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Rafael Silva
1
Segundo Deleuze, para Leibniz “dois acontecimentos são compossíveis quando as séries que se
organizam em torno de suas singularidades se prolongam umas às outras em todas as direções,
incompossíveis quando as séries divergem na vizinhança das singularidades componentes, [...] mas
desta regra de incompossibilidade, Leibniz se serve para excluir os acontecimentos uns dos outros:
da divergência ou da disjunção, ele faz um uso negativo ou de exclusão. [...] Falamos ao contrário, de
uma operação a partir da qual duas coisas ou duas determinações são afirmadas por sua diferença.
[...] Trata-se de uma distância positiva dos diferentes, [...] de uma distância positiva enquanto
distância. [...] Cada termo torna-se um meio de ir até ao fim do outro, seguindo toda sua distância, [...]
a divergência cessa de ser um princípio de exclusão, a disjunção deixa de ser um meio de separação,
o incompossível é agora um meio de comunicação” (DELEUZE, 2015, p. 177-180).
1 - Livre. O que foi que aconteceu?2
No ano de 2010 recebi um convite para participar como músico de uma
exposição de um artista visual - foi um convite a partir de um amigo, que foi
convidado por um amigo que eu não conhecia. Aceitei. O espaço era uma galeria de
arte, situação totalmente nova para mim, acostumado aos palcos bem delimitados
colocando cada um no seu lugar, artistas e público. Quando cheguei na galeria já
tinha algo acontecendo; esse algo envolvia um pintor pintando enquanto uma poeta
poetizava e um baterista tocava; eu que também tocava bateria fui atraído para bem
perto dele, como o limite era a própria bateria e ele, pude me aproximar bem, quase
que encostá-los. Coloquei-me a ouvir e observar. Foi um choque!
A maneira dele de tocar era tão diferente de qualquer memória ou modelo
que eu conseguia acessar em mim do que era tocar bateria, do que se fazia com
uma bateria, que eu me perguntava: Esse cara sabe ou não sabe tocar? Ele estudou
muito e toca assim? Ele nunca tocou bateria e está tocando assim? O que ele está
fazendo? Por quê? Para que ele toca assim?
Descobri que o que ele estava fazendo era uma prática musical chamada
improvisação livre. Desde então me dedico a essa prática.
Foi um desmoronamento. Foi um acontecimento. Continua - Questão de
tempo.
É sempre um acontecimento que nos leva a nos perguntarmos: o
que foi que aconteceu? E agora, o que vai acontecer? [...] Acontece
alguma coisa que muda tudo, que desloca as potências e as
capacidades. O acontecimento [...] é uma redistribuição das
potências, [...] através do acontecimento, tudo recomeça, mas de
outro modo; somos redistribuídos, às vezes reengendrados até de
modo irreconhecível. Tudo se repete, mas distribuído de outro modo,
repartido de outro modo, nossas potências sendo incessantemente
revolvidas, retomadas, segundo novas dimensões (LAPOUJADE,
2015, p. 67-68).
Tudo que eu até então conhecia como música, como fazer música, como
ouvir música, como relacionar-me com a música entrou em colapso, qualquer noção
de base, de fundamento, desabou. Se tudo mudou, como continuar? Como
relacionar-me com o fazer musical? Como relacionar-me com o instrumento que
estou utilizando para esse fazer? Como relacionar-me com meu corpo nesse fazer,
com noções como identidade, linguagem, propriedade, tempo, sistemas, estruturas,
formas, técnicas, funções, significados, com as relações mesmo...? Então que
2
O título faz referência ao platô 8: 1874 – Três novelas ou “O que se passou?”, que compõe o volume
3 da edição brasileira de Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, publicado pelo Editora 34.
continuar não quer dizer continuar o mesmo, repetir não é mais uma ação ligada à
semelhança. Continua-se a repetir a diferença em uma aventura viva do sentido.
