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O GARGALHAR DA ENCRUZA:

CORPO, TEMPO. DOCUMENTO, EMOÇÃO.

Aqui não se pretende chegar a lugar nenhum,


pois esse corpo que escreve,
ainda não sabe de onde parte.

RESUMO: Este é um artigo sobre os processos de re-subjetividade de corpos pretos


por meio de uma teoria afrocêntrica. Elaborando juntamente a pensadores como
Milton Santos e Beatriz Nascimento fundamento minhas passadas e meu caminhá
sobre uma metodologia que me faz sujeito, e me documenta enquanto ser no
decorrer da história. O caminho que se propõe aqui é um movimento de Sankofa, é
pegar carona junto a EXU na pedra do afrofuturo e existir enquanto povo. Aqui não é
somente uma exposição de ideias, é um abraço é também um chamado para ser
povo, para voltar e re(par)tir. Em par voltar…

PALAVRAS- CHAVE: Exu, encruzilhada, rugosidade, corpo, subjetividade.

- Diga a que veio:

Em carne e espírito vim pra transformar, em carne sou mais que espírito, em
espírito sou mais que carne, sou a areia do guindaste. Eu sou e eu vim, vim
encruzilhar o pensamento da mente de quem lê. Vim falar que EXU é Rainha 1, vim
contar a história de Nzinga2, mas para além… vim contar a minha. Eu vim para - da
teoria - brotar ação. Colocar conceito na boca da quebrada a gritar, com emoção, as

1 Como canta o ponto “Foi condenada pela lei da inquisição, para ser queimada viva sexta feira da
paixão”. Maria Padilha é uma entidade cultuada nas religiões de matriz afro-brasileira. Representa a
potência da sedução. Impressa em passadas de determinação e autocontrole sobre si, Maria Padilha
é a expressão da liberdade traçada pelo corpo feminino sendo cultuado enquanto Rainha pelo Axé.

2 Rainha Nzinga, também conhecida como Nzinga Mbande, foi uma proeminente líder do Reino do
Ndongo e do Reino de Matamba, localizados na região que atualmente é Angola, no século XVII. Ela
é celebrada por sua habilidade diplomática, resistência frente à colonização portuguesa e papel
fundamental na preservação da independência e cultura de seu povo.
desfigurações transgressivas3 da afrocentricidade4, que está em suas mãos, em
minhas mãos. Melhor nos nossos pés. Que é ali, no realocar, num georreferenciar,
num novo lugar estar e partir a pensar, elucidar, mais e mais conceitos criar, para
ser possível outras histórias narrar.

E, verdadeiramente, a nossa ancestralidade contar.

Não dá mais, sufoca.


As rugosidades5 das vicissitudes de meu corpo precisam de mais,
precisam correr pelo papel, isento de forma
trazer o disforme,
romper com o uniforme,
pensar um futuro, um afrofuturo para este corpo.

É no grito das palavras que eu venho, eu venho para gritar e escutar um grito
aí do outro lado também. Não é somente um artigo, é um manifesto, uma gira. Um
convite a dançar junto dêu. A bater o atabaque no ritmo do corpo, ou o corpo no
ritmo do atabaque. É romper com a fenda do tempo e criar outro cosmo de
existência, outras cosmo-percepções para se entender enquanto sujeito neste
mundo. Manifesto, para além do argumento, a urgente necessidade de criação de
uma reorganização social, onde nossos corpos sejam entendidos em existência.
Uma reontologização de quem somos. Nesta desgraça coletiva receio que
precisemos desconfigurar, transgenerificar por essência, ser transgressora. Ser

3 Barber, Tiffany E. 2016. “Cyborg Grammar? Reading Wangechi Mutu’s Non je ne regrette rien
through Kindred.” In Afrofruturism 2.0: The Rise of AstroBlackness. Edited by Reynaldo Anderson and
Charles E. Jones. Lanham, MD: Lexington Books

4 ASANTE, Molefi Kete. The Afrocentric Idea in Education. The Journal of Negro Education,
Philadelphiav. 60, n. 2, p. 170-180, 1991.

5 [...] Chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o
que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e
acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como
arranjos. É dessa forma que elas são uma parte desse espaço -fator. Ainda que sem tradução
imediata, as rugosidades nos trazem os restos de divisões do trabalho já passadas (todas as escalas
da divisão do trabalho), os restos dos tipos de capital utilizados e suas combinações técnicas e
sociais com o trabalho.” (SANTO, 1996), 92.
MULHER PRETA AFRIKANA isenta de forma. Disforme em si. É preciso
matrigestar-se esse futuro. De meu ventre, partilho forças para isso.

Ao olhar para o título que escolhi para este texto, percebo como ele se
entrelaça com a essência da minha escrita e com a proposta que busco transmitir. O
GARGALHAR DAS ENCRUZAS é um convite para adentrarmos um universo de
expressões e experiências peculiares, onde as encruzas - esses espaços místicos e
sagrados - revelam seus risos e mistérios. É nesse contexto que o corpo e o tempo
emergem como protagonistas de uma narrativa singular. A escolha deste título não é
aleatória. Ele reflete a minha abordagem poética e a intenção de explorar a
complexidade do corpo preto afrikano 6, suas interações com o tempo e como se
torna um documento vivo, carregado de memORÍas7 e potências. Além disso, o
verbo "gargalhar" traz consigo uma energia vibrante e autodeterminante,
convidando-nos a romper com convenções e a mergulhar em um universo de
possibilidades. É interessante também destacar o jogo de palavras presente no
título, fazendo uma alusão ao livro "A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão
e Emoção", de Milton Santos. Nele, o geógrafo traz reflexões sobre a relação entre
espaço, tempo, racionalidade e emoção - essa referência sutil revela minha busca
por uma visão ampliada do espaço geográfico, que vai além dos aspectos técnicos e
racionais, explorando a dimensão emocional e subjetiva do corpo preto.

Este texto aborda as diversas facetas subjetivas que se performam através do


corpo africano em diáspora8. Busca-se com esses escritos ampliar a ideia de sujeito
e de mulher, de feminino e, mais além, ampliarmos a ideia de Espaço Geográfico
[sic], utilizando como ponto de partida a teoria nos apresentada por Milton Santos. O

6 Compreende-se aqui afrikano enquanto todo corpo preto sequestrado de seu território que sem
opção de escolha perde sua territorialidade corporal. Esse artigo é em si um movimento de resgate
territorio, corporal e geolocalizatório.

