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ANA MENDIETA

o íntimo da matéria
o vazio
e o conhecimento do chão

Natália Xavier

“Eu tenho criado um diálogo entre a paisagem e o corpo feminino (baseado em minha própria silhueta).
Acredito que tenha sido resultado direto de atormentada pátria (Cuba) durante minha adolescência. Sou
sobrecarregada do sentimento de ser escalada desde o ventre (da natureza) para a luta. Minha arte é a
maneira que eu reestabeleço os ossos que me unem ao universo. É o retorno a procura material.”

A série Silueta (1973-1981) da artista Ana Mendieta1 - aqui recortada em três imagens -
nos convoca a um movimento de voltar-se ao chão, à terra. Longe das perspectivas
biologizantes e essencialistas que ao querer emancipar a mulher acabam por reafirmar o
feminino como essencialmente associado à natureza, a performance de Ana (das quais temos
apenas as fotografias documentais) me parece caminhar em consonância com o pensamento do
neurobiólogo chileno Humberto Maturana para o qual a espiritualidade matrística 2 é

1
Nascida em Cuba, no ano de 1948, Ana Mendieta aos doze anos fugiu do regime político de Fidel Castro com sua
irmã e seus pais para os Estados Unidos, morando no exílio durante a maior parte de sua vida. A artista graduou-se
em Belas Arte pela University of Iowa e por volta dos anos 70 travou contato direto com o movimento feminista. A
série Silueta (1973-1980) envolve a artista criando silhuetas femininas na natureza, na lama, areia e grama, fazendo
impressões com seu próprio corpo.
2
O termo matrístico é utilizado para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo
de vida centrado em uma cooperação não hierárquica.
inerentemente terrestre. Ou seja, em consonância com uma ideia de espiritualidade ligada à
concretude da vida cotidiana, para além do re-ligare das religiões ocidentais, já que não se pode
religar o que nunca foi separado.
Com a obra Silueta, Ana invoca a construção de um espaço psíquico não patriarcal, isto
é, uma outra maneira de nos relacionarmos com o mundo, a partir da negação da ideia
dicotômica entre mente/corpo e eu/mundo. A construção deste espaço psíquico se dá para
homens e mulheres3.
Em algumas das fotos documentais das performances temos silhuetas-buracos que nos
remetem a uma ideia de vazio, uma presença-ausente. Essa presença-ausente estética e viva é
como uma tentativa de pertencer e depois fluir e depois pertencer e depois fluir num ciclo infinito
de nascimento e morte. É como uma tentativa de ressignificar o vazio como o faz o poeta Manoel
de Barros: ‘A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos’. Nesse sentido, a artista invoca uma relação
com a coerência dinâmica e harmônica de toda a existência numa rede sem fim de ciclos de
nascimento e morte. (MATURANA, H. 2004, p. 72) e uma conexão com uma natureza
harmoniosa e acolhedora que não se detém à presença ou ausência de útero. A deusa não é
mãe. A deusa é uma velha.
‘Asignar a este gran ser la posición de «diosa de la fertilidad» es extremadamente degradante:
trivializa las tribus y el poder de la mujer’ (Allen, 1986:14 apud Lugones,2004)
Esse é o seu voltar-se à terra. O retorno à procura material. É o entendimento dos
eternos ciclos de vida-morte-renascimento também apontados pela cantadora e psicanalista
Clarissa Pinkola Estés e portanto, o estabelecimento, por meio do campo simbólico de uma outra
relação com o ínfimo, com os ritmos internos, com o tempo e com a morte.

