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ARTE, ANGÚSTIA E PANDEMIA (título provisório)

Resumo: A presente pesquisa divide-se em três partes: a primeira, baseada nos escritos de Deleuze &
Guatarri, trata-se da arte e do papel do artista contra a opinião, trazendo recortes do caos ao sensível afim
de provocar afetos. Na segunda parte, tratará do conceito de angústia para Heidegger como fundamental
para a saída do homem da decadência. Na terceira parte, apresentará uma saída para o estado de angústia,
presente no momento de pandemia, através da concepção de afetos a partir da criação e da experiência
estética.

O artista contra a opinião

"Se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de


impossibilidades, não é um criador. Um criador é alguém que cria suas
próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possível. ... É preciso
escrever líquido ou gasoso, justamente porque a percepção e a opinião
ordinárias são sólidas, geométricas." (Deleuze, 1992, p. 167)

‘’O olho vê o mundo, e o mundo que falta para ser quadro, e o que falta ao
quadro para ser ele próprio, e sobre a paleta, a cor que o quadro espera. E ver
uma vez feito o quadro que responde essas faltas, e ver nos quadros dos
outros, as respostas ás outra e outras faltas’’ (Merleau Ponty, 2014, p.)

Em 1991, Deleuze e Guattari publicam “O que é Filosofia?”, onde


estabelecem as condições necessárias para a realização da atividade filosófica – quando
a filosofia faz surgir acontecimentos a partir da criação de conceitos. Também
diferenciam a atividade filosófica da artística e científica.

Enquanto a filosofia quer “salvar o infinito” sob a ação de personagens


conceituais, que elevam até o infinito conceitos e eventos consistentes, a ciência abre
mão do infinito para ganhar referência, traçando um plano de coordenadas indefinidas,
afim de definir o estado das coisas sob a ação de observadores parciais; arte quer criar
um finito que restitua o infinito através de personagens estéticos. A arte, a filosofia e a
ciência têm um ponto de intersecção comum: na luta contra a opinião, através de um
plano secante que o atravessa (Deleuze & Guatari, 1991, p. 186). Mas apesar deste
cruzamento, elas se entrelaçam sem síntese nem identificação, sendo que um rico tecido
de correspondências pode estabelecer-se entre os planos criados.

Nós nos encontramos e vivemos com a arte no dia-a-dia, mas não


percebemos, pois ela não é palpável, e nem visível. Por isso o trabalho do artista é trazer
esse invisível para o mundo. O artista traz do caos variedades, que não constituem mais
uma reprodução do sensível no órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da
sensação, sobre um plano de composição, anorgânica, capaz de restituir o infinito (1991,
p. 187). Através da criação de personagens estéticos, recortes do mundo, o artista torna
o caos sensível para re-significar o mundo através de fragmentos do infinito.

Sobre isso, vale dedicar um tempo ao estudo de Deleuze sobre o cinema.


O filósofo francês via o artista cinematográfico como um criador de conceitos através
de imagens capazes de afetar o corpo e a mente do espectador. O que é demandado do
espectador para que veja, compreenda e aprecie um filme, uma imagem, etc? Deleuze
parte da teoria dos afetos.

A proposta é de entender o pensamento na contramão da filosofia


clássica, para além da imagem dogmática (imagem racionalista da filosofia). O
pensamento precisa de algo que o force a acontecer, que saia de sua imobilidade. O
cinema é o maior representante deste movimento, ao colocar de forma automática
imagens que se sobrepõe umas às outras,

“É somente quando o movimento se torna automático que a essência artística


da imagem se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar
vibrações ao córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral. Porque a
própria imagem cinematográfica ‘faz’ o movimento, porque ela faz o que as
outras artes se contentam em exigir (ou em dizer), ela recolhe o essencial das
outras artes, herda o essencial, é como o manual de uso das outras imagens,
converte em potência o que ainda só era possibilidade.” (DELEUZE, 2007, p.
189)

Deste modo, a arte afeta o espectador tanto na sua subjetividade quanto


no seu corpo, como um potencializador da capacidade de pensar do ser humano. O
filósofo considera a importância do cinema por sua capacidade de provocar o
surgimento do autômato espiritual, ou seja, de forçar o surgimento de ideias em quem é
afetado pelas imagens e não o contrário.
A ideia de afeto em Deleuze vem do conceito de afeição em Espinosa. A
afeição recai sobre as coisas, mas é uma forma de pensamento que vem do nada. Um
exemplo disso é o querer, pois sempre colocamos o querer sobre algo, entretanto, o fato
isolado de querer é um pensamento vinculado ao nada. Ele define o afeto como “a
variação contínua da força de existir na medida em que essa variação é determinada
pelas idéias que se tem.” (ESPINOSA, 1978, p.16)

Quando desequilibramos, somos obrigados a criar. A criação é sempre


uma resposta para uma inquietação. É uma expressão ao mundo que me rodeia. Quando
crio, e a minha criação vai para o mundo, o mundo muda, o outro muda, e eu mudo
também.

