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Estética

Material Teórico
Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Esp. André Luís Pereira dos Santos

Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos.
Algumas possíveis funções da arte: a
necessidade da arte

·· Introdução
·· Apolíneo x dionisíaco
·· Arte e necessidade
·· A arte e suas funções
·· A arte e o sagrado
·· A arte como ato político

Nesta unidade, discutiremos alguns aspectos ligados ao fato de não


podermos dissociar a história da humanidade de sua produção artística.
A arte acompanha o ser humano desde tempos remotos, desempenhando
várias funções ao longo da história. Quais são algumas delas e como elas
são extremamente importantes em nosso cotidiano são questões que
buscaremos discutir a partir de agora.

Nesta unidade, partimos de uma reflexão sobre a obra de Kandinsky. Essa escolha de recorrer
a obras de grandes artistas nos ajuda a compreender os caminhos da arte. Esse contato com
o trabalho de artistas consagrados ajuda a preparar o olhar para perceber as nuances das
diversas manifestações artísticas.
Além disso, recomendamos que você leia, ao menos, os primeiros capítulos do Nascimento
da tragédia, de Nietzche, buscando um aprofundamento em seus conceitos, que, de certa
forma, delineiam todo processo de criação e de fruição artística.
Por fim, busque pesquisar outras formas de se compreender e utilizar a arte, ampliando o
seu olhar sobre o tema.

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Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Contextualização

Leia o texto abaixo e reflita sobre os questionamentos propostos.


A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, grande aliciadora da
vida, o grande estimulante da vida.
A arte como única força superior contraposta a toda vontade de negação da vida, como o
anticristão, antibudista, antiniilista ‘par excellence’.
A arte como a redenção do que conhece – daquele que vê o caráter terrível e problemático
da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico.
A arte como a redenção do que age – daquele que não somente vê o caráter terrível e
problemático da existência, mas o vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói.
A arte como a redenção do que sofre – como via de acesso a estados onde o sofrimento é
querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.

(Nietzsche, F. Vontade de potência § 853. In Obras incompletas. Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1978, p. 28.)

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Para Pensar
• Nietzsche classifica a arte como “o grande estimulante da vida”. Que implicações
estão envolvidas nessa afirmação?
• Encarar o destino e as vicissitudes da vida é uma forma de dotá-la de significado?
• Será que o ser humano necessita mesmo da arte? Que sentidos ela pode assumir
em nossas vidas?

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Introdução

As primeiras cores que me causaram grande impressão foram o verde-claro e


cheio de seiva, o branco, o vermelho-carmim, o preto e o amarelo-ocre. Essas
lembranças remontam a meus três anos. Vi essas cores em diferentes objetos
que hoje não visualizo tão claramente quanto as próprias cores.
Kandinsky

A experiência da arte é avassaladora para aqueles que dela escolheram se servir. Certamente,
alguns foram por ela escolhidos. As palavras de Kandinsky nos levam a iniciar essa discussão
nos aprofundando nessas sensações. Para ele, a cor é fundamental, talvez até mais que os
objetos que as apresentam. As cores comunicam: quentes, frias, acolhedoras ou insuportáveis.
Representam estados de alma e possibilidades de relações entre as pessoas e as coisas. Mas, por
um paradoxo que se reencontrará em Klee e Kandinsky, o quadro, pelo próprio fato de deixar
de imitar a natureza a fim de exprimir uma necessidade interior, adquire certa autonomia, torna-
se acima de tudo uma superfície colorida (LACOSTE, 1986, p.57).
Fonte: Wassily Kandinsky/Wikiart.org

A abstração presente no seu quadro “Amarelo, Vermelho, Azul” nos leva a uma experiência
de fruição e arrebatamento que parte da condição íntima que o artista nos comunica por meio
das cores. Talvez nos intriguem as significações dessa composição, no entanto algo nela clama o
nosso olhar para a reflexão, conduzindo-nos por diversas sensações e emoções quando olhamos
para ela.