7 Orixá ORÍ é uma divindade venerada nas religiões de matriz africana. Considerado como o "orixá
pessoal" de cada indivíduo, Orí é visto como a representação do destino, da sua essência e do seu
eu interior. Acredita-se que ele tenha influência direta sobre o destino e o caminho espiritual de cada
pessoa, determinando suas características e potenciais ao longo da vida. O culto a Orí envolve rituais
de purificação, agradecimento e pedidos de proteção e orientação espiritual.

8 Me coloquei na liberdade dialógica de pensar o uso de diáspora aqui visto a perspectiva de


geografização e didática para entendimento geolocalizatório do leitor.
também filósofo conceitua que o Espaço Geográfico pode ser compreendido como
“um conjunto contraditório, solidário e indissociável de conjunto de objetos e
conjunto de ações, não considerados isoladamente, mas como um quadro único
onde a História ali se dá”.

A definição conceitual acima é de extrema relevância para a ampliação da


nossa compreensão do corpo preto em diáspora. Ao explorar essa perspectiva,
buscamos resgatar a Cosmologia Afrikana, que nos permite enxergar o corpo preto
além dos limites geográficos convencionais, oferecendo novas possibilidades de
ORÍentação e espacialização de um corpo. De ser corpo. De ser dentro de um
corpo. De PODER SER, VIR A SER dentro desse preto-corpo.

Nos co-construímos aqui, num processo endógno e de mergulho pra dentro,


diante do exercício de uterização desses aprendizados que dentro de nós já estão, e
num movimento endógeno, vamos de dentro para dentro e mais pra dentro de nós.
Colocando nosso próprio ORÍ diante dessa travessia, desse movimento, desse fluir
enquanto mastro, enquanto leme, enquanto vela, enquanto barca.

O caminho da cabeça
Beatriz Nascimento, renomada pesquisadora e ativista e filósofa e escritora,
nos brinda com conhecimentos profundos por meio do documentário ORÍ: O
caminho da cabeça. Nessa obra cinematográfica, ela nos convida a embarcar em
uma jornada única e transformadora, explorando as múltiplas dimensões cósmicas,
conectando-nos com nossas raízes ancestrais, repotencializando nosso ORÍ em um
movimento sankofiano9. Ao mergulharmos na narrativa visual de ORÍ, somos
imersos em um profundo mar de Mamãe Yemonjá 10, simbolismos e saberes
9 Sankofa é um termo adinkra originário da cultura dos povos Akan, que habitam regiões da África
Ocidental, especialmente Gana. O símbolo de Sankofa é representado por um pássaro com a cabeça
virada para trás pegando um ovo do próprio dorso. Simbolicamente, Sankofa significa "voltar e
buscar" ou "voltar para o passado e recuperar", destacando a importância de aprender com o
passado para construir um futuro melhor. Usado para expressar a valorização da ancestralidade,
memória histórica e sabedoria tradicional.

10 Yemonjá é uma divindade reverenciada nas religiões de matriz africana. Ela é considerada uma
das principais orixás e é associada ao mar e à fertilidade. Yemanjá é vista como a mãe divina,
protetora das águas, retratada vestida de branco, com um leque e uma coroa. Seu poder está
relacionado à sua influência sobre as emoções humanas e à capacidade de acalmar e nutrir aqueles
que a procuram. Com uma ligação íntima com o Mar, Yemonjá performa como esse conhecimento
ancestrais nos atravessam como as flechas de Oxóssi. Beatriz, com sua visão
sensível, nos conduz até a encruza, onde o ORÍ - entendido como a manifestação
divina dentro de cada indivíduo - revela-se como uma fonte poderosa de identidade,
resistência e reconexão. Logo deste corpo se faz encruzilhada. Corpo-encruza.
Corpo-encruzilhada. Corpo-ORÍ.

Assim como as encruzas, o ORÍ transcende as fronteiras geográficas


convencionais, permitindo-nos enxergar além do físico, além das palavras. É uma
viagem rumo às raízes mais profundas, onde as memórias ancestrais e os anseios
de liberdade se entrelaçam em uma dança sagrada. Uma Umbigada11.

Laroyê Exu nos convida a olhar para além, além dessa encruza. Beatriz nos
traz algo muito além das palavras, ela nos articula a potencialidade de ser, de existir
imerso na existência do corpo preto. Um corpo marcado pela história, a História em
si, um corpo-documento12. Em vista disso, nosso maior referencial são o meu, o
seu, os nossos corpos que documento se fazem ao atravessar as encruzilhadas da
existência. Corpos esses que ecoam por entre as fissuras da História e escarificam 13
a potência de nossos corpos diaspóricos aqui pensados.

Que o soar do atabaque e o GARGALHAR nAS ENCRUZAS ecoe em cada


palavra, em cada batida do nosso sentir preto.

profundo atribuído ao feminino nas filosofias africanas.

11 A umbigada é um estilo de dança e música afrocentrado, e ancestral, que transcende o físico,


evocando uma conexão profunda com as nossas raízes. Na roda da umbigada, os corpos se
entrelaçam em movimentos compassados. Cada passo é uma expressão de identidade e
pertencimento, honrando os antepassados e narrando histórias sem palavras. O corpo vira livro,
documento. O tambor marca o pulsar da terra e as batidas do coração, enquanto a dança performa a
resistência que se faz em mantermo-nos vivo, o nosso povo, representando uma união ancestral que
ecoa através do tempo e não se reduz à materialidade. Performa.

12 NASCIMENTO, B. ÔRÍ. Direção de Raquel Gerber. Brasil: Estelar Produções Cinematográficas e


Culturais Ltda, 1989, vídeo (131 min), colorido. Relançado em 2009, em formato digital.

13 A escarificação é uma prática tradicional que remonta a tempos ancestrais. Vai além de uma mera
marcação física na pele, tornando-se um ritual sagrado que transcende o corpo e se conecta com o
plano espiritual. Realizado através de mãos anciãs é mais do que somente uma expressão artística e
de embelezamento, mas também marcas de pertencimento de si e do pertencimento à comunidade.
E é na encruzilhada que encontramos Exu, um espírito que desafia as
definições, incorpora Legbara - a potência de gestar a vida - em uma dança
cósmica. Exu é a força ancestral, o pulsar da autodeterminação além das fronteiras
binárias de generificação ocidental. São caminhos entrelaçados. 7 chaves. 7
caminhos. 7 Encruzas. Enredados na teia da vida, guiando-nos para reconfigurar as
cosmospercepções africanas aprisionadas nas encruzilhadas da alma e prontas
para tomar o corpo, incorporar-se, em um processo reorganizativo do nosso povo.