Se me parece necessária essa introdução é para explicitar que trato aqui de
questões vitais; questões que começaram pela problematização, pela complicação
de minhas atividades musicais, fenderam seus limites e seguem com a vida. Não
pretendo contar uma história particular de como um pensamento abstrato individual
surgiu descolado da vida pretendendo-se sobre ela; mas sim fazer também do texto
criação de sentido, uma entrada, apresentar como um encontro com uma prática
artística – que chamarei aqui de Improvisação livre 3 - e sua experimentação segue
atravessando, provocando mudanças em minhas maneiras de viver. Escrevo aqui
de música, mas não só.
Produzir uma nova música, um novo tipo de amor, uma relação
inédita com o social, com a animalidade [...] gerar uma nova
composição ontológica correlativa a uma nova tomada de
conhecimento sem mediação, através de uma aglomeração pática
de subjetividade, ela mesma mutante (GUATTARI, 2012, p. 83).
Nos percursos de minhas questões encontrei parceiros e parceiras de
práticas, de conversas, de escutas e inquietações. Vislumbrei uma multidão em mim
que se faz e desfaz, que não para de se fazer e ligar-se num fora intensivo,
um emaranhado de perspectivas que são como que individualidades
‘fortuitas’. Tais individualidades se comunicam entre si através da
distância que as separa [...]. Nos tornamos sujeitos nômades,
incessantemente descentrados em relação a nós mesmos,
eternamente passando de uma individualidade a outra
(LAPOUJADE, 2015, p. 94).
Importante desde agora fazer uma aproximação aos conceitos conforme
aparecem no texto. O conceito de Fora pode ser uma das chaves para a entrada na
filosofia de Deleuze e Guattari e bastante caro ao pensamento da prática artística
em questão. Para eles o Fora não está fora - não é transcendente - mas é um Fora -
uma zona comum do real - que tomado dessa maneira faz funcionar a Imanência,
o(s) plano(s) de imanência a partir de onde é possível tomar as diferenças enquanto
3
Free improvsation, free music, improv, composição em movimento, composição instantânea,
improvisação não idiomática, música livre; esses são alguns nomes atribuídos à prática musical em
questão. Nesta pesquisa decidi utilizar o nome improvisação livre por encontrar entre essas palavras
uma relação ativa e afirmativa, pelas relações entre as forças sob essas palavras, uma afirmando-se
enquanto afirma a outra, lançando e duplicando essas forças. Como o encontro entre Dionisio e
Ariadne que Deleuze (2011, p. 134) apresenta: “É que Dionisio é o deus da afirmação; ora, é
necessária uma segunda afirmação para que a própria afirmação seja afirmada. É preciso que ela se
desdobre para poder redobrar. [...] Dionisio é a afirmação do Ser, mas Ariadne é a afirmação da
afirmação, a segunda afirmação ou o devir-ativo. [...] Ariadne precisa ter orelhas como as de Dionísio,
a fim de ouvir a afirmação dionisíaca, mas também precisa responder à afirmação ao ouvido do
próprio Dionisio”.
diferenças, o fora é um meio. Em seu artigo “Deleuze e a atualidade: experiência do
fora e invenção de novas formas de existência” (2017), Ramon T. P. Brandão
oferece uma análise desse conceito:
Fazer do pensamento e da arte uma ‘experiência do fora’ pressupõe
certo contato com a violência que nos tira do campo da recognição,
do reconhecimento, e nos lança sobre o desconhecido, lugar onde
nada é previsível e onde nossas relações com o senso comum são
absolutamente rompidas, abalando nossas certezas e nossas
verdades. [...] A experiência do fora nos coloca, portanto, diante do
real, mas não nos coloca para continuarmos seguindo seus
pressupostos, suas repetições, reafirmando o senso comum. Se o
vínculo do homem com o mundo é ali restabelecido, é antes para
que se possa resistir e transformar o que está dado, do que para
reiterá-lo e repeti-lo. Afinal, é exatamente isso que fazem [...] os
artistas e os filósofos quando rompem com o senso comum, nos
fazendo sentir o que jamais havíamos sentido e pensar o que jamais
havíamos pensado.