Wassily Kandinsky foi um pintor Russo, nascido em 1866. Viveu na França e na


Alemanha, onde lecionou na Bauhaus, importante escola de artes e arquitetura,
sendo um dos precursores do abstracionismo nas artes visuais. Seu quadro
Amarelo-Vermelho-Azul foi criado em 1925. O uso das cores primárias e de figuras
geométricas como círculos, triângulos e quadrados, além de outras formas abstratas
nos leva a uma experiência de profunda reflexão. Se dividirmos o quadro em duas
partes, veremos que de um lado predominam amarelos e vermelhos sobre um fundo
azul. Cores quentes sobre uma cor fria. Porém do outro lado, a situação se inverte:
predominam cores frias sobre um fundo quente. O retângulo vermelho, quase
disposto no centro, chama o olhar e o direciona a passear pelo quadro. É como se
tivéssemos portas que nos levassem entre a regularidade do dia e as incertezas da
noite, em um movimento de vai e vem.
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Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Essa contraposição de opostos é uma característica que nos ajudará a estabelecer e discutir
alguns conceitos. A escolha de iniciarmos essa unidade com essa pequena reflexão sobre
Kandinsky leva-nos a algumas indagações: que funções podemos atribuir à arte? Qual é a
necessidade da arte em nossas vidas? Podemos encontrar alguma utilidade ou tirar algum
proveito do fato de nos envolvermos com as artes?

Apolíneo x dionisíaco

É possível que você já tenha ouvido falar de Nietzsche e da complexidade de seu pensamento.
Gostaríamos de introduzir dois conceitos que se tornaram célebres em uma de suas obras de
juventude, O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo (1992, p.27): o apolíneo e
o dionisíaco.

Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à


intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão [Anschauung] de que o
contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do
dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos
sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações (...).

É por meio dessa conceituação que Nietzsche começa a traçar os liames daquilo que ele
denominou como as condições trágicas do ser humano. Não é por acaso que ele escolhe
os dois deuses gregos ligados à arte para representar essa dicotomia de origens e objetivos,
presente de maneira natural no homem. São as figuras de Apolo e Dionísio que dão forma a
essa reflexão. Para ele, o povo grego representa o ímpeto de encarar as vicissitudes e desafios
do mundo sem recorrer a desculpas moralistas e posturas derrotistas escondidas sobre o traço
da humildade. Além disso, segundo ele, foram os gregos que demonstraram domar com
maestria as irregularidades dos impulsos inerentes à espécie humana. Desse modo, abre-se uma
contraposição representada por esses dois deuses, em que Apolo representaria a regularidade,
a ponderação, a pureza, a moral, isto é, a ordem presente naquilo que constrói. Enquanto que
Dionísio, o deus da música, representava a desmedida, o excesso, a orgia, o desejo, ou seja,
aquilo que não se conforma, a arte não-figurada. Essas duas tendências humanas, segundo
Nietzsche, por vezes caminham harmonicamente, em outras nutrem a dissensão e a discórdia. A
relação constante entre o apolíneo e o dionisíaco é o que gera a tragédia grega, em que haveria
uma composição entre a alma (na figura de Apolo) e o corpo (na figura de Dionísio). Não há
possibilidade de que uma arte possa ser completamente apolínea ou completamente dionisíaca.
Toda criação que o ser humano realiza geralmente está pautada por esses dois princípios, de
maneira que eles se completem. Do dionisíaco provém o princípio da criatividade, o ímpeto que
gera o instante criador. Enquanto que do apolíneo advém a regularidade, a harmonia e a ordem
necessárias para a produção de uma obra de arte.

Assim, o pensamento do Jovem Nietzsche pressupõe que o homem não goza naturalmente de
uma boa índole. A ciência e a racionalidade também não garantiriam que o homem realizasse

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seu destino de maneira ética. A arte, em seu pensamento, desempenharia o papel de restaurar a
cultura trágica, sobretudo por meio da música de Richard Wagner, segundo ele, expressão própria
do renascimento da tragédia grega. Para ele, os valores humanos, assim como a razão, estão em
crise. O que levaria à necessidade de superá-los, através da contestação de seu caráter absoluto.