Voltamos a pensar o corpo, voltamos a pensar a encruza - entre o corpo que


se faz História, esse corpo que é História - através dessas manifestações
potencializantes e organizativas que ele compõe. Pensamos aqui em um coreografar
junto a Legbara, e nessa gira, que gira, incorporamos para além da forma EXU em
todas as suas facetas.

Trazemos Pombogira14 para pensar para além do feminino. Questionada se é


homem ou mulher, Pombogira pouco sabe sobre essas atrozes definições
generificadas que destruíram a subjetividade de seu povo. Pombogira vem de longe,
vem da ancestralidade, nos mostrando a potência de Exu-Mulher, Exu-Legbara, e
como esse espírito é ancestral no processo organizativo social das nossas
sociedades. Incorporo a Exu que há em mim:

Eu venho da encruza
tu me chamaste e eu vim
vim colocar ordem
de 7 saias eu vim

vim de longe do passado


vim de antes do cangaço
vim da mata, vim do rio
vim da puta que pariu.

14 Pombogira é uma entidade espiritual reverenciada nas religiões de matriz africana.Ela é parte do
panteão de entidades espirituais conhecidas como Exus, que desempenham um papel fundamental
como intermediária entre o mundo material e o espiritual. Maria Padilha é a pombogira que nos
concentramos aqui em travar um diálogo.
Eu sou terra eu sou tempo
sou exu-mulher pro seu alento
meu poder é ancestral
nesse ayiê provincial

Eu giro, giro, giro


gargalho em meio a encruza
dali gesto potência,
COSMOEXISTÊNCIAS.
(Poesia Autoral)

Nesta dança de palavras, abro os caminhos para que a filósofa Sobonfu


Somé compartilhe sua sabedoria. Assim como Exu, que desbrava os horizontes,
faço ecoar a voz dessa mulher nigeriana, que nos convida a desvendar a
espiritualidade além da carne. Em seu livro O Espírito da Intimidade, ela nos desvela
a espiritualidade latente em nós e entender o corpo, esse corpo-espírito. Sombofu
nos apresenta as configurações organizativo-sociais da nossa ancestralidade,
reconfigurando as cosmopercepções africanas sequestradas pela sociedade
binarizada15 ocidental. Nessa valsa leprosa do ocidente homem e mulher se alinham
como duas faces de uma mesma moeda, mas o jogo da vida mostra sempre a coroa
sobre a mesma cabeça restando ao outro , ou melhor - nessa bizarra realidade
ociedental -, a outra, ser esse peão no tabuleiro da sociedade. Da mesma forma,
branco e negro não confluem, como óleo e água, uma hora ou outra se separam.
Como Nego Bispo buscamos a confluência. A teoria ocidental não conflue, ela
converge.

Não buscamos a verdade, buscamos um somar de verdades, um ver através


de vários espelhos, como nos conta esse Itã:

15 O paradigma da binaridade ocidental é uma forma de pensamento dualista que classifica o


mundo em pares opostos e hierarquizados, em que um elemento é valorizado em detrimento do
outro. Alguns exemplos dessas binaridades incluem: homem/mulher, branco/negro,
civilizado/primitivo, razão/emotividade, entre outras. Essas dicotomias criam uma hierarquia em que
um dos polos é tido como superior e o outro como inferior.
No princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o Orun (mundo
invisível, espiritual) e o Aiyê (mundo natural) existia um grande espelho. Assim, tudo
que estava no Orum se materializava e se mostrava no Aiyê. Ou seja, tudo que
estava no mundo espiritual se refletia exatamente no mundo material. Ninguém tinha
a menor dúvida em considerar todos os acontecimentos como verdades. E todo
cuidado era pouco para não se quebrar o espelho da Verdade, que ficava bem perto
do Orun e bem perto do Aiyê. Neste tempo, vivia no Aiyê uma jovem chamada
Mahura, que trabalhava muito, ajudando sua mãe. Ela passava dias inteiros a pilar
inhame. Um dia, sem querer, perdeu o controle do movimento ritmado que repetia
sem parar e a mão do pilão tocou forte no espelho, que, então, espatifou-se pelo
mundo. Desesperada, Mahura correu para se desculpar com Olorum, o Deus
Supremo. Qual não foi a surpresa da jovem quando encontrou Olorum calmamente
deitado à sombra de um iroko (planta sagrada, guardiã dos terreiros). Olorum ouviu
as desculpas de Mahura com toda a atenção, e declarou que, devido à quebra do
espelho, a partir daquele dia não haveria mais uma verdade única para se observar,
mas várias possibilidades de observação da verdade. E concluiu Olorum: “De hoje
em diante, quem encontrar um pedaço de espelho, em qualquer parte do mundo, já
pode saber que está encontrando apenas uma parte da verdade, porque o espelho
reflete sempre a imagem do lugar onde ele se encontra”16.17

Como um passaporte para o passado, Exu e Sombofu carimbam nossa


viagem rumo a uma terra, um território, onde exista a possibilidade de ser, de ser
corpo-terra, ser corpo-território. Ser Corpo-Quilombo [sic]. Capaz de carregar o
espaço em cada passo. Ser ancestralidade no caminhar do compasso.

Ao lado das reflexões da historiadora Beatriz Nascimento sobre o corpo-


quilombo, Sobonfu amplia nossa visão e nos desnuda o feminino dentro do
Quilombo, um espaço onde a vida gesta e se manifesta em sua gênese. Essas
vozes nos ORÍentam em um caminho do sentir para além do material.
16 Grifo da Autora.

17 Irê Ayo : Uma Epistemologia Afro-Brasileira


Beatriz Nascimento nos gira, e dança sobre o Quilombo, esse corpo-quilombo,
enquanto estrutura social organizativa realocada a se pensar o povo preto a partir da
inscrição do corpo/sentir na diáspora. Nos leva a ver o Quilombo enquanto potência,
para além da forma e do lugar; a ver o feminino dentro do Quilombo e dele,
Legbara, brotar vida. Nos ORÍenta para um caminho do sentir para além do material,
nos convida a cardiografar o nosso pensar, a co-existir para, sentir, ou melhor, como
enuncia a filósofa Katiúscia Ribeiro: Sentir para, então, co-existir.

Sinto, logo, co-existo.

