Você está na página 1de 14

Corpo desdobrado

Viviane Matesco

A relação entre corpo e arte tem sido objeto de muitos estudos nos últimos
anos, devido à própria relevância que o tema assumiu nas discussões contem-
porâneas. Por outro lado, parte dos debates e pesquisas se tem restringido a
aspectos específicos, sobretudo às performances. Objetivamos lançar aqui um
olhar mais amplo a partir das várias facetas que a questão corpo/arte pode
assumir. Se no início do século XX a arte moderna subverte a tradição do
nu, mediante a fragmentação e deformação do corpo, na segunda metade do
século essa crise da outrora equilibrada visão antropocêntrica é ainda mais
acentuada, uma vez que passam a ser exploradas a matéria, a animalidade e a
crueza. Dessa maneira, profana-se a antiga imagem de um corpo idealizado
por meio do reconhecimento da corporalidade humana. Do rebaixamento
à supervalorização, o corpo é focalizado em happenings, ações, performances
e fragmentos orgânicos, o que afirmaria a noção de um corpo literal como
singularidade da arte contemporânea. Nosso intuito é compreender como
essa noção se impôs a partir da década de 1960 e também propor outra abor-
dagem para os trabalhos que envolvem o corpo. Para tanto, focalizaremos os

26-viviane.indd 19 09/10/2017 16:42:36


artistas Artur Barrio, Ivens Machado, Eliane Duarte e Tunga em obras que
implicam subjetividade e subvertem a aproximação mediante a noção de
corpo literal.
Alguns elementos são determinantes para que, nas manifestações artísticas
da segunda metade do século XX, se consolide uma concepção substancial
de corpo.1 Em primeiro lugar, o corpo foi considerado a partir de uma visão
instrumental em processo de ampliação do campo da pintura. A circulação
das fotografias de Jackson Pollock realizadas por Hans Namuth causa gran-
de impacto, com repercussões em várias partes do mundo. A presença do
artista no trabalho por meio do ato da pintura fez que o corpo se tornasse
ferramenta para aplicar tinta, em tentativa de estender o espaço pictórico
tradicional, como nos pincéis vivos utilizados por Yves Klein. Do fenômeno
Gutai2 às antropometrias de Klein, as performances de Georges Mathieu e
também os experimentos do acionismo vienense representam uma exten-
são da action painting. Artistas como Allan Kaprow, Mathieu, Atsuko Tanaka,
Otto Muehl, Günter Brus e Robert Rauschenberg estenderam a arte gestual
em happenings e ações nas décadas seguintes. Kaprow3 enfatiza a importância
de Pollock para o aparecimento dos happenings, uma vez que seus trabalhos
significam um continuum mediante o qual a pintura se prolonga no exterior;

1 
No Rio de Janeiro, a partir do neoconcretismo, desenvolveu-se um conceito original de subje-
tividade partindo do corpo e colocando em questão dualidades como sujeito e objeto. Ao consi-
derar a obra de arte um quase corpo, opõe essa noção orgânica àquela do objeto: a obra de arte
seria um prolongamento da corporalidade. Nos anos 1960, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia
Pape ampliam essa questão ao diluir a separação entre arte e audiência mediante modelos partici-
pativos. Ao contrário do corpo ativista e contestatório do happening, da body art e da performance,
as propostas desses artistas supõem um modelo fenomenológico no qual a consciência do corpo
interfere na percepção da obra com estímulos que envolvem o participante. São vivências que
dependem exclusivamente da interação com o sujeito e por isso não têm caráter de espetáculo. A
ênfase na vivência corporal destaca a subjetividade nessas experiências e estabelece um paradigma
que distingue a arte brasileira da cena internacional.
2 
No Japão, os artistas do grupo Gutai pintavam os quadros com seus próprios corpos. Seus
trabalhos caracterizam-se por teatralidade inspirada na improvisação do meio, como em Lama
provocante (1955), de Kazuo Shiraga, ação realizada em uma piscina de lama na qual produziu uma
pintura a partir das impressões de seu corpo. Vestido elétrico (1956) é um quimono tecnológico
pelo qual Atsuko Tanaka estabelece conexão entre a eletrificação e os sistemas fisiológicos do cor-
po humano; a artista construiu planos para a fiação tal qual um tecido do sistema nervoso coberto
com luzes que, movimentadas acesas, formavam uma pintura em ação. Aqui o corpo assume o
papel de objeto e, paralelamente, o objeto desempenha as funções do corpo. Ver SCHIMMEL,
Paul. Out of actions: between performance and the object — 1949-1979. Los Angeles: The Museum of
Contemporary Art, 1998.
3 
KAPROW, Allan. L’héritage de Jackson Pollock (1958). In: KELLEY, Jeff (Org.). L’art et la vie
confondus. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 1996. p. 32-39.

