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Em carne e espírito vim pra transformar, em carne sou mais que espírito, em
espírito sou mais que carne, sou a areia do guindaste. Eu sou e eu vim, vim
encruzilhar o pensamento da mente de quem lê. Vim falar que EXU é Rainha 1, vim
contar a história de Nzinga2, mas para além… vim contar a minha. Eu vim para - da
teoria - brotar ação. Colocar conceito na boca da quebrada a gritar, com emoção, as
1 Como canta o ponto “Foi condenada pela lei da inquisição, para ser queimada viva sexta feira da
paixão”. Maria Padilha é uma entidade cultuada nas religiões de matriz afro-brasileira. Representa a
potência da sedução. Impressa em passadas de determinação e autocontrole sobre si, Maria Padilha
é a expressão da liberdade traçada pelo corpo feminino sendo cultuado enquanto Rainha pelo Axé.
2 Rainha Nzinga, também conhecida como Nzinga Mbande, foi uma proeminente líder do Reino do
Ndongo e do Reino de Matamba, localizados na região que atualmente é Angola, no século XVII. Ela
é celebrada por sua habilidade diplomática, resistência frente à colonização portuguesa e papel
fundamental na preservação da independência e cultura de seu povo.
desfigurações transgressivas3 da afrocentricidade4, que está em suas mãos, em
minhas mãos. Melhor nos nossos pés. Que é ali, no realocar, num georreferenciar,
num novo lugar estar e partir a pensar, elucidar, mais e mais conceitos criar, para
ser possível outras histórias narrar.
É no grito das palavras que eu venho, eu venho para gritar e escutar um grito
aí do outro lado também. Não é somente um artigo, é um manifesto, uma gira. Um
convite a dançar junto dêu. A bater o atabaque no ritmo do corpo, ou o corpo no
ritmo do atabaque. É romper com a fenda do tempo e criar outro cosmo de
existência, outras cosmo-percepções para se entender enquanto sujeito neste
mundo. Manifesto, para além do argumento, a urgente necessidade de criação de
uma reorganização social, onde nossos corpos sejam entendidos em existência.
Uma reontologização de quem somos. Nesta desgraça coletiva receio que
precisemos desconfigurar, transgenerificar por essência, ser transgressora. Ser
3 Barber, Tiffany E. 2016. “Cyborg Grammar? Reading Wangechi Mutu’s Non je ne regrette rien
through Kindred.” In Afrofruturism 2.0: The Rise of AstroBlackness. Edited by Reynaldo Anderson and
Charles E. Jones. Lanham, MD: Lexington Books
4 ASANTE, Molefi Kete. The Afrocentric Idea in Education. The Journal of Negro Education,
Philadelphiav. 60, n. 2, p. 170-180, 1991.
5 [...] Chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o
que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e
acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como
arranjos. É dessa forma que elas são uma parte desse espaço -fator. Ainda que sem tradução
imediata, as rugosidades nos trazem os restos de divisões do trabalho já passadas (todas as escalas
da divisão do trabalho), os restos dos tipos de capital utilizados e suas combinações técnicas e
sociais com o trabalho.” (SANTO, 1996), 92.
MULHER PRETA AFRIKANA isenta de forma. Disforme em si. É preciso
matrigestar-se esse futuro. De meu ventre, partilho forças para isso.
Ao olhar para o título que escolhi para este texto, percebo como ele se
entrelaça com a essência da minha escrita e com a proposta que busco transmitir. O
GARGALHAR DAS ENCRUZAS é um convite para adentrarmos um universo de
expressões e experiências peculiares, onde as encruzas - esses espaços místicos e
sagrados - revelam seus risos e mistérios. É nesse contexto que o corpo e o tempo
emergem como protagonistas de uma narrativa singular. A escolha deste título não é
aleatória. Ele reflete a minha abordagem poética e a intenção de explorar a
complexidade do corpo preto afrikano 6, suas interações com o tempo e como se
torna um documento vivo, carregado de memORÍas7 e potências. Além disso, o
verbo "gargalhar" traz consigo uma energia vibrante e autodeterminante,
convidando-nos a romper com convenções e a mergulhar em um universo de
possibilidades. É interessante também destacar o jogo de palavras presente no
título, fazendo uma alusão ao livro "A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão
e Emoção", de Milton Santos. Nele, o geógrafo traz reflexões sobre a relação entre
espaço, tempo, racionalidade e emoção - essa referência sutil revela minha busca
por uma visão ampliada do espaço geográfico, que vai além dos aspectos técnicos e
racionais, explorando a dimensão emocional e subjetiva do corpo preto.
