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PERSPECTIVAS DE SUPERAÇÃO DA METAFÍSICA DA CONSCIÊNCIA

Nietzsche como ponto de inflexão na Filosofia Contemporânea

Prof. Dr. Vanderlei Carbonara

Acerca de uma condição humana sensível antes de uma metafísica da


racionalidade

O pensamento filosófico da modernidade é fortemente marcado pela crença na


razão como sendo a mais plena expressão humana (a essa ideia chama-se humanismo).
Nietzsche, que faz uma ruptura com esse ideal de racionalidade, reivindicará o retorno à
sensibilidade sob a marca do espírito dionisíaco que fora esquecido com o advento da
razão. Em O nascimento da tragédia, concluído em 1871 e publicado pela primeira vez
em 1872, Nietzsche trata de dois impulsos humanos, um sensível e outro racional, e os
associa às duas divindades da arte grega: Dionísio e Apolo. A tragédia grega ática é a
expressão mais plena da condição humana, pois reúne a figuração da plasticidade apolínea
e a não figuração da música dionisíaca.

A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa


cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição,
quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico [Bildner],
a apolínea, e a arte não-figurada [unbildlichen] da música, a de
Dionísio: ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na
maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a
produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela
contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava apenas
aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato
metafísico da “vontade” helênica, apareceram emparelhados um com o
outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a
apolínea geraram a tragédia ática. (NIETZSCHE, 1992, p, 27).
É isto que a tragédia expressa: o figurável e o não figurável como uma só
expressão, o dizível e o indizível juntos, harmonia e caos a um tempo expressando a glória
e a decadência humanas. O emparelhamento entre o apolíneo e o dionisíaco expõe o
contraditório, não como um dilema a ser superado, mas como condição de compreensão
do mundo. Em Dionísio está a renúncia ao princípio da individuação e, portanto,
apresenta-se como divindade da pluralidade. Apolo apresenta-se como divindade da
unidade, cultuado como deus da individuação. Nessa reunião do contraditório entre o
apolíneo e o dionisíaco está a única possibilidade de resposta à terrível sabedoria do

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Sileno (cf. NIETZSCHE, 1992, p. 36; 401). Ou seja: a tragédia é a mais plena expressão
da condição humana que enfrenta sacrilegamente os deuses e o destino. E agora vem a
crítica de Nietzsche ao Ocidente desde Sócrates até a modernidade: a tragédia em
Eurípides expulsou o coro – a arte dionisíaca – e ficou apenas com o figurável em cena;
da mesma forma a filosofia reduziu o dionisíaco a afetos naturalistas e expulsou os
impulsos de natureza para dar primazia à retidão da razão. A essa ruptura entre o
dionisíaco e o apolíneo é que Nietzsche atribui a condição de decadência a que se chega
em seu tempo. E a única possibilidade de reconciliar o homem com a natureza – e deste
modo consigo mesmo – está numa estetização de si, aos moldes da embriaguez dionisíaca:
tornar-se obra de arte. À ruptura entre o apolíneo e o dionisíaco, que culmina com o
desprezo à sensibilidade, é preciso responder com o retorno ao não figurável da música
e, assim, romper com a primazia da individuação, própria das filosofias metafísicas do
Ser e da consciência.

Vejo Apolo diante de mim como o gênio transfigurador do principium


individuationis, único através do qual se pode alcançar de verdade a
redenção na aparência, ao passo que, sob o grito de júbilo místico de
Dionísio, é rompido o feitiço da individuação e fica franqueado o
caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas.
(NIETZSCHE, 1992, p. 97).
Será preciso desfazer todo o edifício da cultura apolínea, diz o autor, para que se
torne possível vislumbrar novamente o emparelhamento entre sensibilidade e razão, entre
os impulsos dionisíaco e apolíneo. Deste modo, somente um retorno ao dionisíaco
possibilitará romper as amarras da razão que afastam o homem de si mesmo e o jogam
numa condição de decadência e fraqueza.
Em Nietzsche, a crítica à determinação da razão sobre a sensibilidade só pode ser
superada pelo retorno ao impulso abandonado. Portanto, a tensão e a contraditoriedade
entre ambos os impulsos é condição para que o homem alcance a plenitude do espírito.
No primeiro discurso de Zaratustra (cf. NIETZSCHE, 2003), as metamorfoses apontam
para o racional (espírito de leão) como condição de superação da subjugação (espírito de
camelo), e depois para a inocência natural (espírito de criança) que impede o
embrutecimento racional e garante a abertura ao novo, própria de um espírito sensível.

