_ . , co teve e e1tos práticos". Então, e apenas en-
tao, .Ira. nos parece r espantoso que, por exemp1o, um "simp · les
reloJoeuo ingl • " h d.
"d es ten a po ido assegurar o curso dos \barcos 15
Sobre as variações de escala e a crítica da noção de aplicação, deve-se
e todo o Impéri0 B . • . ,, d . , ler o artigo - agora clássico - de Michd Callon, "Éléments pour une socio-
· . ntan1co . Então, e apenas então, eixara
inc1us1ve de nos s d , l logie de la traduction: la domestication des coquillcs Saint-Jacques et des ma-
XIX , , urpreen er o feito de que um barco do secu 0
possu1sse varios , rins pêcheurs en baie de Sainc-Brieuc", em L'Annü Sociologique, nº 36, 1986,
n d cronometras marinhos de algumas cente- pp. 169-208. Sobre um exemplo famoso, leia, de Bruno Latour, Pasteur: guer-
as e gramas que p .. . -
ermmam que o capitão fixasse sua posiçao re et paix des microbes, Paris, La Découverte, 2001.
134

Cogitarnus Quarta carta 135


•mento de uma incrível astúcia, que expli-
de retraçar esse movi , ta da ideia da res extensa, visto que, apesar da palavrinha res,
. mposiçóes as constantes transformações in-
ca por desv10s e co não é uma coisa, um domínio da realidade, mas sim decidida-
'd l laboratórios no curso usual de nossas práticas
rroduz1 as pe os . . . · mente uma ideia, inclusive uma ideia produzida por esta "rai-
. urva permite à episteme Ir d1reto.
Apenas a metts c nha do lar" que é a imaginação. Sei que este assunto da res ex-
tensa pode parecer um canto estranho a você. 16 É que, com
Você me dirá que minha história de laboratório não tem
efeito, trata-se de uma operação extraordinária que envolve,
nada a ver, em rigor, com a da revolução científica de Koyré. durante três séculos, toda a ciência e toda a filosofia, e que po-
Realmente, não rem nada a ver! E aí se apoia precisamente meu deríamos chamar de idealismo do materialismo. Uma nova con-
argumento ... Para compreender até que ponto é diferente, é cepção da matéria sonhada pelas ideias, enquanto essas pró-
preciso retornar a nosso querido Descartes. Quando escreve 0 prias ideias se encontram livres de todo o enraizamento mate-
Tratado do mundo, ou o Discurso do método, que cartas tinha rial apenas graças aos bons ofícios da imaginação ...
em suas mãos o bom René para jogar sua partida de pôquer? Talvez você se lembre do famoso episódio em que Descar-
Muito poucas. Alguns resultados de óptica, um pouco de ál- tes submete um pedaço de cera à chama de uma vela: a cera
gebra, a certeza crescente de que o modelo de Copérnico era perde sua cor, seu cheiro, sua resistência, e conserva apenas, no
1· 1 mais que um modelo, a lei da queda dos corpos pesados de Ga- fim das contas, sua extensão e seu movimento. Certamente, vo-
1
Weu, um pouco de acústica, toda a riqueza de conhecimento e cê terá se perguntado, não sem certa estupefação, se teria que
1' prática dos alquimistas, algumas receitas de medicina cozidas dizer o mesmo de seu gato ou de seu próprio corpo. E, sim, pa-
e recozidas durante vinte séculos . . Resultados parciais, sem ra o Descartes pensante não cabiam dúvidas nesse sentido. Aos
grandes consequências práticas, desarticulados entre si. A que olhos da res cogitam, não há nada no mundo que não sejam as
conclusão vai chegar? A uma conclusão de dimensão cósmica, coisas estendidas sem outra propriedade que aquela que pode
com efeito: o cosmos se tornou o universo. capturar a geometria, e eu acrescentaria: o que se pode dese-
, Que fantástica sacada! Ou, para ser mais polido: que mag- nhar por projeção em uma folha de papel branco. É inverossí-
maneira de inverter a relação de forças, de minimizar a mil? Sim, para todo materialista prático, para roda visão realis-
maxuna perda possível! Perto disso, o golpe de Arquimedes e
sua alavanca é uma bnnca
· d e1ra. d e criança. Nesse que continua
·
sendo
. o mais surpreend ente "romance d a matena , · " Jamais
· · es- 16 A história material do espaço não desfrutou do mesmo interesse que a

