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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO

INSTITUTO DE ARTES - CAMPUS DE SÃO PAULO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES

LINHA DE PESQUISA: ESTÉTICA E POÉTICAS CÊNICAS


DISCIPLINA: ESTUDOS DO CORPO NAS ARTES CÊNICAS
Profª. Drª. Lilian Freitas Vilela
Profª. Drª. Carolina Romano de Andrade

Beatriz Nauali do Nascimento Alves

Vê-se o corpo da mulher. Inerte. Sem ação no mundo. É de lá que agora a voz
fala:

Nada é oco por aqui. Não, não é oco.


Tudo tão deslizante, como os cremes.
Escuro, tudo escuro. Escuro.
Se virássemos este corpo ao avesso, vocês entenderiam: aqui é um lugar
escuro, escuro.
E tudo isto que está aqui dentro: isto, isto, isto, isto aqui também, isto,
surpreende-se, boa noite, coração!, então é você, seu danadinho, olá!, se eu
virasse este corpo ao avesso, teria que encarar a fera lá fora…
Estão ouvindo? Você ouve, coração? Pulmão? Sangue? Osso? Lá fora existe
um bicho feroz, coisa de manter flechas e armas nas mãos! Sabem que nome
tem esse bicho? Sabem como se denomina esse bicho? Sabem que nome
tem?
O olhar dos outros.
Vaga Carne, GRACE PASSÔ

1. Pode o corpo ser uma dramaturgia?

Maria Beatriz Nascimento, em Ôrí, filme que roteirizou e narrou em 1986, nos
apresenta a ideia de um corpo-documento, que guarda em si em suas memórias, a história e
vida de um continente. Impulsionada por sua proposta, me questiono sobre a possibilidade
de ser o corpo, então, uma dramaturgia. Uma dramaturgia que seja escrita não apenas dos
sinais visíveis e marcas físicas deste corpo, mas também de suas memórias e vivências.
Há, no entanto, um dado imprescindível sobre este corpo que busco investigar; seu recorte
de raça e gênero. Um corpo de mulher e preta. Em sua individualidade e multiplicidade.
Para tanto, é preciso entender este corpo, não apenas como uma “casca” que
contém uma “essência”, mas sim como uma totalidade, como um ser inteiriço, detentor e
produtor de saberes. Desta forma, os conceitos de "corpo-documento" (NASCIMENTO),
"escrevivências" (EVARISTO), "oralituras" (MARTINS), "arquivo” e “repertório" (TAYLOR),
"epistemologias somáticas" (PIZARRO, et. al) e "narrativa somática" (SANTOS), têm
colaborado para ampliar o entendimento do que é, e do que pode ser o corpo. Um corpo não
universal, não cartesiano, não bipartido entre alma e receptáculo, mas sim um corpo vivo,
histórico e político. Um corpo que sente, somatiza e nos guia. E se penso no corpo de uma
mulher preta, aquele sobre o qual tenho conhecimento de causa, por ser e me reaprender
constantemente como uma, penso neste corpo-memória-ancestralidade, um corpo que
performa negritudes, um corpo traumatizado pelo racismo, um corpo de resistência, um
corpo de luta e processo de libertação, um corpo que busca cicatrizar suas feridas e se
adornar de suas alegrias, de seus afetos.
Quando, em aula, relatei sobre a cor de minhas mãos serem a principal característica
delas, ou a primeira que me salta aos olhos e ao coração, no fundo me pergunto “o que isso
diz sobre mim, ou o que eu tenho a dizer sobre isso?”. Situada em minha pesquisa essa
pergunta, se delineia melhor sob a seguinte questão: “o que dessa cor que sou vai pra cena?
o que desse corpo-cor que sou é escrita e vai pra cena?”
De modo geral, sei que nossos conhecimentos corporais e nossa performance social
influenciam a construção de nossa performance artística, em específico das dramaturgias
cênicas, mas em que pontos e de que forma? Principalmente, se levarmos em consideração
todas as implicações de um corpo performer de negritude e traumatizado pelo racismo,
com leituras sócio-políticas impregnadas de estereótipos, silenciamentos e limitações. E
ainda se temos em conta que se teatro é “o lugar de onde se vê”, como o corpo da mulher
negra é visto em cena, quando o olhar dos outros, esse “bicho feroz” como diz Passô, é o
olhar da branquitude?

2. Quais as especificidades do corpo da mulher preta são ou podem ser utilizadas


como dramaturgia, para a construção de uma cena, de uma estética?

