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Vê-se o corpo da mulher. Inerte. Sem ação no mundo. É de lá que agora a voz
fala:
Maria Beatriz Nascimento, em Ôrí, filme que roteirizou e narrou em 1986, nos
apresenta a ideia de um corpo-documento, que guarda em si em suas memórias, a história e
vida de um continente. Impulsionada por sua proposta, me questiono sobre a possibilidade
de ser o corpo, então, uma dramaturgia. Uma dramaturgia que seja escrita não apenas dos
sinais visíveis e marcas físicas deste corpo, mas também de suas memórias e vivências.
Há, no entanto, um dado imprescindível sobre este corpo que busco investigar; seu recorte
de raça e gênero. Um corpo de mulher e preta. Em sua individualidade e multiplicidade.
Para tanto, é preciso entender este corpo, não apenas como uma “casca” que
contém uma “essência”, mas sim como uma totalidade, como um ser inteiriço, detentor e
produtor de saberes. Desta forma, os conceitos de "corpo-documento" (NASCIMENTO),
"escrevivências" (EVARISTO), "oralituras" (MARTINS), "arquivo” e “repertório" (TAYLOR),
"epistemologias somáticas" (PIZARRO, et. al) e "narrativa somática" (SANTOS), têm
colaborado para ampliar o entendimento do que é, e do que pode ser o corpo. Um corpo não
universal, não cartesiano, não bipartido entre alma e receptáculo, mas sim um corpo vivo,
histórico e político. Um corpo que sente, somatiza e nos guia. E se penso no corpo de uma
mulher preta, aquele sobre o qual tenho conhecimento de causa, por ser e me reaprender
constantemente como uma, penso neste corpo-memória-ancestralidade, um corpo que
performa negritudes, um corpo traumatizado pelo racismo, um corpo de resistência, um
corpo de luta e processo de libertação, um corpo que busca cicatrizar suas feridas e se
adornar de suas alegrias, de seus afetos.
Quando, em aula, relatei sobre a cor de minhas mãos serem a principal característica
delas, ou a primeira que me salta aos olhos e ao coração, no fundo me pergunto “o que isso
diz sobre mim, ou o que eu tenho a dizer sobre isso?”. Situada em minha pesquisa essa
pergunta, se delineia melhor sob a seguinte questão: “o que dessa cor que sou vai pra cena?
o que desse corpo-cor que sou é escrita e vai pra cena?”
De modo geral, sei que nossos conhecimentos corporais e nossa performance social
influenciam a construção de nossa performance artística, em específico das dramaturgias
cênicas, mas em que pontos e de que forma? Principalmente, se levarmos em consideração
todas as implicações de um corpo performer de negritude e traumatizado pelo racismo,
com leituras sócio-políticas impregnadas de estereótipos, silenciamentos e limitações. E
ainda se temos em conta que se teatro é “o lugar de onde se vê”, como o corpo da mulher
negra é visto em cena, quando o olhar dos outros, esse “bicho feroz” como diz Passô, é o
olhar da branquitude?
3. Pode o corpo de mulheres pretas ser uma possível intersecção entre as práticas em
Teatros Negros e o Teatro Performativo?
Referências
LIMA, Evani T. Por uma história negra do teatro brasileiro. Urdimento, Florianópolis, SC, v.1,
n.24, p. 92-104, Jul., 2015.
MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria,
RS, n.26, p. 63-81, Jun., 2003.
NASCIMENTO, Abdias do. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. Estudos
Avançados, São Paulo, SP, v. 18, n. 50, p. 209-224, Jan./Abr., 2004.
ÔRÍ. Direção de Raquel Gerber. Brasil: Versátil Home Video, 1989. Filme. (93 min.).
PASSÔ, Grace. Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali, 2018.
PIZARRO, Diego. Anatomia corpoética em (de)composições: três corpus de práxis somática
em dança. 2021. Tese (Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas), UFBA, Salvador,
2021.
SANTOS, Boaventura de S. O fim do império cognitivo: A afirmação das Epistemologias do
Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
JESUS, Cristiane S. C. Teatros negros e suas estéticas na cena teatral brasileira. 2016. 160f.
Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Arte), IDA-UnB, Brasília, 2016.
TAYLOR, Diana. O Arquivo e o Repertório: Performance e Memória Cultural nas Américas.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.