6 Compreende-se aqui afrikano enquanto todo corpo preto sequestrado de seu território que sem
opção de escolha perde sua territorialidade corporal. Esse artigo é em si um movimento de resgate
territorio, corporal e geolocalizatório.
7 Orixá ORÍ é uma divindade venerada nas religiões de matriz africana. Considerado como o "orixá
pessoal" de cada indivíduo, Orí é visto como a representação do destino, da sua essência e do seu
eu interior. Acredita-se que ele tenha influência direta sobre o destino e o caminho espiritual de cada
pessoa, determinando suas características e potenciais ao longo da vida. O culto a Orí envolve rituais
de purificação, agradecimento e pedidos de proteção e orientação espiritual.
10 Yemonjá é uma divindade reverenciada nas religiões de matriz africana. Ela é considerada uma
das principais orixás e é associada ao mar e à fertilidade. Yemanjá é vista como a mãe divina,
protetora das águas, retratada vestida de branco, com um leque e uma coroa. Seu poder está
relacionado à sua influência sobre as emoções humanas e à capacidade de acalmar e nutrir aqueles
que a procuram. Com uma ligação íntima com o Mar, Yemonjá performa como esse conhecimento
ancestrais nos atravessam como as flechas de Oxóssi. Beatriz, com sua visão
sensível, nos conduz até a encruza, onde o ORÍ - entendido como a manifestação
divina dentro de cada indivíduo - revela-se como uma fonte poderosa de identidade,
resistência e reconexão. Logo deste corpo se faz encruzilhada. Corpo-encruza.
Corpo-encruzilhada. Corpo-ORÍ.
Laroyê Exu nos convida a olhar para além, além dessa encruza. Beatriz nos
traz algo muito além das palavras, ela nos articula a potencialidade de ser, de existir
imerso na existência do corpo preto. Um corpo marcado pela história, a História em
si, um corpo-documento12. Em vista disso, nosso maior referencial são o meu, o
seu, os nossos corpos que documento se fazem ao atravessar as encruzilhadas da
existência. Corpos esses que ecoam por entre as fissuras da História e escarificam 13
a potência de nossos corpos diaspóricos aqui pensados.
13 A escarificação é uma prática tradicional que remonta a tempos ancestrais. Vai além de uma mera
marcação física na pele, tornando-se um ritual sagrado que transcende o corpo e se conecta com o
plano espiritual. Realizado através de mãos anciãs é mais do que somente uma expressão artística e
de embelezamento, mas também marcas de pertencimento de si e do pertencimento à comunidade.
E é na encruzilhada que encontramos Exu, um espírito que desafia as
definições, incorpora Legbara - a potência de gestar a vida - em uma dança
cósmica. Exu é a força ancestral, o pulsar da autodeterminação além das fronteiras
binárias de generificação ocidental. São caminhos entrelaçados. 7 chaves. 7
caminhos. 7 Encruzas. Enredados na teia da vida, guiando-nos para reconfigurar as
cosmospercepções africanas aprisionadas nas encruzilhadas da alma e prontas
para tomar o corpo, incorporar-se, em um processo reorganizativo do nosso povo.
Eu venho da encruza
tu me chamaste e eu vim
vim colocar ordem
de 7 saias eu vim
14 Pombogira é uma entidade espiritual reverenciada nas religiões de matriz africana.Ela é parte do
panteão de entidades espirituais conhecidas como Exus, que desempenham um papel fundamental
como intermediária entre o mundo material e o espiritual. Maria Padilha é a pombogira que nos
concentramos aqui em travar um diálogo.
Eu sou terra eu sou tempo
sou exu-mulher pro seu alento
meu poder é ancestral
nesse ayiê provincial
E nesse movimento
livre sou,
livre estou.
de Anastácia rompo com as cláusulas que nos prendem
evoco sentimento para assim ser
me faço viver
me faço viver através das palavras
que fluem, confluem
por mim. em mim. mas nunca sem mim
Sou Sankofa
me faço verso
me faço estrofe
me faço texto,
me afrografo,
performo na memória,
na alma de ser mais uma mulher preta livre escrevendo sobre suas amarras
Sinto
Sinto pois sou
sinto pois vivo
sinto pois sou o que vivo
e assim viva estou.
Estou viva
contrariando toda e qualquer expectativa
me faço retina
que brilha à luz da chacina
que ceifa em mais uma esquina
a potência do meu existir no irmão que tem ali a vida, o fim da sua sina.
