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Lembranças de Vacaria
Vacaria/RS
Secretaria Municipal de Educação
2013
A lembrança é a
sobrevivência do passado.
Ecléa Bosi
Agradecimento
A todos que, com seu testemunho,
ajudaram a (re)colher lembranças do passado...
APRESENTAÇÃO 09
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 11
Recordar é viver? 14
Vacaria: formação 20
Praça da memória 31
Tempos de transição 36
Mudanças e permanências 44
Chegadas e partidas 50
Crenças e legado 53
Festas e comemorações 56
Recordação e adaptação 60
Começos de vida 62
Assim se brincava 67
Escola e ensino ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 72
Namoros e casamentos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 79
Estradas e caminhos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 86
Higiene é a questão ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 95
Epidemias e doenças ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 97
Saberes e fazeres ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
106
ANEXOS ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 138
10 Lembranças de Vacaria
Considerações iniciais
O livro Lembranças de Vacaria é resultado do proje-
to de pesquisa A história de Vacaria contada pelos nossos idosos:
Colhendo Lembranças. O projeto foi patrocinado pela Prefeitura Mu-
nicipal de Vacaria, por meio da Secretaria Municipal de Educação.
Os trabalhos iniciaram-se com a secretária Joara Dutra Vieira (2009-
2012) e foram concluídos com a atual titular da pasta, Luzmari das
Dores Boeira de Camargo. A coordenação ficou sob a responsabilida-
de da professora Arlene Medeiros de Abreu, a idealizadora do proje-
to. A pesquisa também contou com a colaboração de alunos do curso
de História da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Campus de
Vacaria, na realização das entrevistas. A professora Loraine Slomp
Giron assumiu a fundamentação teórica do trabalho. A obra publicada
teve o empenho da supervisora pedagógica da SMED, Magali
Giuseppina Paim Girotto.
Colhendo Lembranças teve início em junho de 2010
e duração de um ano. O objetivo principal era o de registrar histórias
de vida de pessoas da comunidade e preservar a memória histórica de
Vacaria, tendo como meta valorizar os idosos.
A forma de apresentação escolhida foi este livro. Os
resultados da pesquisa (ainda que parciais) são aqui revelados. O
material recolhido será colocado à disposição dos pesquisadores no
Arquivo Municipal. São dados valiosos que poderão ser usados para
futuras pesquisas sobre a vida e o falar em Vacaria, na primeira meta-
de do século XX, e estão presentes nas lembranças de suas testemu-
nhas.
As entrevistas selecionadas para este livro são apre-
sentadas em partes, portanto, não estão completas. Foram escolhidos
os temas relevantes evitando o quanto possível as suas repetições. Al-
gumas foram deixadas de lado pela irrelevância e escassez de infor-
mações, outras foram cortadas pelo excesso e pela repetição.
No decorrer da pesquisa foram entrevistados 32 mo-
radores de Vacaria, com mais de 70 anos de idade. Dos informantes,
dois são analfabetos, dois têm curso superior e três têm ensino médio,
no caso, o magistério. Os demais têm apenas o curso fundamental
Arlene, Loraine e Magali 11
completo ou incompleto. As profissões dos entrevistados são as mais
diversas. Há advogados, um jornalista (por sua vez, advogado), co-
merciantes e políticos. Enfim, representantes do arquipélago (copian-
do Érico Veríssimo) que forma a sociedade de Vacaria, em sua faixa
etária.
Outro fato que merece destaque é que a grande mai-
oria dos entrevistados nasceu fora da cidade, assim suas lembranças
ligam-se a do lugar de seu nascimento ou de onde passou a primeira
infância. Alguns nasceram nos antigos distritos de Vacaria, como
Muito Capões, e outros são naturais de plagas e rincões mais distan-
tes, como Antônio Prado e Lagoa Vermelha. Vale destacar a presen-
ça de entrevistados de origem italiana com costumes diversos e valo-
res semelhantes. De origem lusa, pelo sobrenome, é a maioria absolu-
ta, sendo ligada às primeiras famílias que povoaram os Campos de
Cima da Serra. Já na década de 1930, viviam em Vacaria pessoas de
origem árabe, citadas mais de uma vez pelos entrevistados, entre eles,
os Chedid.
Lembranças de Vacaria é um livro de memórias, logo,
deve ser considerado mais antropológico do que histórico. Não sendo
livro de história, as fontes que afirmem ou neguem as falas dos entre-
vistados não foram buscadas, mesmo porque a lembrança é uma voz
original e única, que deve ser respeitada. O que foi dito pelos entre-
vistados foi mantido, com pequenas supressões e mínimas alterações.
Este, portanto, é um livro de lembranças daqueles que, entre muitos,
ajudaram a construir não só a história, mas a própria Vacaria.
Imagem cedida por Flora Anello
Parte I
Vacaria: formação
20 Lembranças de Vacaria
Segundo Cesar (2002), “a região dos campos do Norte
da capitania era uma terra de ninguém”. Tal afirmação, no entanto, não
parece se confirmar, pois ela foi lugar de pouso, de passagem e de
atração dos paulistas em suas razias, dos índios em suas andanças,
de mulas e de gado bovino e de seus tropeiros. “Os campos atraíram
bandeiras paulistas que se apropriavam tanto dos índios como do tesouro
vivo que eram os rebanhos rústicos das vacarias” (CESAR, 2002, p. 80).
Apesar da ocupação da Vacaria dos Pinhais pelo
gado trazido pelos jesuítas espanhóis e das sesmarias doadas pelo
reino de Portugal aos seus súditos, a região demorou a ser povoada.
Posseiros morriam sem descendentes e outros deixavam a região por
motivos variados, em parte por causa do isolamento da região, em
parte por causa do tamanho das sesmarias, o que inviabilizava sua
proteção.
Foi o caminho do gado que deu origem ao pouso da
Vacaria. O caminho foi anterior ao pouso. Ele partia das Missões,
seguindo no sentido Oeste-Leste, dirigindo-se para o Norte em dire-
ção a São Paulo. Enquanto eram ocupados os Campos de Cima da
Serra, nas Missões as estâncias jesuíticas se expandiam. Lopes Neto
descreve: “Nessas dilatadas e ferazes campanhas pastavam não menos de
500.000 animais, bovino, cavalares e muares da mais correta estampa e
aproveitáveis qualidades” (LOPES NETO, 1998, p. 120). A história de
Vacaria está, assim, ligada à história dos caminhos do gado, e sua
formação à passagem e ao pouso das tropas e tropeiros. O caminho
das Missões na cidade de Vacaria passava pela Avenida Militar e
pela Rua Júlio de Castilhos, seguindo então em direção ao Rio Pelotas.
A região dos Campos foi lugar de atração de preda-
dores, sendo invadida por índios e por castelhanos. Os espanhóis se
consideravam seus donos. Em 1773 se deu a última e grande invasão
castelhana. A chegada dos castelhanos fez com que muitos de seus
posseiros e sesmeiros abandonassem as terras. Em 1777 os espanhóis
foram expulsos. O governo português mandou, então, realizar um
censo. O censo de 1780, feito pelo engenheiro Antonio Inácio Rodrigues
da Córdova, realizou um minucioso levantamento no Continente de
São Pedro. Nele apareciam “os limites dos domínios em quatro provínci-
as: Rio Grande, Viamão, Rio Pardo e Vacaria ou Cima da Serra” (BORGES
Arlene, Loraine e Magali 21
FORTES, 1941, p. 114). No Continente havia apenas treze freguesias,
o que revela a importância de Vacaria, então contemplada com uma
delas.
Há também o registro das sesmarias concedidas na
região pelo rei, porém a lista dos moradores de Vacaria data de 1776
e aparece no processo judicial redigido pelo conselheiro Mafra. De
acordo com esse processo, nos Campos de Cima da Serra havia 18
proprietários, sendo 77 os moradores das propriedades. Não informa
se esses eram livres ou escravos. São conhecidos os nomes dos propri-
etários das sesmarias, entre os quais, o sobrenome mais comum era
“Ribeiro” (Anexo 1).
Na medida em que aumentavam as estâncias, au-
mentava o número de escravos. Esse fato está presente nos inventári-
os e nos registros de batismos e de propriedades. “Cada fazenda tinha,
em média, 11 escravos. Em algumas delas, o número se elevava a mais de
70. Pelo censo de 1780, havia em Vacaria 571 habitantes, dos quais 32
eram índios e 248 escravos. Os brancos correspondiam a 50,96% do total,
os índios a 5,60% e os escravos 43,43%. Esse percentual de escravos era
um dos maiores do Rio Grande de São Pedro, sendo ultrapassado apenas
pela freguesia de Triunfo, onde 50,11% de seus habitantes eram escravos”
(LAYTANO, 1948, p. 9).
Apesar de sua ocupação antiga, só em 1768 Vacaria
foi reconhecida como povoado, quando a sua capela (de 1761) foi
elevada à freguesia, sendo nomeado um pároco. “O lugar onde foi
erguida a capela fazia parte da sesmaria de Manoel Rodrigues de Jesus.
Muitos anos mais tarde, em 1847, a herdeira das terras, Inácia Rodrigues
de Jesus, casada com Francisco Borges Vieira, doou para Nossa Senhora da
Oliveira a área de terras onde hoje se situa a cidade de Vacaria” (COSTA,
1996, p.95). A criação da freguesia prova a importância de Vacaria.
Também mostra que sua população e a economia eram representati-
vas no território rio-grandense, porém, “a criação só foi confirmada em
1805” (BORGES, 2001, p. 44).
O alvará de 20 de outubro de 1805 tornou Vacaria
distrito de Santo Antônio da Patrulha. A partir de então, os habitan-
tes com alta renda poderiam concorrer à Câmara Municipal, que fun-
cionava na sede municipal, em Santo Antônio da Patrulha. Confor-
22 Lembranças de Vacaria
me Cesar, Santo Antônio era “o município de maior extensão territorial
com uma área de 56.803 Km² […] compreendendo as paróquias de Santo
Antônio da Patrulha, Nossa Senhora da Conceição do Arroio e Nossa Se-
nhora de Oliveira de Vacaria” (CESAR, 2002, p. 238).
Vacaria continuou como distrito até 22 de outubro
de 1850, quando foi elevada à vila ao se emancipar de Santo Antô-
nio. Como outras pequenas povoações do império brasileiro, voltou a
ser integrada a Santo Antônio e, em 1857, retornou a ser vila. Por fim,
volta à condição de município em 1º de abril de 1878, pela Lei Provin-
cial nº 1115.
Enquanto eram realizados os trâmites para a orga-
nização do município, ocorria também a ocupação legal e ilegal das
terras vacarienses, dando-lhe nova configuração. Na medida em que
crescia o número de fazendas aumentava o número de moradores
livres e escravos.
Nas grandes fazendas ligadas à pecuária viviam di-
versos escravos que participaram como os lusos do povoamento regi-
onal. Os registros de batismos atestam que muitos moradores de Va-
caria eram provenientes de outras regiões. Não eram apenas os aço-
rianos os povoadores dos campos serranos. É interessante observar a
mobilidade existente na região desde o século XVII. Tal mobilidade
pode ser constatada nos registros de batismos e casamentos. Na re-
gião viviam pessoas vindas de muitos lugares; alguns eram militares,
outros, funcionários públicos. Enfim, Vacaria estava ligada ao Brasil
e à Portugal. Os seus vínculos foram importantes para a cultura regi-
onal. Por exemplo, José de Campos Bandemburg, proprietário da Fa-
zenda do Socorro, veio de Itu (SP); Ventura José Rezende nasceu no
Porto (Portugal) e casou-se em Vacaria; José Augusto Branco, um dos
proprietários de Formigueiro (Ipê), era de São Luís do Maranhão; por
fim, Manoel Rodrigues de Jesus veio de Laguna (SC).
