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IMAGENS

INSURGENTES

organização
IVAIR REINALDIM e
LUCIANO VINHOSA
IMAGENS
INSURGENTES
IMAGENS
INSURGENTES
organização IVAIR REINALDIM e LUCIANO VINHOSA

C C O
7 Apresentação

CAPÍTULO 1 CAPÍTULO 2
DAS IMAGENS FORA DE LUGAR IMAGEM E EMULAÇÃO
13 Ao instar maravilhoso da 97 Antropofagia e decolonialidade:
imagem confusa primeiros passos
LUCIANO VINHOSA LUCIO AGRA

31 Das construções cênicas 111 Novas considerações


celebratórias: ângulos e focos sobre o Exu-Mefistófeles
de uma investigação itinerante do Museu da Polícia Civil/RJ:
ZECA LIGIÉRO biografia, autoria partilhada,
apropriação “reversa”
63 Entre Dja Guata Porã e a Aldeia ARTHUR VALLE
Maraká’nà: trânsito e agência
das imagens 127 Imagens ancestrais: práticas,
IVAIR REINALDIM representações e cura na arte
SHEILA CABO GERALDO
83 Poéticas regenerantes frente
à feitiçaria da monocultura 139 Corpo/imagem da mulher
monoteísta: Selvagem Ciclo na arte contemporânea
e arte indígena contemporânea brasileira atual
ANDERSON ARÊAS VIVIANE MATESCO
CAPÍTULO 3
ARTE CONTRA A CULTURA
155 “Antropofagizar” práticas
de mídia: a obra e legado de
Ricardo Rosas
THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

169 Para afastar a presença


da morte: imagem, dor
e cuidado nos tempos atuais
SARA RAMOS DE OLIVEIRA

189 A contundência da imagem


está na violência do olhar
RUBENS PILEGGI

201 O corpo do outro


e as imagens incorporated
JEAN-PHILIPPE UZEL

223 MINIBIOS
Apresentação

Tendo em tela o enlace entre as artes e as culturas, os textos aqui reunidos


pretendem pôr em relevo não somente os seus usos em diferentes contex-
tos sociais, mas o necessário trânsito que se opera na natureza das imagens
quando postas em contato e disputa nos espaços de representação das artes
metropolitanas. De fato, a imagem, seja em seus suportes tradicionais, seja
nos tecnológicos, torna-se objeto de interesse teórico atualizado, tanto por
sua onipresença e assédio, como por fazer o trânsito necessário entre a arte
e a cultura, o sagrado e o profano, a alienação e a reflexão, a manipulação
e a insurreição das ideias. Interessa-nos, por outro lado, pensá-las em seus
modos de agência quando ativadas por diferentes sujeitos.
Autores como Marie-José Mondzain e Hans Belting, por exemplo,
traçam, com suas devidas diferenças, a emergência de seu uso no Ocidente,
via o evento da encarnação do Deus em um corpo de homem – o Cristo
– quando Esse nos lega o testemunho de sua visualidade. Se para Belting
(2010) essa trajetória se faz a partir do encontro do cristianismo com a cul-
tura pagã da Antiguidade – cujo culto aos deuses já se fazia por meio da de-
voção de imagens –, essa predisposição veio a facilitar a incidência do culto
da imagem do imperador com a do Cristo na Alta Idade Média, quando
Estado e religião tornam-se um poder unitário. Para este autor, a natureza
da imagem é quase anímica naquilo que se pode observar do poder imagi-
nal do sujeito, ou seja, nossa capacidade de criar imagens (BELTING, 2014).
Segundo Belting, ainda que possam se materializar em diferentes
suportes, o nosso corpo é, de fato, o meio privilegiado para as imagens.
Somente o ser humano cria imagens, e isso em dois sentidos, seja figu-
rando-as em algum suporte artificial, como no caso de uma pintura, seja
animando-as em seu espírito quando as recebe do mundo. Com efeito, é
em nosso corpo, tanto biológico como cultural, que essas instâncias, a um
só tempo materiais e imateriais, vivem e proliferam. Dito de outra forma,
a imagem é um ser sempre em trânsito que, tendo origem em nossa mente,
pode muito bem materializar-se ao apresentar sua face em um meio mate-
rial qualquer e, em seguida, transferir-se novamente para o corpo de outra
pessoa quando por ela ativada. Do corpo ao suporte, do suporte ao corpo,
ela continua circulando e consubstancializando-se de um sujeito a outro.
Marie-José Mondzain (2013), demarcando uma mesma trajetória cris-
tã, prioriza, no entanto, uma relação mais contemplativa e reflexiva com a
imagem. Remontando o problema à crise do iconoclasmo entre os séculos
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VIII e IX, a autora relaciona o imaginário contemporâneo às fontes bizanti-
nas. O modelo dessa relação se equaliza na dialética ícone e imagem. Sendo
esta última da ordem do invisível, o ícone toma a face da visibilidade naquilo
que, ao mesmo tempo, é capaz de evocar uma ausência. O Cristo, que viveu
entre os homens e nos legou o semblante, sua re[a]presentação icônica, nos
remete antes à ideia de Deus, a um douro de luz que a tudo ilumina. Dife-
rente da racionalidade do texto, a imagem é antes o lugar da contemplação.
Em sua falta imediata de sentido, ela dá lugar à reflexão e às diferentes vozes.
Quanto mais a imagem é desvinculada do significado, maior será o espaço
de liberdade de pensamento, maior será a partilha do sensível que promove.
Nesse caso, as imagens não são por si só boas ou más, mas, em sua função
democrática, devem abrir espaço ao debate (MONDIZAIN, 2018).
Se as teorias sumariamente apresentadas nos dão a oportunidade de
pensar a imagem e a arte no Ocidente, como poderíamos nos aproximar
de outros modos de usos da imagem considerando o contexto de outras
agências sociais? Com a virada decolonial que estamos assistindo no ce-
nário da arte cosmopolita, é de se notar que um mundo de imagens com
base em outros contextos de usos e práticas sociais coloque em questão os
limites epistemológicos da arte ocidental, tradicionalmente estruturada no
agenciamento estético de seus objetos.
No estudo das sociedades indígenas, a partir da relação entre arte, esté-
tica e antropologia, uma nova abordagem para a natureza da imagem tem sido
posta. O estatuto ontológico das imagens e artefatos – seu caráter agentivo – e
as análises chamadas perspectivistas têm contribuído para uma reflexão reno-
vada tanto dos limites do intercâmbio cultural quanto para a identificação e
tradução de conceitos nativos. São seminais, nesse sentido, dois estudos sur-
gidos no final dos anos 1990: a relação entre arte e agência (poder agentivo),
desenvolvida por Alfred Gell (2018), e a formulação do perspectivismo ame-
ríndio como paradigma ontológico, realizada por Eduardo Viveiros de Cas-
tro (2002; 2015). Philippe Descola (2010), na exposição/livro La fabrique des
images, analisa as diferenças existentes entre distintas ontologias (ameríndia,
aborígene, ocidental etc.), seus vários modos de figurar, a partir dos diferentes
modos pelos quais compreendem as relações entre os seres no mundo. Desta-
ca, assim, quatro ontologias: animista, totêmica, analógica e naturalista. Essa
linha de pensamento ficou conhecida como “virada ontológica”, reforçando-se
que imagens e artefatos podem ter significados múltiplos, conforme os contex-
tos em que são produzidos e circulam, o que implica em identificar conceitos
nativos e as negociações existentes nos diferentes trânsitos, e não simplesmen-
te projetar paradigmas epistêmicos ocidentais sobre culturas distintas.
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Desse modo, reunimos nesta publicação um conjunto de ensaios ar-
ticulados em três diferentes eixos, sem, no entanto, reduzi-los aos mesmos,
uma vez que muitas das reflexões apresentadas poderiam transitar entre
um e outro, assumindo diferentes configurações. Nesse sentido, estimula-
mos não só a leitura sequencial proposta, mas também os múltiplos cruza-
mentos que podem ser ativados a partir de outras escolhas que cada pessoa
possa fazer ao ler esses textos.
No capítulo I, Das imagens fora de lugar, as reflexões apresentadas
problematizam as agências diferenciadas das imagens segundo sujeitos e
contextos de recepção. No texto “Ao instar maravilhoso da imagem confu-
sa”, Luciano Vinhosa analisa aquilo que nomeia “nova virada epistemoló-
gica em nossos modos de ver a arte”, a partir do confronto entre o regime
estético e seus lugares instituídos – sejam eles discursivos ou físicos – e
imagens carregadas de diferentes modos de afecção, provenientes de ou-
tros usos sociais. Em seguida, Zeca Ligiéro, em “Das construções cênicas
celebratórias: ângulos e focos de uma investigação itinerante”, propõe um
passeio visual por rituais de expressão religiosa como parte de comple-
xas mobilizações comunitárias em torno da encenação. Para isso, destaca
o festival das divindades negras (Divinités Noires) no Togo, visitado nos
anos 2011 e 2013, e o desfile da escola Acadêmicos do Grande Rio no car-
naval carioca de 2022, centralizado nas figuras de Exu e do povo de rua.
No texto “Entre Dja Guata Porã e a Aldeia Maraká’nà: trânsito e agência
das imagens”, Ivair Reinaldim analisa o deslocamento de imagens entre a
mostra Dja Guata Porã – Rio de Janeiro Indígena, realizada no Museu de
Arte do Rio, e a Aldeia Maraká’nà, aldeamento multiétnico localizado no
prédio onde funcionou a primeira sede do Museu do Índio, considerando
como as agências dessas imagens, de um lugar a outro, podem se alterar.
Por fim, em “Poéticas regenerantes frente à feitiçaria da monocultura mo-
noteísta: Selvagem Ciclo e Arte indígena contemporânea”, Anderson Arêas
analisa as modulações da espiritualidade na paisagem cultural contempo-
rânea através do que chama de poéticas regenerantes, a partir de dois casos
– o Selvagem – Ciclo de Estudos sobre a Vida e a presença da arte indígena
contemporânea na 34ª Bienal de São Paulo –, ambos compreendidos como
redes que defendem a natureza multiforme da imagem e do espírito.
No capítulo II, Imagem e emulação, os ensaios alicerçam-se na apro-
priação e ressignificação de imagens e no revés político de uma arte mar-
ginal que reage com originalidade ao trauma histórico ocasionado pelo
colonizador. Lúcio Agra, no texto “Antropofagia e decolonialidade: primei-
ros passos”, retoma a memória em torno do que possa ser a antropofagia de
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Oswald de Andrade, em confronto com os autores do chamado giro deco-
lonial, procurando compreender a antropofagia como uma forma especial
de entendimento do Brasil e que opera um esforço de desconstrução dos
traços coloniais persistentes. Em “Novas considerações sobre o Exu-Me-
fistófeles do Museu da Polícia Civil/RJ: biografia, autoria partilhada, apro-
priação ‘reversa’”, Arthur Valle retoma a discussão sobre a estatueta que
originalmente representava Mefistófeles, e que, ao menos desde meados
dos anos 1930, foi identificada como representando o orixá iorubano Exu.
Mediante a perda da peça em um incêndio, o autor parte da análise de seis
fotografias da obra publicadas na imprensa carioca entre finais dos anos
1920 e 1950, para assim refletir sobre os aspectos que conduziram a essa
ressignificação. Em “Imagens ancestrais: práticas, representações e cura
na arte”, Sheila Cabo Geraldo analisa a relação entre as imagens e as ma-
nifestações de ancestralidade na arte, como campo espiritual africano, em
sentido ontológico e existencial, refletindo sobre os princípios imagéticos
relacionados a tradições grupais ou singulares, mas também a princípios
de conexão entre o passado e o presente, nas sociedades africanas e afro-
diaspóricas, como imagens-respostas ao histórico de violências sofridas no
período de escravidão, que se estende, como rastros traumáticos, aos dias
atuais. Finalizando o capítulo, no texto “Corpo/imagem da mulher na arte
contemporânea brasileira atual”, Viviane Matesco compreende a relação
corpo/imagem da mulher na arte contemporânea brasileira do século XXI
em contraposição à arte feminista do século anterior, quando as poéticas
se centravam no questionamento da objetificação do corpo da mulher pelo
olhar masculino. Assim, a imagem/corpo da mulher nas poéticas artísticas
atuais reterritorializam a experiência do corpo, a partir de uma perspecti-
va ativista e política rumo a um feminismo negro, decolonial e abrangendo
outras concepções de mulher a partir de novas formulações de gênero.
No capítulo III, Arte contra a cultura, os textos problematizam até
que ponto a arte pode ainda exercer um papel crítico em meio à indústria
da imagem que vemos proliferar nos meios de comunicação e nas redes
sociais. Em “‘Antropofagizar’ práticas de mídia: a obra e legado de Ricardo
Rosas”, Thiago Fernandes parte do conceito “mídia tática” – e da lógica
“faça você mesmo” [do it yourself] – como modo de incitar a criação de
meios alternativos de circulação de informação e a apropriação subver-
siva dos meios de comunicação hegemônicos, criando-se ruídos em sua
programação. Trazendo a discussão para o contexto brasileiro, aborda as
ideias do crítico cearense Ricardo Rosas, responsável por projetos que di-
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fundiram o conceito de mídia tática no Brasil e criaram um campo fértil


para discussões sobre esse tema. Por sua vez, Sara Ramos de Oliveira, no
texto “Para afastar a presença da morte: imagem, dor e cuidado nos tempos
atuais”, parte de algumas ideias sobre fotografia, dor e luto desenvolvidas
pelas autoras norte-americanas Susan Sontag e Judith Butler, propondo
uma inflexão sobre os modos de representação da dor e da vida através
das imagens nos tempos atuais, quando as redes sociais ocupam cada vez
mais os modos de percepção e concepção da realidade. Em “A contundên-
cia da imagem está na violência do olhar”, Rubens Pileggi parte de uma
situação pessoal, que o leva a refletir sobre o uso de imagens e a força que
elas possuem – e, se ainda possuem – no mundo digital, buscando pensar
as imagens de arte e imagens de cultura como algo que vem opondo, cada
vez mais, forma e conteúdo, levando em consideração a relação entre arte e
vida como possibilidade para um novo encontro amoroso. Por fim, em “O
corpo do outro e as imagens incorporated”, Jean-Philippe Uzel dedica-se à
análise das “imagens incorporadas” e, mais particularmente, ao lugar das
imagens representando o corpo de “outros”, pessoas sujeitas à invisibili-
dade no espaço público e no mundo da arte. Reflete mais particularmente
sobre as imagens incorporated, termo que se refere à maneira pela qual as
imagens são hoje tomadas por uma lógica econômica e, mais precisamente,
capitalista, e em como as imagens da arte renunciam ou compactuam com
elas, ao firmar compromisso com a natureza artística para submeter-se a
uma lógica exterior à arte, seja ela econômica, política, ética ou religiosa.
Sendo uma iniciativa conjunta do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense
(PPGCA-UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV-UFRJ), o livro Imagens insur-
gentes teve origem no seminário Usos das Imagens, realizado remotamente
nos meses de abril e maio de 2022, com o apoio da FAPERJ, a quem agrade-
cemos. Os organizadores, na oportunidade, reforçam seus agradecimentos
também aos autores e às autoras e a todos os demais que trouxeram contri-
buição para esta discussão1.

Outubro de 2022,
IVAIR REINALDIM e LUCIANO VINHOSA

1 Além dos autores e autoras reunidos neste livro, participaram ainda do seminário
Ayrson Heráclito e Tadeu Capistrano, como conferencistas, e Lorraine Pinheiro, como
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mediadora de mesa.
CAPÍTULO 1 DAS IMAGENS FORA DE LUGAR
Ao instar maravilhoso da imagem confusa*
LUCIANO VINHOSA
Docente no Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense – GAT/UFF

Se é fato que as imagens exercem agências diferenciadas segundo os sujei-


tos e os contextos de sua recepção e usos sociais, também é verdade que os
espaços da arte nos condicionaram a um tipo de reação que tem uma lon-
ga história que veio culminar com o que entendemos por relação estética.
Mesmo não sendo uma exclusividade das obras de arte, ela foi, no entanto,
modelada historicamente junto a seus objetos no século XVIII, quando a fi-
losofia se dá conta de um certo conhecimento fundado em nossos sentidos
e que se equilibra entre os ímpetos emocionais e o ajustamento do espírito
diante das formas de beleza, cujos exemplos a arte nos forneceu. Assim,
apesar de sabermos intuitivamente que certas imagens, antes de nos fa-
zerem pensar, nos causam arrepios, porque afetam diretamente o nosso
corpo e de forma às vezes arrebatada, inevitavelmente nos chamamos ao
juízo quando tentamos entender o como e o porquê do desarranjo ou fas-
cínio que despertam. Esse efeito ativo da obra de arte naturalizou-se com
a elaboração de espaços adequados para a sua apreciação e experiência es-
tética, seja os museus ou outros ambientes assemelhados, como as galerias
de arte, por exemplo. Com efeito, se as obras de arte nos embaraçam, por
um lado; por outro, nos solicitam distanciamento e reflexão segundo os
hábitos adquiridos.
Sabe-se também que a imagem, em suas origens, foi o artifício que
o homem encontrou para lidar com as adversidades, tanto de sua fini-
tude, de suas limitações em face das contingências da natureza, como
também das ameaças do inimigo, estabelecendo o elo necessário entre o
mundo dos vivos e dos mortos, entre os seres visíveis e invisíveis, entre o
mundo palpável do dia a dia e o etéreo dos sonhos. Sempre intermedian-
do a troca entre sujeitos e objetos, entre corpos e lugares, a imagem foi e
é também uma ferramenta de barganha com o sobrenatural, então que
sua eficiência se adelgaça no éter dos inframundos. No entanto, se desde
13 LUCIANO VINHOSA

sua gênese a imagem acarretou em sua implacável visibilidade e presença


uma fissura de acesso ao invisível, seja ele dos mortos ou de outros seres

* Este ensaio integra a pesquisa Ressurgência das imagens, financiada pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), bolsa de Produtividade
em Pesquisa 2, ao qual o autor agradece.
habitando outros corpos, esse contato se dava e ainda se dá diretamente
através dos sentidos e, muitas vezes, embalado pela embriaguez da cons-
ciência, sem a necessidade de se tomar distância necessária para a sua
interpretação ou produção de sentidos. Podemos verificar essa atuação
em certas práticas religiosas em que a divindade, ao apoderar-se do cor-
po do sujeito, torna-se uma imagem viva de si em meio ao espaço social
ou quando, em busca de cura, o devoto toca a imagem do santo espe-
rando que surta efeito diretamente em seu corpo molestado. Também a
imagem, no mesmo plano de existência das coisas, quando manipulada,
pode ser usada como veículo ao proceder a passagem de mão dupla entre
os diferentes mundos e corpos – como no caso do xamã, que, em situa-
ções especiais, pode visitar outras subjetividades estanciadas em formas
não humanas e retornar, em seguida, à sua comunidade e contar a sua
experiência junto a seus comensais. Todos esses usos e agências das ima-
gens, e certamente muitos outros que não cabe aqui descrever, são atuais
e estão presentes tanto em culturas não ocidentais como nas ocidentais,
tendo em vista a persistência das práticas de fé e cura, mesmo nas socie-
dades ditas civilizadas. A esse poder de imposição direta, e na tentativa
de contornar a confusão entre instância física e espiritual, entre mortos
e vivos, entre as limitações humanas e a incomensurabilidade divina, a
religião cristã, tendo necessidade de justificar a iluminação racional da
divindade na perfeita ideia do deus que deu origem a tudo, reagiu com
sublimação à coisa, porque o ser divino não pode ser confundido com
qualquer instância material, mesmo que seja esta uma imagem do deus
encarnado – o Cristo que viveu entre os homens –, com o risco de se cair
na adoração do objeto. Então, no contexto das emulações entre homem e
deus que se sucedeu na religião católica, a imagem, o tanto quanto pôde
distanciar-se, relevou-se do suporte e veio a ser uma representação, um
símbolo afastado que, se nos apresenta o Cristo, solicita, em contrapar-
tida, uma compreensão intelectual desse ser divino, ainda que contami-
nada pelas emoções. Na relação que travamos, se a imagem nos afeta em
um primeiro momento, em seguida ela nos reconduz a uma distância
meditativa e segura, tão necessária à contemplação das ideias intangí-
14 LUCIANO VINHOSA

veis, tal o paradoxo do deus representado. E se no princípio era o verbo


e ele se fez luz, a linguagem, espécie de ferramenta formal, é então neste
momento evocada para recobrar o sentido iluminado de toda desrazão
da imagem. “Sentido” da imagem, portanto, é também o pressuposto da
linguagem. O termo guarda, de embalo, natureza ambígua por designar
a reação que se dá tanto em nossa epiderme quanto na mobilização de
nosso estado mental, quer seja este o entorpecimento súbito da consci-
ência pelos órgãos sensoriais e de sua consequente elucidação pelo verbo.
Se esse foi o exercício que, diante da imagem, a religião nos submeteu,
ele transferiu-se para a arte na época do Iluminismo. O que, a princípio,
favoreceu a comunicação do homem com a divindade veio então esta-
belecer a ponte unicamente entre os homens e, mais que isso, instaurou
diferenças incontornáveis entre práticas de fé e artísticas. Essa separação
que encontrou equivalência na adequação dos espaços tanto de culto aos
deuses – igrejas e templos, terreiros de umbanda e candomblé, por exem-
plo – quanto nos de arte – museus e galerias –, aparentemente deter-
minou também nossa predisposição de espírito e comportamento social
segundo os contextos de apreensão e uso das imagens. Assim, se a invisi-
bilidade toma parte do visível, na arte, como quer a relação sensível com
seus objetos, esta está para o pensamento e a reflexão, enquanto em outras
situações prevaleceriam a afecção, a ação e mesmo a idolatria ou crença
na imagem como coisa. Na atualidade, no entanto, essas acomodações de
certezas de longa data nos parecem um tanto quanto estremecidas quan-
do assistimos, por exemplo, ao ingresso da arte feita por indígenas, mas
apresentada como pintura nas paredes dos espaços expositivos, ou quan-
do a pessoa praticante de fé, em nome de sua religião, ao reivindicar seu
lugar de representação nos circuitos da arte metropolitana, introduz em
seus temas artísticos aspectos de religiosidade. Diante dos fatos, algumas
questões me parecem urgentes: 1) ao empreender esses atravessamentos,
poderiam essas imagens conservar ainda parte de sua agência original?;
2) Quais agências seriam essas? 3) Poderiam, estas, continuar agindo fora
de seu contexto de origem?; 4) em quê essas agências reconfiguram nossa
relação com as imagens da arte? 5) E se, enfim, poderíamos, diante da
imagem, estar livre de toda idolatria? Em relação a este problema que
me coloco de início, tentarei aqui esboçar um caminho para sua melhor
compreensão. Tentarei ao longo de minha argumentação recorrer, sem-
pre que puder, a exemplos. Trata-se, evidentemente, não apenas de saber
o que as imagens podem significar em termos de organização e represen-
tação de mundos e ideias, quer dizer, em consideração a seu plano simbó-
15 LUCIANO VINHOSA

lico ou ontológico, mas de saber como elas agem efetivamente sobre nós,
considerando seus diferentes regimes de ação quando entram em cenas
cruzadas – aspecto que não está dissociado do sujeito que somos e dos
contextos de suas apresentações.
As determinações estéticas na arte: do naturalismo ao realismo

Se a passagem da imagem de culto para o culto da arte se dá com a sin-


gularização dessa prática nos séculos XV e XVI nas sociedades europeias,
como quer a história da arte, o edifício da relação estética com as obras de
arte nos parece todo fundamentado na emergência das novas técnicas de
representação do espaço, incluindo os corpos e objetos que nele habitam,
como nos mostra Descola (2021) em Les formes du visible, livro em que o
autor identifica quatro arquipélagos ontológicos de agências que atraves-
sam as diferentes culturas da imagem: animismo, toteísmo, analogismo
e naturalismo. Esta última ontologia sendo uma especificidade da cultu-
ra ocidental moderna, entende que os humanos se diferenciam dos não
humanos graças a seus espíritos, e não por seus corpos. Se, de um pon-
to de vista materialista, ter um corpo é, então, estar sujeito aos mesmos
processos biológicos de todo vivente, o que, a princípio, nos amiudaria, a
capacidade mental e autocrítica do homem seria o que o singularizaria e
o afastaria da natureza, permitindo-lhe, em contrapartida, investigar, con-
tornar e explorá-la. Além disso, por possuir, cada um, alma que lhe confe-
re ânimo individualizado, os humanos diferenciam-se uns dos outros por
suas interioridades e, em grupo, por suas culturas e organizações sociais.
Esse pressuposto que reconhece na espécie capacidade de discernimento
intelectual diferenciada colocou o homem no centro das abordagens em-
píricas do mundo material e dos fenômenos, sendo a natureza a instância
de seu particular interesse e curiosidade. Assim, o autor observa que, nas
sociedades europeias, muito antes de os filósofos das luzes, no século XVIII,
tomarem o mundo como objeto do conhecimento, separando radicalmen-
te o sujeito cognoscente daquilo que ele conhece, os artistas, ao atribuírem
certas qualidades a suas imagens, os anteciparam em alguns séculos.
Tomando o partido da história da arte, Descola evidencia que o Re-
nascimento italiano, ao transpor o esquema ótico que equaciona geometri-
camente a conformação da imagem no interior de nossa retina e cérebro,
projetando-o para o exterior, no plano pictórico, a perspectiva linear for-
nece uma imagem do mundo que redistribui as coisas e os corpos no es-
16 LUCIANO VINHOSA

paço representado segundo uma ordem geométrica progressiva e não mais


por equivalentes simbólicos como era o esquema praticado na Idade Mé-
dia. Destaca que esse modo de representar a realidade, que nos dá uma ilu-
são tridimensional no plano, seria também uma nova visão, um modelo
ideal que não somente nos fornece uma imagem do mundo supostamente
natural e conformada ao funcionamento da aparelho ótico, mas que situa
simbolicamente o homem no centro de sua apreensão, graças à posição efe-
tiva que ele assume diante dele, à meia altura da linha do horizonte com
os pés no chão; e, a partir de sua posição fixa até o fundo da imagem que
observa, as coisas e os corpos se afastam proporcionalmente no cenário, até
reduzir-se a um ponto, lá onde os raios luminosos, figurados nas arestas da
pirâmide visual, encontram-se no infinito. Sem dúvida uma abstração que
tenta dar conta do imponderável representável, imaginável unicamente pelo
artifício da matemática e por uma mente, a do espectador, que o mesura
de fora quando contempla a imagem. Ainda segundo Descola, e já obser-
vado por outros historiadores da arte como Erwin Panofsky, a perspectiva
linear está longe de ser o único modelo de representação simbólica da rea-
lidade. Em concorrência com a janela piramidal italiana que se abre para o
espectador como uma caixa de teatro que enquadra a cena em seu interior,
mas igualmente detentora de uma apreensão das coisas, temos a perspecti-
va atmosférica dos países do norte europeu, em especial a dos Países Baixos
desenvolvida primeiramente por Jean Van Eyck, cujo delicado efeito, favo-
recido pela técnica a óleo, é obtido por um banho de fina luz dourada que
unifica toda a cena. Se comparada ao idealismo italiano, a pintura de Van
Eyck nos coloca mais próximos da latência das coisas quando, a uma tal
hora do dia, penetra o mundo prosaico em suas minúcias para nos mostrar
cada dobra amarrotada de um tecido que cai e do qual podemos sentir o
peso e a maciez, a lisura da seda que na ponta dos dedos desliza, cada ruga
de expressão de um rosto perfeitamente identificado com um sujeito. No
mais, essa ambiência nos desloca do centro para nos implicar na vaguidão
da imagem quando, por sua superfície lisa, nos comprazemos com cada
faísca de um mundo material luxuriante e ao mesmo tempo tão familiar,
dado por uma técnica exímia, quase sem vestígios da mão de quem a execu-
tou, e que a torna, assim, tão conformada à natureza da visão, para o deleite
do intelecto humano que sobre ela desliza (Figura 1).
Ainda salientando as diferenças entre Norte e Sul da Europa, Svetla-
na Alpers (1990), autora na qual Descola se apoia, chama a atenção para dois
modos de organização da imagem, um praticado na Itália, correspondendo
ao narrativo, e o outro nos Países Baixos, ao descritivo. Assim, se na arte
17 LUCIANO VINHOSA

italiana se pratica a grelha abstrata da pirâmide visual, a imagem – que em


termos de conteúdo apresenta-se a partir de um texto passível de ser comu-
nicado como mensagem – está subordinada a uma história que se entretém
a uma passagem bíblica ou, em alguns casos, a um episódio mitológico,
assuntos que podem apresentar-se ladeados pelos comanditários da obra.
Cabe ao artista, ao selecionar uma cena a ser representada, fornecer uma
18 LUCIANO VINHOSA

Fig 1 Albert Eckhout. Abacaxi, mamão e outras frutas, 1637-1664 (circa).


Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Albert_Eckhout_-_Abacaxi,_
Mam%C3%A3o_e_Outras_Frutas.jpg. Acesso em 22 jan. 2023.
síntese clara do que se quer comunicar, condensando, no istmo significan-
te da imagem fixa, uma narrativa que se distende temporalmente para o
passado e para o futuro de uma história já conhecida do público. Por outro
lado, se a arte do retrato foi bem desenvolvida na Itália, os gêneros paisagem
e natureza morta, muito precocemente praticados nos países do Norte, qua-
se nunca, ou somente muito mais tarde, serão assuntos da pintura italiana.
Nos Países Baixos, destaca Svetlana, uma sociedade familiarizada com os
aparelhos de precisão ótica e a cartografia, predominará a imagem descriti-
va. Mas não somente por isso, mas também por se tratar de uma sociedade
composta já no século XVI por uma burguesia que, pouco apegada a uma
cultura clássica, no entanto muito interessada nas ciências e nas descober-
tas, sempre esteve atenta às coisas provenientes de um mundo novo, ao qual
a era das navegações e do colonialismo lhe dava acesso (Figura 2). O gosto
pelo materialismo e evidência das coisas, a imagem sem parábolas ou me-
táforas, que mostra os seres de um ponto de vista objetivo, puderam então
se desenvolver e encontrar acolhimento nesta sociedade interessada na atu-
alidade do olhar. Representar de forma convincente o brilho da luz que se
estilhaça em uma taça de cristal, os reflexos nas superfícies espelhadas, as
mais sutis transparências dos vidros coloridos, a textura de uma fruta e de
todo seu interior desvelado, o cintilar furta-cor das escamas dos peixes, a
plumagem aerada e multicolor das aves, o viço das folhas verdes e nascentes
na primavera, os longínquos azuis acinzentados do outono, que em suas
mais variadas gamas afundam-se no horizonte infinito do entardecer das
horas. Ou, ainda, ser apresentado a um mamão na riqueza de seus opulen-
tos alaranjados; a uma romã explodindo, sorridente, os rubis de suas mais
profundas entranhas; ao exotismo dos pássaros tropicais; a uma classe ve-
getal com sua flor jamais vista; a um animal selvagem e ameaçador; a exem-
plares humanos tipificados em espécies, equiparando-se às ciências: tudo
isso era motivo de curiosidade que, se já não nos expunha ao exercício de
uma imaginação acurada, exigia uma observação atenta da arte. E se mais
tarde a alegoria se faz tema recorrente – como no caso de certas pinturas de
vânitas praticadas no século XVII, ou as de cunho moral ou anedótico – ela
não está separada do interesse pela vida prosaica e nem do aspecto pragmá-
19 LUCIANO VINHOSA

tico que serve de parâmetro de formação ao indivíduo, tendo em vista, por


exemplo, algumas sutis pinturas de Chardin, na França, com certeza, ou de
um Jean Steen, com seus temas cômicos e coloquiais, normalmente encena-
dos em casas humildes ou em adegas de beberrões, tudo muito familiar ao
modo de vida que lhes avizinhava, mas também fascinantes por aquilo que
ostensivamente mostravam.
20 LUCIANO VINHOSA

Fig 2 Frans Post. Paisagem com tamanduá, 1660 (circa). Óleo sobre madeira.
58 x 80,5 x 1,2 cm. Número de inventário: MASP.00224. Créditos da fotografia: João
Musa. Coleção: MASP (Museu de Arte de São Paulo). Fonte: https://masp.org.br/
acervo/obra/paisagem-com-tamandua. Acesso em 13 fev. 2023.
E, portanto, toda essa admiração pressupõe por detrás da imagem
um indivíduo reconhecido por seus talentos, quer seja em virtude da con-
cepção de um espaço ideal, bem composto e proporcionado matematica-
mente, como no caso dos artistas italianos; quer seja pela habilidade em
representar as minúcias das coisas em sua vivacidade descritiva, como os
artistas do Norte. Admirar uma pintura e deliciar-se no prazer daquilo
que a imagem nos apresenta era então igualmente apreciar a habilidade do
artista, o que exigia do público certa competência para julgar sua execução
e, outras vezes, interpretá-la levando em conta as intenções que a presi-
diam. Nota-se que esta competência advém não somente da possibilidade
de atribuir ao observador um conhecimento fundado em bases sensíveis,
mas institui-se também pela capacidade de o sujeito empregar a linguagem
para descrever certos predicados artísticos pressentidos na obra, tais como
o belo, o delicado, a suavidade e a firmeza, e justificá-los discursivamente.
O julgamento de gosto, quando põe em relação dois sujeitos, artista e es-
pectador por meio da obra, pressupõe o ajustamento das faculdades sensí-
veis com as inteligíveis da linguagem. Nesse caso, presença e interpretação
seguem juntas na apreciação.
Mesmo tendo a representação naturalista percorrido quase seis sécu-
los, desde as suas primeiras tentativas titubeantes nos séculos XIV e XV, o
pleno desenvolvimento no XVIII, e alcançando o seu desfecho em meados
do século XIX com os impressionistas, isso não implicou que ela tenha de-
saparecido com a emergência da pintura abstrata no século XX, mas estabe-
leceu-se por uma nova episteme. Uma primeira etapa de transformação na
relação sujeito/objeto se dá então quando as imagens da arte já não poderão
mais concorrer com a ciência em virtude de invenções de outros métodos e
meios tecnológicos, mais eficazes, como a fotografia e a produção mecaniza-
da. No entanto, a própria arte e o sentido da representação sofrerão um des-
lizamento em seus interesses, do objeto para o sujeito, o que demarca uma
mudança fulcral. O que é posto claramente pelo romantismo são as relações
intersubjetivas mediadas pela obra de arte, mas de um tipo diferente daquele
que reconhecia nela as habilidades técnicas de seu executor, para entender
o artista como detentor de uma interioridade expressiva que se mostra em
21 LUCIANO VINHOSA

obra. Esse ponto é crucial porque estabelece o jogo intersubjetivo das inten-
ções quando nos colocamos diante de uma imagem. Neste caso, nunca a
pintura se singularizou tanto como quando ela passará a refletir o caráter do
artista por meio de um estilo pessoal, muito acentuado. Decerto, esse acento
é colocado primeiro em função de uma certa expressão sentimental do sujei-
to diante de uma paisagem, como quando pensamos em Turner ou Caspar
Friedrich, por exemplo, emblemáticos do romantismo, mas também se ex-
primirá como ideia de arte se tomarmos o partido de Courbet, de Cézan-
ne ou mesmo de um indiferente Manet. Essa mudança de paradigma vai se
aprofundar de tal maneira que a representação, perdurando no impressio-
nismo como nunca antes um estilo havia mostrado com tanto naturalismo
o mundo em seus movimentos, afirma também, com seus empastamentos
e pinceladas marcadas, a franca presença da pintura diante de nós. Daqui
para frente, a representação naturalista do mundo decai vertiginosamente
até o ponto em que será negada pelos artistas das vanguardas modernas.
Descola (2021) nos chama a atenção para os sucessivos ensaios de Mondrian,
que decantam a representação da paisagem até chegar a reduzi-la a planos
e linhas orientados pelos movimentos verticais e horizontais. De fato, ele a
reduz a um conceito essencialmente abstrato de natureza. Essa reviravolta,
estou identificando-a como realista porque afirma, no lugar do referente, a
coisa, a pintura como objeto, cujo desfecho viável será o conceito de uma arte
concreta. No entanto, não sendo mais fundada em sua iconicidade, a obra
de arte não deixará de ser menos um índice de uma ideia que se exprime no
objeto, sendo esse o aspecto que marca até hoje nossa relação com a arte. A
presença não nos livra do fato de que o objeto de arte traga agregado em si
algo de imaterial que o faz diferente dos objetos banais. Como nos ensina
Danto (1989) ao referir-se à Brillo Box de Andy Warhol, sendo idêntico em
aparência ao objeto real, o de arte é metafórico porque é a “propósito de”.
De fato, toda esta secularização por que passou a prática artística foi acom-
panhada por uma separação e transferência de seus objetos para os espaços
protegidos, museus e galerias, lugares do culto profano ao artístico/artista
– condição que garante que um objeto qualquer colocado neste lugar, sendo
deste fato transfigurado, tenha natureza diferente da do objeto banal.
Todo esse percurso – um tanto ligeiro e pouco nuançado – serve
para mostrar que a relação estética com as obras de arte pressupõe o cru-
zamento de intenções entre dois sujeitos interpretantes que atravessam
seus olhares luminosos pela imagem e que, portanto, a transcende. Então,
as obras apresentadas nos espaços de arte nos solicitam certa atitude de
distanciamento, de modo que possamos interpretá-las. Se hoje, depois de
22 LUCIANO VINHOSA

refutada pelas gerações dos anos 50, a imagem e a representação ganham


novamente fôlego a ponto de uma pintura abstrata parecer-nos fútil e de-
corativa, ela volta com outros aportes que não o da simples apresentação
material do mundo, suas coisas e seres. Trazem novidades quando intro-
duzem outros sujeitos, outras agências: acessos aos inframundos, espiritu-
alidades ancestrais, processos de curas traumáticas, por exemplo.
Esta tomada de consciência acrescenta uma nova virada epistemológi-
ca em nossos modos de ver a arte. Mas, quem quer que seja que reivindique
arte para seus objetos entra em disputa nesse lugar de sentidos historicamen-
te construídos. Instaura, por conseguinte, o que estamos tentando qualificar
como o instar maravilhoso da imagem confusa. Estamos, portanto, falando
de intenções e sujeitos cruzados em lugares (ainda?) específicos.

Dentro e fora: agências cruzadas

Se o lugar da arte, mesmo se não o consideramos necessariamente como


físico, mas discursivo, nos induz a uma certa relação com seus objetos,
determinando uma atitude mais reflexiva que estamos chamando de es-
tética porque reportada aos problemas da prática, de que forma os objetos
carregados de outros afetos, ao transpor suas fronteiras originais, podem
preservar suas agências, não somente de conteúdos, mas também seus mo-
dos de ativação, ao mesmo tempo em que reivindicam o modo da arte?
A partir da leitura que fiz de Ligiéro (2019), que, ao tratar do Teatro das
Origens, seu tema de estudo, observa que muito se tem de arte nos rituais
do candomblé – no cuidado com que se confecciona a roupa de uma enti-
dade, com que se prepara uma comida, por exemplo, ou como quando o
santo faz seus movimentos ao usar o corpo do sujeito incorporado – pude
intuir então que é mais fácil compreender as agências coincidentes quando
encontramos com a arte fora de seu lugar de culto e que, em contraparti-
da, podemos desconstruir os hábitos quando voltamos a confrontá-los nos
espaços da arte. Certamente, se em um primeiro instante apreciamos as
qualidades formais dos objetos religiosos em situação de rituais, podemos
também, quando adquirimos familiaridade com essas práticas, compreen-
der o sentido profundo de sua ação espiritual em nosso corpo – que não
seja somente as possíveis justificativas simbólicas e de conteúdos.
Retrocedendo na história, digamos na segunda metade do século
XVI, uma obra do barroco italiano: a pintura na abóbada da igreja de Santo
Inácio, em Roma, Glória de Santo Inácio (1685), de autoria de Andrea Po-
23 LUCIANO VINHOSA

zzo. Realizada em uma época em que a arte ainda não tinha desenvolvido
espaços específicos para seu culto, quem quer que entrasse hoje na nave
central desta igreja e olhasse para cima, não poderia ficar indiferente à
cena desconcertante que nos arranca do chão e nos faz flutuar em uma
grande epifania mística. De fato, e posso dar meu testemunho porque já
estive nesse lugar, ao entrarmos, somos sugados por um empuxo vertical
ao mesmo tempo que somos tomados pela vertigem, tal a visão espetacu-
lar que se abre no clarão celestial ilusório, que nos faz atravessar a abó-
bada e descer de volta ao chão, onde mal conseguimos nos apoiar, como
se um buraco tivesse sido aberto sob nossos pés. Os corpos em profusão
representados tampouco conseguem agarrar-se ao teto, despencam-se pe-
las paredes, sobre nossa cabeça, já completamente aturdida pelos efeitos
dos artifícios… Porque, recobrados os sentidos, sabemos muito bem que
se trata de arte grandiosa a serviço do poder e da ideologia católica, enfa-
tizada pela figura central do Cristo, levada pelos missionários jesuítas aos
quatros cantos do mundo, tal a alegoria apresentada ao público (Figura 3).
Por outro lado, podemos imaginar multiplicado o efeito quando esta visão
terrificante foi mostrada pela primeira vez, e em contexto religioso, para o
fiel, seu contemporâneo, ao vacilante tremeluz dos candelabros e ao torpor
dos incensos, sem falar da música que completava a ambientação, uma ver-
dadeira instalação multimídia avant la lettre. Embora não estejamos aqui
para adjudicar a arte, sabemos que no processo de exterminação e ani-
quilação do outro, em nome de um deus, esta foi, por vezes, muito eficaz-
mente usada pelos jesuítas. Argan (2004), em Imagem e persuasão, chama
atenção para o princípio retórico da forma barroca. No caso da narração
apresentada, se existe um texto a seguir, este estaria mais perto da fala e
do discurso, e de todo gestual da predicação, do que da palavra escrita.
Em sua mirabolante encenação formal, o teatro que acompanha a ação é a
ferramenta persuasiva poderosa no instante de conversão do fiel. Podemos
supor que, no século XVI, os agenciamentos místico e artístico, ainda que
conscientemente manipulados, tenham atuado sobre o fiel em conjunto, e
que a imagem, em toda sua eloquência, apareceria indissociável da própria
iluminação do deus, em ato de fé, espanto e resignação humana.
Trazendo para a atualidade, e em contraste com a ideologia cristã
pregada pelos jesuítas, na exposição Senhor dos caminhos, em que presta
homenagem ao orixá Ogum, apresentada no Museu de Arte Contempo-
rânea de Niterói, em 2018, Ayrson Heráclito trouxe para o salão principal
dois grupos de vídeos, intercalados com fotografias, correspondendo a
dois trabalhos distintos, mas de alguma forma interligados no que tan-
24 LUCIANO VINHOSA

ge à relação Brasil e África, religiosidade e reparação.1 O primeiro grupo


apresenta quatro vídeos: o primeiro mostra um trem de ferro em movi-
mento na cidade de Cachoeira, cidade colonial no interior da Bahia que

1 https://artrio.com/noticias/senhor-dos-caminhos-no-mac-niteroi. Acesso em 02 set.


2022. https://www.youtube.com/watch?v=a15NyJ9fF2k. Acesso em 02 set. 2022.
25 LUCIANO VINHOSA

Fig 3 Andrea Pozzo. Glória de Santo Inácio, 1685. Pintura da abóbada. Roma,
Igreja de Santo Inácio. Fonte: https://www.meisterdrucke.pt/impressoes-
artisticas-sofisticadas/Andrea-Pozzo/155776/Entrada-de-Santo-In%C3%A1cio-
no-Para%C3%ADso,-1685-94.html. Acesso em 13 fev. 2023.
teve significativo afluxo de negros expatriados; o segundo mostra um fer-
reiro trabalhando a forja em alusão a Ogum, entidade ligada à terra e ao
ferro, à força e à guerra, e que no sincretismo brasileiro foi assimilado a
São Jorge; no terceiro e no quarto mostram uma feijoada, comida ligada
à mesma entidade, sendo preparada. No segundo trabalho, Ayrson apre-
senta três videoperformances – hidromancia, agromancia e aeromancia
– encenadas ou dirigidas pelo artista e cujos títulos trazem referências aos
capítulos de Histórias do futuro, livro escrito pelo Padre Antônio Vieira
e livremente reinterpretado. Se no primeiro grupo há uma exaltação das
qualidades atribuídas ao orixá, simbolizadas pelos elementos da terra – o
ferro, o fogo, a forja, a força, a guerra e a luta –, o trem em movimento,
além da alusão a seu mineral constitutivo e a via que abre os caminhos, li-
gada então a Ogum, pode estar associado também a uma crítica à interio-
rização, à exploração da força e ao escoamento dos produtos provenientes
do trabalho escravo na Bahia. A feijoada, alimento que em seu preparo
integra proteínas e carboidratos, sendo a comida do Santo, que revigora
e dá força, pode se referir também ao sincretismo das culturas, sendo o
feijão preto ou mulatinho, a farinha e o arroz que a acompanham, uma
declinação singular que a culinária popular brasileira deu ao prato. Já os
temas abordados no segundo grupo de vídeos se reportam à prática mís-
tica da leitura dos elementos constitutivos da vida: água, terra e ar; simbo-
liza o passado revisitado pelo artista com fins a outros futuros melhores.
Estas filmagens foram realizadas no Senegal, na África, país em que Ayr-
son vai em busca de sua ancestralidade, do saber pré-colonial em vias
de cura, pessoal e coletiva. Se em um dos vídeos, Agromancia, em uma
performance filmada, o artista revisita o baobá, árvore da vida com diver-
sos usos medicinais, que na cultura Yorubá é o ser sagrado que fornece o
alimento para o corpo e a alma, ela religa também o mundo material ao
imaterial, a terra ao ar; em um outro, Hidromancia, estão tematizadas as
águas salgadas, o oceano Atlântico, via de escoamento do tráfico de ne-
gros, em que o artista mergulha em um ritual de batismo, purificação e
lavagem. Aeromancia, o terceiro vídeo, filmado em uma praia da Ilha de
Gorée, lugar em que os africanos permaneciam estocados antes de serem
26 LUCIANO VINHOSA

deportados para as Américas, apresenta uma performance em que grupos


de homens negros, senegaleses com certeza, correm juntos de uma pon-
ta a outra da praia, ação que pode estar associada à respiração, ao ar que
entra nos pulmões e renova a vida. No dia da abertura, e isso talvez seja
para mim o acontecimento mais importante, Ayrson serviu para o públi-
co uma feijoada preparada nos rigores da comida de Ogum. O ritual foi
realizado no pátio do museu, no chão, elemento ao qual a entidade está
ligada, e sobre o qual uma grande toalha branca rendada foi estendida
e os pratos dispostos, para que a comida fosse servida. Eu mesmo pude
degustá-la e integrá-la a meu corpo, mas para o praticante do candomblé
talvez tenha sido a oportunidade de alimentar também a sua cabeça e sua
alma. Os restos dessa ação foram, por fim, levados para dentro do museu,
compondo, junto com os vídeos e as fotografias, uma requintada instala-
ção artística, com certeza com todo o cuidado que requer a beleza, para o
deleite estético.
Em outra ocasião, em uma situação um pouco diferente, vivida não
no contexto de uma exposição, mas em visita à reserva técnica do Museu
da República, no Rio de Janeiro, em que eu e outros artistas iríamos parti-
cipar de uma exposição por iniciativa da prof.ª Beatriz Pimenta, da Escola
de Belas Artes da UFRJ, pude presenciar uma agência inusitada da imagem,
mas talvez esperada em função de suas crenças, sobre uma das artistas do
projeto. Uma das coleções de objetos que hoje estão sob guarda do Museu
da República é proveniente do antigo Museu da Polícia Civil do Estado do
Rio de Janeiro. Esses objetos foram apreendidos no início do século XX,
junto aos terreiros de umbanda e candomblé do Rio de Janeiro, em virtude
da lei penal vigente na época, sobretudo o seu artigo 157, que reprimia a
prática do “espiritismo, da magia e de seus sortilégios”.2 Quando o museó-
logo abriu a seção do arquivo que guarda a coleção, para nos mostrar suas
peças, diante de uma das gavetas a artista em questão teve calafrios e ânsia
de vômito, porque, praticante da umbanda, sentiu-se fortemente afetada
pela energia de um dos objetos. De meu lado, tenho o hábito de frequentar
a popular feira da Glória, que acontece todo domingo no bairro de mesmo
nome, na cidade do Rio de Janeiro. Além dos alimentos tradicionalmente
vendidos em feiras livres, há também barracas de artesanatos, camisetas,
antigos LPs de vinil e usados em geral. Certa feita comprei, em uma das
barracas, uma camiseta de malha que ainda guardo comigo. Apesar de
não ser religioso, meu impulso primeiro em comprá-la foi estético, mas
nela podemos ver uma imagem recortada em verde de um arco e flecha
na diagonal, símbolo de Oxóssi, orixá que nos cultos afro-brasileiros está
27 LUCIANO VINHOSA

ligado à mata, à caça e a fartura. Seus atributos são a astúcia, a sutileza e a


agilidade.3 Mesmo não sendo praticante, quando visto a camisa meu peito

2 http://www.policiacivilrj.net.br/museu.php/carta_de_servicos_ao_cidadao_-_pcerj.
pdf. Acesso em 03 set. 2022.
3 https://guiadaalma.com.br/orixa-oxossi/. Acesso em 03 set. 2022.
se apruma, minha coluna fica mais ereta, sinto meu corpo tomado pelas
forças de Oxóssi. Se a imagem se faz corpo em mim, meu corpo então tor-
na-se uma imagem. Fosse isso diferente, não seria este o princípio mesmo
da idolatria que determina nossa relação com as imagens.
Espero que, chegando até aqui, esteja claro que as formas de adoração
ao deus não estão separadas das formas de belezas nem de sua capacidade
de afecção física quando cultuadas pela arte, sejam estas apaziguadoras e
reconfortantes ou terrificantes e ameaçadoras.