19 Formas de ser que não se baseiam na integridade, mas que, em vez disso, incorporam formas
alternativas, às vezes violentas ou "indesejáveis" de transformação que servem para produzir corpos
femininos negros desmembrados.
mim, eu o poder de ser, em si, a “alteridade perigosa, não colonizável,
incompreensível e inerente”, o que minhas próprias ancestrais foram. E hoje, em
minha carne, a minha passada rememoro, a minha passada se faz em mim.
Caminho por caminhos caminhados. Das minhas entranhas, que também são delas,
teço possibilidades outras de existir de subjetivar-se. Exubjetivar-se. Exubjetivar-me.
Razão e Emoção
E nesse realocar de possibilidades performemos um voltar a sentir junto a
Milton Santos que imprime, num movimento à Geografia, uma dança sobre o
espaço, com seu corpo: preto. Que no 1,2,3,4 - 5,6,7,8 dos tempos da dança vai
além. Razão e Emoção. Em seu livro de maior impacto, A Natureza do Espaço:
Técnica e Tempo. Razão e Emoção, Milton Santos nos traz um atabaque silenciado
- o de olhar para dentro - e ao mesmo tempo, grita a plenos pulmões as
potencialidades silenciadas pela geografia ocidental, as potencialidades do SENTIR.
20 MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: O Reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo:
Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
verdadeiramente nos compõe. Milton dança como Caboclo Tupã, me guarda, me
sela o corpo com a seiva que escorre das árvores milenares do continente de onde
fui arrancada. Assim meu corpo é selado, de volta a esse passado-presente, na
vivência constante entre o sasá21 e o zamani22. Milton com a mesma cera de Tupã
reconecta junto às suas 7 flechas. Funde a elas as 7 chaves da Encruza e espalha
pelo mundo tudo o que existe na terceira cabaça da existência, o bem e o mal.
Contam que um dia Ifá chamou Exu e lhe mostrou duas cabaças, ele deveria
escolher apenas uma e levar consigo em uma viagem até o mercado de Ifé. Na
primeira, estava todo o bem, todas as palavras, todos segredos do corpo, todos os
remédios, todo acolhimento, tudo que era doce, tudo que pode ser visto alki existia.
Na segunda, estava todo o mal, todos os silêncios, os segredos do espírito, todos os
venenos, afastamentos, tudo que era amargo, e tudo que não podia ser visto. Exu
olhou as cabaças mas antes de escolher, partiu ambas as cabaças ao meio. Ele
então pegou metade de uma cabaça, e metade da outra. Com amba a metades em
mão Exu juntou as metades formando uma terceira cabaça. Exu então se vê
satisfeito. E desde então, o chamam de “Senhor da Terceira Cabaça”. Aquilo que
pode ser bem, também pode ser mal. Aquilo que é palavra, pode ser também
silêncio. Aquilo que te cura, pode ser o que te mata. Aquilo que te acolhe, pode
também afastar. E aquilo que você vê, pode ser algo que nem ali está.
21 De acordo com a Teoria Bakongo, ou cosmovisão Bakongo o tempo sasá remete ao tempo do
agora, ao tempo atual. Tempo presente do aqui e do agora.
22 O Tempo Zamani é lido como o tempo da ancestralidade, o tempo dos nossos ancestrais. Para a
Filosofia Bakongo de onde esse conceito descende, os ancestrais assim como a ancestralidade co-
existe de forma indissociável à vida cotidiana, influenciando diretamente no tempo sasa.
Saravá!23 Cumprimentamos como ancestralmente se cumprimentavam
nossos ancestrais, para então viver na encruza, e ver da encruza, brotar tal saber.
Saber que nos dias de hoje nos possibilita pensar essa subjetividade de Fanon,
imersa a uma ruptura de paradigmas com a lógica dominante, Fanon nos articula e
nos faz pensar para além. Com Fanon tu vira [corpo] e eu também: CORPO. O
retorno nos gentifica, a ancestralidade nos faz pessoa. “Se você é seu corpo e seu
corpo é você, este poderá expressar quem você é. É a sua forma de estar no
mundo. Quanto mais vivo o seu corpo estiver, mais vivamente você estará no
mundo” (LOWEN, 1982, p.45).