26-viviane.indd 20 09/10/2017 16:42:36


Artes Visuais 21
Corpo desdobrado
Viviane Matesco

a alternativa posterior seria abandonar a pintura em direção ao espaço e aos


objetos da vida cotidiana, como o corpo, o vestuário, os lugares e os objetos
que nos cercam. É importante apontar como o corpo é visto nessa amplia-
ção do espaço pictórico, associado à noção de objeto, como os demais do
cotidiano.
Também a afirmação de uma ideologia libertária contribuiu para a constru-
ção da imagem de um corpo puro centrado na experiência física e cotidiana.
A ênfase no naturalismo, nos rituais da vida e nas funções orgânicas visava
contrariar o tradicional rebaixamento do corpo na sociedade burguesa. A
emergência do corpo do artista liga-se aos problemas do capitalismo e está
em consonância com os movimentos de protesto e a conjuntura da contra-
cultura. As ideias de liberdade de normas e cânones não eram novas; é a
postura dos artistas da década de 1960 que define uma era. O happening foi
difundido nos meios de massa como figura de liberdade, espontaneidade e
valorização da arte na vida. Tornou-se parte das maciças convulsões políticas
e culturais do decênio; esses modos alternativos de produção cultural foram
componentes cruciais nessa mudança.4 O corpo verdadeiro, não idealizado,
fora esquecido na arte, daí a primazia da experiência corporal. O corpo
efervescente e aberto ao mundo consegue cavar buracos no decoro e na
hegemonia da cultura oficial de diversas maneiras. Uma delas, associada aos
artistas do Fluxus, efetivava-se mediante os trabalhos centrados nos atos do
cotidiano, imitando e desnaturalizando a vida por meio de ações repetitivas.
Outra via era a do corpo expressivo, algumas vezes agressivamente ativista,
usado para solicitar a raiva, a compaixão e outras emoções que, presumida-
mente, iriam romper a apatia e a passividade da sociedade. A expressão body
art surge no final da década de 1960 e agrupa várias tendências que tinham
como denominador a proposta de “desfetichizar” o corpo humano.
O terceiro elemento a ser analisado é a busca de novos meios experimentais
no contexto conceitual do final dos anos 1960, uma vez que o corpo se tor-
na um elemento sintáxico: suporte de alguma ideia. Ao longo da década de
1970, a performance acaba por impor-se como meio que se descola da busca
e da ideologia de um corpo libertário para tornar-se um processo mais in-
telectual. De maneira distinta daqueles trabalhos voltados para a exploração
das capacidades do corpo, embora a performance o utilize como instrumento,
não fica a ele restrita. Jorge Glusberg relaciona a performance como linguagem

4 
BANNES, Sally. O corpo no poder. In: ______. Greenwich Village 1963. Rio de Janeiro: Rocco,
1999. Ver também WARR, Tracey. The artist’s body. Londres: Phaidon Press, 2000.

26-viviane.indd 21 09/10/2017 16:42:36


ao papel da semiologia no discurso teórico.5 Nas performances, a linguagem
corporal reivindica o corpo como elemento de uma semiótica, constituindo
enunciado performativo e autônomo articulado em torno de gestos, atitudes
e signos corporais. Dessa maneira, para Glusberg a performance não trabalha
com o corpo e sim com o discurso, pois a questão fundamental é a comuni-
cação de uma mensagem. Com base nesse pressuposto, os primeiros críticos
e historiadores, como o próprio Glusberg e Roselee Goldberg,6 rea­lizaram
um mapeamento de artistas performáticos a partir das mensagens: exaltan-
do suas qualidades plásticas (Marina Abramovic), medindo sua resistência
(Vito Acconci, Gina Pane, Chris Burden), desvelando seus pudores e suas
inibições sexuais (Acconci), seu potencial para perversidades (Brus, Muehl,
Hermann Nitsch), esculturas vivas (Dennis Oppenheim, Gilbert & George),
ações andróginas (Urs Lüthi, Annette Messager), relações com o espaço
(Bruce Nauman), artista e público (Dan Grahan, Kaprow) e fenômenos da
percepção (Buren, James Lee Byars). Também a associação de performance e
imagem, seja fotografia, filme ou vídeo, estabelece fronteiras ao impor um
afastamento do naturalismo típico dos happenings e ações da década anterior.
Seja como pincel, instrumento de libertação ou suporte de discurso, o corpo
foi tratado como objeto, como algo externo e manipulável, o que contribuiu
para o engessamento de uma concepção de corpo substancial. É importan-
te observar, no entanto, que essa noção é afirmada pelo discurso crítico e
que esses mesmos trabalhos seriam passíveis de uma abordagem do corpo
a partir da problematização de sua ambiguidade constituinte. Compreender
uma nova forma de aproximação da relação corpo/arte implica, portanto,
refletir sobre o corpo como questão e não tomá-lo da maneira como o senso
comum o trata. Em função das performances e trabalhos que enfatizam a cor-
poralidade, um conceito de corpo primário ficou reduzido à ideia simplista
de que ele rompe com a representação ao sair da “moldura” e ao se apresen-
tar literalmente. Para questionar esse discurso é necessário entender que o
corpo não é termo universal e que seu conceito varia segundo as perspecti-
vas culturais. No Ocidente judaico-cristão há elementos específicos para de-
limitá-lo, tais como a relação primordial entre corpo e imagem instituída a
partir do criacionismo monoteísta e do pensamento da encarnação, questões
complexas que não serão abordadas aqui a partir de um enfoque histórico.7
Essa relação será mais bem compreendida mediante o entrelaçamento das
5 
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 1987.
6 
GOLDBERG, Roselee. Perfomance art: from futurism to the present. Nova York: Abrams, 1988.
7 
Questões analisadas em MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar,
2010.