O espectador partido, contextos mistos

Alfred Gell (2018) em Arte e agência, no capítulo “Pessoa distribuída”, ao


tratar da tese de que a arte é relativa a pessoas – e por isso esta promove
agências humanas –, aproxima a sua compreensão dos usos das imagens
em contextos religiosos. Ao chamar a atenção para o fato de que em ritu-
ais e cerimônias a adoração das imagens ocupa lugar central nos estudos
antropológicos, afirma que em nenhuma outra situação a imagem é tão
adorada e tratada como sujeito. Ao abordar este assunto, o autor remete-se
aos objetos de sortilégios, desvelando, do ponto de vista analítico, o seu
funcionamento social em seus lentos processos de contaminação, das ima-
gens de feitiço para as de adoração de deuses e, daí, para a arte. “A magia
é possível porque intenções fazem com que eventos aconteçam em torno
de agentes” (p. 162). É, no entanto, evidente, e já considerado por nós ante-
riormente, que esta relação transferiu-se para os objetos de arte – que, do
ponto de vista de suas intenções, são em parte sujeitos. Se no cristianismo
evitou-se tanto o quanto se pôde a idolatria, afastando o deus de sua ima-
gem, essa passagem para a arte não o pôde fazer, tanto que quando em-
pregamos, por exemplo, a metonímia “esse é um autêntico Matisse” para
nos referirmos a um quadro do pintor, coincidimos o sujeito no objeto que
apreciamos. E se, na hipótese contrária, em resultado de perícia técnica,
fosse atestado se tratar de um falso Matisse, imediatamente deixaríamos
de apreciar a obra, ou ao menos de apreciá-la do mesmo modo, por não
28 LUCIANO VINHOSA

mais encontrarmos nela o artista que tanto admiramos. De forma confusa,


adoramos o objeto na mesma medida em que adoramos o sujeito, de modo
que o objeto legado é entendido como parte distribuída do sujeito (Gell,
2018). Portanto, é a copresença do humano no objeto que faz as intenções
e as paixões se cruzarem e surtirem, em nós, seus efeitos desejados. Ver,
saber e acreditar são condições que integram as intenções que presidem as
relações sociais. Assim, toda relação de intenções sujeito e objeto, causali-
dade e efeito, está pautada em crenças compartilhadas.
Se na análise que faz, o autor chega à conclusão de que, considerada
em seu conjunto, a obra de arte é uma extensão da mente do artista, Gell
a pensa a partir de inúmeras paradas correspondentes a índices materiais
pontuais – trabalhos específicos como partes distribuídas do artista –,
que se articulam em redes temporais complexas em constituição de uma
tessitura de consciência do sujeito. Por outro lado, e ainda o seguindo, se
aceitamos, como ele propõe, que o objeto de arte é índice sobrecarregado
de intenções que se endereça a um outro sujeito em uma relação de causa
e efeito – ativo (objeto)/passivo (sujeito) –, e que, em contrapartida, este
sujeito reage em igual medida sobre o objeto, invertendo os polos da rela-
ção – passivo (objeto)/ativo (sujeito) –, podemos então imaginar que um
dado objeto de arte que carrega em si outras agências que não unicamente
a estética – como seria o caso de objetos de arte que estão referenciados
também a cultos religiosos – possa também exercer outras agências sobre
o público, caso este compartilhe com o artista outras crenças que não
unicamente as da arte. Podemos também imaginar que, em troca, este pú-
blico, respondendo ativamente sobre o objeto, devolva ao artista a energia
que recebeu do deus. Nesse sentido, ainda que tais objetos sejam apresen-
tados em lugares da arte, o fato de que mesmo assim podem repercutir
agências múltiplas nos faz entender que a noção de contexto reenvia não
somente aos espaços protocolares aos quais respondemos suas determina-
ções com certa naturalidade, mas atua em conjunto com a consciência dos
sujeitos, seus aprendizados e crenças compartilhadas.
29 LUCIANO VINHOSA
REFERÊNCIAS

ALPERES, Svetlana. L’art de dépeindre:


la peinture hollandesa au XVII siècle.
Paris: Gallimard, 1990.
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e
persuasão: ensaios sobre o barroco.
São Paulo: Cia das Letras, 2004.
DANTO, Arthur. La transfiguration du
banal. Paris: Seuil, 1989.
DESCOLA, Philippe. Les formes du visible.
Paris: Seuil, 2021.
GELL, Alfred. Arte e agência.
São Paulo: Ubu, 2018.
LIGIÉRO, Zeca. Teatro das Origens:
estudos das performances afro-
ameríndias. Rio de Janeiro:
Garamond, 2019.
30 LUCIANO VINHOSA
Das construções cênicas celebratórias:
ângulos e focos de uma investigação itinerante
ZECA LIGIÉRO
Docente no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro – PPGAC/UNIRIO

Nas performances de origem africana hoje, podemos observar: o corpo é


o centro de tudo. Ele se move em direções múltiplas, ondula o torso e se
deixa impregnar pelo ritmo percussivo. A dança que subjuga o corpo nasce
de dentro para fora e se espalha pelo espaço em sincronia com a música
sincopada típica do continente africano. De tão insistente e envolvente, ela
faz parte tanto do festivo, do religioso, como do cotidiano do povo brasilei-
ro; das celebrações católicas aos folguedos e ritos afro, como o candomblé
e a umbanda. A conexão destas danças com a cultura africana, de tão ób-
via, tem sido menosprezada e pouco estudada pelo mundo acadêmico, que
prefere ver nela um reflexo das misturas condicionadas pela cultura pop
internacional ou uma consequência da miscigenação ou ainda do sincre-
tismo (LIGIÉRO, 2011, p. 131).

Captando o léxico do movimento

O uso das imagens, embora não tenha merecido um destaque teórico na


minha obra, sempre esteve presente. Até mesmo os registros antigos dos
desenhistas ilustradores têm ainda ajudado o meu trabalho, que cami-
nha para uma etnografia itinerante das tradições afro e ameríndia. Ao
trabalhar com o efêmero da performance sempre procurei um apoio na
imagem para melhor compreender o todo a partir do corpo em movi-
mento, sobretudo porque investigo os processos de construção tanto nas
performances culturais (candomblé, umbanda e tambor de mina, prin-
cipalmente) como no teatro, sobretudo nos processos de encenação. Não
pretendo fundamentar o meu trabalho na antropologia visual, visto que
se trata de uma disciplina já conhecida e de real valor da qual não faço
31 ZECA LIGIÉRO

parte. Mas, de qualquer forma, proponho um passeio visual na busca


do entendimento da expressão religiosa que envolve a preparação para
o ritual, o ritual em si, o êxtase, momento de jogo, o transe, o sacrifício
e a finalização. No nosso caso, visto a partir do ângulo das “construções
cênicas celebratórias”.
32 ZECA LIGIÉRO

Fig 1 Zeca Ligiéro ao centro, fotografando o ritual para o Vodun Zamgbeto,


do Lago Togo, 2011. Acervo NEPAA. Fotografia: autor desconhecido.
Decidi por verificar a importância do uso das imagens ao analisar
dois festivais que, em muitos aspectos, misturam ritual, jogo e festa, en-
volvendo diversas mitologias próprias. Primeiramente, vamos enfocar o
festival das divindades negras (Divinité Noir), no Togo, visitado nos anos
2011 e 2013, e, por último, o desfile da escola Acadêmicos do Grande Rio no
carnaval de 2022, centralizado nas figuras de Exu e do povo de rua. Desta-
caremos alguns aspectos de suas performances, que são construídas como
parte de complexas mobilizações comunitárias em torno da encenação. Va-
mos observar a maneira como são concebidas e executadas, centralizadas
nas dinâmicas corporais do cantar/dançar/cantar, como temos visto em di-
versas publicações (LIGIÉRO, 2011, p. 2019). Antes de entrar propriamente
no assunto das performances africanas e afro-brasileiras, faço um peque-
no preâmbulo para que possamos descartar algumas concepções advindas
de estudos de processos judaico-cristãos-muçulmanos, bem conhecidos no
Ocidente, para reconectar palavras como “ritual”, “sagrado”, “divino” com
as cosmovisões negras e, assim, melhor compreender o léxico das perfor-
mances na África e daquelas trazidas pelos africanos para as Américas.
No nosso caso, para falar do ritual, é preciso considerar o papel de-
sempenhado pelo corpo. Se pensarmos na atuação do corpo de sacerdotes
e fiéis durante as suas cerimônias religiosas, teremos parâmetros para en-
tender melhor o ponto nevrálgico do contraste entre os rituais afro e os das
tradições judaico-cristã-muçulmanas. As diferenças entre essas tradições,
distintas em suas filosofias e práticas religiosas, determinam a relação do
corpo com o sagrado. Entre as inúmeras diferenças, gostaria de destacar,
sobretudo, as representações do sagrado presente no corpo humano.
As religiões africanas e afro-brasileiras não apresentam o corpo como
sofrimento, tortura, renúncia como parte do sacrifício humano estratégico
para se aproximar do sagrado. Em muitos casos, o corpo nem é representado,
como é o caso da forma em cone dos voduns Zamgbeto, protetores do grande
lago do Togo, que misteriosamente atravessam as suas margens acompanha-
dos por fiéis, e aguardados por outros fiéis na outra margem (Figuras 2 e 3).
Em muitos casos, estas religiões de origem africana procuram cap-
tar a diversidade de forças e energia dos elementos da natureza para re-
tê-las em altares próximos das habitações humanas, de forma a fortalecer
33 ZECA LIGIÉRO

beneficamente essas relações – sendo que os altares mais conhecidos estão


localizados na natureza (fontes, rios, florestas, praias desertas), segundo di-
versas tradições africanas, bem como ameríndias. As imagens das religiões
africanas e afro-brasileiras estão presentes igualmente em uma diversidade
de grafismos, como os pontos riscados, ou na expressão de outros símbolos
34 ZECA LIGIÉRO

Fig 2 Os Voduns de Zamgbeto, protetores do Lago Togo, sobre as águas. Togo,


2011. Fotografia: Zeca Ligiéro.
Fig 3 Às margens do Lago Togo, fiéis aguardam a travessia dos Voduns
Zamgbeto. Togo, 2011. Fotografia: Zeca Ligiéro.
sagrados, sobretudo, na construção das ferramentas das divindades (orixás/
voduns/inquices).
As ferramentas de Ogun, construídas em ferro, reúnem miniaturas
de facas, espadas, pás, foice, correntes etc., que aludem à força e proteção
da divindade da guerra e do trabalho de construção (Figura 4). Colocadas
em altares, assentamentos e outras vezes manipuladas durante os rituais,
acredita-se que elas retêm as energias e propriedades das divindades que
representam. O simbolismo das cores, bem como sua combinação de for-
mas, estão presentes nas vestimentas e ainda em colares de miçangas, tam-
bém chamados guias, bem como no terreiro principal.
De forma diversa, por acreditarem que o pecado mora no corpo – por-
tanto, o mesmo deve ser mantido coberto para evitar a tentação –, diversas
tradições judaico-cristã-muçulmanas estabelecem vestimentas uniformes
para suas agremiações. Com mantos se desenha um corpo coberto dos pés
à cabeça para se comprometer totalmente com um comportamento defini-
do como “digno” de se apresentar diante do Criador. Num pequeno cortejo
natalino em Bogotá, a família sagrada cristã é representada em sua fuga para
o Egito. Dois anjos com instrumentos de percussão abrem o cortejo, que in-
clui, inusitadamente, um burro e dois carneiros (Figura 5).
Já nos terreiros de candomblé ou umbanda teremos outras simbolo-
gias de cores, formas e uma inventividade característica de cada tradição.
Então, a grande diferença surge: se para uma tradição o corpo, mesmo
quando se livra de todos os pecados, ainda é profano, pecador, para outra,
o corpo se torna um espaço sagrado. Conforme a linda explicação dada
pelo babalorixá John Mason, em entrevista:

De forma que minha relação com Deus é sempre muito de perto e tornou-
-se parte do meu espaço vital. Eles (os orixás) não estão fora do meu espa-
ço. Não é alguma coisa fora, é todo o espaço. É gente que usa eleke (colar
de contas dos iniciados). Você o usa em torno do seu pescoço, ele toma o
espaço do seu corpo. Eles usam braceletes etc. É a roupa que você veste.
Tudo isso é ritual. Seu corpo é seu templo. Para ser realmente técnico, seu
corpo se torna espaço ritualizado porque é desenhado. Você desenha o que
vai vestir (LIGIÉRO, 1993, pp. 141-142).
35 ZECA LIGIÉRO

No Ocidente, quando se fala do espaço, a concepção é de que este corres-


ponde a tudo aquilo que está em torno e/ou fora do corpo. Já a ideia africa-
na é a de que o corpo é também espaço; então, esse corpo, quando iniciado,
é desenhado pelo sagrado e é ele mesmo espaço sagrado.
36 ZECA LIGIÉRO

Fig 4 Ferramentas de Ogum, possivelmente de Zé Diabo. Mercado Modelo


de Salvador, Bahia, 2021. Fotografia: Zeca Ligiéro.
Fig 5 Cortejo natalino nas ruas de Bogotá, Colômbia, 2008. Fotografia: Zeca Ligiéro.
REFERÊNCIAS DA PESQUISA SOBRE CANDOMBLÉ
NA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS DA PERFORMANCE

Após esta breve introdução, é possível contextualizar as palavras “ritual”


ou “religião” em sintonia com a festa, o jogo, a dança, o canto, a música.
Muitas vezes as cerimônias envolvem processos teatrais, como a encenação
de dramas e bailados, que aludem à vida e à trajetória dos deuses e seus
entrelaçamentos com os humanos. Em muitas destas celebrações é costu-
meiro o acontecimento do êxtase religioso e o transe mediúnico. Nesse ar-
tigo, apresento flashes de uma trajetória de encontros, pesquisas, levando a
câmera como testemunho da minha memória ou revendo fotos de amigos
e/ou pesquisadores irmãos.
Muitas foram as experiências ao procurar apreender a diversidade
de contextos religiosos afro, e, naturalmente, os exemplos visuais sempre
se apresentaram e ainda se apresentam como portos seguros onde meus
olhos podem perceber, por meio de todos os detalhes das imagens, a diver-
sidade de cenários descritos, assimilando, desta forma, a iconografia dos
diversos cosmogramas africanos. No retorno de uma viagem, a retomada
da análise da foto pode ainda indicar tantos outros caminhos e auxiliar no
avanço da análise das primeiras impressões de uma pesquisa de campo.
Em termos de imagem, a primeira vez que eu vi candomblé foi atra-
vés de Pierre Verger, o grande fotógrafo francês da Paris Match. Tendo via-
jado e residido em vários lugares da África, onde foi iniciado, Pierre Verger
teve permissão para fotografar diversos rituais até então considerados se-
cretos. Assim, foi possível, através dos seus livros, acompanhar a presença
dos orixás e voduns nas Américas e na África e alguns de seus rituais e
suas mitologias por meio de uma escrita acessível e por vezes até detalha-
da. Ao fixar residência em Salvador, Bahia, Verger deu continuidade à sua
investigação sobre a diáspora africana, deixando os materiais atualmente
na Fundação que leva o seu nome. Foi o primeiro contato que a maioria das
pessoas não negras teve com o candomblé e sua relação direta com o con-
tinente africano, terra de resistência negra, um universo proibido ao leigo.
Quando escrevi o livro Iniciação ao candomblé (LIGIÉRO, 1993), Verger era
ainda uma das mais importantes referências iconográficas do candomblé.
37 ZECA LIGIÉRO

Na impossibilidade de reproduzir suas fotos do livro Orixás, os deuses io-


rubás na África e no Novo Mundo (VERGER, 1991), uma vez que não tinha os
direitos autorais, decidi copiar alguns do orixás incorporados com o meu
traço. Então, pude reler com o bico de pena em nanquim os milhares de
pixels da imagem original (Figura 6).
38 ZECA LIGIÉRO

Fig 6 Desenho de Oxum incorporada baseado em uma foto de Pierre


Verger para o livro Iniciação ao candomblé, 1993. Ilustração: Zeca Ligiéro.
Fig 7 Mãe Beata de Iemanjá, mural de Cazé. Lapa, Rio de Janeiro, 2020.
Fotografia: Zeca Ligiéro.
Meu interesse pelas tradições afro começou em 1985, quando fiz
o curso “Nova York, uma cidade secreta africana” com Robert Farris
Thompson, professor da Yale e professor visitante na NYU, onde eu cur-
sava o primeiro semestre do mestrado em Performance Studies. Alguns
anos depois de retornar ao Brasil, o próprio Thompson me ligou com seu
inconfundível sotaque gringo: “Está indo uma fotógrafa ao Brasil chama-
da Phyllis Galembo. Zeca, você vai escrever sobre os orixás, sobre o can-
domblé porque você é a pessoa escolhida pelos deuses!”. Eu sabia quase
nada sobre candomblé, mas fui pesquisar… Minha missão era escrever
sobre as fotos de Phyllis e sobre os pejis (altares). Isso me exigiu um enor-
me esforço e atenção. A pesquisa para o livro Divine Inspiration from
Benin to Bahia (THOMPSON; LIGIÉRO et al, 1993), para o qual produzi o
artigo “Candomblé is life-art-religion”, me levou pela primeira vez a en-
contrar com as famosas mães de santo do candomblé: Mãe Gisèle Binon
Cossard (Omim Darewá), a sacerdotisa e doutora orientada por Roger
Bastide, e Mãe Beata de Iemanjá, ativista do feminismo e da negritude
que, além de toda referência, me iniciou no candomblé no Ilê Omiojuaro,
em Miguel Couto, Nova Iguaçu. Mãe Beata faleceu em 2017, e foi home-
nageada em um lindo mural realizado pelo artista Cazé.
Quando alguém vai a uma cerimônia no candomblé e fica tonto ou
perde os sentidos, diz-se que a pessoa “bolou”. Outros asseguram que é o
chamado do orixá. No entanto, o transe dos orixás não ocorre repentina-
mente em qualquer lugar. Ele decorre do processo de iniciação, é a meta da
filha ou filho de santo, o contato máximo com a divindade. E é muito raro
que este encontro se dê antes de uma preparação detalhada. O fenômeno
de possessão pelo orixá se consuma paulatinamente, através de um longo
processo de aprendizado no terreiro, participando de rituais e observando
os preceitos e ensinamentos transmitidos pelos sacerdotes.
O transe no candomblé nada tem a ver com incorporação de espí-
ritos de pessoas que já morreram e têm urgência de comunicar-se com o
mundo dos vivos, como ocorre no espiritismo e na umbanda. A inicia-
ção inclui um período de reclusão em que as yawo/iaôs (filhas de santo)
e os omorissa/omorixás (filhos de santo) recebem uma série de rigorosos
treinamentos visando fazer com que alcancem a pureza de que o orixá
39 ZECA LIGIÉRO

necessita para vir à terra. Os novos membros do terreiro devem aprender


também os passos da dança dos deuses e seus mitos principais. Gisèle
Cossard (2006, p. 170) destaca a parte festiva e performática das celebra-
ções públicas do candomblé: “Cada cerimônia é uma representação reli-
giosa da qual participam atores e espectadores”. Por ocasião do retorno
40 ZECA LIGIÉRO

Fig 8 Dança dos guerreiros Goro Voduns, interior do Togo, 2013.


Fotografia: Zeca Ligiéro.
do orixá à terra, os trajes rituais, as insígnias levadas pelas iniciadas em
transe, os ritmos, os cantos e a coreografia perpetuam lendas que formam
uma herança preciosa e que a yawo transmite de geração em geração. É o
patrimônio da comunidade.
Aos poucos, a iaô vai permitindo que através dela o santo vá desen-
volvendo, ou seja, a personalidade do seu “orixá de cabeça” vai se tornando
mais articulada, correspondendo ao arquétipo, mas adquirindo nuances
de acordo com cada indivíduo. Pouco a pouco, o orixá adquire o hábito de
falar e, com o tempo e a experiência, desenvolvem-se os signos de um saber
pessoal: dupla visão, profecia, língua secreta, conhecimentos de plantas,
remédios etc., acrescenta Gisèle Cossard (2006).
A vida da iaô passa a ser regida pela filosofia que orienta o seu orixá,
e a convivência com ele passa a ser vista como uma segunda personalidade,
como o seu duplo. Mas nesse contato íntimo entre o iniciado e a divindade
a pessoa recebe também, através das emanações energéticas do orixá, reve-
lações de sua própria energia inconsciente, que desabrocha sobre a sua vida
de forma ordenada e rejuvenescedora.
A iaô geralmente recebe dois orixás. Um, o chamado “orixá de ca-
beça”, e o outro, secundário, que a acompanha e compõe aspectos de sua
personalidade individual. Quem lê qual orixá está manifestado é o sacer-
dote. Esta leitura pode ser feita através da consulta ao jogo de búzios, ou
observando-se a forma como o transe ocorre, durante os cânticos específi-
cos para este ou aquele orixá. Monique Augras chama atenção para outro
aspecto na leitura do orixá manifestado:

Todos esses deuses, de origem, de herança, de destino, congregam-se no in-


divíduo, desenhando determinada configuração, tão complexa e tão dinâ-
mica que é chamada enredo. O enredo de uma peça é a intriga que anima os
personagens, os rumos da ação. O indivíduo está situado no centro de um
drama divino, em que o dono da cabeça se exprime em primeiro lugar, por
ter sido “fixado” pelos ritos da iniciação. Mas o processo iniciatório tem a
função de “assentar” igualmente os demais deuses do enredo em seus res-
pectivos lugares, de maneira que as relações entre todas essas divindades
sejam divididas de modo mais harmonioso. Fala-se muitas vezes do orixá
41 ZECA LIGIÉRO

segundo (ori ekeji, “a segunda cabeça”), do terceiro, que podem ter influên-
cia poderosa. A responsabilidade da suma sacerdotisa, ou do sumo sacerdo-
te, afirma-se nesse trabalho, que consiste em colocar cada um dos deuses do
enredo no lugar que lhe cabe (AUGRAS, 1983, p. 213).
O encontro com os estudos da performance de Richard Schechner foi
substancial para a presente pesquisa, tanto nos meus cursos de mestrado
e doutorado, desenvolvidos no Departamento de Estudos da Performance
na NYU, bem como nos anos posteriores, que renderam a publicação do
livro Performance e antropologia de Richard Schechner (2012), por mim or-
ganizado, e cuja abordagem faz uso das imagens e tem influenciado a mi-
nha trajetória de pesquisador. Alguns conceitos do livro me são caros neste
estudo, como a questão da inter-relação do “jogo” e do “ritual” como opos-
tos de um mesmo contínuo presente em muitas das cerimônias, bem como
a questão da diferenciação e complementaridade entre “transe” e “êxtase
religioso”, com a qual sempre nos esbarramos ao pesquisar determinadas
celebrações em que ocorrem esses fenômenos, simultaneamente ou alter-
nadamente. Da mesma forma, atestamos que a performance, que ocorre
como algo espontâneo, mas dentro de uma determinada agenda ou pro-
posição de “restauração de comportamentos”, se trata de outra máxima do
nosso guru que ajudou-me a pensar a questão das “motrizes culturais”, não
apenas como repetição de um comportamento ancestral (matrizes), mas,
antes disso, a recuperação ou a reiteração de um comportamento como
presentificação da ancestralidade por meio da inseparável tríade da perfor-
mance africana: cantar/dançar/batucar (LIGIÉRO, 2012).
É possível perceber, a partir das imagens de diversas fotografias re-
gistradas nas viagens para Togo, Benim, Senegal e, posteriormente, Mo-
çambique, como elas retêm a qualidade do movimento em si, captando
não só a dança, como de alguma forma percebendo a percussão. O corpo
traz um determinado ritmo que é captado pela câmera em apenas um frag-
mento de tempo, mas que gera o conhecimento parcial do todo. Então, as
imagens trazem sempre a possibilidade da ação religiosa no corpo vibrátil,
impregnado pela onda sonora, conectado com o movimento coletivo, re-
verberando o sagrado oriundo da percussão e do canto.

ENCONTRANDO OS VODUNS NA ÁFRICA

Com o apoio da bolsa Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, eu viajei ao


42 ZECA LIGIÉRO

Togo (2011 e 2013) para o Festival des Divinités Noires [Festival das Divin-
dades Negras]. Foi a primeira oportunidade para encontrar os Voduns,
divindades entre os povos Ewé, Fon e Mina, geograficamente e familiar-
mente parentes muito próximos dos já conhecidos orixás. O estudo com-
parativo, desenvolvido principalmente por Pierre Verger, mostra-se ainda
bastante atual, pois além dos laços de parentescos culturais entre as tradi-
ções dos voduns (fon/ewe de Benim) e a dos orixás (iorubás e também fon/
ewe), levou em conta também o fato de que ambas as divindades represen-
tam as forças da natureza, bem como compartilham a incorporação de ar-
quétipos humanos comuns. Entretanto, o contato com os voduns presentes
no Festival des Divinités Noires, no Togo, revelou novas nuances sobre este
universo, embora muitos deles mantivessem as mesmas correspondências
arquetípicas analisadas, dentre as quais poderíamos listar algumas, como:
Exu/Légua, Xangô/Hevioso, Nanã Boroquê/Nanã, Oxumaré/Dan. Assim,
foi possível verificar um número maior de entidades desconhecidas e com
atributos distintos daqueles apontados pelos pioneiros destes estudos no
Brasil. Alguns dos voduns (palavra que quer dizer “espíritos” na língua
ewe/fon) aparecem ora como formas antropomórficas, ora como voduns
familiares, como espíritos protetores dos mortos (egungun, em iorubá) ou
ainda são chamados de “fetiche” (tomado do português “feitiço”) do pró-
prio vodun, uma espécie de guardião ou mensageiro do vodun. Ao contrá-
rio do Brasil, lá me foi permitido fotografar vários grupos em várias etapas
do processo celebratório: o preparativo para o ritual, o ritual em si com
transe, e além disso eu pude registrar também processos de encenação
para um grande público. Tive a oportunidade de fazer algumas entrevistas
com sacerdotes, e até aprendi alguns movimentos de danças.
No Santuário de Glidji, em Aneho, um pequeno vilarejo perto de
Lomé, a capital do Togo, eu estava assistindo à abertura do festival quando
uma sacerdotisa viu que eu estava me balançando ao som dos atabaques
de um cortejo que passava e, então, veio me ensinar a maneira correta de
honrar aos voduns. Foram momentos lindos de aprendizado. Eu tinha que
dançar mais próximo do chão, ela me dizia numa língua que não compre-
endia, mas tentava seguir como indicavam os seus gestos. Depois de um
tempo, me deu um belo sorriso de aprovação e se foi, seguindo o cortejo
que já estava longe. Senti como se ela estivesse me abençoando e abrindo
minha sensibilidade para entender os voduns com meu próprio corpo.
Os voduns estão presentes no Brasil no que ficou conhecido como
candomblé Jeje, ou, ainda, no Tambor de Mina do Maranhão e do Pará. Os
orixás se popularizaram nos candomblés da Bahia e de lá se espalharam
43 ZECA LIGIÉRO

pelo Brasil e outros países latinos. Enquanto o número de orixás conhecidos


no Brasil não chega a duas dezenas, os voduns são conhecidos em centenas.
O público presente no festival tem acesso a uma diversidade de ma-
teriais, mostras de vários grupos artísticos e congregações religiosas de
devotos dos voduns. Como se tratava do festival das Divindades Negras,
44 ZECA LIGIÉRO

Fig 9 Sacerdotisa de vodun, que se dispôs a me ensinar a dança adequada ao


gesto de honrar o vodun. Togo, 2011. Fotografia: Tatiana Damasceno.
Fig 10 Ritual Kepssosso, grupo de mulheres iniciadas celebram os 41 voduns
assentados em Aneho, Togo, 2013. Fotografia: Yara Ligiéro.
as apresentações eram feitas ora em cortejos, ora centralizadas em uma
arena e algumas eram depois conduzidas para um palco armado em frente
à praia de Aneho, tendo ao fundo o grande lago de Togo. Em uma semana
de diversas apresentações em três turnos, muitas respostas a antigas ques-
tões foram dadas, e sim, o teatro sagrado negro existe, é para valer, não é
carnaval, é ritual e encenação, simultaneamente.
Durante os dois festivais das Divindades Negras no Togo (2011 e 2013)
chamou-me a atenção as distintas apresentações das associações religiosas
dos Goro Voduns (os voduns da cola ou obi), chamados também de Breke-
té. Seus grupos são um bom exemplo das possibilidades contemporâneas dos
processos de encenação dentro de uma variedade de rituais onde se conjugam
a performance de diversas manifestações de entidades, suas ações dramáticas,
danças, interatividade entre si e o público, utilização do espaço, bem como a
manipulação de facas e objetos perfurantes, como é o caso do grupo de “guer-
reiros”. Cores e formas de vestir ressaltam comportamentos, o uso de turban-
tes ressalta o rosto, que é maquiado de forma a exaltar a dramaticidade da
própria cena do autoflagelo como prova de coragem, no caso dos guerreiros.
Uma vez devidamente incorporados e vestidos, chamou-me a aten-
ção as túnicas em formato do abadá muçulmano, com uma calça curta até
os joelhos, predominantemente em três cores: vermelho, preto e branco.
Rostos fortes e dramáticos, marcados com traços de giz branco (efun) so-
bre a pele bem negra, ou mesmo de branco esfumaçado, remetiam a algo
fantasmagórico. Passei, então, a identificá-los como eguns (termo em ioru-
bá utilizado no candomblé e na umbanda para referir-se aos espíritos de
pessoas que morreram e que voltam ao mundo dos vivos). De fato, trata-se
realmente de espíritos que retornam à Terra e, no caso, são chamados de
“fetiche” (feitiço) ou mesmo “voduns”, mas em vez de serem seguidores de
um único vodun, como eu havia suspeitado, ali se apresentavam entidades
aliadas a pelo menos três ou quatro voduns, como pude verificar depois em
entrevistas com diferentes sacerdotes do culto. O nome “gorô” (de Goro Vo-
dun), que pode ser traduzido como “noz de cola” ou “obi”, é empregado em
rituais por várias etnias, como os mina-ewe, os fon, os iorubá e os haussá.
Os Goro Voduns se reúnem em roda em determinado lugar onde fa-
zem o ritual; a dança em roda dos sacerdotes que vão incorporar é estimu-
45 ZECA LIGIÉRO

lada pela comunidade sentada no entorno, que tira som batendo com dois
pedaços de madeira; após entrarem em transe, são vestidos e maquiados até
que, em determinado momento, são organizados em cortejo para subirem
ao palco armado, onde se apresentam para o público, conforme analisei em
Teatro das Origens: estudos das performances afro-ameríndias (2019).
46 ZECA LIGIÉRO

Fig 11 Cortejo do Grupo Goro Vodun subindo ao palco do Festival. Todos


incorporados. Togo, 2011. Fotografia: Tatiana Damasceno.
Figs 12 e 13 Apresentação dos Goro Voduns no palco principal de Aneho, Togo,
2013. Fotografia: Yara Ligiéro.
FOLIA DE DIONISO E BACO AO LADO DE EXU E PELINTRA NO CARNAVAL

O carnaval carioca de 2022 foi marcado pela presença das tradições negras.
Tive a chance de assistir ao desfile final das campeãs deste ano no Sam-
bódromo. A experiência de ficar uma noite inteira sentado nas arquiban-
cadas, um tanto quanto distante do cortejo, foi marcada por períodos de
sacrifício (intervalo entre as apresentações) e êxtase (alguns momentos e,
sobretudo, as escolas de samba primeiras colocadas, entrando na avenida
já com o dia amanhecendo). Pois, por mais participativa, a nossa interação
com o desfile era a tradicional relação palco e plateia do teatro ortodoxo.
Muitos dos foliões dançavam e acenavam para o público, mas a relação era
quase que anônima, além de distante. Bem distinta dos festivais africanos
em que o público se desloca à vontade em torno dos cortejos e tem liberda-
de de escolher o melhor ângulo e se deixar estimular pelo que lhe interessa
mais ao escolher o seu espaço apropriado.
Mas, sem dúvida, a grande referência foi a Grande Rio, com enredo
sobre Exu, o senhor de todas as direções do espaço e do tempo. Segundo
a proposta dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, o enredo
“Fala, Majeté! As sete chaves de Exu” veio desmistificar o orixá, visto no
mundo ocidental pelo lado ruim. Exu é caminho, sabedoria, prosperidade.
Exu é livramento1.
Ao longo de nosso trabalho temos estudado Exu de diversas maneiras.
Os mitos de Exu aparecem em seus orikis, os seus cantos e histórias extra-
ordinárias. Exu é o mensageiro, responsável pela comunicação deste mundo
(Aye) com o mundo dos deuses (Orum). Assim, como Mercúrio ou Hermes,
embora não tenha asas nos calcanhares, ele se transporta e se redimensiona
ao seu bel prazer: “Aborrecido, ele senta-se na pele de uma formiga”, “Ele
matou um pássaro ontem, com uma pedra que somente hoje atirou. Se ele
se zanga, pisa nesta pedra e ela se põe a sangrar”, “Sentado, sua cabeça bate
no teto, de pé não atinge nem a altura do fogareiro” (VERGER, 1997:78). Ele é
o senhor de todos os caminhos e de todas as direções. Por isso, as oferendas
que lhe são dirigidas devem ser colocadas nas encruzilhadas.
Encontramos a figura de Exu originalmente na costa oeste da Áfri-
ca, entre as culturas iorubá e fon, localizadas respectivamente na Nigéria
47 ZECA LIGIÉRO

e na República Popular de Benim, antigo Reino de Daomé. Na Nigéria,

1 O GLOBO, G1. Grande Rio: veja o enredo e cante o samba. Disponível em: https://
g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2022/noticia/2022/04/05/grande-rio-veja-o-
enredo-e-cante-o-samba.ghtml. Acesso em 10 ago. 2022.
os iorubás o chamam de Exu-Elegba, e entre os fons recebe o nome de
Legba. Através da diáspora africana, ele foi trazido pelos iorubás/fons
para quase todos os países do continente americano, dos Estados Unidos
à Argentina. Podemos notar sua presença sobretudo em grandes comu-
nidades afrodescendentes, como no Harlem hispânico de Nova York ou
em Miami, onde a religião dos orixás é chamada de santeria ou lukumi,
e sincretizada com as outras tradições africanas. Na América Central e
Caribe, sobretudo Cuba, Exu é adorado num culto denominado Regla de
Ocha; no Haiti, os fiéis da religião dos voduns o chamam carinhosamente
de Papa Légua. Ele está presente também em vários países da América da
Sul, principalmente nas costas do Peru e da Colômbia e em alguns núcleos
do Uruguai, países que, como o Brasil, receberam grande quantidade de
africanos durante o período colonial.
Dentro da tradição do candomblé, Exu tem poderes especiais e exer-
ce uma espécie de juízo final sobre as questões mundanas. Sua energia tan-
to está na natureza como dentro de cada um dos seres humanos. De forma
alguma ele poderia ser identificado com o espírito de uma pessoa morta,
ainda que fosse um importante espírito ancestral africano. Tem caracterís-
ticas humanas, senso de humor e compaixão, e não depende de ninguém
para viver. Robert Farris Thompson assim o define: Exu é o mestre de ceri-
mônias do “teatro das sanções espirituais” – a encruzilhada2.

Cenário de trocas, mudanças, perdas, ganhos, confusões, reencontros…


A encruzilhada marca um ponto de encontro entre diferentes mundos.
Mundano e brincalhão, Exu assiste de camarote às idas e vindas da vida
humana, rindo-se de nós quando tropeçamos em nossos próprios instin-
tos básicos, não domesticados, ou nos deixamos ludibriar por nossas miu-
dezas diárias e sentimentos mesquinhos3.

Na mitologia, Exu é descrito ora como uma criança com um apetite insaciá-
vel, ora como um mágico capaz de criar problemas, sempre para desmontar
e desmascarar a mesquinhez e o egoísmo humanos. É sobretudo como Le-
gba, entre os fons provenientes do antigo Reino do Daomé, que encontramos
a representação de Exu mais explícita do ponto de vista sexual – como um
48 ZECA LIGIÉRO

2 THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art
and Philosophy. New York: Random House, 1984, p. 20.
3 LIGIÉRO, Zeca e DANDARA. Umbanda: paz, liberdade e cura. Rio de Janeiro:
Pallas, 2017, p. 91.
49 ZECA LIGIÉRO

Fig 14 Exu do candomblé e Exu iorubano. Ilustração: Zeca Ligiéro, 2018.


Fig 15 Estatueta de Exu da umbanda. Fotografia: Zeca Ligiéro.
montículo de terra de onde parte um enorme falo ereto. Muitos estudiosos e
missionários que visitaram os seus assentamentos, nos primórdios da colo-
nização da África, acreditaram que ele fosse o deus da fornicação.

A presença do Exu na umbanda se dá de forma diferente, embora alguns


dos seus atributos, como a concentração do princípio sexual masculino e
sua energia eminentemente telúrica, permaneçam. Só que, na umbanda,
Exu passa a ser um espírito desencarnado, um ser humano que já viveu
algum dia entre nós e que, mesmo desencarnado, continua subjugado aos
sentidos. Para eles sexo, jogo, bebida e fumo são elos ainda indissolúveis
com o plano material. Eles passam, portanto, a governar estes caminhos
entre os dois mundos, ou encruzilhadas, como muitos consideram. (LIGI-
ÉRO e DANDARA, 2017, p. 92)

O dinheiro, como energia física e símbolo do poder transformador na ma-


téria, é também muito característico do seu universo. Fazem parte de suas
atribuições reger todo tipo de jogo e de disputa financeira. Neste sentido, a
sua associação com o Diabo católico é irreversível, pois ele gosta de tudo o
que o famoso chifrudo aprecia, e não é à toa que um dos seus pontos can-
tados revela, sem meias palavras, a força desta conexão:

Exu tem chifre


Exu tem rabo
Exu na encruza
Ele é diabo4.

A figura original do Exu iorubano não tem chifre. Quando é apresentado


com uma espada ou faca saindo do topo de sua cabeça, trata-se do Exu
Odara, aquele que é capaz de trabalhar o milagre da transformação e da
criação. Mas, no Brasil, o Exu iorubá vem de certo forma substituir ou
mesmo somar-se a outras divindades equivalentes, trazidas por africanos
de outras regiões – como os bantos (Congo, Angola, Camarum, Moçam-
bique), que chegaram ao continente americano pelo menos trezentos anos
antes, também trazendo os seus deuses e suas culturas na bagagem virtual.
50 ZECA LIGIÉRO

No Brasil, encontramos ainda resquícios de uma outra entida-


de africana banto de suma importância no ritual das antigas macumbas e

4 Ponto cantado registrado pelo autor durante uma gira para o povo de rua no Templo
de Magia Cigana, Rio de Janeiro, 1992.
quimbandas, hoje assimiladas pelos rituais umbandistas para o povo de rua:
a Pomba-gira, cujo nome seria derivado de mpomba nizilila, que em quicon-
go significa encruzilhada. Ela é uma figura que concentra a energia feminina
ativa e que representa o outro polo da sexualidade de Exu. Elas são também
diversas, com atribuições distintas, e têm suas próprias histórias e elementos
ritualísticos, como danças, adereços, linguajar e comportamentos.
Zé Pelintra representa uma figura singular e transgressora, históri-
ca e ficcional, que pertence a vários universos a um só tempo. Zé Pelintra
se identifica com o mundo do Exu do panteão iorubá, de modo guerrei-
ro e provocador, assim como se encaixa dentro da categoria de “povo de
rua”, onde tem como companheiros os exus, as pombagiras, toda a sorte
de malandros e gente que vive na noite e nos becos das grandes cidades.
Em outras ocasiões especiais, aparece como um líder espiritual, que vem
curar, junto com outros ancestres piedosos, em sessões de pretos velhos e/
ou caboclos.
Zé Pelintra não chega a ser um exu principal da umbanda, posto
ocupado por “Tranca-Rua, Tiririri, Sete-Encruzilhadas e Marabú, enquan-
to que a encruzilhada fêmea é de Maria Padilha, Maria Mulambo, Cigana”.
Os devotos da umbanda acreditam que os exus guardam as encruzilhadas,
as interseções, as porteiras, os umbrais, as portas dos cemitérios (simbo-
licamente, a encruzilhada entre a vida e a morte). É nesses lugares que se
acredita que Zé Pelintra vive com seu seleto grupo de companheiros do
povo da rua. Eles habitam o chamado “rabo da encruza”, ou seja, a esquina
interna do cruzamento, preferencialmente um lugar onde exista um poste.
Este é o cenário ideal do Seu Zé, onde podemos visualizá-lo espreitando,
sempre encostado no poste e pitando o seu fumo.
Culturalmente falando, nosso personagem descende de antigas po-
pulações bantos (Angola, Congo, Moçambique). Mas alguns elementos de
sua atuação, como o apetite por bebida e fumo, a sexualidade exacerbada
e o seu comportamento matreiro também podem ser observados no cará-
ter ambivalente e telúrico do Exu iorubá-fon. Assim, nosso Zé comunga
dos mesmos elementos dessa dupla tradição na qual se destaca a vertente
banto, presente também nos antigos catimbós nordestinos ou nas antigas
macumbas cariocas ou paulistas. São inúmeras as entidades que se apre-
51 ZECA LIGIÉRO

sentam como o legendário Zé Pelintra. Assim, espalhados por este Brasil


afora, na sexta-feira da gira, eles vêm em legiões: são Camisa Preta, Zé Ma-
landro, Terno Branco, Carioquinha, Zé das Mulheres, Gargalhada, Zé do
Morro, Zé Pretinho, entre tantos outros. Dançam, cantam, bebem, acon-
selham os necessitados, jogam cartas como o original e divino malandro.
52 ZECA LIGIÉRO

Fig 16 Zé Pelintra. Ilustração: Zeca Ligiéro, 2018.


Seu grande poder de atuação no mundo físico presta-se indiferente-
mente ao bem e ao mal, ensinando que a natureza possui uma força cega
e bipolar, em eterno movimento. Esta força pode concretizar o desejo de
maldade de alguém, mas não protegerá o malvado quando a vida lhe de-
volver o malefício praticado – e assim Exu ensina a lei do retorno. É isso
que as pessoas não entendem quando dizem que Exu é vingativo. Ele sim-
boliza, também, o caos inicial que precede a criação, a organização das
coisas do mundo ou da vida de uma pessoa. Suas cores são o preto e o ver-
melho, seu dia é a segunda-feira.
A grande ênfase dada a todas as qualidades de Exu pela Grande Rio
poderia sugerir a um leigo que a festa do carnaval sempre foi de Exu, era
como se quase tudo ali fosse consequência da sua onipresença. O mais in-
cauto diria mesmo que a origem do carnaval está no culto a Exu. Entre-
tanto, não é isso que diz a história oficial, nem do carnaval carioca, nem
do universal.
As grandes referências, tanto para o carnaval como para a origem do
teatro, são as celebrações ao deus grego Dioniso, rebatizado pelos romanos
como Baco. Tanto manuais do teatro quanto sites diversos espalhados pela
internet recontam estas relações, ora com dados concretos e referências bi-
bliográficas, ora de forma totalmente fantasiosa. De qualquer forma, tudo
isso ajuda a refrescar nossa memória sobre antigos processos ritualísticos
pagãos onde o corpo e seus prazeres ainda podiam ser vistos como sagra-
dos, evoé; em vez de dar graças a Deus, poderíamos dizer graças a Dioniso
e Baco: “Festa, suor e vinho”, poderia compor Caetano Veloso, caso esti-
vesse na Grécia Antiga.

Você sabia? A festa em homenagem a Baco ou Dioniso são as primeiras


manifestações do carnaval moderno! Dioniso (Διόνυσος ou Dionysos) é o
deus da colheita das uvas, da fabricação do vinho, dos excessos, da loucura
e do teatro. Dioniso foi absorvido pela Roma Antiga com o nome de Baco.
Esse termo é derivado do grego Βάκχος ou Bakkhos, que significa “comer”.
O deus Baco simboliza o fogo que “come ou devora” os sacrifícios durante
os cultos. Diversas festas eram dedicadas ao deus Dioniso ao longo do ano.
A principal delas eram as Grandes Dionisíacas, que ocorriam entre março
53 ZECA LIGIÉRO

e abril, celebrando a chegada da primavera. No início, os festejos eram


uma espécie de transgressão teatral da sociedade da época. O pobre se
vestia de rico, os homens se vestiam de mulheres, as prostitutas fingiam
ser donzelas, etc. A festa se estendia por três dias com consumo de vinho
em grandes quantidades. As relações sexuais abertas eram consideradas
54 ZECA LIGIÉRO

Fig 17 Carro alegórico de Exu, Grande Rio, carnaval de 2022. Fotografia:


Zeca Ligiéro.
normais. Dessa tradição surge, ao longo do tempo, um concurso de peças
cômicas e dramáticas para celebrar Dioniso. Daqui surge o teatro! A Roma
Antiga também absorve a tradição de celebrar Baco com cultos religiosos
regados a muito vinho. Essas festas passam a ser chamadas de bacanais.
Originalmente, as festas eram feitas em secreto somente por mu-
lheres. Com o tempo, os bacanais se tornam públicos e são celebrados com
representações teatrais que servem de cerimônia religiosa. […] As festas
começam a se transformar em orgias noturnas cada vez mais frequentes
(feitas até 5 vezes a mês). Como o rito levava a muitas extravagâncias e
desordens sociais, ele é proibido por volta de 186 a.C.5

Quando se pensa no Rio de Janeiro além da praia e das montanhas sinu-


osas tendo como fundo musical a música “Garota de Ipanema”, do Tom
Jobim e Vinícius de Moraes, se pensa no carnaval carioca. Um desfile de
carnaval elaborado ao longo de quase um século, cujo espaço definitivo, o
Sambódromo, só foi inaugurado 50 anos depois da primeira escola de sam-
ba, o Deixa Falar, sair nas ruas do Rio em 1926. Mais do que a criação de
um estádio exclusivo para o desfile das escolas, foi, sem dúvidas, a trans-
formação midiática do evento televisionado ao vivo para todo o planeta
que o popularizou de uma forma impensada. Hoje, embora grande parte
dos seus performers, músicos e artistas pertença às comunidades afrodes-
cendentes, esta performance não é considerada no Brasil como algo que
pertença à sua inventividade e sua arquitetura de utopias. Embora con-
finado em um espaço próprio, patrocinado pelo governo e pelas grandes
multinacionais, o desfile de escola de samba continua a ser a mais genuí-
na das invenções afro-brasileiras, a quinta-essência das suas performances
procissionais, sua grande utopia transformada em realidade a cada ano
(LIGIÉRO, 2011, p. 173).
A forma de devoção do africano convertido ao catolicismo sempre
chamou a atenção dos estudiosos pela ênfase dada ao elemento festivo: ba-
tuque-dança-canto, onde o transe poderia ocorrer como demonstração
da mais profunda fé. A festa da Igreja do Rosário, registrada no traço de
Rugendas, ou o Funeral de um filho de um rei africano, por Debret, nos
oferecem elementos bastante significativos da persistência da performance
55 ZECA LIGIÉRO

procissional africana, amalgamados com elementos católicos.

5 JAFET NUMISMÁTICA. A festa em homenagem a Baco e Dioniso – o carnaval na


Antiguidade. Disponível em: https://jafetnumismatica.com.br/festa-em-homenagem-
baco-carnaval/. Acesso em 4 ago. 2022.
Dança, percussão e, provavelmente, também o canto coloriam a co-
roação de um rei e uma rainha Congo na Festa do Rosário, bem como nos
funerais de nobres africanos. Nas coroações, sem dúvida, a organização
em forma de desfile, a indumentária do casal real, paramentada como se
pertencessem à nobreza europeia, além da presença de acrobatas, capoei-
ristas e porta-bandeiras, eram um prenúncio da forma daquilo que viria a
ser, um século depois, as escolas de samba, fundadas pelas comunidades
negras do Rio de Janeiro, e também a própria Congada, que manteve esse
formato. Tanto nos funerais como nas coroações, percebe-se claramente,
em todas as fases da procissão, a participação das irmandades e confrarias
de negros e das igrejas por eles mantidas no Rio de Janeiro: a Velha Sé,
Nossa Senhora da Lampadosa, Nossa Senhora do Parto e São Domingo
(LIGIÉRO, 2011, pp. 176-177).
As danças africanas que aportaram no Brasil são incontáveis em
seus estilos, variando conforme os grupos étnicos, ambientes e trocas mú-
tuas através da história das migrações. Em todos os casos, a dança ocorre
dentro de um contexto celebratório-ritualístico com grande capacidade de
interatividade e participação do público presente, quase sempre gente do
mesmo grupo ou de convidados e simpatizantes.
No carnaval de 2022, uma grande quantidade de escolas de samba
adotou o universo do candomblé e da umbanda. Isso chamou a atenção
porque, embora esta relação sempre tenha estado presente, nesta vez se
apresentou de uma maneira explícita. E isso nos encantou, porque a gente
tem, então, uma mistura incandescente de tradições negras no Brasil. Exu
é originalmente orixá Nagô, mas é o Elegbara dos voduns, e os pelintras e
pombagiras dos Congo-Angolas. Portanto, aqui o universo religioso plural
e multicultural afro-atlântico cai no samba, e celebra a liberdade de ser e
estar apesar de todos os preconceitos da elite branca e da classe média repri-
mida, que não se controlam e tomam conta da avenida como se tudo aquilo
pertencesse a elas também. A passarela do samba tem a hora mais infinita
para a escola, cada corpo se expressa com toda a sua beleza, mostrando que,
mesmo benzido em pia batismal judaico-cristã-mulçumana ele pode ser
novamente consagrado a outros deuses, não importa se Dioniso ou Baco,
Exu ou Pombagira, na avenida o samba pode ser uma forma definitiva de
56 ZECA LIGIÉRO

êxtase, de consagração e de reiteração de comportamentos africanos em


dias de glória aos senhores e senhoras da ancestralidade negra.
Assinalo, portanto, uma estrutura do desfile da Escola de Samba
Unidos da Grande Rio como um tipo de performance procissional (em
forma de procissão). Um “outro teatro” que se caracteriza principalmente
57 ZECA LIGIÉRO

Fig 18 Jean-Baptiste Debret. Enterro do filho de um rei negro, Rio de Janeiro,


1819. Fonte: http://www.slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/1847.
58 ZECA LIGIÉRO

Fig 19 Cartola, Rei da Mangueira, desfila pela última vez em 1978. Ilustração:
Zeca Ligiéro.
59 ZECA LIGIÉRO

Fig 20 Pelintras e pombagiras saúdam a bateria da Grande Rio no desfile


de carnaval na Sapucaí, Rio de Janeiro, 2022. Fotografia: Zeca Ligiéro.
por dois aspectos complementares: 1) o da construção de uma narrativa
própria (a peça ou o texto, a história a ser contada – obviamente dentro das
tradições ágrafas ele se transmite oralmente); e 2) a escolha de linguagens
cênicas específicas e o constante exercício das mesmas. Se no primeiro ele
afirma identidades e manipula simbolismos provenientes de antigas tra-
dições por meio da encenação de mitos e histórias cosmogônicas, no se-
gundo ele revela um conhecimento de técnicas de representação, de canto,
dança, complementado por escolhas amadurecidas de utilização de mate-
riais na criação de cenários, figurinos, adereços, e até mesmo maquiagem
dentro de tradições orais transmitidas entre sacerdotes, xamãs, religiosos
e simpatizantes, e tudo isso foi assimilado pelos carnavalescos e foliões
da escola, que reunia tanto parte da tradição dionisíaca do teatro ociden-
tal quanto o Outro Teatro6, característico das performances africanas e
afro-brasileiras.