Diálogo com o Autor


Nietzsche introduz, desde logo na estética, dois princípios a que dá o nome de dois
deuses gregos. Apolo e Dionísio encarnam, com efeito, duas “pulsões artísticas da
natureza”. Cada uma dessas pulsões manifesta-se na vida humana por meio de estados psicológicos.
O sonho manifesta e satisfaz a pulsão apolínea, e a embriaguez a pulsão dionisíaca. Nietzsche,
que fala aqui a linguagem de Schopenhauer, descobre na contemplação serena do sonhador que
deixou de lutar e de querer, uma confiança inquebrantável no principium individuationis: Apolo
será, portanto, o deus da individualidade, da medida, da consciência. “Conhece-te a ti mesmo” e
“Nada de excesso” não são o anverso e o reverso de uma mesma sabedoria deífica? A embriaguez
dionisíaca, pelo contrário, rasga esse “véu de Maya” da individualidade e essa ilusão da consciência,
para celebrar selvaticamente a reconciliação do homem e da natureza: “O homem já não é artista,
tornou-se obra de arte: o que se revela aqui no estremecimento da embriaguez é, em vista da
suprema voluptuosidade e do apaziguamento do Uno originário, o poder artista da natureza inteira”
(LACOSTE, 1986, p. 67).

Arte e necessidade

Possivelmente, você deve estar se perguntando: quais as relações entre o que acabamos
de discutir e a necessidade que o ser humano historicamente demonstra nutrir em relação à
arte? Não queremos simplesmente assumir interpretações dicotômicas ou maniqueístas em
relação à arte. No entanto, esse embate, entre a embriaguez de Dionísio e a lucidez de Apolo,
perpassa a trajetória do homem sobre a terra de maneira constante. Quantas vezes não temos
um desequilíbrio existencial que nos leva a querer produzir e refletir sobre o que está ocorrendo
conosco? Um devaneio que nos intriga e nos coloca em movimento. Porém, se não somos ao
mesmo tempo tomados pela mão harmônica de Apolo, que nos guia pela técnica e pelo ofício,
nada conseguimos realizar.

Esse processo de obtenção e perda que vem da inspiração aponta também para outra
característica fundamental da arte, que muitas vezes legamos a um segundo plano: somos seres
fadados à morte, pequenos rastros na existência do planeta, inevitavelmente condicionados a
enfrentar o nosso fim. Essa pode parecer uma definição demasiadamente trágica. Mas quando
adquirimos essa consciência da finitude, começamos uma busca incessante para dar significado

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Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

ao fato de estarmos aqui cerceados por nossa própria liberdade. Buscamos, assim, produzir e
beber gotas de imortalidade. Se não podemos nos tornar biologicamente imortais, tornamo-nos
imortais por nossas obras.

Diálogo com o Autor


Uma psicanálise das artes plásticas consideraria talvez a prática do embalsamamento
como um fato fundamental de sua gênese. Na origem da pintura e da escultura,
descobriria o “complexo” da múmia. A religião egípcia, toda ela orientada contra a morte, subordinava
a sobrevivência à perenidade material do corpo. Com isso, satisfazia uma necessidade fundamental
da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte não é senão a vitória do tempo. Fixar
artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a
vida. (...) Assim se revela, a partir das suas origens religiosas, a função primordial da estatuária: salvar
o ser pela aparência. E provavelmente pode-se considerar um outro aspecto do mesmo projeto,
tomado na sua modalidade ativa, o urso de argila crivado de flechas da caverna pré-histórica,
substituto mágico, identificado à fera viva, como um voto ao êxito da caçada.
É ponto pacífico que a evolução paralela da arte e da civilização destituiu as artes plásticas de
suas funções mágicas (Luís XIV não se faz embalsamar: contenta-se com o seu retrato, pintado por
Lebrun). Mas esta evolução tudo o que conseguiu foi sublimar, pela via de um pensamento lógico,
esta necessidade incoercível de exorcizar o tempo. Não se acredita mais na identidade ontológica,
de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de
uma segunda morte espiritual (BAZIN, 1991, p.19).

Quando um artista consegue captar algo incrivelmente original e avassaladoramente


significativo, mesmo que ele não queira, essa obra inevitavelmente o ultrapassa. Perdura para
além de quem a criou e dialoga com aqueles que estão no futuro, assim como com aqueles que
estão no passado e também no presente. Isto é, transmite uma mensagem que, por natureza, é
universal e atemporal.
Apenas os artistas, especialmente os do teatro, dotaram os homens de olhos
e ouvidos para ver e ouvir, com algum prazer, o que cada um é, o que cada
um experimenta e o que quer; apenas eles nos ensinaram a estimar o herói
escondido em todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo
como herói, a distância e como que simplificado e transfigurado – a arte de se
“pôr em cena” para si mesmo (NIETZSCHE, 2001, p. 106).