A filosofia, a ciência e a arte servem de armas na luta contra o caos


"Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos.

Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a


si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas
pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos.
(DELEUZE, 1991, p.)

Porém, na guerra contra o caos e a angústia gerada por ele, o artista é


obrigado a “aliar-se ao inimigo” para enfrentar um inimigo maior: a opinião pronta.
Deleuze e Guattari exemplificam a opinião como um guarda-sol que nos protege do
caos, onde o artista é aquele quem faz furos em direção ao firmamento, para retirar do
caos recortes e torna-los visíveis através da experiência estética.

Precisamos das opiniões e nos agarramos à elas para termos um pouco de


ordem nas nossas ideias. Isso não seria possível se não houvesse também uma ordem no
mundo.

"Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora pesado..., minha
imaginação não encontraria a ocasião para receber, no pensamento, o pesado
cinábrio com a representação da cor vermelha." (DELEUZE, 1991, p.)

Mas quando tudo se desestabiliza, como ocorreu a partir da pandemia da


COVID-19 em março 2020, onde a rotina, os horários, a vida, enfim, obrigaram o
mundo a mudar de forma não-espontânea; e o medo da morte, a incerteza pelo futuro, a
falta de um diagnóstico de cura (que é tão danoso ao enfermo quanto a própria doença),
causaram prejuízos ainda incalculáveis à saúde pública, sem previsão da diminuição do
número de casos para doenças mentais, das quais falaremos mais à frente.

O guarda-sol que nos protege do caos continua agindo, desta vez de


forma cada vez mais virtual, porém, a forma de vencê-lo parece permanecer atual: no
mergulho no caos e vencê-lo através de um plano secante que o atravessa.

(aqui, relatar e refletir sobre exemplos de artistas que atravessam o caos


para tirar deles novas formas de se relacionar com o mundo na pandemia, trazendo a
arte para o virtual em busca de provocar encontros e afetos)

...

Angústia

Como “apropriar-se de seu ser”, como queria Heidegger, ao definir o


estado de angústia onde os homens têm a possibilidade de sair da decadência através
desta abertura que o permite interpretar-se a partir de si mesmo? A angústia coloca o
homem frente a frente consigo mesmo, sendo o momento para se ver assim como é.
Assumir com propriedade o seu ser implica na liberdade de estar só consigo diante do
nada. A compreensão da finitude, do esvaziamento de significado da existência, coloca
o ser diante do poder do mundo sobre ele. E é nesta situação que há o romper com o
mundo e o estar face a face consigo. É neste espaço que há a realização do ser aí, onde
surgem as potências do poder-ser.

“disposição fundamental porque além do caráter de singularização da


existência do homem, ela abre para ele a possibilidade de sair da decadência
e de se apropriar de seu ser. A angústia é a abertura que permite ao homem
interpretar-se a partir de si mesmo e não a partir da publicidade do mundo.
Na verdade a angústia retira o mundo do homem e lhe restitui o ser-no-
mundo, aí o homem não tem como escapar de si e fugir para o mundo, ele
está face a face consigo; esse é o momento de se ver assim como se é. Na
medida em que o homem está só consigo e que apenas ele pode realizar o seu
ser, ele se singulariza como ser-no-mundo, como ser livre capaz de assumir
com propriedade ou impropriedade o seu ser.” (HEIDEGGER, 2000, p.)

O perigo insuportável é a vulnerabilidade ontológica, desestabiliza tudo


que acreditamos. O angustiar-se é angustiar ante nada, ante o mundo enquanto mundo.
A existência como um todo se encontra uma situação problemática. Confronta a a
nadidade estrutural. O nada que ameaça o tecido existencial. E quando a angustia
aparece, não está mais em questão a mortalidade ôntica, mas sim com a condição de ser.

A psicologia dasein analítica, vê no temor o rastro da angústia,


procurando seguir esse rastro e aprofundar a experiência. Pois há um caráter
transformador nesse rastro. Abrir a possibilidade do outro com o fundo do temor, que é
a fuga da mortalidade.