Percorrendo essas distâncias encontrei estes dois nomes que não pareciam
falar especificamente de música e talvez por isso mesmo pareciam dizer de algo
muito colado no que se passava comigo nessa procura do que atravessa, de fazer
existir alguma coisa que mesmo quando nomeada escapa ao nome e que se dava a
partir de minhas experimentações musicais. Gilles Deleuze e Félix Guattari com sua
filosofia da diferença, seu pensamento insatisfeito com o que parece dado, com os
limites do senso comum e do bom senso, sopraram oxigênio num braseiro
realimentando um incêndio em mim, uma força leve, de “fazer dançarem os tetos,
oscilarem as vigas” como afirma Deleuze (2011, p. 135), de fazer cair a casa; e
continua:
Para que a música se libere será preciso passar para o outro lado, ali
onde os territórios tremem ou as arquiteturas desmoronam, onde os
etos se misturam, onde se desprende um poderoso canto da Terra.
[...] Dionísio já não conhece outra arquitetura senão a dos percursos
e trajetos (DELEUZE, 2011, p. 135).
A casa, o teto, as vigas, a arquitetura e suas funções, sustentar e ser
sustentado, suportar e carregar, dizem das estratificações sobre o CsO;
apresentarei com maior cuidado essa relação no capítulo 4 do presente texto, mas
me parece importante desde agora trazer essa questão em uma citação de Deleuze
(2011, p. 129-133) quando utiliza de sua leitura de Nietzsche - sua teoria do
“homem superior”, aqui, Teseu e de sua relação com Dionísio, afirmação pura, e
Ariadne, alma - para apresentar seu ponto de vista do que é afirmar, da prática
afirmativa e todo um percurso de transmutação, de liberação dessa prática de
domínios transcendentes, que percorre sua filosofia e compõe sua crítica da
representação assim como sua crítica do juízo:
O homem superior pretende levar a humanidade à perfeição, ao
acabamento. Pretende recuperar todas as propriedades do homem,
superar as alienações, realizar o homem total, pôr o homem no lugar
de Deus, fazer do homem uma potência que afirma e que se afirma.
Mas na verdade o homem, mesmo superior, não sabe em absoluto o
que significa afirmar. [...] Acredita que afirmar é carregar, assumir,
suportar uma prova, encarregar-se de um fardo. Avalia a positividade
conforme o peso daquilo que carrega: confunde a afirmação com o
esforço de seus músculos tensos. [...] Dionísio-touro é a afirmação
pura e múltipla, a verdadeira afirmação, a vontade afirmativa; ele
nada carrega, não se encarrega de nada, mas alivia tudo o que vive.
[...] Ele é o Leve, que não se reconhece no homem, sobretudo no
homem superior ou no herói sublime, mas só no além-do-homem, no
além-do-herói, em outra coisa que não o homem.
Nesta pesquisa posso dizer que Deleuze e Guattari, seus conceitos, sua
criação filosófica, são os principais aliados; é nesta teia que me encontro, é destas
leituras que tomo a prática crítica, os conceitos de representação, diferença,
acontecimento, corpo sem órgãos, plano, pensamento maquínico - e outros que
aparecerão no decorrer do texto – para compor um combate-entre4.
Outro encontro alegre nesses trajetos de processos
artísticos/estudos/pesquisas foi com as publicações do artista/pesquisador/Prof. Dr.