cnco, Descartes
. ' na sol'd-
1 ao d e seu gabinete aqueci d o (o que
história da metrologia do tempo. Provavelmente, a maneira mais fácil de se
quer dizer como ,b 'd orientar seja indagando na história da arte, por meio da leitura de dois grandes
.'
de experimental voce em sabe, vinculado a toda comum a- clássicos: Erwin Panofsky, La pmpective comme forme symbo/ique et autres es-
. d , .
. europeia e sua época) imaginará - e isso sais, Paris, Minuit, 1975, e Svetlana Alpers, L'art tÚ dtprindre: la printure hol-
mesmo: imaginar ' landaise au XVII' siecle, Paris, Gallimard, 1990 [ed. bras.: A arte de descrever: a
sim - ª res extensa tal como consegue pensar -
, pensar - a res . arte holandesa no século XVII, São Paulo, Edusp, 1999) •
cogitam. Observe você que digo que se tra-
137
136
Quarta carta
Cogitarnus
"'"' .,......--- .
ra do que e, um o bJ'eco imerso no mundo, para todo corpo vi-
sa se poderia compô-lo) ao qual são agregados, como O fundo
vo, para to da a comunidade de pensamento. . , . .
Mas a operação de Descar~es nao ~isa a verossimilhança. de uma tela'. a aposta, o romance, a hipótese, 0 ideal de obje-
. al gO ainda mais sensacional: vai assegurar, sem pagar
Permice tos dos quais apenas se conserva a dimensão e que apenas se
deslocam pelas causas que os precedem. É a matéria pensada
custo algu m , a continuidade de um novo mundo . .e a extensão
,
imediata a rodo O universo dos resultados parciais sa1dos dos pelas ideias. Mas, é claro, o relato que Koyré dá é completa-
mente diferente: nesse relato, por trás de cada descobrimento
laboratórios. Entre todos os objetos díspares que os laborató-
parcial - de Galileu, de Boyle, de Descartes, em seguida de
rios dispersos vão levar pouco a pouco ao conhecimento mul-
Newton, de Laplace, mais tarde de Einstein - , se revela cada
tiforme de disciplinas heterogêneas desenvolvidas por pesqui-
vez melhor um universo material, real e infinito cujas leis são
sadores cão variados quanto o traje do Arlequim, a res extensa
semelhantes em todas as partes.
permitirá agregar a continuidade, que dará a todos os estudio-
É como se os dois relatos invertessem a relação entre o pri-
sos o ardor suficiente para estender-se antecipadamente com o
meiro e o segundo plano. No relato Cogitamus, o que aparece
pensamento por todas as partes. É como se lhes dissesse: "Por
em primeiro plano são os laboratórios, com todos os seus des-
! ! menores, parciais ou incompletos que sejam os resultados saí- vios e composições, seus cosmogramas variados; enquanto o
dos de vossos trabalhos e vossas tentativas, podeis ir por todas que se apresenta como uma continuidade artificial, idealista,
as partes, compreender tudo, deduzir tudo e possuir tudo". Co- quase supérflua (exceto por insuflar paixão no trabalho dos fi-
mo os filósofos naturais podiam resistir? O golpe é genial; a lósofos naturais, resolvendo ao mesmo tempo o problema da
aposta, colossal; os ganhos, astronômicos; a artimanha está ga- indução, visto que cada resultado parcial remete de imediato a
rantida: ao preço de uma inverossimilhança total (visto que uma lei universal) é a res extensa. Por outro lado, no relato Co-
nunca nada se manteve verdadeiramente apenas na extensão gito, o que aparece em primeiro plano é a matéria de um uni-
geométrica), seria possível fazer com que os resultados locais verso infinito com suas amplas concatenações de causas e efei-
fossem válidos em todas as partes. Cada vez que você ler a ex- tos expressos diretamente em sinais matemáticos, e são os la-
pressão res extensa, que se supõe estar designando um cantão boratórios que aparecem em segundo plano, corno um conjun-
d~ universo por oposição a outro, que seria o do pensamento, to de detalhes cuja única importância consiste em servir de oca-
saiba que terá que se pôr a retraçar a extensão fulminante de um siões à simples manifestação das leis universais da natureza (leis
programa ideal de conquista. que os progressos da ciência revelam em urna quantidade cons-
Se você me acompanhou até aqui (isso não conto a meus tantemente crescente de casos, começando pela dinâmica, pe-
alunos· é d · d e
. · emast a o 10rte e suponho que eles fariam um mo- la astronomia, para terminar, no século XX, com a biologia
