Você está na página 1de 2

Em dezembro de 2017 a artista Regina Parra volta a olhar para uma série de

imagens do Hospital da Salpêtrière realizadas pelo cientista Jean-Martin Charcot no


século XIX. Nelas estão arquivadas uma tecnologia de violência masculina que
contribuiu para a invenção de um sintoma sobre as pacientes. O sintoma de serem
mulheres.

A palavra "histeria" surge pela primeira vez quando o médico e filósofo grego
Hipócrates, incomodado com frequentes "crises" de agitação e tremor vividas pelas
mulheres da época, sugere como causa dos espasmos a movimentação do útero. O
considerado "pai da medicina", acreditava que o útero, hysteron, era uma espécie de
ser vivo autônomo que sob algumas circunstâncias se deslocava dentro do corpo das
mulheres. Hipócrates chega a sugerir que espirrar seria um dos poucos gestos
capazes de fazer com que o útero retornasse ao seu lugar "natural", tranquilizando
o corpo histérico e fazendo com que a reprodução e o cuidado dos filhos, funções
sociais construídas sobre a mulher, pudessem ser retomadas.

Durante 600 anos essa foi a teoria que firmou o sentido desse entendimento de
"crise" feminina, transformando-se depois em diagnóstico para criminalizar
mulheres que não tinham filhos, passando a ser associada a bruxaria pelo Papa
Inocent VIII em 1484, servindo como fundamento para a ascensão da família nuclear
e a apropriação estatal da capacidade reprodutiva, bases para o desenvolvimento do
sistema capitalista como bem nos explica a filósofa Silvia Federici em seu livro
Calibã e a Bruxa.

Regina Parra então convida Bruno Levorin para juntas tentarem construir um
pensamento coreográfico sobre tais imagens, tomando como perspectiva o olhar
das mulheres para a câmera de Charcot e não o contrário. "Um olhar que observa e
se abstém, ou finge abster-se de intervir" como dirá George Didi-Huberman, um
olhar que desenha uma dramaturgia das convocações. Sobre isto, Maitê Lacerda,
assistente de direção do trabalho, escreveu:

Na trajetória das imagens, nesse fio que atravessa o ar entre a


percepção e a impressão, foi possível escutá-las falando de si
mesmas.

Lançamos mão de uma hipótese: Como elas, as mulheres de


Salpêtrière, falam de si mesmas quando as percebemos como
retratistas de suas próprias histórias? Como essas mulheres, ali
delineadas enquanto histéricas, atuam sobre suas próprias
representações?

Dançar ao lado dessas imagens ao longo do processo criativo foi o


modo possível para sustentar essas questões e falar sobre o cuidado
que ali nos parecia ausente. Estar pacientemente por perto dessas
mulheres, dispostas a enxergar, na aparente imobilidade de uma
imagem, as vibrações que impulsionam a vida e o gesto de
permanência dos desejos mais lascivos.
Na experiência foi possível usar a coreografia enquanto prática política, mobilizando
peso, força, velocidade e precisão como estratégias de convocação dos gestos e
paisagens que parecem esquecidos nas representações de Charcot. A coreografia
para nós funciona como um feitiço sobre a instrumentalização dos gestos proposta
pelos homens do Hospital. Um feitiço que rompe um curso historiográfico para
reencenar, com toda a força de atualização desse termo, uma trama composta de
imaginação e sensação daquilo entendido como sintoma.

Assim encontramos lasciva. Um trabalho de dança sobre imagens criado em


colaboração com Maitê Lacerda, Clarissa Sacchelli, Lúcia Bronstein, Juliana R,
Laura Salerno, Ludmila Porto e Haroldo Saboia. Uma investigação performativa que
deseja olhar para as representações de dentro para fora. Duro exercício de
imaginação política que tenta perguntar gestualmente e sensorialmente sobre os
desejos e as formas de amar, subtraídas há séculos de milhões de Augustines.

Augustine é o nome da principal paciente de Charcot, fundamental para o


entendimento da repressão da sexualidade e desenvolvimento da psicanálise.

lasciva
fevereiro 2019

Criação Regina Parra, Clarissa Sacchelli, Maitê Lacerda, Lucia Bronstein, Juliana R,
Bruno Levorin e Haroldo Saboia | Direção Regina Parra e Bruno Levorin | Coreografia
Clarissa Sacchelli, Maitê Lacerda e Bruno Levorin | Performance Clarissa Sacchelli e
Lucia Bronstein | Música Juliana R | Dramaturgia Bruno Levorin | Luz Laura Salerno
Cenotecnia e Assistência de Luz Marcus Garcia | Assistência de Cenotecnia Douglas
Vendramini | Objetos Ludmilla Porto e Bruno Levorin | Agradecimentos Casa do Povo,
Haroldo Saboia, Júlia Feldens e Felipe Oliveira | Apoio Casa Líquida | Produção Raio

Você também pode gostar