Essas experiências que as artes nos proporcionam servem também para que nossa existência
seja dotada de sentido. O ser humano é o único ser que produz arte por “vaidade” estética, mas
que também constrói hipoteticamente a obra em sua mente antes de realizá-la no sensível, que
deliberadamente se enfeita para atrair a atenção dos outros e para tornar o seu ambiente mais
aconchegante e hospitaleiro.
No entanto, somente aqueles que dominam certas técnicas, macetes e conhecimentos podem
produzir arte. Podem captar percepções desconexas e sensações difusas, reordenando-as em
novas experiências de fruição e reflexão. O artista, desse modo, é um sabedor que sintetiza
ideias e conceitos flutuantes em experiências concretas geradoras de sentimentos e reflexões:
contos, poemas, canções, afrescos, telas, esculturas, entre muitas outras coisas. Essa constelação
de vivências, condensadas na obra, provoca novas pessoas a sentir e compartilhar novas

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sensações de prazer, satisfação ou repulsa. Desse modo, quando se compreende o valor do
processo artístico, não há como ficarmos isentos mediante uma manifestação artística. A arte
nos completa, nos sacia, nos ensina, nos questiona e nos transforma.

Fonte: The Joy of Life, Henri Matisse, 1906

Talvez agora o título dessa unidade comece a fazer sentido para você. Ele foi inspirado no
título de um livro do poeta, escritor e filósofo austríaco Ernst Fischer, A necessidade da arte.
Leiamos um trecho de suas reflexões:
Para conseguir ser um artista, é necessário dominar, controlar e transformar a experiência
em memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção para um artista não é
tudo; ele precisa também saber tratá-la, transmiti-la, precisa conhecer todas as regras, técnicas,
recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser dominada e
sujeitada à concentração da arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro artista;
o artista não é possuído pela besta-fera, mas doma-a (FISCHER, 1987, p. 14).
Será que não podemos vislumbrar aqui um pouco daquilo que Nietzsche nos concede ao
perceber que forças contrárias concorrem em nossos processos de criação e apreciação da arte?
Para ser artista, é preciso dar forma à energia latente que resta do encontro da memória com
o ímpeto da criação. Essa experiência, dionisíaca por natureza, só adquire sentido quando o
traço apolíneo permite que as mãos produzam a síntese, o produto concreto dessa experiência.
Isso aponta para um processo que nos une, que nos arranca da individualidade criadora e nos
leva para a compreensão de que toda criação artística somente toma sentido se pressupor que
é necessária a existência do outro para relacionar-se com ela.
Se fosse da natureza do homem o não ser mais do que um indivíduo, tal desejo
seria absurdo e incompreensível, porque então como indivíduo ele já seria um
todo pleno, já seria tudo o que era capaz de ser. O desejo do homem de se
desenvolver e completar indica que ele é mais do que um indivíduo. Sente
que só pode atingir a plenitude de se apoderar das experiências alheias que
potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um homem
sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como
um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo
com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a
circulação de experiências e ideias (Ibid., p. 13).

Portanto podemos, por meio dessas reflexões, perceber que a relação do ser humano com
a arte é extremamente necessária. Mas, como vimos, a arte não se conjuga como um processo
singular. As manifestações artísticas se definem de muitas maneiras e muitas vezes se contradizem.
Isso nos leva a pensar que, em decorrência disso, a arte pode assumir inúmeras funções. Por
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Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

uma escolha didática, discutiremos apenas três delas. Porém, você pode discutir, encontrar e
formular hipoteticamente muitas outras. Faça isso como recurso de formação e aprendizado.
Verá que esse processo de estudo pode ser muito frutífero.