~tm ... ), compreenderá que o universo - tal o de Koyré-náo molecular, as neurociências, a economia ... ). Em um caso, ares
e uma realidade 0 1' · fí · extensa não se estende a nenhuma parte que não seja ª imagi-
composta ela mes ntod og1ca, mas uma concepção meta s1ca, . nação. No outro, está em todas as partes, já universalmente es-
ma e um cosmos (não vejo de que outra cot-
138 139
Quarta carta
Cogitamus
.-.__
. , h · advertido a você: não podemos nem de-
endida. Eu Ja avia ' 'd d d solutamente não existir... a não ser subjetivamente. Aqui apa-
e
vemos nos coIocar demasiadamente . ' . rap1 o e acor o com 0
rece sobre a mesa de jogo uma conta que teremos que pagar,
- as c1·e·ncias e sua histona.
que sao d que certamente é bastante "salgadà': há sujeitos sem realidade
Sobrecudo, fui dizendo um pouco epressa que semelhan-
e objetividades sem sujeito. 17
ce mvenco
. - 0 de Descartes - não custou nada. O custo, pe-
Você dirá que se trata de uma visão metafísica, calvez er-
, ·0 , 1•c0 i· i'menso e' no sentido próprio do termo, astro-
lo concran
rônea, mas sem consequência prática. Pois bem, o infinitamen-
nômico. O que acabou desaparecendo durante três séculos é 0
te grave é que, por causa dela, já não será possível nos entender-
que há de res, de realismo, de material nas coisas, nas causas e
'!
mos sobre o mundo, visto que, a partir de então, nada mais liga-
nos assuntos que nos concernem. Tudo se passa como se o
rá os sujeitos aos objetos. Para estabelecer uma ponte, Descar-
mundo tivesse se bifurcado em dois tipos de realidade absolu-
tes, evidentemente, passava por Deus. Mas não é garantido que
tamente incompatíveis.
Deus resista por muito tempo ... O mundo, o acordo sobre o
Como eu disse a você há pouco, o infeliz Galileu se en-
mundo, desapareceram para sempre. Arrepios de horror e de
contrava como um esquizo&ênico em um mundo cindido: pois
prazer: o desencantamento não deixa de crescer, e cada cientis-
bem, nesse mundo dividido em dois temos o responsável pela
ta se sente um herói deliciosamente crucificado por esta reve-
grande narrativa da emancipação. O que aconteceria, com efei-
lação trágica. Sadomasoquismo que, de Descartes à neurobio-
to, se déssemos à res extensa não o sentido utilitário de uma
logia contemporânea, sempre faz as delícias dos departamen-
ideia, de uma imaginação que permite garantir o avanço de
tos de filosofia. Se, como assinalava Pascal, "o silêncio dos es-
uma continuidade suplementar para vincular todas as ocasiões
paços infinitos aterroriza", ele apenas aterroriza àqueles que fi-
lf j
de pensamento e de objetos bruscamente saídos dos laborató-
zeram calar tais espaços - ou seja, os homens de ciências - ,
rios, mas o sentido de uma realidade física? Veremo-nos dian-
que, por mais surpreendente que pareça, são os que fizeram fa-
te de dois conjuntos de realidade: um que em filosofia se chama
lar tão bem esses mesmos espaços infinitos ...
qual!dades primeiras - é o pedaço de cera apenas em sua ex- Como eu gostaria de poder evitar estas cenas doentias! Por
tensao e seu movimento - e outro que é o das qualidades se-
0 sorte, você nasceu depois que o universo deixou de obrigar os
gundas - cheiro, o sabor, o tato, a consistência do pedaço cientistas a acreditarem ter sido expulsos de todo o cosmos, co-
de cera. Uma vez fcei't d' · - · · d D
carres poderia volt a esta· ivisao, nmguém a partir e • es- ,
. sao
nas _ as unicas
, ar. a unir as metades. As qualidades pnma- 17
A expressão "bifurcação da natureza" pertence a um filósofo genial,
. , reais, mas pensadas - preste atenção - por
n1nguem em parei l , . d mas de difícil acesso, Alfred North Whitehead, Le concept de nature, Paris,
de to da ancoragemcu ar, exceto h pelo proprio cogito despoJa .o Vrin, [1920] 1998 (tradução de Jean Douchement) [ed. bras.: O conceito de na-
vo p 1, . ) e sem nen um valor humano (ético, afeu- tureza, São Paulo, Martins Fontes, 1994]. Sua comentadora mais brilhante
, o 1t1co . Quanto ' al'd . tampouco é fácil, mas os espíritos ambiciosos poderiam tentar a leitura de lsa-
de vida d al as qu i ades secundárias, estão cheias
' e v or, de paixõ • . . " . ,, b belle Stengers, Pemer avec Whitehead: une /ibre et sauvage mation de concepts,
es, mas tem o ligeiro defeito de a - Paris, Gallimard, 2002.
140

Cogitamus Quarta carta 141


- ,...
""'
m0 Adão e Eva foram expulsos do Paraíso terreno. Atualm
te podemos voltar à razão, às coisas, às matérias, ao realism
º•
E, por conseguinte, amar as c1enc1as com um amor enfim ver-
•A •

Quinta carta
dadeiro e perdurável. Creio firmemente que este é O único
amor que merece a geração de vocês. Mas deixaremos isto pa-
ra uma outra carta.
Despeço-me, estimada senhorita, com um cordial cum-
'' primento.

Ah, senhorita, quanta razão você tem em assistir aos cur-


sos on-line! É menos agradável para mim, mas sem dúvida mui-
to mais cômodo para você. Bom, decidida:mente tenho que me
acostumar com a ideia de que o semestre está terminando e
nunca a terei visto nas aulas ... De toda forma - sugiro a você
- , continue mantendo seu diário de bordo, pois sem esse exer-
cício tudo o que tento resumir a você demasiado depressa irá
se tornar absolutamente abstrato e você jamais encontrará res-
posta para suas perguntas. Em particular a que você me fez no
início, como boa pragmatista que é: "O que fazer?". Sim, sem
dúvida, esta é a grande pergunta. Como podemos chegar a um
acordo se a concordância em relação ao mundo falha? Como
sair das controvérsias indefinidas se misturamos tudo? Como
compor, pouco a pouco, o que, até então, nos foi dado de uma
vez, em bloco, todo cozido?
Tenho plena consciência de que se os pesquisadores, os
cientistas, os modernizadores ou- como são chamados atual-
mente - os "homens de progresso" se sentem hoje tão desa-
fortunados, isso se deve ao fato de verem claramente O que per-
deram, mas ainda não percebem como poderiam recuperar, em
meio a esse caos o sentimento de segurança, de certeza, de
0
clausura que lhe~ dava a antiga distinção entre O racional e

.
142 . 143
Q uinta carta
Cogitarnus

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