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A escrevivência de mulheres negras brasileias: memória e resistência ao racismo

Bianca Santana

Agradeço à Universidade Hebraica de Jerusalém e ao Instituto Brasil Israel o

convite para estar aqui hoje. Agradeço também pelas trocas, reflexões e aprendizados

neste seminário.

Antes de entrar propriamente no tema da minha internvenção, Brazilian black

women escrevivência (write-living): memory and resistance to racism, gostaria de

compartilhar com vocês uma cena que me pertubou por algum tempo. Ao final de uma

palestra, em São Paulo, um senhor elegante se levantou da plateia e perguntou porque

havia tanta violência no Rio de Janeiro. Ele mesmo respondeu:

— Porque as pessoas sequestradas na África, trazidas nos navios negreiros, que

morreram naquele cais do Valongo, não foram enterradas com dignidade, seus corpos

não receberam tratamento fúnebre adequado e suas almas seguem vagando. Enquanto

não trouxermos sacerdotes de todas as matizes espirituais para encomendar os corpos,

seguindo os rituais necessários, o Rio de Janeiro não terá paz.

Estive atenta à formulação, mas pensei que ele manifestasse algum adoecimento

psíquico. Mas repetidamente pensava na imagem evocada por ele. Eu ainda não

conhecia o livro “Ghosts of Slavery: A Literary Archaeology of Black Women 's Lives”,

publicado por Jenny Sharpe, nos Estados Unidos, em 2003:

Slaves believed that their earthly shadows lingered behind unless the

appropriate burial rituals were performed. Their lost stories can be thought of

as a violence analogous to the uprooting that denied New World Africans

their burial rites. (SHARPE, 2003, p. xi).

Precisei da autora norte-americana para admitir que aquele senhor tinha razão e

traçar um paralelo com meu tema de pesquisa. Enquanto as histórias de pessoas negras

não forem suficientemente contadas, seguiremos assombrados, repetindo e repetindo e


repetindo violência, negação de direitos, discriminação e morte a pessoas negras no

Brasil.

Há inúmeras forças, grupos, movimentos e ações de resistência ao racismo no

Brasil. Tenho me dedicado a olhar para a resistência de mulheres negras que narram

nossas histórias escondidas. Mulheres que têm despachado o que nos assombra por

meio daquilo que Conceição Evaristo, uma escritora brasileiras das mais importantes,

chamou escrevivência.

Surge a fala e um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo

vivido. A escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e

as desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade

teima em querer inferiorizada, mulher e negra (EVARISTO, 2005, p.

205).

Ano passado, em 2021, oferecemos na Casa Sueli Carneiro, organização de

cuidado de memória que dirijo, em São Paulo, um ciclo de conferências chamadas

“Epistemologias Negras”1. Conceição Evaristo nomeou sua conferência como:

“Escrevivência: imagens e espelhos”. Ela trouxe abebês de Oxum e Iemanjá para nos

mostrar como esses espelhos, ferramentas de orixás femininos das águas, permitem não

apenas ver os copos negros nele refletidos, mas acessar o reflexo de nós. A

subjetividade dos corpos de mulheres negras tão negada pelo racismo. Não é sobre o

espelho de Narciso, que afoga. Mas sobre o espelho de Oxum, que contempla a beleza,

percebe os inimigos antes que se aproximem, devolve o que vem em sua direção. É

também sobre o espelho de Iemanjá, que embala e acolhe toda a coletividade.

A escrevivência, em primeira pessoa do plural, não tem o objetivo de ninar os da

Casa Grande, repete Conceição Evaristo com frequência, mas sim acordá-los de seus

1
Em conjunto com uma instituição de ensino, o Insituto Singularidades, convidamos duas autoras e dois
autores negros brasileiros, todos com mais de 70 anos de idade, a gravarem conferências. Dedicamos um
mês de encontros síncronos e assíncronos para debater, em um grupo de cerca de 90 pessoas, cada uma
das conferências.
sonhos injustos. O corpo vivido se apresenta na escrita, sem distância entre enunciador e

objeto narrado. “Palavras cozinhadas pacientemente por quem vive a violência racial e

de gênero são disparadas como lâminas”, disse Conceição Evaristo.

Em minha tese de doutorado, analisei a escrevivência de mulheres negras

brasileiras como resistência ao racismo. Só ali conheci autoras que deveriam compor o

cânone brasileiro e ser ensinadas nas escolas.

Mais ou menos em 1770, no século 18, Esperança Garcia, mulher negra

escravizada, enviou uma carta, escrita por ela, ao então governador do Piauí

denunciando as situações de maus tratos a que ela e sua comunidade de escravizados

estavam submetidas. No século 18 nem as pessoas brancas donas de tudo sabiam ler no

Brasil. Esperança Garcia lia, escrevia e ao narrar as experiências terríveis de seu corpo

compreendia as palavras como instrumentos de transformação daquela realidade.

Garantir a sobrevivência física, a preservação da saúde e da capacidade cognitiva é mote

da escrevivência.