Os patriarcas brancos nos disseram:


penso, logo existo. A mãe Negra dentro
de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos:
eu sinto, portanto eu posso ser livre."
Audre Lorde

E nesse movimento
livre sou,
livre estou.
de Anastácia rompo com as cláusulas que nos prendem
evoco sentimento para assim ser
me faço viver
me faço viver através das palavras
que fluem, confluem
por mim. em mim. mas nunca sem mim

Sou Sankofa
me faço verso
me faço estrofe
me faço texto,
me afrografo,
performo na memória,
na alma de ser mais uma mulher preta livre escrevendo sobre suas amarras

Sinto
Sinto pois sou
sinto pois vivo
sinto pois sou o que vivo
e assim viva estou.

Estou viva
contrariando toda e qualquer expectativa
me faço retina
que brilha à luz da chacina
que ceifa em mais uma esquina
a potência do meu existir no irmão que tem ali a vida, o fim da sua sina.

Katiúscia Ribeiro remete-nos a um movimento de afrofuturização 18 de nossos


corpos. Em uma performance ciborguiana19, Tiffany E. Barber, no livro Afrofuturism
2.0: The Rise of Astro-Blackness, organizado pelo professor Reynaldo Anderson,
aborda a imaterialidade de acentuações que nos conduzem a refletir sobre nossa
subjetividade transgressora, que ecoa no gargalhar da noite, que recai sobre nossas
peles e escurece nossas vestes, gravando memórias que se enrugam pelos fios de
nossos cabelos. Corpo-vivo, “que esculpe no ar os anelos da Ancestralidade”.

Em um enlaçar de um catapultar-me, nos antagonismos de reflexões que, no


decorrer desta escrita, me encruzo, construo, co-construo, em meio a possibilidades
subjetivas de respostas a partir do sujeito que se fala. Me sujeitifico. O sujeito que se
enuncia é uma mulher preta de sina. Amorfa. Caótica. Nebulosa. Fluida. Realocada
na pertença de si mesma.

E dando vida às palavras de Tiffany E. Barber, me visto de transgressão, a


transgressão de amar a mim mesma. E no movimento de desapropriação das
impropriedades que a mim foram infundidas pelo processo colonial, atravesso a
encruza, me faço encruza. Ali munida pelo poder que emana de EXU, que emana de

18 O Afrofuturismo é um movimento cultural, artístico e filosófico que combina elementos da diáspora


africana, ficção científica, fantasia e mitologia, visando a imaginação de futuros alternativos e
empoderadores para as comunidades negras. Originado nos anos 90, o Afrofuturismo busca
ressignificar a narrativa histórica e projetar uma visão utópica que transcende as limitações do
presente. Ele enfatiza a criação de identidades afrocentradas, explorando a interseção entre
tecnologia, ancestralidade e inovação como uma ferramenta de resistência e expressão cultural.
Autores, artistas visuais, músicos e cineastas têm contribuído para a expansão desse movimento,
impactando a cultura contemporânea e promovendo diálogos sobre raça, sociedade e o potencial
humano. Nomes importantes como Sun Ra, Octavia E. Butler, Nnedi Okorafor e Wangechi Mutu são
intelectuais que fundamentam muito do pensamento afrofuturista apresentado nessa e nas demais
obras desenvolvidas. Tais pensadores imprimem em suas obras outras potencialidades de existência
para o corpo da mulher preta que nos potencializam o existir enquanto sujeito nessa diáspora.

19 Formas de ser que não se baseiam na integridade, mas que, em vez disso, incorporam formas
alternativas, às vezes violentas ou "indesejáveis" de transformação que servem para produzir corpos
femininos negros desmembrados.
mim, eu o poder de ser, em si, a “alteridade perigosa, não colonizável,
incompreensível e inerente”, o que minhas próprias ancestrais foram. E hoje, em
minha carne, a minha passada rememoro, a minha passada se faz em mim.
Caminho por caminhos caminhados. Das minhas entranhas, que também são delas,
teço possibilidades outras de existir de subjetivar-se. Exubjetivar-se. Exubjetivar-me.

Meu Futuro é Ancestral. São palavras grafadas na carne. Grafemos no


espírito e no corpo com tinta as afrografias 20 de sua memória. De sua existência. De
suas existências. Nos convida a não ser somente corpo, mas ser além de onde
viemos, ser além de para onde vamos, e além das possibilidades do vir voltar a ser.
Exubjetivar-se. Voltar a Exu para afrofuturizarmo-nos.

Razão e Emoção
E nesse realocar de possibilidades performemos um voltar a sentir junto a
Milton Santos que imprime, num movimento à Geografia, uma dança sobre o
espaço, com seu corpo: preto. Que no 1,2,3,4 - 5,6,7,8 dos tempos da dança vai
além. Razão e Emoção. Em seu livro de maior impacto, A Natureza do Espaço:
Técnica e Tempo. Razão e Emoção, Milton Santos nos traz um atabaque silenciado
- o de olhar para dentro - e ao mesmo tempo, grita a plenos pulmões as
potencialidades silenciadas pela geografia ocidental, as potencialidades do SENTIR.

Compreendamos alguns caminhos do geógrafo para entender as nossas


passadas por esse Ayiê. Ele evoca um olhar para a Ancestralidade, para fazer o
movimento de Sankofa e compreender as simbióticas relações que travamos com a
Natureza.

Rememorar o Axé, a força vital de tudo o que nos rodeia, potencializa-nos a


voltar, nos entendermos enquanto seres da Natureza. Milton Santos propõe uma
reflexão às práticas mercadológicas de utilização da natureza, e vendo-nos
enquanto seres simbióticos a ela. Milton trafega na dissolução da subjetividade
branca, transplantada em nossas mentes de seres dicotomizados do que

20 MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: O Reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo:
Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
verdadeiramente nos compõe. Milton dança como Caboclo Tupã, me guarda, me
sela o corpo com a seiva que escorre das árvores milenares do continente de onde
fui arrancada. Assim meu corpo é selado, de volta a esse passado-presente, na
vivência constante entre o sasá21 e o zamani22. Milton com a mesma cera de Tupã
reconecta junto às suas 7 flechas. Funde a elas as 7 chaves da Encruza e espalha
pelo mundo tudo o que existe na terceira cabaça da existência, o bem e o mal.