Em meados do século XIX, por meio do casamento,
também alguns alemães se radicaram nos Campos e se tornaram pro-
prietários de terras e de escravos. Entre eles: Kröeff e Hoffmann. Os
últimos a chegar aos Campos foram os imigrantes italianos, vindos
das colônias Caxias e Antônio Prado. Sua chegada está ligada à bus-
ca de terras para seus filhos. Eles avançam sobre os Matos Particula-
Arlene, Loraine e Magali 23
res (Ipê) e, em poucos anos, chegam a São Paulino, Segredo e, enfim,
a Vacaria. Compraram lotes dos fazendeiros e copiaram seu modo de
vida. Estabeleceram-se nos sítios e fazendas e nas serrarias.
Em 1922, quando os mais velhos dos entrevistados
nasceram, foi publicado um álbum comemorativo - O Rio Grande do
Sul, de autoria de Alfredo R. da Costa. A obra nasceu para marcar o
centenário da Independência do Brasil. Nele é feito um balanço de
Vacaria. Naquele ano o município contava com 6.340 km², sendo um
dos maiores do Rio Grande o Sul. Era composto por oito distritos.
Segundo Costa, “a população era de 22.718 habitantes, dos quais 4.357
(19%) viviam na sede do município. Assim, 80% dos habitantes viviam na
zona rural ou nas pequenas sedes distritais” (COSTA, 1922, p. 471). Con-
forme a mesma fonte, “existiam 1.492 contribuintes do imposto pecuá-
rio. E, na cidade, havia 110 casas de comércio. Enquanto os de origem lusa
dominavam a pecuária, os de origem italiana já se destacavam no comércio.
Funcionavam, então, 18 serrarias e 10 atafonas, 9 ferrarias, 3 carpintarias
e 9 açougues” (COSTA ,1922, p. 472). Em anexo, os nomes de alguns
dos estancieiros e comerciantes do município em 1922 (Anexo 2).
Nas lembranças colhidas no projeto ficam evidentes
os vínculos dos entrevistados com a saga do povoamento de Vacaria
que, por sua vez, é a síntese da história gaúcha. Apenas aqueles que
nasceram na zona urbana escapam dessas profundas conexões.
Os menos afortunados viveram uma realidade di-
versa da dos mais afortunados. Chegaram em busca de trabalho e
encontraram uma cidade sem a infraestrutura necessária para a vida.
Os migrantes eram provenientes das colônias, das serrarias e de sítios
de municípios vizinhos, como Bom Jesus.
Passados tantos anos, desde que as tropas deixaram
de percorrer os Campos, o tropeirismo continua vivo nas lembranças
de alguns antigos moradores dos sítios e de fazendas. Já em relação à
cidade, na primeira metade do século XX, as lembranças são poucas e
nem sempre boas. A cidade parece ter sido soterrada sob os escom-
bros das lembranças particulares. No entanto, a casa onde moraram,
por mais longo o tempo que dela se distancia, é uma lembrança viva e
sempre presente.
24 Lembranças de Vacaria
Domínio Público
Desenho dos caminhos das tropas e do gado entre as Missões e o pouso da Vacaria. O caminho corresponde
ao traçado aproximado ao da atual rodovia BR 285
Domínio Público
34 Lembranças de Vacaria
Pedro Sandi lembra-se que, “naquele tempo lá a pra-
ça se chamava de `jardim´.” Ele demarca a profunda diferença exis-
tente entre jardim e praça, que nenhum dos outros entrevistados per-
cebeu. Ele destacou as peculiaridades: “Antes tinha bastante árvore,
bastante flor plantada, era bonita. Tinha cerca, então era um jardim.
Hoje, é praça.”
Sobre o que ele afirma com pertinência, cabe uma
explicação. Praça (do latim platea) significa rua larga ou local aberto
de confluência de ruas. Jardim, por outro lado (do latim hortus
gardinus) significa “espaço ordinariamente fechado, onde se cultivam
árvores, flores, plantas de ornato.” Há uma enorme diferença entre a
Praça de Touros espanhola e o Jardim das Plantas de Paris.
A transferência do centro social da cidade da Rua
do Vinagre (parte da rua Rua Ramiro Barcelos, entre as ruas Dr. Flo-
res e Júlio de Castilhos) para a praça chama a atenção. Assim, a re-
forma da praça nos anos de 1940 parece ter sido a causa desse deslo-
camento. O passeio dos jovens se transfere para a frente da igreja. A
reforma da praça criou novo locus de namoro. Aproximou o namoro
na praça ao casamento na igreja.
Para cada tempo da cidade houve um tipo de pra-
ça/jardim. Hoje, a Praça Daltro Filho mais uma vez foi remodelada,
marcando a nova face da cidade, mais estruturada e mais moderna.
Foto Fernando Anello
Morro Agudo - localizado às margens da BR 285 saída para Bom Jesus. Ponto culminante de
Vacaria com 1005 metros acima do nível do mar, proporciona uma vista panorâmica dos
Campos de Cima da Serra. Utilizado por índios e tropeiros para identificar a aproximação de
estranhos.
38 Lembranças de Vacaria
As escolas de ensino médio na década de 1950 eram
raras. Em grande parte das cidades gaúchas não havia tais escolas. A
falta delas, muitas vezes, levou vacarienses a estudar em outros luga-
res, como São Leopoldo, Santa Cruz e Porto Alegre. Muitos nunca
mais voltaram.
Curso superior só havia na Capital. Alguns dos en-
trevistados foram para lá com tal finalidade. Como era um grande
sacrifício ficarem tantos anos longe de casa, alguns deles desistiram.
Por outro lado, grandes também eram as despesas, motivo pelo qual
eram poucos os que conseguiam cursar uma universidade.
Na cidade não havia só fazendeiros e peões. Havia
também moradores das antigas colônias italianas que acompanharam
as serrarias, comerciantes e donos de padarias e de hotéis que vieram
se instalar na sede municipal. As diferenças sociais entre os grupos
que viviam na cidade eram grandes. Da mesma forma que seu modo
de ser e de se vestir.
Dalva Soldatelli lembra-se que “as vacarianas todas
eram de muito luxo, filhas de fazendeiros. Então, eu nunca podia me
igualar com elas. No inverno a moda que prevalecia era a de uns
casaquinhos brancos, de pena de ganso, que pareciam uns bolerinhos.
Não era só o vestir. A riqueza dava a elas outra atitude. Elas entravam
na Catedral bem pelo corredor do meio olhando para os lados para
ver se alguém estava olhando para elas. As meninas, quase todas as
que podiam, estavam internas com as freiras, mas já namoravam os
`guris dos padres´ […]. Elas entravam na missa e o pessoal olhava.”
Dalva lembra-se que tinha outra atitude e outra forma de agir: “Eu
entrava com a minha tia sempre pelo lado esquerdo. Ali onde tem
aquele patiozinho, aquela porta, a gente achava um lugarzinho.”
Outro elemento de demarcação existente na igreja
não era de classe, mas de gênero. Segundo Dalva, as mulheres fica-
vam no lado esquerdo e os homens no lado direito. “Quando chega-
vam turistas e viam a igreja cheia, entravam: ‘Vamos assistir a missa’-
diziam -. O casal entrava e se colocava junto. Então, a gente já dizia
‘tem forasteiro na missa’, ‘tem gente estranha na missa.’ ‘Ó, lá, lá, aque-
les dois lá não puderam se separar!´ Outra coisa que não faltava na
cidade era o `diz-que-me-diz-que´. Afinal, fofoca sempre teve e se fa-
Arlene, Loraine e Magali 39
lava daquelas que gostavam de frequentar muito baile. Enfim, coisas
de cidade pequena.”
Maria Irma, que nasceu no centro de Vacaria e vi-
veu a cidade em sua mudança, lembra-se do cinema e dos bailes. Seu
pai era maestro de uma orquestra que tocava na União Operária e
em outros lugares, como o Clube Guarani. Como em muitos outros
lugares de então, bailes e cinemas eram unidos. “A gente ia lá. Era o
clube, era o cinema; eles tiravam as cadeiras e faziam baile.” Seu pai
tocava violão e cavaquinho e as meninas acompanhavam nos bailes.
Não para dançar, mas para auxiliar o pai e ver os outros se diverti-
rem.
40 Lembranças de Vacaria
Lourdes Guerreiro de Lemos, que nasceu na Fazen-
da da Chapada, em Vacaria, conta o seguinte: “Estudei sempre no
colégio das irmãs (São José). Era muito bom, ensinavam bem. Ali ti-
nha internato porque tinham muitas gurias de Bom Jesus e Esmeralda
que eram pensionistas, mas a gente convivia com elas, estudávamos
juntas.” O colégio que tirava os jovens de seu meio servia para unir
pessoas de vários lugares. O colégio reunia o mundo do campo na
cidade.
Flora Anello estudou no São José e lembra-se que,
como sua casa era longe da escola, pois a família morava na Rua Júlio
de Castilhos, com sete anos foi interna para não ter que atravessar a
cidade. Em tempos de chuva ela vivia embarrada. Mas a menina ficou
doente por ficar interna em tão tenra idade. O pai, preocupado, man-
dou fazer, no sapateiro um par de botas, que ela se recusou a usar,
porque naqueles tempos quem usava botas eram os meninos. Então,
outra solução encontrada foi Flora ficar como meio pensionista no
hospital. Não por doença, mas porque as irmãs serviam refeições e
davam assistência para as crianças que iam ao Colégio São José.
Foto Fernando Anello | Foto cedida por Flora Anello
46 Lembranças de Vacaria
Todos os entrevistados foram criados no catolicismo,
assim tiveram as mesmas práticas religiosas e apresentam os mesmos
pontos de vista sobre os ritos de passagem. Quem lê o depoimento
sobre o casamento de um, lê o de todos. Todos casaram no civil e no
religioso. Todos fizeram algum tipo de festa, maior ou menor, de acor-
do com as posses. Os pais entraram com as noivas na igreja. Três ca-
samentos foram realizados fora da igreja: um na fazenda, um na ci-
dade (em casa) e outro na serraria onde a noiva morava com seus
pais. Mas são diferenças de forma e não de conteúdo.
Dos casamentos são lembradas as festas e os convi-
dados. A religião, por outro lado, se apresenta nos entrevistados mais
como ato social externo do que ato de fé. Os relatos referem-se ao
recebimento de sacramentos, ao cardápio servido no casamento, aos
convidados, enfim, a eventos sociais. Poucos dão testemunhos de fé;
nem mesmo os nomes dos sacerdotes que oficiaram as cerimônias são
citados.
Os velórios e o dia de Finados também são semelhan-
tes na recordação dos entrevistados. Para alguns, a experiência da
morte foi a mais triste de todas, especialmente quando da morte de
avós queridos. Os velórios eram realizados em casa, com mais ou me-
nos comida para aqueles que passavam a noite velando o defunto.
Não parece haver ritos especiais em relação aos mortos que revelem a
existência de cristãos novos entre os depoentes.