Mas ao contrário do que sugere Heidegger, a partir da pandemia de


COVID-19, o homem não fica face a face consigo para poder se ver assim como se é.
Isolar-se se torna obrigatório, a imagem de si passa a ser controlada pelas telas e pela
memória. É preciso evitar o outro no mundo real enquanto o procura pelo virtual. Ao
contrário de singularizar-se como ser-no-mundo, torna-se cada vez mais intocável, cada
vez mais “em outro lugar” através das redes sociais, indo de encontro à ideia de cuidar
do seu ser e estar aberto às suas possibilidades, não sendo apenas objeto, mas também
sujeito da maquinação tecnológica. Para Heidegger,

“a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por isso
nunca experimentaremos nossa relação para com a sua essência enquanto
somente representarmos e propagarmos o que é técnico, satisfizercemos-nos
com a técnica ou escaparmos dela. Por todos os lados, permaneceremos, sem
liberdade, atados a ela, mesmo que a neguemos ou a confirmemos
apaixonadamente. Mas, de modo mais triste, estamos entregues à técnica
quando a consideramos como algo neutro, pois essa representação, à qual
hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos torna
completamente cegos perante a essência da técnica. ”

A tecnologia não é algo ruim, porém, sua reprodução passiva pode levar
o ser a uma vida de subserviência e repetição automática, de sujeição às coisas,
deixando de lado justamente o cuidado de si e as possibilidades de ser.

Assim como o filósofo alemão, outro pensador que escreveu sobre o


cuidado de si foi Michel Foucault. Para Foucault, o cuidado de si é uma prática
constante e para a vida, como um olhar para si de forma crítica

“Ocupar-se consigo mesmo tornou-se de modo geral, o princípio de toda


conduta racional, em toda forma de vida ativa que pretendesse, efetivamente,
obedecer ao princípio da racionalidade moral. A inquietação a ocupar-se
consigo mesmo alcançou, durante o longo brilho do pensamento helenístico e
romano, uma extensão tão grande que se tornou, creio, um verdadeiro
fenômeno cultural de conjunto”

Foucault também desenvolve o conceito de biopolítica, sendo o nosso


tempo a era onde se politizou o fenômeno da vida por meio da gestão dos poderes, tanto
técnicos como políticos. Isso fica visível no controle da própria gestão da pandemia,
onde um governo pode negar às pessoas informações, diagnósticos e testes. Em certos
momentos, afirmando que apenas o grupo de risco seria atingido, em outros, o pânico
social em decorrência das milhares de mortes causadas por um vírus invisível. Quando o
poder político assume o direito de omissão diante do incontável número de casos de
uma doença, temos um exemplo forte de biopolítica; para que tamanho número de
mortes seja aceitável, é preciso que se atribua diferentes valores à diferentes corpos.

Porém, para um enfermo, que liberdade é possível experimentar diante da


incerteza do diagnóstico? A epidemia de COVID-19, que obrigou o mundo a se
reorganizar, também desorganizou o corpo – a falta de um diagnóstico, de uma data
para o fim do sofrimento, o estender dos dias em confinamento, o atravessamento pelo
medo da morte, pois mesmo aqueles que não estivessem contaminados continham em si
a potência de estar doentes, traz consigo a potencialização do estado de angústia ao
aproximar o ser da morte; cuidar de si e, em consequência, do outro, implica
paradoxalmente do afastamento, obrigando o corpo a abster-se do contato e dos afetos.

Diante deste paradoxo, o corpo, muito importante para Foucault, para


quem “o corpo é o ponto zero do mundo”, pois é a partir dele temos a capacidade de
afetar e sermos afetados, sentir, ouvir e sermos ouvidos, passa a existir mediado pela
tecnologia, para além do toque, correndo o risco de existir apenas em telas de celulares,
fotos, luzes e sombras virtuais, reconfigurando o modo como se socializam, se
imaginam e se constroem as relações e a própria subjetividade dos sujeitos.

As vezes o adoecer é o contemporâneo do seu próprio tempo. Pois mostra


os perigos e consequências das vidas ‘’perfeitas’’, as sombras do nosso tempo. Desses
mal estares, que despertam as tonalidades afetivas como incerteza, temor, tedio, solidão.
Coisa que não podem aparecer no mundo técnico. Esta estetização radical do corpo e de
si, da criação virtual de uma imagem perfeita, pode descambar para o lugar biopolítico
da valoração e hierarquização dos corpos alertada por Foucault.
Fica-se, então, entre o utópico-virtual e o tédio? Essa conclusão fica
muito aquém de superar qualquer estado de angústia imaginado. Faz-se necessário,
então, buscar o equilíbrio entre o coração e o corpo, para que não se deseje cair na
armadinha onde a utopia de si se torne uma distopia, ao mesmo tempo que não se aceite
uma vida assujeitada ao tédio; mas à criação de espaços favoráveis à vida, à liberdade e
a construção de sujeitos autênticos capazes de superar o assujeitamento e criar
possibilidades de cuidado de si e dos outros. A arte, por exemplo, nos traz exemplos
desta negação de aceitar a biopolítica de morte ao criar diversas formas de trazer o afeto
de volta à vida durante o isolamento social, o medo da morte e a falta de diagnóstico
impostos pela pandemia.

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