Contam que um dia Ifá chamou Exu e lhe mostrou duas cabaças, ele deveria
escolher apenas uma e levar consigo em uma viagem até o mercado de Ifé. Na
primeira, estava todo o bem, todas as palavras, todos segredos do corpo, todos os
remédios, todo acolhimento, tudo que era doce, tudo que pode ser visto alki existia.
Na segunda, estava todo o mal, todos os silêncios, os segredos do espírito, todos os
venenos, afastamentos, tudo que era amargo, e tudo que não podia ser visto. Exu
olhou as cabaças mas antes de escolher, partiu ambas as cabaças ao meio. Ele
então pegou metade de uma cabaça, e metade da outra. Com amba a metades em
mão Exu juntou as metades formando uma terceira cabaça. Exu então se vê
satisfeito. E desde então, o chamam de “Senhor da Terceira Cabaça”. Aquilo que
pode ser bem, também pode ser mal. Aquilo que é palavra, pode ser também
silêncio. Aquilo que te cura, pode ser o que te mata. Aquilo que te acolhe, pode
também afastar. E aquilo que você vê, pode ser algo que nem ali está.

É vida, é corpo, é corpo-cabaça. Grita Laroyê, povo de Exu.

Quanto a esse assujeitamento e seus processos de violência para com o


povo preto batemos o nosso atabaque e trazemos o psiquiatra Frantz Fanon para
dançar entre os vivos, vestir branco junto de nós. Entendendo que como um preto-
velho, ele tem muito a nos dizer.

21 De acordo com a Teoria Bakongo, ou cosmovisão Bakongo o tempo sasá remete ao tempo do
agora, ao tempo atual. Tempo presente do aqui e do agora.

22 O Tempo Zamani é lido como o tempo da ancestralidade, o tempo dos nossos ancestrais. Para a
Filosofia Bakongo de onde esse conceito descende, os ancestrais assim como a ancestralidade co-
existe de forma indissociável à vida cotidiana, influenciando diretamente no tempo sasa.
Saravá!23 Cumprimentamos como ancestralmente se cumprimentavam
nossos ancestrais, para então viver na encruza, e ver da encruza, brotar tal saber.
Saber que nos dias de hoje nos possibilita pensar essa subjetividade de Fanon,
imersa a uma ruptura de paradigmas com a lógica dominante, Fanon nos articula e
nos faz pensar para além. Com Fanon tu vira [corpo] e eu também: CORPO. O
retorno nos gentifica, a ancestralidade nos faz pessoa. “Se você é seu corpo e seu
corpo é você, este poderá expressar quem você é. É a sua forma de estar no
mundo. Quanto mais vivo o seu corpo estiver, mais vivamente você estará no
mundo” (LOWEN, 1982, p.45).

Espero que este escrito meu e de Fanon lhe acolha. É o romper, de forma
violenta, com os mandos e desmandos do ocidente sobre os nossos corpos. É
destruir em nós mesmos o que nosso não ser. É desnudar sem nunca nem essa
roupa ter nos servido. É como a professora Tiffany E. Barber nos coloca: mutilar a si
mesmo seres transfigurados que somos, pois somente no futuro existem
possibilidades de se galgar, de maneira violenta, a letalidade que somos. É o
explodir de um corpo sufocado pelas vicissitudes do não ser. Fanon, Katiúscia e o
filósofo afroamericano Molefi Kete Asante nos realocam. Assim como nos Gargalha
Exu, e nos aquilomba Beatriz Nascimento: É um voltar a ser a partir de quem se foi.

Rememorando o título deste texto pela primeira das muitas vezes que você
visitar comigo essa encruza, temos: O Gargalhar da Encruza: Performance e Tempo.
Poder e Emoção. Hahahahaha (que essa gargalhada boa chegue a vosso Orí).

Este artigo não vem para pensar somente um novo conceito que proponho,
que é o conceito de corpo-rugoso enquanto algo mais a ser falado, numa tentativa
falha de colocar nas palavras o que temos grafados na alma: Eu escrevo. Eu me
escrevo. Eu me inscrevo em mim. Palavras que nos foram retiradas, hoje buscamos
dentro da alma, de nossas vivências, sobre-vivências. Nessa desgraça coletiva,

23 “Saravá”: Termo de origem afro-brasileira frequentemente utilizado em práticas religiosas e


culturais afrodiaspóricas, como o Candomblé e a Umbanda. O termo é uma saudação e expressa a
invocação de proteção, bênçãos e boas energias dos nossos ancestrais e entidades, reforçando a
conexão entre o Orum (mundo espiritual) e Ayiê (mundo material).
perspectivar caminhos possíveis, para outras passadas, que não serão passadas
por mim.

Do centro da encruza parto a pensar: como o rememorar na diáspora das


formas de relações e organizações sociais existentes, em África-matriarcal, nos
possibilita novas agências organizativas no espaço? Quem são esses úteros que
matrigestam potencialidades possíveis na diáspora brasileira? Tomando Exu como
método vou para além da Encruza[sic], pairando entre as 7 esquinas, vivendo e
sendo as 7 encruzilhadas. Abrindo com o vozear do pensar, o dançar do existir, o
performar do orar, a reza incorporar. As 7 chaves que tenho em mim.

Exu é Corpo-Cabaça
Gargalhemos então e lhe apresentamos a primeira esquina pela qual
haveremos de percorrer nessa travessia. Exu nos conta que certa vez enquanto
andava pelo tempo ele se deparou com uma senhora que com duas cabaças em
mãos lhe disse: “Escolha uma!”. Exu não entendeu na hora o motivo de serem
apenas duas cabaças, para ele não faria sentido uma limitação dessas de
possibilidades. Exu então pega as duas cabaças da mão da senhora e mistura o
conteúdo das duas cabaças. Exu sai correndo gargalhando feliz com seu feito. Sai
espalhando como folhas ao vento o conteúdo dessa “terceira” cabaça.

E é nessa encruza portanto, que meu corpo se fez cabaça. Nessa primeira
encruza, aberta por essa primeira das sete chaves. Nosso primeiro encontro com
Exu, nosso primeiro ponto cantado. Nosso primeiro aparecer no cangaço.

Deu meia noite,


a lua se escondeu,
lá na encruzilhada dando a sua gargalhada
Pombogira apareceu.24

Apareceu trazendo a noite, o poder emanando de suas vestes, negras como


sua pele, que ao rodar como a gira que a fez vem falando de poder para além do ser

24 Ponto de Gira de Esquerda.


para o fortalecer. Ela não vem só, traz junto dela a abrir os trabalhos: Maria Padilha
entoando seu canto. Sua gira se faz malandro. Hipnotiza traz um encanto. Um
acalanto.