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No texto, Nietzsche narra a caçada do rei Midas, a Sileno, uma criatura mística que revela o mais cruel
segredo sobre a humanidade: “O melhor para ti é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada
ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”.

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A nova posição acerca da subjetividade em decorrência do impacto da obra
nietzschiana: a inflexão.

A filosofia da modernidade deslocou seu fundamento da metafísica do ser para


a metafísica da consciência e, com isso, deu à subjetividade um caráter de centralidade.
Do cogito cartesiano (“Penso, logo existo”, que indica um fundamento da realidade na
consciência), passando pela autonomia kantiana, até a dialética do esclarecimento
hegeliana, a filosofia moderna constitui-se um humanismo que colocou o homem no
centro da razão e, como tal, no centro do universo. A possibilidade de elevar-se de um
estado de natureza para um estado racional – tarefa então atribuída à educação –
coloca o homem em vias de um esclarecimento absoluto. A consciência dá ao sujeito a
possibilidade de acesso à verdade, que o orientará em todos os assuntos, quer seja nas
ciências, na moral ou nas artes. Com a filosofia da consciência substitui-se o
fundamento ontológico pelo fundamento gnosiológico. Ou seja: o que antes era
estruturado como uma filosofia sustentada no Ser, na modernidade sustenta-se nas
condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro (objeto da consciência).
Nietzsche é um dos principais responsáveis por colocar em crise a subjetividade
moderna; portanto, por provocar a ruína do conceito de sujeito. Ao denunciar o modo
como a dimensão apolínea suplantou a dionisíaca, Nietzsche está, conforme afirma em
seu Sobre o nascimento da tragédia, destruindo (ou desconstruindo) o edifício da cultura
apolínea. E destruir tal edifício significa retirar os fundamentos metafísicos postos, tanto
ao longo do pensamento grego, quanto na modernidade. Toda pretensão de uma razão
universal, segundo o autor, sustenta-se num predomínio do apolíneo em detrimento
dionisíaco. Nietzsche está em busca de um outro homem, que conjuga ambos os
impulsos e o expressa em sua vontade de potência. O homem nietzscheano não se
constitui sobre bases ônticas e morais, mas expressa-se como fenômeno estético.
Trata-se de um homem com poder criador: a vontade de poder (ou vontade de potência)
se dá num horizonte inteiro de possibilidades de criação, sem fundamentos prévios que
determinem qualquer coisa de seu caráter ou de algum fim a ser alcançado. Mas este
homem só pode nascer a partir de uma ruptura, que toma forma a partir da negação de
todas as bases metafísicas que sustentam o homem racional e que se traduz em sujeito
moral. Daí as implicações da morte de Deus ao nascimento do homem. O anúncio do
homem louco, descrito no aforismo 125 de A gaia ciência – “Deus está morto! Deus
continua morto! E nós o matamos!” (2001, p. 148) – deve também ser entendido como
o anúncio da morte do sujeito moral e do humanismo. Com a morte de Deus encerram-
se os fundamentos metafísicos e o homem está relegado a fazer de si aquilo que ele
mesmo for capaz, sem uma razão à qual ele possa acessar e tornar-se partícipe. O

