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p ro fan as : a Laicização d o Zu m bi n o
Cin e m a
Re s u m o
O presente trabalho visa analisar a reconstrução do zum bi pelas m ãos do cineasta
George A. Rom ero. Sabe-se que a figura do m orto que retorna à vida, conectada ao
antigo ideal da vida após a m orte e ao sobrenatural, está presente nas m itologias
m ais antigas e na religião afro-caribenha do vodu. Nesse sentido, pretende-se
observar as im portantes contribuições de A N oite dos Mortos-Vivos: a laicização e
a recontextualização do antigo m ito, desconsiderando o seu caráter religioso e
conectando-o a um m om ento histórico contem porâneo, com rem issões ao pano de
fundo social e político e ao im aginário científico e tecnológico. Dessa m aneira,
Rom ero funda um m ito m oderno, cujos aspectos principais são a natureza
epidêm ica do horror e a vocação de crítica social.
Abs tract
The current paper aim s to analyze the zom bie reconstruction leaded by the
film m aker George A. Rom ero. It is known that the figure of dead returning to life
can be connected to the ancient, supernatural belief on life after dead, which
appears in several m ythologies and religions from the globe, such as the African-
Caribbean voodoo. Thus, we intend to observe N ight of the Living Dead’s
im portant contributions: a new context for the ancient m yth and its secularization,
disregarding the religious character, connecting it to a contem porary historical
m om ent, with references to the social and political background and techno-
scientific im aginary. Then, Rom ero founded a m odern m yth whose aspects are the
epidem ical nature of horror and a deep social criticism .
Ke yw o rd s
Cinem a; George A. Rom ero; Mythology; Religiosity; Zom bie.
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M NEME – R EVISTA DE HUMANIDADES, 11(29), 20 11 – J AN / J ULHO
Publicação do Departam ento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ensino Superior do Seridó – Cam pus de Caicó. Semestral ISSN ‐1518‐3394
Disponível em http:/ / www.periodicos.ufrn.br/ ojs/ index.php/ m neme
1. Qu an d o o s Mo rto s s e Ergu e m d a Tu m ba
D
esde a Antiguidade, os m ortos que retornam à vida aparecem na m itologia
de diversas civilizações. Narrativas culturais ricas e extrem am ente
com plexas, cuja interpretação apresenta perspectivas m últiplas e
com plem entares, os m itos são considerados histórias sagradas por Mircea
Eliade (1986). Sendo assim , refletiriam um estado prim ordial das sociedades
tradicionais e arcaicas, nas quais os m itos perm aneceriam vivos, justificando e
fundam entando toda a atividade e o com portam ento hum ano. Quanto à natureza e
à função dos m itos, Eliade evoca as palavras de Bronislav Malinowski:
Toda cultura tem seus m itos [...] Psicólogos e antropólogos sugerem que eles
desem penham papéis úteis: talvez os m itos sirvam com o um a espécie de
“ciência”, que explica por que o mundo é com o é, por que há hom ens e m ulheres,
com o o fogo foi criado, e assim por diante. Outra im portante função dos m itos é
que eles oferecem um a form a de m oralidade, legitim ando a ordem das coisas;
[...] há m itos para justificar a posição do chefe. Desse m odo, os mitos criam um
retrato do m undo em que as pessoas, ao longo de sucessivas gerações e por meio
da tradição, podem viver em confiança (Bowker, 1997, p. 182).
De acordo com Michael Page e Robert Ingpen (1985), as lendas de vam piros –
representados ora com o fantasm as, ora com o m ortos-vivos – parecem rem ontar ao
Egito Antigo e, provavelm ente, aos séculos m ais prim itivos. J osé Manuel Cueto
(20 0 9) nos lem bra que, segundo as narrativas nórdicas, os m ortos form ariam um
exército para acabar com os vivos durante o Ragnarök, a batalha apocalíptica que
resultaria no fim do m undo.
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Segundo Page e Ingpen (1985), na Europa Ocidental, durante a Idade Média,
um a crença bastante com um era a possibilidade do retorno da alm a dos m ortos
para assom brar os vivos. Nesse contexto, existiriam os revenants, fantasm as
inquietos que voltam eternam ente às cenas de assassinato (na situação de vítim as
ou perpetradores), e, em contraste com os espectros ordinários, transparentes, que
se m aterializam em form a de som bras, a palavra taxim definia os restos físicos cuja
alm a não podia descansar em paz.
Segundo Schm itt (1999), as “m entalidades” consistem não apenas nos
estratos antigos e persistentes dos pensam entos e dos com portam entos, m as nas
crenças e nas im agens, nas palavras e nos gestos que encontram plenam ente seu
sentido na atualidade presente e bem viva das relações sociais e da ideologia de
um a época.
Levando em conta essa atualidade, Schm itt sugere que a cultura cristã da
Idade Média am pliou a noção de fantasm a e concebeu para os m ortos outras
ocasiões de aparecer. A sociedade m edieval considerava a possibilidade do retorno
de certos defuntos para visitar os vivos, em geral aqueles com quem haviam
estabelecido laços julgados inalteráveis m esm o além da m orte. “Em um a cultura
em inentem ente religiosa e fam iliar à m orte e aos m ortos, a ‘crença nos fantasm as’
era adm itida por todos”:
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2 . Pre lú d io ao “Mo rto -Vivo Mo d e rn o ”
Nas décadas de 1930 e 1940 , film es com o W hite Zom bie (Victor Halperin,
1932), Ouanga 6 (George Terwilliger, 1936), Revolt of the Zom bies (Victor Halperin,
1936), I W alked w ith a Zom bie (J acques Tourneur, 1943), entre outros, evocam a
discrim inação racial através da relação de subm issão e dom ínio entre o zum bi vodu
e seu m entor. Luciano Saracino (20 0 9, p. 19-20 ) considera W hite Zom bie a película
que inicia o subgênero do zum bi, e sugere que I W alked w ith a Zom bie visita tem as
com o o passado obscuro, os am ores proibidos, os tam bores negros e os rituais. Ao
m esm o tem po, o zum bi funcionava essencialm ente com o pano de fundo para
com plem entar um vilão hum ano, ou seja, representava antes um objeto de horror
visual que um a am eaça para os protagonistas.
Dendle (20 0 1, p. 3) observa que a representação do zum bi, nos anos 1930 e
1940 esteve ligada às suas “raízes folclóricas”, ora conectada à religião afro-
caribenha, ora à m itologia egípcia. Por exem plo, no britânico O Ressuscitado (The
Ghoul, 1933), dirigido por T. Hayes Hunter e produzido pela Gaum ont-British
Picture Corporation, Boris Karloff interpreta o Professor Morlant, egiptólogo
obcecado pela idéia da im ortalidade, alcançada por m eio de um contrato com
Anúbis.7 Mas os planos de Morlant são desrespeitados e o professor retorna à vida
com o um zum bi para se vingar daqueles que violaram a sua tum ba.
Por sua vez, os anos de 1950 e 1960 são considerados por Dendle um
“estranho período de transição” (20 0 1, p. 5), pois em bora o zum bi tenha escapado
do m odelo de representação ao qual estivera atrelado por duas décadas, o conceito
experim enta certa confusão sobre qual rum o seguir. A confusão se fez visível a
partir de 1950 , quando o term o quim bundo passou a ser utilizado na definição de
gêneros distintos de criaturas. Invasores m arcianos hum anóides (Zom bies of the
Stratosphere, Fred C. Brannon, 1952), seres subaquáticos (Zom bies of Mora-Tau,
Edward L. Cahn, 1957), jovens de classe m édia sob o efeito de drogas hipnóticas
(Teenage Zom bies, J erry Warren, 1959), peixes m utantes radioativos (The Horror
of Party Beach, Del Tenney, 1964) e andróides cibernéticos (The Astro-Zom bies,
Ted V. Mikels, 1968). Entretanto, certa veia de coerência pode ser encontrada nesse
potpourri conceitual. Film es com o Plano 9 do Espaço Sideral (Plan 9 from Outer
Space, Ed Wood, 1959) e Invasores Invisíveis (Invisible Invaders, Edward L. Cahn,
1959) “com partilham um a ansiedade com um ao insistir que os m ortos redivivos
não são, de form a algum a, sensitivos (...) Os corpos reanim ados são radicalm ente
distintos de qualquer concepção de m ente ou alm a” (Dendle, 20 0 1, p. 4-5).
Argum ento reconfortante o suficiente para que o zum bi, em bora um corpo hum ano
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reanim ado, seja tratado com o “Outro”, anim al ou escravo e, portanto, livrem ente
trucidado sem ônus ao hom em branco.
Dendle argum enta que, apesar de os m onstros serem um lugar-com um na
história do cinem a – dentre os quais figuram os vilões deform ados, os alienígenas e
as criaturas radioativas – , nos prim eiros film es de Hollywood havia claram ente
“um tabu não pronunciado” com relação à exibição em film e de “cadáveres
hum anos em decom posição” (20 0 1, p. 5). Segundo Philippe Ariès (20 0 3, p. 57), a
“decom posição” é o sinal do fracasso do hom em , traço bastante fam iliar nas
sociedades industriais da atualidade, e nesse ponto residiria o sentido do
“m acabro”. Entretanto, as produções cinem atográficas de 1960 representam um
ponto de ruptura, notadam ente para o gênero do horror. Mortos que Matam (The
Last Man on Earth, Ubaldo Ragona, 1964) abre cam inho para os tem as
genuinam ente perturbadores que em ergiram em finais da década de 1960 . Em
seguida surgiria o “m orto-vivo m oderno”, no m om ento que é considerado por
Dendle (20 0 1, p. 6) o período de estabilização do m y thos contem porâneo do
zum bi.
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extrem a beligerância e ruína institucional, definida por Charles Sellers com o um a
“era de m udança e inquietação social”.
Em 1968, [...] o país era atormentado por múltiplas crises internas e externas.