É Laroyê, é Laroyê é Laroyê!


É Mojubá, é Mojubá, é Mojubá!
Ela é Odara,
Quem tem fé nessa Legbara,
É só pedir que Ela dá!

E o acendendô se faz aceso. Maria Padilha senta com sua taça na mão e
degusta com sensualidade os prazeres da carne. Degusta a essência da
sensualidade de travestir de poder, o que poder é. Me recordo de ter derretido entre
os alvéolos da sua beleza. Com um cigarro na boca, de cereja, sai as palavras, que
dançam junto da fumaça permeada de memórias de um caminho de quem com
todas as palavras tratou de deixar bem claro: Eu sou a Rainha da Encruzilhada!

Na primeira Encruza nos deparamos com a vida, Maria Padilha nos abre o
caminho rodando sedutoramente sua cadeiras. Ifi Amadiume (1997) com as rendas
que tece sobre a história vem entoando seu pensamento trazendo junto de Maria
Padilha seus conceitos acerca do Matriarcado. Performa junto ao corpo as potências
de um corpo que gesta, de um corpo que pari, de um corpo que é em si o
propagador da vida, portanto quem gesta a política, a moral e a força vital da nossa
comunidade.

Ifi Amadiume vai abrir o canto da nossa gira falando de poder, dando corpo às
palavras de Maria Padilha quando diz que é Rainha. Sim Rainha Maria Padilha, a
Rainha existente em cada uma das mulheres potentes que nos rememora Cheik
Anta Diop (1950), nos evidenciando como África é em si um modelo matripotente,
matripotencializante, matrigerido, matri-estado. MATRIGESTADO.

Juntos, nos conectamos com esta ancestralidade profunda. Transferimos


para o papel nossos trajetos e narrativas, mergulhando naquilo que existe entre as
capas do livro, entre a lombada e a costura. Nesse espaço sagrado repousa a
história que nos foi sonegada, a narrativa que nos propomos a desenterrar. É
exatamente nesse recôndito, entre a lombada e a costura, em linhas ainda não
vistas nem escritas, que encontramos o tesouro que Ifi Amadiume nos trará. Aqui,
entre essas páginas, reside as memórias que foram apagadas, uma cartografia
espacial e territorial há muito esquecida. Essa cartografia foi elaborada pelas mãos
habilidosas das mulheres, que delicadamente enfiaram a linha na agulha e, depois,
na folha de papel. Junto a cada página repleta de palavras, elas entrelaçam suas
histórias com a precisão de quem costura. Os cantos que ecoam ali, apenas
percebidos por essas linhas costuradas, proclamam uma verdade mais profunda do
que qualquer expressão um dia transcrita nos livros que essas mulheres
pacientemente tecem.

Mas nos rumos desse atravessar, pegamos um outro caminho. Não vamos
nas linhas de Marx como Amadiume. Fazer uso do materialismo histórico dialético
para nós não faz sentido. Tomaremos portanto EXU enquanto método. E buscamos
através de um andar exubjetivado fazê esse caminhá. É por isso que partimos de
EXU pra fazê nosso entendê. Como nos diz Molefi Kete Assante é preciso realocar,
reposicionar, dentro de uma outra encruza. Dentro de outros paradigmas
existenciais que sejam capazes de dar conta de corpos como os nossos. Para tecer
todo esse axé é necessário muita linha, quem nos da linha é Milton Santos, aqui
desde essa primeira encruza já lhe apresento o conceito que defendo. A
necessidade de caminharmos junto dele - o fundamentando - e assim, como o mito e
Exu Bará que tudo come, vamos alimentando esse pequeno conceito, alimentando
esse pequeno Exu. Lhe apresento ele: corpo-rugoso. Entender esse corpo preto
enquanto um corpo-rugoso é uma das tarefas que se faz aqui. Esse corpo dotado do
que eu venho a chamar de performances da feminilidade-organizativo-espacial, que
é em si o poder de gestar a partir do útero. Compreendendo que esse performar
MAAT, é o que nos espiralizar a caminhar nas curvas de nossos corpos e performar
nos movimentos de nossa alma o que um dia performado por esse corpo também
foi.
Para girar nas potências da matrigestão quem nos ORÍenta nesse diálogo é
Katiúscia Ribeiro (2022), com seu ebó25 das potências geridas ela mais do que nos
alimenta com suas palavras, ela acende potências que gestamos na cabaça, no
útero-som da vida que cardiografamos na essência de nosso traçar. Costurando
junto às contradições que nos atravessam, na alegria de se ser mulher, mas acima
de tudo em se estar mulher, essa é Maria Padilha, uma mulher que ensina a SER
mulher, sensualiza em suas formas, performa gestos seduzentes, hipnotizantes que
nos ativam a subjetividade do feminino, que nos despertam a fúria em cantar quem
se é para além da forma. Oyèrónké Oyěwùmi (2015) em sua obra Matripotency: Ìyá
in philosophical concepts and sociopolitical vem nos contar o que na gira Maria
Padilha vez ou outra vem com uma taça de vinho rememorar junto a mim. Maria
Padilha, mas também Maria Farrapo, que chega gritando, mostrando as diversas
facetas da feminilidade que são abraçadas pela potência de quem gesta, a potência
de quem reina a potência de quem poder é em si. O poder de abrir os caminhos.
Abrimos portanto os trabalhos da primeira encruza, que incorporada nas palavras
de Pombogira buscamos trazer as barganhas que cada esquina nos pede. A
primeira barganha26 que lhe entregamos aqui é o AMOR.

Argumento que nessa obra Milton Santos não apenas tece outras
possibilidades para a Geografia, mas ele a realoca para pensar o sujeito de onde ele
parte para pensar o espaço, e ao sentir tais demandas trafegarem as curvas de seu
corpo Milton Santos vai além e mais do que transforma a forma de se ler o espaço,
(trans)forma, reconfigura afroperspectiva, afrofuturiza uma nova Geografia. Me lanço
a perseguir sua caminhada indo mais além. Rememoro o antigo continente para
pensar nossos corpos. Encontro no avançar dessa encruza, Exu, gargalhando, grita,
fala, performa Legbara. Trago a encruzilhada para pensarmos alguns lugares que
quero incorporar com vocês mais a frente.

25 Ebó: refere-se a rituais ou oferendas utilizadas como formas de conexão ancestral. Um diálogo
entre o Orum e o Ayiê. Um ebó é uma entrega uma oferenda responsável por esa manutenção da
partilha, do dar e do receber, do produzir algo para alguém.