6 Chamamos “Outro Teatro” a todo tipo de encenação que não siga a tradição ocidental
de teatro ortodoxo. Com variadas características, pode nascer dentro do ritual,
denominado então “Teatro das Origens”; pode ser oriundo das grandes tradições teatrais
não eurocêntricas – asiáticas, africanas e/ou ameríndias – e ser encenado como processo
cultural de preservação da memória (mitos, lendas, contos), não mais ritualizado, mas
como processo de puro entretenimento popular: “Teatro da Tradição”. Já a “Performance
60 ZECA LIGIÉRO

Solo” traz o subjetivismo de cada indivíduo. E, como última modalidade, igualmente


conhecida, a “Arte Pública”, derivada das manifestações e encenações ao ar livre em
espaços públicos, vai desde o teatro de rua aos grandes protestos políticos. Logo, o
Outro Teatro é algo que está ao nosso lado, mas que não suspeitamos que é teatro (Outro
Teatro: tradição, performance e arte pública, de Zeca Ligiéro, no prelo, a ser lançado pela
Editora Garamond, RJ, no segundo semestre de 2023).
REFERÊNCIAS VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o
culto aos orixás e voduns. Tradução:
AUGRAS, Monique. O duplo e a Carlos Eugênio Marcondes de Moura.
metamorfose: a identidade mítica São Paulo: EDUSP, 1999.
em comunidades Nagôs. Petrópolis:
Vozes, 1983.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas
no Brasil. São Paulo: EDUSP/Livraria
Pioneira, 1958 (1973).
COSSARD, Gisèle Binon. Contributions
a l’étude des candomblés au Brésil:
le candomblé Angola. Faculté des
lettres et sciences humaines. Paris:
Sorbonne, 1970.
JAFET NUMISMÁTICA. A festa em
homenagem a Baco e Dioniso: o
carnaval na Antiguidade. Disponível
em: https://jafetnumismatica.com.br/
festa-em-homenagem-baco-carnaval/.
Acesso em 04 ago. 2022.
LIGIÉRO, Zeca. Teatro das Origens: estudos
das performances afro-ameríndias. Rio
de Janeiro: Garamond, 2019.
LIGIÉRO, Zeca (org). Performance e
antropologia de Richard Schechner.
Rio de Janeiro: Mauad, 2012.
LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo
das performances brasileiras. Rio de
Janeiro: Garamond, 2011.
LIGIÉRO, Zeca. Iniciação ao candomblé.
Rio de Janeiro: Nova Era/Record, 1993.
LIGIÉRO, Zeca; THOMPSON, R. Farris;
ROSEN, Norma. Divine Inspiration:
From Benin to Bahia. Albuquerque:
University of New Mexico Press, 1993.
O GLOBO, G1. Grande Rio: veja o enredo
e cante o samba. Disponível
em: https://g1.globo.com/rj/
rio-de-janeiro/carnaval/2022/
61 ZECA LIGIÉRO

noticia/2022/04/05/grande-rio-veja-
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Acesso em 10 ago. 2022.
VERGER, Pierre. Deuses iorubás no
Novo Mundo e na África. Salvador:
Corrupio, 1978 (1981).
Entre Dja Guata Porã e a Aldeia Maraká’nà: trânsito
e agência das imagens
IVAIR REINALDIM
Docente na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro
– EBA/UFRJ

O Museu não mais mostrará à sociedade moderna-capitalista o que um


dia foi o índio. Agora, o próprio indígena mostrará o que ele é a todos os
olhos de boa vontade. Aldeia Rexiste! (COIREM, 2018)

Em outubro de 2019, uma postagem da artista Livia Flores na rede social


Instagram registrava uma das mesas da Conferência de Línguas Indígenas
Rexistência, que ocorreu na Aldeia Maraká’nà, no Rio de Janeiro (Figura
1). É possível identificar nesta imagem postada uma fotografia impressa, no
chão, apoiada em uma pequena mesa, na qual há a presença de um grupo
de indígenas em Brasília, tendo o Congresso Nacional ao fundo. Essa ima-
gem inserida em outra imagem articula diferentes temporalidades, a partir
de contextos e grupos específicos, reforçando uma rede de questões interli-
gadas. Produzida pela Mídia NINJA em 2013, no contexto do Acampamento
Terra Livre, ela retorna agora sob a égide da luta dos povos indígenas no
Brasil pela valorização de suas línguas nativas, entre tantas outras pau-
tas políticas e sociais. Contudo, há um aspecto singular a ser considerado
quando olhamos para essa fotografia impressa, colada sobre uma prancha:
é possível reconhecer que anteriormente ela esteve presente em Dja Guata
Porã – Rio de Janeiro Indígena, mostra que ocorreu no Museu de Arte do
Rio – MAR. Mas como ela foi parar na Aldeia Maraká’nà? E que novas con-
figurações surgiram a partir desse deslocamento?1
A mostra Dja Guata Porã – Rio de Janeiro Indígena ocorreu entre
16 de maio de 2017 e 25 de março de 2018 e trouxe, desde sua concepção,
uma consubstancial mudança no modo como o Museu de Arte do Rio
planejava suas exposições, pelo menos em relação a essa mostra específica.
A partir de uma curadoria colaborativa – ou de uma proposta nomeada
63 IVAIR REINALDIM

1 Esta reflexão foi inicialmente elaborada como conferência no 6º Colóquio


Internacional RETiiNA, organizado pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília
(UnB), entre 21 e 23 de outubro de 2021, e que tinha como tema “Imagem Dentro
/ Linguagem Fora”. A conferência se deu a partir do convite de Emerson Dionísio
Gomes de Oliveira e Vera Pugliese, a quem agradeço.
64 IVAIR REINALDIM

Fig 1 Print da postagem no Instagram referente à Conferência de Línguas


Indígenas Rexistência, Aldeia Maraká’nà, Rio de Janeiro, em 12 de outubro de
2019. Autoria: Livia Flores.
como “fazer juntos” –, da qual fizeram parte Clarissa Diniz, José Ribamar
Beça, Pablo Lafuente e Sandra Benites, indígena Guarani Nhandeva, gru-
pos formados por diferentes etnias tiveram participação fundamental nas
decisões de como queriam ser representados na exibição, não só quanto
a sua produção cultural, mas também em relação a suas pautas sociais e
políticas. Durante o planejamento da mostra, diversos encontros ocorre-
ram no museu e em algumas aldeias, principalmente em Paraty, no sul do
estado, e na capital, Rio de Janeiro.
A exposição contou com quatro núcleos: os Pataxó, os Puri, os Gua-
rani e Indígenas em Contexto Urbano, este último marcado pela multipli-
cidade étnica e pelo reconhecimento da presença de povos indígenas no
território da cidade do Rio de Janeiro, importante ação na desmistificação
de um imaginário romantizado por não indígenas de que indígenas se-
riam apenas aquelas existências vinculadas literalmente à vida na floresta.
Se muitas vezes foram e são tratados como “aculturados” simplesmente
por não se encontrarem em suas aldeias de origem, ao contrário, nesse
momento, muitos desses(as) indígenas representavam processos de iden-
tificação e de retomada do vínculo com suas ancestralidades. Com isso,
Dja Guata Porã adotou uma perspectiva contemporânea para abordar a
presença indígena no Rio de Janeiro e no Brasil.
Neste último núcleo, ao qual iremos aqui nos deter, por já termos
escrito outro artigo sobre a mostra como um todo2, dois diferentes gru-
pos tiveram participação ativa, ambos relacionados à Aldeia Maracanã:
a Aldeia Vertical – que formou a Associação Indígena Aldeia Maracanã
(AIAM) – e a Aldeia Resiste (ou Movimento Aldeia Maraká’nà Rexiste!).
Inicialmente, ambos os grupos faziam parte da primeira ocupação do
prédio da antiga sede do Museu do Índio; contudo, em 2013, quando o
governo do estado do Rio de Janeiro interveio sobre a ocupação e orques-
trou a retirada do coletivo, ocorreu uma cisão, pelo reconhecimento de
suas divergências políticas3. Desse modo, reunidos novamente em um

2 REINALDIM, Ivair. Produção cultural indígena e história da arte no Brasil: exposições e


65 IVAIR REINALDIM

seus enunciados (parte II – Dja Guata Porã e Exposição Antropológica Brasileira). In:
Arte em Tempos Sombrios – XXXXI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte,
2021, online. Anais do XXXXI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, 2022:
CBHA, 2021, pp. 731-751.
3 “Naquele momento de forte impacto emocional, com a remoção iminente e clima de
ameaças, se consolidou uma cisão interna no movimento da Aldeia. Uma parte dos
indígenas estava mais disposta a aceitar as propostas do estado, que se comprometeu a
mesmo núcleo da exposição Dja Guata Porã, o que tinham em comum
era justamente esse local de arregimentação que, por meio da presença
de grande número de registros fotográficos, era apresentado ao público
como uma aldeia urbana (Figura 2).
Tais imagens tiveram impacto importante na mostra, pois permiti-
ram que visitantes do museu, sobretudo os não indígenas, tivessem conta-
to visual com a presença/existência desse grupo no espaço urbano – tanto
pela ocupação em si quanto pela ressignificação do prédio e de seu entorno
imediato enquanto aldeia – e, assim, conhecessem algumas de suas ativi-
dades culturais e ações de mobilização e resistência política. A mediação
por meio desse repertório visual, cobrindo boa parte de uma das paredes
pertencentes ao núcleo, produzia outra possibilidade de contato, para além
das imagens da Aldeia transmitidas pelos conglomerados de mídia, e ob-
jetivava a desconstrução de imaginários cristalizados sobre quem são e
em que condições vivem os grupos indígenas contemporâneos no estado.
Partindo-se do pressuposto de que o público do museu não é efetivamente
diverso – mesmo que em Dja Guata Porã indígenas estivessem presentes
em todas as etapas, inclusive na visitação –, é provável que essas imagens/
documentos estivessem endereçadas a não indígenas, exercendo função
pedagógica, ou seja, mais que pelo aspecto estético, essas imagens eram
acionadas pelos seus efeitos – ou agência – e pelo grau de eficácia no cum-
primento de seus propósitos.
As imagens que registravam o cotidiano da Aldeia Maracanã cons-
tituíam parte da estratégia adotada em Dja Guata Porã. Ao invés de em-
préstimos de peças pertencentes a outros museus, a curadoria optou pelo

garantir auxílio de moradia para os habitantes da Aldeia (o que de fato se concretizou –


diversas pessoas que aceitaram a proposta foram morar em apartamentos do programa
federal ‘Minha casa, Minha vida’), bem como [a] planejar a construção de um futuro
centro de referência da cultura indígena. Esse grupo continua hoje ativo em outras
localidades da cidade – no Parque Lage, por exemplo – e segue utilizando o nome
da Associação Indígena Aldeia Maracanã (AIAM) para suas atividades culturais. Tem
sido o principal protagonista na relação com o estado, em busca que o estado cumpra
o acordo da criação do centro de referência. Outro grupo, que logo em seguida
66 IVAIR REINALDIM

constituiu o movimento Aldeia Rexiste, defendia que não se deveria aceitar qualquer
negociação com o estado naquele momento, que já havia demonstrado sua orientação
ao benefício das corporações. Para este grupo, não basta um centro de referência
da cultura indígena gerido pelo estado, mas, muito pelo contrário, um espaço com
gestão indígena que pode até ser apoiado, mas não controlado pelo governo do estado.
Até hoje a relação entre as partes polarizadas no conflito de 2013 não é amigável”
(SARGENTELLI ICÓ, 2019, p. 12).
67 IVAIR REINALDIM

Fig 2 Registro fotográfico do núcleo Indígenas em Contexto Urbano,


exposição Dja Guata Porã – Rio de Janeiro Indígena, Museu de Arte do Rio,
Rio de Janeiro, 2018 (publicada originalmente em MANNARINO, 2018). Ao fundo,
parte da parede com imagens da Aldeia Maracanã. Autoria: Ana Mannarino.
uso de grande número de documentos textuais e visuais, apresentados
nesse formato de pranchas fixadas diretamente sobre a parede, presentes
em toda a exposição. Mais que fotografias emolduradas, que poderiam ser
entendidas como objetos de arte, essas imagens possuíam uma configu-
ração uniforme e documentavam passagens importantes da história e da
política dos povos indígenas no Rio de Janeiro e no Brasil. Isso ocorria,
por exemplo, na extensão da serpente-canoa, pintada por Denilson Ba-
niwa ao longo das paredes das duas salas da mostra, abrangendo todo o
perímetro expositivo, e que apresentava uma linha do tempo contendo
narrativas e reproduções diversas. Desse modo, seja na parede dedicada
especificamente à Aldeia Maracanã, seja na dimensão cronológica da pin-
tura de Baniwa, as imagens constituíam um imaginário, entendido aqui
como “coleção de imagens”, atuando não só como representações, mas
como índices de memória, e assim acionavam diferentes temporalidades,
cruzadas e emaranhadas.
Essas imagens de reprodução, impressas e manuseáveis, eram peças
cuja função estava atrelada ao escopo conceitual da curadoria, desempe-
nhando, para além da já mencionada função pedagógica, aquilo que o fi-
lósofo Walter Benjamin denominou valor de exposição (BENJAMIN, 2012).
E, não sendo “obras” – pois isso acarretaria outro tipo de negociação sobre
seus direitos autorais –, elas não poderiam ser incorporadas ao acervo do
museu ao término da mostra. Ou seja, finalizado o motivo de sua existên-
cia naquela configuração, perderiam sua agência primeira e deveriam ser
destruídas – como o que comumente acontece em vários contratos de uso
de imagem. No entanto, não foi isso o que efetivamente ocorreu. Como
conta Lucas Sargentelli Icó (2019), ao término de Dja Guata Porã, Mar-
celo Tembé e José Urutau Guajajara, integrantes do Movimento Aldeia
Maraká’nà Rexiste!, foram ao museu para recolher esses impressos e ou-
tros materiais. A partir desse momento, doadas à Aldeia Maraká’nà, essas
peças ganhariam sobrevida.
De fato, após esse deslocamento, essas fotografias impressas, por se-
rem resistentes e manipuláveis, foram expostas em diferentes momentos e
em situações outras que aquela das paredes brancas supostamente neutras
68 IVAIR REINALDIM

do museu. Uma vez que a Aldeia Maraká’nà inicialmente se configurou


como um “núcleo de difusão e produção cultural, que também se tornou
um centro de referência para todos os indígenas que passavam pelo Rio
de Janeiro”, com a intenção de “reverberar as lutas dos povos indígenas de
todo o país” (SANTOS, 2016, p. 8), um propósito diferente daquele tradicio-
nalmente caracterizado pelos museus precisa ser considerado.
Aldeia Maraká’nà: não um museu,
mas uma universidade indígena

Como já mencionado, a Aldeia Maraká’nà constitui um espaço no qual


se congregam indígenas de diferentes etnias, assim como não indígenas,
parceiros em suas ações e lutas. Diferentemente de um museu convencio-
nal, cujas representações em geral remetem ao passado desses grupos, a
Aldeia aciona múltiplas culturas vivas, a partir da autonomia e autogestão
de seu coletivo. Nesse sentido, esses indígenas tomam suas próprias de-
cisões e constituem mais que uma aldeia específica na cidade do Rio de
Janeiro: são uma comunidade que fomenta o encontro e a articulação das
pautas políticas de indígenas em todo o país, que reforça o manejo agro-
florestal, por meio de práticas socioambientais, e que promove vivências
educativas, dentro e fora de seu território, a partir de saberes tradicionais
e ações culturais.
Se o prédio abriga a memória das questões indígenas no país4, sua
condição de abandono por quase três décadas levou o grupo a ocupá-lo,
em 2006, após a realização do Primeiro Encontro Tamoio dos Povos Ori-
ginários, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O Centro de
Etnoconhecimento Sociocultural e Ambiental Cauieré (CESAC), localizado
no bairro de Tomás Coelho, no Rio de Janeiro, também foi importante na
formação desse coletivo que veio inicialmente a formar a Aldeia Maracanã.
Entre os diversos projetos que compreendiam as pautas de autogestão, pla-
nejavam conceber uma universidade-aldeia, voltada para atender a indíge-
nas de todo o Brasil, que possibilitasse o contato direto com membros de
diversas etnias e combatesse a ideia de um museu que representasse suas

4 “O terreno que abrigou [abriga] a Aldeia Maracanã está fortemente ligado às questões
indígenas no Brasil, desde que foi doado para o Império do Brasil em 1865, pelo
Príncipe Ludwig Auguste de Saxe- Coburgo-Gotha (1845-1907), o ‘Duque de Saxe’. Este
era naturalista, e sua intenção era que ali se abrigasse um órgão de pesquisas sobre
as culturas nativas. Existem dúvidas sobre o que teria acontecido ao estatuto jurídico
do local na passagem do Império para a República, mas é provável que tenha sido
69 IVAIR REINALDIM

incorporado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio em 1909, segundo o


autor João Domingues (2013). O mesmo pesquisador acredita que o prédio principal,
que foi tombado em 2012, tenha sido inaugurado em 1910, passando a abrigar a sede
do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN,
a partir de 1918 apenas SPI), de Marechal Cândido Rondon, até 1962. De 1953 até 1977,
ali também foi o local de funcionamento do Museu do Índio, idealizado por Darcy
Ribeiro, depois transferido para o bairro de Botafogo” (SANTOS, 2016, pp. 17-18).
existências como pertencentes a um passado idealizado e distante5. Duas
falas de membros desse coletivo, em diferentes conjunturas, contribuem
para esse entendimento de que uma universidade-aldeia seria a contrapo-
sição ao antigo museu.
Em audiência pública convocada pela Comissão de Educação e Cul-
tura para discutir o plano de gestão da Secretaria Municipal de Cultura na
Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, ocorrida em 26 de março de 2013,
dias após a remoção do grupo por parte do estado, Daniel Tutushamum,
indígena da etnia Puri, integrante da resistência Aldeia Maraká’nà, coloca
em perspectiva os termos arte, cultura, museu e território:

Cultura, pelo que pude estudar, significa tanto as manifestações artís-


ticas, os produtos culturais que a gente toma contato, como também a
cultura pode significar um modo de vida. No caso da cultura indígena,
significa as duas coisas. Então, tudo que estou trazendo aqui – colares,
cocar, pintura corporal –, tudo isso pode ser tomado como arte, ou pode
ser tido como expressão de um modo de vida. A arte na cultura indígena
não está separada da vida. Então, nesse sentido, quando se fala bem da
arte indígena, mas não se permite ao indígena ter a terra que vai possi-
bilitar a ele o modo de vida, então isso é hipocrisia. Na verdade, não se
está defendendo arte indígena. É de se perguntar por que nós temos um
Museu do Índio em Botafogo, onde tem vídeos sobre os índios, fotos de
índios, produtos culturais sobre os índios – que eu acho muito bom que
existam –, mas não se tem o índio vivo. O índio vivo, nós passamos a ter
na cidade do Rio de Janeiro em 2006, a partir do momento em que indí-
genas de várias etnias entraram no prédio do antigo Museu do Índio. (…)
Na Aldeia Maracanã estava em curso um processo inédito na história do
Brasil. Está em curso; não está em curso lá porque nós fomos expulsos de
lá. Mas está em curso ainda neste coletivo, na Aldeia, nos seus membros
que ainda se encontram, que ainda pensam o que fazer para retomar o
nosso território sagrado. Então o que nós temos é a transformação dessas
70 IVAIR REINALDIM

5 “Defendemos, neste sentido, os princípios de auto-governo e constituição, em regime


de democracia direta, livre-colaborativa, de uma Universidade-Aldeia Indígena, neste
espaço ancestral, orientado por seus protagonistas; e convidamos todas as lutas para
este desafio, de construção participativa de um Projeto Político-pedagógico, de um
Plano Arquitetônico e de Reforma, Modo de produção e Gestão público-comunitária
deste espaço, exercendo o protagonismo dos usos, costumes e tradições indígenas”
(Manifesto do Movimento Universidade-Aldeia Indígena Marakà Ànànà!, 2013).
culturas indígenas, das várias etnias, não pela imposição de uma outra
cultura sobre todas elas, mas pelo encontro das várias etnias, umas com
as outras (TUTUSHAMUM PURI, 2013).

A fala pública de Daniel Tutushamum Puri encontra ressonância alguns


anos depois no depoimento de José Urutau Guajajara, uma das lideranças
da Aldeia Maraká’nà, dado à artista-parceira Regina de Paula:

Por volta do ano 2000 nós procurávamos um espaço que tratasse de políti-
cas públicas para a questão indígena (…). O Museu do Índio só queria saber
do índio xinguano, do índio ideal, aquele índio que contaram nos livros. E
nós éramos indígenas nesse contexto urbano, estudando, discutindo políti-
ca pública, exigindo direitos. E os indígenas do Museu do Índio, quando iam,
quando não era só de foto, retrato e filme, eram o indígena tutelado que não
cobrava nada disso, não tinha esse tipo de cobrança. Nós não, nós começa-
mos a cobrar isso (…), e aí várias pessoas foram falando: olha, tem o antigo
Museu do Índio que está abandonado lá no Maracanã. Foi aí que despertou
a nossa vinda para cá (URUTAU GUAJAJARA apud PAULA, 2019, p. 212).

Se, como apontam Tutushamum Puri e Urutau Guajajara, retomar o an-


tigo espaço do Museu do Índio era não retomar o conceito tradicional de
museu, ao mesmo tempo, optar por uma universidade-aldeia, centrada no
encontro de diversas etnias, seria uma alternativa ao modelo convencional
de educação brasileira, propondo não a adesão de indígenas a esse modelo,
como comumente acontece, mas uma reorientação, a partir de saberes e
práticas das populações nativas das Américas. Depois da remoção do co-
letivo, ocorrida em 2013, e da cisão em dois grupos diferentes, aquele que
formou o movimento Aldeia Maraká’nà Rexiste! retornou ao prédio em
2016 e colocou em prática as bases da Aldeia como universidade (Figura
3). Conhecida atualmente como Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia
Maraká’nà, ao mesmo tempo em que lá se desenvolvem práticas e ações de
educação popular, levando-se em conta princípios de convivência socioco-
munitária, há a luta para garantir sua permanência no território, a partir
71 IVAIR REINALDIM

do reconhecimento jurídico da Aldeia Maraká’nà como “terra indígena”.


A realização do Congresso Intercultural dos Povos Indígenas e Tradi-
cionais do Maraká’nà (COIREM)6 é bastante significativa no direcionamento

6 A primeira edição ocorreu de 4 a 9 de junho de 2014, na Universidade Federal Rural


do Rio de Janeiro (UFRRJ), em Seropédica, sendo finalizada com audiência pública
72 IVAIR REINALDIM

Fig 3 Registro fotográfico da fachada da Aldeia Maraká’nà, antiga sede do Museu


do Índio, com a identificação “Universidade Indígena”. Autoria: George Magaraia.
dos esforços para que haja o reconhecimento da aldeia-universidade, obje-
tivando “a constituição de um espaço de educação popular, de resistência
intercultural, de bem público-comum construído autonomamente pelos
e para os povos indígenas e originários”, para combater a “invisibilidade
destes povos, a negação de sua historicidade, o seu genocídio e a crimina-
lização e execução de suas lideranças” (COIREM, 2018). Fica evidente, desse
modo, como esse evento exerce papel fundamental na constituição das ba-
ses da Universidade Indígena. O COIREM

tem por objetivo principal estabelecer as diretrizes políticas, sociológicas,


filosóficas, pedagógicas e artístico-culturais da implementação da Univer-
sidade Indígena e reconhecer e desenvolver propostas de fortalecimento
da resistência de base comunitária e de luta pela terra pelos povos indí-
genas. Também consideramos urgente o registro da criminalização das
lideranças dos povos indígenas e da invisibilidade dos povos e do racismo
historicamente sofrido. Trata-se da deflagração do processo de constitui-
ção participativa de uma universidade-aldeia indígena, como espaço de
formação superior, na vivência comunitária de princípios, usos e costumes
tradicionais indígenas e intercultural, aliada ao reconhecimento e busca
por reparação pelo Genocídio/Racismo Indígena historicamente pratica-
do estruturalmente pelas práticas colonialistas do Estado (COIREM, 2018).

Além das edições do COIREM, o grupo também organizou a Conferência


de Línguas Indígenas Rexistência Aldeia Maraká’nà, com apoio do CESAC
e do Laboratório de Estudos de Cultura e Línguas Indígenas (LECLIN) da
UERJ, em 12 e 27 de outubro de 2019, que contou com a participação de mais
de doze povos representados com suas línguas maternas. Foram em alguns
desses eventos que algumas das imagens que antes fizeram parte de Dja
Guata Porã foram reexibidas.

O trânsito de imagens: novas agências


73 IVAIR REINALDIM

A chegada do material proveniente de Dja Guata Porã à Aldeia Maraká’nà


coincidiu com alguns eventos ocorridos na Aldeia em 2018, em exibições

realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A segunda edição


ocorreu em julho de 2018, da qual não conseguimos informações, e a terceira de 15 a 19
de novembro de 2018.
de breve duração. A primeira das mostras ocorreu durante o Abril Indíge-
na, entre 16 e 22 de abril, e a segunda durante o 3º Congresso Intercultural
de Resistência dos Povos Indígenas e Tradicionais do Maraká’nà – COIREM,
de 15 a 19 de novembro7. Essas mostras contaram com a participação de al-
guns membros da Aldeia nas etapas de seleção e distribuição das imagens
no espaço, e com a colaboração do artista-parceiro Lucas Sargentelli Icó,
que descreve um relato pormenorizado desse contexto em sua disserta-
ção de mestrado e no artigo intitulado “Em nossas artérias, nossas raízes:
aliançar com a Aldeia Maraka’nà”, inédito até o momento. Um ponto im-
portante, apontado por Sargentelli Icó, é que a organização de exposições
não era uma atividade distante de alguns membros da Aldeia, embora fos-
se uma experiência não relacionada aos modelos convencionais de exibi-
ção promovidos pelos museus:

É por outro caminho que podemos localizar o tipo de atuação à qual a


Aldeia Maraká’nà se insere, e que faz com que haja alguma intimidade
com o uso do dispositivo expográfico. Apesar de a Aldeia e pessoas do
movimento também terem se aproximado de espaços da arte contempo-
rânea em anos recentes, alguns Indígenas já tinham alguma experiência
na organização de exposições. Essas exposições se deram em contextos
de agitação política e ativismo, no espírito da produção cultural dos mu-
tirões (motyrõs, de origem tupi) comunitários, em grande maioria ligados
a espaços auto-gestionados em favelas e nas periferias da cidade do Rio de
Janeiro. Assim, não é por acaso que surgiu a ideia de fazer uma exposição
com o material que seria descartado da exposição no MAR. Desde o início
da concepção da exposição se pensou em fazer um uso estratégico da pro-
dução cultural. Seria um meio de autoafirmação do movimento, buscando
mais aliados e sensibilizando a comunidade dos bairros do seu entorno
para a causa da Aldeia (SARGENTELLI ICÓ, 2019, p. 76).

O uso da palavra tupi motyrõ para demarcar um tipo de experiência mais


próxima dos mutirões comunitários demonstra que o “fazer juntos” mo-
bilizado na Aldeia Maraká’nà, do qual também participavam indígenas e
74 IVAIR REINALDIM

7 “Também ocorreu uma série de outras ações com esse material. Algumas semanas
depois, Marcelo Reis organizou a mostra ‘Aldeias no Asfalto’, com parte do material,
no Centro Cultural da UERJ. E uma nova versão da exposição foi realizada em evento
organizado por pessoas da Aldeia no Centro Federal de Educação Tecnológica (RJ)”
(SARGENTELLI ICÓ, 2019, p. 73).
não indígenas, acarreta outra compreensão para tal prática, uma vez que
esse contexto intercultural aciona espaços localizados nas periferias, como
o CESAC, importante na formação da Aldeia, e não a posição central de vi-
sibilidade no circuito de arte da capital carioca, na qual o Museu de Arte
do Rio se insere. No que se refere às imagens provenientes de Dja Guata
Porã, podemos considerar que se antes estavam expostas sobre as paredes
brancas do museu, agora elas reapareciam como elementos acrescidos à
configuração já existente do prédio da Aldeia Maraká’nà, com suas pare-
des desgastadas pelo tempo, mas também repletas de grafismos, inscrições,
versos e palavras de ordem.
Assim, fotografias e textos, devido a seu caráter objetual adquirido
por meio da colagem sobre pranchas, puderam ser inseridos em outro con-
texto – transitaram de um lugar a outro –, passando a dialogar com essas
marcas já existentes no espaço físico da Aldeia e a acionar uma rede de me-
mórias para além daquilo a que se referem – os fatos e situações específicas
que representam – e das conexões propostas na montagem anterior de Dja
Guata Porã. Quando representavam a Aldeia Maraká’nà, propriamente
dita, passaram a enfatizar a memória recente daquele local como um es-
paço vivo, orgânico e relacionado às lutas dos povos indígenas, no passado,
no presente e no futuro. Se em Dja Guata Porã a agência dessas imagens
que representavam a Aldeia, de certa forma, já fazia isso, mas apenas reme-
tendo seus observadores àquele espaço, ausente na exibição, agora, no con-
texto da própria Aldeia Maraká’nà, havia uma amplificação dessa agência,
produzindo outro tipo de efeito sobre sua audiência. Se antes eram meros
documentos, passaram agora a assumir outras funções, devido ao novo
valor de uso adquirido.
Dito de outro modo, muitas dessas imagens que fizeram parte de
Dja Guata Porã – originalmente fotografias digitais produzidas em con-
textos diversos – foram reproduzidas e apareceram juntas, ao mesmo
tempo, no museu. Porém, agora, por estarem materializadas em um su-
porte, tornando-se objetos únicos, puderam ser introduzidas em uma
cadeia de deslocamentos e novos usos. Tanto no Museu quanto na Aldeia,
possuem agência; mas não necessariamente agem do mesmo modo, pois
75 IVAIR REINALDIM

são índices que exercem seu efeito sobre múltiplos públicos aos quais se
destinam e em contextos ambientais que podem direcionar ou potencia-
lizar essa agência. Nesse sentido, como afirma o antropólogo Alfred Gell,
a agência pode ser atribuída a pessoas – agentes primários – e a coisas –
agentes secundários – que
(…) são vistas como iniciadoras de sequências causais de um determinado
tipo, ou seja, de eventos causados por atos da mente, da vontade ou da
intenção, e não de uma mera concatenação de eventos físicos. Um agente
é aquele que “faz com que os eventos aconteçam” em torno de si. Como
resultado desse exercício de agência, certos eventos acontecem (não ne-
cessariamente os eventos específicos que foram “pretendidos” pelo agen-
te). Enquanto as cadeias baseadas em relações físico-materiais de causa e
efeito consistem em “acontecimentos” que podem ser explicados pelas leis
da física que governam o universo como um todo, os agentes dão início a
“ações” que são “causadas” por eles próprios, por suas intenções, e não pe-
las leis da física do cosmos. Um agente é a fonte, a origem dos eventos cau-
sais, independentemente do estado do universo físico (GELL, 2018, p. 45).

Para Gell, ao considerarmos a ação como parâmetro, estamos efetivamen-


te no âmbito das relações sociais. Objetos só podem ser índices de agência
em contextos sociais específicos, pois não são autossuficientes, mas sim
agentes secundários, que atuam associados a seres humanos, agentes pri-
mários, sendo “agência” um conceito relacional e transacional. Ou seja:
para um agente, existe um paciente, alguém ou algo que sofre seus efeitos,
e vice-versa. No caso dos objetos, o índice – sua configuração material – “é
apenas a ‘perturbação’ no meio causal que revela e potencializa a agên-
cia exercida e o domínio do paciente sentidos em cada um dos seus lados”
(GELL, 2018, p. 74).
Voltemos então à imagem que ressurge na postagem da rede social Ins-
tagram. Ela primeiro aparece na Aldeia Maraká’nà, na configuração de uma
mostra. Por meio de um registro fotográfico (Figura 4) podemos presumir
como ela aciona sua agência a partir da parede em que se localiza e das de-
mais peças presentes no conjunto. Originalmente, ela se refere a uma mobi-
lização ocorrida em 2013, no contexto do Acampamento Terra Livre (ATL),
como parte da agenda da Semana Nacional de Mobilização Indígena, quan-
do cerca de 120 etnias ocuparam a Esplanada dos Ministérios, em Brasília8.
76 IVAIR REINALDIM

8 O Acampamento Terra Livre (ATL) é um evento de periodicidade anual, que ocorre


desde 2004, a partir da mobilização dos povos indígenas em torno de seus direitos
constitucionais. “Os povos indígenas reunidos no ATL 2013 fizeram importante análise
sobre o cenário de ameaças aos direitos e territórios indígenas e reconheceram
os objetivos do ataque e ofensiva: Inviabilizar e impedir o reconhecimento e a
demarcação das terras indígenas que continuam usurpadas, na posse de não índios;
Reabrir e rever procedimentos de demarcação de terras indígenas já finalizados e
77 IVAIR REINALDIM

Fig 4 Registro fotográfico da montagem da exposição intitulada Em nossas


artérias, nossas raízes, na Aldeia Maraká’nà, em 2018. Autoria: não identificada.
Próxima a essa imagem, no mesmo tamanho, há um registro da presença
de indígenas da Aldeia Maraká’nà nas manifestações ocorridas em junho
de 2013, no centro do Rio de Janeiro, junto a outras imagens, menores, que
registram atividades ocorridas na Aldeia; ainda, uma caricatura, que aciona
a ideia de “resistência”, o texto referente à Proposta de Emenda Constitucio-
nal (PEC) 215 – que visava delegar ao Congresso Nacional o dever exclusivo
de demarcação de territórios indígenas e quilombolas –, alguns grafismos,
marcas de mãos e a presença da frase “A nossa união é fundamental”. A ar-
ticulação de todas essas presenças na superfície da parede – não só das ima-
gens antes pertencentes à mostra Dja Guata Porã, agora inseridas em uma
nova configuração, mas também daquelas pré-existentes – fazia com que
elas agissem de modos diferentes sobre aqueles que as presenciavam.
Quando, no entanto, retomamos o registro dessa mesma imagem no
contexto da conferência de línguas indígenas, ela não está mais sobre a pa-
rede, mas no chão, sobre o terreno, inclinada, apoiada sobre uma mesa (Fi-
gura 5). Este terreno é terra indígena, ou seja, território sagrado. Aqueles
que falam não a veem; mas aqueles que ouvem o que é dito, sim. Ou seja, ela
também está direcionada a uma plateia, mas não a um público convencional
de uma exposição. Não há uma composição de diferentes elementos visuais
sobre uma parede, mas um conjunto espacializado e vivenciado, com a pre-
sença de corpos e objetos, no qual o ambiente como um todo é acionado. Se,
na situação expositiva anterior, ela, enquanto imagem, se aproximava mais
intimamente, por sua configuração e escala, de outra imagem de indígenas
da Aldeia Maraká’nà em uma manifestação de rua, agora ela reaparece pró-
xima de corpos, que são presenças vivas e não representações. A imagem de
indígenas caminhando juntos, dando as costas para o Congresso Nacional,
em direção ao olhar de quem observa, se direciona a uma nova plateia. A
união de indígenas na luta política está na imagem produzida pela Mídia
NINJA e nessa outra imagem, produzida pela artista Livia Flores, que naquele
instante era parte daquela plateia. Aquilo que a primeira imagem representa,
seu protótipo como causa de seu vir a ser, ou seja, a mobilização em torno
do Acampamento Terra Livre, em 2013, é também aquilo que sua inserção na
conferência de línguas indígenas em 2019 mobiliza. Aos olhos dos integran-
78 IVAIR REINALDIM

tes da Aldeia Maraká’nà, não é somente uma representação, mas a presença


viva de seus parentes, que estão lá (Brasília) e aqui (Rio de Janeiro), como
uma entidade coletiva existente no emaranhamento de tempos e espaços.

Invadir, explorar e mercantilizar as terras demarcadas, que estão na posse e sendo


preservadas pelos nossos povos” (APIB).
79 IVAIR REINALDIM

Fig5 Registro fotográfico da Conferência de Línguas Indígenas Rexistência,


Aldeia Maracanã, Rio de Janeiro, em 12 de outubro de 2019. Autoria: Livia Flores.
Como imagem, seu valor de uso – independentemente de não ter sido feita
por um indígena e não se configurar como um objeto tradicional – é um
índice do trânsito entendido não somente como deslocamento físico, mas
entre essas diferentes conjunturas e temporalidades.
Olharmos para essa imagem é compreendermos que ela nos olha
em contrapartida, como nos propõe Georges Didi-Huberman (1998), e que,
mais do que representação, ela aponta para uma diferença no modo como
vivenciamos e usamos as imagens, pois, mesmo em contextos intercultu-
rais, nossas multiplicidades não podem ser homogeneizadas em prol de
uma vivência e de um propósito único, como se de fato houvesse uma uni-
versalidade dos corpos e das experiências. Ao pensarmos na agência dessas
imagens, como propõe Gell, devemos considerar que as agências de índices
(enquanto corpos) se transformam conforme aquilo a que remetem (seus
protótipos), quem as produziu e a quem se destinam. Nesse sentido, ima-
gens cumprem funções, e em seus usos podem ser mais ou menos eficazes,
conforme a conjuntura em que aparecem e sobre quem atuam. Em arqui-
vos digitais, na internet, no Museu de Arte do Rio, na Aldeia Maraká’nà,
no Instagram ou neste texto, funcionam (também) como representações,
mas nesses trânsitos explicitam que podem ser mais que isso.

Agradeço a Livia Flores, Ana Mannarino, George Maragaia e à Mídia NINJA,


que autorizaram a publicação das imagens.
E dedico este texto a todas as existências que habitam a Aldeia Maraká’nà.
Aldeia Rexiste!
80 IVAIR REINALDIM
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81 IVAIR REINALDIM

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SANTOS, Vinicius Pereira dos. A
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Pós-Graduação em Ciências Sociais
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SARGENTELLI [ICÓ], Lucas Penido G.
Aprender a caminhar com a Aldeia-
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(Mestrado em Artes Visuais). Programa
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SARGENTELLI [ICÓ], Lucas Penido G. Em
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com a Aldeia Maraka’nà, 2022 [inédito].
TUTUSHAMUM PURI, Daniel.
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dos Vereadores do dia 26/03/2013.
Disponível em: http://www.youtube.
com/watch?v=eHgrt5aeAqg. Acesso
em 29 ago. 2021.
82 IVAIR REINALDIM
Poéticas regenerantes frente à feitiçaria
da monocultura monoteísta: Selvagem Ciclo
e arte indígena contemporânea
ANDERSON ARÊAS
Doutorando em História e Crítica da Arte no Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAV/UFRJ.

A vida nos atravessa a todos e ela é selvagem.


Ailton Krenak

Na imagem acima, vemos uma icônica paisagem do Rio de Janeiro com-


posta pelos ângulos retos dos prédios do bairro de Botafogo contrastando
com a sinuosidade das curvas do imponente morro do Corcovado e das
copas das árvores urbanas. No topo da montanha está a estátua do Cristo
Redentor de braços abertos sobre a cidade. Como interferência na fotogra-
fia, bordados com linhas coloridas apresentam três serpentes diferentes
sobre as montanhas. Nelas, pode-se ler tanto o símbolo do Infinito (o oito
deitado), como também o Ouroboros, símbolo de renascimento e transfor-
mação. Na base da imagem, lemos em bordado sobre a copa das árvores o
labiríntico símbolo da chave grega, representando também o Infinito.
Para além do que é visto e lido nessa imagem intitulada Sonho de
transformação, como autor do trabalho digo que ela me atravessou num
período quando as dificuldades de viver no caos eco-social dessa gran-
de cidade me exauriam como morador, me demandando investigar cami-
nhos de (auto) cura e transformação enquanto doutorando em processo de
pesquisa sobre a natureza espiritual da imagem.
Naquele momento, estava tomado pelo efeito do encantamento por
ter presenciado o Selvagem – Ciclo de Estudos Sobre a Vida. O Selvagem é
um exemplo muito feliz de articulação e troca de saberes entre perspecti-
vas indígenas e acadêmicas, científicas e tradicionais. Concebido por Anna
Dantes, orientado e intermediado por Ailton Krenak e produzido por Ma-
deleine Deschamps, trata-se de um movimento que veio a público em 2018
83 ANDERSON ARÊAS

e permanece se expandindo pelas redes e horizontes1. As duas primeiras

1 Selvagem – Ciclo de Estudos Sobre a Vida vem envolvendo uma constelação de


pensadores nacionais e internacionais, biólogos, xamãs, artistas, antropólogos,
cientistas e outras espécies. A comunidade Selvagem pode ser acessada através de
inúmeros encontros, publicações de livros, cadernos gratuitos, ciclos de leitura, canal
84 ANDERSON ARÊAS

Fig 1 Anderson Arêas. Sonho de transformação, 2019, bordado sobre fotografia.


edições presenciais, no teatro de arena no interior do Jardim Botânico do
Rio de Janeiro, tiveram, entre diversas outras participações especiais, a
presença do antropólogo Jeremy Narby, que apresentou seu livro A serpen-
te cósmica: o DNA e a origem do saber (2018), e do ecologista Fabio Scarano,
que lançou o livro Regenerantes de Gaia (2019) a partir dos debates dentro
da comunidade Selvagem.
Narby (2018) defende a hipótese de que quando xamãs entram em esta-
do de consciência menos racional e mais desfocado, através de variadas técni-
cas próprias, acabam por ter acesso a imagens com informação biomolecular,
provenientes do DNA: “Com isso as culturas xamânicas ou ‘animistas’ sabem,
há milênios, que o princípio vital é único para todas as formas de vida (…). É o
DNA a fonte desse espantoso saber botânico e medicinal” (NARBY, 2018, p. 121).
Para o antropólogo, as serpentes se assemelham à forma do DNA, e é muito
provavelmente por isso que estão presentes em diversas mitologias, símbolos,
em culturas distribuídas por todo o planeta e obras de arte visionárias (como
as do artista peruano Pablo Amaringo e as do grupo MAHKU – Movimento
dos Artistas Huni Kuin, do Alto Rio Jordão, estado do Acre). Narby diz que
iniciou suas pesquisas seguindo o aprendizado de que para compreender a
linguagem da natureza é preciso estar atento às semelhanças de forma: “os
espíritos da natureza se comunicam com os humanos nas alucinações e nos
sonhos, ou seja, por imagens mentais” (NARBY, 2018, p. 101, grifo do autor).
O Selvagem pode parecer bastante inquietante à primeira vista, prin-
cipalmente para quem não possui o costume – ou não se dá ao trabalho –
de ver a possibilidade de diálogos, aproximações e a troca de saberes entre
indígenas e não indígenas, entre xamãs amazônicos, cientistas e artistas,
em circularidade e horizontalidade. Percebo uma tendência comum de se
evitar aproximações entre culturas distintas, ora pela crença em purismos,
ora por paternalismos. Seria dessa pulsão romântica por onde costumam
sair também os sujeitos que ficam indignados quando artistas indígenas –
e negros(as) e periféricos(as) – prosperam dentro da indústria cultural? Há
uma frustração quando ocupam as paredes brancas de algumas galerias?
Por que às vezes incomoda tanto quando se valorizam no mercado, sendo
ainda tão menos evidentes? Talvez os músicos tenham avançado muito
85 ANDERSON ARÊAS

mais no Brasil nesse campo de disputas. Se imaginamos que artistas plás-


ticos também almejam dignidade financeira, o quanto estamos ainda de-
marcando estereótipos nas artes visuais?

no YouTube, perfil no instagram, apoio às escolas vivas, etc. Todas as informações e


conexões encontram-se no site www.selvagemciclo.com.br.
Narby acredita que ao verticalizar relações acabamos ocultando co-
nexões: “Em nome de quê nos permitimos ocultar certas semelhanças fun-
damentais no simbolismo humano – a não ser por uma lealdade obstinada
com relação à fragmentação racionalista?” (NARBY, 2018, p. 163).
Defender a horizontalidade e as alianças não é obviamente se lan-
çar em queda bruta para o lado do desrespeito e da invasão. As leis da boa
vizinhança e do respeito prevalecem e, nesse sentido, o Selvagem parece
ser o exemplo mais feliz de que tenho notícias. Portanto, a ideia do índio
puro, isolado, que nunca saiu da floresta, não usa celular e não fala outras
línguas como português, espanhol ou inglês é carregada de preconceito e
violência. Em oposição a este tipo de desinteresse, Ailton Krenak sugere
que realizemos alianças afetivas.
Essa rede de criações, embalada pelo tom da fala calma, profunda e
poética de Krenak, emana o sensível – e Selvagem – que se apresenta em
Sonho de transformação. Para além do visível e do legível na imagem2, so-
nho, imagem e criação artística se misturam na visualidade, apresentando
o objeto central deste artigo, que chamo de poéticas regenerantes: trata-se
da significativa multiplicidade de manifestações espirituais e anímicas em
curso nas produções culturais contemporâneas, que atuam como agentes
de regeneração frente às metodologias e processos uniformizantes basea-
dos na monocultura e no monoteísmo vigentes no Ocidente.
A ideia da regeneração também é um fruto-aprendizagem Selvagem e
vem de Fabio Scarano (2019). Para o autor, regenerar o planeta “envolve cica-
trizar a fratura que existe entre as diferentes formas de interpretar a realidade.
Requer a criação de uma pele de ideias e intenções capaz de conectar essas
visões de mundo que foram reduzidas a módulos” (SCARANO, 2019, p. 11).

A feitiçaria da monocultura monoteísta

Em suas reflexões a respeito dos “Rastros do sagrado no mundo contemporâ-


neo”, Silveira (2018) comenta sobre a “fidelidade monoteísta” e os “monoteísmos
metodológicos” que pautam as ciências e os monoparadigmas que esculpiram
86 ANDERSON ARÊAS

a identidade das universidades que herdamos (SILVEIRA, 2018, p. 83). Por outro
lado, as fronteiras dos conceitos como sagrado, espiritualidade, religiosidade e
modernidade historicamente estão sempre sendo desestabilizadas. E se não há

2 Para essa abordagem sobre o visível, o legível e o visual na imagem, indico DIDI-
HUBERMAN (2013).
nitidez conceitual moderno-científica quando apontamos esses conceitos, isto
não deveria ser um impedimento para aproximarmos coisas que se parecem
próximas, mesmo sendo oriundas de grupos diferentes.
Em consonância com a crítica de Narby quanto à fidelidade frag-
mentária racionalista obstinada, penso que quando nos detemos nas pare-
des destas fronteiras conceituais, não somente ocultamos conexões como
anulamos aproximações e por conseguinte acabamos bloqueando as alian-
ças, as horizontalidades e as circularidades. As desvantagens são grandes.
É esse, afinal, o objetivo? Conceituar, separar, verticalizar, dominar? Há
um transe nesse racionalismo separarista obstinado? Estamos mesmo
sempre em transe? Quando penso em aproximar diferentes concepções de
espiritualidade e arte, não o faço para anular as divergências. Ao contrário,
busco afirmar diferenças e semelhanças, e, ao fazer, reconheço que a limi-
tação das nomeações (como sagrado, espiritualidade, arte) jamais estabili-
zarão o que é de natureza fluida e instável.
É tão possível quanto necessário optarmos por menos paisagens fixas
de monoculturas e mais paisagens vivas, com múltiplas espécies, em relação
e regeneração. O risco da mistura e do contágio é grande. Mas: “Ora, em ne-
nhuma situação a monocultura é boa. Nem quando é no interior de si, sozi-
nha, porque ela tira nossa conexão com todos os outros sentidos de estarmos
vivos” (KRENAK, 2020, p. 6). Arrisco-me a dizer que o Selvagem e a arte in-
dígena contemporânea não estariam atuando em ampla rede de cocriações
no circuito cultural se seus participantes tivessem aversão ao contágio ou
se se considerassem insuscetíveis à mistura. Como afirma Ailton Krenak:
diferente da apreciação moral entre civilizado e selvagem, tenho observado
o selvagem como vida. A expressão da vida é selvagem (KRENAK, 2020, p. 1).
Se até aqui estes questionamentos forem compreendidos como falta
de critérios ou tentativa de uniformização e apagamento das diferenças
(que é justamente o foco da minha crítica), talvez esteja falhando grave-
mente com a escolha das palavras, das imagens e do método de explanação.

Os movimentos ambientalistas, a ressurgência de discursos e visões de


mundo “nativos” e marginalizados (…) tomam pujança e implodem a te-
87 ANDERSON ARÊAS

odiceia cristã do Ocidente, um dos mais tradicionais portos seguros do


sagrado ocidental, enquanto ontologia do ser (SILVEIRA, 2018, p. 103).