A convivência com a morte é tratada como ciclo na-
tural da vida, como parte da vida, como parte da família e da casa. A
morte no lar, vivida pelos entrevistados, mostra como mudou a socie-
dade em tão pouco tempo: “A civilização burguesa expulsou de si a mor-
te. Por medo ou para esquecer seu próprio destino, a morte vem sendo pro-
gressivamente expulsa da percepção dos vivos” (BOSI, 1994, p. 88), ou
como Bosi apud Benjamim afirma, “os burgueses desinfetam as paredes
da eternidade”. Ou seja, os ritos e as doenças que precedem a morte
são levados para longe dos lares.
Flora Anello lembrou-se que na Vacaria de então
(década de 1930) havia pessoas encarregadas de lavar os mortos. A
lavagem dos mortos e o enterro em mortalha preta remetem a costu-
me parecido com os dos judeus. A comemoração do Dia dos Mortos
Arlene, Loraine e Magali 47
era data importante para todos. Dia de limpeza e decoração de túmulos
com flores e velas. Alguns dos entrevistados lembram-se da reunião
da família por ocasião do feriado de Finados. Maria José Guazzelli
Costa conta que algumas famílias se reuniam nas fazendas, toman-
do chimarrão e comendo churrasco nas proximidades dos cemitéri-
os, lembrando os velhos ritos das comidas fúnebres, comuns entre
gregos e romanos.
Outro ponto comum relaciona-se às brincadeiras
infantis. Em geral, as crianças imitavam as lides dos adultos: cons-
truíam pequenas fazendas (com todas suas dependências e animais),
montavam cozinhas com seus artefatos e brincavam com bonecas
imitando crianças. O mundo dos adultos era a diversão dos peque-
nos.
Na casa de seus pais, na rua 15 de Novembro, Flora
Anello contava com um verdadeiro parque de diversões, com barras,
balanços, cordas para pular e até um “rema-rema” (semelhante a
um triciclo). Foi ela a única das entrevistadas a gozar de tais brinque-
dos. Quando bem pequenas, ela e sua irmã ganharam bonecas de
louça e outras trazidas da Itália com trajes completos e chapéus com
flores. Tais fatos estão registrados nas fotos tiradas pelo seu pai.
Fotógrafo Fernando Anello | Foto cedida por Flora Anello
48 Lembranças de Vacaria
Zuleide Boeira tinha brinquedos improvisados pelas
próprias crianças. Lembra-se ela: “Ah, nós brincávamos de cozinha,
com cacos de vidro; lavávamos os cacos de vidro para brincar.” Ou-
tros brinquedos também eram feitos pelas crianças: “Fazia boneca de
pano, era o que nós tínhamos para brincar naquela época.” Desse
modo, tinham com que brincar.
Algumas das entrevistadas pouco brincaram. Nair
de Jesus Abreu lembra-se que: “Eu não tive muito tempo para brin-
car, eu não tive muita infância, pois era a mais velha, então eu tinha
que ajudar um pouco a mãe - em casa e com os irmãos. Tudo depen-
dia de mim.” Esse não foi um único caso. Muitas das irmãs mais ve-
lhas não tiveram infância. Desde cedo se tornaram auxiliares diretas
das mães, em muitas situações, mãe de seus irmãos menores.
Tereza Gomes Maciel, outra entrevistada, afirma:
“Nem me lembro, decerto eu brincava com alguma boneca.” Ela não
tinha tempo para brincar: “... porque assim, desde a idade de seis
anos já fazia até chá para o meu pai, que ele era doente. Depois eu fui
parar um pouco com os padrinhos e servia como empregada.”
As diferenças no número de brinquedos e tempo des-
tinado para brincadeiras dependiam das condições econômicas das
famílias. Naqueles tempos, desde muito cedo as crianças eram
compelidas ao trabalho, ora para ajudarem os pais, ou até mesmo
para auxiliarem com seus pequenos salários na vida familiar. O tem-
po de brincar era limitado pelas condições econômicas dos entrevis-
tados. O trabalho para alguns começou aos seis ou sete anos. As lem-
branças são mediadas pelas necessidades do passado.
Não há como negar que toda a lembrança é uma
mediação, espécie de caminho ligando a vida presente do entrevista-
do com a vida de seus mortos. Há sempre muitos mortos nas lem-
branças dos velhos. Nelas há muito mais mortos do que vivos, pois
grande parte de suas famílias já não existe, a não ser em suas lem-
branças. Nelas, algumas vezes, há imagens e diálogos tão vivos - como
se os familiares ainda estivessem presentes.
52 Lembranças de Vacaria
Crenças e legado
58 Lembranças de Vacaria
Vestígios do tempo
Parte III
Recordação e adaptação
***
***
66 Lembranças de Vacaria
Assim se brincava
“O primeiro Natal, ainda morava no sítio, na casa
da minha tia. `Daí´, a minha madrinha disse: ‘Não vai lá na sala ago-
ra, tem que esperar depois da meia-noite, que o Papai Noel vem tra-
zer um presente’. Depois da meia-noite, eu ansiosa para ver, cheguei
lá... uma bonequinha assim, imagina. Com isso que eu fiquei conten-
te, porque em casa meus brinquedos eram bruxas de pano que minha
mãe fazia com cabelo de lã de ovelha e bordava os olhinhos. `Daí´,
aquela bonequinha... a gente dizia de celulóide, seria o plástico de
agora, mas era bem pequenininha assim. Ai, como eu fiquei contente,
cheguei lá na sala, aquela bonequinha sem arrumação, sem nada,
sem um pacote! Só ela assim... minha madrinha colocou em cima de
uma cadeira [...]. Foi o primeiro presente que eu soube, assim, o que
era Natal. E, em casa, eu tinha meus brinquedos: era a boneca de
pano, as louças (a gente gostava quando quebrava uma xícara, uma
coisa, que aquele pedacinho, aquele caquinho da xícara, a gente dizia
que era louça, imagina!). Uma vez, eu e a Glória, uma vizinha que
pegou essa infância também, a gente rindo, dizia como a gente gosta-
va quando quebrava uma louça na casa para a gente dizer que era
louça da gente; `daí´, a gente fazia a prateleirinha e botava aquele
pedacinho de xícara, ou aquela asa...
E a roupa, a gente pegava um retalhinho de costura
assim, que tudo que era mãe fazia em casa, e botava assim e dizia:
‘Vou botar o meu vestido agora pra ir passear’. Pra ver, eu não tinha
ninguém, porque eu me criei sozinha e não tinha vizinho bem perto,
então brincava sozinha, faz de conta que tinha amiguinha. `Daí´, eu
botava aquele retalhinho assim e dizia: `Vou visitar minha amiga, mãe´.
Então ia lá pro outro quarto, fazia que era visita, aquele trapinho ali...
Eram assim os brinquedos: bonecas de pano. O meu irmão ainda pe-
gou o tal `gado de osso´, que são os ossos de quando carneiam a vaca.
Eu sei até hoje o que é vaca, o que é terneiro, o que é cavalo porque o
Darci tinha a mangueirinha dele, que formava lá fora. Ele fazia de
madeirinha, de cavaco aquelas mangueiras e botava aqueles ossos,
mas tinha certo o que era, sabia o que era vaca, cavalo, terneiro e
tudo, era o tal `gado de osso´. Até tem um cantor que fez uma letra,
uma música que diz: `O tempo do gado de osso´. Eles não tinham
Arlene, Loraine e Magali 67
brinquedo também - o brinquedo da gurizada naquele tempo era fun-
da de matar passarinho, que faz da forquilha. Depois, quando eu vim
pra cá, já tinha. Eu tenho `mobilinha´, até nem sei pra quem que eu
dei, porque depois a Vivi não era muito de brincar. Elas brincaram
com minhas mobílias. Agora, hoje em dia, ninguém brinca assim, de
boneca, de casinha. No tempo da gente era assim. As minhas filhas
também brincaram de casinha, se criaram lá no interior também, mas
já a minha neta nunca brincou de casinha.” (Maria Ilza de Abreu
Wolf)
***
“Brinquedo não se usava, nem tinha para comprar.
A gente fazia os brinquedos da gente. Eu tinha uma fazenda que eu
vou te contar de linda! Era de `gadinho de osso´. Tinham as bonequi-
nhas que a gente fazia de pano, com os cabelinhos de pelego. A gente
fazia o casal e, `daí´, não tinha automóvel, então a gente pegava uma
caixa de sapato, cortava um papel redondo, fazia as rodinhas. Então
sentavam o patrão, a mulher e o esposo; e tinha criancinha, tinha
bebezinho. Lá, o sótão da casa era muito grande, então lá a gente
fazia as famílias. Os empregados moravam no sótão, mas lá fora ti-
nha a fazenda, então, quando eles iam para a fazenda, ia aquela car-
reta cheia de gente. E tinha tudo na fazenda: tinha gado, tinha cava-
lo, tinha potro e, aí, nós fazíamos os galpões assim, de cará, com as
coberturas. Eu e o Miguel, nós éramos os menores da família, fazía-
mos a cerquinha, tudo de madeirinha com linha, fazendo (de conta
que era) arame e os galpões. E a gente inventava os banheiros de ba-
nhar o gado. A gente abria uma lata dessas de óleo, que vinham, umas
quadradas, e fazia um buraco, botava a lata cheia d’água para fazer
o resvalador, fazia as escadinhas e banhava o gado.
Nós tínhamos cavalos de corrida e os cavalos eram
os de cará. Então, a gente furava com prego para botar um barbante
para fazer a rédea. Eram esses os nossos brinquedos. E balança nos
cinamomos. Botávamos os laços com um pelego e um embalava o outro.
Eu botava uma corda na minha balança e outra na dele. Então, ele do
lado de lá, e eu do lado de cá; então, ali a agente ficava se balançan-
do... E petiço! Nós tínhamos os petiços que meu pai nos deu e ali ía-
mos para o campo brincar de tropeada. Encilhávamos os petiços e
68 Lembranças de Vacaria
íamos brincar. Tínhamos os pousos - tudo o que meu pai fazia nós
imitávamos na brincadeira. Rádio tinha, mas não se usava muito,
porque era à bateria e era de carregar, então a gente inventava os
brinquedos. [...] Tinham as brincadeiras de brincar lá fora, brincadei-
ra de roda, tinha várias coisas; uma que a gente chamava de ‘bando´,
não sei por que, mas se chamava assim. Outra que era de dar o pano,
que a gente fazia o círculo assim, e corria e corria, largava o pano
atrás da criança, a criança pegava e saía correndo atrás e tal. Tinha o
‘bando´ que era uma árvore, aí se corresse, se pegasse na árvore, não
podia bater. E tinha o ‘bicho´, que era assim: fazia a roda, as crianças
estavam brincando - era o Canivete Pintadinho; então, a gente fazia
a contagem assim: ‘Qual é que é o bicho?´ Ninguém queria ser, então
eles falavam assim: ‘Canivete Pintadinho está na barra 25, me engole
me engole, este dentro, este fora’. Aí, aquele, dizia: ‘Me engole, me
engole, esse dentro e este fora’. Às vezes, a gente ia pegar o outro, que
tinha que correr. Tinham vários outros brinquedos que nós fazíamos
por nossa conta, brinquedo que nós inventávamos. Como a gente gran-
de as crianças iam aos velórios, antigamente, nos casamentos, nos
batizados. Então, cada domingo, escolhíamos uma coisa pra brincar.