26 O que você entrega a entidade em troca de bênçãos em sua vida.


Propomos aqui, através da encruza, da morte a vida, é dessa encruza que
fazemos brotar um novo sujeito capaz de viver, para além do sobreviver. Nesse
caminho chegamos até a segunda encruza que nos atravessa com as
potencialidades do SER amor. Nesse momento me dou a liberdade de junto a ti
percorrer as rimas do meu corpo preto e desse fazer morada das potencialidade da
existência do ser: Vamos falar de amor. Vamos falar de amor para além das
vicissitudes da carne. Me Tornar, ser amor. Tornar-me NEGRA.

Tinha sete anos apenas,


apenas sete anos,
Que sete anos!
Não chegava nem a cinco!
De repente umas vozes na rua
me gritaram Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
“Por acaso sou negra?” – me disse
SIM!
“Que coisa é ser negra?”
Negra!
E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.
Negra!
E me senti negra,
Negra!
Como eles diziam
Negra!
E retrocedi
Negra!
Como eles queriam
Negra!
E odiei meus cabelos e meus lábios grossos
e mirei apenada minha carne tostada
E retrocedi
Negra!
E retrocedi . . .
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neeegra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
E passava o tempo,
e sempre amargurada
Continuava levando nas minhas costas
minha pesada carga
E como pesava!…
Alisei o cabelo,
Passei pó na cara,
e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neeegra!
Até que um dia que retrocedia , retrocedia e que ia cair
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra!
E daí?
E daí?
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Negra sou
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Negra sou
De hoje em diante não quero
alisar meu cabelo
Não quero
E vou rir daqueles,
que por evitar – segundo eles –
que por evitar-nos algum disabor
Chamam aos negros de gente de cor
E de que cor!
NEGRA
E como soa lindo!
NEGRO
E que ritmo tem!
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro
Afinal
Afinal compreendi
AFINAL
Já não retrocedo
AFINAL
E avanço segura
AFINAL
Avanço e espero
AFINAL
E bendigo aos céus porque quis Deus
que negro azeviche fosse minha cor
E já compreendi
AFINAL
Já tenho a chave!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO
Negra sou!

No navegar por dessa barca chegamos na terceira encruza. Fazemos a


passagem, exubjetificando nossos saberes e mostrando o caminho, aqui saudamos
todos os que vieram antes, para que essa travessia fosse possível, aqui lhes
apresento meu referencial para além do teórico. Como são sete, nosso caminho
tende a só ter se iniciado. Exu nos convoca a olhar nos olhos da morte e num
processo de ressignificação de nossos corpos ancestralizo em meu ser as marcas
que com tinta imprimem em sangue cada letra nesse papel. Essa é a travessia que
mais nos dói trafegar, é aqui que mergulhamos na nossa subjetividade e
entendemos a necessidade de matar o ser ocidental para se trazer a vida a esse
corpo-novo. Despido.

Então junto a essa Gira, às interpretações e composições mais poéticas do


que teóricas, mais teóricas do que poéticas, da professora Leda Maria Martins, baila
sobre o papel junto de mim.

Leda Maria Martins ao compor Performances das oralituras: corpo, lugar da


memória, nos possibilita entender essa escrita... Ela é movimentoooo… logo sobre o
que ela escreve também é. Leda nos apresenta o corpo como o epicentro dessa
Gira, e nessa incorporação de novas tessituras Leda compõe:

o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação,


que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição
de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na
coreografia, nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que
performaticamente o recobrem. (MARTINS, 2003, p. 66).
Giramos com Leda, nesse espiralar da compreensão dos nossos corpos, do
nosso ser enquanto sujeito, sujeito afrikano. Entendemos que nosso corpo sobre-
acumula diversos tempos nessa composição performática de quem se é, por onde
se caminha, e mais além, por onde se caminhou, qual grafia imprime no mundo, e
qual ele imprime em você, qual travessia cartografa na História, e qual cartografia a
História afrografa em seu corpo. Acima de tudo a cartografia do ser sujeito que se é,
e não o que disseram que somos.

Mergulhar para dentro de si, rumo à resposta: o que o ventre, do ventre, do


ventre do mundo tem a dizer sobre mim? 27, num espiralar ventral a buscar esse ventre,
encontrar esse ORÍ. Performar as possibilidades que se desdobram nesse respirar,
nesse sujeitar a si. Nesse pensar outras possibilidades de existência que
redimensionem o nosso pensar a partir das nossas existências. Que nos coloquem
no ritmo do tambor e do atabaque. Como esse corpo-tambor, que não somente pisa
sobre a terra mas ressoa vosso som. Vibra sobre ela.

Entender essa ancestralidade rugosa que habita, ou melhor, co-habita a


existência do ser mulher afrikana, esse enquanto um dispositivo de rememoração
que nos auxilia e nos ORÍenta no caminho de vivências coletivas através de
possibilidades de afrofuturização do nosso povo. Portanto o exercício das
compreensões desse ser mulher, despidas dos padrões ocidentais de binarização
social e individualização em prol da coletividade, redimensiona numa visão
pluriversalizada, o contructo de outras formas e perspectivas de redefinição desse
ser sujeito, desse ser mulher. Desse ser mulher afrikana em diáspora.

Refletir acerca desse corpo, enquanto um Corpo-Rugoso, dotado de uma


ancestralidade que expressa em si mesmo as reencenações da História,
compreende o processo gestacional-comunitário-uterizado por esse corpo-
fundamental, esse corpo mulher, esse corpo mulher afrikana em diáspora; para a
compreensão do que nos permitiu firmar existência na História. E para muito além
disso, descobrir as rugas da história que compõe o nosso caminhar nessa travessia

27 Caroline Amanda , paridora da comunidade virtual YONI DAS PRETAS.


presente, e nos possibilita estratégias de sobrevivência futura, num processo
constante de afrofuturamento de um povo. É para além de corpo é também tempo.

Incorporar essa pluriversalidade a nossas perspectivas de visualização de


mundo traz para a Geografia, - num movimento complementar, onde a Geografia
também trás para a Filosofia - os estudos do corpo, a possibilidade de visualizar
esse corpo enquanto um território, visualizamos também esse corpo enquanto um
Espaço Geográfico.

Ver o corpo enquanto esse Espaço Geográfico, é um dos passaportes que


nos permitirá refletir as fusionalidades, nesse exercício de resgate de uma ciência
integral, capaz de visualizar acerca do todo, do tudo. De MAAT. Desse Espaço
Geográfico. Da Totalidade rompendo com as dicotomias e materialidades ocidente-
burguesas.