Mas é evidente que a resistência não para no sobreviver. Ao analisar a

escrevivência de muheres negras brasileiras, aproximadamente 340 textos de autoras

conhecidas e desconhecidas, ficou explícito como a esccrevivência é também

elaboração de traumas, do modo como a psicanálise ensina sobre o narrar. Na

escrevivência, há também críticas aos processos de exclusão racial, social e de gênero. E

ao contar nossas histórias, mulheres negras propõem perspectivas próprias de interpretar

o presente e o passado. E talvez o mais importante: pela escrevivência mulheres negras

têm experimentado inventar caminhos de emancipação individual e coletiva.

Um garoto negro do sul do Brasil disse a Conceição Evaristo, depois de uma

palestra: “entendi, escrevivência é sobre nós”. E por ter conhecido uma apropriação tão

simples e exata do que é a escrevivência, de que ela é sobre nós, peço licença para

apresentar brevemente a vocês a biografia de Sueli Carneiro, ativista do movimento


negro e do movimento feminista no Brasil, filósofa relevante no país, mãe da Luanda,

que está aqui conosco, assinada por mim.

Esta biografia, que conta a história de Sueli Carneiro e, de algum modo, a vida

de mulheres negras de sua geração e também a história do movimento feminista e do

movimento negro contemporâneo, foi editada pelo Ricardo Teperman, que também está

aqui conosco; em interlocução com o também editor Fernando Baldraia, ambos da

Companhia das Letras. E para me dedicar a esta escritam recebi uma bolsa do Instituo

Ibirapitanga, no Brasil, dirigido por Iara Rolnik, que também está aqui. Inicialmente eu

não tratri esta biografia como exemplo de escreviência, mas pensando nessa escrita de

nós, seria uma oportunidade bonita perdida.

Infelizmente não terei tempo – nem inglês – para contar de toda a pesquisa e

processo de escrita para vocês. Mas deixo exemplares do livro, em português, aqui na

biblioteca da universidade. E foco nos capítulos iniciais do livro, sobre a história da

família Carneiro.

Talvez em Israel, onde a regra é conhecer a própria genealogia, apresentar uma

pesquisa genealógica faça pouco sentido. Mas no Brasil, pessoas negras admitem como

impossível saber nossas origens, o que é parcialmente verdadeiro. A narrativa oral das

famílias negras não costuma ir além da terceira geração. E acreditamos no mito de que

todos os documentos de negras e negros foram queimados depois da abolição da

escravidão legal. Minha família, como exemplo: sei o primeiro nome das minhas avós e

avôs, sei o nome das cidades onde nasceram e só. Para trás, sei que há mistura racial

entre negras e negros sequestrados no tráfico transatlântico, indígenas e europeus pobres

da Península Ibérica. E só. Sueli Carneiro também sabia apenas o primeiro nome dos

avós e a região de Minas Gerais de onde seu pai, José Horácio Carneiro, avô da Luanda,

que está aqui, havia nascido.


Em 2018 estive em Ubá, Minas Gerais, e em algumas cidades próximas a Ubá,

procurando documentos em igrejas e cartórios, entrevistando especialistas, pesquisando

em çivros que contam das famílias brancas que escravizaram. O resultado dessa

pesquisa reafirmou a dificuldade de encontrar informações documentais sobre ancestrais

negros, mas deixou a sensação de que não é impossível. Com mais tempo e mais

dinheiro eu poderia ter ido para trás. E espero ir.

Em minha tese de doutorado escrevi um capítulo sobre essa busca por

documentos, mas há muito a aprofundar. Recentemente, estive nos Estados Unidos e


encontrei na Bilioteca do Congresso mais de 40 livros de referência sobre a busca da

genealogia de famílias negras. Há métodos estruturados e arquivos organizados sobre os

norte-americanos. No Brasil, precisamos conhecer melhor os arquivos já organizados e

ter mais facilidade em acessar documentos. Há inúmeros arquivos privados que não

conhecemos, daquelas e daqueles que traficaram e escravizaram pessoas. Tenho certeza

de que esses documentos também estão esperando por nós.

O povo negro brasileiro não tem uma terra para onde voltar. Também não

traremos sacerdotes de diferentes regiões africanas para cuidar dos corpos violentados e

despejados em valas comuns. Mas a busca pelas origens, aprendi recentemente com

Saidya Hartman, nutre nossa resistência e nossa capacidade de imaginar não apenas

quem somos, mas quem queremos ser. Narrar nossas histórias cuida das feridas

coletivas e pode, oxalá, ajudar a interromper o ciclo perverso de morte imposto à

população negra brasileira pelo racismo.

Referências bibliográficas:

EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: uma escre (vivência) de dupla face. Mulheres

no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, p. 201-212, 2005.

_____________. Escrevivência: imagens e espelhos. Conferência ministrada no ciclo

sobre Epistemologias Negras. Casa Sueli Carneiro e Instituto Singularidades, 2020.

HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica da escravidão.

Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

SANTANA, Bianca. A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao

racismo. Doutorado em Ciências)-Programa de Pós-Graduação em Ciência da


Informação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2020.

_______________. Continuo Preta: a vida de Sueli Carneiro. São Paulo: Companhia

das Letras, 2022.

SHARPE, Jenny. Ghosts of Slavery: A Literary Archaeology of Black Women's

Lives. U of Minnesota Press, 2003.

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