Rogério Costa, que à sua maneira conectou as questões surgidas de sua prática em
improvisação livre com o a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Seu livro
“Música Errante: o jogo da improvisação livre” foi especialmente importante 5. Trago
aqui respostas a duas perguntas de Costa (2016, p. 1) que apontam aberturas de
trajetos que esta crítica percorrerá: “sob que ponto de vista a improvisação pode ser
4
É possível encontrar nesse conceito de combate a própria prática crítica da qual trato aqui. Deleuze
distingue dois tipos de combate: combates-contra e combates-entre, onde os primeiros só são
possíveis porque o combatente trava combates-entre si. “O combate-contra procura destruir ou repelir
uma força [...], mas o combate-entre [...] trata de apossar-se de uma força para fazê-la sua. O
combate-entre é o processo pelo qual uma força se enriquece ao se apossar de outras forças
somando-se a elas num novo conjunto, num devir [...], é essa poderosa vitalidade não orgânica que
completa a força com a força e enriquece aquilo de que se apossa” (DELEUZE, 2011, p. 169-171).
5
COSTA, Rogério. Música errante: o jogo da improvisação livre. 1. ed. Perspectiva; FAPESP, São
Paulo, 2016. Em seu livro o Prof. Dr. apresenta a improvisação livre como possibilidade a partir de
uma perspectiva historiográfica da música ocidental, o que para esta pesquisa, como apresentarei no
decorrer do texto, é o mesmo que tratar dessa prática a partir dos domínios da representação;
COSTA (2016, p. 2) também apresenta uma possível definição dessa maneira de fazer musical:
“pode-se dizer que a improvisação livre é o avesso de um sistema, uma espécie de anti-idioma; [...] A
livre improvisação também pode ser pensada enquanto uma pragmática musical aberta à variação
infinita em que os sistemas e as linguagens deixam de impor suas gramáticas abstratas e se rendem
a um fazer fecundo, a um tempo em estado puro, não causal, não hierarquizado, não linear”.
livre? Livre de quê afinal?” Sob o ponto de vista das diferenças enquanto diferenças
e livre do domínio da representação.
Deste ponto de vista não procurarei definir a improvisação livre, nem ligá-la a
um processo histórico da música como relação causal, o que não significa que estou
jogando fora a(s) história(s) da(s) música(s), porém entendo que a prática aqui em
questão opera uma cisão com essa(s) história(s) e qualquer especificidade de
linguagem como tendência unificadora, funcionando simultaneamente apesar
dela(s). Interessa-me aqui as perguntas que essa prática pode trazer à tona e o que
de novo ela pode fazer aparecer como arte, como pensamento, como vida... Talvez
esses sejam os aspectos mais importantes que compõem aqui a noção de crítica:
Afirmar as multiplicidades, as diferenças a partir das diferenças e fazer existir
criações estéticas, éticas, políticas, sem pressupostos.
Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de
emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática
será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não
acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário,
da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das
dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o
uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o
único da multiplicidade a ser constituída. (DELEUZE; GUATTARI,
2011a, p. 21).
A representação na música.
Penso aqui a representação junto de Deleuze em sua Lógica do sentido 6 na
leitura que faz de Platão, ele mesmo pensando junto de Nietzsche 7 - um bando
conceitual - para continuar a reversão do platonismo que, diferentemente do que
pode parecer em um primeiro contato não se trata de recusar o mundo das
essências e das aparências mas de tornar nítida a motivação da teoria das ideias,
que não seria apenas uma dialética das oposições, contradições e contrariedades
distinguindo a coisa em si e suas imagens, original e cópia, mas uma dialética da
rivalidade, uma vez que sua vontade está em selecionar e julgar distinguindo o puro
do impuro em uma escala vertical.
6
O texto referido é “Platão e o simulacro”, apêndice 1 do livro citado. São Paulo: Perspectiva, 2015.
7
Para uma contextualização sobre a importância de Nietzsche para o pensamento de Deleuze:
“Deleuze a arte e a filosofia” de Roberto Machado, p.33-37. 2ed. Jorge Zahar Ed.,2010.
trata-se de selecionar os pretendentes, distinguindo as boas e as
más cópias ou antes as cópias sempre bem fundadas e os
simulacros sempre submersos na dessemelhança, (...) de assegurar
o triunfo das cópias sobre os simulacros, de recalcar os simulacros,
de mantê-los encadeados no fundo, de impedi-los de subir à
superfície e de se "insinuar" por toda parte (DELEUZE, 2015, p.