A arte e suas funções

Arte e prazer: o entretenimento


A relação das pessoas com a arte se dá de múltiplas maneiras. Alguns possuem uma
necessidade tão profunda de estar em contato com a arte que transformam sua vida em uma
jornada estética em busca do belo. Entretanto, para outros, a arte é apenas um belo passatempo.
Podemos dizer que as duas posturas são válidas. Um filme, por exemplo, nunca toca duas
pessoas da mesma maneira. Isso se dá porque os olhares também são diversos, visto que vêm
de pessoas com gostos, manias e histórias de vida diferentes. O nosso referencial artístico muda
conforme entramos em contato com diversos tipos e concepções estéticas.
No entanto, em alguns momentos, certos tipos de obras de arte, ainda que reconhecidas como
tal, são concebidas apenas como uma forma de entretenimento. O que isso quer dizer? Uma das
funções da arte também é entreter-nos. Como assim? Isso mesmo. Tornar as dificuldades dessa
vida mais leves e suportáveis. Nessa linha de pensamento, podemos inserir as comédias, tanto
as teatrais como as cinematográficas. Um filme de Charles Chaplin certamente nos leva a sorrir,
mas não podemos negar o caráter poético de suas obras e de suas imagens. A estética criada
por Chaplin no cinema é profundamente artística e ao mesmo tempo nos entretém. O mesmo
podemos dizer de Woody Allen ou de Frederico Fellini.

Pense
Leia o texto abaixo e reflita sobre a experiência de transporte e suspensão temporal que o
cinema realiza em nós.
O que um bom filme é capaz de fazer? Um bom filme nos coloca no calor de uma história feita
a distância, nos jogando secretamente em sua comicidade, em seu terror ou na sua mais densa
normalidade. Nos faz sair do lugar sem nos mover, nos emprestando experiências e, como se num
exercício iniciático, nos envolvendo com ritos que jamais suporíamos. É como se suas imagens
encarnassem uma soberania momentânea e, saltando da tela para a imaginação, levasse o espectador
a subjetivar um mundo-outro, que vai involuntariamente afastá-lo de seu lugar e aproximá-lo – se
ocorrer receptividade – de um outro de si mesmo. E nesse momento tudo cessa e a mais profunda
cerimônia aparece para situar seu jogo e todas as suas expressões sobre a celebração de quem
escolheu viver esse eclipse do real. (OLIVEIRA, 2011, p. 142).

É justamente a possibilidade de vivermos novas experiências que desponta quando pensamos


no potencial da arte enquanto entretenimento. Sobre o olhar mais aprofundado, veremos que
a arte nunca é somente criada para entreter. Mesmo que esse seja o objetivo inicial, sempre
encontraremos novos motivos agregados a este: emocionar, justificar ou apresentar uma visão

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de mundo, além de muitos outros. Se pensarmos no teatro clássico, por exemplo, essa ideia
de que há sempre muito mais por trás de uma suposta ingenuidade na arte do entretenimento
aparece com mais evidência.
A palavra teatro vem do grego e significa “lugar de onde se vê”1 Esse conceito, a uma
primeira vista, pode sugerir que o apreciar teatral trata-se de uma atividade por natureza passiva.
A própria ideia de espectador também sugere uma acentuação dessa visão. O espectador é
aquele que observa2 . Alguém que de fora enxerga algo que acontece em outro plano, o palco,
configurando-se apenas como testemunha de algo que acontece à frente de seus olhos em que
ele mesmo não tem participação efetiva.
Porém, há no fazer teatral algo de agregador e orgânico que só se dá na junção do ator e da
plateia, mesmo que em alguns momentos essas figuras se confundam. Se pensarmos em uma
perspectiva aristotélica, podemos especificar que tipo de passividade há no olhar dessa espécie
de espectador. Aristóteles, em sua poética, realiza uma análise das formas textuais gregas,
principalmente a tragédia, a partir da ideia de imitação e de catarse.
É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa
extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos
distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se efetua não por
narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por
efeito a purificação (catarse) dessas emoções” (Aristóteles, 1987, p. 205).