Tecendo os pontos de encruza entre as práticas já realizadas por pessoas pretas na


cena por meio de um breve panorama das teorias e dramaturgias em/de Teatros Negros,
busco compreender quais as temáticas, práticas e conhecimentos são colocados em cena,
e como estes estão ligadas ao corpo da mulher preta; como ele tem sido representado. Em
princípio, alguns aspectos já podem ser observados em uma primeira análise, de acordo
com os escritos de NASCIMENTO, LIMA e JESUS, por exemplo: a busca por um novo
protagonismo crítico e complexo, visibilização social do/a sujeito/a negro/a, a retomada de
mitologias fundantes, a ancestralidade e os conhecimentos de matrizes africanas, são
alguns dos eixos fundantes de tais práticas.
Há ainda, pelo que vejo, uma armadilha na articulação destas aproximações entre as
práticas negras em cena, no sentido de superficial e equivocadamente relacionar as pautas,
temáticas e vivências discutidas na tentativa de romper as mazelas racistas e exorcizá-las
de nossos corpos, com o entendimento de que como pessoas pretas só sabemos falar
sobre racismo, como se fôssemos monotemáticos, limitados e resumidos ao que o racismo
espera de nós. Não! É possível construir cenas que tratam das negritudes sem o "pano de
fundo branco"? Como isso tem sido feito e o que diz sobre as poéticas negras?
Sem a pretensão de que esses estudos tomem proporções que eu não conseguiria
sustentar nesses breves dois anos de pesquisa é que estreito a análise mais aprofundada
para a trajetória e obra de três mulheres pretas artistas da cena contemporânea: Grace
Passô, Roberta Estrela D’Alva e Grada Kilomba, juntamente à construção de uma
dramaturgia performativa autoral minha. Me colocando em jogo, investigo as aproximações
e afastamentos entre nós quatro.
Estar em processo criativo e de investigação do próprio corpo, me faz compreender
na prática o que discutimos durante o curso, sobre a consciência de si e as potências
corporais. O que pode o meu corpo? Sinto que há muito que já sei, e muito a descobrir!

3. Pode o corpo de mulheres pretas ser uma possível intersecção entre as práticas em
Teatros Negros e o Teatro Performativo?

Colocando em foco aquilo que foi/será levantado sobre as práticas de mulheres


pretas, verifico se suas práticas podem ser enquadradas como parte do conceito de Teatros
Negros, e se simultaneamente podem ser lidas como cenas teatrais performativas.
A primeira hipótese que desenho é de que, sim, é possível o corpo da mulher preta
ser uma intersecção entre essas duas práticas, mas apenas se a cena/dramaturgia
performativa possuir recorte de raça; um Teatro Negro Performativo, ou um Teatro
Performativo Negro. Desta adjetivação surgem novos questionamentos: por que apenas os
Teatros Negros devem tratar de corpos racializados e as pautas raciais, sendo o racismo
uma mazela que demanda uma solução coletiva? Ou, porque deveríamos adjetivar, em
primeiro lugar? Se o teatro não é Negro não é nosso também?
Tem sido um caminho de muitas perguntas. Algumas delas creio que meu corpo
saberá responder, outras só podem ser respondidas em conjunto. Outras ainda, levarão um
tempo para serem compreendidas, até que o corpo as possa responder. Até lá, vamos
dançando sem medo dos bichos ferozes.

Referências

LIMA, Evani T. Por uma história negra do teatro brasileiro. Urdimento, Florianópolis, SC, v.1,
n.24, p. 92-104, Jul., 2015.
MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria,
RS, n.26, p. 63-81, Jun., 2003.
NASCIMENTO, Abdias do. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. Estudos
Avançados, São Paulo, SP, v. 18, n. 50, p. 209-224, Jan./Abr., 2004.
ÔRÍ. Direção de Raquel Gerber. Brasil: Versátil Home Video, 1989. Filme. (93 min.).
PASSÔ, Grace. Vaga Carne. Belo Horizonte: Javali, 2018.
PIZARRO, Diego. Anatomia corpoética em (de)composições: três corpus de práxis somática
em dança. 2021. Tese (Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas), UFBA, Salvador,
2021.
SANTOS, Boaventura de S. O fim do império cognitivo: A afirmação das Epistemologias do
Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
JESUS, Cristiane S. C. Teatros negros e suas estéticas na cena teatral brasileira. 2016. 160f.
Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Arte), IDA-UnB, Brasília, 2016.
TAYLOR, Diana. O Arquivo e o Repertório: Performance e Memória Cultural nas Américas.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

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