262).
Platão junta a potência do método da divisão em sua verticalidade hierárquica
com a potência do mito em sua estrutura circular que é narrativa de uma fundação, e
o que se funda é o mundo das ideias, criando assim uma separação transcendente
a partir de um sistema-retroalimentar-fechado que permite erigir um modelo, um
fundamento-prova, desde onde serão julgadas as pretensões à participação nesse
esquema que põe em funcionamento: a representação. Fato é que esse esquema
de mais de dois mil anos segue atualizando-se e se transformou em um paradigma,
uma condição pressuposta e sobreposta às mais diversas dimensões da vida; é
nesse sentido que Deleuze (2015, p.265) afirma que a estética sofre de uma
separação dilacerante. Tomo aqui esse paradigma representacional para pensar
sua crítica em uma dimensão estética imanente que é imediatamente um
cruzamento entre dimensões éticas-estéticas-políticas.
desde Platão (...) a representação propagou-se em toda parte, se
estendeu sobre o mundo até conquistar o infinito. O mundo inteiro se
transpôs para a representação; e todos os seres que o povoam são
pensados de acordo com as exigências da representação
(LAPOUJADE, 2015, p. 47).
Considerando seu caráter subjetivante, pensar tal paradigma, seu
funcionamento e o que escapa a ele não se trata de uma tarefa abstrata, pois se
todos os seres são pensados a partir de suas exigências, é a partir de suas
realizações e não realizações que será afirmado o que é e o que não é. Trata-se de
posições não apenas filosóficas, mas de maneiras de viver, de relacionar-se, seja no
amor, na política ou na música.
O paradigma da representação pretende-se universal e opera de maneira
dialética-vertical-hierárquica através do que Deleuze (2015, p.261) apresenta como
a tríade neoplatônica: o fundamento, o objeto do fundamento, o pretendente. O
fundamento é a ideia, o modelo: estando no alto das alturas separado no mundo das
essências, é o imparticipável e apenas ele é verdadeiramente, sua identidade é
superior e apenas ele a possui em primeiro lugar podendo dar a participar, em uma
escala descendente, sua qualidade aos pretendentes desde que estes cumpram sua
exigência, qual seja: semelhança à identidade superior da ideia. O objeto do
fundamento é essa sua qualidade possível de participação, nunca em primeiro lugar
pois existindo a separação inteligível/sensível, essência/aparência, ser em segundo
lugar - uma cópia-ícone - é o mais alto grau de participação de um ser do mundo
sensível. O pretendente então pretende antes de tudo ser.
Assim a Justiça não pode ser nada além de justa, a Coragem, corajosa
(DELEUZE, 2015) a Música, musical;
Julgar e selecionar, operações que se dão na representação pela tríade o
imparticipável - o participado - o participante. Estabelece-se assim toda uma
hierarquia e conjunto de graus onde a partir da semelhança ao modelo serão
julgadas e medidas as pretensões bem fundadas, cópias possuidoras em segundo
lugar, “até o infinito de uma degradação, até aquele que não possui mais do que um
simulacro, uma miragem, ele próprio miragem e simulacro" (DELEUZE, 2015, p.
261). Essa relação altura-circularidade traz uma imagem privilegiada que pode ser
uma entrada para pensar o funcionamento da representação na prática musical.
Cópias e simulacros, duas espécies de imagens consideradas bem fundadas
ou recalcadas no subterrâneo a partir da medida de sua semelhança com a
identidade superior da Ideia. Aqui já se tem material suficiente para começar a
observar as atividades musicais e reconhecer que a representação não poupou os
Universos musicais de submeterem-se a seu domínio, seu funcionamento. Posso
então colocar uma primeira definição da representação na música: o pensamento, a
criação, a realização de uma atividade sonora criativa submetida às exigências do
fundamento, do Mesmo e do Semelhante. Receber seu sentido do modelo e
continuar, convergir.
O que complexifica esse funcionamento na música é que o modelo não é
apenas um modelo, olho para todas as direções e encontro modelos transformados
em sistemas, em séries, estruturas, estilos, gêneros, escolas, modos, inclusive
passando sob termos como acaso, indeterminação e improvisação. Até mesmo
quando se entra nas profundezas onde os simulacros foram recalcados, onde os
encontramos e afirmamos sua diferença, ainda aí, se quer encontrar um modelo
possível, não mais o do Mesmo, mas um Modelo do Outro, da Dessemelhança, da
Dissimilitude (DELEUZE, 2015, p. 263).
Vou atualizar então o que coloco aqui como representação na música. Não se
trata mais da submissão às exigências do fundamento, do Mesmo e do Semelhante,
mas o pensamento, a criação, a realização de uma atividade sonora criativa
submetida às exigências de modelos pré-existentes ou de novos modelos por vir.
Chegar aos simulacros e procurar por novos modelos possíveis não me
interessa. Afirmar suas diferenças enquanto diferenças me interessa; fazê-los subir
à superfície, afirmar seus direitos entre os ícones 8 e as cópias, introduzir a
subversão nesse mundo me interessa; Contudo, nenhum modelo mais interessa;
nenhum princípio. Procuro aqui pelo que há nos simulacros, um caos informal como
potência de afirmação, um devir-louco, um devir-ilimitado que “instaura o mundo das
distribuições nômades e das anarquias coroadas. Longe de ser um novo
fundamento, engole todo fundamento, assegura um universal desabamento [...], mas
como acontecimento positivo e alegre” [...] (DELEUZE, 2015, p. 268), é a isso que
acoplo a realização destas atividades musicais, fazendo funcionar uma dimensão
acontecimental da música, fazendo surgir uma máquina-improvisação-livre. Digo
aqui de máquina, da improvisação livre como máquina, como música maquínica, à
maneira do pensamento maquínico Deleuze e Guattari (2011b, p. 11-56) que já no
capítulo I de “O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1” apresentam este potente
conceito:
Tal prática criativa sonora que funciona no desarranjo faz existir uma música
em devir, sem pressupostos, música-alguma-coisa, música-larvar “que a cada
instante recoloca tudo em questão” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 81).
9
“Indivíduos ou grupo, somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, que não seguem
o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza. São linhas que nos compõem, diríamos três espécies de linhas. Ou,
antes, conjuntos de linhas, pois cada espécie é múltipla. Podemos nos interessar por uma dessas linhas mais do
que pelas outras, e talvez, com efeito, haja uma que seja, não determinante, mas que importe mais que as outras...
se estiver presente. Pois, de todas essas linhas, algumas nos são impostas de fora, pelo menos em parte. Outras
nascem um pouco por acaso, de um nada, nunca se saberá por quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem
nenhum modelo nem acaso: devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos
inventá-las traçando-as efetivamente, na vida. As linhas de fuga – não será isso o mais difícil?” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012, p. 83).
intensiva de toda experiência real”, suas variações intensivas, diferenças de
intensidade. Sigo pensando com Deleuze (2015, p. 5-6) que apresenta, a partir dos
Estóicos, duas espécies de coisas: corpos com qualidades físicas, tensões, suas
relações, suas misturas, ações e paixões. Estados de coisas. Os sons são corpos,
os ouvidos são corpos, suas relações formam um outro corpo, um organismo que
chamamos música – corpo com órgãos, qualidades físicas, constituído pelas
relações dos corpos dos sons, dos ouvidos... Música como estado de coisas.