O teatro seria uma forma de colocar o espectador em identificação com o protagonista,


sofrendo suas angústias e vivenciando suas alegrias. É como se momentaneamente houvesse
uma suspensão do juízo, como se naquele momento não existisse outra realidade senão aquela
que se apresenta no instante em que se dá o espetáculo. As dores e as angústias que o espectador
trouxesse consigo seriam substituídas pelo sentimento causado pelo desfecho no fado dos
protagonistas. Assim, o que observa terminaria o espetáculo purgado de suas angústias. Esse
processo seria conhecido como catarse. O dicionário Houaiss define catarse como a “descarga
de desordens emocionais ou afetos desmedidos a partir da experiência estética oferecida pelo
teatro, música e poesia” (Houaiss, 2007). Também encontramos uma derivação no verbete
que diz “purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões, esp. dos
sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico” (Id.
Ibid.). Haveria uma suplantação do que o oprime pelo enredo vivenciado na tragédia. Desse
modo, o espectador é levado a um certo modo de pensar regido por uma ideologia que pertence
a uma classe dominante. “A comédia é (...) imitação de homens inferiores” (Aristóteles, 1987,
p. 205), assim como a tragédia é uma imitação de homens superiores, de atitudes elevadas. Há
uma imitação dos ideais aristocráticos, criando um desligamento da realidade que o espectador
vive, remetendo-o por instantes a uma realidade que não lhe pertence. Excetuando-se as
hierarquias aristocráticas presentes na estruturação da sociedade grega, o sentimento da catarse
ainda permanece no processo artístico.
É justamente essa experiência que ainda vivenciamos ao assistirmos telenovelas ou ao
ouvirmos aquela música de que gostamos tanto. Portanto, sob esses aspectos, vivenciar a arte
também é vivenciar uma experiência de transformação interior, pois ao nos entregarmos um
pouco para a obra que estamos apreciando, também nos colocamos disponíveis para receber
outras influências e lições advindas dessa conexão artística.

1 Do grego, théatron ou ‘lugar onde se assiste a um espetáculo, espectadores, o próprio espetáculo’ (< gr. théa ‘espetáculo, vista, visão’
+ o suf. -tron ‘instrumento’, donde, lit., ‘máquina de espetáculo’). Cf. Dicionário eletrônico Houaiss –Versão 2.0a – abril de 2007.
2 Do lat. Spectátor óris ‘espectador, contemplador, observador’; ver espec-; f.hist. 1789 spectador. Id. Ibidem.

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Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

A arte e o sagrado

Falar da arte e não tocarmos na experiência do sagrado seria uma falha inconcebível, pois
desde tempos imemoriais essas duas coisas caminham juntas, separando-se e juntando-se
novamente no meio desse caminho.
Nesse sentido, há uma interpretação clássica de que a pintura rupestre, aquela feita nas
cavernas do período paleolítico, carrega implicitamente uma forma de magia. O homem desse
período, antes de capturar os animais com suas lanças e flechas, capturava-os magicamente
com seus desenhos.
Como já se observou, existem dois diferentes motivos dos quais derivam as
obras de arte: algumas são produzidas simplesmente para que existam, outras
para serem vistas. A arte religiosa criada puramente em honra de Deus e mais ou
menos todas as obras de arte destinadas a suavizar a carga que pesa e oprime
o coração do artista compartilham dessa função em segredo com a arte mágica
da idade da pedra lascada. O artista paleolítico que estava empenhado apenas
na eficácia da magia terá, não obstante, derivado uma certa satisfação estética
de seu trabalho, embora considerasse a qualidade estética da obra meramente
como meio para alcançar um fim prático (HAUSER, 1998, p. 6 e 7).