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homem está entregue às suas próprias mãos: solitário no mundo e tendo de criar a si
mesmo. Vattimo vê no anúncio nietzscheano uma crise do humanismo, “o qual se
encontra nessa condição inclusive por não poder mais resolver-se num apelo a um
fundamento transcendente” (2007, p. 18). Do anúncio da morte de Deus decorre o fim
de um humanismo fundado sob a consciência que participa da universalidade. Se não
há fundamento universal para a consciência, então não há humanidade comum aos
homens. Sem humanidade comum não haverá humanismo e, especialmente, não há
possibilidade de um projeto de formação que vise à elevação do espírito. Portanto, a
ruptura com a metafísica operada pela filosofia contemporânea põe em crise a
subjetividade e, por conseguinte, todo projeto de formação.
Ora, isso não se esgota com o discurso nietzscheano. Ao menos dois
movimentos contemporâneos levam a termo as implicações do fim da subjetividade
concebida como autodeterminação individual: a psicanálise e sua teoria do inconsciente
e o giro linguístico. A psicanálise ao apresentar a teoria do inconsciente retira do
indivíduo o possibilidade de autodeterminação, uma vez que toda a sua constituição
inscreve-se sobre uma base que, primeiramente, ele próprio não dispõe dela tal como
queira e, em segundo lugar, porque sua base inconsciente determina seu
comportamento e suas escolhas com maior ênfase do que aquilo que lhe é disposto
como consciente. O que a psicanálise faz é abater desde a origem todo o orgulho
humanista, que pretendia alcançar uma condição racional tal que colocasse o homem
para além de qualquer resignação à natureza. Ao invés de tal determinação racional
sobre a natureza, a psicanálise apresenta um homem muito mais determinado pelas
experiências recalcadas – que se traduzem em pulsões – e tendo de aprender a
equilibrar-se entre suas determinações de ordem inconsciente e suas escolhas
pretensamente conscientes. O homem concebido pela psicanálise com certeza está
muito mais próximo daquele das pulsões nietzscheanas, que se elabora entre os
instintos de natureza e sua racionalidade, do que aquele pretendido pelo humanismo.
Já o giro linguístico desloca da consciência para a linguagem toda a possibilidade de
conhecimento e de atribuição de significado. A subjetividade centrada na consciência
vê-se desprovida de toda possibilidade de apreender significados em si, e precisa
descentrar-se para, na linguagem, negociar significações com seus interlocutores. O
pensamento – tal como o concebera Descartes – perde sua conotação de centralidade
do entendimento e passa a depender da linguagem. Ao invés do solipsismo do sujeito,
a filosofia passa a ocupar-se com o que se pode existir para além da consciência
individual: a significação construída na linguagem, ou seja, na relação entre sujeitos.
Daí o deslocamento da atenção dada à subjetividade para uma preocupação prioritária
com a intersubjetividade.

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Em questão está a possibilidade ou não de ainda sustentar alguma concepção
de subjetividade após a ruptura com a metafísica. Veja-se uma possível classificação
das abordagens filosóficas sobre a subjetividade ao longo do século XX a partir da
análise de Axel Honneth em seu livro Crítica del agravio moral: patologias de la sociedad
contemporánea. No artigo Autonomia descentrada, Honneth destaca a psicanálise e o
giro linguístico como determinantes para o fim da concepção moderna de subjetividade:
“com estes dois movimentos intelectuais se destrói desde suas vertentes a ideia clássica
de subjetividade ligada normativamente à ideia de autodeterminação individual” (2009,
p. 276)2. A partir daí o autor aponta três posições tomadas na filosofia atual como
possíveis respostas à questão da subjetividade: a) a primeira posição assume o
descentramento radical do sujeito e abandona todo o ideário da autonomia, chegando
mesmo à morte do sujeito; b) a segunda posição, embora reconheça a crítica da
psicanálise e da filosofia da linguagem à subjetividade, assume o ideal clássico da
autonomia individual como possível e com isso mantém uma ideia transcendental de
homem; c) por fim, a terceira posição, na qual Honneth se insere, assume uma
reconstrução da subjetividade a partir das críticas já referidas e direciona-se para uma
teoria da intersubjetividade (cf. HONNETH, 2009, p. 277-278).

REFERÊNCIAS

HONNETH, Axel. Crítica del agravio moral: Patologías de la sociedad contemporánea.


Trad. Peter Storandt Diller. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, Universidad
Autónoma Metropolitana, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
________ O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 2. ed. Trad. J.
Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
________ Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 12. ed. Trad.
Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-
moderna. 2 ed. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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Tradução própria a partir da versão de língua espanhola.

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