Se os adeptos das grandes religiões monoteístas no Ocidente tendem a con-


siderar o sistema religioso do outro como mitologia, profanação e feitiça-
ria, podemos nos convidar a revirar essa relação pensando nos processos
uniformizantes e colonialistas da cultura judaico-cristã como uma forma de
encantamento ou como feitiçaria monoteísta. Nesse caminho, algumas poéti-
cas contemporâneas podem ser entendidas como contrafeitiço, já que buscam
defender a natureza multiforme da imagem e do espírito na paisagem cultural
brasileira, adensando uma virada que é ontológica, ecológica e espiritual.
Identifico-me com o pensamento de que o congelamento da ideia
equivocada de separação entre humanidade e natureza, razão e emoção,
visível e invisível tornou-se insustentável. Pois não bastou separar, foi tam-
bém necessário demarcar a lógica antropocêntrica e a superioridade do
homem sobre a natureza então decaída: um matricídio justificado pelas
cosmologias das grandes religiões monoteístas calcadas na dualidade do
Bem e do Mal, em que o Mal está na natureza, rebaixada devido às suas
qualidades profanas de animalidade, irracionalidade e bestialidade.
Em A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por
um índio, Kaká Werá Jecupé (2020) diz que a atitude dessas religiões tem
provocado demasiada miséria humana e não cumpre o que diz: “Pois pa-
lavra e espírito estão longe. A voz sai morta, porém maquiada para dar a
impressão de vida. A palavra assina tratado de paz enquanto a mão acena
guerra. A religião é surda, pois o espírito está mudo” (JECUPÉ, 2020, p. 99).
A natureza seguiu sendo historicamente rebaixada como obstáculo
e bem de consumo, como descreve Scarano (2019):

Galileu, Descartes e Newton começam a desassociar a natureza da huma-


nidade, assim como apartá-la da cultura, a partir do fortalecimento da
ciência, ganhando mais independência da fé. Descartes vai além e separa,
no ser humano, a mente e a alma do corpo. Com a Revolução Industrial
e a Revolução Francesa no fim do século XVIII, chega a modernidade que
separa de vez o humano do não humano, o natural do cultural, e a poesia
da ciência (SCARANO, 2019, p. 16).

E também o psicólogo Carl G. Jung:

Já não existem deuses cuja ajuda podemos invocar. As grandes religiões pa-
88 ANDERSON ARÊAS

decem de uma crescente anemia, pois as divindades prestimosas já fugiram


dos bosques, dos rios, das montanhas e dos animais, e os homens-deuses
desapareceram no mais profundo do nosso inconsciente. (…) Nossas vidas
são agora dominadas por uma deusa, a Razão, que é a nossa ilusão maior e
mais trágica. É com a ajuda dela que acreditamos ter “conquistado a natureza”
(JUNG, 2008, p. 128).
O legado disso tudo é o título que obtivemos, enquanto espécie, de agentes
de destruição dos sistemas naturais do planeta Terra, que cientistas iden-
tificam como Antropoceno: a era geológica em que vivemos atualmente
marcada pelas evidências incontestáveis e alarmantes da mudança climá-
tica e da perda de diversidade de espécies. Ailton Krenak pontua: “O nosso
apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca
mais profunda do Antropoceno” (KRENAK, 2019, p. 58). Dessa forma, quan-
do movimentamos nossa visão de mundo – nossa percepção de mundo
– abrindo-a para outras perspectivas, podemos constatar que o desenrai-
zamento ecológico se deve ao desenraizamento psíquico e espiritual no
qual a humanidade vem se colocando na história das civilizações, princi-
palmente a partir do Iluminismo, quando se viu ávida por se reconhecer
como um grupo de indivíduos regidos por um Deus único e universal e
com o desejo de controle e domesticação através da razão.

Poéticas regenerantes

A importância de se preservar o que chamamos de natureza não é somente


devido a uma questão material ou de recursos naturais – e a dificuldade de
se compreender isso é um marcante sinalizador. Os povos originários nos
ensinam que ela é viva e é fundamental compreender que também pulsa
na natureza uma multiplicidade de vida espiritual e anímica. O xamã ya-
nomami Davi Kopenawa orienta: “Gostaria que os brancos parassem de
pensar que nossa floresta é morta e que foi posta lá à toa. Quero fazê-los
escutar a voz dos xapiri3, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus
espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la co-
nosco?” (KOPENAWA, ALBERT, 2015, p. 65).
É indiscutível que o nosso colapso ambiental vem provocando uma
erupção pelo planeta de inúmeras mostras de arte com essa temática nos
últimos anos. Podemos relacionar este cenário crítico de mudança climática
com a demanda por outras metodologias e processos artísticos, o que acabou
por fortalecer, por exemplo, o desenvolvimento da arte indígena contempo-
89 ANDERSON ARÊAS

rânea no Brasil, junto a uma plêiade de artistas não indígenas que também se
envolvem com questões ecológicas e espirituais em suas produções.

3 Xapiri são seres-imagens (“espíritos”) primordiais “descritos como humanóides


minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais extremamente luminosos
e coloridos” os quais os xamãs podem “chamar” (KOPENAWA, ALBERT, 2015, p. 610).
Dar-se a oportunidade de ver, ler, escutar e perceber esta vertente de
artistas é muito importante para compreender que não há como pensar um
futuro verdadeiramente coletivo, em regeneração, harmônico com o planeta
se não for através de uma ressacralização da nossa relação com a vida na Terra.
Com o escritor e ambientalista Kaká Werá Jecupé, compreendo a
espiritualidade não limitada ao religioso, mas como uma inteligência pre-
sente em nós e, como tal, que necessita ser desenvolvida: “Os estudiosos
normalmente classificam as inteligências da seguinte forma: linguística,
lógica, motora, espacial, musical, interpessoal e intrapessoal. Mas já se di-
funde o reconhecimento da inteligência emocional e também da espiritu-
al” (JECUPÉ, 2019, p. 260). Esta última está ligada às conexões que fazemos
“como insights, inspirações, serenidade e visão holística pela via da con-
templação e do silêncio” (Ibidem). Jecupé observa que precisamos reco-
nhecer que há vários tipos de percepção da espiritualidade e que provocar
somente uma medida ao espírito, além de ser bastante violento à individu-
alidade do outro, causa o seu congelamento.
No Dicionário de símbolos, Chevalier (2020) corrobora trazendo pers-
pectivas variadas de diversas culturas sobre esse princípio vital que é a alma/
espírito e alerta: “De que alma se trata?” (CHEVALIER, 2020, p. 82). Devemos
admitir ainda a sua função simbólica estruturante:

A palavra alma evoca um poder invisível: ser distinto, parte de um ser vi-
vente ou simples fenômeno vital; material ou imaterial, mortal ou imortal;
princípio de vida, de organização, de ação; salvo fugazes aparições, sempre
invisível, manifestando-se somente através de seus atos. (…) evocadora de
invisível poder e provocadora de um saber, de uma crença ou rejeição, a
alma possui, nessa dupla qualidade, pelo menos o valor de símbolo (…). O
principal desses símbolos é o sopro, com todos os seus derivados (CHEVA-
LIER, 2020, p. 77, grifo do autor).

Se a alma/espírito tem essa qualidade de símbolo, seu aspecto que por defini-
ção é fugidio dificulta racionalizarmos demais sobre ele. O que nos importa
perceber é que a natureza polivalente de um símbolo “tem precisamente essa
90 ANDERSON ARÊAS

propriedade excepcional de sintetizar, numa expressão sensível, todas as in-


fluências do inconsciente e da consciência, bem como das forças instintivas
e espirituais, em conflito ou em vias de se harmonizar” (CHEVALIER, 2020, p.
13). Portanto, vale enfatizar que generalizar qualquer concepção de espírito
seria a repetição de um erro fatal. A operação simbólica não deve jamais ser
universalizante, mas considerada a partir do indivíduo ou do coletivo.
Destaco a afirmação de Naine Terena, curadora da exposição Vé-
xoa: nós sabemos (2020)4: “a arte contemporânea brasileira tem uma ori-
gem forte e nativa. Sempre foi e sempre será” (TERENA apud VÉXOA, 2020,
p. 13). Por meio de Véxoa, Terena se propôs a adensar o movimento de
cura(doria) do sintomático silenciamento historiográfico na arte brasileira
no que diz respeito às fortes e plurais tradições milenares de seus povos
originários: “a perspectiva artística indígena emerge justamente de outros
mundos, que muito pode contribuir para uma sociedade com pensamento
mais coletivo e isso (…) foi apagado como referência para a formação do
país” (Ibidem, p. 12).
Enquanto bordei três serpentes de cura e de sonho de transforma-
ção sobre a paisagem carioca e sob a simbólica estátua do Cristo Redentor,
Jaider Esbell (in memoriam), no contexto da 34ª Bienal de São Paulo, ins-
talou duas grandes serpentes infláveis de grandes dimensões na lagoa do
Parque Ibirapuera, encarando a estátua de Pedro Álvares Cabral e prontas
para contra-atacar o colonizador europeu. Partindo de trajetórias bem di-
vergentes, Entidades (2021) e Sonho de transformação (2019) são trabalhos
encantados que se tocam em algumas semelhanças simbólicas e poéticas
discutidas nesse artigo. Enquanto sonhei e ritualizei símbolos de trans-
formação para uma cidade em guerra e caos, o artista guerreiro Makuxi
declara seu contra-ataque inescapável e inesquecível ao invasor.
Vale destacar alguns pontos precedentes da relação entre a arte in-
dígena e a Bienal de São Paulo. Na 32ª edição, intitulada Incerteza viva
(2016), a proposta foi abordar temas como natureza e ecologia. A “questão
indígena” foi colocada, mas segundo Nina Vincent: “de mãos dadas com
a típica desatenção ansiosa do público do século XXI, contribuindo para
uma aproximação superficial” (VINCENT, 2017, p. 655). As vozes de lideran-
ças indígenas estiveram presentes, como Davi Kopenawa e Ailton Krenak,
mas apenas na ativação da obra OcaTaperaTerreiro (2016) do artista Bené
Fonteles. Maria Thereza Alves e Paulo Tavares também apresentaram tra-
balhos em parceria com comunidades indígenas nesta edição da Bienal.
Como crítica à curadoria, Vincent achou “frustrante que a questão indí-
gena seja ainda tão mediada por artistas não-indígenas” (Ibidem, p. 659).
91 ANDERSON ARÊAS

Na edição seguinte, Afinidades afetivas (2018), multiplicaram-se as


reproduções de imagens de indígenas vinculadas a um passado mítico, re-
forçando a ausência da autoexpressão e a não contemporaneidade destes

4 Véxoa: nós sabemos foi a primeira exposição de arte indígena contemporânea na


Pinacoteca de São Paulo, em 2020.
92 ANDERSON ARÊAS

Fig 2 Jaider Esbell. Entidades, 2021, instalação inflável. Fotografia:


Anderson Arêas.
povos. Desta vez, o artista Denilson Baniwa (com sua entidade pajé-onça)
interveio na entrada no Pavilhão de exposições com a performance Pajé-
-onça hackeando a 33ª Bienal de São Paulo. Baniwa caminhou pela expo-
sição observando diversas representações de indígenas feitas por outros
artistas não indígenas, foi até uma livraria, comprou o livro Breve história
da arte, de Susie Hodge, e rasgou suas páginas enquanto dizia:

Breve história da arte. Tão breve, mas tão breve, que não vejo a arte indígena.
Tão breve que não tem índio nessa história da arte.
Mas eu vejo índios nas referências, vejo índios e suas culturas roubadas.
Breve história da arte. Roubo. Roubo. Roubo.
Isso é o índio?
Aquilo é o índio?
É assim que querem os índios?
Presos no passado, sem direito ao futuro?
Nos roubam a imagem, nos roubam o tempo e nos roubam a arte.
Breve história da arte.
Roubo, roubo, roubo, roubo, roubo.
Arte branca.
Roubo, roubo.
Os índios não pertencem ao passado.
Eles não têm que estar presos a imagens que brancos construíram para os
índios.
Estamos livres, livres.
Apesar do roubo, da violência e da história da arte.
Chega de ter branco pegando arte indígena e transformando em simulacros!5

Finalmente, a última edição, 34ª Bienal de São Paulo, Faz escuro mas eu
canto, marcada pelo contexto pandêmico, propôs uma extensa rede de
exposições e atividades, nas quais, enfim, alguns artistas indígenas con-
temporâneos brasileiros foram diretamente convidados a participar, como
Daiara Tukano, Gustavo Caboco, Jaider Esbell, Sueli Maxakali e Uýra,
todos com participação bem significativa – principalmente Esbell, que
93 ANDERSON ARÊAS

além de expor diversas obras ainda realizou a curadoria de uma exposição


ao lado do pavilhão da Bienal, no Museu de Arte Moderna de São Pau-
lo, intitulada Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea, que reuniu

5 HD video, 16:9, cor, som, 15 min, 17 nov 2018. Disponível em: https://youtu.be/
MGFU7aG8kgI. Acesso em 29 jul. 2022.
desenhos, pinturas, fotografias e esculturas de artistas de diversos povos
de norte a sul do país: Baniwa, Huni Kuin, Karipuna, Krenak, Marubo,
Makuxi, Patamona, Pataxó, Tapirapé, Taurepang, Tikmu’un_Maxakali,
Tukano, Xakriabá, Xirixana, Wapichana e Yanomami.
Finalizo esse texto com afetuoso agradecimento e respeito à vida e
à obra iluminada desse grande artista Makuxi, que desestabilizou e reen-
cantou tantos conceitos enrijecidos na indústria cultural. De tantos apren-
dizados, deixo sua colocação esclarecedora no tocante à nomeação da arte
indígena contemporânea, movimento pelo qual dedicou sua vida:

Antes de ser contemporânea, ela é indígena, ela automaticamente traz no


seu arcabouço todo esse reflexo ancestral, milenar, mitológico e espiritual.
Quando se diz que é arte contemporânea indígena, parece que ela vem de
fora e quer se indianizar aqui com a gente, vinda de um ambiente exter-
no, como se entre os índios não existisse antes. (…) Por isso é importante
sustentar que é arte indígena contemporânea, porque a arte sempre esteve
entre os índios, e hoje quando se argumenta da palavra “contemporânea”,
ela se veste, ela capta junto dos seus argumentos essa necessidade inclusive
de ser comercial. Mas de ser provocativa bem antes de ser comercial. É
uma arte de provocação, de promoção e fortalecimento da cena e das iden-
tidades indígenas contemporâneas (ESBELL, 2019, p. 176).
94 ANDERSON ARÊAS
REFERÊNCIAS SILVEIRA, Emerson José Sena da. Rastros
do sagrado no mundo contemporâneo:
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: reflexões. In: Relegens Thréskeia:
mitos, sonhos, costumes, gestos, Estudos e Pesquisa em Religião, v. 7,
formas, figuras, cores, números. 34ª ed. pp. 77-104, 2018.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2020. VÉXOA: nós sabemos. Curadoria de Naine
DIDI-HUBERMAN, Georges. A história da Terena; textos de Daniel Munduruku
arte nos limites de sua simples prática. [et al.]. – São Paulo: Pinacoteca do
In: Diante da imagem: questão Estado, 2020. (Catálogo da exposição
colocada aos fins de uma história da realizada na Pinacoteca de São Paulo,
arte. São Paulo: Ed. 34, 2013. de 01 de novembro de 2020 a 22 de
ESBELL, Jaider. Tembetá: conversas com março de 2021.)
pensadores indígenas. Org. Sergio VINCENT, Nina. Mundos incertos sob um
Cohn e Idjahure Kadiwéu. Rio de céu em queda: o pensamento indígena,
Janeiro: Azougue, 2019. a antropologia e a 32ª Bienal de São
JECUPÉ, Kaká Werá; CREMA, Roberto. A Paulo. In: Revista de Antropologia.
águia e o colibri: Carlos Castañeda e São Paulo, online. v. 60, n. 1, pp. 653-
a ancestralidade Tupi-Guarani. São 661. USP, 2017.
Paulo: Tumiak, 2019.
JECUPÉ, Kaká Werá. A terra dos mil
povos: história indígena do Brasil
contada por um índio. 2ª ed. São
Paulo: Peirópolis, 2020.
JUNG, Carl G. [et al.]. O homem e seus
símbolos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008.
KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. A
queda do céu: palavras de um xamã
yanomami. São Paulo: Companhia
das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim
do mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
KRENAK, Ailton. A vida é selvagem. In:
Cadernos SELVAGEM, publicação
digital. Rio de Janeiro: Dantes, 2020.
Disponível em: http://selvagemciclo.
com.br/wp-content/uploads/2020/12/
95 ANDERSON ARÊAS

CADERNO12-AILTON.pdf. Acesso
em 20 jul. 2022.
NARBY, Jeremy. A serpente cósmica: o
DNA e as origens do saber. Rio de
Janeiro: Dantes, 2018.
SCARANO, Fabio Rubio. Regenerantes de
Gaia. Rio de Janeiro: Dantes, 2019.
CAPÍTULO 2 IMAGEM E EMULAÇÃO
Antropofagia e decolonialidade:
primeiros passos
LUCIO AGRA
Docente no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das
Artes da Universidade Federal Fluminense – PPGCA/UFF e no Centro de Cultura,
Linguagem e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia – CECULT/UFRB

O presente texto compõe-se de um conjunto de notas um tanto desencon-


tradas em torno de uma pesquisa que está em andamento desde que eu
entrei no Programa de Estudos do Contemporâneo nas Artes, na UFF, e
trouxe comigo uma proposta ainda inicial de projeto de pesquisa em tor-
no desse tema: antropofagia e decolonialidade. Como o próprio nome já
aponta, é uma questão difícil para a própria memória que parece haver em
torno do que seja a antropofagia de Oswald de Andrade. Digo isso por-
que tem havido intensa discussão em torno do modernismo brasileiro em
função da efeméride que nós estamos vivendo, os cem anos da Semana de
Arte Moderna. Quando o aniversário era de 70 anos, o poeta Waly Salo-
mão a chamou, ironicamente, de “velha prostituta setentona”, justamente
porque havia sempre um movimento curioso de tentativa de captura do
modernismo paulista, seja para uma proposição conservadora e de manu-
tenção das coisas, seja por uma proposição que talvez ingenuamente ten-
tasse imaginar ainda uma situação de ruptura como aquela do início do
século passado.
Parece-me, na verdade, que não deveria haver tanto incômodo em
relação a isso quando se trata da antropofagia. Primeiro, porque há um
intervalo de seis anos entre o Manifesto Antropófago e a Semana de Arte
Moderna. Começo, portanto, chamando a atenção para o fato de que essa é
uma falsa aproximação. No que diz respeito à Antropofagia, desenha-se um
caminho de ruptura com o modelo do modernismo brasileiro em fase de
oficialização em 1928, adiante confirmado nos anos 301. Na sua vertente mais
oficial, desde então, o modernismo vai passar a ter um conluio permanente
97 LUCIO AGRA

1 A existência, recentemente evidenciada, de um texto de Oswald de Andrade intitulado


“A antropofagia como visão de mundo”, datado de 1930, confirma tudo o que acabei de
falar. Trata-se também do ano em que Oswald torna pública sua relação com Pagu – e
separa-se, portanto, de Tarsila do Amaral – iniciando o longo caminho que o levará ao
desaparecimento, mergulhado no ostracismo (ANDRADE, 2022, p. 511).
com as situações políticas de poder, um conluio do qual Oswald de Andra-
de, propositor da Antropofagia, vai se afastar completamente. Refiro-me a
ele, pessoalmente, e num primeiro momento junto com Pagu e poucos mais,
como Flávio de Carvalho. Posteriormente, de modo individual, Oswald vai
se manter totalmente fora do “circuito”, embora vivencie, ao longo dos anos
40 e começo dos 50, até sua morte, um calvário de tentativas de se manter
relevante na cena cultural (ANDRADE, 2022, p. 571).
Tanto quanto parece uma ideia equivocada pensar que a Semana de
Arte Moderna seria o começo de uma história do modernismo brasileiro, é
igualmente errôneo pensar que a Antropofagia é alguma coisa que seria o
ápice ou a afirmação disso. Tão comum é esse tipo de confusão que, outro
dia, para minha surpresa, vi uma apresentadora, em um canal público de
TV, durante uma entrevista, datando o Manifesto Antropófago em 1922. O
nível de confusão que se dá em torno disso é da mesma natureza daque-
la que se faz entre Mário e Oswald de Andrade, por conta do sobrenome
igual: dois autores que representam, nesse passo, duas posições completa-
mente antagônicas, além do fato de que houve uma ruptura entre eles. Mas,
para além das posições, o que eu estou tentando apresentar com a relação
entre Antropofagia e decolonidade – que aqui procurarei demonstrar pelo
caminho das imagens – é algo que já apresentei enquanto projeto no nosso
PPG de Estudos da Produção Contemporânea.
Quando escrevo tal título – antropofagia e decolonialidade – supo-
nho tanto possíveis proximidades como prováveis distâncias que os auto-
res do Giro Decolonial poderiam ter em relação à antropofagia de Oswald
de Andrade, e é justamente esse diálogo que me interessa. A proposta, por-
tanto, não se afasta dos conflitos e, ao contrário, pretende encarar o debate
de frente, por assim dizer, ou seja, com a disposição de encontrar dissensos.
Ao mesmo tempo, uma crença move e orienta o projeto, qual seja a de que
é possível compreender a antropofagia como uma forma especial de en-
tendimento do Brasil e que opera um esforço de desconstrução dos traços
coloniais persistentes.
Essa proposta tem frequentemente encontrado confirmações de sua
tese. O único obstáculo é justamente uma certa concepção do que seria
esse giro decolonial, coisa que acabei discutindo um pouco mais longa-
98 LUCIO AGRA

mente no capítulo 5 de um livro que publiquei recentemente (AGRA, 2022).


Trata-se de um trabalho no qual eu comento alguns aspectos da obra do
maestro Rogério Duprat e do poeta e ensaísta Haroldo de Campos, assim
como também de Décio Pignatari. O capítulo é originalmente uma en-
comenda de uma discussão sobre a poética sincrônica de HC, para um
simpósio na Casa das Rosas, em São Paulo e, de passagem, eu discuto o
crescimento desse paradigma decolonial através da leitura de um ensaio
de Haroldo, bastante famoso: “Da razão antropofágica – diálogo e dife-
rença na cultura brasileira”, que foi publicado em diversos lugares mundo
afora. Ao falar das diferentes edições e até de alguma divergência de publi-
cação que o próprio Haroldo fez, no registro da data de publicação, acabo
por fazer o seguinte comentário:

Sabemos que o mesmo se passa na bibliografia dos outros autores mencio-


nados, o que abrirá caminho para os estudos decoloniais que se espalham
numa paisagem sulista (aí referindo-se ao hemisfério, bem entendido) na
qual os Estudos Decoloniais se amplificam com a geração sucessiva de
Chakrabarty (provicianizar a Europa), ou ou mesmo anterior de um Aní-
bal Quijano que entretanto só vê crescerem suas proposições nos anos 90
(Quintero, Figueira e Elizalde, 2019), junto às de Arturo Escobar (Moder-
nidade/Colonialidade/Decolonialidade), Walter Mignolo (o lado oculto
da Renascença) e tantos outros autores que somente mais recentemente
são formados fora dos centros hegemônicos mas que deles dependeram
de algum modo para circular seu pensamento. Aníbal Quijano tem, como
se costuma chamar, a sua alma mater situada na Universidade Nacional
Maior de São Marcos, no Peru, mas é empregado da Universidade de Bin-
ghamton, no estado de Nova Iorque. A situação de Mignolo é semelhante,
tendo ele passado por Duke, Indiana e Michigan, mas já com formação
parisiense. Escobar passou pela Universidade da Califórnia e por Cornell,
embora mantenha seu vínculo com Cali. Chakrabarty é de Calcutá e está
na Universidade de mesmo nome, mas também na Nacional da Austrália e
atualmente é professor de história no Lawrence A. Kimpton Distinguished
Service na Universidade Chicago Law School. Por fim, a tradutora do arge-
lino Jacques Derrida na Índia, Gayatri Spivak. autora de um pequeno livro
cuja pergunta é fundante nesse Campo (Pode o subalterno falar?, edição
brasileira de 2010), leciona na Columbia University.
Conhecemos o caso das passagens do próprio Haroldo por Stuttgart
e por Austin, entre outras universidades. Sabemos das temporadas de Luiz
Costa Lima (outro nome Central, nesse caso, mas que pelos limites do que
99 LUCIO AGRA

eu estou tratando, não poderei alongar) ou Silviano Santiago, para citar


alguns mais próximos na área de letras (AGRA, 2022, pp. 95-96).

Ou seja, o Brasil não esteve fora desse processo em que autores foram cons-
truir um discurso contracolonial, pelo menos em vários lugares no mundo,
mas diferimos de outros autores da Índia ou de outros países latinos, pois
não costumamos permanecer nessas instituições ou mesmo fazer carrei-
ra nelas. Muito menos Oswald de Andrade, que, como disse Viveiros de
Castro, foi alguém que não foi aceito sequer na USP, que dirá em alguma
Universidade estrangeira.
Isso é um detalhe apenas, claro, que envolve esse tema. O esforço é
de propor um diálogo e ao mesmo tempo uma diferença – no caso da an-
tropofagia, uma diferença radical.
O enfrentamento da questão da diferença foi produzido no Brasil
em permanente distância, de certo modo, dessas “fontes” europeias. Isso
nos confere, a meu ver, uma singularidade muito interessante. Embora não
tenha nada de necessariamente original, a discussão que proponho come-
ça a partir de uma questão que desenvolvi em um curso de graduação aqui
na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Um dos cursos no qual
dou aula adotou uma nomenclatura para designar aquilo que se conhece
popularmente como artes cênicas: Tecnólogo em Artes do Espetáculo. No
momento em que eu cheguei aqui, em 2016, não compreendi muito o que
isso significava, muito embora depois acabasse por constatar que havia
toda uma produção teórica nesse sentido, presente no ambiente de estudos
relacionados às artes cênicas na UFBA. No debate do Projeto Pedagógico
do Curso (PPC) eu propus “artes ao vivo” como alternativa ao termo “artes
do espetáculo”: A polêmica que se seguiu acabou sendo resolvida com a
criação de dois componentes, um chamado História e Teoria das Artes do
Espetáculo e outro chamado História e Teoria das Artes ao Vivo. Embora
fosse o autor da proposta do segundo, fui professor também do primeiro, o
que me ensejou a oportunidade de fazer uma uma arqueologia do conceito
de espetáculo e começar a descobrir algumas características que o ligavam
a uma tradição ocidental de representação. Ao mesmo tempo, em História
e Teoria das Artes ao Vivo me interessava muito pensar o que que teria
existido antes dessa noção de espetáculo no Brasil.
Observei que a maioria dos autores que constroem a história do teatro
brasileiro o fazem a partir daquilo que se forma em torno da catequese jesu-
íta. Oswald de Andrade, por seu turno, tinha verdadeira ojeriza à catequese,
que é fundamento central da própria colonização. Pelo menos a consulta aos
100 LUCIO AGRA

autores clássicos que falaram sobre as origens teatrais no Brasil (por exemplo,
sobre o Teatro de Anchieta, por Décio de Almeida Prado) encontra muito
frequentemente a ideia de que o teatro efetivamente se constrói aqui a partir
dessa presença jesuítica. Quando não se trata da tese mais comum – e que foi
a vitoriosa, por assim dizer, no modelo vigente ainda hoje na Universidade
de São Paulo, na FFLECH, a ideia de que existe Literatura no Brasil a partir
do momento em que existe uma sociedade que fundamenta essa circulação
literária. Ora, posto isso, me pareceu que seria interessante começar contes-
tando essa visão e apontando para o fato de que existia já uma situação de
performance no Brasil. Nesse sentido também me afastei da ideia de Espetá-
culo e me aproximei da perspectiva de uma arte ao vivo, ainda no contexto
de povos originários, sendo a arte, portanto, algo que está entranhado na
vida das pessoas, uma vivência contínua do estético.
Para uma “arte ao vivo” pareciam relevantes as práticas rituais adota-
das pelos povos originários, pelos indígenas que já viviam aqui e que já pos-
suíam uma civilização que o colonizador não reconhece como tal. Como
consequência de todos os embates resultantes deste processo e desses mes-
mos embates, surge a questão da presença. O começo do curso História e
Teoria das Artes ao Vivo se dá a partir da discussão da noção de presença.
Inevitavelmente eu me vali de um autor que, embora europeu, conseguiu
justamente produzir esse mesmo giro de percepção do corpo e da presença
no seu próprio trabalho. Trata-se de Hans Ulrich Gumbrecht, cujo livro
Produção de Presença (GUMBRECHT, 2010) discute – e aqui faço uma drásti-
ca redução para que seja possível ater-me aos limites deste modesto ensaio
– a possível distinção entre “sociedades da presença” e “sociedades da in-
terpretação e do sentido”. Naturalmente as sociedades da interpretação/do
sentido (no singular mesmo) são aquelas fundadas em torno da metafísica,
frutos do código cartesiano. Tais sociedades referem-se a coisas concretas
e materiais, como a própria imagem, através de outras imagens, de caráter
mental. O processo de colonização foi também o de imposição de uma re-
dução da presença como coisa significativa espiritualmente, por assim dizer.

Apesar de debater nos capítulos seguintes alguns conceitos e motivos te-


ológicos, evito as acepções de ‘metafísica’ sinônimas de ‘transcendência’
ou de ‘religião’. ‘Metafísica’ refere-se a uma atitude, quer cotidiana, quer
acadêmica, que atribui ao sentido dos fenômenos um valor mais elevado
do que à sua presença material (…)…o cogito cartesiano fez a ontologia
da existência humana depender exclusivamente dos movimentos do pen-
samento humano. Inversamente, e de um ponto de vista epistemológico,
101 LUCIO AGRA

isso também queria dizer que quaisquer posições filosóficas e teóricas que
criticassem a rejeição cartesiana do corpo humano como res extensa e,
com isso, criticassem a eliminação do espaço poderiam tornar-se fontes
potenciais de desenvolvimento da reflexão sobre a presença (GUMBRECHT,
2010, pp. 14;39).
O segundo autor ao qual recorro é Eduardo Viveiros de Castro, que afir-
mou com todas as letras em uma entrevista e em várias passagens que o
perspectivismo ameríndio – por ele desenvolvido com outros antropólo-
gos, ao longo dos anos – é uma reproposição da Antropofagia de Oswald
de Andrade (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 116). Viveiros de Castro chama
atenção para o mesmo problema mencionado pelo filósofo paraense Bene-
dito Nunes, em seu prefácio ao livro A utopia antropofágica (NUNES, 2011):
o grande problema que a catequese jesuítica enfrenta, a partir do momen-
to em que decide instalar-se no Brasil, são justamente algumas práticas
como a poligamia, o nomadismo e principalmente a antropofagia, práti-
cas intragáveis para a percepção do colonizador. São as que lidam com a
presença e com a diferença, aquelas que se comenta dentro de um terreno
estritamente antropológico, as práticas que resultam na diferença funda-
mental dos povos originários em relação a nós e que inclusive nos ajudam a
entender as razões dos extermínios que seguem sendo perpetrados contra
esses povos no Brasil. Essas razões estão ligadas ao próprio processo da
colonização e, nesse sentido, vem em meu socorro algo que se encontra
na obra singular do pensador e pesquisador argentino Gonzalo Aguilar,
particularmente no livro chamado A máquina performática: a literatura
no campo experimental, feito em parceria com Mario Cámara (AGUILAR;
CÁMARA, 2017). Neste são feitas algumas observações sobre uma imagem
que compartilho aqui
Todos nós reconhecemos a pintura de 1861, de Victor Meirelles, uma
imagem da consagração de um modelo pós-independência, modelo da na-
cionalidade brasileira. Seria um erro pensar que esse modelo foi constru-
ído desde 1500. A partir da segunda metade do ano de 1500 é que começa
o empreendimento que vai conduzir, durante o período barroco brasileiro,
à escravidão como forma de manutenção de uma situação colonial que se
pretendia exclusivamente extrativista. Um modelo de construção de uma
sociedade baseada na lógica escravocrata, a lógica do Engenho. Contes-
tado por Oswald de Andrade em diversas ocasiões de seus textos sobre
antropofagia, esse modelo social consolida-se como os brasões do império
principalmente na segunda metade do século 19. Vale ponderar que o con-
servadorismo brasileiro tem muitas ligações com a tradição imperial que
102 LUCIO AGRA

confirmou e sustentou a interpretação oficial dessa pintura.


Aguilar e Cámara comentam esse quadro e como este imagina re-
trospectivamente a cena descrita por Pero Vaz de Caminha na carta sobre
o “descobrimento”, destinada ao império português. Caminha dará deta-
lhes sobre a primeira missa em terras brasileiras. Há uma razão para essa
103 LUCIO AGRA

Fig 1 Victor Meirelles. Primeira missa no Brasil, 1861, pintura a óleo, 298 x 356 cm.
Acervo: Museu Nacional de Belas Artes. Fonte: Wikipédia/internet.
escolha e, claro, ela impulsiona outras escolhas posteriores, como as de
Humberto Mauro no filme – justamente da década de 1930, da consolida-
ção do modelo modernista oficial –, ao repetir esta cena.
Pero Vaz de Caminha narra em detalhes a primeira missa em ter-
ras brasileiras: à maneira de procissão, levam a cruz e a colocam em um
lugar estratégico: “Chantada cruz com as armas e divisa de Vossa Alteza
(…) armaram Altar ao pé dela” (apud AGUILAR; CÁMARA, 2017, posição 5).
O altar impõe uma disposição espacial diversa do espaço indígena: fica ao
pé da cruz. Trata-se de marcar essa diferença do espaço e comunicá-la aos
nativos novamente: “e quando nos viram assim vir alguns se foram meter
debaixo dela a cruz para nos ajudar” (CAMINHA, apud AGUILAR; CÁMARA,
2017). Se a posse religiosa, dizem Aguilar e Cámara, faz uma qualificação
do espaço, a ciência cartográfica realiza medições quantitativas que são
fundamentais para apropriação e ocupação da terra incógnita.
No famoso quadro Primeira missa no Brasil, de 1861,

Vitor Meirelles imagina a cena retrospectivamente e dispõe os participan-


tes em uma série de círculos concêntricos claramente hierarquizados ao
redor da Cruz da qual Caminha fala. A cruz, que estabelece o espaço pi-
ramidal, ergue-se no centro e evidencia a transformação da natureza (a
madeira das árvores que rodeiam a cena) em sacralidade religiosa. Os dois
sacerdotes de branco estão situados no centro da composição: um adora a
cruz e o missal, o outro se ajoelha e abaixa a cabeça. Se a carta de Caminha
domina o território por meio da escrita (e isso se evidencia no uso inten-
sivo dos dêiticos), a missa se dirige aos outros mediante a performance da
liturgia (AGUILAR; CÁMARA, 2017, posição 5).

Curiosamente, a missa é algo também comentado por Gumbrecht em


relação a uma questão que aponta para a construção da noção de perso-
nagem no espetáculo ocidental. Embora possa parecer uma estranha co-
nexão, examinemos o exemplo da missa católica, usado para demonstrar
que na tradição do pensamento ocidental vai se formando progressiva-
mente uma ideia fundamental que está baseada naquilo que acontece na
missa. A missa é um grande acontecimento-pensamento medieval por-
104 LUCIO AGRA

que representa, de certo modo, um ritual que foi objeto de discussão pro-
funda e até de origem das próprias Universidades no mundo ocidental.
As disputatios medievais – que deram origem às universidades – eram
discussões feitas em conventos por estudiosos das escrituras em torno de
vários temas. Um deles é o “dogma da transubstanciação” performado
105 LUCIO AGRA

Fig 2 Cena do filme O descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro (1937).


na “hóstia consagrada”. A questão produziu um longo debate que ganha
novo sentido quando se passa a pensar não mais que Cristo está presente
ali, em carne e osso, mas que estaria sob a forma de representação simbó-
lica. A simbologia da representação evolui daí para se consolidar a partir
do Renascimento com algo que aparecerá principalmente nas peças de
Shakespeare – em particular em Hamlet – e que é a ideia de que alguém
está ali, em presença, no lugar de outro e esse alguém se chama “perso-
nagem” (GUMBRECHT, 2010, pp. 51-53).
Seria possível, portanto, dizer que aí se codifica o Espetáculo, carac-
terística do Ocidente no início da Modernidade, no Renascimento, tam-
bém início do processo de colonização.
Quando começam a balançar as bases da própria crença renascen-
tista, a partir do momento em que começa o processo da Reforma e Con-
trarreforma, a violência colonial se afirma de forma cabal. Nesse mesmo
contexto vem para o Brasil um teatro de corte medieval, de feitio medieval,
que é produzido aqui no âmbito da personificação da figura de Cristo.
O declínio da catequese não exclui a tática jesuítica que é admi-
ravelmente descrita por Eduardo Viveiros de Castro no célebre texto “O
mármore e a murta” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 183), partindo de um
sermão do Padre Antônio Vieira, que dá nome ao artigo, no qual este ar-
gumenta sobre a dificuldade de catequizar os “gentios”. Assim como no
relato de Caminha, os indígenas aparentavam total devoção a uma crença
natural nas coisas de Cristo. Ao mesmo tempo, causava escândalo aos je-
suítas que eles se vestiam, compareciam à igreja e tudo o mais, para depois
voltarem às suas práticas “pagãs”. Além disso, tinham dificuldade de se
afastar, por exemplo, de certos rituais fundamentais cuja importância era
deplorada pelos jesuítas. O alvo principal era o ritual da antropofagia. O
esforço na tentativa de afirmação da catequese acaba sendo sucedido pelo
processo violento de extermínio e de incorporação daquilo que já se ini-
ciara por força dos próprios europeus dentro da África e que seria o motor
da diáspora africana, vindo a dar no último país a extinguir a escravidão,
o que mais trouxe escravizados para seu território e o que por mais tempo
permaneceu nessa condição.
Obviamente nada disso escapou à percepção de Oswald de Andrade;
106 LUCIO AGRA

entretanto, quando se lê o manifesto – que, de resto, é muito difícil, é um


texto muito erudito – tendemos a ler nele principalmente os traços desse
modernismo militante que, no final das contas, vai ser depois relido por
Mário de Andrade como conquista da liberdade de expressão (o que soa irô-
nico, hoje em dia) e, ao mesmo tempo, como uma série de tropeços juvenis.
Esse mesmo modernismo é examinado por Oswald de Andrade de
uma forma completamente diferente, chamando a atenção inclusive para o
processo de oficialização do movimento, principalmente em um livro que
acaba de sair agora, um livro demolidor, o Diário confessional (ANDRADE,
2022). Esse volume ajuda a recuperar alguém que foi escanteado durante
boa parte de sua vida. E após ela terminar, ainda pelo menos dez anos mais.
Oswald ficou mais famoso por ser, como se dizia à época, um estroina, um
homem rico, cheio de terrenos, mulherengo etc., ou seja, um playboy. Esse
Oswald deixou de existir por uma circunstância que se passou na sua pró-
pria vida e que teve a ver com o acontecimento inclusive seguinte ao ano da
proclamação antropófaga: o crack da Bolsa de Nova York, junto com um
encontro amoroso que foi explosivo na sua própria vida. As coisas viraram
pelo avesso e, a partir daí, Oswald entrou num processo que é infelizmente
muito conhecido no Brasil: torna-se um não existente, alguém que era vis-
to como um uma pessoa que atrapalhava o bom funcionamento das coisas.
Não deixou, porém, de ter a sua verve irônica. Manteve isso e inclu-
sive, é bom que se diga, sem muito cuidado. Sabemos hoje de suas atitu-
des homofóbicas e racistas, inclusive em relação a Mário de Andrade. De
qualquer maneira isso não explica completamente o fato de que, a partir
de determinado momento, a sua figura tenha passado a atrapalhar o “coro
dos contentes”, sobretudo a partir dos anos 40, quando ele então abjurou
sua participação na militância comunista. São totalmente infundados os
comentários que têm sido feitos ultimamente a respeito de sua relação com
o Partido Comunista, como se o fato de ele não ter sido um filiado repre-
sentasse algo importante naquela situação. O importante a considerar se-
ria sua retomada de algo que, de fato, nunca abandonara, a Antropofagia,
como fica claro, aliás, no Diário confessional. Percebe-se isso pelos textos
da década de 30, nos quais defende a importância da antropofagia em ple-
na militância. Depois é que virá a “malograda” tese “A crise da filosofia
messiânica” para cuja proposição não o aconselharam, desmotivaram-no a
tentar a cátedra de professor na Universidade de São Paulo. Oswald perece
à doença e ao descrédito em 1954, também uma data geralmente desconhe-
cida; morre acreditando que seu trabalho tinha sido completamente es-
quecido, que ele teria perdido importância para alguém que durante a vida
107 LUCIO AGRA

toda continua admirando completamente: Mário de Andrade. Sobre isso,


há testemunhos dele próprio e de muitas pessoas que chamaram a atenção
para o fato de que ele tinha uma admiração imensa por Mário e, evidente-
mente, a briga entre os dois foi um equívoco completo da parte de Oswald.
Entretanto, é significativa, porque representa caminhos muito diversos.
Em um dos textos que publiquei recentemente sobre esse tema, des-
sa vez no Journal of Artistic Research (AGRA, 2021), falei da situação que
presenciei inúmeras vezes: o mal estar causado quando se discute Antro-
pofagia fora do contexto brasileiro. Hoje falamos mais do sentido ritual
da antropofagia, a ideia consubstanciada na noção de vingança dos Tupi-
nambás, que Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha
descrevem em um texto admirável (VIVEIROS DE CASTRO; CARNEIRO DA
CUNHA, 1985). A ingestão, no ritual, possui uma perspectiva animista. Tra-
ta-se de adquirir as forças do inimigo apresado. Quando se fala disso fora
do Brasil, o argumento é lido sempre como afirmação do Raubentier, do
“homem lobo do homem”, que procede de Nietzsche, filósofo que Benedi-
to Nunes adverte estar por trás de tudo que Oswald escreveu e não é nem
uma vez citado por ele (NUNES, 2011, p. 28).
O que ele mesmo chamou de “baixa antropofagia”, o canibalismo
banal, de sobrevivência, não é em absoluto aquilo que pretendia Oswald
de Andrade. Fez essa diferenciação, de resto difícil de compreender no am-
biente europeu e americano-do-norte. Acredito que em grande parte isto
se passa porque toda essa fundação da metafísica ocidental que é descrita
por Gumbrecht, ancorada na modernidade ocidental baseada em algumas
premissas que tornam impossível ou que interditam completamente, “ra-
suram” – para usar uma expressão que agradaria a Haroldo de Campos
– esse “estigma”2 da devoração antropofágica. Haroldo de Campos chama
atenção inclusive para o fato de que o indígena de Oswald de Andrade
não é aquele do bom selvagem, mas é aquele que devora o outro. Diz isso
saborosamente no texto que já citei, o próprio Oswald devorando Blaise
Cendrars, antes que o suíço pensasse que o tinha devorado (CAMPOS, 1992).
Retomando o que citei no início, acho que há um possível esforço
para ser feito por parte do Brasil, por uma formulação decolonial interes-
sante, embora diferente daquelas anteriores.
108 LUCIO AGRA

2 Penso nesse termo próximo da noção desenvolvida por Erving Goffman em seu
famoso livro (GOFFMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982, tradução de Mathias Lambert).
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Oswald de. Diário confessional.


Organização de Manuel da Costa Pinto.
São Paulo: Cia das Letras, 2022.
AGUILAR, Gonzalo; CÁMARA, Mario. A
máquina performática: a literatura
no campo experimental. Rio
de Janeiro: Rocco, 2017. Coleção
Entrecríticas (e-book).
AGRA, Lucio. Devorar o outro. Journal of
Artistic Research – Reflection, 2021.
Disponível em: https://jar-online.
net/pt/devorar-o-outro. Acesso em
30 ago. 2022.
AGRA, Lucio. A síntese imprevista.
Curitiba: Medusa/Casa das Rosas, 2022.
CAMPOS, Haroldo de. Da razão
antropofágica: diálogo e diferença na
cultura brasileira. In: Metalinguagem
& outras metas. São Paulo:
Perspectiva, 1992.
NUNES, Benedito. A antropofagia ao
alcance de todos. In: ANDRADE,
Oswald de. A utopia antropofágica.
São Paulo: Globo, 2011.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A
inconstância da alma selvagem. São
Paulo: Cosac & Naify, 2002.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Encontros:
Eduardo Viveiros de Castro.
Organização de Renato Sztutman. Rio
de Janeiro: Azougue, 2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.
Metafísicas canibais: elementos para
uma antropologia pós-estrutural. São
Paulo: Cosac & Naify/N-1, 2012.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; CARNEIRO
DA CUNHA, Manuela. Vingança e
109 LUCIO AGRA

temporalidade – os tupinambás. In:


Anuário Antropológico 85, Brasília,
UNB, 1985. Disponível em: http://
biblioteca.funai.gov.br/media/pdf/
Folheto38/FO-CX38-2354-97.PDF.
Acesso em 17 ago. 2022.
Novas considerações sobre o Exu-Mefistófeles
do Museu da Polícia Civil/RJ: biografia, autoria
partilhada, apropriação “reversa”
ARTHUR VALLE
Docente na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ

1. No presente texto eu retomo, aprofundo e amplio a discussão sobre uma


obra da qual tratei no passado (VALLE, 2016; VALLE, 2017). Trata-se de uma
estatueta que, ao menos desde meados dos anos 1930, foi identificada como
representando o orixá iorubano Exu. Ela pertencia ao Museu da Polícia Ci-
vil do Estado do Rio de Janeiro e desapareceu após um incêndio ocorrido
em 1989, quando o museu estava instalado em um prédio na Rua Frei Cane-
ca, centro do Rio de Janeiro. Nas figuras que pontuam esse texto, apresento
seis fotos da obra publicadas na imprensa entre finais dos anos 1920 e 1950.
Quando escrevi os textos mais antigos, o fato de não ter acesso à
estatueta e a carência de fontes documentais sobre ela limitaram minhas
considerações. Nos últimos anos, porém, com a ampliação da investigação,
que contou com ajuda de outros colegas pesquisadores1, tomei conheci-
mento de uma série de antigas reportagens discutindo a obra. Isso me per-
mite hoje detalhar bem mais o processo de sua criação e o modo como ela
agia em seu contexto de exibição original.
Exu é o orixá mensageiro do povo iorubá, sem a participação do
qual, como resume Reginaldo Prandi (2001, p. 21), “não existe movimento,
mudança ou reprodução, nem trocas mercantis, nem fecundação biológi-
ca”. Mas Exu é bem mais do que isso: trata-se possivelmente da divindade
mais complexa do panteão iorubá, sobre a qual muito foi escrito (ver, por
exemplo: VERGER, 2002; LOPES, 2011; SILVA, 2015). Não haveria espaço e não
seria o caso de aqui tentar caracterizá-lo detalhadamente, em parte porque
a estatueta que pertencia à Polícia Civil se afasta das representações do ori-
xá que encontramos nas tradições africanas (ver, por exemplo: WESCOTT,
1962; PARSONS, 1999; CHEMECHE, 2013).
Nela facilmente se podia reconhecer, antes, o demônio Mefistófeles,
um personagem da lenda de Fausto, o erudito que vende sua alma em tro-
111 ARTHUR VALLE

ca de sabedoria e prazer. Segundo Jeffrey Burton Russell (1988, pos. 368), o

1 Nesse sentido, gostaria de agradecer a Alexander Martins Vianna, Eduardo Possidonio


e Leopoldo Tauffenbach, que me apresentaram algumas das reportagens que vou citar
neste trabalho.
nome Mefistófeles é “uma invenção puramente moderna, de origem incer-
ta”, que aparece pela primeira vez em um livro dedicado a Fausto, publica-
do por um autor anônimo alemão em 1587.
A europeização de Exu aqui em questão deriva, grosso modo, de uma
interpretação etnocêntrica da divindade feita por europeus que entraram
em contato com seus cultos na África Ocidental, ainda no século XIX (VALLE,
2016, § 17). A literal demonização de Exu desde então verificável se assen-
ta, portanto, na violenta colonização europeia da África. Mais precisamente,
porém, ela está ligada ao papel de Exu como agente punitivo na mitologia
iorubá e naquilo que os europeus interpretaram como seu caráter amoral.
Como lembrou Nei Lopes (2011, pos. 10206), esses traços levaram “muitas
pessoas, especialmente missionários católicos europeus, a identificá-lo com
o Diabo dos cristãos ou com o Shaitan dos muçulmanos”.
No Brasil, especialmente no primeiro quartel do século XX, a demo-
nização de Exu foi reiterada e alcançou grande difusão em denominações
afro-brasileiras, como a macumba, a umbanda ou a quimbanda. Com
efeito, para aqueles familiarizados com tais denominações, representa-
ções de Exu que assumem e ressignificam esse processo de demonização
não surpreendem (MOURÃO, 2012; VIEIRA ANDRADE, 2017). “Lúcifer” ou
“Belzebu”2, por exemplo, são manifestações, ou qualidades, conhecidas
de Exu, que incorporam atributos iconográficos muito associados com o
Diabo na iconografia cristã – especialmente o tridente, que se torna um
correlato da encruzilhada de Exu, também conhecido como o senhor dos
caminhos (THOMPSON, 2021, § 87) –, bem como traços derivados de dife-
rentes tradições da magia.
Esses Exus já não seriam mais – ou, pelo menos, não seriam exata-
mente – o Exu dos iorubás. São o resultado de um processo complexo de di-
fração, refração, espelhamento, sobreposição e fusão de imagens de origens
por vezes muito díspares. Tal processo se deu no espaço alargado das Amé-
ricas afetadas pela diáspora de escravizados africanos. Nesse espaço, Exu –
famoso pela sua incessante capacidade de transformar a si mesmo –, ganhou,
nos dizeres de Vagner Gonçalves da Silva (2013), muitas novas faces.
Se a estatueta que aqui designo como Exu-Mefistófeles está ligada
a uma tradição iconográfica reconhecível, ela simultaneamente comporta
112 ARTHUR VALLE

singularidades que merecem uma discussão específica. No que se segue,


recensearei, de modo mais detido, as informações que sobre ela aparecem

2 Imagens contemporâneas de “Exu Lúcifer” e “Exu Belzebu” são comercializadas, por


exemplo, pela fábrica Imagens Bahia. URL: https://www.imagensbahia.com.br/Exus.
na imprensa do Rio de Janeiro até meados do século XX, mas também pro-
blematizarei, de modo mais rápido, questões relativas à sua autoria e ao
modo como ela foi apropriada no seu contexto religioso original.