Essa interpretação é valida, mas há muitas outras variáveis envolvidas quando pensamos
o espaço do sagrado dentro da arte. Se já na pré-história essas relações se demonstravam,
também em todos os lugares e em todas as religiões esse espaço é contemplado, seja pela
música, seja pela dança, seja pela pintura, seja pela encenação. Nas religiões indianas, por
exemplo, todos esses aspectos se conciliam. Também na religiosidade africana é impossível se
separar essas coisas. Não há sociedade que não tenha em algum momento recorrido à ligação
entre arte e religiosidade na construção de sua identidade. Se pensarmos na Igreja, durante
o Renascimento, veremos essa ligação de maneira quase constante. Michelangelo produziu a
serviço da Igreja, Rafael, Donatelo e Da Vinci também. Se ampliarmos nosso olhar pensando
em outras formas de arte, veremos que a maioria dos grandes compositores, como Bach, Vivaldi
e Mozart, produziram concertos para a liturgia das missas. É como se o sagrado, intangível e
abstrato, também clamasse por uma sistematização concreta e palpável. É como se as forças
incomensuráveis da divindade adentrassem por um canal que transforma a sua presença em
arte, permitindo que a sensação causada por essa presença seja experimentada por todos.
Porém, com o racionalismo científico, a revolução industrial e a sociedade de consumo, essa
experiência do Sagrado toma um novo rumo e dessacraliza a natureza e com ela também
a arte. “O conceito de dessacralização da arte, repetido a exaustão, hoje confundido com a
destituição das pretensões burguesas de construir uma nova aristocracia, data da Renascença
com a entronização do homem como centro de interesse e a abolição da ideia religiosa na arte”
(Klintowitz, 1999, p. 8).
Porém, é importante ressaltar que essa dessacralização começa, na verdade, como um
afastamento da Igreja católica e de seu predomínio sobre as artes, no sentido de adquirir-se
liberdade de temas e de pesquisa, apontando para uma recusa desse cerceamento moral que

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poderia ser gerado por esse processo. Com essa tendência e o avanço da sociedade industrial,
também se desumanizam as relações, e o homem começa a ser visto ora como meio de produzir
lucro ora como mercadoria.
No entanto, atualmente, há um esforço de vários grupos no sentido de ressignificar essa
relação entre o sagrado e a arte. Essa experiência não se dá mais na ritualística, mas no desejo
de compartilhar com as outras pessoas seus receios e certezas, alegrias e angústias, criando uma
constelação de sensações que se apresenta por meio da comunhão de ideias e da coexistência
pacífica. Além disso, o homem começa a se reconhecer na sua integralidade, sem analisar-se
dissociadamente, separando mente e corpo, emoção e razão. Essa experiência plena da existência
também começa a se construir como experiência mística, prenunciando uma “ressacralização”
das artes.

Diálogo com o Autor


Na sociedade de tempo histórico, a arte, por algum tempo, especializou-se em criar o
novo e ser condutora da evolução das formas. Agora, ela se quer ainda mais abrangente.
De muitas maneiras, a arte retoma a função totêmica exercida na sociedade ritualística de tempo cíclico e
pretende ser uma expressão total, participante, formadora e estimulante. Centro espiritual.
A causa primeira desse retorno é o fracasso do pragmatismo como método de vida e da bem
aventurança material como objetivo. (...) O homem quer que as conquistas científicas, técnicas,
sociais, vinculem-se às poéticas da vida (Klintowitz, 1999, p. 16).

A arte como ato político

Há uma discussão, nos círculos intelectuais relacionados à arte, acerca de duas grandes
concepções do trabalho artístico: o da arte pela arte e a da dita arte engajada. Quando um
artista assume claramente determinada postura sociopolítica, podemos dizer que há um
engajamento, uma escolha de abraçar uma causa e lutar empenhadamente por ela. Essa ideia
de comprometimento político aparece com muita frequência no universo das artes. Artistas
ligados aos movimentos sociais, ou aqueles que lutaram contra as ditaduras em seus países,
certamente possuem essa característica. Podemos citar, como exemplos, o pintor Diego Rivera,
no México; a cantora Mercedes Sosa, na Argentina; o compositor Chico Buarque de Holanda,
em nosso país; entre muitos outros.
Uma forma interessante de iniciar essa discussão é pensando no trabalho do diretor de teatro
e dramaturgo alemão Bertolt Brecht.
Há pouco, conceituamos, nesta unidade, o teatro aristotélico, que a partir de agora
denominaremos como teatro clássico ou tradicional, para que possamos entender a viragem
que se dá no conceito de teatro na contemporaneidade, a partir dos trabalhos de Brecht, e
como essa noção afeta de maneira substancial o processo teatral.

