Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Sileno (cf. NIETZSCHE, 1992, p. 36; 401). Ou seja: a tragédia é a mais plena expressão
da condição humana que enfrenta sacrilegamente os deuses e o destino. E agora vem a
crítica de Nietzsche ao Ocidente desde Sócrates até a modernidade: a tragédia em
Eurípides expulsou o coro – a arte dionisíaca – e ficou apenas com o figurável em cena;
da mesma forma a filosofia reduziu o dionisíaco a afetos naturalistas e expulsou os
impulsos de natureza para dar primazia à retidão da razão. A essa ruptura entre o
dionisíaco e o apolíneo é que Nietzsche atribui a condição de decadência a que se chega
em seu tempo. E a única possibilidade de reconciliar o homem com a natureza – e deste
modo consigo mesmo – está numa estetização de si, aos moldes da embriaguez dionisíaca:
tornar-se obra de arte. À ruptura entre o apolíneo e o dionisíaco, que culmina com o
desprezo à sensibilidade, é preciso responder com o retorno ao não figurável da música
e, assim, romper com a primazia da individuação, própria das filosofias metafísicas do
Ser e da consciência.
1
No texto, Nietzsche narra a caçada do rei Midas, a Sileno, uma criatura mística que revela o mais cruel
segredo sobre a humanidade: “O melhor para ti é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada
ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”.
2
A nova posição acerca da subjetividade em decorrência do impacto da obra
nietzschiana: a inflexão.
3
homem está entregue às suas próprias mãos: solitário no mundo e tendo de criar a si
mesmo. Vattimo vê no anúncio nietzscheano uma crise do humanismo, “o qual se
encontra nessa condição inclusive por não poder mais resolver-se num apelo a um
fundamento transcendente” (2007, p. 18). Do anúncio da morte de Deus decorre o fim
de um humanismo fundado sob a consciência que participa da universalidade. Se não
há fundamento universal para a consciência, então não há humanidade comum aos
homens. Sem humanidade comum não haverá humanismo e, especialmente, não há
possibilidade de um projeto de formação que vise à elevação do espírito. Portanto, a
ruptura com a metafísica operada pela filosofia contemporânea põe em crise a
subjetividade e, por conseguinte, todo projeto de formação.
Ora, isso não se esgota com o discurso nietzscheano. Ao menos dois
movimentos contemporâneos levam a termo as implicações do fim da subjetividade
concebida como autodeterminação individual: a psicanálise e sua teoria do inconsciente
e o giro linguístico. A psicanálise ao apresentar a teoria do inconsciente retira do
indivíduo o possibilidade de autodeterminação, uma vez que toda a sua constituição
inscreve-se sobre uma base que, primeiramente, ele próprio não dispõe dela tal como
queira e, em segundo lugar, porque sua base inconsciente determina seu
comportamento e suas escolhas com maior ênfase do que aquilo que lhe é disposto
como consciente. O que a psicanálise faz é abater desde a origem todo o orgulho
humanista, que pretendia alcançar uma condição racional tal que colocasse o homem
para além de qualquer resignação à natureza. Ao invés de tal determinação racional
sobre a natureza, a psicanálise apresenta um homem muito mais determinado pelas
experiências recalcadas – que se traduzem em pulsões – e tendo de aprender a
equilibrar-se entre suas determinações de ordem inconsciente e suas escolhas
pretensamente conscientes. O homem concebido pela psicanálise com certeza está
muito mais próximo daquele das pulsões nietzscheanas, que se elabora entre os
instintos de natureza e sua racionalidade, do que aquele pretendido pelo humanismo.
Já o giro linguístico desloca da consciência para a linguagem toda a possibilidade de
conhecimento e de atribuição de significado. A subjetividade centrada na consciência
vê-se desprovida de toda possibilidade de apreender significados em si, e precisa
descentrar-se para, na linguagem, negociar significações com seus interlocutores. O
pensamento – tal como o concebera Descartes – perde sua conotação de centralidade
do entendimento e passa a depender da linguagem. Ao invés do solipsismo do sujeito,
a filosofia passa a ocupar-se com o que se pode existir para além da consciência
individual: a significação construída na linguagem, ou seja, na relação entre sujeitos.
Daí o deslocamento da atenção dada à subjetividade para uma preocupação prioritária
com a intersubjetividade.
4
Em questão está a possibilidade ou não de ainda sustentar alguma concepção
de subjetividade após a ruptura com a metafísica. Veja-se uma possível classificação
das abordagens filosóficas sobre a subjetividade ao longo do século XX a partir da
análise de Axel Honneth em seu livro Crítica del agravio moral: patologias de la sociedad
contemporánea. No artigo Autonomia descentrada, Honneth destaca a psicanálise e o
giro linguístico como determinantes para o fim da concepção moderna de subjetividade:
“com estes dois movimentos intelectuais se destrói desde suas vertentes a ideia clássica
de subjetividade ligada normativamente à ideia de autodeterminação individual” (2009,
p. 276)2. A partir daí o autor aponta três posições tomadas na filosofia atual como
possíveis respostas à questão da subjetividade: a) a primeira posição assume o
descentramento radical do sujeito e abandona todo o ideário da autonomia, chegando
mesmo à morte do sujeito; b) a segunda posição, embora reconheça a crítica da
psicanálise e da filosofia da linguagem à subjetividade, assume o ideal clássico da
autonomia individual como possível e com isso mantém uma ideia transcendental de
homem; c) por fim, a terceira posição, na qual Honneth se insere, assume uma
reconstrução da subjetividade a partir das críticas já referidas e direciona-se para uma
teoria da intersubjetividade (cf. HONNETH, 2009, p. 277-278).
REFERÊNCIAS
2
Tradução própria a partir da versão de língua espanhola.