Pareciam tão esquivos com o sem pre os objetivos gêm eos da justiça social e
econôm ica. Política e culturalm ente polarizada, atolada até o pescoço em uma
guerra que não conseguia vencer, a nação chafurdava em descontentam ento.
Preocupados, alguns observadores diziam que a Am érica perdera sua coesão e
estava caindo aos pedaços (Sellers, 1990 , p. 395).
Encontram -se influências para a concepção rom eriana tanto nos film es de
Herschell Gordon Lewis – Banquete de Sádicos (Blood Feast, 1963), Maníacos
(Tw o thousand Maniacs!, 1964), Color Me Blood Red (1964) – com o na novela Eu
sou a Lenda (I am a Legend, 1954), de Richard Matheson, que originou o film e
Mortos que Matam (The Last Man on Earth, 1964), co-produção ítalo-am ericana
dirigida por Ubaldo Ragona e Sidney Salkow. A adaptação cinem atográfica da
narrativa de Matheson apresenta Vincent Price com o o derradeiro sobrevivente de
um a praga que devastou a Terra, transform ando os seres hum anos em um a m escla
de zum bis com m onstros vam pirescos, am bos m ortos-vivos que podem ser
narrativam ente associados à prem issa das epidem ias. A novela de Matheson deu
origem ainda a outras adaptações, com o O Últim o Hom em na Terra (The Om ega
Man, 1971), de Boris Sagal, e Eu Sou a Lenda (I am a Legend, 20 0 7), de Francis
Lawrence.
Em História da Feiúra (20 0 7), de Um berto Eco, George Rom ero explica que,
em seus film es, os m ortos que voltam à vida representam um a reviravolta radical
num m undo que m uitos dos personagens hum anos não conseguem com preender.
“Utilizo o sangue em toda a sua m agnificência para que o público entenda que
m eus film es são antes um a crônica sociopolítica dos tem pos do que (...) aventuras
com m olho de terror” (Rom ero apud Eco, 20 0 7). Na inquietude da era atôm ica, o
apocalíptico A N oite dos Mortos-Vivos registra um m icrocosm o de desestruturação
da fam ília nuclear em que a classe m édia e a própria nação acabam “devorando” a
si m esm as.
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A im portância de A N oite dos Mortos-Vivos reside na relevância da
representação m oderna do zum bi, que desata a correspondência entre m orto-vivo e
religião – construindo outra relação: a do zum bi com o m etáfora da corrupção
social e política, da falência do Estado e da fam ília m odelar. Em lugar da antiga
conotação m ística, George Rom ero introduziu um a epidem ia que transform a
hom ens em cadáveres andantes portadores de inexplicável instinto canibal. O
cineasta m antém ocultas as origens de sua criação, ao passo que busca exteriorizar
o fracasso das relações sociais. Em seus film es, os protagonistas hum anos
costum am dem arcar os zum bis com o o inim igo, m as a verdadeira am eaça não é a
crescente horda de m ortos-vivos e sim o tenso relacionam ento entre os
sobreviventes, um a alegoria da corrupção do tecido social e do colapso do m arco
civilizatório advindos da “epidem ia zum bi”.
Segundo J . Hoberm an e J onathan Rosenbaum (1983, 112), a influência de
Rom ero sobre o gênero foi incalculável. O conceito introduzido em 1968 pela
produção do cinem a independente foi decisivo para a prim eira onda de film es de
zum bis – as m ais de 30 produções que surgiram entre 1969 e 1977 – com destaque
para a série Tom bs of the Blind Dead (1971), de Am ando De Ossorio. A segunda
onda teve início com o italiano Zom bie (1979), de Lucio Fulci. Dessa m aneira, os
zum bis tornaram -se bastante populares nos m odernos film es de horror e ficção
científica e continuam inspirando núm ero crescente de produções em diversas
m ídias (cinem a, quadrinhos, videogam es). J ogos eletrônicos com o Doom , Half-
Life, Dead Space e as séries Resident Evil e Silent Hill, entre outros, parecem
inspirados, ainda que indiretam ente, nesse im aginário do zum bi revitalizado por
Rom ero.
5. D e bate
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6 . N o tas
The Modern Prom etheus tam bém é considerado obra prototípica, ou até m esm o
fundadora, do gênero literário conhecido a partir do século XX com o “ficção
científica”.
4 Considera-se “alegoria” um “m odo de representação sim bólica”. SEVCENKO,
1996, p. 118-9.
5 Livre tradução de: “(...) los siguientes signos: cam ina dando bandazos, realiza
enquanto um fenôm eno histórico perene, “caracterizado pela afirm ação do poder
individual de criar sua própria vida, m ais do que aceitar os ditam es das autoridades
sociais e convenções circundantes, sejam elas dom inantes ou subculturais” (20 0 4,
p. 49).
9 Dados de acordo com :
2 jul. 20 10 . Disponível em :
http:/ / news.bbc.co.uk/ today/ hi/ today/ newsid_ 820 60 0 0 / 820 6612.stm .
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