Espero que este escrito meu e de Fanon lhe acolha. É o romper, de forma
violenta, com os mandos e desmandos do ocidente sobre os nossos corpos. É
destruir em nós mesmos o que nosso não ser. É desnudar sem nunca nem essa
roupa ter nos servido. É como a professora Tiffany E. Barber nos coloca: mutilar a si
mesmo seres transfigurados que somos, pois somente no futuro existem
possibilidades de se galgar, de maneira violenta, a letalidade que somos. É o
explodir de um corpo sufocado pelas vicissitudes do não ser. Fanon, Katiúscia e o
filósofo afroamericano Molefi Kete Asante nos realocam. Assim como nos Gargalha
Exu, e nos aquilomba Beatriz Nascimento: É um voltar a ser a partir de quem se foi.
Rememorando o título deste texto pela primeira das muitas vezes que você
visitar comigo essa encruza, temos: O Gargalhar da Encruza: Performance e Tempo.
Poder e Emoção. Hahahahaha (que essa gargalhada boa chegue a vosso Orí).
Este artigo não vem para pensar somente um novo conceito que proponho,
que é o conceito de corpo-rugoso enquanto algo mais a ser falado, numa tentativa
falha de colocar nas palavras o que temos grafados na alma: Eu escrevo. Eu me
escrevo. Eu me inscrevo em mim. Palavras que nos foram retiradas, hoje buscamos
dentro da alma, de nossas vivências, sobre-vivências. Nessa desgraça coletiva,
Exu é Corpo-Cabaça
Gargalhemos então e lhe apresentamos a primeira esquina pela qual
haveremos de percorrer nessa travessia. Exu nos conta que certa vez enquanto
andava pelo tempo ele se deparou com uma senhora que com duas cabaças em
mãos lhe disse: “Escolha uma!”. Exu não entendeu na hora o motivo de serem
apenas duas cabaças, para ele não faria sentido uma limitação dessas de
possibilidades. Exu então pega as duas cabaças da mão da senhora e mistura o
conteúdo das duas cabaças. Exu sai correndo gargalhando feliz com seu feito. Sai
espalhando como folhas ao vento o conteúdo dessa “terceira” cabaça.
E é nessa encruza portanto, que meu corpo se fez cabaça. Nessa primeira
encruza, aberta por essa primeira das sete chaves. Nosso primeiro encontro com
Exu, nosso primeiro ponto cantado. Nosso primeiro aparecer no cangaço.
E o acendendô se faz aceso. Maria Padilha senta com sua taça na mão e
degusta com sensualidade os prazeres da carne. Degusta a essência da
sensualidade de travestir de poder, o que poder é. Me recordo de ter derretido entre
os alvéolos da sua beleza. Com um cigarro na boca, de cereja, sai as palavras, que
dançam junto da fumaça permeada de memórias de um caminho de quem com
todas as palavras tratou de deixar bem claro: Eu sou a Rainha da Encruzilhada!
Na primeira Encruza nos deparamos com a vida, Maria Padilha nos abre o
caminho rodando sedutoramente sua cadeiras. Ifi Amadiume (1997) com as rendas
que tece sobre a história vem entoando seu pensamento trazendo junto de Maria
Padilha seus conceitos acerca do Matriarcado. Performa junto ao corpo as potências
de um corpo que gesta, de um corpo que pari, de um corpo que é em si o
propagador da vida, portanto quem gesta a política, a moral e a força vital da nossa
comunidade.
Ifi Amadiume vai abrir o canto da nossa gira falando de poder, dando corpo às
palavras de Maria Padilha quando diz que é Rainha. Sim Rainha Maria Padilha, a
Rainha existente em cada uma das mulheres potentes que nos rememora Cheik
Anta Diop (1950), nos evidenciando como África é em si um modelo matripotente,
matripotencializante, matrigerido, matri-estado. MATRIGESTADO.
Mas nos rumos desse atravessar, pegamos um outro caminho. Não vamos
nas linhas de Marx como Amadiume. Fazer uso do materialismo histórico dialético
para nós não faz sentido. Tomaremos portanto EXU enquanto método. E buscamos
através de um andar exubjetivado fazê esse caminhá. É por isso que partimos de
EXU pra fazê nosso entendê. Como nos diz Molefi Kete Assante é preciso realocar,
reposicionar, dentro de uma outra encruza. Dentro de outros paradigmas
existenciais que sejam capazes de dar conta de corpos como os nossos. Para tecer
todo esse axé é necessário muita linha, quem nos da linha é Milton Santos, aqui
desde essa primeira encruza já lhe apresento o conceito que defendo. A
necessidade de caminharmos junto dele - o fundamentando - e assim, como o mito e
Exu Bará que tudo come, vamos alimentando esse pequeno conceito, alimentando
esse pequeno Exu. Lhe apresento ele: corpo-rugoso. Entender esse corpo preto
enquanto um corpo-rugoso é uma das tarefas que se faz aqui. Esse corpo dotado do
que eu venho a chamar de performances da feminilidade-organizativo-espacial, que
é em si o poder de gestar a partir do útero. Compreendendo que esse performar
MAAT, é o que nos espiralizar a caminhar nas curvas de nossos corpos e performar
nos movimentos de nossa alma o que um dia performado por esse corpo também
foi.