Tinha o domingo que nós brincávamos de batizado, então fazíamos a
roupa nova para boneca e a mãe dava umas coisas para fazer o ban-
quete. Se brincava a tarde inteira com aquilo, era muito gostoso. De-
pois, no outro domingo, tinha o casamento. Aí, tinha a noiva, o bu-
quê, os convidados e, também, o banquete. O véu era a toalha de
mesa metida na cabeça da noiva. No outro domingo tinha o velório,
que era o mais divertido, porque no velório os parentes que mora-
vam longe iam chegando de madrugada e, quando morria uma pes-
soa da família, todos os da família iam deitar e quem ficava fazendo
o velório eram os vizinhos, os conhecidos. Então, quando um parente
chegava bem atrasado, tinha assim, o ‘choro de escadinha´. E tinha o
‘choro de caracol´: chegava o parente do morto e o choro da madru-
gada, quando chegava, era o ‘choro de caracol´. Era ‘uuuuuhhhhh’
[imita o choro]. Fazia assim e aí, aquele que estava muito mal, que
estava desesperado pela morte do parente, então era o ‘de escadi-
nha´; era ‘ai ai ai ai’ [imita o choro]. O que mais me impressionava era
que iam todos para a cama, dormiam bom sono e, quando eles acor-
davam é que [...] se lembravam de quem tinha morrido: a pessoa da
Arlene, Loraine e Magali 69
família. Então começava aquele choro lá no quarto ‘aaaaai meu Deus’
[...]. E a gente ia velando tudo aquilo. E quando chegava na hora de
nós brincarmos de velório, ora, nós tínhamos muito motivo. Era mui-
to difícil quem quisesse ser o morto, porque o morto quase não se
divertia, então a gente escolhia. Sempre achava um para ser o morto,
então ‘não, vai você o morto, depois, outro dia, eu sou’, e ali a gente
brincava. Eu gostava de ser aquele parente que tinha que levar, assim,
a mãe ou a filha que iam meio que desmaiando ‘ai, meu Deus, ai
coitadinho, foi para o céu, me deixou sozinha’. Então, essa brincadei-
ra do velório ia longe, porque às vezes as famílias tinham pelo menos
10 filhos. Então, até passar todos aqueles filhos, era uma brincadeira
muito divertida [...]. Minha mãe não achava muito engraçado, mas
meu pai ria; meu pai passava por lá, porque a casa era muito grande
e tinha uma cozinha de chão enorme, assim, para trás, então nós brin-
cávamos ali, e aí, quando ele passava por ali e via tudo aquilo, achava
graça. Minha mãe dizia: ‘Não presta brincarem disso, não sei o quê...´
Mas, enfim, a gente brincava. E tinham várias assim: tinham as brin-
cadeiras na escola, na hora do recreio e tinham, depois, aquelas par-
ticulares, da família, por exemplo. Nós brincávamos de fazenda, nós
mesmos fazíamos as bonequinhas de pano; tinha uma empregada da
minha mãe que nos ensinou fazer as bonequinhas. [...] Tinham os
‘gadinhos de osso´ e galpão. Um compadre lá visitava o outro, aí ia lá
negociar, ia comprar o gado. Tínhamos os cavalinhos de osso, tinha
boi, tinham os reprodutores, que eram os da coluna. Sempre aqueles
bem grande assim. Então, a gente negociava e o dinheiro era folha de
limeira. E a gente escrevia com o espinho da laranjeira ou da limeira.
A gente escrevia quanto valia aquela folha. A gente levava o dia intei-
ro brincando com aquilo de fazenda.” (Ironita Bueno Guerreiro)
***
“Brincávamos na rua. Na minha época futebol não
tinha muito. Só o meu irmão, o Luiz, um dos irmãos mais velhos, que
foi jogador de futebol. Os outros não eram. Hoje, por qualquer coisa
estão com bola. A gente brincava de se esconder, porque nas ruas
tinha muito espaço, então ficava no poste contando até 100 e a turma
toda ia se esconder. Você se escondia nos lugares, você entrava por
tudo quanto era terreno, nos fundos das casas. Para achar toda a
70 Lembranças de Vacaria
turma escondida, às vezes, demoravam horas, porque se escondiam
nos lugares mais diferentes. Que eu me lembre, no meu tempo, era a
brincadeira mais comum. Meu pai era muito ligado em caçar; caçar
perdiz. E meus irmãos também eram assim [...]. Nos fins de semana,
geralmente, ele saía para o campo com os filhos para pescar e brin-
car. Eu não, eu ficava mais em casa, porque me cuidavam muito. Fui
aluno do São Francisco com quatro anos. Eu lembro que meus irmãos
iam para o colégio e para eu não ficar chorando me levavam junto.”
(Carlos Rigotti)
***
***
Eu não aprendi nada! Nem ler e escrever. Por causa
que: uma, que era longe o colégio. Então iam só os maiores. Meu pai
me pôs lá, então um dia a mulher me ‘tacou´ uma régua na testa só
porque eu me meti numa conversa que não era pra mim. Quer dizer,
não sabia se era pra mim ou não era. Ela mandou aquela pergunta e
ninguém respondeu, e eu respondi. Ela levantou da mesa dela e veio
com aquela régua e me ‘tacou´ na testa. Aí disse: ‘Por que você res-
pondeu?´ - Aí , eu disse: ‘ Mas a senhora não fez a pergunta? Tinha
que responder!´. - ‘Mas não era para você!´ - ‘Então, a senhora expli-
casse que não era para mim que eu ficava quieta´. - E os outros che-
garam em casa e já contaram para o pai. O pai disse: ‘Olha, ela não
conheceu a mãe dela, que era quem podia fazer isso. Agora eu vou
lá´. Disse: - ‘Ela não vem mais, porque a mãe dela faz tantos anos que
é morta, ela nem conheceu. E você, que não é nada, foi quebrar a
régua na testa dela, ontem´. - Eu disse: ‘Olhe, se ela tivesse me dado
mais umas, era melhor, porque, ‘daí´, eu tinha aprendido´. - E ‘daí´, o
pai nunca mais me deixou ir ao colégio. Veja que colégio era naquele
tempo. Era só um colégio que tinha uma escolinha particular ali. E
não deixou mais.” (Elaine Lira de Lima)
***
“As irmãs eram severas, mas podemos dizer que
eram boas – não batiam, não davam castigos rigorosos. O colégio era
Arlene, Loraine e Magali 73
bem rudimentar: a mesa esmaltada era bastante descascada e não havia
toalha. Cada aluna interna tinha a sua gavetinha onde guardavam
doces, mas diziam que era remédio, então as freiras permitiam. A co-
mida, embora farta, não era muito boa e não tinha muita variedade.
Salada, lembro só a de alface. Eu não comia nada! O café com leite já
vinha servido e era acompanhado com pão e manteiga, só que vinha
sem açúcar. Então a minha mãe enchia uns vidros de sal de fruta Eno
com açúcar Cristal e as irmãs pensavam que era remédio. Só se toma-
va bem o café da manhã e da tarde. Levantávamos às seis horas da
manhã e às seis e meia íamos à missa na Catedral. No inverno íamos
`quebrando gelo´. Como era proibido usar calças compridas, o frio
gelava as pernas. Só às segundas-feiras ou quando chovia muito é que
algum padre, ou o bispo Dom Cândido, ia rezar na capela do colégio.
Os castigos eram perdermos algum passeio, não eram castigos corpo-
rais. Tinha umas irmãs muito boas: a Irmã Cecília, a Irmã Edviges,
entre outras. Levantar cedo era a pior coisa. Tínhamos uma vida de
convento - a disciplina era de convento. Quando meu pai vinha à ci-
dade pagar o colégio e nos visitar (uma vez por mês), eu ficava no
corredor chorando e não queria cumprimentá-lo. Ele falava comigo,
perguntava o que havia e eu lhe dizia que estava com umas feridas
doendo. Na verdade, sempre fui alérgica à carne de porco e farinha de
milho; infelizmente esses alimentos eram constantes na dieta do colé-
gio.
Em 1942 saí de férias, doente – estava tuberculosa e
fui pra um casamento de um irmão meu. Passei a noite toda tossindo.
Lá encontrava-se um excelente médico de Antônio Prado, que já era
professor de Tisiologia em Porto Alegre. ‘Levem ela para Antônio Pra-
do, que essa guria está com pneumonia´. Eu estava com uma mancha
já, no pulmão, depois tive sorte, porque o Dr. César Avila veio a Antô-
nio Prado. Meu pai mandou chamá-lo e, então, me examinou e mu-
dou a medicação, porque não havia antibiótico. O tratamento foi com
injeções de cálcio - injeções doídas. Fiquei três meses hospitalizada.
Lembro-me de uma enfermeirinha que era meio manca e a minha mãe
disse: ‘Se conseguires que ela coma, eu te dou um vestido de seda´.
Naquele tempo, vestido de seda era chique. Ela se ajoelhava: ‘Zeca,
nem que tu vomites depois, coma, por favor, para eu ganhar o meu
74 Lembranças de Vacaria
vestido de seda!´.
Fiquei um ano me tratando em Antônio Prado e, pos-
teriormente, em Porto Alegre. Depois de um ano de repouso, estação
de ‘águas termais´ em Santa Catarina, remédios e boa alimentação na
fazenda. Em 1943 meu pai me internou no Colégio Bom Conselho, em
Porto Alegre, onde fiquei quatro anos cursando o ginásio. O Bom Con-
selho era um colégio grande com cursos ginasial e colegial (1º e 2º graus).
Várias irmãs com curso superior eram professoras, juntamente com
professores leigos. Saindo do Bom Conselho era aprovação certa em
qualquer vestibular. Nesta época, era muita decoreba. Algumas alu-
nas decoravam com muita facilidade. Uma, que me lembro, era a Te-
reza Santana. Nós duas sabíamos tudo, só que ela explicava em pou-
cas palavras e... nota dez. E eu sou meio prolixa, gostava de história
bem contada, demorava mais, mas sempre com boas notas também.
Concluí o colegial em 1946, com o segundo lugar –
éramos duzentas alunas, quatro turmas. Embora meu pai ficasse vai-
doso, não me deixou continuar os estudos. Eu queria fazer Direito,
mas como meu irmão Sinval ia fazer esse curso, ele achou que convi-
nha mais a um homem. E acabei desistindo de estudar... Até hoje la-
mento por eu não ter teimado mais!” (Maria José Guazzelli de Guazzelli
Costa)
***
“No sítio, eu nem peguei escola. Meu irmão que pe-
gou professora particular [...]. Comecei na prefeitura antiga, porque o
(colégio) Padre Efrem tinha queimado naquele ano. `Daí´, a prefeitura
cedeu várias salas para o Padre Efrem, pois já existia a escola, só que
foi queimada. A prefeitura cedeu. Então, meu primeiro ano de aula,
meu primeiro e segundo ano, foram na prefeitura. Ali, antes de fazer
essa nova - a antiga. Deve ter a foto da antiga lá no museu; minhas
primeiras aulas foram ali. Minha primeira professora foi a Dona
Bernardina Padilha, que é o nome da escola. Muito querida, ela era
uma solteirona assim, não era daqui de Vacaria, mas ela tinha uma
paciência com as crianças da primeira série! Guardo até hoje a lem-
brança dela, muito querida. Foi a minha primeira professora; depois
tive o Bróglio. Depois, em 36, é que eu passei pro São José. `Daí´, sofri
Arlene, Loraine e Magali 75
um acidente de carro - quase morri, `minha querida´. `Daí´, interrom-
pi a aula aquele ano e, no outro ano, comecei no São José. Estudei no
São José de 36 a 43. Irmãs boas, mas só que era assim: uma disciplina
bem diferente. Agora, os alunos possuem liberdade de dizer aquilo
que não gostam, o que gostam, o que deve ser, o que não deve. No
nosso tempo, não. A gente só obedecia. A prova está aí - que os uni-
formes tinham que ser abaixo do joelho, de meia `escócia´, de sapato.
Não podia pintar as unhas pra ir nem em festinha, quando tinha lá.
Não podia pintar a unha nem se pintar. Ir simplesmente. Agora, até
elas mudaram, né? Mas era muito bom. Foi bom ali, meu estudo no
São José - foi a base da minha vida e, depois, da minha profissão.
Depois, saí lecionar em cinco lugares. Naquele tem-
po, faziam até o sexto ano; tinha o tal exame de admissão [...]. ‘Daí´,
os três complementares. Eram ali que tinha pedagogia, que depois
ensinava. E não se dizia ‘professora´, se dizia ‘aluna mestra´ - ‘tirou o
diploma de aluna mestra´, pois eles davam o nosso diploma. Tenho
guardado, ainda, o meu também, mas ‘tá´ assim, como aluna mestra.
‘Daí´, eu saí o primeiro ano. Houve a classificação das notas melho-
res, foram nomeadas no mesmo ano, em 1943; a gente se formou em
44. [...]. Eu fui lecionar no interior. No interior, eu lecionei pelo muni-
cípio dois anos, depois, em 45, fui nomeada pelo Estado. Fui lá para
Guaporé, num distrito lá que existe hoje. De lá fui transferida para a
Vila Ipê e de Vila Ipê fui transferida para Ausentes, onde morei 20
anos. Lá casei, lá criei os filhos; só não nasceram lá. Fazia que nem
minha mãe - vinha ganhar aqui. Eu vinha na casa dela, ela vinha na
casa da mãe dela. Eu vinha ganhar meus filhos aqui em Vacaria.”
(Maria Ilza de Abreu Wolf)
***
Praça Daltro Filho, Rua Ramiro Barcelos, quase em frente à Escola Padre Efrem. Desfile
das escolas municipais, em 07.09.1942. A orientadora municipal era a prof.ª Amélia
Azambuja, marcada na foto com sua assinatura. Observa-se, à esquerda, o prédio de dois
andares - Casa Triumpho -, que por muitos anos abrigou a Casa Magnabosco (hoje a
Agência do INSS). Do outro lado da rua - Silveira Martins - existia a casa do Dr. Lydio
Fileto de Oliveira (Deltasul atualmente).
78 Lembranças de Vacaria
Namoros & casamentos
“Eu comecei a namorar ele, era uma menina. Come-
cei com 15 anos e, com 19 eu me casei. Só podia casar acima dos 18:
era lei familiar. Os pais não davam `direito´ pra filha mulher casar
antes dos dezoito, só depois. Então, eu casei com 19, `daí´, eu fiquei
mais tempo e `dali´, eu fui construir a minha família. Sofri bastante na
roça: trabalhar, economizar bastante. Até que, depois, nós fomos morar
pra Santa Catarina, pro Mário trabalhar em uma serraria. Ali não
deu certo, aí o patrão despachou ele, ficamos de mãos amarradas. Aí,
viemos embora aqui pra nossa terra, aqui para São Manuel, que é a
minha terra natal. Ali a gente criou os filhos, sofreu; o mais velho,
doente. A Alda Rita sempre foi a mais sadia. Depois, a gente veio
embora para trabalhar aqui, que ele foi trabalhar no ‘ICM’. Aí, a mi-
nha vida foi razoável, até a gente pôde comprar a casa.” (Nair
Cechinato Nicheli)
***
***
“Os namoros começavam em festas, em bailes. Eu
peguei, ainda, o cinema, aqui. A gente ia no cinema, nas tais de matinê,
que eram de tarde, nos domingos. Os namorinhos de infância eram
assim - na matinê. Depois, `quando cresceu, quando foi adulta´, eram
nos bailes. E também nas festas de igreja, com nove dias de festas, ou
80 Lembranças de Vacaria
era ali na União Operária que faziam. `Daí´, faziam tenda lá dentro;
faziam com baile. Eram muito bonitas as festas de antigamente. Hoje,
os namoros são mais liberais que na minha época. Agora que é muito
diferente. Ah, e quando, por exemplo, se dizia de uma moça ‘fez mal’,
ela não era digna de entrar na sociedade que nem as outras; de ir
num baile. Era tratada separada. Era assim, uma reserva. Não com a
família, mas com as pessoas estranhas, sabe? Ela não podia frequen-
tar uma sociedade que nem as outras moças frequentavam […]. `Ah,
aquela já foi isso, já foi aquilo´- era bem assim. Mas naquele tempo era
assim: era uma reserva […]. `Ah, aquela lá ela não é bem vista na
sociedade porque isso, porque aquilo´. Se casasse, tudo bem, mas se
não casasse com aquele, pode saber, era mal vista e ela não podia
frequentar um baile, uma coisa assim, sabe, junto com as outras mo-
ças. Era assim. Bem no meu tempo de jovem, moça... é, não era só de
criança, era já de mocinha assim, que eu me lembro disso, que tinha
essa reserva ainda.” (Maria Ilza de Abreu Wolf)
***
***
***
***
***
***
Medidas:
1,22 x 1,10 = 1,16 x 5,50
1,11 x 1.09 = 1,10 x 5,50
90 Lembranças de Vacaria
Festas sagradas & profanas
***
“Não se falava em Papai Noel. Depois é que veio,
quando nós já estávamos grandes. Quando veio o Batalhão que co-
meçaram a falar no tal de Papai Noel. Eu nunca tinha visto, então,
`daí´ que vi que tinha o tal Natal. Então, vinha gente do sítio, lá, os
outros, não nós a cavalo – outros, a pé, para a cidade para assistir o
Natal. Eu fui ver bem o Natal quando nós viemos embora. `Daí´ sim,
mas antes não. Páscoa nem se falava! Tinha um padrinho nosso que
ia lá e tocava, um cunhado que tocava, mas eram aquelas músicas
que tocavam... rancheira, que nós gostávamos quando tinha rancheira
para dança. Quadrilhas também nós dançávamos quando crianças.
Quando eles iam lá em casa, nem falavam de São João, naquela épo-
ca. Festa de São João eu vim aprender aqui na cidade, porque lá não
tinha festa de São João. Eram poucos os vizinhos, as casas eram de
fazendeiros e era difícil ir visitar. Nós brincávamos com os irmãos em
casa, só. Tinha baile no sítio, mas era longe para ir a cavalo. Não era
assim como agora, que tudo é fácil. Nem missa no domingo tinha; lá
de vez em quando ia um padre. `Daí,´ era longe - era na Capela São
Sebastião, e quando vinha o padre lá, nos domingos, nós íamos à
missa... se nos avisassem (nós íamos a cavalo). Meu irmão, que era
gaiteiro, tocava, e meu cunhado também. Eles tocavam e nós dançá-
vamos. Tinha a fogueira de São João e, `daí´, nós dançávamos. E ti-
nha minha irmã - agora que me lembrei -, tinha a Celi: ela tinha sa-
lão, `daí´ nós íamos aos bailes dançar; ela mesmo que fazia. O salão
era na casa dela. Ela convidava, `daí´ era de convite. Convidava e
vinham. Fazia os convites como se faz para casamento e convidava
as famílias para o tal baile. E dançavam a noite inteira. Tinha a or-
questra - bem bonitas as orquestras que eram.” (Zuleide Boeira)
92 Lembranças de Vacaria
***
“A Festa do Divino, para nós, era a maior festa. Era
uma festa que nem hoje, só que nós saíamos pelo sítio a cavalo, com a
bandeira, com os tambores, angariando coisas pra festa. Quem que-
ria, dava dinheiro, dava uma vaca, dava uma ovelha. Então, nós ía-
mos anotando e, quando chegava perto da festa, abatíamos aqueles
bichos. Tinha o churrasqueiro que fazia o churrasco, lá, e era vendido
que nem hoje. Lá na festa, tinha um mastro que era fincado - uma
madeira com a bandeira do Divino em cima. Então, de manhã cedo,
na primeira missa das seis horas, o padre botava os prêmios bem na
ponta do mastro, lá em cima. Às vezes, era dinheiro ou outro prêmio,
como um relógio, uma joia, alguma coisa... Passavam naquele poste
bastante parafina ou alguma coisa lisa para ninguém conseguir subir.
Era liso mesmo, às vezes passavam sabão. Depois da missa das 10
horas, então, era a hora do `prêmio do mastro´. Toda a gurizada que-
ria subir para pegar o prêmio e lá sempre um subia. Então, aquele que
subia era homenageado - não pagava o churrasco. Batiam palmas e,
na hora que ele ia descer, eram largados foguetes, aquela coisa toda.
Grande homenagem que era feita na Festa do Divino. Depois, lá no
salão, era homenageado de novo com palmas e cantoria. Aí, davam
os parabéns para ele e tal. Era muito bonito e muito emocionante,
porque, para nós, a maior festa que tinha era a do Divino. Era isso aí,
era uma coisa muito marcante para nós a Festa do Divino Espírito
Santo.” (Clodovino Camargo Silveira)
94 Lembranças de Vacaria
Higiene é a questão
“Banheiro não tinha - era uma bacia grande de zin-
co (até pouco tempo ainda existia a bacia velha, lá atrás). Aquela
bacia que era de se lavar. Em geral, o pessoal que se hospedava, era
um dia, dois... então, de banho nem precisava. `Daí´, cada quarto
tinha uma bacia e um jarro de esmalte. Eu tenho o da minha mãe, do
casamento […]. Tinha a saboneteira, que está guardada, também
igual; tinha um pente grande, e tinha o ‘pinico’. Só que o `pinico´
quebrou há muito tempo. Nos quartos da pensão, eram brancos
esmaltados e cada qual tinha um ‘pinico’. E despejavam... Era serviço
da minha mãe. Ela que cuidava. Sempre tinha uma empregada, tam-
bém, para ajudar. Fazia comida, café... O pão era ela que fazia; às
vezes, comprava, mas naquele tempo quase não tinha padaria, ain-
da. No tempo da minha mãe, ela tinha um forninho ali atrás, aqueles
fornos de barro. `Daí´, ela fazia pão e bolacha. Ela gostava muito. Eu
já não sou muito de fazer bolacha, essas coisas...Pão eu ainda faço,
cada 15 dias...” (Maria Ilza de Abreu Wolf)
***
“Só os ricos tinham banheiro aqui em Vacaria. Os
pobres faziam uma casinha de cinco e meio por cinco e meio - uma
varandinha atrás, um corredorzinho do lado, assim, que hoje cha-
mam de `patente´, `latrina´. A água era de poço.’’ (Juvenil Santos)
***
“Em casa todo mundo tinha tanque. Aqui no
Uruguaizinho tinha muita gente que vinha lavar roupa. A água do
riacho, ali, era limpa. Lavavam nas épocas de seca. Não era bem no
córrego, mas era cheio de banhados e tinha um lugar aberto onde as
águas eram mais puras; então ali lavavam roupa. Da época das se-
cas, eu me lembro da minha avó Eustácia, que tinha pensão - iam lá
para lavar lençóis. Tinha um carreteiro que levava a minha madri-
nha. Tinham as empregadas, que levavam lá no Carazinho, de ma-
nhã, naquelas descidas . Lá havia água permanente. Mas era uma
viagem: ficavam o dia inteiro! Faziam até comida enquanto lavavam
Arlene, Loraine e Magali 95
os lençóis - essas coisas da pensão da ‘Sia Eustácia’. Quando eu era
guri e avisavam que vinha gente para a pensão, a gente corria com a
cadeira para elas descerem do selim, porque vinham a cavalo, geral-
mente. Quando vinha mulher, então, vinham de selim. Eles marca-
vam, diziam ` tal mês eu vou lá´. A Vó Juventina era uma que vinha
todo mês, porque ela era professora - uma das primeiras professoras
formadas e nomeadas lá no Ituim - e ela vinha para receber o `orde-
nado´ dela. Então, minha avó Eustácia já esperava a Morena - a cha-
mavam de Morena - `está na hora da Morena vir´. Então, quando ela
chegava, eu corria com a cadeira lá para ela descer do selim e, depois,
já tinha o `negrinho´, empregado – era ali onde era o antigo Carbonara.
Embaixo tinha um porão que era como se fosse a garagem. Ali fica-
vam os cavalos. `Daí´, ele pegava os cavalos e vinha trazer nos cam-
pos, aqui no potreiro, soltar os cavalos. Tinha um empregadinho para
isso, para carregar os cavalos. E outro detalhe que é importante: tinha
o `cabungo´, que era tipo de umas pipas que botavam nos banheiros,
e as pessoas todas iam defecar ali. E, aí, vinha um carro buscar. Tinha
uma carreta da prefeitura – isso ali por 1937 – e colocavam lá no
Uruguaizinho. Para lá do Batalhão tinha um lugar para despejar dentro
do rio e lavar, para depois colocar nas casas. Muita casa, ainda na
época do Batalhão, tinha as `casinhas´ lá fora. Esse negócio durou
muito tempo aqui em Vacaria. Depois, quem tinha banheiro dentro
de casa era um luxo. Isso, só depois que encanaram a água, depois do
Batalhão.” (Carlos Rigotti)
96 Lembranças de Vacaria
Epidemias & doenças
***
“Contam que teve a febre espanhola. Dava uma fe-
bre naquele tempo e não tinha recurso - não tinha nem hospital. Na-
quele tempo o médico ia à casa do doente, não o doente na do médico.
Não tinha remédio, pouco recurso, matava fácil e era uma febre que
não tinha quem curasse. Então, usavam para essa febre `braba´ o tal
de `sinapismo nas pernas´: se moía uma semente de mostarda e pu-
nha para ferver com farinha de mandioca. Se fazia um pirão grosso e,
então, botavam num pano que amarravam na barriga da perna, fi-
cando vinte e quatro horas, um em cada perna. A homeopatia, a
Belladona, o Arsenicum álbum, a Nux Vômica e outros remedinhos de
homeopatia eram os remédios que se tinha. Compressa de salmoura
se usava muito: salmoura quente para tirar as dores de batida, de um
corte. Se cortava a mão, dedo, alguma coisa, até que chegasse o médi-
co e tal se botava sal ali pra evitar uma infecção. Havia bastante sim-
patia. Isso existia bastante! Existia benzedura - era comum mandar
benzer. Inclusive, a falecida minha mãe benzia de `rendidura´. Quan-
do alguém se `rendia´, ia benzer e parece até que resolvia. Dava `sapi-
nho´ na boca das crianças, a falecida mãe benzia e curava. Essa que é
a história. Lá em Bom Jesus ela curou o filho de um médico, `de sapi-
nho´. O médico não sabia o que fazer - levou lá na mãe, para ela
benzer, e ela curou o filho do médico, de `sapinho´. Eu acredito muito
em simpatia. Quando precisava de um médico levavam o médico a
cavalo para o sítio. Os médicos de lá eram cavaleiros, levavam a ca-
valo para o sítio - o médico, com a sacolinha de coisas dele... não tinha
o que fazer.” (Clodovino Camargo Silveira)
98 Lembranças de Vacaria
***
***
“Para curar a criança das `bichas’ a gente soca bem
as folhas do pessegueiro e de hortelã e coloca umas gotinhas de vina-
gre. `Daí´, pega aquela pasta bem socadinha e coloca em cima do
umbiguinho da criança. Era assim. Agora, a gente faz o chazinho de
Arlene, Loraine e Magali 101
hortelã e benze também. Quando a gente sabe que uma pessoa sabe
benzer, manda benzer, mas uma vez se fazia o emplasto para colo-
car no umbiguinho deles e amarrar uma faixinha - podia ser grandinha
- e a criança melhorava. Assim, botava dobradinho pra não ficar
solto no umbigo.” (Tereza Gomes Maciel)
***
“Tinha muita simpatia, muita benzedeira. Para dor
de cabeça era usado `tirar o Sol da cabeça´: botavam uma toalha e
uma garrafa com água em cima da cabeça. Se aquela garrafa come-
çasse a borbulhar, era que a pessoa estava com insolação. `Daí´, usa-
vam muito isso aí, o `tirar sol da cabeça´, e a benzedura. Acontecia de
borbulhar água, porque, às vezes, tinham pessoas que trabalhavam
muito no Sol, na lavoura, e pegavam a tal da insolação que diziam.
Pois é, nós, no colégio (que naquele tempo era aula de manhã e de
tarde) - todo mundo usava o chapéu de palha. Eu me lembro tão
bem: um chapéu de aba bem grande. Cada um queria ter a fita me-
lhor amarrada ali. [...] A gente vinha às onze e meia, almoçava, à
uma e meia voltava. No meu tempo era assim. `Daí´, aula não tinha
de tarde na quarta-feira e no sábado. Era quando eu ia aprender a
pintura: tinha duas horas de pintura nos últimos dois anos que eu
fiquei na escola. A Talita teve muito `sapinho´, mas aí eu desacreditei
nas benzedeiras, porque com ela não deu certo. A Dona Madalena,
parteira dela, é que mandou comprar um pó. Não sei como era o
nome do pó para por na língua. Porque aquelas que faziam benzedu-
ra, diziam: `É hoje, e na terceira vez vai sarar´. Mas não sarava. Ago-
ra, ali onde eu morei, em Ausentes, tinha uma que era de `todo mun-
do´. Eu nasci aqui perto e, depois, já morava na cidade, dizia: `Não
ganho lá sem recursos’. Eu tinha medo. Mas quantas pessoas de lá
tinham parteira! Tinha uma morena velha - ninguém morreu nas mãos
dela. Exame a gente fazia no começo. Eu, por exemplo, fiz no come-
ço da gravidez e depois, nos dias de ganhar, quando estava no último
mês. Não tinha acompanhamento nenhum. Por exemplo, eu, que não
casei nova, casei com 27, e meu marido (também era bem esclareci-
do), a gente sabia certos cuidados que a gente tinha que ter.” (Maria
Ilza de Abreu Wolf)
102 Lembranças de Vacaria
***
“Tinha vários tipos de simpatia. Aí, nascia a criança
e não podia apagar a vela até fazer sete dias para não dar o bruxismo.
Tinha que batizar primeiro, e depois apagar a vela. A primeira fraldi-
nha tinha que jogar lá em cima, no mato, nas árvores, assim, bem em
cima, para não dar cólica na criança. A parturiente, depois que ga-
nhava o nenê, já era enfaixada, bem enfaixada com uma toalha bem
grande assim, e só tomava caldo; não podia se alimentar de outra coi-
sa para não ficar com o corpo feio. Então, simpatia tinha muita, como
aquela do umbigo da criança. A gente dizia assim: ‘O que tu quer que
teu filho seja? Fazendeiro’. Enterrava na porteira da mangueira. E se
você não quer que ele seja fazendeiro, você quer que ele seja médico,
então você vai enterrar ele lá em cima do morro onde tiver uma árvore
bem alta. Você vai lá, faz um buraco bem fundo e enterra lá. Também
para as meninas (porque naquela época - estou falando bem antes de
mim - que eu estou contando coisas que eu vi quando era criança): a
filha mulher não era bem-vinda por causa das revoluções, por causa
de que elas tinham que ser sempre muito amparadas - o homem ia pra
revolução e a mulher tinha que ficar escondida. Então, naquele tem-
po, nascer a filha mulher não era bom pra família porque quando ela
ficasse mocinha, podia se apaixonar pelo peão da fazenda; ia dar muito
incômodo. A filha mulher não era bem-vinda e a minha avó paterna,
que morreu com mais de cem anos, cada neta que nascia, ela dizia:
‘Ah meu Deus do céu, só nasce mulher pra sofrer; mulher só nasce
pra sofrer!’. Ela tirava como exemplo a vida dela, que ela fez duas
revoluções e tinha que esconder os filhos, tinha que esconder a comi-
da e tinha que esconder os animais. Então, diz-se que a mulher e a
coragem que ela tinha, era uma coisa fantástica! Ela não tinha medo
de nada. De nada desse mundo! Ela fazia lança - ela mesma fazia o
cabo e pegava assim uma grosa, e groseava. Sabe essas tesouras de
tosquiar animal... tinha, lá, umas quebradas. Então, ela fazia uma lança
e botava uma atrás de cada porta. Eram as coisas que ela aprendeu na
revolução para defesa. Então, ela sempre contava assim, dos ataques,
e coisas que achavam na vida dela... Então, a mulher não era bem-
vinda naquele tempo.” (Ironita Bueno Guerreiro)
***
“Fui tropeiro desde guri, era o madrinheiro, porque
toda tropa de mulas tem a égua que é a madrinha das mulas, que tem
um cincerro - que é aquele sininho que se usa no pescoço da égua. Por
incrível que pareça, as mulas obedecem a batida daquele cincerro.
Uma égua madrinheira é madrinha das mulas e as mulas a adoram.
Chegam a brigar quando soltas no campo - cada uma quer pastar
106 Lembranças de Vacaria
mais perto da madrinha. A tropa era o único transporte que tinha. O
falecido pai tinha armazém e para transportar a comida lá para ven-
der para o pessoal tinha que ser com tropa, não tinha outra maneira.
A família já trabalhava com isso, então nós descíamos para Santa
Catarina para buscar arroz, feijão, rapadura, cachaça, farinha de
mandioca para vender no armazém. Fui tropear com oito anos e fui
até que deu, até que nós tínhamos armazém, até casar. Eu tinha mais
ou menos uns 24 anos. Depois que casei, ainda tropeei um pouco. Eu
tinha uns 30 anos, mais ou menos, quando parei de tropear. Parei
porque vim para Vacaria lidar com máquinas agrícolas. Então, aqui
não tinha tropas, não tinha nada. As tropas começaram a declinar
quando chegaram os caminhões. Aí começaram a arrumar as estra-
das e começou o transporte rodoviário. Cada caminhão carregava mil
quilos de carga e gastava um dia inteiro para ir daqui a Bom Jesus e
mais um dia inteiro para ir de Bom Jesus no sítio onde nós tínhamos o
armazém. Os animais foram transportados em caminhão boiadeiro.
Foi em 1960 quando começaram a transportar o gado
embarcado, não a pé. A tropa era um grupo de mulas e de burros. É
chamado de tropa um grupo de 12, 14 mulas. Essas mulas levavam
arreios, cangalha, bruacas. Eram `aparelhos´ de couro feitos à mão,
artesanal. Em casa era feita a cangalha, a bruaca e todo o resto. En-
tão, se fazia a tropa e eram transportados os alimentos para os usos
em casa. Para conduzir a tropa eram dois ou três peões com o
madrinheiro - que andava na égua madrinha. Um tropeiro é um ho-
mem, bem dizer, andarilho, que anda na estrada com os animais, com
tropas. Então, é o tropeiro, porque tem o tropeiro e tem o viajante -
que saía a vender produtos a cavalo. Tem o que ia passear com a
família a cavalo e tem o tropeiro, aquele que só lida com tropa.
O tempo que se ficava numa tropeada dependia do
lugar em que ia. Por exemplo, se nós fossemos a Taquara eram seis
dias. Se nós íamos para Três Forquilhas, Terra de Areia, Santo Antô-
nio da Patrulha, eram mais dias e quando era para Santa Catarina, ali
no Turvo, de oito a dez dias. Tinha o capataz da fazenda, que era o
tropeiro que tropeava com as mulas. O capataz era o que cuidava da
fazenda para o patrão, o dono da fazenda. O capataz era quem to-
mava conta do gado: olhar o gado, cuidar do gado, tropear, buscar
Arlene, Loraine e Magali 107
mantimentos, essa coisa toda; arrumar as cercas, tirar leite, fazer quei-
jo. Na tropa tinha o madrinheiro e depois o tropeiro. O chefe que era
o capataz, então esse era o que comandava a tropa. Ele dizia: `Hoje
vamos pousar lá em tal lugar’. Chegava naquele lugar, e dizia: `Va-
mos hoje e, amanhã de manhã, nós partimos para frente’. Então, ele
que mandava, dizendo onde íamos almoçar, lá em tal lugar. Então,
chegava lá nesse lugar e se fazia o arroz carreteiro ou arroz de tropeiro,
que era arroz com guisado feito numa panela de ferro. Fazia um fogo
na beirada de uma taipa e se cozinhava aquela panelada de arroz.
Enquanto as mulas pastavam um pouco e tomavam água, nós fazía-
mos o arroz com guisado e comíamos. Depois, continuávamos a via-
gem. Quem fazia a comida era quem chegasse primeiro lá. Eu, por
exemplo, quando era guri só servia para carregar água. Tinha um
baldezinho que eu tenho até hoje. O balde que era botado em cima do
cargueiro para carregar, então o meu serviço era chegar lá, desencilhar
e soltar a égua madrinha no pasto. Enquanto a égua pastava, nós
fazíamos a comida, mas eu desencilhava a égua e tratava de pegar o
meu balde e achar aonde que tinha água. Nem que fosse um quilôme-
tro de distância, tinha que vir com aquele balde de água. Um ficava
cortando o guisado, outro ia ver a lenha para fazer o fogo - cada um
fazia um serviço.
Naquele tempo não existia contrato. O pessoal di-
zia: ‘Um fio de bigode é um documento´. Então, arrancava um fio de
bigode e grudava no papel - ali era o documento, o registro que tinha:
um fio de bigode. O camarada que usava bigode era homem. A honra
de um homem era o bigode. Às vezes, acontecia de um homem não
ter barba. ‘Esse aí é sem palavra, não tem bigode’, diziam. A medida
usada na compra era a arroba, não em quilo como é hoje. Uma arroba
são 15 quilos. Por exemplo: ‘Quero 40 arrobas de arroz, quero 50
arrobas de açúcar, 20 arrobas de farinha de mandioca...´. Em cada
cargueiro se botava quatro arrobas. Quatro arrobas dá 60 quilos, já
que cada arroba vale 15 quilos. O falecido pai ficava em casa, cuidan-
do, e nós íamos com o capataz, que comandava a tropa. O pessoal da
tropa era sempre o mesmo. Era um grupo pequeno e transportava
mercadorias. O gado era muito pouquinho; nós transportávamos o
gado porque meu falecido avô tinha dois lugares de sítio: onde o gado
108 Lembranças de Vacaria
passava no verão e o sítio onde o gado passava no inverno. Então, no
inverno se tropeava o gado para o lugar mais recostado e, no verão,
se trazia de lá e trazia para o campo, porque o campo era mais fresco.
O gado, assim, engordava mais.
A roupa que se usava era de riscado, forte pra não
rasgar. A calça, de um riscado forte e a camisa também. Uma bota
especial: a bota do cano comprido, porque, às vezes, tu tinha que
passar num banhado, então tinha que ter uma bota boa, uma bota
especial, feita mesmo a capricho. Era uma montaria grosseira, porque
você sabe: vai viajar, se molha, toma sol, vai se embarrar. Então, tinha
uma montaria grosseira para tropear - uma montaria feita de couro
cru, como se diz. Não é sola, é couro do gado. Tu tiras o couro de uma
rês e depois deixa secar aquele couro e faz uma montaria grosseira. A
falecida minha bisavó fabricava baixeiro; ela tinha `as coisas´ para
fabricar baixeiro. Tinha os carpinteiros que fabricavam as cangalhas,
que eram feitas de madeira, e tinha aquele que só trabalhava com
couro e fazia as partes de couro das cangalhas e das bruacas. O tra-
balho com a tropa começava cedo: às cinco horas. O fim dependia do
lugar. Às vezes, tu chegavas ao lugar em que tu ias pousar eram cinco
horas, seis horas por ali, mas não tinha outro lugar pra pousar mais à
frente. Era cedo ainda, mas tinhas que pousar ali porque não tinha
outro lugar para pousar. Nós fazíamos três refeições por dia: de ma-
nhã (antes de sair o café), café com carne – então, fazia a tal de paçoca
para tomar café; paçoca com pão. Era feito pão caseiro em casa, antes
da viagem, e feito paçoca: cozinhado o charque, socava no pilão e
depois botava cozinhar aquela carne com farinha de mandioca. Du-
rava a viagem toda. Então, tu podias comer aquilo frio; botavas aqui-
lo dentro de um saco, um saquinho de algodão. Então, tu chegavas ao
pouso, abria aquele saco e todo mundo se servia da paçoca. De noite,
se cozinhava um arroz e fazia um café, não tinha chaleira nem nada,
era a `chiculatera´, que botava a água ferver e botava o pó dentro.
Não havia coador para coar o café, então se botava o pó dentro da
`chiculatera´ e depois se pegava um tição de fogo e apagava a labare-
da deixando só a brasa. Botava aquele tição aceso dentro do café e o
pó do café ia todo para o fundo. A serventia do tição era fazer o pó ir
para o fundo da `chiculatera´. Então, tu tomavas o café. Era mesmo
Arlene, Loraine e Magali 109
que tomar café coado hoje: não tinha um pozinho que fosse, estava
tudo no fundo. Não sei o porquê, o que tinha naquela brasa acesa, que
fazia o pó ir para o fundo.
Levava cachaça no `burrachão´. De lá para cá é que
se trazia a cachaça. Daqui para lá não tinha, mas de lá para cá nós
trazíamos cachaça, lá de Santa Catarina. Antes de virar em açúcar,
tinha aquele melado grosso, então nós tirávamos um pouco de mela-
do, botávamos dentro do `burrachão´ e botava a cachaça dentro: fa-
zia uma cachaça com melado para vir tomando de lá para cá. Quan-
do tu estavas com sede, tomavas um gole daquela cachaça doce com
melado. Era boa barbaridade! Todo mundo comia ao mesmo tempo,
então botava o tal de `ligal´ - era o que cobria o cargueiro. Hoje é a
lona que cobre a carga do caminhão. Naquele tempo tirava-se o couro
inteiro de uma rês e botava o baixeiro, a cangalha, a bruaca e depois o
`ligal´ em cima, que cobria tudo. Então, o amarrava na mula e, aí,
podia chover o quanto chovesse que não molhava a mercadoria. Ao
meio-dia, para não botar a comida no chão, colocava na mula do car-
gueiro, que era a que levava a comida. Então, nós cuidávamos muito
para a mula não cair num rio cheio, para não molhar a comida. En-
tão, nós tirávamos aquele ‘ligal´, estendíamos no chão e sentávamos
em cima. Se ‘encruzava’ as pernas igual cigano e comia ali. Os pratos
eram feitos de chifre ou de madeira. Eu tenho, ainda, prato de madei-
ra, para não quebrar. Como é que tu vais carregar louça? O copo de
chifre que se usava na viagem era para não quebrar. Para dormir ti-
nham os lugares certos e, como tu ias a cavalo, estendia os arreios ali
e fazia de travesseiro; botava os baixeiros e os pelegos embaixo, se
cobria com a capa de tropeiro e botava o chapéu na cabeça, que tu
pousavas no tempo, na coxilha. Quando não tinha capão para pou-
sar, então a gente se cobria ali. Era como se dormia. Passava-se por
tudo: passava-se por rio cheio, passava-se em rio de pedreira, passa-
va-se em corredor. O que a gente chama de corredor é estrada com
taipa dos dois lados. E quando não tinha cerca dos dois lados, era
campo aberto. A maioria era campo aberto. Como existia pouco ara-
me, então havia taipa dos dois lados, que se chamava corredor. Tinha
ronda de noite para cuidar dos animais quando nós pousávamos no
campo; então, nós rondávamos a tropa. Era escalado um até meia-
noite, outro da meia-noite até o outro dia. Eram duas pessoas que
110 Lembranças de Vacaria
rondavam, porque precisavam dormir. Tinha que se rondar a cavalo
porque, se disparava uma mula, como que tu ias atacar... então troca-
va-se de animal e se continuava a ronda. Algumas vezes, os animais
adoeciam. Nós chamávamos de ‘dor de barriga´, mas é a aderência
no intestino do animal por causa da mudança de pasto. Quando o
animal está com fome, ele come tudo que é porcaria que acha: vas-
soura, muita erva. Tinha uma erva que eu não sei que erva era, que
dava aderência no intestino do animal, então ele sentia ‘dor de barri-
ga´ e não se tinha remédio para dar, então, morriam. Uma mula cus-
tava bastante dinheiro e nós dávamos muito valor para uma mula;
ela durava de 30 a 35 anos. Mas não tinha o que curasse: a mula
começava a se deitar, se rolar e morria - grudava o intestino e ela
morria de dor. Nas tropeadas nunca houve estouro de animais. Os
animais se querem bem, são amigos que nem gente. Como também
mordem um ao outro, numa encrenca. Uma tropa de mula de tropeiro
que viaja é unida que nem gente mesmo! Então, ali, um dá um coice
no outro, dá uma mordida noutro. Mas não se extraviam. É incrível,
parece que quando há um doente, os outros ficam em roda. Ficam
todos em roda, por ali, cheirando. Parece que querem socorrer e não
conseguem... E, se morrem, eles ficam todos em roda. Eles não vão
longe. Eles vão uns cem metros pastando e voltam. De vez em quan-
do vem um ali cheirar se está morto ou se está vivo. São muito unidos.
Eles nunca se perdem se tu puxares a égua madrinha. Pode ser uma
noite bem escura e não enxergar nem uma mula: tu pegas a égua
madrinha, puxas a égua e começas a falar com as mulas. Quando tu
‘vê´, estão todas juntas à égua madrinha. [...] Com temporal, se tinha
casa para a gente se socorrer, a gente pedia abrigo naquela casa. Se-
não, se fosse pouca chuva, a gente viajava com chuva e tudo. A mula
gosta mais de viajar com chuva do que com Sol quente, pois é mais
fresquinho - ela sua muito em lugares quentes. Vai e vem com 90
quilos nas costas. Não pode trocar. Cada mula tem o seu arreio, seu
par de bruacas, sua cangalha e seu buçal. Cada uma tem o seu, não
pode trocar. Nós andávamos sempre montados. Não dava para an-
dar a pé porque o passo da mula é mais rápido que o do homem, e o
homem não consegue acompanhar. Enquanto uma mula faz a passo
largo, seis, seis quilômetros e meio por hora, o homem faz cinco qui-
Arlene, Loraine e Magali 111
lômetros por hora. Para pouso as fazendas tinham galpões separados
dos donos da fazenda. Chamava-se galpão dos tropeiros. A metade
do galpão era de assoalho e a outra metade de chão. Tinha o lugar
para a gente descarregar as mulas. Botávamos a parte dos arreios na
parte do assoalho e na parte do chão fazíamos o fogo. Nós dormíamos
na parte do assoalho. Os fazendeiros deixavam entrar, mas eles cobra-
vam. Tu pagavas naquele tempo em mil réis - era um mil réis ou 500
réis. Hoje, 500 réis são 50 centavos. Então, se pagava um real e pouco,
na nossa moeda de hoje, de aluguel de pouso de tropeiro. Nós paráva-
mos em várias fazendas: na do Hortêncio, na do Alzerino Bitencourt,
na do falecido Antonio Nápoles e outros que eu não me lembro, faz
tantos anos! Tinha muito rio grande que tinha balsa que tinha que
pagar. E tinham os lugares que davam para passar no vau. Vau quer
dizer lugar vago, que dava para passar a pé com as mulas. É um nome
indígena. Então, tu passava no vau, ou na balsa. `Então, vamos passar
no vau, que não se paga!´. Às vezes, se fazia uma volta de meio dia
para não pagar a balsa, pois a balsa era cara - eles cobravam 5, 6 mil
réis para passar. Tinham as pontes, que eram livres e não se pagava
nada. Quando vinha de lá para cá o dinheiro estava curto, dava mal e
porcamente para vir para casa, então, muitas vezes, tinha que desviar
a balsa porque era cara, e cinco reais dava para gente passar três ve-
zes.” (Clodovino Camargo Silveira)
***
“Tem uma rua ali perto do Dr. Giuriolo, depois tem a
Rua Otelo Jacques - ali era o Beco das Negras. Ali a família Lacerda
tinha muitos escravos, mas eram bem tratados. Muitos negros daqui
ainda assinam Lacerda - família famosa e rica daqui de Vacaria. A
mansão deles era onde existia o hospital Elias Saadi. [...]. Era uma
mansão daquelas de cinema, com entradas e janelas trabalhadas! Pri-
meiro, foi residência, depois foi o primeiro posto de higiene, mas já
decadente, porque a família estava em declínio - foram morrendo `as
bases´ e a família não soube administrar a fortuna. E os escravos, de-
pois da abolição, ficaram muito ligados à família. Tinha a Rua Dona
Rosa, que era dos terrenos doados pelos Lacerda. Ali era o Beco das
Negras porque os terrenos foram doados para as escravas e, depois,
112 Lembranças de Vacaria
elas passaram a ser lavadeiras e engomadeiras. Qualquer vestido ou
roupa boa elas pegavam em casa e levavam para lavar.” (Carlos
Rigotti)
***
***
“Eu me aposentei com 65 anos como vendedor autô-
nomo, e as mulheres também se aposentaram: a Rosângela no posto
de saúde, e a patroa como doméstica, com 60 anos. A Rosângela se
aposentou mais nova, por invalidez: com 12 anos foi extraído um rim
e ela ficou com um problema numa perna. Mas ainda tenho uma ati-
vidade, eu ainda trabalho: eu compro gado gordo para um frigorífico
de Nova Petrópolis. Carreguei gado semana passada e vou carregar
semana que vem. Tenho ali a casinha - gosto muito de lidar com ma-
deira, sou meio carpinteiro, fiz muita casa quando eu morava em Bom
Jesus. Fazia casa para os outros; eu fiz mais de 20 casas. Na minha
casa fiz tudo, das cadeiras para cima: eu fiz a parte da sala, fiz a parte
Arlene, Loraine e Magali 113
do quarto, fiz a parte da cozinha e fiz a parte da despensa. Tudo, de
noite, depois que chegava do trabalho. Eu fazia `a muque´, tudo sozi-
nho. O meu sogro tinha a laminadora na madeireira, aí me dava a
madeira. Quando era jovem ajudava a fazer casa, ajudava a montar
serraria. Tinha muita serraria naquele tempo, então se empreitava. Cha-
mava-se `empreitada de serviço´ - empreitava fazer uma casa, fazia a
casa; empreitava para montar uma serraria e se montava a serraria.
Acho que comecei a trabalhar desde os oito anos, já - ia ajudar a alcan-
çar ferramentas para os carpinteiros, ia pegar a ponta de uma madei-
ra que iam serrar, uma coisa assim.” (Clodovino Camargo Silveira)
***
“As roupas passavam de um para o outro […]. Quan-
do não servia mais pra um, passava pra aquele que servisse. Minha
avó reformava roupa quando ela vinha nas férias [...] porque, `daí´,
minha tia trabalhava na prefeitura; ela era secretária do Ensino, mas
quando ela era diretora de escola, ela trabalhava que nem louca e a
minha avó não podia vim durante o ano, só nas férias. Aí, então, ela
dizia pra minha mãe: `O que tiver pra reformar, você já vai deixando
separado, lavada a roupa, desmanchada, o que tiver pra fazer!´. Às
vezes, ela desmanchava uma coberta que já tava com o pano muito
feio e já ocupava o pano. Nós `abria´ a lã, lavava a lã - por isso que eu
dizia: `Até agora tô lidando com lã desde pequena’. A vizinha da
minha mãe fazia assim: lavava a lã e de noite nós `ia’ na casa dela
abrir lã. Nós `era´ uma gurizada maior e ela cuidava de nós. Se não
dava pra sentar aí, sentava embaixo da mesa e abria a lã pra ela. Ela
plantava batata-doce e assava pra nós `comer´. `Daí´, se nós `quisesse´
café, ela dava, mas nós não queria, só queria batata assada no forno!
Ninguém ganhava nada, era só aquilo ali. Nós ficávamos até umas
horas da noite abrindo lã. E uma vez que eu e o meu irmão... Ahhh,
outra coisa que aconteceu. Meu pai tinha uma lavoura grande de
milho, porque a gente tinha vaca. Ele tinha porco, galinha... então ti-
nha que plantar milho, porque só comprar não dava. Aí eu disse para
o meu irmão: `Barbaridade, não deu pra nós `terminar´, já anoiteceu!´.
Ele disse: `Mas hoje de noite tem a Lua, nós vamos terminar enquanto
tiver a Lua. Nós vamos lá e terminamos!´. Fomos eu e ele, de noite,
114 Lembranças de Vacaria
para terminar o pedaço, porque, `daí´, não sei o porquê, nós tínha-
mos de terminar e não tinha dado naquela tarde, era muito calor,
`daí´, Deus o livre!´. Meu pai... acho que nem sabia que nós ‘tínha’ ido
lá terminar de noite. Eu fiz o corte e costura. Por isso que eu me apo-
sentei como costureira, porque eu pagava o INSS. Paguei 18 anos e,
aqui, eu costurava, mas eu não tinha muito tempo para costurar. Ti-
nha muito que fazer: lavar, passar, lavar, passar... e tudo; `daí´, algu-
ma coisa que eu costurava.” (Lenir Ângela Quisini Piardi)
***
“Estava de férias, então, a gente era orientado a aju-
dar na paróquia, ao menos para fazer o presépio. Então, eu vinha lá
do sítio, às vezes, a cavalo (dá uns 40 quilômetros), e me hospedava
na casa do padre para, uns dias antes do Natal, fazer o presépio. Ia
buscar pinheirinho, ia comprar uma coisa e outra e arrumar madeira
para poder fazer a armação. E isso lá embaixo da sacristia, lá naquele
porão onde hoje é a Kripta. Ali havia, de baixo daquele confessioná-
rio, do lado de lá, quem entra à direita, umas madeiras, que eu ia me-
xendo para cá e para lá. Lá pelas tantas, aparece aquela Santa no meio
daquela madeira toda. `Mas que Santa bonita! Que Santa linda!´ Aí, eu
falei para o Frei Lauro (ainda eram os capuchinhos): `Frei Lauro, eu
achei uma santa muito bonita lá no meio daquelas madeiras, arru-
mando para o presépio’. - `Já vou lá ver, faltou-me uma imagem mui-
to bonita da padroeira!´. Então, foi lá ver. - `É ela, é a padroeira!´ - Aí,
diz: `Leve lá pra cima’. Aí, eu trouxe pra cima, na sacristia; passei um
pano seco, um pano molhado, tirei toda a poeira - quem sabe, `de
anos´ que aquela Santa era a milagrosa, a padroeira. É a mesma que
foi encontrada no campo; encontrei lá no meio da pauleira, no depó-
sito - não sei como não quebraram! Esta história me marcou bastante,
aí eu fiquei sempre cuidando dela.
Por duas vezes eu fui pároco da Catedral e, na se-
gunda vez, eu viajava lá para o Amazonas e, nessas idas e vindas
(Belém, Bahia, Rio de Janeiro), eu ouvi falar que roubavam imagens
bonitas e antigas. E a nossa estava lá em cima, num altar lateral - era
só pegar e levar. Digo: ‘Chega um gaúcho velho, um bandido aí, com
um pala, num dia frio, chega lá e pega, bota embaixo do pala e leva
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http://www.overmundo.com.br/overblog/
invisibilidade-social-outra-forma-de-preconceito
http://www.infopedia.pt/$frederic-charles-bartlett
FONTES ORAIS
Alcides Vanzetto
Aldino Antônio Girotto
Algacir Nunes Paim
Padre Caetano Caon
Carlos Rigotti
Clodovino Camargo Silveira
Dalva Holmer Soldatelli
Darcy Francisco Soldatelli
Elaine Lira de Lima
136 Lembranças de Vacaria
Elilia Zulianello Araldi
Eliziário Vieira de Jesus
Emília Silveira de Souza
Flora Anello de Lemos
Iolanda Bernardino de Carvalho
Ironita Bueno Guerreiro
João Telmo de Oliveira
Joceli Moraes de Lemos
Juvenil Santos
Lenir Ângela Quissini Piardi
Lourdes Guerreiro Lemos
Maria Ilza de Abreu Wolf
Maria Irma Siqueira Rigon
Nair Cechinato Nicheli
Nair de Jesus Abreu
Maria José Guazzelli de Guazzelli Costa
Nereu Fernandes Vargas
Noelci de Souza Boeira
Onira Boeira Becker
Pedro Sandi
Tereza Gomes Maciel
Valda Delair Gargioni Soldatelli
Zuleide Boeira
ENTREVISTADORES
Ângela Cati Dargen
Arlene Medeiros de Abreu
Bárbara de Faria Rodrigues
Fernanda Lisboa Vieira
Francieli de Lima Pasinatto
Genice Friso da Silva
Joseane Carvalho Borges
Magale Silveira Zanella
Samir Antônio Goulart
Arlene, Loraine e Magali 137
Anexos
Anexo I
Anexo II