Outra espécie de coisas, não são bem coisas ou estado de coisas, não são
corpos, não são qualidades, não são propriedades físicas, não são substantivos ou
adjetivos, são acontecimentos, verbos, atributos. Efeitos incorporais das misturas
dos corpos, impassíveis. “O atributo não designa nenhuma qualidade real..., é
sempre ao contrário expresso por um verbo, o que quer dizer que é não um ser, mas
uma maneira de ser [...] se encontra de alguma forma no limite, na superfície de ser
[...]” (DELEUZE, 2015, p. 6). Problema ético portanto: tratamos de maneiras de ser,
mais ainda, de fazer existir. Não mais qualidades transmitidas por qualquer modelo,
mas atributos produzidos na superfície dos encontros pelos acontecimentos
incorporais. Os sons e os ouvidos sonorizam-se e fazem-se ouvir ao mesmo tempo
na simultaneidade de um devir que afirma os dois sentidos ao mesmo tempo,
constantemente esquivando-se do presente. Os acontecimentos nos colocam uma
outra leitura do tempo, não mais
10
O título faz referência ao platô 6: “28 de novembro de 1947 – Como criar para si um Corpo sem Órgãos?”, que
compõe o volume 3 da edição brasileira de Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, publicado pelo Editora 34.
11
“No dia 28 de novembro de 1947, Artaud declara guerra aos órgãos: Para acabar com o juízo de Deus [...] é
uma experimentação não somente radiofônica, mas biológica, política, atraindo sobre si censura e repressão. [...]
O juízo de Deus, o sistema do juízo de Deus, [...] é precisamente a operação Daquele que faz um organismo, uma
organização de órgãos que se chama organismo porque Ele não pode suportar o CsO [...]. O organismo já é isto,
o juízo de Deus, [...] um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de
sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas,
transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. Os estratos são liames, pinças. [...] Nós não paramos
de ser estratificados. Mas o que é este nós, que não sou eu, posto que o sujeito não menos que o organismo
pertence a um estrato e dele depende? É o CsO [...]. É sobre ele que pesa e se exerce o juízo de Deus, é ele quem
o sofre. O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação, um sujeito.
É ele o estratificado” (DELEUZE, GUATTARI, 2012, p. 24-25).
partir do pensamento de autores como Nietzsche, Kafka, Artaud e Lawrence,
elaboram essa crítica:
Da tragédia grega à filosofia moderna, é toda uma doutrina do
julgamento que se vai elaborando e desenvolvendo. O trágico
não é tanto a ação quanto o juízo, e a tragédia grega instaura
primeiramente um tribunal. [...] Nietzsche soube destacar a
condição do juízo: ‘a consciência de ter uma dívida infinita para
com a divindade’ [...]. Os elementos de uma doutrina do juízo
supõem que os deuses concedam lotes aos homens, e que os
homens, segundo seus lotes, sejam apropriados para tal ou
qual forma, para tal ou qual fim orgânico. [...] Eis o essencial do
juízo: a existência recortada em lotes, os afectos distribuídos
em lotes são referidos a formas superiores [...]. Os homens
julgam à medida em que avaliam seu próprio lote e são
julgados na medida que uma forma confirme ou destitua sua
pretensão. [...] O juízo impede a chegada de qualquer novo
modo de existência (DELEUZE, 2011, p. 162-173).
Improvisação livre, uma constante provocação. Trata-se de, como disse Hélio
Oiticica: Experimentar o experimental.
Referências.
COSTA, Rogério. Música errante: o jogo da improvisação livre. São Paulo:
Perspectiva / Fapesp, 2016.
LINS, Daniel. Estética como acontecimento – o corpo sem órgãos. São Paulo:
Lumme Editor, 2021.
PIRETTI BRANDÃO, R. T. Deleuze e a atualidade: experiência do fora e invenção
de novas formas de existência. Alamedas, [S. l.], v. 4, n. 2, 2017. DOI:
10.48075/ra.v4i2.14913. Disponível em:
<https://e-revista.unioeste.br/index.php/alamedas/article/view/14913>. Acesso em:
28 nov. 2021.