2. Gostaria de esboçar uma biografia do Exu-Mefistófeles, ao menos da


que pode ser depreendida a partir de sua presença na imprensa carioca
desde final dos anos 1920. Se a demonização de Exu se assenta na dinâ-
mica colonial, aquilo que sabemos sobre a estatueta do Museu da Polícia
deriva de outro tipo de violência: a repressão policial contra as religiões
afro-brasileiras, que foi intensa durante as primeiras décadas da República
brasileira (MAGGIE, 1992).
Com efeito, a primeira referência à obra que encontrei está em uma
reportagem publicada em O Globo de 11 de junho de 1929, que noticia uma
batida policial, ordenada pelo Delegado Antonio Augusto de Mattos Men-
des, em uma “macumba” localizada no bairro do Encantado, Zona Norte do
Rio. O autor anônimo da reportagem assim descrevia o rito ali reprimido:

A “macumba” de que tratamos é uma das mais curiosas das visitadas nos
últimos tempos. Estão filiadas à mesma pessoas de certo relevo social,
como a autoridade se convenceu, principalmente pelo encontro, entre os
numerosos objetos apreendidos, de um bronze artístico de J. Gauthier [sic]
representando o lendário Mefistófeles (ANÔNIMO, 1929a, p. 1).

Embora fosse já notada por João do Rio ([1906]) em sua etnografia dos lo-
cais de culto afro-brasileiros nos anos 1900, a participação de “pessoas de
certo relevo social” no culto parece ter perturbado o repórter. A estatueta
aqui em questão seria evidência disso e ela aparece na foto que acompanha
a reportagem [Figura 1a]. A reprodução de que disponho é de má quali-
dade – trata-se de uma digitalização a partir da microfilmagem do jornal
original –, mas ela permite intuir um conjunto heterogêneo de objetos de
culto – o “arsenal da macumba,” como reza a legenda da foto –, do qual se
destaca, ao centro e ao topo, a estatueta de Mefistófeles.
O repórter identificou com precisão o personagem representado, bem
113 ARTHUR VALLE

como a materialidade e a autoria da estatueta: de fato, tratava-se de uma mol-


dagem em bronze criada pelo escultor francês Jacques-Louis Gautier. Segun-
do o historiador da arte francês Alain Bonnet3, pouco se sabe sobre Gautier,

3 Alain Bonnet, comunicação pessoal via e-mail, 08 dez. 2020.


114 ARTHUR VALLE

Fig 1a Legenda original: “O ‘arsenal’ da ‘macumba’, vendo-se ao alto,


predominando dentre as bugigangas, o irônico Mefistófeles”. Fonte: ANÔNIMO, 1929a.
Fig 1b Legenda original: “O Lúcifer de olhos de fogo...” Fonte: PRESTES, 1929.
que nasceu em Paris em dezembro de 1831 e foi aluno de François Rude. Ele
participou dos salons de arte parisienses entre 1850 e 1868, expondo prin-
cipalmente bustos e objetos decorativos. O modelo de seu Mefistófeles re-
montaria a 1853, e Gautier o exibiu na Exposição Universal de Paris, em 1855,
onde a peça chamou atenção. Na obra de Gautier, o gosto por personagens
funestos e a evocação das forças do mal derivaria do chamado romantismo
francês. Bonnet aproxima o pequeno bronze de uma conhecida escultura de
Satã, feita em 1833 por Jean-Jacques Feuchère, assim como da ópera Fausto,
de Charles Gounod, que também data de meados do século XIX.
A batida policial no Encantado seria relembrada, poucos meses de-
pois, em uma reportagem publicada em O Malho, assinada pelo repórter
Walter Prestes (1929). Esse texto revela detalhes preciosos sobre o culto en-
tão reprimido pela polícia, precisando que seu endereço era na Rua Ber-
nardo, número 245. Ali se praticava, segundo Prestes, a “Linha do Fogo,”
denominação que dá título à reportagem e era assim definida: “A Linha do
Fogo, em magia Negra, é a mais temível, aquela onde se enfileira os que só
desejam o mal do próximo” (PRESTES, 1929, p. 38).
O dirigente do local de culto também era identificado: ele se chama-
va Alvaro Pessôa. Não era a primeira vez – e não seria a última – que seu
nome figurava nas notícias ligadas à repressão policial. Cerca de dois anos
antes, em outubro de 1927, outro local de culto por ele dirigido – localizado
na mesma Rua Bernardo, mas em um outro número – já havia sido devas-
sado pela polícia. No final de 1929, o nome de Alvaro Pessôa seria lembra-
do ao menos mais uma vez, em reportagem no jornal Crítica, onde ele era
qualificado como nada mais, nada menos que “o rei dos Pais de Santo do
Distrito Federal” (ANÔNIMO, 1929b, p. 8)
As fotos em O Malho também são reveladoras. A primeira apresenta
a estatueta em destaque, quase isolada [Figura 1b]; a segunda é uma repro-
dução, de melhor qualidade, do clichê publicado em O Globo meses antes.
Prestes identifica, com precisão, a “estatueta em bronze […] de autoria de
Gautier”, mas nela reconhece “um Lúcifer de olhos de fogo” – e não Mefis-
tófeles. Na segunda foto, podemos ter uma ideia melhor da heterogeneidade
dos objetos de culto empregados por Alvaro Pessôa: conchas, chifres, penas
de pavão, crânios, quadros, peles de animais, tridentes, cruzes, estrelas…
115 ARTHUR VALLE

Alguns anos depois da batida de 1929, uma nova foto da estatueta


foi publicada na primeira página de O Globo de 23 de novembro de 1934
[Figura 2a]. Parte da história de sua apreensão fora já esquecida, com o
repórter anônimo afirmando, erroneamente, que ela fora encontrada em
“uma ‘macumba’ perdida nos socovões da Pavuna” (ANÔNIMO, 1934, p. 1).
Mas o pequeno texto, ironicamente intitulado “Mefistófeles turista”, dis-
corria com eloquência sobre como os significados do personagem da lenda
de Fausto se alteraram drasticamente desde sua origem, na Alemanha, até
aquele momento, quando sua efígie decorava a mesa do então Delegado
Dulcídio Gonçalves, na 1ª Delegacia Auxiliar do Rio de Janeiro. A inter-
pretação desse trânsito de significados era, porém, crivada pelo racismo
religioso, então corriqueiro em relação aos cultos afro-brasileiros: o repór-
ter de O Globo só conseguiu interpretá-lo como um movimento de profa-
nação do valor que Mefistófeles gozava na literatura mundial.

3. Até aqui, fiz referência a reportagens que identificavam a estatueta que


pertencia a Alvaro Pessôa como Mefistófeles (ou Lúcifer). Porém, uma
enorme mudança com relação a sua interpretação iconográfica pode ser
vista em uma reportagem publicada em A Noite, em 20 de outubro de 1936.
Trata-se, novamente, de um texto não assinado, que se destaca por ser, pos-
sivelmente, a primeira descrição da coleção de arte sacra afro-brasileira
aprisionada pela Polícia Civil. Naturalizando a violência da repressão, o
repórter assim descreveu essa coleção e seu método de constituição:

[…] está encerrada num pequeno museu existente no Palácio da Relação,


na Seção de Repressão à Magia Negra e às Mistificações. Organizou-o o
chefe do serviço, o comissário Alfredo Lyrio, com extrema dedicação e ca-
rinho. Cada vez que a polícia descobria um “terreiro”, objetos de adorno e
de culto eram apreendidos, enriquecendo paulatinamente os mostruários
da coleção (ANÔNIMO, 1936, p. 1).

A primeira peça do “museu” a ser discutida era justamente a estatueta


apreendida no local de culto de Alvaro Pessôa. A própria instalação da
coleção parecia concorrer para tal prioridade, como deixa entrever a
seguinte descrição:

Quem entra no recinto do pequeno museu, tem logo sua atenção desper-
tada para uma espécie de nicho, existente entre as duas janelas do fundo.
116 ARTHUR VALLE

Destacando-se entre os dois pedaços de céu, aparece a entidade máxima


da linha de Malei, o terrível Eixú [sic], com sua envergadura angulosa, es-
guia, sua capa negra, a espada pendente da cinta, o cavanhaque bipartido e
os olhos incandescentes. É o gênio que gargalha! (Idem, grifos meus)
117 ARTHUR VALLE

Fig 2a Não legendada na publicação original. Fonte: ANÔNIMO, 1934.


Fig 2b Legenda original: “Eixú Entidade Máxima da Linha de Malei”. Fonte:
ANÔNIMO, 1936.
Vale frisar, portanto, que o repórter de A Noite identificou explicitamente
a estatueta de Gautier como uma divindade de matriz africana – algo que
não ocorria nas reportagens anteriores. A foto da obra estampada em A
Noite corrobora sua descrição, exibindo, inclusive, a plaqueta que então a
acompanhava, na qual se podia ler “Eixú Entidade Máxima da Linha de
Malei” [Figura 2b]. Nessa foto, a estatueta aparece sem a capa que a cobria
nos registros de 1929 e 1934.
A coleção de objetos sacros afro-brasileiros que, em sua origem, fora
organizada pelo Comissário Alfredo Lyrio, se tornaria célebre. Em 5 de
maio de 1938, ela foi inscrita no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográ-
fico e Paisagístico da Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN). Durante décadas, ela ficou conhecida pelo infame nome
“Museu de Magia Negra,” e era vinculada à Seção de Tóxicos, Entorpecen-
tes e Mistificações da 1ª. Delegacia Auxiliar da Polícia Civil do então Dis-
trito Federal (MINISTÉRIO, 1938-1992).
Em 1940, a pedido de Rodrigo Mello Franco de Andrade, diretor do
SPHAN, o Delegado Demócrito de Almeida elaborou uma lista dos objetos
que compunham o “Museu de Magia Negra”. Mais uma vez, a peça que
viemos discutindo surge aí em destaque. A segunda entrada dessa lista é
justamente: “1 estatueta representando Mefistófeles (Eixú), entidade má-
xima da Linha de Malei” (MINISTÉRIO, 1938-1992, fº 7 rº). Ou seja, na lista
elaborada para o SPHAN, a peça é simultaneamente identificada como o
personagem originalmente figurado por Gautier e como o orixá iorubano.
Diferentemente de outras peças sequestradas pela polícia em locais de
culto afro-brasileiros que eram mostradas na imprensa e logo esquecidas, o
Exu-Mefistófeles continuou a aparecer em fotos da imprensa muito tempo
depois de seu encarceramento. Reportagens dos anos 1950, por exemplo, tes-
temunham o fascínio que a obra continuou despertando entre aqueles que
tinham oportunidade de conhecer a coleção da Polícia Civil. Abaixo, apre-
sento dois exemplos. A Figura 3b nos dá, inclusive, uma ótima ideia da escala
da estatueta, e o semblante da rapariga que a abraça parece reiterar o seu po-
der de sedução. Vale também destacar uma segunda inflexão na forma como
a obra é designada nas legendas dessas fotos, passando a incorporar – a meu
ver, de modo algo arbitrário – algumas das qualidades usuais de Exu, como
118 ARTHUR VALLE

“Tranca-Rua” (MORAIS, 1953) ou “7 capas” (DUTRA, 1959).


É justamente com essa última designação – “Exu Sete Capas” – que
a estatueta aparece no último documento que eu gostaria de citar nessa
parte. Trata-se de um relatório de pesquisa que Yvonne Maggie, Marcia
Contins e Patrícia Monte-Môr entregaram à Fundação Nacional de Artes
119 ARTHUR VALLE

Fig 3a Legenda original: “A imagem de Exu talhada na madeira [sic] e


ameaçadora”. Fonte: CARLOS, 1956.
Fig 3b Legenda original: “Exu 7 capas, padroeiro dos falsários”. Fonte:
DUTRA, 1959.
(Funarte) em 1979. Esse é um documento cuja discussão não tenho espaço
para detalhar aqui. Registro apenas que ele em boa medida se centra na
discussão da instalação das coleções da Polícia Civil no prédio da Rua Frei
Caneca, em finais dos anos 1970. Esse relatório era acompanhado por mui-
tas fotos, feitas pelo artista Luiz Alphonsus, e uma delas mostra um close-
-up da cabeça do Exu-Mefistófeles (MAGGIE; CONTINS; MONTE-MÔR, 1979,
Anexo p. 9). As fotos de Alphonsus foram mais recentemente reproduzidas,
em cores, em um artigo assinado por Maggie e Ulisses Neves Rafael, e ali
aparecem os dois últimos registros da estatueta de que tenho notícia (MA-
GGIE; RAFAEL, 2013, foto 2 e 3). Cerca de dez anos depois, como adiantei,
a obra desapareceu após um incêndio ocorrido no prédio que abrigava o
Museu da Polícia.

4. Nos documentos citados até agora, algo notável é a maneira como a iden-
tificação iconográfica da estatueta foi se alterando. Nas primeiras reporta-
gens, ela era identificada como “Mefistófeles”, ou “Lúcifer”; ao ser exibida
pela Polícia Civil, exclusivamente como “Exu”; na lista do “Museu de Ma-
gia Negra,” de 1940, simultaneamente como “Mefistófeles” e “Exu”. Depois
disso, a identificação parece se estabilizar e a peça passa a ser designada
somente como “Exu”, nome por vezes acompanhado de qualidades da di-
vindade, como “Tranca-Rua” ou “7 capas”.
Uma questão relevante que essa variação na denominação da esta-
tueta levanta é a seguinte: será que Alvaro Pessôa e seus fiéis realmente a
identificavam como Exu em seu local de culto? Há evidências que me le-
vam a responder “sim” a essa pergunta. A principal delas se encontra em
uma reportagem de O Globo em 11 de outubro de 1927, que relata outro ato
de repressão policial que se abateu sobre Alvaro Pessôa, ao qual já me refe-
ri, acima. Também desta feita ele teve uma pletora de seus objetos de culto
apreendidos. Entre estes, “foram encontrados sobre as bases das imagens,
muitos bilhetes, em que [os fiéis] pediam vários favores aos santos” (ANÔ-
NIMO, 1927). Ao menos um destes bilhetes mencionava explicitamente Exu.
O repórter de O Globo assim o transcreveu: “Na fé do vosso poder entrego
Diomar para que auxilie Beatriz no que pedir e precisar. Na fé da magia
120 ARTHUR VALLE

preta confio que se façam encontrar os mesmos. Desviado seja Amador de


tudo que quiser fazer contra Beatriz. Echú [sic]” (Idem).
Sem mais dados, é difícil interpretar este bilhete, que parece vincu-
lado à resolução de um litígio – talvez, de caráter amoroso. Mas a referên-
cia a Exu – que, simultaneamente, parece ser invocado e assinar o bilhete
– indica que ele era conhecido e demandado por Alvaro Pessôa e seus fiéis.
Isso corrobora a ideia de que a identificação de Mefistófeles como Exu já
ocorreria antes de aparecer explicitamente na placa que acompanhava a
estatueta quando ela era exibida pela Polícia Civil.

5. Encerrando este texto, eu gostaria de indicar algumas implicações que


a discussão do Exu-Mefistófeles delineada até aqui me parece ter quando
pensamos na escrita da história da arte. No Brasil, essa ainda costuma ser
feita, em grande medida, seguindo parâmetros de origem norte-atlântica
(ELKINS, 2021). Julgo, porém, que o Exu-Mefistófeles desestabiliza explici-
tamente ao menos duas categorias que são usuais nessa forma de pensar a
disciplina, e gostaria de rapidamente discorrer sobre isso.
A primeira dessas categorias tem a ver com a própria autoria da
obra. Se, aparentemente, Alvaro Pessôa ressignificou o Mefistófeles de
Gautier como Exu, a ressignificação da estatueta em termos materiais foi
igualmente notável. Entre outras intervenções, ele policromou a superfí-
cie original de bronze, como era ainda possível constatar nas fotos tiradas
por Luiz Alphonsus nos anos 1970. Em 1929, pouco depois da estatueta
ter sido apreendida pela polícia, um repórter de O Globo descreveu a sua
policromia em detalhes:

O calção foi pintado de vermelho; o gibão, o capuz e os sapatos, de preto; as


mãos e a cara cor de carne; o “cavaignac” igualmente de preto…
O pedestal, sobre o qual o artista [Gautier], cioso do seu nome e
envaidecido do seu trabalho, firmou o apelido, [Alvaro Pessôa] mandou
cobri-lo de tinta verde, sobre o qual aspergiu bronze em pó (ANÔNIMO,
1929a, p. 1).

Pessôa também implementou um engenhoso dispositivo a fim de poten-


cializar a agência da estatueta sobre seus fiéis. Foi Walter Prestes quem
descreveu isso:

Alvaro Pessôa fez um rombo nas costas da estátua, a fim de introduzir


121 ARTHUR VALLE

uma lâmpada vermelha no interior da cabeça. Furados os olhos, a boca


e o nariz, a luz, desde que o feiticeiro faça funcionar uma pilha elétrica,
mediante um movimento despercebido, causa fortíssima impressão aos
crentes, que veem no fogo a manifestação do diabo em seu favor (PRESTES,
1929, p. 38).
Em resumo, Alvaro Pessôa promoveu tantas alterações no significado e
aspecto do bronze original que só me resta reconhecer, no resultado final,
o que gostaria de designar como uma autoria partilhada. Nesse sentido, eu
proporia que a imagem de Exu-Mefistófeles aqui discutida era “assinada”
simultaneamente por Gautier e por Pessôa.

6. A segunda categoria usada por historiadores da arte que o Exu-Mefis-


tófeles me parece desestabilizar é a de apropriação. Eu a entendo aqui em
um sentido restrito, que é, todavia, comum na história da arte de matriz
norte-atlântica, e que recoloca em xeque as noções de originalidade e au-
tenticidade, que nela costumam ser centrais:

[Aproprição é] o uso de objetos ou imagens pré-existentes, e pouco mo-


dificadas. […] Até certo ponto, a história da arte mostra que até mesmo
os artistas mais inovadores geralmente tomaram emprestadas imagens de
seus antecessores. Basta pensar nas “apropriações” de Ticiano e Velázquez
feitas por Manet. No entanto, a questão toma um rumo muito mais radi-
cal no início do século XX, com a técnica da colagem e os ready-mades de
Marcel Duchamp (CHILVERS & GLAVES-SMITH, 2009, p. 94).

Há muito, os especialistas em arte e o público geral estão acostumados com


o fato de objetos – inclusive os sacros – serem apropriados por artistas e
em seguida exibidos, mais ou menos modificados, em espaços do campo
institucionalizado da arte. Um exemplo brasileiro bem conhecido é a insta-
lação de Nelson Leirner intitulada O cortejo (2009), pertencente ao Museu
Afro-Brasil, em São Paulo. Nessa obra de grandes dimensões, pontuada por
miniaturas de bandeiras do Brasil e sobre a qual bananas artificiais ficam
suspensas, vemos uma espécie de desfile composto por dezenas de estatuetas
em gesso de entidades espirituais e santos católicos que fazem parte do pan-
teão de religiões afro-brasileiras, como a umbanda. Não por acaso, são esta-
tuetas de diversas qualidades de Exu que abrem os caminhos de tal “cortejo”.
O que Alvaro Pessôa fez com a estatueta de Mefistófeles de Gautier
embaralha, porém, o sentido dos deslocamentos que estruturam uma obra
122 ARTHUR VALLE

como a de Leirner. Eu proporia designar seu gesto como uma apropriação


“reversa”: Pessôa se apropriou de uma obra reconhecida pelos seus contem-
porâneos como inequivocamente artística – derivada não da religião, mas
da tradição literária europeia – e, após nela interferir de diversas maneiras,
inseriu-a e a fez circular em um ambiente sacro afro-brasileiro.
Como vimos, tal ato de apropriação “reversa” foi visto como uma
provocação e gerou reações escandalizadas. Isso fica claro não apenas no
fato da obra ter sido encarcerada pela polícia, mas também no modo como
ela feriu a sensibilidade estética eurocentrada de alguns de seus primeiros
comentaristas. Estes só conseguiram interpretar o gesto de Pessôa como
profanação e rebaixamento de valores artísticos europeus, e não de acordo
com o que ele provavelmente significava: a efetiva sacralização de Mefistó-
feles, como uma espécie de qualidade de Exu, na “macumba” carioca dos
anos 1920.
No meu entender, o Exu-Mefistófeles nos incita a desobedecer epis-
temologicamente (MIGLOLO, 2009), de forma profunda, os discursos e o
cânone da história da arte como é usualmente escrita no Brasil. Tal qual
muitas obras que circulam nos terreiros e em outros contextos Brasil afora,
ele dialoga polemicamente e transcende parâmetros artísticos formulados
a partir de uma visada centrada apenas na Europa e nos Estados Unidos.
Sua reconsideração no presente texto procurou contribuir para que elabo-
remos novas e mais potentes formulações dentro da disciplina.

123 ARTHUR VALLE


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Imagens ancestrais:
práticas, representações e cura na arte
SHEILA CABO GERALDO
Docente no Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – ART/UERJ

O impulso vital desta escrita passa pela identificação e problematização


da relação entre as imagens e as manifestações de ancestralidade na arte,
o que nos leva a especular sobre os princípios imagéticos relacionados a
tradições grupais ou singulares, mas também a princípios de conexão en-
tre o passado e o presente. Dessa maneira, é fundamental esclarecer que
estaremos tratando do sentido de ancestralidade como campo espiritual
africano, que não se reduz apenas a fatores religiosos ou de memória ge-
nética e transgeracional, atingindo um horizonte ontológico e existencial,
que caracteriza a organização das sociedades africanas e afrodiaspóricas,
como uma espécie de práxis filosófica.
Compreendendo que a ancestralidade se manifesta no fazer, no saber,
na memória, nos ritos e nas práticas múltiplas e diversas das comunidades
tradicionais, há que reconhecer o fato de que as imagens ancestrais tam-
bém são imagens-respostas ao histórico de violências sofridas no período
de escravidão afrodiaspórica, que se estende, como rastros traumáticos,
aos dias atuais. Assim, a afroancestralidade seria um vínculo étnico-cul-
tural, um vínculo que liga experiências vividas, seja nos saberes cultuados,
seja no trabalho, na espiritualidade ou na própria cultura grupal. Como
escrevem Alves e Garcia-Felici (2021, p. 8), entende-se “a ancestralidade
como um veio de ligação dos povos, das lutas, das perspectivas, num pro-
cesso humano de ressignificação das violências sofridas e dos ideais igual-
mente compartilhados”.
É como ressignificação das violências sofridas que encontramos as
ações artísticas de Dalton Paula, artista goiano, que abre, crítica e ironica-
mente, a narrativa histórica para as contradições da diáspora na arte, tanto
do passado quanto do presente. Dalton faz contumaz crítica da história
127 SHEILA CABO GERALDO

por meio de performances, vídeos e pinturas, das quais destaco a tela A


rede, que, na medida do contraditório exposto, organiza uma contranar-
rativa da história do período escravocrata e das vidas escravizadas. Nes-
sa pintura, de dimensões reduzidas, a imagem, ainda que similar às das
aquarelas de Jean-Baptiste Debret, no século XIX, desliza semanticamente,
chegando à crítica decolonial. Afinal, quem são esses escravizados que, ao
carregar a rede, lhe impedem o deslocamento, paralisando o andar e a
128 SHEILA CABO GERALDO

Fig 1 Dalton Paula. A rede, óleo sobre tela, 80 x 120 cm, 2016.
exploração escravista, posto que os dois homens, segurando a mesma has-
te de bambu que suspende a rede, andam em direções opostas, travando a
ação? Agem aqui acionando uma espécie de imagem-resposta, rebelde, que
impede, ou perturba, a continuação da relação de escravização. A pintu-
ra, absolutamente questionadora do tempo colonial-escravagista, destaca
o tempo passado, que não se resolveu, e, assim, a exploração presente, mui-
tas vezes mais brutal.
Em uma sociedade de permanência do colonialismo-racista como
a nossa, onde perduram os traumas remanescentes do período colonial-
-escravista e pós-escravista, instaura-se a necessidade de restauração dos
saberes ancestrais, que funcionam como possibilidade de cura das maze-
las herdadas. Para cada ferida, Paula propõe um fármaco que leve à cura,
ainda que no nível de imagens simbólicas. Mais do que identificar dores e
culpados, Dalton propõe “realidades subjetivas emancipadoras” (REBOU-
ÇAS, 2020, p. 193). É assim que ele cria o Unguento, título de uma de suas
obras, uma “garrafada” que o artista prepara com cachaça e erva-da-guiné.
A cura, que está interseccionada com a ancestralidade, vai ser uma
das grandes buscas do artista. Suas pinturas sobre capas de livros e enci-
clopédias, que compõem exatamente a série A cura, de 2016, criam, por
montagem, cenas relembrando imagens de saberes tradicionais, que reme-
tem ao processo de cuidado. Numa narrativa inversa às das enciclopédias
– que ignoram as experiências ancestrais afro-brasileiras –, as pinturas de
Dalton carregam ali o mistério dos benzimentos, das ervas e das rezas do
povo preto. No vídeo Do silencio à cura, o artista se refere a um fio con-
dutor nesse trabalho, que seria o dos corpos silenciados do homem e da
mulher negro/a, corpos enfermos, por sofrimento e pela dor da exclusão,
mas fala, também, a respeito de outro fio condutor: a possibilidade de cura
ao retomar os rituais e as plantas usadas nas práticas religiosas de matriz
africana e indígena, que Dalton chama de “herbário negro”.
Em 2017, por ocasião da mostra Histórias afro-atlânticas, no Museu
de Arte de São Paulo, Dalton Paula pinta, a pedido, os retratos de Zeferina,
129 SHEILA CABO GERALDO

líder do Quilombo do Urubu (BARBOSA, 2015), em Salvador, e de João de


Deus, um dos participantes na Revolta dos Búzios, que, por incentivar uma
revolução, também na Bahia, foi condenado e enforcado em 1798.1 Esses são

1 Revolta dos Búzios, 220 anos. Orquestrada por negros escravizados, libertos,
trabalhadores pobres e alguns membros das elites brancas liberais, a Revolta dos Búzios
teve seu estopim no dia 12 de agosto de 1798. Salvador amanheceu com 12 boletins
afixados em locais públicos e de grande circulação de pessoas, convocando o povo à
130 SHEILA CABO GERALDO

Fig 2 Dalton Paula. A cura, óleo sobre enciclopédia, oito livros, 2016 (detalhe).
dois exemplos de uma série de retratos pintados pelo artista de personali-
dades da história oral negra, cujas fisionomias nem sempre são conhecidas.
Criador do que poderíamos denominar imagens de resistência, nes-
sas pinturas de Dalton há, deliberadamente, uma busca imaginária de
dignidade das personalidades esquecidas ou quase esquecidas. São, como
afirma o artista, retratos do desejo de protagonismo, tal qual alcançavam
nas lutas antiescravistas e pela liberdade. O artista procura criar imagens
não das condições degradantes dos escravizados, ou libertos submissos,
mas de homens e mulheres fortes e dignos, que assim mereciam ser imagi-
nados, como é o caso de Zumbi dos Palmares, e até mesmo de Machado de
Assis, negro embranquecido pelas fotografias do século XIX. Dalton rompe
com os estereótipos dos rostos e dos corpos negros e, como escreveu a an-
tropóloga e curadora Lilia Moritz Schwarcz (2020-2021), “sequestra as al-
mas desses homens negros, restituindo-lhes, nos retratos, a subjetividade
digna de figuras silenciadas pela história”.
O desejo de desfazer o apagamento histórico está também na imagem
de Daniel de Araújo (LAURIANO; GOMES; SCHWARCZ, 2021, p. 147) criada para a
Enciclopédia negra. O retrato de Daniel − quilombola do século XIX, liderança
da Revolta de Viana, no Maranhão, nos anos 1860, que planejara uma insur-
reição articulando mocambos e senzalas − segue a poética de imagens revolu-
cionárias criadas pelo artista, ou seja: olhar direto, rosto marcado por linhas
brancas, correspondentes, como explica Dalton, aos espaços vazios, que nos
convocam a complementá-los, cabelos dourados como uma coroa, pele de co-
bre, roupas dignas de um cidadão, correspondendo à sua história, que precisa
ser ainda contada em seus detalhes, reconhecendo seu protagonismo.
No trabalho Rota do tabaco, em uma série de alguidares de argila
são pintadas cenas da diáspora africana. Os alguidares seguem uma rota
imaginária, por onde teria passado o tabaco, um dos principais produtos
da atividade mercantil colonial-escravagista. As cerâmicas rudes, que re-
metem a antigos e tradicionais objetos, são os agentes de um circuito que
se inicia em Piracanjuba, em Goiás, passando por Cuba e Cachoeira, no
Recôncavo Baiano. Os alguidares, que são tradicionalmente usados nas
131 SHEILA CABO GERALDO

religiões de matriz africana para servir comida aos santos, nessas paradas
da rota são os receptáculos das imagens que pontuam essa rota, como re-
tratos, paisagens e cenas de vivências dos povos pretos, herdeiros das tra-
dições de conversas, de reza e de vida comum.

revolução. Secretaria da Cultura do Estado da Bahia. Disponível em: http://www.fpc.


ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=280. Acesso em maio 2022.
132 SHEILA CABO GERALDO

Fig 3 Dalton Paula. Daniel (de Viana), óleo e folha de ouro sobre tela. 61 x 45 cm,
2020. Fotografia: Paulo Rezende, 2021.
Essas observações sobre o trabalho de Dalton Paula foram escritas
concomitantemente ao carnaval do Rio de Janeiro, em abril de 2022, poster-
gado em função das consequências da pandemia da covid-19, que impediu a
festa nos anos anteriores. Como forma de catarse, mas também como parte
das mudanças que vêm acontecendo em função da crítica decolonial – já
que os negros constituem a maioria da população do Brasil e sua cultura
vem sendo subjugada por séculos –, as escolas de samba da cidade trouxe-
ram para o desfile no Sambódromo uma quantidade significativa de temas
da cultura africana e afro-brasileira, como afirmação de uma impressio-
nante vontade de discutir sua ancestralidade. Essa foi uma palavra que es-
teve presente em muitos enredos e se ouvia em vários comentários sobre os
desfiles das escolas.2 Como declarou Carlinhos Brown em uma entrevista
às redes de televisão, “esse ano quem fez os enredos foram os orixás”.
Apenas recentemente – mais especificamente, a partir dos anos 1990
– a ancestralidade se configurou no sentido da resistência artística e cultu-
ral. Autores fundamentais no estudo da cultura afro-brasileira do final do
século XIX e primeira metade do século XX, como Nina Rodrigues e Arthur
Ramos, não trataram da ancestralidade nessa concepção, embora Arthur
Ramos, no livro O folclore negro do Brasil: demopsicologia e psicanálise
− publicado pela primeira vez em 1935, focalizando a sobrevivência da cul-
tura africana, seja mítico-religiosa, seja histórica, da dança e da música −
tenha feito um extenso levantamento de dados e, tendo sempre presente a
crítica à teoria da “inferioridade” da arte e da cultura negra brasileira, na
conclusão do livro argumentando que, estando suas crenças perseguidas,
os negros teriam aproveitado as instituições “folclóricas” para canalizar o
seu “inconsciente ancestral”, em suas “primitivas festas cíclicas de religião
e magia, de amor, de guerra, de caça e pesca” (RAMOS, 2007, p. 229).
As imagens do inconsciente ancestral, imagens primitivas de reli-
gião e magia, que Arthur percebia nas festas de carnaval, sobretudo naque-
las que aconteciam na Praça Onze, onde se confundiam danças, música e
cerimônias de candomblé, podem ser encontradas ainda em vários traba-
133 SHEILA CABO GERALDO

lhos da artista paulista Rosana Paulino, especialmente na instalação Pare-


de da memória, com seus pequenos amuletos, ou patuás, que trazem em
seu interior os segredos simbólicos dos orixás, e por fora os retratos dos

2 “Não é uma questão qualquer que nove escolas do grupo especial tenham abordado
a ancestralidade e a espiritualidade africanas, a história do povo negro, a luta
e a resistência, reverenciado nossas referências negras e que, simplesmente, os
carnavalescos que pensaram e conceberam tudo isso sejam todos brancos” (PACHECO).
membros de sua família, ou seja, traz tanto a ancestralidade religiosa e mí-
tica como a do parentesco das imagens de retrato.
Aline Motta, artista que trabalha com diferentes práticas de foto-
grafia, vídeo e instalação, vem também pesquisando a memória pessoal e
coletiva, que é a memória das experiências traumatizantes do colonialismo
brasileiro e que podemos entender como parte de sua ancestralidade, seja
familiar, seja arquetípica, que se apresenta como vivências em cultura.
Assim, para pensar a ancestralidade nas obras de Aline Motta, pre-
cisamos começar dizendo que ela é uma artista de ascendência afro-bra-
sileira-portuguesa, e suas obras levantam o debate sobre o apagamento da
cultura negra na sociedade brasileira, uma sociedade na qual perdura o
racismo advindo de nosso processo histórico, perpassado por mais de 300
anos de escravagismo. Em seus trabalhos estão presentes também a von-
tade de cura dos traumas herdados, cura que estaria no enfrentamento
e retomada da ancestralidade, mas também no desejo de transformação,
operando a mudança que deixaria de priorizar o olho da modernidade
colonial capitalista – eurocentrista –, abrindo espaço para outro olhar, não
colonial (BARRIENDOS, 2019), para uma nova subjetividade, coincidente
com a decolonialidade.
Na série de trabalhos mais recentes, Aline Motta traz, em suas práti-
cas e representações, reflexões sobre a sua ancestralidade como herança cul-
tural africana, mas também sua busca de laços sanguíneos, que se misturam
e ordenam uma poética afro-brasileira diaspórica. Nos trabalhos dos últi-
mos anos, ela desenvolve poeticamente essa busca pessoal-cultural-histórica,
que envolve marcas visíveis e invisíveis de sua herança, identificáveis nos tra-
ços fisionômicos que permanecem e nos apagamentos que se mostram nos
arquivos de imagens e textos. Como afirma em seu website:

Há alguns anos tenho feito uma pesquisa profunda sobre as raízes da mi-
nha família. Nesta busca, muitas histórias vieram à tona. Esta é uma delas.
Minha tataravó Francisca trabalhou como escravizada numa fazenda de
134 SHEILA CABO GERALDO

café em Vassouras, RJ. Eu fui até lá procurar por vestígios dela, mas encon-
trei apenas um possível atestado de óbito de alguém com o mesmo nome e
idade aproximada que morreu na “Fazenda de Ubá”. (MOTTA)

Aline passa então a pesquisar documentos referentes a essa fazenda, en-


contrando nos inventários de seus antigos proprietários, o casal Elisa
Constância de Almeida e José Pereira de Almeida, uma “Francisca”, que
estava listada como um dos “bens” da família, que chegara a contar com
aproximadamente 200 escravizados. O trabalho Filha natural, uma série
de fotografias, instalações fotográficas e um vídeo de artista,3 desenvolvi-
do entre 2017 e 2019, foi realizado paralelamente ao levantamento de tes-
tamentos, certidões de óbito, fotografias, jornais, relatos de viajantes, boa
parte deles relativos à vida, aos bens, ao sangue e à linhagem do Barão de
Ubá, cuja família enriqueceu à custa do tráfico e comércio de escravizados.
Em meio às pesquisas, Aline encontra duas fotografias estereoscópi-
cas do fotógrafo Revert Henrique Klumb, feitas na varanda da casa-grande
da fazenda, na década de 1860. Em uma delas estão retratados José Perei-
ra de Almeida,4 sua esposa e duas escravizadas. Na outra fotografia, duas
escravizadas, provavelmente alforriadas. Em Vassouras, Aline identifica a
varanda das fotos, que ainda se mantém de pé. Na visita à casa da fazenda,
encontra nessa varanda Claudia Mamede, líder comunitária de Vassouras.
Aline escreve: “Claudia habita este espaço simbólico como disruptora de
uma certa narrativa de servidão e complacência entre senhores e escravi-
zados” (MOTTA). Ao aproximar as fotos da avó de Claudia e de sua bisavó,
Aline confirma certa similitude fisionômica. Entre tantas perguntas sem
resposta e fios perdidos, ao encontrar Claudia, cuja avó também se chama-
va Francisca e se assemelha a sua própria bisavó, a artista se pergunta se se-
riam ambas descendentes da mesma Francisca. Fabulando um parentesco
possível e especulando uma ancestralidade comum, elas revisitam docu-
mentos, imagens e o lugar daquela violência, assim como seu apagamento,
carregando memórias de todas as vidas e fantasmas que não se documen-
taram, mas que permanecem como ancestralidade presente.

135 SHEILA CABO GERALDO

3 O filme hoje integra o acervo do Museu de Arte de São Paulo.


4 José Pereira de Almeida foi o único filho legítimo de João Rodrigues Pereira de
Almeida, o Barão de Ubá, um homem de muitos negócios, participante ativo
do tráfico de escravos, sendo, aliás, proprietário de navios negreiros (MOTTA).
136 SHEILA CABO GERALDO

Fig 4 Aline Motta. Filha natural, 2019, instalação fotográfica a partir de


fotografias estereoscópicas de Revert Henrique Klumb de 1860 (circa).
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BARBOSA, Silvia Maria Silva. O poder Bahia. Disponível em: http://www.
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enredos africanos foi lindo, mas faltam
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137 SHEILA CABO GERALDO

Disponível em: https://www.geledes.org.


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PAULA, Dalton. Artista visual. Website.
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com/. Acesso em abr. 2022.
PAULA, Dalton. Do silêncio à cura.
Vídeo. São Paulo, 2016. Disponível
Corpo/imagem da mulher na arte
contemporânea brasileira atual
VIVIANE MATESCO
Docente do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense – GAT/UFF

Este texto compreende a relação corpo/imagem da mulher na arte con-


temporânea brasileira do século XXI em contraposição à arte feminista do
século anterior, quando as poéticas se centravam no questionamento da
objetificação do corpo da mulher pelo olhar masculino. A imagem/corpo
da mulher nas poéticas artísticas atuais se pautam por novas questões que
não aquelas do feminismo tradicional. Atualmente a experiência do corpo
é reterritorializada pela arte a partir de uma perspectiva ativista e política
rumo a um feminismo negro, decolonial e abrangendo outras concepções
de mulher a partir de novas formulações de gênero. O ativismo e engaja-
mento das artistas feministas de hoje é um diferencial importante em rela-
ção à atuação das artistas do período precedente.
Corpo e imagem feminina é uma relação constituinte da arte euro-
peia, pois a representação da mulher confunde-se com sua própria repres-
são: pudor, bondade, piedade são as expressões permitidas às mulheres até
o século XIX; o nu é monopólio de deusas e ninfas, não sendo extensivo às
cenas cotidianas. O nu como imagem da humanidade evidenciava valores
supostamente universais; no entanto, mesmo neste gênero há uma diferença
entre o masculino e feminino. O nu constitui o gênero artístico-metafísico
por excelência, criado na Grécia em um momento no qual a própria ima-
gem de corpo pode ser pensada. Por isso, o corpo é idealizado, modelizado
e julgado por princípios externos a ele, transcendentes, mais pensados do
que vividos. É precisamente por causa dessa vontade obstinada do homem
de dar forma visível ao humano que o nu seria o signo distintivo da socieda-
de “ocidental”, de sua metafísica milenar à procura de uma imagem sensível
do ideal. O nu não representava um corpo, mas a ideia abstrata da humani-
dade; no entanto, essa universalidade é problemática, pois supõe um ponto
de vista masculino. A sexualidade dos corpos – e, sobretudo, do corpo fe-
139 VIVIANE MATESCO

minino – sempre foi uma questão para o nu. É interessante observar como a
própria história da arte constrói seu discurso a partir da desqualificação do
desejo e da sexualidade da mulher, como demonstra Kenneth Clark (1998)
ao criticar a qualidade das versões das Vênus no Renascimento, pois teriam
degenerado o nu clássico ao lhe emprestar caráter carnal. A problemati-
zação da universalidade do gênero nu e a sublimação da sexualidade na
representação da mulher enfatiza como sua presença na arte europeia é ma-
joritariamente centrada em sua objetificação. Repressão feminina, então, é
sinônimo da repressão a seu corpo e à possibilidade do prazer. Lynda Nead
(1992), em The Female Nude: Art, Obscenity and Sexuality, defende que o
nu feminino objetivava a contenção e regulação do corpo da mulher. Essa
regulação está presente na estética e crítica de arte, na educação artística e
nos discursos legais sobre arte e obscenidade.
O cenário artístico da segunda metade do século XX acentua a crise
da visão antropocêntrica e da sublimação do corpo, que aparece em ações,
em performances, vídeos e fotografias – o que revela uma mudança signifi-
cativa nas formas de sua percepção. Os artistas exploram sua temporalida-
de, contingência e instabilidade, abordando-o como conteúdo, tela, pincel
ou imagem. Os happenings, a body art e as performances ocasionam uma
tensão entre corpo literal e imagem; o reconhecimento da corporalidade
do sujeito, a percepção de que nossa experiência e nossa presença se tor-
naram cruciais questionam a noção de um corpo enquadrado. Também
o processo de liberação sexual, impulsionado pelas teorias psicanalíticas,
muda a posição da mulher, sua relação com o corpo, seu estatuto na socie-
dade. Nos Estados Unidos desenvolve-se, no final dos 60 e início dos 70,
uma teoria e uma arte feminista que situam a sexualidade feminina como
o componente definidor das experiências e identidades da mulher vivendo
numa cultura patriarcal. O papel inaugural no questionamento da relação
corpo e repressão da mulher é fato incontestável quando olhamos em re-
trospecto o trabalho de Carolee Schneemann: em Interior Scroll, a artista
nua extrai vagarosamente uma fita de papel da vagina na medida em que
lê seu conteúdo para o público extraído do seu livro Cézanne, She was a
Great Painter. A ação manifesta posicionamento sobre o papel feminino na
arte e, também, sobre os estereótipos do olhar masculino. Interior Scroll
chama atenção para o fato da não visibilidade da genitália feminina ser
interpretada como falta pelo pensamento falocêntrico. Dar uma imagem
contundente da imposição desse discurso significa subverter um condicio-
namento tradicional. Semelhante contundência tiveram os trabalhos de
Valie Export no final da década de 1960; tanto Pânico genital quanto Cine-
140 VIVIANE MATESCO

ma tátil lidam com a provocação pública ao expor uma dimensão privada


e uma exploração do corpo feminino. Outras artistas do período desen-
volvem trabalhos que interferem na imposição cultural à imagem da mu-
lher, questão explorada por artistas que visavam subverter o culto à beleza
como atributo feminino, como encontramos nas cirurgias performáticas
de Orlan e também em Marina Abramovic.
Nesse período o Brasil vivia uma realidade bem diferente, na qual ce-
nas artísticas de nudez não seriam permitidas; como aponta Roberta Bar-
ros (2016), aqui não havia espaço para exploração de poéticas feministas
eróticas. O período de ditadura militar fez com que as artistas brasileiras
se ocupassem mais com o corpo materno e social, enquanto internacional-
mente focava-se no corpo de mulher. Também Luana Tvardovskas (2015)
defende que nas décadas de 1960 a 1990 não havia um movimento femi-
nista organizado nas artes visuais no Brasil, embora houvesse uma resso-
nância das tendências internacionais. Analisa o modo como, no cenário
latino-americano, as ditaduras civil-militares interferiram diretamente no
movimento feminista, sugerindo que, por isso, não encontramos no Brasil
uma corrente de arte feminista tão bem demarcada como a estadunidense
e a europeia. De opinião diversa, Cecilia Fajardo-Hill (2017) defende uma
arte latino-americana de artistas que exploram o erotismo e a sexualidade,
como Monica Mayer, Liliana Maresca, Cecilia Vicuña, Marta María Perez,
Eugenia Vargas, e as brasileiras Teresinha Soares, em desenhos eróticos, e
Márcia X.
No entanto, as artistas brasileiras não se compreendiam como fe-
ministas, embora tivessem poéticas que se contrapunham à sociedade pa-
triarcal, ao poder político masculino. Artistas como Anna Maria Maiolino
e Letícia Parente focalizaram o papel da mulher na sociedade tradicional
brasileira por meio de trabalhos inovadores, como Preparação I, vídeo de
Letícia Parente, exemplo de subversão da imagem estereotipada da mu-
lher: a artista se coloca diante do espelho preparando-se para sair, mas,
em vez de se maquiar, cobre os olhos e a boca com esparadrapo e sobre
ele desenha outros olhos e outra boca, como para revelar que eles são pura
máscara assujeitada pelas convenções. Aqui a arte explicita ironicamente
a coisificação da condição feminina, bem como o silenciamento imposto
pela ditadura. Também no vídeo In, de 1975, a objetificação da mulher é
evidenciada; a artista entra em um armário e se pendura em um cabide,
tal qual um objeto manipulável que pode ser guardado. Uma mulher que
ali permanecerá, quieta e à disposição de quem dela quiser se servir, se
vestir. Entre a geração de Letícia Parente e aquela atual, algumas artistas
141 VIVIANE MATESCO

como Cristina Salgado, Ana Miguel e Márcia X desenvolvem trabalhos


perpassados pelo corpo; alguns com viés feminista, como em Salgado e em
Miguel, outros pela sexualidade e nudez mais pujantes, como em Márcia X.
Nenhuma delas desenvolve um ativismo feminista ou mesmo compreende
sua linguagem por um viés identitário, embora as três estejam cada vez
mais sendo estudadas a partir de uma perspectiva feminista.
Como situar os trabalhos de artistas mulheres que fazem do corpo
um meio central de suas linguagens, seja pela exacerbação da sexualidade,
pelo empoderamento ou ainda pela relação com a violência, sobretudo dos
corpos negros? Uma chave possível para compreender esse novo cenário
é não tomar a representação de maneira independente, mas interpretá-la
pelas relações sociais e culturais que envolve. A relação com o corpo nas
linguagens de artistas atuais acentua a diferença, a violência, a fortaleza
da mulher negra em oposição à fragilidade eurocêntrica de classes favore-
cidas. Corpo e sexualidade ganham novas formulações a partir das ques-
tões de gênero e das novas concepções de mulher, ampliando o escopo
dos feminismos. Ao enfoque crítico da exposição do corpo feminino como
fetiche se contrapõem novas abordagens, como de Aleta Valente, Márcia
Falcão, Castiel Vitorino, Michelle Mattiuzzi, Rosana Paulino, Ventura
Profana, Panmela Castro.
O contraste com as poéticas feministas brasileiras do século XX fica
mais claro quando analisamos algumas artistas da atualidade, mulheres
trans, negras, periféricas que têm o ativismo como prática artística. Aleta
Valente atua no universo da estética suburbana e focaliza o corpo feminino
massificado. Ativista, usou a internet explorando a dinâmica e a interati-
vidade das redes sociais. Em 2015 criou um perfil no Instagram, “Ex-miss
Febem”, onde se dedicava a mostrar autorretratos com temáticas ligadas
à exploração, à violência e à sexualização do corpo feminino. Em 2017 o
perfil foi censurado pelas normas da rede em relação à nudez, sobretudo
feminina. Aleta aparece em poses sensuais que contrastam com cenários
precários, como terrenos baldios no periférico bairro de Bangu; são foto-
performances acompanhadas de frases publicadas no Instagram. É impor-
tante enfatizar a singularidade de um projeto artístico ativista calcado na
periferia e que se fala do corpo feminino não o faz a partir de uma fragi-
lidade, mas de um enfrentamento; a mulher objetificada produto de um
olhar masculino apresenta outras camadas de significação. Luiz Camillo
Osório (2020) considera que em seus autorretratos ela é objeto e sujeito ao
mesmo tempo, posa e provoca, a imagem não é um personagem, mas seu
duplo, uma vez que ressignifica com ironia e transgressão sua própria vida.
142 VIVIANE MATESCO

A objetificação do corpo feminino foi durante décadas alvo do ativismo


feminista. A magia de Hollywood codificou o erotismo na linguagem pa-
triarcal dominante, como explica Laura Mulvey (2017); mesmo que reforce
padrões preexistentes na sociedade, o cinema jogaria com o instinto esco-
pofílico, o prazer de olhar para outrem na qualidade de objeto erótico em
contraposição à libido egoica, a formação de processos de identificação. A
imagem da mulher como matéria-prima (passiva) destinada ao olhar (ati-
vo) do homem estruturaria o cinema narrativo tradicional.
A “superexposição” produzida por Aleta Valente, título da mostra da
artista na galeria A Gentil Carioca, em 2020, alude à exibição nas redes so-
ciais e coloca em curto-circuito essa passividade da mulher ao jogar com as
reações às suas imagens. Aqui a artista detém sua narrativa e produz um
deslizamento, uma vez que ao trabalhar com o consumo público do corpo
feminino emprega uma chave irônica que seduz, debocha e chega a se apro-
ximar do pornográfico. Ivana Bentes (2017) analisa o projeto ativista de Ale-
ta a partir da estética do escândalo, a ressignificação das selfies, o erotismo
fora de lugar. Significa um feminismo disruptivo, uma vez que coloca em
questão a exposição do corpo em uma época de visibilidade máxima das
mídias digitais. As imagens funcionam como contradiscurso, usam a sedu-
ção, o erotismo e provocam todo tipo de reação, de agrado ou ódio. Essas
imagens exploram a popularidade irônica e típica da pop arte ao produzir
uma estética que subverte, mas dialoga com o consumo sem pudor.
A partir disso podemos refletir que a obscenidade e a pornografia
não são categorias dadas, mas interdependentes de contextos culturais de
uma época. A antropóloga Mary Douglas, ao examinar os tabus e inter-
ditos sexuais em sociedades não europeias, acentua que a representação
e os limites do corpo não podem ser separados da operação social e das
fronteiras culturais; elas implicam valores e crenças da sociedade. O sexo
e a potência erótica transgridem imposições de normas estabelecidas pela
sociedade oficial, mas essas barreiras assumem interpretações diferentes a
partir das referências de estratificações sociais específicas, como em popu-
lações da periferia.
A mulher periférica e/ou a mulher negra estão muito distantes da
fragilidade feminina contestada pelo feminismo tradicional. São novas vo-
zes dos diversos segmentos feministas, bem como uma demanda por um
lugar de fala, como pontua Heloisa Buarque de Holanda (2020) em refe-
rência a uma perspectiva decolonial. Nessa nova conjuntura, o feminismo
eurocêntrico é associado a uma elite branca patriarcal e o ativismo de-
marca fronteiras com as gerações anteriores. Na cultura brasileira o corpo
143 VIVIANE MATESCO

das mulheres negras é estereotipado e alvo de uma sistemática opressão


histórica. Aqui, violência, desigualdade social, misoginia e racismo con-
jugam-se no corpo feminino. Rosana Paulino realiza desde meados dos
anos 1990 profunda pesquisa artística que envolve as raízes históricas da
escravidão, a memória dessa violência. A artista tem uma produção vasta,
e em muitos trabalhos o corpo é central. São mulheres com olhos e bocas
suturados, como na série Bastidores, de 1997. Na instalação Assentamento,
Paulino utiliza fotografias de catalogação científica marcadamente euge-
nistas; uma imagem de uma mulher nua que a artista imprime em tecido
em escala natural, mas em recortes desencontrados que são costurados e
que deixam as linhas da sutura soltas, a evocar as marcas da escravidão.
Corpos sofridos, escravizados, esquadrinhados pela lente colonial. Ao lado
da fotografia e bordados, o desenho atravessa toda a trajetória da artista. A
série Tecelãs, de 2003, constitui-se de desenhos de mulheres nuas de cujos
corpos saem fios pela boca, vagina, ao redor das mãos, da cabeça: “o corpo
da mulher, uma ênfase frequente em seu órgão genital, manchado, marca-
do quase entreaberto, o sexo projetado como atributo doloroso do corpo”
(AMARAL apud PICOLI, 2018, p. 187). É importante enfatizar a dimensão
autobiográfica da obra de Paulino, que utiliza vasto material de pesquisa
e referências, e costura literalmente sua própria vivência de mulher negra.
Também Michelle Mattiuzzi centra sua linguagem no corpo, e es-
pecificamente na subversão do lugar exótico atribuído ao corpo da mulher
negra pelo imaginário cisnormativo branco. Inicialmente trabalhou como
bancária e operadora de telemarketing antes de tornar-se artista. Seu tra-
balho tensiona o lugar exótico do corpo da mulher negra: manipula re-
presentações sobre a associação entre a cor da pele e os juízos de valor que
recaem sobre o corpo negro feminino. Sueli Carneiro (2019) afirma que
a mulher negra é figurada como exótica, sexualmente provocativa, este-
reótipo que a põe em lugar de uso exclusivo para o prazer sexual branco
masculino; é exatamente essas marcas da violência colonial deixadas em
seu próprio corpo que Mattiuzi trabalha em suas performances, ao expor
a exotização do corpo feminino negro. Como em Merci beaucoup, blan-
co!, o fazer artístico vai criando essa narrativa política; a artista pinta seu
corpo com tinta branca, em clara metáfora de apagamento do corpo ne-
gro; ele é puxado por uma corrente pelo pescoço por outra pessoa, usa no
rosto uma máscara que deixa escorrer sangue pela boca. Seu corpo negro,
gordo e nu desloca os parâmetros da sociedade, é ao mesmo tempo meio
artístico e modo de compreender-se social e politicamente em uma con-
juntura racista. Experimentando o vermelho em dilúvio é um filme no qual
144 VIVIANE MATESCO

Mattiuzzi aparece caminhando pelo Rio de Janeiro, próximo à estátua de


Zumbi dos Palmares; ela porta uma máscara usada para escravos e a retira
vagarosamente, enquanto sua face é recoberta de sangue. Carneiro (2019,
p. 314) afirma que o que poderia ser considerado reminiscência do período
colonial está presente no cotidiano de luta dos corpos das mulheres negras.
Quando se fala da fragilidade feminina diante do domínio masculino, o
145 VIVIANE MATESCO

Fig 1 Rosana Paulino. Assentamento, 2013, instalação (detalhe). Impressão


sobre tecido. Fonte: https://rosanapaulino.com.br/trabalhos/.
feminismo eurocêntrico não levou em conta a experiência da mulher ne-
gra; “mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram
que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar”.
A relação entre o feminismo e a representação do corpo feminino
deve ser tratada a partir da criação de estratégias inovadoras de interven-
ção. Novas concepções de mulher ampliam as fronteiras do feminismo;
artistas trans atuam e expandem a luta por intermédio de mecanismos di-
ferentes de expressão. Judith Butler desconstrói a ideia de uma mulher na-
tural biológica, base das feministas tradicionais que se relaciona com uma
mulher essencializada e universal. Propõe uma desnaturalização a partir
de um conceito de “perfomatividade” dos atos de fala, e afirma que o gêne-
ro é um fazer, resulta de uma ação do(a) falante. Desse modo, o discurso
habita o corpo, faz esse corpo, confunde-se com ele. A diferença de Butler
com o feminismo essencialista é que ela defende, além das mulheres, to-
dos aqueles que não se enquadram nos discursos que invocam a “natureza”
fixa do corpo. É justamente a condição do transfigurável, da transmuta-
ção da carne que observamos nos trabalhos de Castiel Vitorino Brasileiro.
Os corpos não brancos se desprendem das amarras da colonialidade por
intermédio de uma prática que se alimenta na diáspora Bantu, passando
pela “espiritualidade e ancestralidade travesti”. Castiel trabalha na inter-
seção da psicologia, das artes visuais e da espiritualidade afro-brasileira,
evidencia “o corpo como um lugar de memória”, uma reterritorialização
das geografias que habita. Ela explora “as relações entre os corpos, a práti-
ca da macumba e as marcas da colonialidade” por intermédio de diversas
linguagens nas quais prevalece a ideia de transmutação, seja material ou
espiritual. A série Corpoflor (2016-2021) foi criada a partir da concepção de
transfigurável das vidas, e foi correlata à transição de gênero iniciada pela
artista em 2016. Corpoflor, afirma a artista

“é o jeito que decidi para continuar transmutando num hibridismo radical


com vidas de outros reinos e mundos”. Mais do autorretratos, são experiên-
cias e relações imagéticas do que pode ser corpo e também flor. “se aqui na
superfície sou Castiel Vitorino Brasileiro, quando mergulho já não impor-
146 VIVIANE MATESCO

ta este nome, ou tais mitologias modernas encarnadas em mim (negritude,


travestilidade), porque meu sangue pertence às águas, e não à brasilidade”.