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Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Muito do que se produziu em teatro na contemporaneidade se deve às pesquisas de Brecht,


que revolucionou as concepções vigentes até então sobre o fazer teatral. Ele questionou o teatro
tradicional e buscou reavaliar a ideia aristotélica de catarse.
Na verdade, o que importa gerar com o teatro é o distanciamento. Segundo Brecht, “distanciar
um acontecimento ou um caráter significa antes de tudo retirar do acontecimento ou do caráter
aquilo que parece óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre eles o espanto e a curiosidade”
(Brecht apud Bornheim, 1992, p. 243). Trazer o espectador de uma atitude passiva para uma
atitude de reflexão perante aquilo que ali se apresenta. “Nossa atitude nasce de nossas ações,
nossas ações nascem da necessidade; quando a necessidade está organizada, de onde nascem
então nossas ações? Quando a necessidade está organizada, nossas ações nascem de nossa
atitude” (Brecht apud Koudela, 1991, p.14).
Mas antes de chegar nessa concepção, o dramaturgo desenvolveu um extenso trabalho com
as peças didáticas, até chegar à ideia de teatro dialético:
(...) Os atuantes atuavam para si mesmos. Formávamos ensembles com
operários que nunca haviam pisado em um palco (...). O único princípio que
nunca ferimos foi o de submeter todos os princípios à tarefa social que tínhamos
por objetivo cumprir em toda obra (Brecht apud Koudela, 1991, p. 9).

O intuito da peça didática é a formação de quem atua. A formação de si mesmo é possível a


partir de situações e jogos teatrais que se colocam para os atores.
Desse modo, o distanciamento consistiria em produzir um efeito contrário ao da catarse
aristotélica. Neste, a catarse promovia uma situação de envolvimento e identificação com o
protagonista, levando mais um sentimento de sublevação do que a uma racionalização do
fato ocorrido no palco. Em Brecht, o jogo teatral e o distanciamento colocam o espectador em
contato direto com a ação. Ele é convidado a tomar uma posição mediante aquilo que vê. Não
é apenas um espectador passivo, mas alguém que constrói suas próprias reflexões por meio de
uma experiência didática de vivenciar situações de conflito ético, moral ou ideológico, presentes
nas peças.
O caráter político da arte de Brecht se dá, além do conteúdo, predominantemente na forma.
O modo como a construção das peças acontece denota uma escolha política que privilegia a
formação de quem as assiste. Ao contrário, em muitas das manifestações, a contestação política
mostra-se presente predominantemente em seu conteúdo. No entanto, em Brecht, há uma escolha
democrática que pressupõe, como uma ação necessária, formar politicamente tanto quem atua
quanto quem assiste. Podemos identificar como trabalhos que têm essas características as peças
de Sartre, o teatro de Plínio Marcos, as obras do grafiteiro Banksy, entre outros.
Porém, para terminamos essa conversa, gostaríamos de deixar uma pequena provocação
destilada pelo artista plástico recifense, Paulo Bruscky:
Acho que o artista expressa o que sente. Você primeiro tem que conhecer sua
aldeia para depois conhecer o mundo. Acho que arte é transformação, é expor
a fratura exposta da sociedade. A arte é a última esperança. É a denúncia,
embora ela seja uma utopia. Não existe arte pela arte apenas. O artista é um
ser social e só o fato de o ser é por si só um ato político. (FERNANDES, 2014)

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Material Complementar

Textos
KANDINSKY, W. Olhar sobre o passado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FISCHER, E. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

Filmes
O fabuloso destino de Amélie Poulain. Direção de Jean-Pierre Jeunet. França, 2001
(Duração 122 min.).

Sites
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - MASP
»» http://www.masp.art.br/
Museu de Arte Contemporânea - MAC USP
»» http://www.mac.usp.br/

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Unidade: Algumas possíveis funções da arte: a necessidade da arte

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Coleção Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

BAZIN, A. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BORNHEIM, G. Brecht: A estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

FERNANDES, Marcus. Arte em questão: engajamento político ou função estética? Disponível


em: - http://www.leiaja.com/cultura/2014/07/10/arte-em-questao-engajamento-politico-ou-
funcao-estetica/ . Acesso em 05 dez. 2014.

FISCHER, E. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

KLINTOWITZ, J. A ressacralização da arte. São Paulo: Edições Sesc, 1999.

KOUDELA, I. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.

LACOSTE, J. A filosofia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo:


Companhia das Letras, 1992.

OLIVEIRA, L. 2011. Passeando com Jia Zhang-ke por Still Life in ALMEIDA R. & FERREIRA-
SANTOS. O cinema como itinerário de formação. São Paulo: Képos, 2011.

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Anotações

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