Para girar nas potências da matrigestão quem nos ORÍenta nesse diálogo é
Katiúscia Ribeiro (2022), com seu ebó25 das potências geridas ela mais do que nos
alimenta com suas palavras, ela acende potências que gestamos na cabaça, no
útero-som da vida que cardiografamos na essência de nosso traçar. Costurando
junto às contradições que nos atravessam, na alegria de se ser mulher, mas acima
de tudo em se estar mulher, essa é Maria Padilha, uma mulher que ensina a SER
mulher, sensualiza em suas formas, performa gestos seduzentes, hipnotizantes que
nos ativam a subjetividade do feminino, que nos despertam a fúria em cantar quem
se é para além da forma. Oyèrónké Oyěwùmi (2015) em sua obra Matripotency: Ìyá
in philosophical concepts and sociopolitical vem nos contar o que na gira Maria
Padilha vez ou outra vem com uma taça de vinho rememorar junto a mim. Maria
Padilha, mas também Maria Farrapo, que chega gritando, mostrando as diversas
facetas da feminilidade que são abraçadas pela potência de quem gesta, a potência
de quem reina a potência de quem poder é em si. O poder de abrir os caminhos.
Abrimos portanto os trabalhos da primeira encruza, que incorporada nas palavras
de Pombogira buscamos trazer as barganhas que cada esquina nos pede. A
primeira barganha26 que lhe entregamos aqui é o AMOR.
Argumento que nessa obra Milton Santos não apenas tece outras
possibilidades para a Geografia, mas ele a realoca para pensar o sujeito de onde ele
parte para pensar o espaço, e ao sentir tais demandas trafegarem as curvas de seu
corpo Milton Santos vai além e mais do que transforma a forma de se ler o espaço,
(trans)forma, reconfigura afroperspectiva, afrofuturiza uma nova Geografia. Me lanço
a perseguir sua caminhada indo mais além. Rememoro o antigo continente para
pensar nossos corpos. Encontro no avançar dessa encruza, Exu, gargalhando, grita,
fala, performa Legbara. Trago a encruzilhada para pensarmos alguns lugares que
quero incorporar com vocês mais a frente.
25 Ebó: refere-se a rituais ou oferendas utilizadas como formas de conexão ancestral. Um diálogo
entre o Orum e o Ayiê. Um ebó é uma entrega uma oferenda responsável por esa manutenção da
partilha, do dar e do receber, do produzir algo para alguém.
Que o sol toque nossa pele, em uma manhã fria de inverno e dele possamos
sentir o brotar de em carne ser espaço.
Construir essas rotas as quais nossa barca haverá de fazer essa travessia, é
mergulhar em nossa própria existência, é compreender as nossas potencialidades.
Matrigestar uma comunidade não somente é uma herança histórica que atravessa e
compõe a mulher preta contemporânea, é desse acúmulo ancestral, que se molda e
forma a permanência existencial de um povo.
Nosso objetivo com essa pesquisa é através dos contornos produzidos pelos
mais diversos pensadores, que se deslocaram a recompor a nossa subjetividade
enquanto povo, conceitualizar e cunhar o conceito de corpo-rugoso enquanto um
dispositivo além de analise do que ainda nem dado foi. Vozear para além da voz,
oralizar para além do som, encenar para além do papel, figurar para além da cena e
girar para além de uma gira, para além de um corpo. Como um povo. É o exercício
central que nós colocamos aqui.
Através dessa travessia já desenhada por essa nossa grande ancestral nos
colocamos aqui a refletir sobre como esse corpo da mulher afrikana em diáspora, é em
si uma expressão desses Sistemas Alternativos de Organização Social. Que em sua
essência materializam esse resgate organizacional das nossas sociedades
ancestrais. Logo ao oraliturizarmos esse corpo, enquanto um Corpo-Quilombo temos
a: