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Textos de apoio- A criação artística e a obra de arte

O PROBLEMA DA DEFINIÇÃO DA ARTE


«A questão “O que é a arte?” é uma questão filosófica típica. É um convite à reflexão sobre
vários aspetos da arte, experiências com ela relacionadas e seu papel na vida social e individual.
Contudo o próprio conceito de arte tem levantado dúvidas sérias na estética analítica
contemporânea não apenas em relação a definições específicas, mas, mais importante, sobre se o
conceito é ou não de todo definível. Cada definição proposta tem sido demolida, abandonada e
negada a sua eficácia. Perspetivas tradicionais foram rejeitadas e qualquer tentativa para reavivar o
debate em torno da essência da arte fracassou. Parece que, embora as batalhas tenham terminado
sem se chegar a um consenso, o não essencialismo leva vantagem. O que nós vemos hoje no
rescaldo destas discussões inconclusivas são tentativas para reapreciar resultados, avaliar danos e
oferecer realinhamentos limitados. […]
O meu principal argumento substancia a arte como uma criação intencional de beleza, como
uma tentativa de interpretar vários materiais da experiência humana mostrando através da sua
realização, os seus potenciais escondidos. Isto é em certo aspeto uma espécie de funcionalismo, mas
não encara o prazer como o objetivo essencial da arte. O prazer é antes o produto lateral que
acompanha qualquer experiência satisfatória e por isso não é uma característica particular da
experiência estética. Esta posição não apenas assume que a arte tem uma natureza definível, mas
também que a definição deve servir como chave para compreender o papel da arte, a sua relação
com outros aspetos da experiência humana e os problemas da sua avaliação. […]
[Por outro lado] a definição institucional de arte, diferentemente de outras teorias da arte não
tem as suas raízes na história da estética. A novidade da definição institucional comparada com
outras definições reside principalmente no facto de que é uma definição não essencialista. Todas as
outras teorias tentam caracterizar as propriedades essenciais da arte: imitação da natureza, criação
de beleza, representação ou expressão de emoções, uma fonte de prazer e por ai adiante. Não é uma
coincidência que uma definição não essencialista se tenha tornado o centro da atenção na estética
contemporânea, principalmente na filosofia anglo americana. Há uma conexão direta entre o
estatuto da filosofia estética analítica e a ampla aceitação de uma definição não essencialista.»
Ruth Lorand, Aesthetic order: a Philosophy of order, beauty and art, Londres, Routledge. 2000, pp. 250-251

ARTE – DA TRADIÇÃO A UMA NOVA ÓTICA


O campo semântico da arte é, com efeito, muito incerto. Como delimitar as fronteiras? Por um lado,
a arte não teve sempre nem em toda a parte o mesmo estatuto, o mesmo conteúdo e a mesma
função. O que se verifica ainda hoje. (…)
(…) Hegel anunciava a morte da arte. E, com efeito, talvez tenha morrido; talvez aquilo a que nós
chamamos hoje em dia «arte», e que dá provas de uma vitalidade tão exuberante, seja outra arte,
chamada a desempenhar outras funções, provida de um sentido novo. (…) A arte tradicional (…)
confundia-se toda ela com o saber, com a religião, com a vida social, propunha a expressão imediata,
imediatamente aceite e compreendida, de uma cultura que era vivida, como uma totalidade, pela

Filosofia 11 - A criação artística e a obra de arte


Textos complementares Livro do professor

totalidade do povo (…). Esta fisionomia (…) perde progressivamente as suas características quando a
cultura se divide em instituições diversas, e a sociedade em classes que se afrontam com mais ou
menos violência; conquista a sua autonomia quando se desintegra aquela totalidade de que era, sem
o saber, a alma. Inventam-se então as palavras «arte» e «artista», recusando pôr-se ao serviço de
outra causa que não a sua.
Em primeiro lugar dessacralizou-se; perdeu a sua carga mítica e iniciática (…).
Depois, a arte despersonalizou-se: também ela parece haver-se submetido a esta maldição da
alienação que a civilização tecnológica faz pesar sobre o homem. Com esta cultura média, a arte, tal
como o povo se degradou em massa, degradou-se em passatempo; mas não é apenas o consumidor
de arte que assim se aliena: o criador, que encontrava nos estilos coletivos a sua própria afirmação,
corre o risco de desaparecer em formas de arte impessoais, como aquelas que são produzidas pelos
mass media.
Mas o que caracteriza a reprodução não é apenas o impor à obra uma metamorfose, é também o
propor ao público uma ótica nova: essencialmente, a substituição de uma retransmissão verbal por
um contacto direto (…). Quando os vitrais eram acessíveis apenas – a alguns privilegiados - através
das descrições escritas ou das fotografias a preto e branco (…) eram considerados uma escrita, a qual
devia merecer preferencialmente uma explicação conceptual; quando a reprodução ressuscita todo
o seu fulgor, o estudo científico não pode ficar indiferente à luz e à cor (…).
Com efeito, anima esta pesquisa uma reflexão incessante, cujo radicalismo pode ir até à negação da
arte e do artista em primeiro lugar [meditando] sobre o seu próprio estatuto. Trata-se
verdadeiramente, na arte contemporânea, (…) de uma empresa de libertação, solicitada antes de
tudo pelo caráter repressivo e desumano da nossa civilização. (…)
M. Dufrenne, A Estética e as Ciências da Arte, vol. 1, Bertrand, 1982, pp. 7-43.

A PERSPETIVA SUBJETIVISTA
A beleza não é uma qualidade das próprias coisas, existe apenas no espírito que as contempla, e
cada espírito percebe uma beleza diferente. É possível até uma pessoa encontrar deformidade onde
uma outra vê apenas beleza, e qualquer indivíduo deve concordar com o seu próprio sentimento,
sem ter a pretensão de regular o dos outros. Procurar estabelecer uma beleza real, ou uma
deformidade real, é uma investigação tão infrutífera como procurar determinar uma doçura real ou
um amargor real. Conforme a disposição dos órgãos do corpo, o mesmo objeto tanto pode ser doce
ou amargo, e o provérbio popular afirma com muita razão que gostos não se discutem. (…)
Vemos portanto que, no meio de toda a variedade e capricho do gosto, há certos princípios
gerais de aprovação ou de censura, cuja influência um olhar cuidadoso pode verificar em todas as
operações do espírito. Há determinadas formas ou qualidades que, devido à estrutura original da
constituição interna do espírito, estão destinadas a agradar e outras a desagradar. Se em algum caso
particular elas deixam de ter efeito, é devido a qualquer evidente deficiência ou imperfeição do
órgão. Um homem cheio de febre não pretende que o seu paladar seja capaz de distinguir os
sabores, nem outro com um ataque de icterícia teria a pretensão de pronunciar um veredito a
respeito das cores. Para todas as criaturas há um estado de saúde e um estado de enfermidade, e só
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do primeiro podemos esperar receber um verdadeiro padrão do gosto e do sentimento. Se, no


estado saudável do órgão, se verificar uma uniformidade completa ou considerável nas opiniões dos
homens, podemos daí derivar uma ideia da perfeita beleza.
D. Hume, Ensaios Morais, Políticos e Literários, INCM, 2002.

O JUÍZO ESTÉTICO É DESINTERESSADO E UNIVERSAL


Agora o objeto estético põe-se rigorosamente em termos de sentimento e não de conhecimento. (…)
Kant não se limita a dizer que o objeto estético é o prazer. Dá a explicação desse prazer. Diz que ele é
o resultado da harmonia (…). Justamente Kant só põe no sujeito aquilo que antes se considerava no
objeto, essa harmonia.
(…) Se o estético, antes de mais, na sua essência, é prazer, então não pode ser reduzido ao que quer
que seja. É prazer e nada mais. (…)
A beleza é sempre uma comoção, o calor e não a frieza, a cor e não o preto-e-branco. (…)
No que respeita à qualidade, é desinteressado. Ou seja: «quando a questão é a de saber se uma coisa
é bela, não se deseja saber se nós mesmos, ou qualquer outra pessoa, temos ou poderíamos ter um
interesse na existência da coisa, mas como nós a julgamos considerando-a simplesmente», isto é,
sem justamente esse nosso interesse na sua existência. A coisa pode existir, e não tem que ser
necessariamente uma simples representação; o essencial é que ela se considere sem essa relação ao
meu querer. O prazer estético distingue-se assim do agradável (prazer dos sentidos) e do bom (em
todos os seus aspetos) porque estes são interessados.
No que respeita à quantidade, é universal sem conceito. O bom, esse é decerto também universal,
mas tem conceito; e o agradável não é universal. E porque é que ele, sendo sem conceito, é
universal?
Em primeiro lugar porque é desinteressado: «porque aquele que tem consciência de que a satisfação
produzida por um objeto é isenta de interesse não pode senão estimar que este objeto deve conter
um princípio de satisfação para todos».
(…) O prazer que eu sinto perante determinado objeto deve também ser sentido por todos os outros.
J. A. Encarnação Reis, A determinação do objeto estético em Kant,
Biblos, 1962, pp. 179-183.

TEORIA DA ARTE COMO IMITAÇÃO


«Segundo Platão e Aristóteles, para algo ser uma obra de arte requer-se que o trabalho em
questão seja uma imitação. Hoje, depois de quase um século de pintura abstrata, esta teoria parece
obviamente falsa. Certas pinturas bem conhecidas de Mark Rothko e Yves Klein não imitam nada –
são puros campos de cor – e no entanto são consideradas obras maiores da arte do século XX. Assim,
a teoria de que a arte é imitação aparece-nos como falhando enquanto teoria geral sobre a arte, já
que não é completamente compreensiva. Demasiado do que nós conhecemos como sendo arte não
satisfaz os requisitos necessários de que o que quer que seja arte tem de ser imitativo.
A história da arte tem-nos mostrado que a teoria da arte associada a Platão e Aristóteles é

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demasiado excludente; confronta-se com demasiadas exceções; falha em incluir como arte tudo o
que nós olhamos como pertencendo à categoria de arte. Em quase todos os museus de arte dos
nossos dias, que visitemos, encontramos alguns contraexemplos desta teoria. Todavia, em
deferência a Platão e a Aristóteles, devemos também acrescentar que a sua teoria não era então tão
obviamente falsa para eles como é hoje para nós, já que os mais importantes exemplos de arte na
sua época eram imitativos. Quando iam ao teatro ou quando iam à apresentação de uma nova
escultura o que eles viam eram imitações de heróis e de deuses e de pessoas e de ações. Blocos de
pedra que pareciam homens, dançarinos que mimavam a ação humana e peças que reavivavam
eventos mitológicos importantes – como a destruição da casa de Atreus. Assim, por virtude dos
dados que a história lhes fornecia, a teoria da arte que Platão e Aristóteles apresentavam estava
devidamente motivada por tudo aquilo que se encontrava à sua disposição. É só através desta
perspetiva que podemos perceber quão longe eles conseguiram chegar.»
Noël Carroll, Philosophy of art: a contemporary introduction, Londres, Routledge, 1999, pp. 21-22

A obra de arte não tem de representar sempre o que é belo


Mas a obra realizada pelo artista deverá ser sempre «bela», no sentido de «bonita», quer dizer, o
contrário de «feia»? Tem de se basear explicitamente na harmonia e equilíbrio entre as partes, na
perfeição do conjunto, ou poderá colher também o dissonante e até o disforme? A santíssima
trindade platónica é constituída pelo Bem, pela Verdade e pela Beleza e pertence a uma ordem ideal
para lá deste mundo, mas a tríade infernal que parece, em contrapartida, presidir aos nossos
conflitos terrenos é constituída pelo Mal, pelo Falso e pelo Feio. Será obrigação do artista aspirar
apenas a mostrar-se devoto da primeira trindade, ou também inclui na sua tarefa dar-se conta e dar-
nos conta da segunda? Tomemos por exemplo o caso de Giorgione, um dos pintores mais sublimes
do Renascimento italiano. Reproduziu muitas vezes a beleza de figuras humanas graciosas mas, no
entanto, também pintou o retrato implacavelmente fiel de uma velha desdentada e decrépita que
devia ter sido bonita na sua mocidade, porque o quadro se intitula Col tempo («Com o tempo»). Não
é um quadro que represente a beleza mas antes o que o tempo costuma fazer à beleza. E a velha
assim representada não é «bela» sob nenhum ponto de vista, nem sequer a destrutiva passagem dos
anos que a reduziu a tão triste estado físico tem nada de bonito ou de harmonioso. Traiu então
Giorgione o seu compromisso artístico com a «beleza» pintando algo que quase produz em nós
repulsa e que pode levantar negros temores se refletirmos sobre isso? Contudo, atrever-me-ia a
dizer que o quadro é artisticamente «belo», mesmo infinitamente mais belo que muitas reproduções
tópicas de paisagens adocicadas ou de alguma Miss Universo na flor da idade. Porquê?
F. Savater, As perguntas da vida, D. Quixote, 2007, pp. 232-233.

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