Ventura Profana é pastora missionária, cantora evangelista, escritora, com-


positora e artista visual, cuja prática está entrelaçada à pesquisa dos efei-
tos sociais do embranquecimento e concentração de poder político. Com
147 VIVIANE MATESCO

Fig 2 Castiel Vitorino Brasileiro. Série Corpoflor, 2016-2021. Série fotográfica.


Fonte: https://castielvitorinobrasileiro.com/Trabalhos.
colagens, vídeos, performances e trabalho musical clama contra todas as
formas de opressão, sobretudo aquela que gera violência social. Realiza
interferências visuais sobre imagens, objetos e produtos relacionados ao
universo evangélico, questionando justamente a religiosidade frente à “neu-
tralização” dos corpos. Utiliza diversas linguagens com várias camadas de
significação, nos trabalhos visuais que focalizaremos, o corpo ocupa lugar
central, como em Mulher virtuosa (2019), colagem digital desenvolvida para
capa do single “Resplandescente”; observamos seu corpo nu sobreposto a
uma cena de cerimônia evangélica onde todos estão vestidos, lendo e lou-
vando cânticos religiosos. Também em “ folhetos para evangelização, consa-
gração” (2017) contrapõe a imagem de uma bunda ao símbolo do McDonald
com palavras como “(…).encontrei o santuário no meio das minhas pernas
acima de onde as coxas labutam uma contra a outra, marcando a pele, ao
mesmo tempo gargalhei aleluias com louvores cheios de borogódó”.
Embora tenha rompido com a igreja na qual foi criada, ainda de-
fende seu papel como pastora missionária, que não distingue da sua vida
artística. Proclama o evangelho do fim do tempo colonial e do macho. No
país em que travestis e transexuais vivem em média 35 anos, Ventura ex-
clama: “Eu não vou morrer”. Gilberto Leal (2021), ao se referir ao álbum
e videoclipe “Eu não vou morrer”, afirma “o cu não somente pode deixar
de ser visto como membro abjeto, mas pode ser incorporado como parte
desse lugar de prazer e liberdade, reconciliado no Espirito erótico divino.
É dessa reconciliação que Ventura profana fala, a reconciliação do cu que
reconcilia com a vida as sexualidades marginalizadas pelo regime da de-
cência colonial. É justamente sobre corpos dissidentes que contrapõe a vi-
são tradicional de corpos hegemônicos presentes nas narrativas religiosas.
Se o ativismo é um diferencial da geração atual, é necessário trazer
para a discussão as ações do coletivo Coiote, formado por Bruna Kury,
Raissa Vitral, Marcia Marci e Gil Pury. Andiara Ramos Pereira (2018) ana-
lisa as ações a partir da noção de pornoterrorismo, como aquela da Marcha
das Vadias, que utilizou dildos para masturbações públicas no Rio de Ja-
neiro em 2013, período da Jornada Mundial da Juventude, quando o Papa
visitava a cidade. A segunda ação foi uma costura vaginal realizada para
148 VIVIANE MATESCO

protestar contra os crescentes casos de estupro na cidade de Rio das Ostras,


na Região dos Lagos, Rio de Janeiro, em 2014. Raíssa Vitral colocou uma
bandeira do Brasil dentro da vagina e a costurou, depois aconteceram al-
gumas modificações corporais e a bandeira foi queimada.
O ativismo feminista assumido e a relação com a cidade, especifica-
mente a periferia, são pontos em comum da geração. Em comunidades das
periferias, o papel da mulher também vem reencontrando seu novo lugar.
Embora muitas mulheres sejam mães solteiras, o papel social relacionado
à maternidade não é um requisito para que sejam consideradas fortes, são
retratadas como guerreiras vindas das “quebradas”, como são chamadas
as comunidades. Predomina o retrato de uma mulher de periferia que é
empoderada e ativa, forte; uma lutadora que garante o sustento dos filhos
e se posiciona como pessoa autônoma, ativa, que luta pelos seus direitos e
é responsável por si mesma e pelos seus.
Nesse cenário, o feminismo eurocêntrico é associado a uma elite bran-
ca patriarcal, e o ativismo das artistas demarca fronteiras como aquelas de
décadas passadas. A pintura de Márcia Falcão articula o corpo feminino e a
cidade, partindo da experiência da própria artista na periferia do Rio de Janei-
ro. Com uma vivência marcada pela violência, a artista a contrapõe ao prazer,
criando tensão estrutural do erotismo, como explicita Raphael Fonseca: “O
corpo que aparece em Moça reclinada no fio do facão: presa em casa (2021) faz
referência ao próprio corpo da artista e pode ser observado em outras obras
que, em menor escala, apresentam situações mais concisas. Deitada entre o
chão vermelho e o corte de uma faca, uma mulher sangra e o líquido escorre
até a margem inferior da tela. Seu braço se recosta sobre um muro cheio de
vidro, elemento visto em muitos bairros do Rio de Janeiro para proteger o es-
paço privado da casa. O espaço doméstico sugerido por Márcia Falcão parece
ser um território de solidão, conflito e pequenas violências”.
Também a vivência periférica marca a poética de Panmela Castro.
Proveniente do grafitti no subúrbio do Rio de Janeiro, centrou sua lingua-
gem na relação do corpo feminino marginalizado com a cidade. Panmela dá
ênfase ao ativismo, sobretudo aquele ligado à defesa dos direitos femininos.
Sobrevivente de violência doméstica, tem uma atuação engajada por inter-
médio da Rede NAMI, que ajuda mulheres em situação de vulnerabilidade.
Em suas videoperformances o papel padronizado da mulher é questionado
(https://panmelacastro.wordpress.com) como Ato delicado, performance em
que aparece com vestido rosa bufante composto por camadas de tule, a artis-
ta pega uma agulha e costura na própria pele um colar composto por pérolas.
Em Vagina dentada, num vestido rosa-choque comprido e de bruços, é sub-
149 VIVIANE MATESCO

metida a incisões angulosas realizadas por um tatuador. Nos dois trabalhos


a beleza é associada à violência, também presente em Caminhar (2017), na
qual a artista entra em uma bacia de tinta e caminha pela rua, marcando
o chão de vermelho, em referência aos índices de feminicídio. Em A noiva
(2019), traja um vestido tradicional de noiva que incendeia vagarosamente
com a ajuda de fósforos, coloca fogo nas vestes e permanece nua.
Camila Bacellar (2020, p. 315) aponta que o corpo é o lugar onde
o social e o individual se chocam, juntamente onde a matriz colonial de
poder nos afeta impondo formas normalizadas de sexualidade e de dese-
jo. Apresenta a figura do corpo como um palimpsesto, no qual modos de
vida, saberes e memórias foram rasurados pela modernidade/colonialida-
de e substituídos pela ordem binária hierárquica capitalista/colonialista.
No entanto, o ato violento da rasura não passa despercebido e cabe a nós
realizar uma escritura de si orientada para uma autonomia experimental
corporal. As artistas que analisamos destoam dos parâmetros da elite; são
corpos periféricos, gordos ou supersexualizados, fora dos padrões impor-
tados; aqui, as mulheres se assenhoram dessa corporeidade. Nudez, ativis-
mo e feminismo assumidos marcam a relação corpo/imagem e mulher na
arte contemporânea atual, daí a violência e a sexualidade serem centrais
nessas novas poéticas.
150 VIVIANE MATESCO
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151 VIVIANE MATESCO

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WEBSITES

https://rosanapaulino.com.br/
http://www.omenelick2ato.com/artes-
da-cena/danca-e-performance/
corpo-festa-e-dor
https://mais.opovo.com.br/jornal/
vidaearte/2018/03/musa-michelle-
mattiuzzi-fala-sobre-a-performance-
como-ato-politico.html
https://castielvitorinobrasileiro.com/sobre
https://www.premiopipa.com/2021/09/
luiz-camillo-osorio-conversa-com-
castiel-vitorino/
https://www.premiopipa.com/
ventura-profana/
https://www.jaca.center/
ventura-profana-br/
https://volumemorto.com.br/
entrevista-ventura-profana/
https://www.identidadesmarginais.com/
ventura-profana
https://panmelacastro.wordpress.com/
152 VIVIANE MATESCO
CAPÍTULO 3 ARTE CONTRA A CULTURA
“Antropofagizar” práticas de mídia:
a obra e legado de Ricardo Rosas
THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – PPGAV/UFRJ

Mídia tática é um conceito que se firmou na década de 1990, na Europa


e Estados Unidos, com a apropriação da lógica “faça você mesmo” [do it
yourself], presente na ética punk como estímulo para a criação de novas
formas de comunicação com o público – é nesse contexto da cultura punk
que se disseminaram fanzines e esquemas de produção fonográfica inde-
pendente, por exemplo. Uma frase proferida por Jello Biafra, vocalista da
banda Dead Kennedys, resume: “Não odeie a mídia, torne-se a mídia”. Tal
ideia incita a criação de meios alternativos de circulação de informação,
como também a apropriação subversiva dos meios de comunicação he-
gemônicos, de modo a criar ruídos em sua programação, utilizando-os a
favor de si.
A popularização da internet e dos dispositivos digitais entre as déca-
das de 1990 e 2000 diversificou as formas de ativismo relacionado à mídia
– midiativismo – com novas maneiras de confrontar o poder institucional
na área de comunicação, sob influência de coletivos e movimentos de con-
tracultura. Mas como isso se desdobra em um país como o Brasil, onde
o acesso às tecnologias digitais ainda era restrito a poucos indivíduos na
virada do milênio e, ainda hoje, possui tantas limitações?
Tendo em vista que a ideia de mídia tática nasce em países mais de-
senvolvidos, para pensá-la em nosso contexto é importante trazer para a
discussão as ideias do crítico cearense Ricardo Rosas, responsável por pro-
155 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

jetos que difundiram o conceito de mídia tática no Brasil e criaram aqui


um campo fértil para discussões sobre esse tema. Aqui, a lógica “faça você
mesmo” possui desenvolvimento próprio, a partir do conceito de gambiar-
ra tratado por Rosas em alguns de seus textos, além de sua contaminação,
segundo o crítico, pela antropofagia.

Ricardo Rosas e o festival Mídia Tática Brasil

Com atuação nos campos da arte e do midiativismo na década de 2000,


Ricardo Rosas faleceu precocemente em sua terra natal, Fortaleza, no dia
11 de abril de 2007. Embora ainda não tenha recebido o devido reconheci-
mento pela historiografia da arte brasileira, Rosas foi um dos principais
pensadores e influenciadores de coletivos artísticos no Brasil, além de
organizador de publicações e eventos como o festival Mídia Tática Bra-
sil, que realizou em parceria com Tatiana Wells e Giseli Vasconcelos em
2003, em São Paulo.
O Mídia Tática Brasil operou como um dos braços latino-america-
nos do Next Five Minutes (N5M), um festival de arte, política e mídia cria-
do em Amsterdã, em 1993, ao qual é atribuído o início das discussões sobre
mídia tática. A primeira edição do N5M tinha o objetivo de expor e debater
vídeos independentes e produções audiovisuais de cunho político da se-
gunda metade do século XX, tendo como tema central a ideia de televisão
tática. Tal conceito foi ampliado, dando origem à noção de mídia tática,
que foi tema da segunda edição do evento, realizada em 1996 (FOLETTO,
2015). Um texto publicado na seção de perguntas e respostas do site do
festival (hoje desativado), atualmente disponível no site Tactical Media Fi-
les (www.tacticalmediafiles.net), um dos principais arquivos em domínio
público sobre mídia tática, afirma que este termo designa o uso crítico e a
teorização das práticas midiáticas que recorrem a todos os tipos de novas
e velhas mídias para alcançar uma variedade de objetivos não comerciais e
promover ações potencialmente subversivas.

Pense em ativistas que usam câmeras de vídeo digitais baratas e distribuem


seus vídeos na internet. Pense em transmissores de rádio FM de baixa po-
tência usados por ativistas antiglobalização. Pense em programadores de
computador que desenvolvem softwares livres e de código aberto. Pense
na tecnologia sem fio que fornece a comunidades inteiras acesso barato à
Internet de banda larga. Pense em artistas midiáticos que expressam suas
156 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

preocupações sobre questões políticas atuais. E pense em investigações so-


bre política e economia das tecnologias da informação (website TACTICAL
MEDIA FILES – tradução do autor).

A primeira conceituação formal da mídia tática aparece no texto “O ABC


da Mídia Tática”, uma espécie de manifesto publicado pelos holandeses
Geert Lovink (teórico das mídias) e David Garcia (artista, professor e ini-
ciador do N5M) em 1997, na plataforma Net.time. O texto foi traduzido e
difundido no Brasil por Ricardo Rosas por meio do Rizoma.net – sobre o
qual falaremos adiante. Segundo os autores,
Mídias Táticas são o que acontece quando mídias baratas tipo “faça você
mesmo”, tornadas possíveis pela revolução na eletrônica de consumo e for-
mas expandidas de distribuição (do cabo de acesso público à internet), são
utilizadas por grupos e indivíduos que se sentem oprimidos ou excluídos
da cultura geral. As mídias táticas não só reportam fatos, mas também
nunca são imparciais: elas sempre participam e é isso o que mais que qual-
quer coisa as separa das mídias dominantes (GARCIA; LOVINK, 2002, p. 139).

Os autores citam como referência o livro A invenção do cotidiano, do his-


toriador francês Michel de Certeau, publicado originalmente em 1980. A
obra trata de práticas criativas cotidianas adotadas por sujeitos comuns em
interação com seu entorno, contornando regras e convenções, entendendo
o consumo como criação – ou seja, quando não se consome passivamente,
mas criativamente. Certeau traça distinções entre tática e estratégia, es-
senciais para o conceito de mídia tática. Estratégia seria “o cálculo (ou a
manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do mo-
mento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército,
uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado” (CERTEAU, 1998,
p. 99), enquanto a tática, por oposição, seria “a ação calculada que é deter-
minada pela ausência de um próprio” (CERTEAU, 1998, p. 100). Ou seja, a
tática, diferentemente da estratégia, é a arte do fraco, daquele que “não tem
por lugar senão o do outro” (CERTEAU, 1998, p. 100). Enquanto a estratégia
possui lugar próprio, autônomo, que permite controlar, planejar e capitali-
zar as vantagens adquiridas, a tática tem que jogar com o terreno que lhe é
imposto, dentro do campo de visão do inimigo, no espaço por ele contro-
lado, aproveitando “ocasiões”.

Ele [Certeau] descreveu o processo de consumo como um conjunto de tá-


157 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

ticas pelas quais o fraco faz uso do forte. Ele caracterizou o usuário (um
termo que ele preferiu a consumidor) rebelde como tático e o presumido
produtor (no qual ele inclui autores, educadores, curadores e revolucioná-
rios) como estratégico. Estabelecer esta dicotomia permitiu a ele produ-
zir um vocabulário de táticas rico e complexo o bastante para equivaler a
uma estética reconhecível e distinta. Uma estética existencial. Uma esté-
tica da apropriação, do engano, da leitura, da fala, do passeio, da compra,
do desejo. Truques engenhosos, a astúcia do caçador, manobras, situa-
ções polimórficas, descobertas prazerosas, tão poéticas quanto guerreiras
(GARCIA; LOVINK, 2002, pp. 139-140).
Certeau exemplifica tais subversões na relação entre indígenas e coloni-
zadores espanhóis, pensando como os primeiros se utilizavam da ordem
dominante para exercer seu poder:

Há muito tempo que se tem estudado que equívoco rachava, por dentro,
o “sucesso” dos colonizadores espanhóis entre as etnias indígenas: subme-
tidos e mesmo consentindo na dominação, muitas vezes esses indígenas
faziam das ações rituais, representações ou leis que lhes eram impostas
outra coisa que não era aquela que o conquistador julgava obter por elas.
Os indígenas as subvertiam, não rejeitando-as diretamente ou modifican-
do-as, mas pela sua maneira de usá-las para fins em função de referências
estranhas ao sistema do qual não podiam fugir (CERTEAU, 1998, p. 39).

A distinção entre tática e estratégia ajudou Lovink e Garcia a nomear uma


classe de produtores conscientes do valor de inversões temporárias no flu-
xo de poder. Criadores de espaços, canais e plataformas para tais inver-
sões que rompem as categorias amador/profissional, alternativo/popular e
público/privado.
As discussões sobre mídia tática, lá e cá, estavam em sintonia com
as manifestações antiglobalização ocorridas em Seattle em 19991 e em Ge-
nebra em 20012. Ativistas e artistas dedicados a essas práticas midiáticas
participavam dos fóruns sociais antiglobalização. Destaca-se, por exem-
plo, a participação de diversos coletivos de artistas no III Fórum Social
Mundial em Porto Alegre, em 2003 – mesmo ano em que ocorria o Mí-
dia Tática Brasil. É também importante destacar que o surgimento das
discussões sobre mídia tática no país ocorre paralelamente ao surgimento
de novos coletivos de artistas que, diferentemente de agrupamentos ante-
riores (como as diversas agregações de modernistas entre as décadas de
158 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

1920 e 1950 e algumas iniciativas coletivas surgidas durante a ditadura mi-


litar), apostam no uso crítico das mídias para a realização de suas ações;
lançam mão da internet, e-mails, blogs e grupos de discussão online para
se comunicarem; articulam-se fora das instituições artísticas “oficiais” e

1 Manifestações contra o encontro da Organização Mundial do Comércio, organizados


por movimentos antiglobalização em 30 de novembro de 1999 na cidade de Seattle,
nos Estados Unidos.
2 Manifestações contra a reunião do G8 (grupo composto pelos países mais ricos e
influentes do mundo) organizados por movimentos antiglobalização entre 19 e 22
de julho de 2001 na cidade de Genebra, na Itália.
independentemente da mediação de curadores, críticos, galeristas e outros
agentes legitimadores.
O evento organizado por Rosas, Wells e Vasconcelos surgiu em um
contexto de grande expectativa com a chegada da internet em áreas peri-
féricas de grandes cidades, assim como a crescente viabilização de softwa-
res livres, o que torna o Mídia Tática Brasil um importante momento de
agrupamento, reconhecimento e conexão – contexto que explica a escolha
do tema do festival: “Comunidades em Rede e Inclusão Digital”. Não por
acaso, logo depois surgiram novos projetos como Autolabs, findEtático,
Digitofagia e Submidialogia.
A abertura do evento contou com a participação do então ministro da
Cultura Gilberto Gil, o que mobilizou a grande imprensa e atraiu curiosos
ao evento, que recebeu, estima-se, seis mil pessoas em quatro dias de ativida-
des. Também participaram da abertura Richard Barbrook, autor de Futuros
imaginários: das máquinas pensantes à aldeia global e John Perry Barlow, da
Electronic Frontier Foundation. Com entrada gratuita, o evento ocorreu en-
tre 13 e 16 de março de 2003 em diversos pontos de São Paulo, onde se inclui a
Casa das Rosas, que abrigou ações artísticas. Foram promovidas palestras e
debates com os temas tática e resistência, ciberativismo, hacktivismo, código
aberto, copyleft e o próprio conceito de mídia tática.
Juntamente ao evento, foi lançada uma revista-pôster que inclui o
manifesto “Que venha a mídia tática!”, assinado por Ricardo Rosas e Ta-
tiana Wells. No texto, os autores defendem a relevância da criação de um
laboratório de mídia tática no Brasil e reconhecem na antropofagia o im-
pulso para a adoção de táticas criativas:

Ocorre que muita gente tem produzido mídia tática por aqui, mesmo sem
saber que o que fazem tenha um nome. Seja intervenção urbana, usos táti-
159 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

cos da arte, da web, de rádios piratas, fanzines e por aí vai, o fato é que es-
tamos assistindo a um verdadeiro boom de mídia indie no Brasil. Algo que
não se poderia deixar passar despercebido. Além disso, urge uma inclusão
digital que contemple, por exemplo, quem não possa bancar um micro. O
conceito de mídia tática, então, pode ser adaptado à realidade brasileira ao
propor alternativas, formas de mobilizações que propagam circuitos inter-
dependentes. Essas buscas por autonomia falam sobretudo de educação,
disseminação tecnológica inclusiva e relações centro-periferia.
Antropofagizamos práticas de mídia para, além de propor a coleti-
vidade e autonomia das relações produtivas, reconhecer igualmente a pe-
riferia – somos todos periféricos em relação ao Império – como realidade
160 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

Fig 1 Mapa do festival Mídia Tática Brasil. Casa das Rosas, São Paulo, 2003.
Fonte: midiatatica.info
marginalizada e, antes de tudo, expressão primeira da lógica colonizada
das culturas latino-americanas (ROSAS; WELLS, 2003, n.p.).

O festival Digitofagia, em 2004, também contou com Rosas em sua con-


cepção e visou aprofundar a compreensão da mídia tática no contexto es-
pecífico do Brasil, pensando na urgência de “abrasileirar” tais práticas, que
eram teorizadas sob influência de teorias e objetivos que se distanciam de
nossa realidade. O evento deu origem ao livro Net_Cultura 1.0: digitofagia,
organizado por Rosas e Giseli Vasconcelos (2006), cujo prefácio, escrito
por ambos, aponta para elementos típicos da cultura brasileira que ficavam
de fora das conceituações sobre mídia tática – que se concentravam em
questões mais genéricas, como software livre, midiativismo e trabalho em
rede. Tais elementos brasileiros marginalizados seriam a prática da pirata-
ria, o modo de atuação dos camelôs, a gambiarra, a prática indiscriminada
e ilegal da sampleagem espontânea e do remix na formação da cultura
brasileira, a colaboração e o mutirão. A partir dessa indagação, o festival
propunha a atualização do tema da antropofagia, uma das pedras funda-
mentais da cultura brasileira do século XX.
O movimento antropófago da década de 1920 – sintetizado no
manifesto escrito por Oswald de Andrade – defendia a assimilação ou
devoramento de realidades e culturas alheias ao Brasil como forma de
reapropriação do poder do outro – tomando como base a prática indí-
gena de devorar o guerreiro inimigo. Ao mesmo tempo, o movimento
cultural pregava a valorização de elementos reprimidos e dos legados não
reconhecidos na cultura brasileira, como as heranças negra e indígena.
O conceito de antropofagia reapareceu algumas vezes ao longo do sécu-
lo passado, como em seus desdobramentos no movimento tropicalista
dos anos 1960 e na Bienal de São Paulo de 1998, intitulada “Um e/entre
161 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

outro/s”, que ficou conhecida como “Bienal da Antropofagia”. O Digito-


fagia trouxe a antropofagia para o contexto da cultura digital – influen-
ciado, dessa vez, por discussões sobre propriedade intelectual e domínio
de grandes corporações, como a Microsoft, na área computacional. O ato
de abraçar práticas espontâneas do nosso contexto, como a pirataria e a
gambiarra, seria uma forma de trazer a mídia tática para um campo mais
familiar aos teóricos e praticantes brasileiros.
No texto “Digitofagizando”, publicado na revista Global Brasil, Ro-
sas propõe a ideia de “antropofagizar” a mídia tática popular e trazer à luz
práticas de fundo de quintal. Uma digitofagia que, em suas palavras, “não
apenas engolisse o digital, a mídia tática, mas igualmente todo o legado da
rica e diversa cultura popular que as elites insistem em varrer para debaixo
do tapete” (ROSAS, 2004, p. 52). O crítico desejava reconhecer traços nacio-
nais na nossa cultura eletrônica, nossa mídia-arte e nossas redes livres de
comunicação e cibercultura.

Gambiarra como prática política

Gambiarra é um tema aprofundado por Ricardo Rosas no texto “Gambiar-


ra: alguns pontos para se pensar uma tecnologia recombinante”. Conside-
rada um desvio ou improvisação aplicado ao uso de dispositivos, objetos
e espaços antes destinados a outras funções – devido à falta de recursos,
tempo ou mão de obra –, ela possui sentido cultural forte no Brasil, de-
signando soluções rápidas e feitas com as possibilidades à mão. O escopo
dessas iniciativas é imenso, como levanta o crítico:

Gatos, ou puxadinhos, ou seja, as fiações de energia elétrica ilegais; as “TVs


a gato”, pegando ilegalmente programações de TVs a cabo; as montagens
de bicicletas com caixas de som para propaganda popular em Belém do
Pará, chamadas “bikes elétricas”; o Triciclo Amarelinho do seu Pelé, no
Rio de Janeiro, conforme Gabriela de Gusmão Pereira, que junta aparelho
de som 3–em–1, TV, farol, baterias, capa de chuva, despertador e luzes de
Natal; os já “estabelecidos” trios elétricos, com sua mistura de caminhão
e caixas de som de soundsystem; as transformações de soundsystems em
verdadeiros painéis de controle de naves espaciais nos bailes funk cariocas,
entre outras variantes (ROSAS, 2006, p. 41).

Entendendo gambiarra como arte ou intervenção na esfera social, Rosas


162 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

chama atenção para alguns elementos quase sempre presentes: a precarie-


dade dos meios; a improvisação; a inventividade; o diálogo com a realidade
circundante; a possibilidade de sustentabilidade; o flerte com a ilegalidade;
a recombinação tecnológica pelo reuso ou de uma dada tecnologia, entre
outros. Mais do que mero improviso, o crítico considera a gambiarra uma
prática política, na medida em que – de forma consciente ou não – pode
negar a lógica produtiva capitalista e sanar uma falta, uma deficiência, uma
precariedade. Um grito de liberdade, de protesto ou de existência, a gam-
biarra afirma a criatividade diante das adversidades, possibilitando algum
conforto àqueles que são marginalizados. Em um texto publicado postu-
mamente na internet, Rosas (2007) cunha o termo “truquenologia”, ou
tecnologia do truque, para nomear gambiarras que englobam dispositivos
eletrônicos, de alta e baixa tecnologia, ou máquinas em geral, desde que
estejam presentes em seu uso a alteração, transgressão ou improvisação.
Algumas ações de mídia tática no Brasil traduzem as ideias de Rosas
sobre gambiarra e política, como o Movimento dos Sem SatéliTe – MSST.
Fazendo referência em seu nome a movimentos sociais como o Movimen-
to Sem Terra (MST) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o
MSST questiona a relação dos indivíduos comuns com a tecnologia dos
satélites. A principal obra atribuída ao movimento é o documentário de
Bruno Vianna intitulado Satélite Bolinha – nome dado a um grupo de sa-
télites militares norte-americanos que, por seu acesso simplificado, foram
utilizados ilegalmente por brasileiros (principalmente por caminhonei-
ros) durante anos para comunicação por rádios-amadores, por meio de
materiais e técnicas low-tech e de baixo custo. Trata-se de uma “ocupação
satelital”, como se refere Vianna (2010) em depoimento cedido à Revista
Global Brasil, reforçando a relação com os movimentos que lidam com a
ideia de ocupação.
O MetaReciclagem, criado em 2002, tem a proposta de reutilizar
computadores considerados obsoletos para a criação de laboratórios de in-
formática em áreas empobrecidas, indo além de um projeto de inclusão
digital – categoria contaminada por uma visão liberal do acesso à tecnolo-
gia, cujo objetivo é treinar pessoas de baixa renda para o uso de softwares
adotados por empresas potencialmente empregadoras. Desmascarando a
obsolescência programada, além de contribuir com a diminuição do lixo
tecnológico, o projeto também prevê o desenvolvimento de soluções livres
em software, da concepção à escritura do código, transformando o usuário
em sujeito propositivo em vez de mero cliente passivo.
O projeto Recicle um Político foi realizado pela primeira vez no pe-
163 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

ríodo pré-eleitoral de 2002: uma campanha online que convidava pessoas


a retirar o material publicitário dos políticos que sujam as cidades e reuti-
lizá-los para outros fins. Dezenas de novas aplicações artísticas e satíricas
foram dadas ao plástico de galhardetes recolhidos das ruas.
Nas artes visuais, a mídia tática ganha diferentes desdobramentos:
imagens que se confundem com anúncios publicitários, mas não vendem
nada – e em vez disso carregam conteúdo poético (exemplos: cartazes do
grupo Atrocidades Maravilhosas; faixas e panfletos do Poro – ambos da
década de 2000); intervenções artísticas clandestinas ou com caráter de
factoide nos jornais, na TV, em revistas e outros meios de comunicação
(exemplos: interferências de Paulo Bruscky e Antonio Manuel em jornais
164 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

Fig 2 Ducha. Coca-coca (Atrocidades Maravilhosas). Av. Gomes Freire, Rio de


Janeiro, 2000. Fotografia do artista.
na década de 1970); reapropriações críticas de signos do mundo da publi-
cidade (exemplos: trabalhos de Cildo Meireles desde a década de 1970 e do
grupo Tupinambá Lambido desde 2016); desvios e alterações efetuadas em
mídias de sinalização e comunicação (exemplos: interferências de Guga
Ferraz em placas de sinalização de pontos de ônibus e nas peças de sinali-
zação presentes nos veículos, na década de 2000).
Ao inserir trabalhos de arte na categoria mídia tática, destacamos
sua capacidade de interferir nos fluxos de poder e seu potencial viral. Essas
táticas criativas propõem inversões nos veículos de comunicação, como
também nos signos por eles emitidos.

Difusão e desdobramentos da mídia tática no Brasil

Além da produção de eventos e da contribuição teórica de Rosas, um


dos mais importantes projetos do crítico cearense é o Rizoma.net, que
fundou ao lado de Marcus Salgado em 2002. O Rizoma constituía um
extenso acervo online e gratuito de textos sobre ativismo, cibercultura,
intervenção urbana, situacionismo, cinema, antiarte e outros temas, de
autores nacionais e internacionais traduzidos para o português. Era pos-
sível encontrar desde ensaios clássicos dos situacionistas até textos pou-
co difundidos no Brasil, de autores de diversos tempos e nacionalidades,
como Michel Foucault, Giorgio Agamben, Marcel Duchamp, Jacques
Rancière, Suely Rolnik, coletivos artísticos e ativistas – além do próprio
Ricardo Rosas. Influenciado pela cultura hacker, o Rizoma foge da lógica
mercadológica e adota a política do livre acesso, que vai ao encontro das
ideias da mídia tática.
Cada edição do Rizoma apresenta um título: “Afrofuturismo”, “Anar-
165 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

quitextura”, “Intervenção”, “Câmera-olho”, “Neuropolítica”, “Potlach”, en-


tre outros.3 Tendo como base um tema, os editores faziam uma curadoria
de textos, aproximando autores de diferentes campos do conhecimento, o
que incentivava a formação crítica dos leitores. Além disso, o Rizoma con-
tribuiu com a difusão de manifestações artísticas e divulgação de coletivos
que naquele momento estavam emergindo.
Uma série de iniciativas similares ou distintas surgiu depois, como o
Desarquivo.org, uma plataforma online colaborativa, fundada pela artista

3 O acervo completo do Rizoma está disponível em: https://midiatatica.desarquivo.


org/2002-2005/rizoma-net/
Cristina Ribas, com o intuito de hospedar e difundir práticas artísticas e
discussões sobre mídias livres no Brasil (arquivando textos, folhetos, ca-
tálogos etc.). O Midiatatica.info, criado por Giseli Vasconcelos, Tatiana
Wells, Ricardo Rosas e Ricardo Ruiz, narra a trajetória coletiva construída
ao longo das últimas décadas. O Arquivos Táticos (https://midiatatica.de-
sarquivo.org/), desenvolvido por Ribas, Vasconcelos e Wells, compila car-
tograficamente, em uma plataforma online, publicações sobre processos
colaborativos e abertos de arte e mídia brasileiras, dos anos 2000 em dian-
te, vistos sob a perspectiva das mulheres.
As práticas de mídia transformaram-se na última década com a po-
pularização das redes sociais e dos smartphones. Seus sintomas puderam
ser sentidos nas manifestações que ocorreram em todo o Brasil em junho
de 2013. Em tal contexto, surgiram coletivos estético-políticos que, dife-
rentemente dos grupos brasileiros que se proliferaram na virada do século
XXI, contaram com as redes sociais como elementos essenciais para sua
articulação, servindo como instrumento de organização e troca, inclusi-
ve em tempo real – assim como também o foram para organizadores dos
protestos. Desde então intensificaram-se usos e contrausos das tecnologias
que surgem incessantemente e em alta velocidade – tão rapidamente quan-
to sua obsolescência e substituição. Mas o legado de Ricardo Rosas ainda
ecoa e fornece bases para a compreensão do atual contexto e para o surgi-
mento de novas táticas e estratégias diante das mídias vigentes.
166 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES
REFERÊNCIAS

CERTEAU, Michel de. A invenção do


cotidiano. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
FOLETTO, Leonardo. Mídia tática e cultura
hacker: aproximações no contexto
brasileiro. In: Anais do II Congresso
Internacional de Net-Ativismo. São
Paulo: ECA-USP, 2015.
GARCIA, David, LOVINK, Geert. O ABC
da mídia tática. In: ROSAS, Ricardo,
SALGADO, Marcus (org.). Rizoma –
Intervenção, 2002. Disponível em:
http://desarquivo.org/node/1228/.
Acesso em 08 maio 2020.
ROSAS, Ricardo; WELLS, Tatiana. Que
venha a mídia tática! In: Mídia Tática
Brasil (pôster), 2003. Disponível em:
<http://desarquivo.org/node/1074/>.
Acesso em 18 ago. 2022.
ROSAS, Ricardo. Digitofagizando. In:
Revista Global Brasil, n. 4, 2005.
ROSAS, Ricardo; VASCONCELOS, Giseli.
Net_Cultura 1.0: digitofagia. São
Paulo: Radical Livros, 2006.
ROSAS, Ricardo. Gambiarra: alguns
pontos para se pensar uma tecnologia
recombinante. In: Caderno
Videobrasil, São Paulo, n. 2, 2006.
ROSAS, Ricardo. Truquenologia:
elementos para se pensar uma
teoria da gambiarra tecnológica,
167 THIAGO SPÍNDOLA MOTTA FERNANDES

2007. Disponível em: https://www.


gambiologia.net/blog/biblioteca.
Acesso em 18 ago. 2022.
TACTICAL MEDIA FILES. Disponível em:
http://www.tacticalmediafiles.net/
n5m4/faq.jsp-faqid=programme.html.
Acesso em 18 ago. 2022.
VIANNA, Bruno. Movimento dos Sem
SatéliTe. In: Revista Global Brasil, n.
13, 2013.
Para afastar a presença da morte:
imagem, dor e cuidado nos tempos atuais
SARA RAMOS DE OLIVEIRA
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das
Artes da Universidade Federal Fluminense – PPGCA/UFF

Colecionar fotos é colecionar o mundo. (…)


Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada.
Susan Sontag

Em 1977, ano em que a escritora norte-americana Susan Sontag lançou o


livro Sobre fotografia, no qual, segundo suas próprias palavras, “tudo come-
çou com um ensaio – sobre alguns dos problemas estéticos e morais, propos-
tos pela onipresença das imagens fotográficas” (SONTAG, 2022, p. 7), o mundo
vivia o período pós-guerra do Vietnã. Depois das duas grandes guerras, a
Guerra do Vietnã foi um marco na chamada cultura de guerra do século XX –
considerando-se múltiplos fatores, mas, principalmente, o que nos interessa
aqui: foi a primeira guerra com cobertura jornalística acompanhada dia a
dia por milhares de espectadores em tempo real (SONTAG, 2003, p. 13).
O impacto negativo sobre a Guerra do Vietnã foi consequência di-
reta de um bombardeio de exposição das imagens de suas vítimas – fruto
não só da cobertura jornalística televisiva, como também da massiva di-
fusão das imagens fotográficas do conflito. A fotografia de uma criança
correndo nua, coberta de napalm em direção a um fotojornalista (Figura 1),
assim como a foto do instante exato em que um soldado vietcongue é exe-
cutado a sangue frio (Figura 2), foram capazes de mudar completamente a
forma como o mundo se relacionaria com a guerra a partir de então, mas
não só. Essa fotografia mudou o paradigma de como nos relacionamos
com a dor e a violência e, de forma ampliada, com a própria importância
da imagem fotográfica na vida cotidiana.
169 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

O século XX e o começo do XXI ainda seriam marcados por vários


conflitos por vir: Guerra da Bósnia, Guerra das Malvinas, Guerra do Gol-
fo, 11 de setembro, Guerra do Iraque, sem contar a própria Guerra Fria,
além dos conflitos “menores”, fora do grande alcance midiático. O rápido
avanço da tecnologia fotográfica e fílmica durante esse período propor-
cionou ao mundo todo a oportunidade de conviver cotidianamente com
as imagens da guerra, deglutindo-as do café da manhã, no jornal matinal,
ao jantar, no telejornal do horário nobre. Contudo, no campo de batalha
170 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

Fig 1 Crianças vietnamitas correndo por uma estrada após ataque com
Napalm, em um vilarejo perto de Saigon. © Nick Ut. Fonte: https://www.hypeness.
com.br/2018/02/a-historia-por-tras-da-foto-que-mudou-a-guerra-do-vietna-ha-
50-anos/. Acesso em 26 ago. 2022.
171 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

Fig 2 Foto tirada pelo fotojornalista Eddie Adams no exato momento da


execução do soldado Nguyen Van Lem. © Eddie Adams/AP. Fonte: https://www.
hypeness.com.br/2018/02/a-historia-por-tras-da-foto-que-mudou-a-guerra-do-
vietna-ha-50-anos/. Acesso em 26 ago. 2022.
das imagens, o que se havia mostrado como uma tendência que seria via
de regra para todos esses conflitos, veio a se desenvolver e se reestruturar
de acordo com demandas políticas um tanto mais sutis que viriam a surgir.
As imagens brincam com a escala do mundo – é como se, ao ad-
quirirmos uma imagem, o que estivéssemos na verdade adquirindo fosse
um pedaço da realidade (SONTAG, 2022, p. 15). Só que existem interesses
institucionais sobre esses “pedaços de realidade” que chegaram até nós e
irão, invariavelmente, influenciar nossa visão de mundo. O Estado e o ca-
pital estão interessados, sem dúvida, no agenciamento do impacto de tais
miniaturas em nós – ideia que foi trabalhada por Judith Butler em seu
livro Quadros de guerra (2004), no qual dialoga diretamente com Susan
Sontag, como veremos mais adiante. Ora, as imagens fotográficas possuem
uma estrutura complexa: se oferecem a nós como um testemunho – de for-
ma que, se não houver fotografia para comprovar um determinado fato, é
como se ele nunca tivesse existido (SONTAG, 2022, p. 16) –, contudo, podem
ser alteradas, editadas, formatadas e, também por isso, são capazes de criar
sua própria realidade. Realidade esta que é assimilável, pois haverá ali pes-
soas e objetos “reais” (o que quer que isso signifique), mas a realidade que
é inaugurada por uma fotografia sempre será um tanto quanto enviesada.
Aqui começa uma série de problemas. A discussão iniciada por Son-
tag em seu trabalho citado ainda viria a ser refutada pela própria autora 26
anos depois – em seu livro Diante da dor dos outros (2003). Nele, ela dedica
um capítulo à ponderação sobre duas das principais questões fotográficas
disseminadas no momento no qual o atual livro era escrito: a primeira
sendo o fato de que

a atenção pública é guiada pelas atenções da mídia — ou seja, de forma


mais categórica, pelas imagens. Quando há fotos, uma guerra se torna
“real”. Assim, o protesto contra a Guerra do Vietnã foi mobilizado por
imagens. O sentimento de que algo tinha de ser feito a respeito da guerra
na Bósnia foi construído a partir das atenções dos jornalistas — “o efeito
172 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

CNN”, como foi às vezes chamado — que trouxeram imagens de Sarajevo


sitiada para o interior de milhões de salas de estar, noite após noite, duran-
te mais de três anos (SONTAG, 2003, p. 65).

e a segunda, sobre o fato de que, em um contexto de hipersaturação de


imagens, as imagens da dor e da violência acabam por nos surtir o efeito
contrário do desejado: acabamos por nos tornar alheios e insensíveis à dor
do outro.
No primeiro dos seis ensaios do livro Sobre fotografia (1977), afirmei que
se um fato conhecido mediante fotos se torna sem dúvida mais real do
que se tais fotos nunca tivessem sido vistas, após uma exposição repetida,
no entanto, esse mesmo fato se torna também menos real. Na mesma me-
dida em que criam solidariedade, escrevi, as fotos atrofiam a solidarieda-
de. Isso é verdade? Achei que era, quando o escrevi. Agora, não estou tão
certa. Qual a prova de que as fotos produzem um impacto decrescente, de
que nossa cultura de espectadores neutraliza a força moral das fotos de
atrocidades? (Idem)

O questionamento da autora se faz em torno de uma problemática visceral:


o que fazer diante de uma situação como essa, onde não sabemos a medi-
da das consequências de uma constante exposição às imagens do horror –
tendo ainda em vista que tais imagens são absolutamente comprometidas
com o Estado e demais agências de poder, ou como os veículos de massa
desejam manejar a opinião pública de acordo com comprometimentos de
ordem pública e privada pré-estabelecidos. Em sua autorrefutação, Sontag
conclui que a superexposição às imagens do horror não serão as responsá-
veis pela insensibilidade à dor do outro, e sim, que é o próprio conceito de
realidade que sofre, diante desse novo paradigma de relações com a ima-
gem, de uma erosão vertiginosa.
O que mudou foi a forma como nos relacionamos com a imagem e
como ela afeta nossa concepção da realidade, e seria de uma imensa inge-
nuidade – e provincianismo, usando suas próprias palavras – achar que
haveria algo como uma “ecologia de imagens”, que ela sugere no final de
Sobre fotografia (1977). No fim das contas, o problema é uma mudança na
relação com o outro, que agora se configura mediada por imagens que são
por si só mediadas por interesses institucionais e corporativos, o tempo
todo exercendo controle sobre a forma como essas imagens serão feitas,
como elas chegaram até nós, como elas nos afetam.
173 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

Tornou-se um clichê da discussão cosmopolita em torno de imagens de


atrocidade supor que elas produzem um efeito reduzido e que existe algo
intrinsecamente cínico acerca da sua difusão. (…) Cidadãos da moder-
nidade, consumidores de violência como espetáculo, adeptos da proxi-
midade sem risco aprendem a ser cínicos a respeito da possibilidade da
sinceridade. Algumas pessoas farão qualquer coisa a fim de não se como-
ver (Ibidem, p. 69).
Ver o outro em sua dor e enlutar-se. Mas, que outro?

O regime de imagens do mundo no começo do século XXI era considera-


velmente diferente do que conhecemos agora. Se até aquele momento era
viável nos considerarmos meros espectadores, hoje essa realidade mudou
completamente. Por mais que a tecnologia fotográfica já fizesse parte do
dia a dia das pessoas, esse cenário não era comparado ao contexto de aces-
so e reprodução que vivemos hoje – somos todos agentes fotográficos em
potencial, munidos com aparelhos que não somente fotografam e filmam
em alta qualidade, como também estão constantemente conectados, nos
facilitando a comunicação com qualquer pessoa em qualquer lugar do pla-
neta em tempo real.
Em última análise, os celulares e demais tecnologias digitais são
hoje instrumentos básicos de cidadania. É preciso ter um celular para todo
e qualquer tipo de acesso: da conta bancária ao acesso a bens de direito
básico, como políticas governamentais ou programas de redução de danos,
além da própria comunicação cotidiana. Como dito por Donna Haraway
em Manifesto ciborgue (1991), os aparelhos tecnológicos já fazem parte de
nossos corpos e nos transformaram em seres híbridos: nos transformamos
invariavelmente em ciborgues – ciborgues imagéticos, talvez. O bombar-
deio de imagens do mundo de hoje é na verdade uma espécie de extensão
dos nossos sentidos, uma amálgama de interesses corporativos e subjeti-
vos envolvidos em uma complexa trama que vem cotidianamente transfor-
mando nossas concepções de realidade.
Através desse novo regime de imagens, estamos o tempo todo in-
formando e sendo informados, dissipando o mundo através desta que se
configura cada dia mais como uma nova forma de linguagem. Porém, a
grande maioria das imagens que chegam até nós são banalidades: memes,
fake news, fotos de almoço, de animais de estimação, de corpos idealiza-
dos, celebridades etc. – consequência de uma série de políticas de seleção
de conteúdo com base nos nossos interesses e reações aos conteúdos que
174 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

nos são apresentados. De que forma esse novo regime nos posiciona diante
da dor do outro hoje? O que temos diante de nós é uma nova forma de con-
ceber o mundo – através de imagens –, que não são mais somente meios de
invenção de realidades, e sim, realidades em si.
Susan Sontag, Boris Kossoy, Vilém Flusser, Jacques Derrida e Gilles
Deleuze são apenas alguns dos autores que, principalmente no século XX,
trabalharam com a perspectiva de que a fotografia trouxe uma nova for-
ma de nos relacionarmos com o mundo. Com a invenção e dissipação da
fotografia, a realidade passa a ser, também, uma virtualidade para a qual
o corpo se projeta e interage dentro de sua gramática própria, com suas
próprias regras, éticas e valores. Todos podem fazer parte dela, se quise-
rem, mas nem todos são selecionados: onde se acrescenta um verdadeiro
mistério agravante ao qual o atual regime de imagens que vivemos nos
submeteu – os chamados algoritmos, esses estranhos conhecidos que todos
sabem que existem, mas ninguém conhece a verdadeira natureza.
Antes de adentrarmos nesta obscura complexidade e a relacionar-
mos com a ética da dor e da violência no regime de imagens de hoje, é pre-
ciso compreender um pouco mais seus antecedentes. Judith Butler dialoga
com Sontag a respeito da tortura e da ética da fotografia, no terceiro capí-
tulo do livro Quadros de guerra (2009). Butler antecede o diálogo aprofun-
dado em questão em um trabalho anterior, denominado Precarious Life
(2004), onde é discutido, basicamente, quais são as vidas dignas do luto e
do cuidado nos regimes de sujeição e violência de hoje. O debate é amplia-
do diante da necessidade de se considerar o olhar comprometido, usando
termos da própria autora, pelas

molduras pelas quais apreendemos ou, na verdade, não conseguimos apre-


ender a vida dos outros como perdida ou lesada (suscetível de ser perdida
ou lesada), [pois tais molduras] estão politicamente saturadas. Elas são em
si mesmas operações de poder (BUTLER, 2015, p. 13).

Desse modo, apreender uma vida como digna de luto, ou seja, reconhecer
que um determinado corpo sofre ou não e, portanto, é ou não passível de
cuidado e empatia, passa por um longo processo de emolduramento, forte-
mente atuante na construção dos delimitadores que nos farão, de fato, ver
o sofrimento do outro. Em última instância, o que é indagado por Butler
é de que modo é construída a ética do cuidado e de preservação da vida, e
de que vida estamos falando.
175 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

Minha opinião — que certamente não é nova, mas vale ser repetida — é que
a maneira pela qual respondemos à dor dos outros e se o fazemos, e a manei-
ra como formulamos críticas morais e articulamos análises políticas depen-
dem de certo campo de realidade perceptível já ter sido estabelecido. Nesse
campo de realidade perceptível, a noção do humano reconhecível se forma e
se reitera, em oposição àquilo que não pode ser nomeado ou encarado como
humano, uma representação do não humano que determina negativamente
e perturba potencialmente o que é reconhecidamente humano (Idem, p. 94).
176 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

Fig 3 Lynndie England segurando uma coleira presa ao pescoço de


um prisioneiro nu, conhecido pelos guardas como “Gus”. U.S. Government,
domínio público. Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.
php?search=Abu+Ghraib+prisoner+abuse&title=Special:MediaSearch
&type=image. Acesso em 26 ago. 2022.
177 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

Fig 4 Charles Graner posa com o cadáver de Manadel al-Jamadi,


após ele ter sido torturado até a morte pela CIA. U.S. Government,
domínio público. Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.
php?search=Abu+Ghraib+prisoner+abuse&title=Special:MediaSearch
&type=image. Acesso em 26 ago. 2022.
178 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

Fig 5 Sabrina Harman posa com o cadáver de Manadel al-Jamadi, após


ele ter sido torturado até a morte pela CIA. Fotografia: U.S. Government,
domínio público. Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.
php?search=Abu+Ghraib+prisoner+abuse&title=Special:MediaSearch
&type=image. Acesso em 26 ago. 2022.
As imagens da dor e do sofrimento e, principalmente, a forma como elas
são consumidas por nós, estão na linha de frente da construção e manu-
tenção dos enquadramentos que irão determinar a nós quais são as vidas,
reconhecidamente humanas, dignas de luto e cuidado. Esse efeito de emol-
duramento causado pelo comprometimento das imagens e reportagens dos
sofrimentos da guerra sofreu inúmeras transformações ao longo do tempo
– desde a Guerra das Malvinas, em 1982, onde o Governo Britânico inau-
gurou a cobertura comprometida, “quando apenas dois repórteres fotográ-
ficos receberam permissão para entrar na região e nenhuma transmissão
televisiva foi autorizada” (BUTLER, 2015, p. 102) –, e cada vez mais os jorna-
listas e conglomerados/consórcios midiáticos tiveram de aceitar e conviver
com as exigências comprometidas para que pudessem ter algum acesso às
ações do campo de batalha.
A cobertura da Guerra do Iraque é outro exemplo tácito trazido por
Butler, onde apenas jornalistas autorizados pelas juntas militares, levados
em veículos oficiais, e apenas para lugares pré-determinados puderam fa-
zer a cobertura da guerra, acabando por desencadear também um acordo
comprometido menos explícito: uma clara concordância dos veículos de
mídia em não expor fotos de corpos no campo de batalha, de quaisquer
nacionalidades que sejam. “Ao regular a perspectiva além do conteúdo, as
autoridades do Estado manifestavam claramente seu interesse em regular
os modos visuais de participação na guerra” (Ibidem, p. 97). A conclusão é
de que, de fato, nossa apreensão cognitiva da guerra é determinada pelos
esforços do Estado e demais órgãos responsáveis por regular os campos
visuais do conflito: o que pode ser visto, quando e como.
Mas, mesmo com todo o esforço do Departamento de Defesa em
emoldurar os quadros da guerra que seriam vistos pelo mundo todo, mes-
mo com o emolduramento voluntário que surge a partir desse condi-
cionamento do olhar e de uma ética da fotografia do sofrimento que se
desenvolve ao longo desses processos sociais de relação com a imagem, o
mundo ainda estava para se deparar com uma chocante realidade sobre a
179 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

dor e o sofrimento diante de corpos “dignos ou não” de luto e cuidado. Em


2004, a CBS News divulgou fotos de tortura realizadas na prisão de Abu
Ghraib, durante a guerra do Iraque (figuras 3, 4 e 5).
As torturas incluíam todo tipo de abuso físico e mental, estupro, so-
domia, e a morte de Manadel al-Jamadi, durante interrogatório feito pela
CIA na prisão. Estas torturas eram realizadas por soldados americanos em
prisioneiros iraquianos, e as fotografias não eram parte de nenhum tipo
de relatório oficial – uma vez que os abusos “não eram” de natureza oficial,
180 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

Fig 6 Prisioneiros no Camp X-Ray, na prisão de Guantánamo. Os protocolos


usados no tratamento dos prisioneiros violam as Convenções de Genebra.
Apesar disso, Guantánamo continua aberta até os dias de hoje. Fotografia:
Shane T. McCoy, U.S. Navy, domínio público. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/
Pris%C3%A3o_de_Guant%C3%A1namo#/media/Ficheiro:Camp_x-ray_detainees.
jpg. Acesso em 26 ago. 2022.
apesar de documentos que ficaram conhecidos como Torture memos mos-
trarem que alguns tipos de “técnicas de interrogação coercitiva” (eufemis-
mo para a tortura sistemática por parte dos órgãos militares em áreas de
conflito) eram incentivadas pelo exército estadunidense na invasão do Ira-
que –, mas eram apenas formas utilizadas pelos oficiais de mostrarem “o
que estava acontecendo, o que era permitido que fosse feito”1.
Os soldados e comandantes designados às funções da prisão de Abu
Ghraib não haviam sido treinados sobre as Convenções de Genebra. O
caso da prisão de Abu Ghraib se tornou – juntamente com relatórios e
investigações sobre as graves violações de direitos humanos que aconte-
ceram na prisão de Guantánamo (Figura 6) – emblemático em relação à
política de tortura e desumanização sistemática que o governo dos Estados
Unidos da América incute sobre os sujeitos da chamada “guerra ao ter-
ror”. Porém, essas violações só chegaram ao conhecimento do mundo com
a divulgação das fotografias que comprovaram sua existência, sendo que,
talvez se elas não tivessem passado das salas de relatórios militares, muito
provavelmente continuaríamos sem conhecimento do terror promovido
pelo governo dos Estados Unidos em nome do “combate ao terror”.
A quem é “permitido” que tais torturas sejam feitas? Será que se
as imagens do 11 de setembro não tivessem invadido as casas de milhões
de espectadores por todo o mundo o governo norte-americano se “au-
torizaria” a cometer os horrores comprovados pelas imagens da prisão
de Guantánamo e Abu Ghraib? O que as fotos de Abu Ghraib mostram,
na verdade, é a completa exposição do lugar do Outro reservado àquele
que é destituído de humanidade, segundo o Departamento de Defesa
dos Estados Unidos. Como dito por Judith Butler (2015), quando Sabrina
Harman e Charles Graner posam sorrindo, fazendo “joinha” ao lado de
um corpo que acabou de ser morto por um órgão oficial de investigação,
o que eles estão mostrando é quais os corpos são dignos de luto e cuidado
e quais não; obviamente essa fotografia não seria tirada ao lado de um
corpo branco e americano. O enquadramento que levou à possibilidade
181 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

de existência dessa foto começou a ser sistematizado quando as imagens


da guerra começaram a fazer parte de nossas vidas através dos jornais,
TV, e depois na internet, gradativamente influenciando nossa apreensão

1 Palavras de Sabrina Harman, uma das ex-soldados norte-americanas envolvidas nas


torturas e abusos da prisão de Abu Ghraib, em entrevista à revista The New Yorker.
Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2008/03/24/exposure-5. Acesso
em 26 ago. 2022.
cognitiva sobre quais vidas serão enlutadas e quais não, e, ainda, qual é a
vida que será reconhecidamente digna de ser chamada assim (diante das
câmeras e fora delas).
Mas será que, dessa mesma forma, nossa apreensão cognitiva da re-
alidade de maneira ampliada – não somente no que tange à relação entre
imagem e violência – também não está comprometida pelo processo de
emolduramento que vivemos há tempos? O processo de comprometimen-
to do olhar é precedente e estruturante dentro daquilo que Judith Butler
chama de campo de realidade perceptível. No contexto de supersaturação
de imagens de hoje, dentro das características próprias do seu papel em
nosso cotidiano, talvez esses precedentes se tornem difusos, e perceber os
enquadramentos seja muito mais difícil – mas isso não significa que eles
não operam através de nossas acepções da realidade.
No feed do Instagram e no TikTok, não é possível ver imagens de
tortura e de violência que acontecem todos os dias nas ruas das grandes
cidades. Não vemos as violências das cidades do interior (onde o Estado
simplesmente não existe), ou até mesmo as violências que acontecem no
seio das famílias, onde os abusos são silenciosos e velados. Os feeds das
redes sociais recortam e emolduram, nos entregam somente as narrativas
permitidas de serem compartilhadas – não se vê nas telas de ninguém as
terríveis feridas que carregamos dentro de cada um de nós, as frustrações,
a “vida real”. Nós somos todos agentes fotográficos em potencial, mas as
imagens que escolhemos produzir e reproduzir de nós mesmos são sele-
ções extremamente restritas, resultantes do processo de emolduramento
da experiência que aprimoramos cotidianamente em décadas (senão sé-
culos) de exposição e “treinamento” a um estilo de vida positivo. Mesmo
quando usamos os aparelhos como instrumentos de denúncia e crítica, as
imagens resultantes dessa denúncia se tornam elementos dessa linguagem
virtual e passam a disputar com os algoritmos no feed quais imagens serão
entregues e quais serão veladas. Não há mais vida que não faça parte da
rede social, o conceito de realidade se expandiu dentro deste (nem tão mais
182 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

novo) território.
Os nossos aparelhos produtores de imagens são, na verdade, pro-
dutores de uma realidade que, por natureza, seleciona, recorta, filtra, e
alimenta um determinado conjunto de regras. Não que isso seja exclusi-
vidade de nossos tempos, pois os enquadramentos comprometidos atuam
na construção da percepção desde o surgimento das primeiras culturas
humanas, onde as imagens se qualificam enquanto virtualidade contínua
da realidade.
Mas, quando se vê o enquadramento do enquadramento, o que é que está
acontecendo? Minha sugestão é que o problema aqui não é apenas inter-
no à vida da mídia, mas envolve igualmente os efeitos estruturantes que
certas normas mais amplas, muitas vezes racializadoras e civilizatórias,
têm sobre o que é chamado, provisoriamente, de “realidade” (BUTLER,
2015, p. 113).

A distinção entre “realidade” e “imagem” é de certa forma recente. Se le-


varmos em consideração que as pinturas da Caverna de Chauvet possuem
cerca de 30.000 a. C. e que o poeta era expulso da cidade ideal por Platão
em cerca de 380 a. C, a maior parte da humanidade se constitui na verdade
na ideia de perpetuação da vida através da imagem. Platão considera, em A
república, que a “imitação” – ou seja, a arte – não deveria ter plena autono-
mia, pois assim poderíamos estar sujeitos a seguir discursos “falsos”, pois
a isso se dedicam os poetas.

Nessas condições, se viesse à nossa cidade algum indivíduo dotado da


habilidade de assumir várias formas e de imitar todas as coisas, e se pro-
pusesse a fazer uma demonstração pessoal com seu poema, nós o reveren-
ciaríamos como a um ser sagrado, admirável e divertido, mas lhe diríamos
que em nossa cidade não há ninguém como ele nem é conveniente haver;
e, depois de ungir-lhe a cabeça com mirra e de adorná-lo com fitas de lã,
o poríamos no rumo de qualquer outra cidade. Para nosso uso, teremos
de recorrer a um poeta ou contador de histórias mais austero e menos
divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só imite o estilo mode-
rado e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início
estabelecemos por lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados
(PLATÃO, 2012, p. 17).

Esse paradigma do artista enquanto “falsário”, em contraste com o sujeito


dedicado aos ofícios austeros, à vida política e militar, prevalece até os dias
183 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

de hoje nas sociedades industrializadas. Mas, antes disso, o artista seria a


pessoa que afasta a presença da morte através das imagens, ou seja, am-
pliando o horizonte da realidade através da virtualidade. É claro que esse
processo sempre passará pela interpretação, mesmo quando os aparelhos
que capturam e reproduzem a realidade o fazem de forma quase transcrita,
como é o caso (da maioria) das imagens fotográficas.
Viver como imagem, viver para sempre

O romance A invenção de Morel, do escritor argentino Adolfo Bioy Casares,


conta a história de um narrador anônimo que, refugiado em uma ilha de-
serta, se descobre perdidamente apaixonado por uma imagem. Na verdade,
o narrador descobre que a própria ilha é um aparelho de gravar e reproduzir
imagens, e que não somente sua amada Faustine era uma reprodução idên-
tica à que um dia habitou a ilha, como também são os seus outros compa-
nheiros que, curiosamente, habitam uma casa denominada “museu”.

A palavra museu, que uso para designar esta casa, é uma reminiscência
do tempo em que eu trabalhava nos projetos de minha invenção, sem co-
nhecimento de seu alcance. Na época pensava em erigir grandes álbuns ou
museus, familiares e públicos, com essas imagens (CASARES, 2014, p. 65).

Estas são as palavras de Morel, a quem a narrativa fantástica deve seu nome.
Morel é um rico empresário que persegue o sonho de viver para sempre,
se dedicando a experimentos que possam satisfazer suas fantasias em um
futuro próximo. Em um dado momento, ele percebe que só as fotografias
possuem tal poder, e que, se encontrasse uma maneira de fotografar a vida
em todos os seus aspectos – inclusive volumes, cheiros, e objetos de todos
os tipos, até o sol e a lua –, ele encontraria a vida eterna.
Morel então inventa aparelhos que possuem tal capacidade. São capazes
de gravar e reproduzir tudo o que há, inclusive construções: se os aparelhos
gravam a coluna de um determinado edifício e essa coluna sucumbe em ruínas,
os aparelhos de reprodução são capazes de erigir “imagens em 3D” das colunas
no lugar das ruínas, criando a ilusão de que nunca saíram dali. Morel então tes-
ta sua invenção em seus amigos sem que eles tenham conhecimento num pri-
meiro momento, gravando o que viveram naquela ilha durante uma semana.

Estava decidido a não lhes dizer nada. Assim, os pouparia de uma inquie-
184 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

tação muito natural. Eu teria todos à minha disposição, até o último mo-
mento, sem rebeliões. Mas, como amigos, vocês têm o direito de saber. (…)
Meu abuso consiste em tê-los fotografado sem autorização. É claro que não
se trata de uma fotografia qualquer; é meu último invento. Nós viveremos
nessa fotografia, para sempre (CASARES, 2014, p. 57).

Mas o que Morel escondeu de seus amigos é que há uma consequência para
aqueles e aquelas coisas fotografados pelos seus aparelhos: sucumbem em
pouco mais de sete dias. Os objetos e vegetais duram menos, as pessoas e
animais um pouco mais. Ou seja, Morel, Faustine e os outros são ilusões
espectrais do que viveram anos atrás, e deixaram de existir no mundo real
para viverem para sempre, num mundo de imagens.
O narrador sem nome, ao descobrir a terrível verdade e vivendo em
função de sua paixão por Faustine, decide então abdicar de sua vida para
integrar o mundo-imagem de Morel. Ele observa e ensaia obsessivamente
todos os movimentos, todas as falas, todos os silêncios de sua amada e dos
seus companheiros, e cria a ilusão perfeita de que ele era um dos amigos
integrantes do grupo. Ao ligar os aparelhos que gravarão seus movimen-
tos, ele abre mão de sua vida “real” para integrar o mundo de imagens, a
única forma pela qual ele poderá viver ao lado de sua amada e única forma
pela qual vale a pena viver. Neste sentido, o que poderá ser mais real do
que sua (ilusória) vida ao lado de Faustine em um mundo de imagens? O
que é real fora daquilo que é concebido e apreendido pelos nossos sentidos
e cognição?
A invenção de Morel é publicado pela primeira vez em 1940, e sua
similaridade contextual com os nossos tempos é assustadora. O mundo-
-imagem criado por Morel pode ser lido como uma perfeita analogia para
o mundo virtual de hoje, mas também como um enigma sobre o que é
concebido como realidade. Será que o mundo virtual de hoje é realmente
menos “real” que a “realidade” em si? Há algo como uma realidade em si?
Fato é, a nossa realidade virtual é tão real quanto nossa necessidade
de comer e dormir. A imagem que construímos de nós mesmos nas redes
sociais através de nossos aparelhos é, de fato, uma edição e seleção resul-
tantes do processo de emolduramento que vêm se decantando em nossas
camadas desde que o mundo é mundo. Contudo, ela é uma fração de nos-
sas vidas que há alguns anos deixou de ser optativa, pois ela é determi-
nante na hora de, por exemplo, conseguir um emprego, desenvolver um
trabalho liberal etc. A imagem que construímos de nós mesmos nas redes
é, também, resultante de processos interpretativos que nós não escolhe-
185 SARA RAMOS DE OLIVEIRA

mos, sobre os quais não temos controle, mas dos quais somos agentes em
primeira e última instância – portanto, podemos e devemos interpretar
criticamente sobre o quê queremos construir nessa nova realidade.
Muitxs artistas contemporânies atualmente usam as redes sociais
como ferramentas de pesquisa (e não somente trabalho): é o caso de Aleta
Valente, Davi Jesus do Nascimento, Efe Godoy, Jurema Mombaça, entre
outrxs. Essas artistas, para além de configurarem o uso das redes sociais
para divulgação e organização do seu trabalho, utilizam a plataforma para
conceber novas formas de ver e fazer dos nossos tempos. Tempos de pre-
ponderância de imagens fugazes, de influencers que vendem estilos de vida
absolutamente excludentes, onde o capitalismo se subjetifica cada vez mais
através de campanhas que, sob o pressuposto de defender uma determina-
da hashtag do momento, acaba por condicionar estratégias de comporta-
mento e consumo. Esses trabalhos elaboram nossa capacidade crítica de
observação dos enquadramentos condicionantes das redes, explorando
suas estruturas ao fazer uso delas para fins subversivos. Ao fazer isso, so-
mos levados a observar a moldura da moldura, como Judith Butler sugere,
reorientando os nossos sentidos em direção de novas acepções da realida-
de e, quem sabe um dia, de novas realidades.
Por fim, podemos concluir que é preciso nos alertarmos para a ne-
cessidade de observação, interpretação e crítica das estruturas condicio-
nantes do nosso mundo-imagem, para não nos esquecermos da dor do
outro. Não que devamos estar cientes somente dela, pois não se trata disso.
É preciso nos lembrar quem é esse outro, que se ocultou nas sombras dos
enquadramentos virtuais, em toda sua complexidade. Mas se perdermos a
capacidade de ver a dor do outro e nos enlutar, perderemos toda e qualquer
humanidade que ainda temos, assim como também não teremos capacida-
de para construir novas realidades mais inclusivas e justas. Não é possível
construir um futuro sem observação e reparação do passado – passado
esse que nós, enquanto humanidade civilizatória, carregamos como um
fardo de destruição e dor –, e, para isso, será preciso nos enlutar coletiva-
mente sobre os corpos que foram vítimas desse rastro.
186 SARA RAMOS DE OLIVEIRA
REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Quadros de guerra. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel.
In: Obras completas (1940-1999). Rio
de Janeiro, Biblioteca Azul, 2014.
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue:
ciência, tecnologia e feminismo-
socialista no final do século XX.
In: Antropologia do ciborgue: as
vertigens do pós-humano (org. Tomaz
Tadeu). Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 2009.
PLATÃO. A república. Tradução de
Carlos Alberto Nunes. In: O belo
autônomo: textos clássicos da estética.
Organização de Rodrigo Duarte. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2012.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2022.

187 SARA RAMOS DE OLIVEIRA


A contundência da imagem
está na violência do olhar
RUBENS PILEGGI
Docente na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG

“Uma noite, sentei a Beleza no meu colo. – E a achei amarga.”


Arthur Rimbaud – Uma temporada no inferno

Uma imagem me dói

Os algoritmos da rede social que eu uso trazem a imagem de uma ex-


-namorada como sugestão para que eu visite sua página. Sei que isso vai
me custar um gasto emocional, mas, mesmo assim, não resisto à curio-
sidade e lá vou eu, em um único clique, xeretar suas postagens. Será
que ela já arrumou outro namorado? Será que ela postou uma música
falando de amor e saudades e isso talvez seja uma mensagem indireta
para mim? Quem sabe?
Logo na primeira postagem em seu perfil deparo com a reprodução
de uma fotografia em preto e branco, seguida de uma denúncia pelo as-
sassinato de indígenas. É uma imagem de violência. Cruel, sádica, de um
homem cortando ao meio uma mulher pendurada de cabeça para baixo.
Essa imagem, que eu já conhecia, causa uma sensação ruim. A de-
núncia esvazia a ação impulsiva, imediata. Ela não diz respeito às minhas
sensações, não apresenta um escape para o silêncio, não dá o direito à con-
templação, não oferece uma possibilidade. É o dedo na cara através da me-
diação feita por uma mega empresa internacional que vive de multiplicar
dados, explorando o conteúdo fornecido por seus usuários.
Simplesmente fujo emocionalmente do poder de denúncia da ima-
gem ao entender a importância de se lutar contra esse tipo de crueldade,
aflito para correr os olhos para outra imagem, menos violenta. Levando
em consideração a minha bisbilhotagem no perfil alheio, a frase, para
189 RUBENS PILEGGI

quem foi pego em flagrante, seria algo como: “estava passando aqui por
acaso e resolvi dar uma espiadinha…”. Ela me torna impotente diante do
fato de que não me foi possível fazer nada para impedir que 20 yanomamis
continuem desaparecidos, outros tenham sido assassinados e, ainda, que
estupros tenham sido relatados na aldeia, em maio de 2022. Ou, que uma
criança tenha sido drenada no rio por uma draga de mineração. E nem que
190 RUBENS PILEGGI

Fig 1 Rubens Pileggi. A contundência da imagem está na violência do olhar,


1992, objeto, 30 x 40 cm. Fotografia do autor.
se descubram os reais motivos do assassinato de Bruno e Dom. A imagem
da denúncia entra por um lugar onde o poeta Manuel Bandeira, em vez de
me levar a Pasárgada, me diz: “a vida inteira que poderia ter sido e que não
foi”, fragmento este retirado do poema “Pneumotórax”. Me dói a beleza da
mulher que não me amou; essa imagem, sim, me afeta. Corro o olho para
sua foto de perfil antes de voltar à minha página, mas ainda tenho tempo
de pensar que, em algum momento, iríamos divergir sobre o significado
dessas imagens acusatórias e isso levaria a um impasse.
Sou arrebatado por um outro questionamento, ou melhor, sou levado
à continuidade da mesma questão que se passa entre o afeto e a denúncia,
entre o acolhimento e a carência. Cito, de cabeça, a frase do cineasta Jean-
-Luc Godard, no filme Je vous salue, Saravejo, (1993) que diz que “a cultura
é a regra. A arte, a exceção. E é próprio da regra querer destruir a exceção”.
Aqui, nesse pequeno ensaio que se usa de um exemplo pessoal para
se pensar o que é e do quê se ocupa a imagem na cultura e na arte, divido
minhas inquietações entre o lugar do afeto e o lugar da moral, levando
em consideração, ao mesmo tempo, a ideia de arte e cultura, sabendo, de
antemão, de que lado cairão os dados: há um rompimento amoroso entre
isso e aquilo.
Assim, essa imagem sem corpo que a denúncia anuncia nada poderá
ser além de reforço do que já se conhece. Ela não transita na incerteza, ela
não modifica as aparências, ela não transforma o real, apenas o congela. É
ela que nos pensa em vez de sermos nós a nos apoderar do que ela carrega,
em termos de força motriz. Quero dizer, não carrega o impulso vital da
criação tal como é o espanto encantado do filósofo e do cientista que gri-
tam “eureca!” diante da epifania de um novo invento.
Alguém que posta uma denúncia contra o capitalismo, contra o au-
toritarismo, contra o machismo, contra qualquer tipo de arbitrariedade,
em uma plataforma de comunicação que se alimenta de dados na internet,
já desperdiçou energia suficiente para fazer dessa denúncia uma causa ver-
dadeira e, por assim dizer, já se sente em paz com sua consciência crítica.
Afinal, o que mais esse tipo de imagem produz além desse consolo?
191 RUBENS PILEGGI

O vazio materializado

Nesse momento em que há uma forte tendência da arte ser defendida ape-
nas pelos seus conteúdos – questões raciais, de gênero e temáticas politi-
camente corretas – pergunto-me se a arte, como até então conhecíamos,
pode ter ainda alguma contribuição a oferecer em termos de desenvolvi-
mento da percepção, da sensorialidade, das sensações, dos afetos e (por
que não dizer?) da forma e da linguagem.
Nesse sentido – onde a síntese cede espaço aos discursos e a com-
preensão é um problema de análise cognitiva –, tudo se torna “imagem”.
E toda imagem tem, aparentemente, algo a dizer, transformando-se em
ilustração de uma ideia e não na ideia, ela mesma, como apregoado, por
exemplo, pela arte conceitual. Poderíamos pensar, então, estar vivendo o
paraíso da relação “arte e vida”, tão intensamente buscada por muitos ar-
tistas, particularmente depois de 1950, quando se expandem as questões da
arte pelo uso de materiais, procedimentos e ampliação de temáticas. Mas,
observa-se, também, que há uma baixa de repertório, uma vez que a teoria,
a crítica e a história da arte são vistas, muitas vezes, como anacrônicas.
Independentemente de tudo isso, porém, a arte se move entre sécu-
los e linguagens, entre as sombras e as ideias, porque, assim, ela também
pode fazer parte do vazio, da falta e da ausência como lugares de pertenci-
mento. E, aqui, poderia citar artistas como Rachel Whiteread (1963), com
seus moldes do espaço vazio no entorno dos objetos, além de outros ar-
tistas, como Michael Heizer (1944), artista da land art, nos EUA, com es-
cavações de enormes faixas de terra no deserto, levando em consideração,
justamente, os espaços vazios que a ação criava. Também me lembro do
compositor brasileiro Taiguara (1945-1996), que canta em um dos versos de
sua canção, “Hoje”, de modo melancólico, que “eu desespero e abraço a sua
ausência”, como um mote para a criação para além da tristeza e da perda.
Também o escultor italiano Medardo Rosso (1858-1928) criava usan-
do a força de atração da gravidade, fazendo do bloco entalhado ou mo-
delado algo entre o informe da matéria bruta e a sugestão fina da figura
esculpida na forma. Sua obra – seja no mármore, seja no bronze, mate-
riais duros – traz a marca do derretimento como características formais. A
sombra do rosto da mãe como uma camada de proteção sobre a cabeça da
criança que dorme (Figura 2) é, de fato, uma síntese de afeto pelo sensível
que a matéria, a princípio, inerte, pode criar, em termos de significados.
Como diz Agamben (2009, p. 63), “contemporâneo é, justamen-
192 RUBENS PILEGGI

te, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergu-
lhando a pena nas trevas do presente”. Essa cegueira do excesso de luz é
produzida por uma avalanche de imagens que não causam mais nenhum
impacto. A luz da denúncia é chapada, superficial, pois obedece a uma
lógica digital aparentemente sem corpo, para que não se saiba quem lucra
com os conteúdos produzidos pelos usuários para o mundo online.
193 RUBENS PILEGGI

Fig 2 Medardo Rosso. Madre e bambino che dormono (Amore materno),


1883 (circa), bronze, 39 x 28 x 20 cm. Coleção privada.
Mas, afinal, se essa claridade do contemporâneo nos cega, o que fa-
zer com o abandono real a que somos submetidos, seja ele de uma paixão
frustrada, seja de um problema maior, como a falta de políticas públicas
para combater as injustiças sociais? Talvez não haja saídas em termos indi-
viduais, uma vez que o capital se apodera de corpos e mentes em propor-
ções que estão acima das nossas forças, poderes e potências pessoais
Mas, também, de nada adianta apostar na superficialidade da res-
posta pronta e engajada, enfiando por enfiar a cabeça em um buraco pelo
simples gosto pelo abissal. Ao adensar o raciocínio, é possível também
continuar cultivando o humor e o amor remanescentes de questões an-
teriormente formuladas, como as da antropofagia cultural, lição essa ti-
rada do modernismo brasileiro, que constitui uma base sólida para evitar
o perigo da dispersão que o uso indiscriminado da imagem provoca. A
iconoclastia proposta, então, menos do que quebrar as estátuas religiosas,
defender uma “arte do fora”, colocar-se como à parte de uma cultura, de
uma história, é a de dar ao Outro a possibilidade imaginativa como cami-
nho para ações propositivas no mundo, por menor que seja o raio de ação
desse tipo de doação.
Uma sinalização desse caminho poderia ser, por exemplo, o da
“morte do autor”, que é um problema caro ao pensamento que envolve arte,
imagem e religiosidade, assunto tão bem abordado por pensadores como
Roland Barthes (2004), por exemplo, afirmando o leitor como um parti-
cipador da trama da obra, ao analisar a novela de Balzac, Sarrasine, pu-
blicada em 1830. Ou, ainda, Rancière, em O espectador emancipado (2012).
Sem esquecer o neoconcretismo, com os trabalhos de Lygia Clark e Hélio
Oiticica, com a questão do participador na obra, além de Paulo Leminski,
que aborda essa questão em Ensaios e anseios crípticos (2011).
Penso, para trazer mais um autor, em Sarah Kofman, com o livro A
melancolia da arte (1995), onde, entre outras questões, ela analisa Diderot
discutindo sobre a imitação a partir de Bruno Latour, em uma passagem
que o filósofo escreve que somente “o pássaro, a criança e o macaco” pode-
riam confundir o quadro pintado com a realidade, e a pintura da paisagem
com a própria paisagem.
194 RUBENS PILEGGI

Conclui-se, então, que esse tipo de denúncia pelas imagens online


tende a se apresentar como a representação de uma postura moral, e seu
destino é a disseminação do ódio como estratégia de visibilidade em rede.
Por outro lado, pode-se pensar, também, o quanto, ao admirar algo que
pode ser entendido como expressão de beleza, somos movidos por uma
experiência intensa de transformação.
Além disso, as imagens nunca são convergentes com o momento em
que elas são apresentadas. Elas não coincidem com os fatos. Eu não sofro
pela indígena que será cortada ao meio, ao contrário, a imagem faz com
que eu me aproxime do agressor – ainda que por contraste – e não da víti-
ma e sua história. Não é possível falar da imagem, apenas emitir sinais de
que o que tinha de ser já é um passado muito mais próximo à fantasmago-
ria do que às sensações.

Memória ou reprodutibilidade

Pergunto-me se muito do que se discute sobre imagem não toma como


ponto de partida o problema da aura, colocado por Walter Benjamin
(1994). E pergunto-me o que o filósofo alemão viu nos filmes da Disney
mas não viu em Mondrian, que estava do lado dele, à sua época, buscando
“o fora” através da pintura, com o espaço ao redor, com a lateralidade além
da margem do quadro, com os pontos de contato entre uma massa de cor
e outra. E isso é (sugestão de) movimento1, tanto que Hélio Oiticica parte
de Mondrian para espacializar e incorporar a cor, como acontece com os
parangolés (Figura 3), fruto da evolução formal que o artista desenvolve,
fazendo com que a cor saia da parede para tornar-se corpo.
Não que Benjamin, ao debater sobre o fim da aura, sobreponha ou-
tra camada de aura sobre o debate, não é isso – ou, não é somente isso. Mas
será que a imagem, ela mesma, não se transformou em aura? Como diz
Oswald de Andrade (1925, p. 76) em “Música de Manivela”, um dos poemas
que aparecem em seu livro de poesias, Pau Brasil, inaugurando o olhar so-
bre os fatos cotidianos:

“Sente-se diante da vitrola


E esqueça-se das vicissitudes da vida
Na dura labuta de todos os dias
Não deve ninguém que se preze
Descuidar dos prazeres da alma
195 RUBENS PILEGGI

Discos a todos os preços”

1 Aqui, não se reporta tanto à questão da unicidade da obra que, segundo o texto, lhe
traria o caráter aurático, mas ao entendimento do autor sobre a pintura e a escultura
como imagens produzidas em bloco, enquanto as do cinema seriam parciais, foto a foto,
comparando o pintor ao mago e o cinegrafista ao cirurgião (BENJAMIN, 1994, p. 197).
196 RUBENS PILEGGI

Fig 3 Hélio Oiticica. Nildo da Mangueira vestindo P 15 Parangolé capa 11 –


Incorporo a revolta (1967). Fotografia: Claudio Oiticica, 1968 (reprodução).
Disponível em: https://mam.rio/obras-de-arte/parangoles-1964-1979/.
Hoje, quando boa parte do que só existia no mundo analógico passa a exis-
tir, também, no mundo digital, inclusive tornando obsoletos muitos dos
dispositivos de antigamente, há que se pensar e refletir sobre o achatamen-
to do conhecimento e a superficialidade das relações. A produção exces-
siva de conteúdo digital, em vez de refinar a informação, tornou-a mais
descartável ainda. Possivelmente o leitor está, neste momento, conectado
por aparatos randômicos e algoritmos que funcionam como dispositivos
de controle econômico, político e cultural (isto é, se a leitura deste texto for
em PDF, por exemplo, ou, tomando o seminário ocorrido, online, de onde
este texto é fruto). Enfim, que este agora em que estamos inseridos seja
pensado, também, em termos de controle de corpos e consciências.
Em resumo, na imediaticidade da reprodutibilidade ativista tiktoker do
capitalismo globalizado, hegemônico, concentrado e supercolonialista, o que
restou foi a passagem de um momento em que estávamos inseridos no con-
texto de uma pandemia para uma guerra, em pleno século XXI! Guerra esta
denunciada em milhões de posts todos os dias, tornando-nos mais tristes, so-
turnos e desesperançados, em vez de nos dar força e coragem para a ação.

Expectativa versus realidade

Em A invenção de Morel, de 1940, Adolfo Bioy Casares nos traz uma ficção
em que o personagem principal chega em uma ilha e se apaixona por uma
imagem em movimento. Essa imagem era reproduzida por uma máquina
que simulava a presença real das coisas e das pessoas em três dimensões,
como se fossem hologramas. O personagem, então, descobre o projetor de
onde as imagens são emitidas, compreende seu funcionamento e grava
imagens suas, atuando como par romântico da mulher/imagem por quem
ele havia se apaixonado, eternizando sua vida post mortem ao lado de sua
amada, na ilha deserta.
Sobreviveremos às imagens ou elas sobreviverão a nós? Talvez essa seja
apenas uma questão retórica. O que muda a história é a paixão pela beleza. A
busca em reconhecer, em si, “a harmonia das formas”, que é como o I Ching
197 RUBENS PILEGGI

– o livro das mutações – define o hexagrama 22 para Beleza. Então, devemos


entender que a beleza está na vida, ainda que ela se torne “amarga”, como dis-
se Rimbaud (2002). E, ainda, que nos obrigue a perdê-la para poder possuí-la.
Assim, eu gostaria de terminar o presente texto pensando nas ima-
gens de salvação que são reproduzidas maciçamente todos os dias, conta-
minando o campo da arte com temáticas morais em vez de materialização
de ideias plásticas, poéticas, literárias e libertárias. E, além disso, apostando
nos processos, sabendo, de antemão, que “um lance de dados jamais abolirá
o acaso”, citando o poeta francês Stéphane Mallarmé, para lembrar que não
temos controle sobre o que os outros devem pensar sobre nossas atitudes, e
que a certeza nem sempre é uma conselheira ponderada. O que é uma ima-
gem de terror, para mim, pode ser uma imagem de gozo, para outra pessoa.
O amor, contudo, é sempre uma bandeira desfraldada para o futuro. Ou,
como diz a canção: “Só um novo amor, pode a saudade apagar…”.
Penso em voltar à página do meu perfil, no Facebook, mas prefiro
desligar o computador e andar pela praça. É tempo da florada amarela nos
pés de Ypê.
198 RUBENS PILEGGI
REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o


contemporâneo? e outros ensaios.
Tradução de Vinícius Nicastro.
Chapecó: Argos, 2009.
ANDRADE, Oswald. Pau Brasil. Paris:
San Pareil, 1925. Fac-símile em pdf.
Disponível em: https://digital.bbm.usp.
br/handle/bbm/7829. Acesso em
20 jul. 2022.
BARTHES, Roland. O rumor da língua.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na
era de sua reprodutibilidade técnica.
In: Magia e técnica, arte e política:
obras escolhidas; v. 1. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
GODARD, Jean-Luc. Je vous salue,
Saravejo. Disponível em:
https://www.youtube.com/
watch?v=LU7-o7OKuDg&ab_
channel=FelipeGon%C3%A7alves.
Acesso em 20 jul. 2022.
KOFMAN, Sarah. Melancolia del
arte. Tradução de Alicia Migdal.
Montevideo: Trilce, 1995.
KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yve-Alain.
Formless: a user’s guide. New York:
Zone Books, 1999.
LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios
crípticos. Campinas: Unicamp, 2011.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador
emancipado. Tradução de Ivone
C. Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2012.
RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no
inferno. Tradução de Paulo Hecker
199 RUBENS PILEGGI

Filho. Porto Alegre: L&PM, 2002.


O corpo do outro e as imagens incorporated
JEAN-PHILIPPE UZEL
Docente na Université du Québec à Montréal – UQÀM

O tema deste ensaio é dedicado às “imagens incorporadas” e, mais particu-


larmente, ao lugar das imagens representando o corpo de “outros”, quer dizer,
das pessoas em posição subalterna na sociedade, as quais, de uma maneira ou
de outra, estão sujeitas à invisibilidade no espaço público e no mundo da arte.
Por “outros” entenderei particularmente, ao longo deste texto, as pessoas “ra-
cializadas”, ou seja, os não brancos, que são geralmente vítimas de racismo
no interior das sociedades majoritariamente brancas. Isso diz respeito às pes-
soas de diferentes origens étnicas, mas sobretudo aos afrodescendentes. Com
certeza, não esquecerei os autóctones, que são igualmente vítimas de racismo
sistemático. A esse respeito, remarco que os artistas autóctones são cada vez
mais visíveis no espaço da arte no Brasil, como mostrou a última Bienal de
São Paulo e a exposição [paralela] Moquém_Surarî: arte indígena contempo-
rânea, organizada pelo saudoso Jaider Esbell.
Gostaria de começar precisando algumas expressões semânticas. A
expressão “imagem incorporada”, para o historiador da arte que sou, re-
mete imediatamente ao processo de figuração que atravessa o conjunto da
arte ocidental desde o Renascimento: quer dizer, a aparição da figura hu-
mana no espaço pictural. A figura humana com seu corpo – sua carne, seus
cabelos, seu gestual –, mas igualmente com seus atributos – suas roupas,
seus adereços, seus acessórios… Com certeza irei utilizar essa acepção cor-
rente para tratar de nosso tema. Mas, primeiramente, desejaria lhes propor
uma reflexão um pouco mais geral sobre “os usos das imagens nas socie-
dades contemporâneas”. Porquanto, irei operar um pequeno deslizamento
semântico e tomar a expressão “incorporada” não no sentido habitual da
história da arte, mas no sentido econômico do termo, como quando dize-
mos, por exemplo, que uma empresa é “incorporada”1, para esclarecer que
ela foi registrada. O que quer dizer que ela existe por si mesma, que possui
201 JEAN-PHILIPPE UZEL

sua própria entidade econômica. Para evitar uma confusão entre o sentido
estético e o sentido econômico do termo “incorporado”, irei falar, neste úl-
timo caso, de imagens incorporated, como se diz em inglês, quando forne-
cemos o nome completo de uma empresa. Com efeito, termina-se sempre

1 O termo Incorporated não tem equivalente em português, usa-se normalmente


a abreviatura, Inc., em inglês (nota do tradutor).
pela menção “Inc.” para significar precisamente Incorporated. Permito-me
precisar que a imagem incorporated refere-se, sem dúvida, à maneira pela
qual as imagens são hoje tomadas por uma lógica econômica e, mais preci-
samente, capitalista, mas essa categoria, para mim, remete também a todas
as imagens da arte que renunciam ou que compactuam, que firmam com-
promisso com a natureza artística para submeter-se a uma lógica exterior à
arte, seja ela econômica, política, ética ou religiosa. Incorporated refere-se
então ao fato de a imagem ser integrada em um conjunto que responde
a uma lógica, a uma finalidade que não é mais a da arte. Parece-me, por
consequência, que para se tratar das imagens incorporadas representando
o corpo de outros, será necessário primeiro compreender qual é a lógica
das imagens incorporated.
Para refletir sobre as relações entre as imagens da arte e as imagens
que qualifico de incorporated, utilizarei como referência Theodor W. Ador-
no, o teórico da Escola de Frankfurt. Estou bem consciente que algumas
proposições de Adorno estão um pouco datadas e se inscrevem em um
contexto conturbado da Europa dos anos 1930 e 1940. Com efeito, a visão
de Adorno sobre o destino da arte na sociedade moderna é eminentemen-
te pessimista. Não podemos esquecer, por exemplo, de sua célebre frase
de 1951: “Escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro”. Mesmo que,
em seguida, ele tenha nuançado esta frase, pode-se dizer que toda a sua
filosofia estética está transpassada pela ideia de que a própria existência
da arte está ameaçada em nossa sociedade contemporânea. Podemos, por
exemplo, citar a primeira frase de sua obra Teoria estética, publicada pos-
tumamente em 1970, um ano após sua morte. Eu a retomo: “É evidente que
tudo que concerne à arte, tanto em si mesma como em sua relação com o
todo, não vem mais ao caso, nem mesmo seu direito à existência”.
Isso dito, parece-me que o diagnóstico que Adorno faz sobre a situ-
ação da arte no seio da cultura de massa – ele a chama de “indústria cultu-
ral” – é ainda hoje pertinente e, eu diria mais, ganha uma nova atualidade
na mesma medida em que ganhariam suas reflexões sobre a função crítica
da arte. Tomarei como prova o uso que o francês Jacques Rancière, um
202 JEAN-PHILIPPE UZEL

dos filósofos mais citados hoje no mundo da arte contemporânea, faz dos
trabalhos de Adorno. Com efeito, a maioria das proposições de Jacques
Rancière sobre a “partilha do sensível” ou sobre o “regime estético da arte”
pode ser vista como um prolongamento das proposições de Adorno. Con-
vocarei em várias oportunidades, ao longo de meu texto, os escritos de
Jacques Rancière, porque eles nos oferecem ferramentas interessantes para
apreender a função crítica e política das obras de artistas provenientes
de grupos culturais invisíveis para a cultura dominante. Eu lhes assegu-
ro, não permanecerei no domínio da teoria pura; antes retomarei vários
exemplos da criação contemporânea nas duas últimas décadas, a fim de
pôr em prática minhas hipóteses. Peço-lhes, antecipadamente, minhas
desculpas, pois meus exemplos são, sobretudo, tomados da cena artística
canadense e norte-americana, e não da brasileira, a qual conheço pouco.
Antes de chegar a esses exemplos, gostaria de me deter rapidamente
sobre duas dimensões da teoria estética de Adorno que me parecem particu-
larmente importantes para compreendermos bem as tensões entre imagens
da arte e imagens incorporated e, portanto, para compreender a função crí-
tica das imagens da arte que põem em cena os corpos de outros. Primeira-
mente, gostaria de examinar o que Adorno chama de duplo caráter da obra
de arte: a obra, segundo ele, é sempre, ao mesmo tempo – e este “ao mesmo
tempo” é importante –, um fato autônomo e social. Sobre a base dessa dupla
natureza da obra de arte, abordarei em seguida outra dimensão da filosofia
estética de Adorno, justamente esta da função crítica da obra.
Comecemos então pela dupla natureza da obra como fato autônomo
e social. Para Adorno, toda obra de arte digna desse nome é ao mesmo
tempo um fato estético e social. Fato social, por quê? Porque a obra é pro-
duzida em uma sociedade particular e o artista herda as condições artís-
ticas dessa sociedade no momento em que ele cria. Do mesmo modo, o
artista irá interagir com sua sociedade, seja para conformar-se à lógica do-
minante, seja para opor-se a ela. Mas – e este é um ponto muito importante
– Adorno insiste sobre o fato de que a obra, mesmo tendo uma dimensão
social, não se reduz ao contexto social ou à sua eficácia política, precisa-
mente porque ela é também um fato autônomo. O que significa autonomia
artística, para Adorno? Primeiramente, é um conceito que remete à impor-
tância do trabalho artístico, à “técnica artística” que permite ao artista, ao
transformar o real, produzir sua obra. Em uma troca de cartas com Walter
Benjamin, outro pensador-chave da Escola de Frankfurt, Adorno o repro-
va por renunciar à autonomia da arte em proveito de sua eficácia política.
O autor lembra que a autonomia da obra de arte, que permite diferenciá-la
203 JEAN-PHILIPPE UZEL

de um simples documento ou de um tratado político, advém primeiro do


trabalho do artista encarnado em um meio e cita, para defender seu ponto
de vista, uma frase de Mallarmé, na qual o poeta francês afirma que “os
poemas não são o resultado da inspiração, mas são antes de tudo feitos de
palavras”. Para Adorno, é o trabalho sobre o material artístico que irá fazer
com que a obra se distinga do real e adquira seu caráter autônomo. A outra
dimensão que define o caráter autônomo da obra de arte, um ponto muito
importante para a nossa discussão hoje, é que esta não tem outra finalida-
de que a mesma; é, por definição, livre de toda injunção extra-estética. Ela
não responde a nenhuma outra regra que não seja a da arte.
A dupla natureza da obra, artística e social, autônoma e heterôno-
ma, para retomar o vocabulário de Adorno, supõe então um frágil equi-
líbrio. Basta a obra pender um pouco para um lado ou para outro, para
que fracasse em atingir ou em manter sua natureza artística. Se a obra
acentua demais sua autonomia, em detrimento de seu caráter social, cai-
remos na teoria da “arte pela arte”, defendida pelos romancistas e poetas
do século XIX (Théophile Gauthier, Oscar Wilde, Charles Baudelaire…).
Adorno reprova essa postura purista de apresentar a arte como um “ab-
soluto”, que nega a sua “relação obrigatória com o real”2. Por outro lado,
se a obra renuncia à sua autonomia para exercer uma função política, ela
se torna heterônoma, pois, ao se colocar a serviço de uma causa que lhe
é exterior, ela perde sua razão de ser. É precisamente isso que Adorno
reprovará na arte engajada, por exemplo, no teatro de Bertold Brecht ou
no de Jean-Paul Sartre. Nos dois casos, “arte pela arte” ou arte engajada,
a arte se encontra na condição aporética, contraditória, porque renuncia
à dialética autonomia/heteronomia.
Precisemos que os objetos produzidos pela “indústria cultural” não
são afetados por essa dialética autonomia/heteronomia, pela simples ra-
zão de que a indústria cultural abole pura e simplesmente a autonomia
da arte. O objeto artístico torna-se um bem de consumo, uma mercado-
ria, um objeto entre outros, cujo único objetivo é agradar e divertir os
espectadores. Os prazeres estéticos propostos pela indústria cultural se as-
semelham, segundo Adorno, às “delícias culinárias que buscam ser consu-
midas imediatamente e por si mesmas”3. Essas considerações de Adorno
sobre a “indústria cultural” podem nos parecer hoje um pouco exagera-
das, sobretudo quando tomam por alvo o jazz ou o cinema. No entanto,
confrontadas com as obras de arte, nos permitem compreender melhor o
que entendo por imagens incorporated, porque creio que estas, da mesma
forma que outros produtos da indústria cultural, caracterizam-se pelo fato
204 JEAN-PHILIPPE UZEL

de serem desprovidas de qualquer autonomia e, com efeito, buscam atingir


outro alvo, diferente do da arte, ainda que pretendam o contrário. Para

2 ADORNO, Theodor. Notes sur la littérature. Paris: Flammarion, 1984, p. 286.


3 ADORNO, Theodor. On the fetish character and the regression of listening. In: BERNSTEIN,
J. M. (ed.). The Culture Industry: Selected Essays on Mass Culture. London: Routledge,
1991, p. 274.
compreendermos bem o que distingue as imagens da arte das imagens in-
corporated, quer representem ou não corpos, é necessário retrocedermos
na história, do Renascimento até a metade do século XIX, e lembrarmos que
a arte exercia quase que exclusivamente o monopólio da imagem. Foi ne-
cessário, com efeito, assistir aos primeiros sobressaltos da cultura de massa
no século XIX para vermos a cultura da arte fissurar-se. Com a aparição
da fotografia, a realização das primeiras exposições universais, a multi-
plicação da publicidade, a aparição das grandes lojas de departamento, a
democratização da moda etc., o comércio e a indústria começam a produ-
zir imagens com poder redobrado de sedução. Foi isso que Karl Marx, na
ocasião de sua visita à Exposição Universal de Londres, em 1851, chamou
de “fetichismo da mercadoria”. A história da arte moderna, a partir dos
impressionistas, tem por pano de fundo a rivalidade entre a arte e as ima-
gens da cultura de massa. Com certeza essa rivalidade – que percorre todo
o século XX – não teve somente efeitos negativos, do Dada à Pop Art; ela
criou uma emulação que, frequentemente, se revelou muito frutuosa. Mas,
parece-me que, desde as duas últimas décadas, entramos em uma nova era
dessa rivalidade entre as imagens da arte e as imagens incorporated pro-
duzidas pela cultura de massa, principalmente no embalo das redes sociais
(lembrem-se que o Facebook apareceu em 2004). Com efeito, o modo de
existência da arte está profundamente desorganizado por essa profusão de
imagens com as quais ele deve coexistir. Li recentemente um artigo que
ressaltava que os usuários do Instagram postam, a cada dia, mais de cem
milhões de novas imagens e vídeos, e estamos falando de uma única plata-
forma… Ora, essa centena de milhões de imagens, que são sedutoras e que
frequentemente possuem qualidades estéticas, se distinguem das imagens
da arte por um único motivo: suas razões de ser são exteriores a elas mes-
mas, perseguem um objetivo que as ultrapassa, no sentido de que não são
autônomas, são imagens incorporated. Mais uma vez, como tenho deixado
claro em minha introdução, qualifico essas imagens de incorporated não
no sentido de que são todas controladas pela potência do mercado, mas no
sentido de que estão integradas a uma lógica que lhes é exterior: elas exis-
205 JEAN-PHILIPPE UZEL

tem para além delas mesmas. As imagens que postamos nas redes sociais
são incorporated de um ponto de vista legal, porque, ao disponibilizá-las
no Facebook, Twitter ou Linkedin, aceitamos partilhar a propriedade inte-
lectual das imagens com a rede social, que pode utilizá-las e modificá-las à
vontade. Mas essas imagens são igualmente incorporated no sentido de que
não têm autonomia, elas estão submetidas a uma finalidade exterior. Sua
primeira função é estabelecer contatos, nesse sentido estão identificadas
com o que o teórico francês da fotografia, André Gunthert, qualifica de
“imagens conversacionais”4
A partir daí, a questão que se coloca é a de saber como as imagens da
arte continuam a existir nesse oceano de imagens incorporated. A resposta
nos é dada, ainda mais uma vez, por Adorno. As imagens da arte exercem
uma função crítica justamente porque preservam seu caráter autônomo. Por-
que, para Adorno, a autonomia vem a ser crítica em um mundo totalmente
alienado: segundo o autor, as obras de arte têm uma função política que
reside precisamente na ausência de toda função política5. Essa autonomia,
segundo o pensador alemão, a arte de vanguarda devia conservar a todo
preço, ao elaborar uma “estética negativa”, como o fizeram Pablo Picasso,
Paul Klee ou Francis Bacon, cujos quadros se recusavam a dar ao espectador
qualquer forma de prazer estético. A arte, desde então e segundo a fórmula
de Stendhal, não poderia ser mais que “uma promessa de felicidade”, quer
dizer, a promessa de uma felicidade no porvir de um mundo conciliado, um
mundo que não reconheceria mais a lei de ferro da dominação.
Admitiremos que essa atitude vanguardista tem algo de heroico; no
entanto, ela me parece hoje insustentável em nosso mundo. Com efeito, o
artista que optasse por uma forma de solipsismo estético, e se trancasse
em uma torre crítica de marfim, seguramente passaria despercebido. Em
face da imagem incorporated, que possui uma importante carga de sedu-
ção, a imagem da arte não pode ser ingênua. Ela deve se interrogar sobre
seu estatuto e sua existência. Ela não pode se contentar em ignorar a ima-
gem incorporated, mas deve entrar em diálogo crítico com ela, mesmo que
seja para pôr em evidência o que as separa. Contrariamente a Adorno, que
afirmava que somente a estética negativa vanguardista oferecia uma via sa-
lutar para a arte, a arte contemporânea pós-duchampiana interroga-se so-
bre suas próprias modalidades de existência, e então, por definição, sobre
suas modalidades de existência em face das imagens incorporated. Sabe-
mos que Adorno rejeitou essa dimensão autorreflexiva da arte contemporâ-
nea. Ele via, por exemplo, nos happenings, uma “busca fanática de pureza,
na qual a obra acabava por vir a ser a sua própria inimiga”6. Esse temor
206 JEAN-PHILIPPE UZEL

parece hoje muito exagerado e se pode dizer que a maioria das obras de
arte contemporânea conserva sua dupla natureza, como fato social e como

4 GUNTHERT, André. La visibilité des anonymes: les images conversationnelles colonisent


l’espace public. In: Questions de Communication, n. 34, 2018.
5 ADORNO, Theodor. Théorie esthétique. Paris: Klincksieck, 2011, p. 314.
6 Ibidem, p. 139.
fato autônomo. Como elas fazem isso? É nesse ponto que Jacques Rancière
vem ao socorro de Adorno, muito ocupado com as posições vanguardistas.
Jacques Rancière, com efeito, concedeu muita atenção à função crítica da
arte contemporânea em suas últimas obras. Do mesmo modo que Adorno,
ele questiona as formas contemporâneas da arte engajada, quer dizer, todas
as criações que pretendem emancipar os espectadores, lhes fazendo tomar
consciência dos grandes problemas de nossa época: crise do meio ambiente,
exploração econômica, colonialismo, guerra. Rancière constata que os es-
pectadores não têm necessidade de tomar consciência de uma realidade que,
por outro lado, eles conhecem muito bem – por exemplo, que nossas socie-
dades são profundamente desiguais, racistas e homofóbicas. Ninguém pre-
cisa da arte para saber disso, e ainda menos as vítimas dessas injustiças. A
função crítica da arte consiste, segundo Rancière, em efetuar uma “partilha
do sensível”: para nos dar a ver e ouvir aqueles que não vemos e aqueles que
não ouvimos cotidianamente no espaço público, no espaço do campo po-
lítico. Mas essa “partilha do sensível” não se faz de modo direto e literário,
mas sempre sob uma forma que contém uma parte “indecidível”. Permito-
-me citar uma frase de Rancière retirada de sua obra de 2004, Malaise dans
l’esthétique: “a única subversão que resta [para os artistas] é então a de jogar
com essa indecidibilidade, de suspender, em uma sociedade que funciona
para o consumo acelerado dos signos, o sentido dos protocolos de leitura
dos signos”7. Rancière nos diz que a função crítica da arte consiste em fazer
derrapar os protocolos de recepção das imagens incorporated, que são antes
de tudo imagens transparentes, cujo sentido deve ser imediato. Qualquer
grão de areia que impeça a eficácia das imagens incorporated é uma manei-
ra de pôr em dúvida o continuum sensível pelo qual percebemos o mundo,
uma maneira de perceber então outros discursos, de ver outras realidades
sociais. Em uma palavra, de efetuar uma nova “partilha do sensível”.
Essa função crítica das imagens da arte pode, segundo meu ponto
de vista, remontar a três grandes categorias, que apresentarei por meio de
exemplos de obras. Trata-se das categorias amplificação, desvio e apro-
priação. Permito-me precisar que não são categorias nem exemplos retira-
207 JEAN-PHILIPPE UZEL

dos de Jacques Rancière. Isso posto, não creio que meus exemplos traiam
seu pensamento, porque eles partem de imagens da arte que questionam
as imagens incorporated, introduzindo nelas uma dose de indecidibilidade,
sua significação não é jamais dada de imediato. Nesse sentido, pode-se di-
zer que elas conservam sua dimensão autônoma.

7 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Galilée, 2004, p. 76 (tradução nossa).
A primeira categoria, que qualifico de amplificação, remete aos ar-
tistas que se confrontam diretamente com a proliferação de imagens in-
corporated. Eles encenam, de um modo ou de outro, a lógica do excesso
própria das imagens incorporated. Essa lógica do excesso, do demasiado,
está particularmente encarnada nas instalações do artista franco-suíço
Thomas Hirschhorn, como, por exemplo, em sua instalação do ano 2000,
Jumbo Spoons and Big Cake, que transborda, por todos os lados, objetos
feitos à mão, objetos recuperados, livros, fotocópias etc. e que trata, no fim
das contas, da multiplicação das imagens incorporated na era da globaliza-
ção: imagens publicitárias, imagens da moda, imagens de turismo, todas
essas imagens da cultura de massa que traduzem a superabundância da so-
ciedade do hiperconsumismo. Entre essa profusão de imagens, as imagens
da arte devem tomar seu lugar; como os quadros de Malevitch ou a arqui-
tetura de Mies Van der Rohe, elas devem existir no fluxo comunicacional
sem renunciar à sua natureza artística.
Essa lógica da amplificação pode igualmente estar encarnada não
no excesso, como em Thomas Hirschhorn, mas no muito pouco. Quando
o artista nos mostra que ele não pode mostrar que o monopólio das ima-
gens incorporated é tal e que a arte somente poderia retirar-se do combate
com armas desiguais. É o caso da instalação Lamento das imagens, que
Alfred Jaar, artista chileno radicado nos Estados Unidos, apresentou na
Documenta de 2002, na Alemanha, e que denunciava o monopólio das
imagens incorporated. Na primeira sala, podia-se ver três textos projeta-
dos que descreviam o confisco de dezenas de milhões de imagens da arte e
da história pelos grandes fundos, como o de Bill Gates. Esses fundos reti-
ram essas imagens do domínio público e privatizam seu uso. Na segunda
sala, o artista instalou um monitor com luminosidade ofuscante. Se com
Hirschhorn via-se tudo, ou demasiadamente saturado até a vertigem, com
Jaar não se via mais nada. Nos dois casos estamos em face, me parece, de
uma estratégia de amplificação dos efeitos da imagem incorporated.
A segunda categoria que põe em evidência a função crítica da ima-
gem em face da imagem incorporated é a do desvio. Aqui a imagem da arte
208 JEAN-PHILIPPE UZEL

reproduz o modo de funcionamento da imagem incorporated, mas para fa-


zê-la derrapar, para subverter sua finalidade. Encontramos nela a lógica do
grão de areia, que evoquei há alguns instantes. Existem muitos exemplos
desse tipo de imagem, que colocam o desvio no centro de sua estratégia.
Escolherei somente um para ilustrar minha proposição: as intervenções
públicas da artista norte-americana Barbara Kruger. Trabalhando no seio
do que chamo às vezes de billboard art, a arte dos cartazes, a artista desvia
a linguagem da publicidade para propor slogans e imagens que questio-
nam nossa relação com o consumo, com a crise do meio ambiente ou com
as identidades de gênero. Como nas marcas publicitárias, seus cartazes
tomam a forma de montagem e são imediatamente reconhecidos porque,
inspirados no construtivismo russo, suas letras brancas sobre fundo ver-
melho se superpõem a uma fotografia em preto e branco. Em sua célebre
foto Sem título (Compro, logo existo), que ela reproduziu na bolsa de com-
pras da marca Vinçon, a artista apresenta a sociedade de consumo como
uma nova filosofia existencial. Na flâmula Sem título (O mundo é pequeno,
mas não se você tiver que limpá-lo), ela parece fazer um paralelo entre o
espaço doméstico e o planeta, ao colocar a questão de nossa relação com o
meio ambiente. Enfim, em sua série intitulada Sem título (Questões), inicia-
da em 1990 e que prossegue ainda hoje, ela coloca questões de ordem exis-
tencial – “Quem está acima da lei?”; “Quem é livre para escolher?”; “Quem
segue as ordens?”; “Quem morre primeiro?”; “Quem ri por último?” – ou
questões ligadas diretamente à economia – “Quem é comprado e vendi-
do?”; “Quem compra barato?”; “Quem vende caro?”… Todas essas propo-
sições reproduzem os protocolos de leitura e as estratégias de enunciação
das imagens incorporated, mas a artista introduz nelas uma dose de inde-
cidibilidade, que as põe à prova de toda significação unívoca.
A última categoria de imagens críticas sobre a qual gostaria de cha-
mar a atenção é a da apropriação, que também chamamos, às vezes, de
“apropriacionismo”. Esse tipo de arte foi elaborado no início dos anos 1980
e acompanhou uma reflexão, frequentemente de inclinação marxista, so-
bre a propriedade privada, mas mais particularmente sobre a noção de
propriedade intelectual. Vários artistas se inscrevem nessa corrente, mas
parece-me que a arte do norte-americano Richard Prince é uma das mais
exemplares. Prince tornou-se conhecido nos anos 80 por sua série Unti-
tled (Cowboys), que reproduzia, reenquadrando-a, uma foto publicitária
da marca de cigarros Marlboro. Ao truncar a imagem, Prince a faz per-
der toda utilidade e lhe confere um sentido totalmente novo. Ele insufla
certa forma de autonomia artística a uma imagem que era, em sua ori-
209 JEAN-PHILIPPE UZEL

gem, inteiramente heterônoma. Em 2014, Prince propôs uma nova série


intitulada New Portraits, na qual se apropria, dessa vez, dos autorretra-
tos encontrados na plataforma do Instagram. Depois de adicionar um co-
mentário abaixo do retrato, Prince amplia a imagem e a expõe na galeria.
Certamente, Prince jamais solicita a permissão de reproduzir uma ima-
gem, fato que lhe faz regularmente se encontrar diante dos tribunais. Por
exemplo, algumas pessoas cujas imagens ele reproduziu em New Portraits
o processaram, acusando-o de ter violado seu direito de imagem. Mas o
que significa direito de imagem quando a mesma pessoa, ao postar seu re-
trato no Instagram, aceita que ele seja compartilhado e visto por milhares
de pessoas? É esse gênero de questões que a arte de Richard Prince coloca
para as imagens incorporated.
Amplificação, desvio, apropriação. Trata-se então de três categorias
de imagens da arte que conservam uma função crítica em face das imagens
incorporated, no sentido adorniano do termo. A segunda parte de minha
reflexão irá consistir em aplicar essas categorias a um corpus de obras que
toca diretamente o tema proposto: a representação dos corpos racializa-
dos. Com certeza, essas imagens incorporadas, “incorporadas” no senti-
do em que entendo a história da arte, não escapam à lógica da imagem
incorporated. Da mesma forma que a questão da ecologia, a questão da di-
versidade cultural é hoje largamente instrumentalizada pela lei do mercado.
Tomo dois exemplos que nos permitem compreender melhor como
as representações dos corpos racializados são hoje recuperadas pela ima-
gem incorporated. O primeiro é a da marca de roupas italiana Benetton, que
faz dos corpos racializados sua marca fabril há várias décadas. A mensagem
veiculada pela marca, e por sua fundação United Colors of Benetton, é a de
que todos os seres humanos, para além de suas diferenças de cor de pele, de
suas diferenças físicas, se parecem. A prova: temos todos a mesma cor de
sangue e nossos corações são similares. Ao contrário do que poderíamos
crer, essa mensagem não evidencia simplesmente um humanismo desin-
teressado e um tanto quanto cândido, mas tem também uma finalidade
comercial, já que a marca não hesita em estabelecer um paralelo explícito
entre os diferentes graus de pigmentação da pele e as diferentes cores da
coleção de suéteres que aparecem em suas publicidades. Para difundir essa
mensagem, a marca de roupa contratou por quase quarenta anos os servi-
ços do artista Oliviero Toscani que, até pouco tempo, trabalhava como seu
diretor artístico, produzindo centenas de imagens, as mais emblemáticas.
Mas, gostaria igualmente de evocar outro exemplo sobre o qual te-
nho trabalhado um pouco durante esses últimos anos: o da apropriação dos
210 JEAN-PHILIPPE UZEL

símbolos dos povos originários. Indiquemos que, por apropriação cultural,


não se deve entender um empréstimo ou uma troca entre duas culturas
em pé de igualdade. Ao contrário, a apropriação cultural remete sempre ao
modo como uma cultura dominante se apropria dos elementos culturais
oriundos de uma cultura oprimida ou colonizada, descontextualizando-os,
deformando-os ou simplificando-os. Não ficaríamos surpresos se consta-
tássemos que esses elementos culturais referem-se muito frequentemente
ao corpo e a seus atributos: penteados, roupas, acessórios. Um exemplo, en-
tre muitos, foi o desfile que a marca de lingerie Victoria’s Secret organizou
em 2012, no qual os modelos usavam cocares Lakota sagrados, usados so-
mente entre os Sioux Lakota, por certas pessoas e em contextos muito parti-
culares. Após o protesto da nação Sioux, a marca se desculpou, assim como
a modelo, Karlie Ross, que usava o cocar na ocasião do desfile em 2012. Isso
não impediu que, cinco anos mais tarde, a Victoria’s Secrets fizesse o mes-
mo, desta vez com cocares um pouco mais estilizados.
Compreende-se, à luz desses exemplos, que os artistas afrodescen-
dentes ou autóctones estão confrontados por um duplo desafio. Eles devem,
da mesma forma que outros artistas, existir diante da invasão das imagens
incorporated. Mas, além disso, eles devem lutar contra a apropriação cultu-
ral que não está restrita às marcas comerciais, como Benetton ou Victoria’s
Secret, mas também aos artistas saídos da cultura dominante. Um grande
número de casos de apropriação cultural na literatura, no teatro e nas artes
visuais tem agitado o mundo da arte canadense e norte-americana nesses
últimos anos. Pensemos, por exemplo, no quadro Open Casket, da norte-
-americana Dana Schutz, na ocasião da Bienal do Whitney Museum, em
2017, que suscitou fortes protestos na comunidade afrodescendente, acusan-
do a artista branca de se apropriar e de estetizar um momento traumático da
história dos negros americanos. A saber: a morte de um rapaz negro por dois
brancos, que foram sumariamente absolvidos por um júri formado inteira-
mente por brancos. Ora, é preciso compreender que a apropriação cultural
é um equívoco: ela dá a impressão de que a arte e a cultura das pessoas afro-
descendentes ou autóctones estão presentes no espaço público ao passo que
estão, na verdade, ausentes, substituídas por seus simulacros. Desde então,
como fazer para resistir à lógica da imagem incorporated, dando voz àqueles
que foram apagados durante tão longo tempo?
Para responder a essa questão, gostaria de me concentrar sobre os
movimentos do post-black art e post-Indian art, que apareceram nos Es-
tados Unidos e no Canadá no início dos anos 2000. Essas duas correntes
artísticas, que são de fato mais momentos artísticos do que verdadeiras
211 JEAN-PHILIPPE UZEL

correntes, foram teorizadas, respectivamente, pela curadora Thelma Gol-


den, no quadro da exposição Freestyle, no Studium Museum, no Harlem,
em 2001, e por Joe Baker e Gerald MacMaster na exposição Remix: New
Modernities in a Post Indian Word, em 2008 no National Museum of Ame-
rican Indian (Heye Center, Nova York). Nos dois casos, o prefixo “post”
significa que os artistas desses dois movimentos tomaram distância das
reivindicações identitárias dos artistas das décadas precedentes, os quais
se inscreviam naquilo que identificamos por “política da identidade” ou,
em inglês, identity politics. Essa corrente de reivindicações identitárias sur-
giu dos movimentos contestatórios dos anos 1960, movimentos pelos direi-
tos civis, pelas lutas feministas e pelos direitos das minorias gays e lésbicas.
A política da identidade foi muito presente na arte dos anos 1980 e 1990.
E talvez tenha atingido seu apogeu no momento da Bienal do Whitney
Museum em 1993, na qual as questões identitárias e políticas estavam pre-
sentes na maior parte dos artistas. Muitos dos comentadores dessa Bienal
reprovaram a onda da “política da identidade” por renunciar à autonomia
da arte para ficar do lado da arte engajada (no sentido como a entende
Adorno), quer dizer, uma arte política que renunciava à realização do tra-
balho artístico em proveito da mensagem política literal. Vários críticos de
arte ficaram chocados com o fato de a Bienal ter sido aberta com um vídeo
amador, que mostrava o espancamento de Rodney King pela polícia de Los
Angeles em 1991, evento que estava na origem de graves distúrbios em 1992,
quando os policiais implicados foram absolvidos pelo tribunal. Em 1993,
o crítico de arte do New York Times surpreendeu-se com o fato de que a
Bienal de Whitney tivesse transformado um vídeo amador em obra de arte
e “tivesse feito [deste amador], George Holliday, um vídeo artista, [este]
homem que utilizava sua câmera pela primeira vez e que filmou, por acaso,
a polícia de Los Angeles agredindo M. King”. Além disso, a maioria das
obras apresentadas no quadro da Bienal estava reforçada por uma men-
sagem panfletária, ao modo do trabalho de Daniel J. Martinez, que pedia
aos espectadores para afixarem um distintivo na lapela com a seguinte
frase: “Eu não posso imaginar ser branco um dia”. A arte com origem na
política da identidade foi igualmente muito forte no Canadá entre os ar-
tistas autóctones, muito particularmente depois dos eventos chamados de
Crise d’Oka, durante o verão de 1990, que colocaram, durante três meses,
a polícia e o exército em oposição aos militantes das Primeiras Nações
a respeito do avanço de um campo de golfe sobre um território sagrado.
Nos anos seguintes, artistas como Ojibwé Ron Noganosh iriam comparar
a política colonial do Canadá com a política de exterminação do Terceiro
212 JEAN-PHILIPPE UZEL

Reich nazista. O artista mestiço Edward Poitras, por sua parte, expôs sua
carteira de identidade indígena, exagerando os traços de seu rosto (nariz
chato, lábios grossos) para torná-los mais adequados ao estereótipo do “ín-
dio” veiculado pela cultura dominante. Essas obras procuravam impactar,
criar um efeito de choque sobre o espectador para fazê-lo tomar consciên-
cia da opressão colonial do Canadá em relação às populações autóctones e
encorajá-lo a agir para modificar essa injustiça. Tendemos hoje a criticar a
abordagem engajada da política da identidade na arte, mas não podemos
esquecer que os artistas que se inscrevem nesse movimento respondem a
uma urgência política e social, como no caso de Rodney King, nos Estados
Unidos, ou no caso dos eventos d’Oka em 1990, no Canadá.
Isso posto, os artistas da geração post-black art e post-Indian art, que
emergem nos Estados Unidos e no Canadá nos anos 2000, vão romper
com esse tipo de reivindicação. Eles continuarão a propor questões relacio-
nadas com suas identidades étnica e cultural, mas de uma maneira indi-
reta e alusiva, que irá impedir que se tenha uma interpretação imediata de
suas obras, ao passo que mergulhará o espectador em uma dúvida perma-
nente. Nesse sentido, essas obras possuem com certeza uma função crítica,
mas que não se faz em detrimento do duplo caráter da obra de arte como
autônoma e como fato social.
Gostaria agora de evocar com alguns exemplos de obras do post-
-black art e do post-Indian art que se confrontam com o duplo desafio: re-
sistir e se diferenciar das imagens incorporated, ao mesmo tempo em que
dão visibilidade aos corpos racializados. Para apresentar essas obras, vou
retomar as três modalidades de função crítica que enunciei mais acima.
Comecemos pela primeira função crítica que evocamos, esta da am-
plificação, que consiste finalmente em mostrar um problema ao amplificá-
-lo, por uma lógica do excesso ou do muito pouco. Evocarei primeiramente
a série de autorretratos de Zanele Muholi, que tem a particularidade de ser
uma artista autóctone africana que pertence à nação Zulu da África do Sul.
É necessário, com efeito, sempre relembrar, já que temos a tendência de sem-
pre esquecer que ao menos na América do Norte as populações autóctones
não vivem somente sobre o continente americano; existem hoje 370 milhões
dessas pessoas vivendo nos quatro cantos do globo. Com seus autorretra-
tos, Zanele Muholi afirma querer questionar “as imagens culturalmente do-
minantes da mulher negra”, quer dizer, da mulher negra apresentada nas
imagens incorporated, por exemplo, nas publicidades da Benetton, em que
as mulheres negras têm geralmente a pele clara e são sempre muito femi-
ninas. Ao contrário, Zanele Muholi vai reforçar a negritude de sua pele e
213 JEAN-PHILIPPE UZEL

embranquecer seus lábios. Se acrescentarmos que luvas brancas aparecem


em várias de suas fotografias, nós não podemos deixar de pensar na práti-
ca do blackface, pelo qual os brancos, em seus espetáculos de variedade ou
ainda no cinema, representaram de maneira caricatural as pessoas negras
desde o século XIX. Essa transformação do corpo da artista acarreta igual-
mente indiferenciação de gênero, que ganha todo sentido quando também
sabemos que ela é uma militante da causa LGBTQIA+ na África do Sul. Essa
ambiguidade sobre a cor da pele, sobre o gênero da pessoa representada,
mas também sobre os atributos com os quais ela se aparata, que são tanto
acessórios tradicionais da cultura Zulu quanto objetos de uso da sociedade
de consumo, cria, como a entendo, uma dimensão indecidível que, ao con-
ferir uma dimensão crítica à obra, lhe permite também conservar a tensão
entre autonomia e heteronomia, cara a Adorno.
Poderíamos falar ainda um longo tempo sobre o trabalho de Zaneli
Muholi, que é, segundo minha opinião, uma das fotógrafas mais interes-
santes de nossa época. Mas, para variar os exemplos, gostaria de evocar,
sempre na mesma lógica da amplificação da cor negra, o trabalho do artis-
ta norte-americano afrodescendente Rashid Johnson. Johnson é uma figu-
ra emblemática do post-black art, porque fez parte da exposição que lançou
o movimento. Realizou vários autorretratos nos anos 2000, nos quais fazia
apelo à autoficção, como é o caso de The New Negro Escapist Social and
Athletic Club (Emmett) de 2008. A simplicidade desses autorretratos é so-
mente uma aparência, porque são, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a
imagem e sobre a situação pós-escravista dos afro-americanos. Com efei-
to, Johnson se representa com os traços de Frederick Douglass, um antigo
escravizado que, depois de ter escrito e publicado sua biografia em 1845,
fugiu para a Grã-Bretanha e tornou-se um militante abolicionista. Mas as
coisas se complicam quando sabemos que Douglas era também alguém
que valorizava muito a fotografia e que via nela uma potente ferramenta de
emancipação democrática. É possível ver igualmente nas obras de Johnson
uma referência à teoria crítica do sociólogo afro-americano W. E. B. Du
Bois, um dos pensadores críticos mais importantes do início do século XX.
A duplicação espelhada do retrato de Johnson parece, com efeito, remeter
à “dupla consciência” teorizada por Du Bois, esta dupla consciência que se
refere ao conflito interno que vivem os afro-americanos nos Estados Uni-
dos, consistindo em ver a si mesmo através dos olhos de uma sociedade
branca racista. Vejamos outro autorretrato de 2009 de Rashid Johnson, no
qual ele se apresenta de forma bem-humorada como “professor de astro-
nomia, de mestiçagem e teoria crítica”. Por que astronomia? Porque essa
214 JEAN-PHILIPPE UZEL

disciplina tem um papel importante em sua prática artística desde os anos


2000, particularmente no quadro Cosmic Slop (2008), no qual ele explora a
“matéria escura”, essa matéria invisível, mas onipresente em todo o univer-
so. Trata-se, com certeza, de uma metáfora, mas que me parece particular-
mente eficaz para evocar a invisibilidade dos corpos negros na sociedade
atual. Graças ao recurso da abstração, Rashid Johnson coloca, por meio da
arte, a questão que W. E. B. Du Bois formulou em 1900, em sua primeira
conferência pan-africana em Londres, quando declarou que “o problema
do século XX é um problema da linha divisória da cor”. Essa linha de se-
paração das cores é política e, ao mesmo tempo, estética. Creio que Rashid
Johnson, do mesmo modo que Zanele Muholi, propõe em suas obras o que
Rancière chama de “partilha do sensível”, quer dizer, um novo recorte do
sensus communis, da sensibilidade comum. Partilha que sempre é, ao mes-
mo tempo, estética e política.
Passemos agora à segunda categoria crítica, esta do desvio. Gostaria
de evocar aqui o trabalho de dois artistas que fazem apelo à billboard art,
como Barbara Kruger: trata-se de um artista canadense de origem asiáti-
ca, Ken Lum, e um artista norte-americano das Primeiras Nações, Edgar
Heap of Birds. Comecemos pela monumental instalação pública de Ken
Lum, There is No Place Like Home, que poderíamos traduzir por “Nunca
estamos tão bem como em casa”, toda questão sendo, logo que aborda-
mos o multiculturalismo, a de saber onde é “em casa”. Essa instalação foi
apresentada pela primeira vez sobre a fachada da Kunsthalle de Viena, em
dezembro de 2000, e reinstalada, em seguida, em várias outras cidades
(Berlin, Montréal, Ottawa…). Iremos descrevê-la em algumas palavras:
trata-se de um imenso painel (10 metros de altura por 54 metros de lar-
gura) dividido em doze espaços equivalentes. Seis retratos fotográficos de
pessoas de diferentes origens culturais e étnicas, alternados com seis es-
paços de texto, nos quais pode-se ler duas frases anunciadas na primeira
pessoa: “Uau! Eu adoro de verdade esse lugar. Eu não penso em retornar,
um dia, ao meu país”, “Aqui, eu nunca me sinto como em minha casa. Eu
não me sinto em casa, aqui”, “Eu acho graça de suas opiniões sobre os imi-
grantes. Aqui, nós estamos também em nossa casa!” etc. Nossos reflexos
semióticos condicionados pela linguagem publicitária induzem a interpre-
tar esses espaços de texto como balões de histórias em quadrinhos associa-
dos imediatamente a uma personagem. Mas as coisas são mais complexas
do que parecem ser à primeira vista. Com efeito, nos damos conta de que
a alternância perfeita texto-imagem faz com que cada personagem possa
ser associado a dois ou três enunciados simultaneamente. Esse sentimento
215 JEAN-PHILIPPE UZEL

de incerteza é ainda reforçado pelo direcionamento dos olhares das perso-


nagens, que nos parece muito construído, mas que de fato é aleatório. As
personagens não se comunicam entre si, elas miram para fora do campo/
do enquadramento que nos escapa.
Sabendo-se que esse painel tinha como público-alvo os motoristas
e pedestres vienenses, o sentimento que predomina é de ambiguidade em
relação à posição do artista. O que ele quer dizer e qual a sua mensagem?
Ele tem, por outro lado, uma mensagem a passar? Se é o caso, o artista de-
nuncia a exclusão e o racismo que sofrem as minorias culturais? Ele repro-
va essas últimas pela falta de integração com a cultura que lhes acolhe? O
que se entende exatamente por “home”, que é muito mais polissêmico em
inglês que em francês? Essa indecidibilidade releva-se em primeiro lugar
do jogo complexo de correspondência entre texto e imagem do imenso pai-
nel, mas igualmente do hiato entre a forma publicitária da mensagem e seu
conteúdo. Esse aspecto corresponde muito bem à dimensão indecidível da
qual fala Rancière, quer dizer, da suspensão das modalidades de leitura
dos signos produzidos pela sociedade de consumo, que encontramos em
muitas práticas atuais, e que é capaz de produzir um efeito crítico. Mas é
possível, no caso da instalação de Viena, agregar-se outra dimensão crítica,
ligada desta vez ao contexto no qual intervém essa suspensão. Com efeito,
There is No Place Like Home é apresentada pela primeira na capital de uma
Áustria governada desde alguns meses por uma coalizão que tem largo as-
sento no FPO, partido da extrema direita de Jörge Halder. Em tal contexto,
o simples fato de abordar a questão do multiculturalismo tem imediata co-
notação política. Por último, Ken Lum compreendeu que, ao colocar a arte
diretamente a serviço da política, corre-se o risco de se perder toda a di-
mensão subversiva. Se suas obras chegam a produzir um efeito crítico, não
é porque elas tratam do multiculturalismo, mas porque se dão a um jogo
– ou, mais exatamente, a um duplo jogo em relação à mensagem que elas
veiculam sobre o multiculturalismo (mesmo na Viena do FPO). Por outro
lado, quando perguntamos ao artista se sua obra contém uma mensagem
política, ele responde sem hesitação: “a mensagem especial endereçada ao
público é que a obra funciona como obra de arte”8. Uma frase que poderia
ser formulada pelo próprio Adorno.
O segundo trabalho que gostaria de evocar é o que o artista Cheyenne/
Arapaho, Edgar Heap of Birds, apresentou na 52ª Bienal de Veneza, em 2007.
Trata-se da instalação pública Most Serene Republics, em que prestava home-
nagem aos membros das Primeiras Nações que acompanharam Buffalo Bill
na Europa no fim do século XIX e início do XX, [em espetáculos] que foram
216 JEAN-PHILIPPE UZEL

produzidos em Veneza em 1890. Sobre esse assunto, é mister relembrar que


o Wild West Show de Willian F. Cody (aliás, Buffalo Bill), depois de ser pro-
duzido a partir de 1883 nos Estados Unidos e de circular nos países europeus
até 1913, pode ser considerado como o maior espetáculo de massa do século
XIX, uma vez que foi assistido por quase 50 milhões de pessoas. O clímax

8 LUM, Ken (entrevistado por Cécile Bourne). There Is No Place Like Home, p. 93.
dos espetáculos era constituído por cenas de indígenas (essencialmente os
Sioux Lakotas), misturando-se alegremente ficção e reconstituição da his-
tória. Cody, que tinha também participado nas “Guerras Indígenas” (1878-
1890), conseguiu persuadir atores históricos do primeiro escalão, como o
líder Sioux Sitting Bull (Tatanka Yotanka, seu verdadeiro nome) ou Gabriel
Dumont (um dos principais atores, ao lado de Louis Riel, da revolta mestiça
de 1885) de tomar parte de seus espetáculos para interpretarem a si mesmos.
Mas Cody não via nenhuma inconveniência em os líderes históricos coloca-
rem-se ao lado de personagens ficcionais, como Natty Bumppo, o herói da
série de romances de James Fenimore Cooper, Histoires de bas-de-cuir. Do
mesmo modo, não tinha nenhum escrúpulo que os “peles vermelhas de to-
das as tribos” (Cheyennes, Arapahos, Pieds-Noir, Sioux), como anunciavam
os programas publicitários dos espetáculos, fossem de fato interpretados so-
mente por Sioux9 – simplificação ultrajante que encontraremos mais tarde
nos westerns hollywoodianos, nos quais os indígenas são sempre os Sioux.
Nessa instalação, Most Serene Republics, Edgar Heap of Birds lem-
bra-nos que, por trás das imagens estereotipadas dos indígenas que os es-
petáculos de Cody veicularam, havia verdadeiros indivíduos, os quais em
sua maioria ficaram doentes ou até mesmo morreram na turnê europeia
da trupe. Em 2007, ele instalou dezesseis painéis ao longo da Avenida Ga-
ribaldi de Veneza, começando por “Honrar a morte” e terminando por
“Rammentare” (lembrar-se, em italiano), enumerando os nomes dos au-
tóctones desaparecidos na Europa: “Di Nastona, Di Numshim, Standing
Bear…”. O artista procurava assim honrar a memória dos membros das
Primeiras Nações mortos longe de sua terra natal, mas também, ao evocá-
-los por seus nomes, devolver-lhes certa dignidade humana, dignidade que
os espetáculos de Buffalo Bill lhes haviam retirado.
Na terceira e última categoria de obras críticas, que qualifiquei de
apropriação, gostaria de abordar, por fim, o trabalho de Brian Jungen, que
é membro da Primeira Nação Dunne-za da Colúmbia Britânica. Esse ar-
tista não pratica a apropriação da mesma forma que Richard Prince, uma
vez que efetua, ao contrário deste último, um importante trabalho de
217 JEAN-PHILIPPE UZEL

transformação das formas ou dos objetos dos quais que ele se apropria;
no entanto, penso que ele coloca questões sobre as imagens incorporated
que são bastante próximas das do apropriacionismo. A obra que assegu-
rou a notoriedade de Brian Jungen é, sem sombra de dúvida, sua série de
“máscaras”, Prototypes for New Understanding, elaborada entre 1998 e 2005.

9 MOSES, L. G. Wild West Shows and the Images of the American Indians: 1883-1933, p. 170.
Nesse trabalho, o artista transformou tênis esportivos Air Jordan da marca
Nike – que toma de empréstimo o nome da estrela do basquete americano
Michael Jordan – para recriar máscaras cerimoniais dos povos da costa
noroeste do Canadá, em particular, do povo Kwakwaka’wakw, ao qual o
artista pertence. Esse jogo com as formas e os contornos é também uma
reflexão muito séria sobre a função social e cultural dos artefatos: o tê-
nis esportivo e a máscara cerimonial. Os dois são, com efeito, fetiches. As
máscaras remetem ao totemismo das Primeiras Nações, os tênis Nike ao
“fetichismo da mercadoria” descrito pela primeira vez por Karl Marx em O
capital, o qual evoquei em minha introdução.
Jungen repetiu várias vezes que era a gama cromática dos tênis Air
Jordan (vermelho, preto, branco) que lhe fazia lembrar das máscaras kwa-
kwaka’wakw, como se se tratasse de uma consideração estética anódina.
Com efeito, a referência de Jungen nos Prototypes for New Understanding é
muito mais precisa do que ele nos faz crer. É necessário compreender pri-
meiramente que essa obra é mais que uma série de máscaras, é também a
instalação dessas máscaras no espaço museal que parece, à primeira vista,
simular o modo de apresentação dos museus etnográficos. Mas os tipos de
máscaras reproduzidas e, sobretudo, o modo de exposição – as máscaras
são fixadas em tripés de diferentes tamanhos, dispostos sobre um mos-
truário segundo uma ordem aparentemente arbitrária – remetem a uma
coleção muito precisa. Trata-se de fato de uma referência sutil, mas uma
referência, sem sombra de dúvida, à coleção Potlatch do U’mista Cultural
Center, em Alert Bay, na Colúmbia Britânica. Em 1884, o governo cana-
dense interditou a prática dos potlatchs, essas grandes festas ritualizadas e
agonísticas nas quais eram delapidadas as riquezas do clã – e às quais Mar-
cel Mauss consagrou seu famoso Ensaio sobre o dom10. Apesar da interdi-
ção oficial, os potlatchs continuaram a ser organizados do fim do século
XIX ao início do XX, e foi para encerrar totalmente essa prática que as más-
caras foram confiscadas em 1921 pelo governo canadense e dispersadas, em
seguida, por diferentes museus norte-americanos. Se a prática do potlatch
foi descriminalizada em 1951, foi somente a partir dos anos 1970 que essas
218 JEAN-PHILIPPE UZEL

peças começaram a ser devolvidas. A coleção do U’mista Cultural Center


é hoje inteiramente composta por esses objetos restituídos (“U’mista” sig-
nifica, em kwak’wala, “restituição”), cuja particularidade museal deve-se
ao fato de ser exposta segundo a ordem de aparição durante o ritual do
potlatch. Também, por essa referência à coleção Potlatch, Jungen critica ao

10 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2020 (nota do tradutor).
mesmo tempo o processo de espoliação e de apropriação cultural ao qual
a cultura autóctone passa, mas igualmente interroga-se sobre a dimensão
suntuosa da troca, o que Georges Bataille, retomando Mauss, chamava de
a “parte maldita” do social. Com certeza, essa dimensão oculta da troca
concerne tanto às sociedades tradicionais quanto às do hiperconsumismo,
quando se entregam à delapidação das riquezas por intermédio dos novos
ícones (Michael Jordan). Prototypes for New Understanding, por uma ló-
gica da apropriação artística e da reapropriação cultural, cria uma névoa
paroxística no regime de valores ligado aos objetos. Essa coexistência hete-
rogênea não se dá sem mergulhar o espectador em uma sorte de perplexi-
dade quanto à significação última da obra, assim como da indecidibilidade
que, segundo minhas observações, realiza sua função crítica.
Voilà! Espero que as obras que acabei de lhes apresentar muito ra-
pidamente, reconheço, lhes permitam apreender com mais clareza as três
categorias críticas: amplificação, desvio e apropriação. Sou o primeiro a
reconhecer que essas três categorias são porosas e que uma mesma obra
pode pertencer a mais de uma entre elas. No entanto, meu objetivo foi an-
tes de tudo mostrar como os corpos de certos grupos culturais, como os
afrodescendentes e os autóctones, podem hoje existir no espaço público da
arte em resistência à lógica da imagem incorporated.

Tradução: Luciano Vinhosa


Revisão: Ivair Reinaldim

219 JEAN-PHILIPPE UZEL


REFERÊNCIAS

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littérature. Paris: Flammarion, 1984.
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GUNTHERT, André. La visibilité
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RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans
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LUM, Ken. There Is No Place Like Home.
Entrevista por Cécile Bourne. In:
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MOSES, L. G. Wild West Shows and the
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1883-1933. Albuquerque: University of
New Mexico Press, 1999.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva.
Lisboa: Edições 70, 2020.
220 JEAN-PHILIPPE UZEL
MINIBIOS
ANDERSON ARÊAS
Pesquisador, artista, alquimista. Bacharel em Psicologia pela UFRJ, Mestre
em Estudos Contemporâneos das Artes pelo Programa de Pós-Graduação
em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Flumi-
nense (PPGCA/UFF) e doutorando em Artes Visuais, na linha de pesquisa
História e Crítica da Arte, no Programa de Pós-Graduação em Artes Vi-
suais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/UFRJ). Interessa-se
pelas redes de conexão, agência e regeneração que emanam entre artes e
ontologias da imagem, saberes vegetais e ecologias espirituais, ancestrali-
dades e contemporaneidades.

ARTHUR VALLE
Docente do Departamento de Artes da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ). Doutor em Artes Visuais pelo Programa de Pós-
-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (PPGAV/UFRJ), realizou estágios pós-doutorais na Universidade Federal
Fluminense (UFF) e na Universidade Nova de Lisboa. É membro do Co-
mitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) e do International Council on
Monuments and Sites (ICOMOS). É editor do periódico eletrônico 19&20.
Seus temas de pesquisa são: campo artístico do Rio de Janeiro (1890-1930),
intercâmbios artísticos transnacionais, iconografia política, relações en-
tre religiões afrobrasileiras, cultura visual, racismo e repressão policial.

IVAIR REINALDIM
Docente do Departamento de História e Teoria da Arte da Escola de Be-
las Artes e do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/UFRJ).
Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV-UFRJ. É líder do Grupo de Pesquisa
Lab | HABA – Laboratório de Historiografia da Arte no Brasil e Américas,
membro do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) e da Associação
Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). Desenvolve pesquisa nas áreas de
historiografia e teoria da arte, crítica de arte e estudos curatoriais.

JEAN-PHILIPPE UZEL
223 MINIBIOS

Professor de história da arte na Universidade de Quebec, em Montreal, Ca-


nadá, e membro do Centro Interuniversitário de Estudos e Pesquisa Indígena
(CIÉRA). Sua área de especialização centra-se na história e teoria da arte mo-
derna e contemporânea e, mais particularmente, na relação entre arte e políti-
ca. Entre seus temas de pesquisa estão: exclusão e integração da arte indígena
contemporânea na teoria da arte ocidental e no mundo da arte; estratégias
críticas e decoloniais implementadas pela arte indígena contemporânea; tro-
cas versus apropriações entre artistas indígenas e artistas não indígenas.

LUCIANO VINHOSA
Artista visual. Professor Titular do Instituto de Artes e Comunicação
Social da Universidade Federal Fluminense (IACS/UFF). Ensina no Ba-
charelado de Artes e no Programa de Pós-Graduação em Estudos Con-
temporâneos das Artes, na mesma universidade. Mestre em Artes Visuais
pela pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/UFRJ), doutor pela Université du Québec
à Montréal (UQÀM), Canadá. Bolsista do CNPq, Produtividade em Pesqui-
sa, com estudos sobre as teorias da imagem, em particular, as da arte.

LUCIO AGRA
Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e mem-
bro do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Produção Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Possui mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifí-
cia Universidade Católica (PUC-SP). É bacharel e licenciado em Letras pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua nos seguintes temas:
poesia – poética – arte e tecnologias, performance – artes do corpo, perfor-
mance, poesia – poesia eletrônica e digital e performance – arte, tecnologia
e vanguardas, teorias da comunicação. É artista da performance e curador.

RUBENS PILEGGI
Docente de Teorias e Práticas da Arte Contemporânea na Universidade
Federal de Goiás (UFG) e doutor pela mesma instituição. É artista plásti-
co, atuando em múltiplos meios, como escultura e performance. Assinou
a coluna semanal Alfabeto Visual, no jornal Folha de Londrina, de 1999
a 2007, sobre arte e sociedade contemporânea. Atualmente pesquisa arte
sonora, fazendo uso de dispositivos eletrônicos e enfatizando a dimensão
poética do silêncio e do vazio. É coordenador do curso de Artes Visuais da
Faculdade de Artes Visuais da UFG e coordena o grupo Âmbar – Grupo de
224 MINIBIOS

Pesquisas em Práticas Artísticas/CNPq.

SARA RAMOS DE OLIVEIRA


Graduada em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (UFMG), é mestra em Filosofia, com ênfase em Estética
e Filosofia da Arte, pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e dou-
toranda em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Trabalha com múltiplas técnicas e materiais, exploran-
do questões relacionadas à identidade e à narrativa histórica, limites da
ficção e da realidade, memória e discurso histórico como criadores da sub-
jetividade, entre outros.

SHEILA CABO GERALDO


Docente do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Ar-
tes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ART/UERJ) e do Programa
de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes/UERJ). Possui graduação em Dese-
nho e Plástica (licenciatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), mestrado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universida-
de Católica (PUC-Rio) e doutorado em História pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Concluiu pós-doutorado na Universidade Complutense
de Madri (2008) e na Unicamp (2016-17). É bolsista do Programa Prociên-
cia da UERJ e atualmente realiza a pesquisa “Políticas da memória: estudos
sobre o colonialismo e o pós-colonialismo na América Latina (Brasil, Ar-
gentina e Chile)”. Bolsista Produtividade 2 (CNPq), é líder do Grupo de
Pesquisa Escrita: Arte, História e Crítica (CNPq).

THIAGO FERNANDES
Historiador da arte e mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-
-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (PPGAV/UFRJ), onde também realiza seu doutorado. Atua como crítico,
curador e professor. Dedica-se ao estudo de experimentalidades na arte
brasileira das décadas de 1990 e 2000; interseções entre arte, cidade e espa-
ços expositivos; incorporações de espaços domésticos na arte contemporâ-
nea; mídias táticas e usos das imagens técnicas.

VIVIANE MATESCO
Docente de história da arte na Universidade Federal Fluminense (UFF), pos-
sui doutorado em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/UFRJ). Atua como
225 MINIBIOS

crítica e curadora. Trabalhou como curadora assistente na Funarte, no Mu-


seu de Arte Moderna/RJ e no Projeto Rumos Visuais do Itaú Cultural. Tem
experiência na área de Artes, com ênfase em crítica da arte, atuando princi-
palmente nos seguintes temas: arte contemporânea, corpo e arte brasileira
contemporânea, arte brasileira, corpo e arte contemporânea e corpo e arte.
ZECA LIGIÉRO
Docente do Departamento de Direção Teatral e decano do Centro de Le-
tras e Artes na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Escritor, diretor teatral e artista visual, fez mestrado e doutorado na New
York University (NYU) e estágio pós-doutoral na Yale University e Paris 8.
Atua principalmente nas linhas: estudos da performance afro-brasileira e
teatro experimental. Desde 1998 é coordenador do NEPAA – Núcleo de Es-
tudos das Performances Afro-Ameríndias, dedicado à pesquisa, divulgação
e intercâmbio das diversas culturas de origens africanas e indígenas e suas
inter-relações no Brasil.
226 MINIBIOS
Coordenação editorial Renato Rezende
Revisão Ingrid Vieira
Design gráfico Julia Pinto
Imagem de capa Dalton Paula. A cura. Detalhe. Óleo sobre enciclopédia. Sete
livros, 2016. Foto: Paulo Rezende. Imagem gentilmente cedida pelo artista.
Este livro foi realizado com recursos do Programa de apoio à realização
de eventos científicos, tecnológico no Estado do Rio de Janeiro – 2021
(Edital/FAPERJ Nº 14/2021) e PROEX–CAPES do Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais da UFRJ.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Catalogação elaborada por Janaina Ramos – CRB 8/9166

I31 Imagens insurgentes / Organizadores Ivair


Reinaldim, Luciano Vinhosa. – Rio de Janeiro: Circuito, 2023.
232 p., il., fotos.; 16 x 23 cm
ISBN 978-65-86974-61-4

1. Arte contemporânea – Brasil. I. Reinaldim, Ivair


(Organizador). II. Vinhosa, Luciano (Organizador). III. Título.

CDD 709.05

Índice para catálogo sistemático


I. Arte contemporânea – Brasil

[2023]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA CIRCUITO
Rua Buarque de Macedo 15, ap 402
Flamengo, 22220-030
Rio de Janeiro – RJ
editoracircuito.com.br /editoracircuito
Tipografias Minion Pro, Stratos
Tendo em tela o enlace entre as artes e as culturas,
os textos aqui reunidos pretendem pôr em relevo
não somente os seus usos em diferentes contextos
sociais, mas o necessário trânsito que se opera na
natureza das imagens quando postas em contato
e disputa nos espaços de representação das artes
metropolitanas. De fato, a imagem, seja em seus su-
portes tradicionais, seja nos tecnológicos, torna-se
objeto de interesse teórico atualizado, tanto por sua
onipresença e assédio, como por fazer o trânsito
necessário entre a arte e a cultura, o sagrado e o
profano, a alienação e a reflexão, a manipulação e a
insurreição das ideias. Interessa-nos, por outro lado,
pensá-las em seus modos de agência quando ativa-
das por diferentes sujeitos.

editoracircuito.com.br
ISBN 978-65-86974-61-4

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