26-viviane.indd 22 09/10/2017 16:42:36


Artes Visuais 23
Corpo desdobrado
Viviane Matesco

concepções teóricas de Georges Didi-Huberman e de Georges Bataille, bem


como a análise propriamente das obras de Barrio, Ivens Machado, Eliane
Duarte e Tunga. Tanto no pensamento dos teóricos quanto nos trabalhos
dos artistas, o corpo se constitui por meio de imagem lábil e dilacerante.
A literalidade do corpo será aí problematizada, uma vez que engloba outros
registros; essa apreensão extrapola os dados materiais, embora deles não
prescinda, e requisita imagens e sentidos conferidos a partir da própria ex-
periência do espectador.
Alguns autores aproximam-se da poética de Barrio pela relação direta com
a materialidade das coisas. Compreendê-la por um viés substancial dos frag-
mentos e fluxos orgânicos seria transformar, na obra desse artista, o corpo
em tema. Suas “situações” estão muito distantes de manifestações interna-
cionais centradas no corpo; efêmeras, não são passíveis de remontagem ou
repetição. O caráter de apresentação e o pressuposto de público, bem como
a concepção particular de corpo, as diferenciam das ações Fluxus, da body art
e da performance. As “situações” de Barrio ocorrem a partir de uma concep-
ção de deflagramento por elementos tais como papel higiênico, absorven-
te, tijolos, pregos, lixo, cordas, cadeira, sacos, tijolos, querosene e sacos de
estopa, e material orgânico como restos de comida, pão, sardinhas, ossos,
sangue, pedaços de unhas, saliva, cabelos, urina, merda e meleca. Esses obje-
tos deflagradores são o cerne das intervenções que se desencadeiam a partir
das reações das pessoas; deixados em atuações em ruas e praças, produzem
acontecimentos, incomodam o fluxo cotidiano e suscitam interrogações. A
explosão desencadeada por suas “situações” expressa latências e uma dimen-
são fantasmática do desejo humano.
Os materiais utilizados por Barrio têm o intuito de explodir e desestruturar
o estado normal das coisas, muito mais do que o abjeto pelo sentido ine-
rente à substância. A partir de Bataille, o abjeto e o escatológico adquirem
o sentido de colocar em movimento e dilacerar mediante o deslocamento
de categorias, espaços e lógicas dominantes. Uma das bases da teoria de
Didi-Huberman, o pensamento de Bataille permite não só visualizar o corpo
como forma transitiva, mas também pensar a arte mediante a relação de
interdição e transgressão, erotismo e morte. Transgredir a forma é primei-
ro transgredir as formas seculares do antropomorfismo, e centra-se nisso
grande parte do trabalho figurativo da revista Documents.8 Em um de seus
artigos, “Figura humana”, Bataille exprime toda sua empresa transgressiva ao