‘Pessoas que conhecem o chão com a boca


Como processo de se procurarem
Essas movem-se de caracóis!’
(Manoel de Barros, 1966)

3
Postular isso não significa negar a opressão sofrida pelas mulheres dentro do patriarcado. Significa reconhecer
que as diferenças de gênero existem - e as opressões também - do mesmo modo que existem diferenças entre as
mulheres (basta pensarmos na ferramenta da interseccionalidade) e que estas são decorrentes das experiências
culturais e sociais, nunca são inatas. Ainda assim, a escolha de análise da obra de uma artista mulher latino
americana é, nesse caso, um posicionamento político frente ao apagamento histórico que esse grupo vem sofrendo
há séculos na sociedade ocidental.
O aprender pelo chão de Manoel de Barros e o imaginar pela terra de Bachelard
aparecem em Ana Mendieta4. Imaginar pela terra é enraizar no mundo, é cavar buracos,
esconderijos, é buscar o íntimo da matéria. É abraçar o abjeto, é deitar com a morte, é renascer
pela flora. Nesse sentido a artista me lembra Nanã, a orixá da lama, senhora da morte, velha da
fecundidade. Quando Ana está na foto, posicionada como um corpo morto, o que lhe cobre são
flores vivas. Quando Ana não está na foto, sabemos que ela esteve. O não-movimento de Ana
para criação das imagens e das silhuetas está sempre em fricção com o movimento invisível da
natureza e da própria artista. A tinta vermelha sobre uma das silhuetas nos remete ao sangue. A
imagem à morte. A cor vermelha à algo vívido, pulsante.
Ana nos convoca a tudo isso através da materialidade do seu próprio corpo, criando
suas silhuetas na lama, na grama, na areia. Silhuetas não-perduráveis, uma ode ao efêmero.
No século XVII, a filosofia desclassificou a emoção e a descreveu como algo passivo e
oposto à razão doadora de conhecimento. Descartes concebeu o ato de pensar separado da
emoção e separado também do corpo. Esse paradigma tornou-se dominante nas ciências e no
pensamento ocidental. (TELLES, Norma. 2011, p. 238) Em sua obra, já na década de 70, Ana
Mendieta, por entender o corpo como ferramenta do processo criativo, recusa essas dicotomias
corpo/mente, razão/emoção e situa o corpo como produtor de conhecimento.
A utilização do corpo dentro da performance é apontada na maioria dos estudos sobre
esta linguagem artística. O que raramente aparece é a relação entre o boom da performance nos
anos 70, 80 e as artistas ligadas ao movimento de arte feminista. Se pensarmos o controle sobre
o corpo da mulher decorrente da era vitoriana e do colonialismo5, a utilização do corpo na arte
pelas mulheres, ainda mais num contexto de movimento feminista, não está solto no universo e
não é fruto do acaso. É pelo corpo que falamos da nossa condição de opressão. Ana Mendieta,
mulher, não-branca, latino-americana, nascida em Cuba, exilada nos EUA, coloca seu corpo,
carregado de violências, como protagonista de suas ações artísticas e portanto o ressignifica
continuamente como poética de resistência.

A performance e a relação com o espectador

Ao pensar a linguagem da performance e algumas das suas particularidades Eleonora


Fabião assinala:

4Aqui considerando o recorte específico das três fotos documentais da série silueta da artista
5
Importante pontuar sempre que o controle sobre o corpo da mulher branca e da mulher negra se deu de maneiras
distintas. A sexualidade das mulheres brancas precisava ser controlada para evitar a degeneração e o controle do
corpo das mulheres negras se deu por exemplo, através da escravidão e por meio das políticas higienistas. Para
aprofundamento do tema ver Anne McClintock em Couro imperial.
Chamo as ações performativas programas, pois, neste momento, esta me parece a
palavra mais apropriada para descrever um tipo de ação metodicamente calculada,
conceitualmente polida, que em geral exige extrema tenacidade para ser levada a
cabo, e que se aproxima do improvisacional exclusivamente na medida em que não
seja previamente ensaiada. Performar programas é fundamentalmente diferente de
lançar-se em jogos improvisacionais. O performer não improvisa uma idéia: ele cria
um programa e programa-se para realizá-lo. [FABIÃO, Eleonora, 29009, p.237]