No encontro com o espírito, em Theóphile Obenga temos um guia para


despirmo-nos ainda mais das roupas entre o saber e o corpo. Através de seu
resgate do conceito de "sebayit", ele manifesta a própria encarnação do
conhecimento, transformando-o em um dispositivo do saber-sentir. É como se esse
corpo de conhecimento, em constante movimento e harmonia, confluísse so todo,
abraçando a própria essência do ser.

Que o sol toque nossa pele, em uma manhã fria de inverno e dele possamos
sentir o brotar de em carne ser espaço.

Continuação do legado de Milton…


Matrigestar esse processo investigativo me permite utilizar, para além do
meio, eu mesma como estudo, como sujeito, como experiência e vivência, como
travessia e trajeto, como escolha e destino, como mensagem e imagem, como
segredo e partilha, como recorte e todo, e TUDO. Me permite o olhar para tudo, e
ser esse tudo a ser escrito.
E nesse processo matrigestacional da nossa sociedade, resgato os escritos
de Beatriz Nascimento que nos reforça a ideia da organização social do Quilombos,
como também uma potência organizativa política social. A potência de Beatriz
Nascimento junto à Oyeronkè Oyewumi nos potencializa diante da pluriversalização
dessa redefinição das potencialidade de uterização e gestação de um povo,
redefinindo padrões ocidentalizantes que binarizaram as compreensões de gênero.

Refundar conceitos reconfigurar e corporificar a política, a organização


política, compreendendo esse corpo enquanto um corpo-documento. E permitindo as
novas interpretações contemporâneas, compor narrativas desse corpo embebido por
suas palavras como também um corpo-quilombo. Um corpo-oxum. Um corpo-mar.

Construir essas rotas as quais nossa barca haverá de fazer essa travessia, é
mergulhar em nossa própria existência, é compreender as nossas potencialidades.
Matrigestar uma comunidade não somente é uma herança histórica que atravessa e
compõe a mulher preta contemporânea, é desse acúmulo ancestral, que se molda e
forma a permanência existencial de um povo.

Nosso objetivo com essa pesquisa é através dos contornos produzidos pelos
mais diversos pensadores, que se deslocaram a recompor a nossa subjetividade
enquanto povo, conceitualizar e cunhar o conceito de corpo-rugoso enquanto um
dispositivo além de analise do que ainda nem dado foi. Vozear para além da voz,
oralizar para além do som, encenar para além do papel, figurar para além da cena e
girar para além de uma gira, para além de um corpo. Como um povo. É o exercício
central que nós colocamos aqui.

Com as passagens construídas por Beatriz Nascimento, nossa pretensão é


nos geolocalizar dentro das nossas existências e de como elas atravessam a
História nos compondo enquanto seres subjetivos em essência. Nos compondo
afrofuturamente. As perspectivas organizacionais adotadas por Beatriz Nascimento
são fundamentais no dançar dessa pesquisa, no girar dessa composição a que nos
colocamos aqui.
Beatriz Nascimento nos guiou diante da perspectiva de refundação de um
conceito de Quilombo, que em sua trajetória de estudo fora intensamente deslocado
diante de estudos materialistas e ocidentalizados, não capazes de compreender,
entender e traçar as verdadeiras profundidades as quais o Quilombo tem em sua
essência. Beatriz suleia nossos entendimentos e compreensões nos chamando para
bater esse tambor ancestral que existe dentro de nós, e nos conectarmos a esse
Quilombo que transcende a materialidade e se refunda dentro de nossa existências
enquanto sujeitos africanos em diáspora.

A potencialidade que se descobre ao retirar o véu sobre os escritos de Beatriz


e compor junto dela esse bordado da história através da linha da subjetividade é
fundamental para a nossa sobrevivência. Descobri o pano que silencia os escritos
de nossos ancestrais em especial Beatriz Nascimento nos possibilita essa
perspectivação de um povo para além de uma delimitação sócio espacial, à partir do
entendimento de que Beatriz nos traz de que somos para muito além de
materialidade, de que somos espírito, de que somos Quilombo.

Beatriz Nascimento reconfigura e reencena as potencialidades do nosso Orí


através dos seus estudos acerca do Quilombo enquanto um Sistema Alternativo de
Organização Social. Em um gesto performático de transitar entre a diáspora e o que
antecedeu a ela, entre o que fomos, o que fizeram de nós e o que podemos via a
voltar a ser.

Através dessa travessia já desenhada por essa nossa grande ancestral nos
colocamos aqui a refletir sobre como esse corpo da mulher afrikana em diáspora, é em
si uma expressão desses Sistemas Alternativos de Organização Social. Que em sua
essência materializam esse resgate organizacional das nossas sociedades
ancestrais. Logo ao oraliturizarmos esse corpo, enquanto um Corpo-Quilombo temos
a:

matriz geradora de potencialidades de re-existência, resistiram na subalternidade


como quituteiras, rezadeiras, empregadas domésticas, babás, cozinheiras,
faxineiras, em nossa contemporaneidade, e conseguiram construir dinâmicas de re-
existência para se manterem vivas durante os 400 anos do regime escravista, dando
continuidade aos saberes e fazeres da ancestralidade negra-africana, a cultura da
oralidade, as produções intelectuais dos mitos e ritos, os conhecimentos na extração
de minerais, a culinária, os procedimentos da medicina popular, a riqueza das
religiosidades afro-brasileiras.

Dançamos espiraladamente com Beatriz Nascimento, a colocamos para girar


junto nesse construto investigativo aterrado: Abdias Nascimento, que ao se
apresentar nesta pesquisa reitera o processo panafricanista que Garvey e Malcolm
já nos gritavam lá atrás. E através da performance do Quilombismo nos colocamos a
refletir acerca das potencialidades gestadas por esse corpo preto que ascendeu
politicamente nessa desgraça coletiva da MAAFA americana.

Milton Santos ressalta que “o corpo humano é o primeiro e mais insubstituível


instrumento da produção do espaço." (SANTOS,1987), entender esse corpo não
somente enquanto um espaço de sobreacumulação temporal, mas principalmente
um corpo-espaço de sobrevivência temporal, nos ajuda a pensar na Encruzilhada
das novas geocosmospercepções nos apontadas por Milton ao compor Por Uma
Nova Geografia. É daqui que partimos para construir tudo o que ainda podemos vir a
voltar a ser.

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