8 
Dirigida por Bataille de 1929 a 1930. BATAILLE, Georges. Documents. Paris: Mercure de
France/Gallimard, 1968.

26-viviane.indd 23 09/10/2017 16:42:36


reivindicar uma semelhança informe, uma semelhança desclassificadora, cul-
pável e mortífera que desfazia e decompunha toda uma construção mítica.9
Estamos aqui longe da figura humana compreendida como forma substancial
e semelhante a Deus. Tudo isso coloca limites intrínsecos à iconografia em
geral, pois, em vez de tratar as imagens como termos substancializados e
fixados em sua significação intrínseca, estabelece um regime que tende à
mobilidade, e a imagem é sentida como indefinidamente lábil, provocado-
ra. Esse trabalho é uma nova maneira de pensar a forma, processo contra
resultado, relações lábeis contra termos fixos, aberturas concretas contra
clausuras abstratas, insubordinações materiais contra subordinações à ideia.
Nessa iconografia, o Sol não ilumina mais as coisas do mundo, mas ofusca
os seres, tornando-os loucos; o olho não é mais a janela da alma, mas um
guloso canibal. Dilacerar tal substancialismo significa privilegiar as relações
em detrimento dos termos, pois, para Bataille, não é a forma do corpo nem
o conteúdo o que interessa, mas a operação que faz que nem um nem outro
estejam mais em seu lugar. A contradição constante entre polos que jamais
atingem uma medida comum é o ponto central do pensamento de Bataille;
é mediante esse deslizamento que o informe constitui-se como a primeira
operação nomeada em seus escritos que posteriormente ele chamará de es-
catologia ou hetereologia.
Método terrorista, radicalidade e transgressão absoluta são, normalmente,
as expressões utilizadas para qualificar ou aferir o grau de confrontação das
ações de Barrio com o mundo do trabalho, o mundo das normas sociais. Na
Situação T/T, realizada em Belo Horizonte em 1970, distribuiu trouxas con-
tendo sangue, carne e ossos por diversos pontos da cidade, concentrando-
-se, porém, nas imediações de um esgoto que atravessa o parque municipal.
Conseguiu reunir cinco mil pessoas, o que acabou provocando a intervenção

9 
Ao analisar a montagem figurativa da revista, Didi-Huberman discute como o “informe” não se
refere a um tema nem a uma substância, nem mesmo a um conceito. A operação batailliana de-
sarranja a interdição da récita judaico-cristã, na qual a semelhança se exprime hierarquicamente;
o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, e o inverso não se deve jamais dizer, pois
isso desclassificaria a própria relação de semelhança. Bataille inverte a hierarquia do modelo e da
cópia, embaralha todas as relações do alto e do baixo e com isso despedaça o tabu do tocar, sob o
qual todo o mito cristão da semelhança parecia construir-se. Quando nos dizem que duas coisas
ou duas pessoas se assemelham, supomos, normalmente, que elas não se tocam e permanecem
num distanciamento material. O retrato assemelha-se ao retratado, e a cópia a seu modelo, jus-
tamente porque o retrato não tem a substância do retratado, ou seja, a conformidade ideal exige
qualquer coisa como a recíproca de uma não comaterialidade: a matéria não deve tocar a forma.
Ver DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille.
Paris: Macula, 1995.

26-viviane.indd 24 09/10/2017 16:42:36


Artes Visuais 25
Corpo desdobrado
Viviane Matesco

do Corpo de Bombeiros e de várias radiopatrulhas. A alusão das trouxas


ensanguentadas a corpos esquartejados é uma via para desencadear essa co-
moção, mas o sentido do trabalho não se restringe a essa analogia; é antes o
atravessamento da vida na morte, ou seja, a relação entre erotismo e morte
que interessa para a detonação advinda da situação. Barrio lida com a trans-
gressão do interdito da morte, uma vez que ela é redimensionada pela pulsão
de vida. É o transtorno desse atravessamento que perturba a consciência ao
se experimentar separada do mundo previsível e ordenado. A agressividade
reencontra nas situações de vida ou nos fragmentos de ação no mundo a libi-
do necessária à continuidade que se observa entre a arte e o homem.
Bataille desenvolve sua teoria relacionando o nascimento da arte à consciên-
cia da morte, mas acentua o aspecto da transgressão ao interdito.10 O inter-
dito mantém o mundo organizado pelo trabalho ao abrigo dos desarranjos
que introduzem a morte e a sexualidade, uma animalidade durável em nós
que, sem cessar, introduz a vida e a natureza. É o estado de transgressão que
comanda o desejo, e as formas da arte têm a mesma origem que a festa de
todos os tempos. A transgressão difere do retorno à natureza, ela mantém a
interdição para com ela gozar.11 Os seres humanos estão submetidos a esses
dois movimentos: de terror, que rejeita, e de atração, que comanda o respei-
to fascinado. O erotismo é a infração à regra das interdições, mas, ainda que
ele comece onde acaba o animal, a animalidade não deixa de ser seu funda-
mento. Nessa perspectiva, as ações de Barrio com as trouxas ensanguenta-
das exercem reaproximação com o próprio fluxo vital, que relaciona vida e
morte. O corpo é importante em sua poética não porque aparece limitado a
órgãos: o sangue, os fragmentos e os fluxos corporais não são o que a anato-
mia neles vê; aqui importa o modo como eles nos atingem. Sua arte visceral
enoja e fede; porém o visceral em Barrio não é o fato de lidar com vísceras,
mas a potência e a energia desencadeadas nas situações. É a maneira como
o trabalho implica nossa experiência que confere sentido ao trabalho: é o
clarão desencadeado que faz que atração rime com repulsão. Nesse sentido,
suas situações equilibram interdição, transgressão e gozo; nessa experiência,
desejo e morte são indissociáveis.
Essa polaridade batalliana e o pressuposto da “figurabilidade” tal como enten-
de Didi-Huberman12 também configuram a abordagem para compreensão

10 
BATAILLE, Georges. Lascaux ou La naissance de l’art. Laussane: Skira, 1955.
11 
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
12 
DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille,
op. cit.

26-viviane.indd 25 09/10/2017 16:42:36


dos trabalhos de Eliane Duarte, Ivens Machado e Tunga. A “figurabilidade”
em Didi-Huberman nada tem a ver com a noção de figura, elemento des-
critível que, a partir do Renascimento, se restringe ao recobrimento da
aparência “figurativa” e à transparência representativa. Ao contrário dessa
univocidade, para o autor a “figurabilidade” produzida pelas imagens de arte
promove abertura e descompasso em nossa certeza visível; isso porque o
olhar é uma operação do sujeito; portanto, uma operação fendida, aberta
e inquieta. No pensamento de Didi-Huberman, a psicanálise constitui ele-
mento indispensável, pois é por meio de seus conceitos que o autor relaciona
corpo e imagem: o sintoma manifesta-se justamente como tensão, que ultra-
passa o visível ao resgatar comportamentos fantasmáticos.
Em uma aproximação inicial, os estofados de Eliane Duarte provocam aver-
são pelo aspecto repugnante ou lúgubre. Uma fileira de formas biomórficas
que evocam corpos e vísceras, um conjunto que apresenta crueza semelhan-
te à visão de carcaças de animais penduradas no açougue. O visceral, porém,
é sui generis, porque implica tanto a repulsa como a atração. Não se trata aqui
da figuração de órgãos ou vísceras, como os estofados de Antonio Dias ou de
Ana Maria Maiolino; a imagem corpórea ocorre de forma mais complexa,
mediante a ambiguidade entre os atos de macerar e de entear, marcas de sua
poética. Maceração é o ato ou efeito de decompor, amolecer por contato
com a água as partes de um cadáver e, metaforicamente, significa mortifica-
ção. Entear, ao contrário, quer dizer converter em teia, tecer, gerar.
Desde os primeiros trabalhos de Eliane Duarte, como Veste (1994), aparece
o sentido de maceração associado à ideia de gerar uma pele. Logo em segui-
da começa a realizar objetos a partir do corte e da costura desses pedaços
macerados de tecido. Em sua obra, a fantasmática requisita um corpo inter-
no e visceral. São seres volumosos, cuja carnalidade afirma um corpo vivo,
pulsante. Inicialmente, os trabalhos são riscados em tecido; acolchoados e
costurados, formam pequenos seres estofados. Recebem então tratamento
que mistura cera de abelha e pigmento, o que lhes confere textura e tonali-
dade próprias de pele. Apesar de as formas serem aparentemente repulsivas,
juntas adquirem sensualidade extremamente atraente. O sentido de germi-
nação, de renovação orgânica, também está presente por intermédio desses
conjuntos, como a criar a imagem de famílias que brotam e que se multi-
plicam. Em Ninhos, um cacho de coquinhos que se assemelha a um casulo,
enfatiza a imagem de proliferação, dos entes que brotam. Ao dar o título de
Entes, aquilo que existe, mas também sufixo que designa o agente de uma
qualidade ou estado, Eliane Duarte aponta a vida e a morte como partes do
mesmo ciclo. A costura e a maceração remetem a um mundo arcaico, em

26-viviane.indd 26 09/10/2017 16:42:36


Artes Visuais 27
Corpo desdobrado
Viviane Matesco

que a mulher centralizava os rituais da vida. A força dos trabalhos de Eliane


Duarte reside, justamente, na tensão entre polos aparentemente opostos,
como atração e repulsão, vida e morte. A artista faz a pele, costura a vida ou,
melhor, as passagens que lhe são inerentes. Quando olhamos seus trabalhos,
ficamos imersos, presos nessa duplicidade: somos tomados porque são feitos
com textura de vida.
Compreendemos dessa maneira que ver e olhar são atos distintos; o primei-
ro implica a visão, enquanto o segundo supõe um sujeito. Em O que vemos, o
que nos olha,13 Didi-Huberman explicita como o olhar é perpassado por um
corpo “fantasmado”. Toma o exemplo do famoso jogo infantil interpretado
por Freud em Além do princípio do prazer14 para desenvolver a ideia de que a
ausência, que racha a criança e que a olha, é a via com a qual ela irá fazer
uma imagem, como uma ferida visual. O jogo, constituído da alternância
de desaparecimento e reaparecimento, ausência e presença, foi interpreta-
do por Freud em relação à desaparição do corpo da mãe por meio de sons.
Dessa maneira, a criança deixava uma situação passiva e se tornava ativa nes-
sa ausência imposta pela mãe. É por meio do jogo de ocultamento que a
criança nasce para a linguagem, e compreende-se de que modo o carretel
tende a sustentar-se numa imagem visual, pois o visual é o acontecimento
de sua partida, o visual é ainda seu reaparecimento, como um frágil resto.15
O jogo do fort-da inventava um lugar para a ausência, a fim de permitir que
a ausência tivesse lugar. É, talvez, no exato momento em que se torna ca-
paz de desaparecer ritmicamente, enquanto objeto visível, que o carretel
se torna imagem visual. Aqui não se trata de visibilidade evidente, uma vez
que a vocação ideal de toda superfície que nos olha é abrir uma cisão do que
nos olha no que vemos. Didi-Huberman argumenta que as imagens da arte
apresentam a dialética visual desse jogo infantil, produzem uma poética de
“figuralibilidade” ao impor sua visualidade como abertura, uma perda pra-
ticada no espaço de nossa certeza visível a seu respeito. É a partir daí que a
imagem se torna capaz de nos olhar.16

13 
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
14 
Freud descreve um menino que agarrava e atirava um carretel para longe e, enquanto o fazia,
emitia um longo e arrastado “o-o-o-ó” acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua
mão interpretava a palavra alemã fort, que significa ir embora. Depois ele puxava o carretel para
si novamente e o saudava com a expressão da (ali), momento de maior prazer. FREUD, Sigmund.
Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p.18-22.
15 
Sigo aqui a análise de DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha, op. cit., p. 80-87.
16 
Idem, p. 97.

26-viviane.indd 27 09/10/2017 16:42:36


É justamente essa abertura que os trabalhos de Ivens Machado provocam.
Como na série com cacos de vidro do final da década de 1970: esculturas
de cimento revestidas com pedaços de vidro pontiagudos, de potente e la-
tente aparência. Um tapete, um bumerangue e um objeto com formato de
pênis recobertos com cacos de vidros; o sentido do trabalho é conferido por
nosso olhar, pela maneira como somos atingidos. O toque em Bumerangue,
o aconchego em Tapete, o prazer sexual em Consolador são sugeridos por um
viés perverso que nos faz sentir a ambiguidade do desejo. As esculturas de
caco de vidro são mais do que a pontuação matérica do caco em si; não se
trata da plasticidade do material.17 O cortante e o aflitivo se abrem em nós
como imagem que, embora leve em conta o caráter físico de relação com a
pele, alcança uma dimensão fantasmática mais ampla. Mapa mudo, um mapa
do Brasil também recoberto de vidro, sugere com ironia a situação da dita-
dura no país. Apesar de a questão do corpo perpassar quase toda a produção
de Ivens Machado, ela se efetiva de maneiras diversas em seus trabalhos.
Em alguns de seus vídeos, a violência explícita nos atinge como um soco e
provoca carga aflitiva diversa daquela decorrente das esculturas com vidro.
Em Escravo/escravizador (1974), a relação entre dominador e dominado, dada
por gestos de tortura como bater, amarrar e morder, evidencia uma lite-
ralidade de agressão física também presente no sofrimento imposto a uma
mulher em Apertando Silvana (2007). Em ambos, o corpo é visto mediante
uma imagem violenta e perversa, mas a opção pela imagem técnica explícita
nos fala diretamente e não pela tensão latente dos outros trabalhos — como
observamos na instalação Cerimônia em três tempos (1973), na qual a imagem
do corpo não é literal, mas realizada mediante a referência crua e bruta de
uma carcaça bovina.
Também é essa a relação que as inúmeras esculturas de concreto armado im-
plicam; corpos estruturados por vergalhões recobertos por argamassa com
impregnação de cor se dobram, se retorcem, se equilibram como se esti-
vessem em movimento. Somos invadidos pela estranheza desses seres com
formatos esdrúxulos que impactam pela crueza e pela vida. “Verdadeiros
pesadelos eróticos que tomam forma diante dos nossos olhos”, como pontua
Paulo Sergio Duarte, essa “intimidade com esses corpos/esculturas, dilacera
e sangra. Aqui o corpo e a existência, coesos, só se entregariam no inteiro
processo de apreensão”.18 A potência do trabalho de Ivens Machado está em

17 
DOCTORS, Marcio. Exorbitando a pureza. In: CANONGIA, Ligia (Org.). Ivens Machado, o
engenheiro de fábulas. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2001, p. 95.
18 
DUARTE, Paulo Sergio. Brutal pureza. In: CANONGIA, Ligia (Org.). Ivens Machado, o enge-
nheiro de fábulas, op. cit, p. 17.

26-viviane.indd 28 09/10/2017 16:42:36


Artes Visuais 29
Corpo desdobrado
Viviane Matesco

provocar o olhar mediante uma gama de anseios, angústia e aflição; as ima-


gens se abrem e se fecham como nossos corpos que as olham; elas se abrem
a nós ou se fecham sobre nós à medida que deslocam nossas certezas e que
suscitam em nós qualquer coisa que poderia ser chamada de uma experiên-
cia interior.19
De maneira diversa daquela de Ivens Machado, também o sentido de corpo
está presente nos trabalhos de Tunga, não somente por suas características
físicas, mas pelas significações que se produzem nas diversas formas adquiri-
das pela matéria. Cabelos, ossos, crânios e próteses dentárias são indicadores
de uma presença que não se esgota em sua manifestação. O que interessa
não é o corpo, não é o objeto em si mesmo, mas sua fantasmática, aquilo
que, mesmo não se podendo ver, produz efeitos. Carlos Basualdo20 analisa
a problematização da autonomia do objeto no trabalho de Tunga pelo ques-
tionamento dos limites entre o real e o virtual, o que seria a dimensão fan-
tasmática da produção escultórica. Também suas performances se situam de
maneira singular, pois as dimensões objetual e performática encontram-se
de tal modo entrelaçadas, que o sentido de um trabalho se completa no
outro. Assim, as Tranças originaram-se do artigo sobre as gêmeas siamesas,
por sua vez ligado à performance das Xifópagas capilares e à performance com
serpentes, Vanguarda viperina, tal como Xifópagas capilares e Tranças ecoam em
Tereza. Cena e instaurações21 são os termos utilizados pelo artista para dar a
ideia do elo entre performances e instalações que simultaneamente lhes tira
a autonomia. Isso significa que a escultura faz pulsar algo que ela presentifica
e retira ao mesmo tempo, despertando uma visão que não se contenta com o
que vê e por isso se reconstrói incessantemente. Os restos que permanecem
na exposição carregam as marcas desse encontro e continuam a pulsar, tal
como fantasmas do deslocamento que ali se operou. É a concepção de corpo
fantasmático, um corpo que pressupõe a noção de realidade psíquica que a
instauração engendra.
Os trabalhos de Tunga, de acordo com Suely Rolnik, são “obras vibráteis”22
por meio de atrações estranhas, de tensão erótica, de montagens inu-
sitadas e de hibridações. Copulam objetos e seres, espaços e substâncias,

19 
DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image ouverte. Paris: Gallimard, 2007, p. 25.
20 
BASUALDO, Carlos. Uma vanguarda viperina. In: ______. Tunga: 1977-1997. Nova York:
Bart College, 1998.
21 
Ver LAGNADO, Lisette. A instauração: um conceito entre instalação e performance. In: BAS-
BAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Contracapa, 2001, p. 371-376.
22 
ROLNIK, Suely. Instaurações de mundos. In: BASUALDO, Carlos. Tunga, op. cit, p. 115-136.

26-viviane.indd 29 09/10/2017 16:42:36


impossibilitando limite ou definição. O artista extrai da forma e da textu-
ra dos fios da cabeleira xifópaga os elementos fundamentais para criação
de esculturas feitas em latão à semelhança dos cabelos naturais, como em
Tranças. A forma, a imagem e o material são explorados de maneira que a
forma não é mais vista como puro princípio de construção, o material não é
apenas elemento neutro a ser explorado, e a imagem não se constitui como
conteúdo ou temática. Nas séries Tranças, Escalpes e Lezart, Tunga recorre a
fios de cobre ou alumínio, dispostos de maneira a estabelecer relação de se-
melhança com cabelos. Temos aqui três elementos: o material em metais, o
processo formal que os organiza e a relação de semelhança que chamaremos
aqui de imagem de cabelo. As características físicas dos materiais, como a
maleabilidade dos fios de metal, relacionam-se ao processo de formalização,
como o ato de trançar em Tranças. Ao mesmo tempo, o processo de forma-
lização invoca a consistência da imagem do cabelo, o que possibilita diversos
arranjos. O processo escultórico é, portanto, cifrado pela imagem do cabelo.
O magnetismo do material contagia e impõe por sua vez outro significado.
Em Lezart, ferro, cobre e aço relacionam-se como se gerassem eletricidade
entre si e também, figurativamente, na imagem do cabelo e do pente, o que
produz uma analogia ou encontro de energias esculturais e energias do cor-
po humano.23 Nesses trabalhos, a relação do material com a imagem cria a
disjunção que impede o engessamento de significação; em Tunga há formas
em processo, em movimento imposto pela relação com os materiais e com
as imagens.24
Esse questionamento adquire maior complexidade à luz da reflexão estético-
-antropológica de Bataille. É o heterogêneo25 que o trabalho de Tunga pres-
supõe, uma vez que forma, imagem e matéria se situam ao mesmo tempo
como continuidade, sem, no entanto, jamais alcançar unidade de sentido. Há
contágio entre os elementos, embora eles não gerem um produto híbrido,
uma vez que agem como campos de forças em constante movimento. A rede
de relações entre eles estabelece semelhanças verdadeiras e falsas; Tunga cria

23 
BRETT, Guy. Tudo simultaneamente presente. In MACIEL, Katia (Org.). Brasil experimental
arte/vida: proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.
24 
Ver NAVES, Rodrigo. Metafísicas por um fio. Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 dez. 1987.
25 
Bataille distingue dois polos estruturais: de um lado, o homogêneo, ou campo da sociedade
produtiva, e, de outro, o heterogêneo, lugar de irrupção do impossível. Em vez da homogenei-
dade (identidade), que subsume os elementos do mundo a uma representação, a hetereologia
procede invertendo o processo filosófico; de um instrumento de apropriação, passa à excreção.
BATAILLE, Georges. Dossier hétérologie. In: ______. Œuvres completes II: écrits posthumes —
1922-1940. Paris: Gallimard, 1970, p. 167-178.

26-viviane.indd 30 09/10/2017 16:42:36


Artes Visuais 31
Corpo desdobrado
Viviane Matesco

laços críticos de semelhança, ou semelhanças por excesso, que atuam como


choque por meio das relações e de contatos. Esse choque gera imagens que
dilaceram qualquer substancialismo, pois implica a heterogeneidade, a capa-
cidade que as coisas têm de se transformar, de confundir-se com seu contrá-
rio; o trabalho introduz tensão, pois sentimos, ao mesmo tempo, a interação
e a oposição entre deles. Tal como nos textos de Bataille, o que está em jogo
é o duplo uso de todas as coisas; a boca pode ser relacionada ao falar ou ao
vomitar e gritar, da mesma maneira que o abatedouro pode referir-se ao
horror ou à maneira de ocultá-lo.
O trabalho de Tunga pressupõe o corpo como fluxo de energias, como um
agenciamento de multiplicidades heterogêneas. Essa labilidade estabelece
relações transgressivas que deslocam sentidos fixos e determinados. Vemos
uma profusão de elementos figurativos, de partes do corpo, como crânios,
dentes e mechas de uma cabeleira; esses elementos, no entanto, não desem-
penham função descritiva. Em vez de mera operação de recognição, o artista
acentua a ambiguidade, pois a percepção das formas tende a apelar não mais
para sua pacífica associação a representações, mas sim para a turbulenta sen-
sação das forças que nela pulsam; cria-se um hiato entre a percepção das
coisas e as representações convencionais que projetamos.26 É tal abertura
que dilacera a forma e impede a substancialização dos elementos corpóreos.
O trabalho de Tunga dá muito a ver: é praticamente um mar de imagens do-
brando-se umas sobre as outras, mas são cadeias de significantes que nunca
se fecham. Inviabiliza, assim, uma análise apenas por sua corporeidade; a
questão do corpo em suas obras passa por esse ser “fantasmado” que impos-
sibilita a representação, e é exatamente por isso que a imagem se torna uma
rasgadura. É pela relação entre algo figurável e o deslocamento do sentido
que Tunga opera em polos opostos, deixando que esse descompasso, o hete-
rogêneo, se movimente em nós como uma abertura.

26 
ROLNIK, Suely. An occasional experimentalist in unstable equilibrium. In: ADAMS, Beverly
(Org.). Constructing a poetic universe: the Diane and Bruce Halle collection of Latin American art. Hous-
ton: The Museum of Fine Arts, 2007.

26-viviane.indd 31 09/10/2017 16:42:37


26-viviane.indd 32 09/10/2017 16:42:37

Você também pode gostar