A performance, de acordo com esta autora, procura expandir a ideia de corpo e de


politicidade do corpo, procura ressignificar a ideia de tempo (efemeridade) e de espaço.
Enquanto forma de arte, ela possui caráter dialógico: o espectador é imprescindível no diálogo.
As nuances desse diálogo e da participação desse outro na construção dos sentidos e
significados da obra vão depender muito da proposta do artista. Gosto de pensar a questão
assim, porque auxilia a pluralização das experiências estéticas – isto, é, existem alguns
pressupostos que norteiam alguns tipos de arte e, portanto norteiam também a participação do
público perante a obra, no entanto limitar um tipo de interação a um determinado tipo de arte me
parece reduzir a autonomia dos artistas. Lembrando que os artistas conduzem o tipo de
participação, porém jamais controlam a experiência do espectador – este também sujeito
autônomo.
Se a participação é ativa, passiva, interativa, não me interessa. Afirmo isso no sentido
em que essas discussões geralmente surgem em ambientes contaminados pelo pensamento
eurocêntrico e estão sempre procurando hierarquizar as experiências, mesmo que sutilmente.
Negando essa hierarquização formulo outras perguntas, não para respondê-las, mas para
orientar nosso olhar para a obra: quais experiências que a performance pode proporcionar ao
espectador? Ao que a obra Silueta de Ana Mendieta nos convida? Como afirma Hillmann, a
resposta estética é sensível e individual e por isso torna-se imprescindível despirmo-nos dos
cânones.
Finalmente, trago aqui algumas das tendências dramatúrgicas da performance
apontadas por Eleonora Fabião que podem expandir nossas relações estéticas com as ações
performáticas:
1) o deslocamento de referências e signos de seus habitats naturais (como quando
a cela da prisão ocupa o apartamento/studio do artista); 2) a aproximação e
fricção de elementos de distintas naturezas ontológicas (como quando a cirurgia
plástica, o set cirúrgico e o corpo cortado tornam-se públicos e cênicos); 3)
acumula- ções, exageros e exuberâncias de todos os tipos (como quando um
pote de maionese custa 100 dólares); 4) aguda simplificação de materiais,
formas e idéias num namoro evidente com o minimalismo (como quando uma
barra de gelo e o empurrar são suficientes); 5) a aceleração ou des-aceleração
da experiência de sentido até seu colapso (como quando se mastiga e se
engarrafa um clássico da crítica de arte); 6) a aceleração ou des-aceleração da
noção de identidade até seu colapso (ou até que um espectador queira fazê-la
puxar o gatilho); 7) o desinteresse em performar personagens fictícios e o
interesse em explorar características próprias (etnia, nacionalidade, gênero,
especificidades corporais), em exibir seu tipo ou estereótipo social (ou convidar
transeuntes para que apalpem seus seios através das cortininhas de uma
maquete de palco italiano); 8) o investimento em dramaturgias pessoais, por
vezes biográficas, onde posicionamentos e reivindicações próprias são
publicamente performados (como o sexo anal com um pênis-barbie); 9) o curto-
circuito entre arte e não-arte (sempre); 10) o estreitamento entre ética e estética
(sempre); 11) a agudez conceitual (muita); 12) o encurtamento ou a distensão
da duração até limites extremos (como quando uma única ação dura um ano
inteiro) e a irrepetibilidade (como quando uma ação única é tudo); 13) a
ritualização do cotidiano e a desmistificação da arte (como quando alguém
come um doce, cheira o mar ou paga uma conta atrasada a pedido de um
exilado e exibe fotos dessas ações numa galeria); 14) a ampliação dos limites
psicofísicos do performer (seja se desfigurando ao feder abjetamente em
espaços pú- blicos, ou subindo uma escada de laminosos degraus); 15) a
ampliação da presença, da participação e da contribuição dramatúrgica do
espectador (que por vezes se vê diretamente implicado na ação). [FABIÃO,
Eleonora, 2009, p.239]

Referências bibliográficas
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea, 2009.
http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/viewFile/57373/60355
MATURANA, H. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano, São Paulo, Palas Athena, 2004.
PIORSKY, G. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o brincar, Peirópolis, 2016.
BARROS, M. Poesia completa, São Paulo, Leya, 2013
LUGONES, Maria. Colonialidad y gênero publicado em Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, No.9: 73-101,
julio-diciembre 2008
TELLES, Norma. Emoções in: BERNARDO, T. e RESENDE, P. (org.) Ciências sociais na atualidade, São
Paulo, EDUC, 2011
MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: gênero, raça e classe no embate colonial, editora Unicamp, 2010

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