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a voz, o corpo e a escuta

esse texto é a continuação do anterior, ou talvez um aprofundamento nas reflexões que surgem das
perguntas e percepções que me atravessam quando trabalho o corpo.

cena 01

carrego a inquietação em minha trajetória como artista e educadora: quais são as vozes da minha voz?
quais vozes me alimentam? quais me limitam? que vozes escuto? onde estão as vozes que validam minha
voz? e as que invalidam? por que carrego comigo muitas vozes que me silenciam? de onde elas vêm e o que
causam em meus processos e minha vocalidade?

vozes mercantilizadas, vozes hegemônicas, maneiras de fazer validadas por uma genealogia [?] ou seria um
sistema [?]...

a busca é pela liberdade criativa, pelo acolhimento e aceitação do ser através da voz, pela validação de
TODAS as vozes, pela validação da voz própria. tudo passa pela escuta, como exercício de alteridade. [para a
antroposofia, o desenvolvimento do sentido da escuta carece de compaixão - ver os doze sentidos] a
validação de uma voz passa pela relação entre eu e a outra, é intersubjetiva.

a busca é por uma desierarquização da vocalidade dentro de um contexto de pensamento não binário.
quebrar as polarizações para requalificar julgamentos: melhor/pior, certo/errado, bom/ruim,
adequado/inadequado, permitido/proibido…

a busca é por desenvolver uma outra escuta, consciente dos parâmetros culturais aos quais pertencemos e
capaz de transgredi-los, ampliando o campo relacional com os sons, com as vozes, com as pessoalidades.

falei muito sobre relação indivíduo-coletivo, sobre como os coletivos são espaços acolhedores para que uma
pessoa possa atravessar seu processo pessoal, com afetividade e cuidado. retorno a formas rituais, conexão,
catarse, são palavras antes pouco comuns nos vocabulários de estudos da voz.

as formas tradicionais de ensino e aprendizagem de música não me cabem, mas permeiam meu fazer desde
sua raiz - o nome disso é estrutural. a busca é, por assim dizer, por uma transformação radical. uma
aventura para dentro e para fora, um mergulho, como árvore, da raiz à copa. o processo aprofunda o nível
de consciência. a travessia tem muitos sentimentos, vulnerabilidades, medo, incertezas, surpresas, delícias,
vertigens, alegrias, memórias ancestrais…

as palavras chaves que rodearam inicialmente a pesquisa:


escuta, requalificação de julgamentos, empatia, intersubjetividade, experiência, abertura, relação,
autonomia, jogo.
cena 02

o momento em que eu me senti “outra”, ou a vivência da diáspora, ainda que breve, de uma mulher branca
de São Paulo viajando pelo México. existe um lugar para o corpo, e esse lugar, como espaço em movimento,
cuja fronteira performatiza, na diáspora me deslocou da eu para a outra. era a outra corpo-voz, desde a
língua falada à forma como meu corpo ocupava e se movimentava no espaço.

o sentido de corpo-político e de corpo-território se fez em meu corpo nessa experiência. e então o caminho
decolonial se abriu a uma outra dimensão - dessa experiência entendi o que significa o estrutural em meu
corpo. minha experiência de corpo sempre foi a de ser a norma[tizada]. sabemos que o normal está
construído no contexto colonialista que vivemos. a invasão das américas pelos europeus impôs uma cultura
sobre outras, validando apenas uma cosmogonia sobre a diversidade de culturas e povos que habitavam ou
foram trazidos à força para cá.

foi importante entender o que é ser outra - perceber o exercício de alteridade dentro de um contexto
decolonial - porque no fundo, pensando estruturalmente, como pessoa branca eu sou sujeita autorizada
num contexto hegemônico. minha voz migrante é validada, na américa latina (na europa seria?), e ali sou a
outra, o outro corpo, estrangeira. como branca, apesar de falar sobre eu e outra, nunca havia pensado na
profunda desigualdade que é ser outra quando seu corpo é negado, invalidado ou não identitário - e o
quanto isso interfere na escuta, numa escuta que se propõe aberta… qual é o grau de abertura?

cena 03 - referências que atravessam

tem uma live do Fladem Brasil absolutamente necessária para se pensar a escuta e o fazer desde esse lugar
decolonial, nesse link: https://youtu.be/VJaxKl94Ggk - com principal atenção às falas do Samuel Lima e do
Marcos Santos.

live despeja-fichas no quesito escuta decolonial - absolutamente necessária. vou voltar a ela na cena 04, na
tentativa de juntar as peças aqui.
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o livro da bell hooks - Ensinando a Transgredir (claro que Paulo Freire está aí o tempo todo, a bell hooks teve
experiências diretas com Freire e o cita constantemente em seu trabalho), com destaque para esse capítulo
aqui: bell hooks - ensinando a transgredir - cap I
deixo umas passagens, para dar gosto de ler o livro todo (que reacendeu uma paixão por ensinar e aprender
e escrever e estar em relação):

A educação como prática de liberdade é um jeito de ensinar que qualquer um pode aprender. Esse processo
de aprendizagem é mais fácil para aqueles professores que também creem que sua vocação tem um
aspecto de sagrado; que creem que nosso trabalho não é o de simplesmente partilhar informação, mas sim
o de participar do crescimento intelectual e espiritual de nossos alunos. [...]
[...] fui inspirada por aqueles professores que tiveram coragem de transgredir as fronteiras que fecham cada
aluno numa abordagem do aprendizado como uma rotina de linha de produção. Esses professores se
aproximam dos alunos com a vontade e o desejo de responder ao ser único de cada um, mesmo que a
situação não permita o pleno surgimento de uma relação baseada no reconhecimento mútuo.
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o conceito de Opacidade, como definido por Glissant (compartilhado pela Sandra Xis em seu grupo de
estudos de voz ano passado, e que chegou encaixando peças desse quebra-cabeças).
o artigo completo está aqui: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/64102/66809

destaco umas passagens:


Aceitar as diferenças é certamente perturbar a hierarquia da escala. “Compreendo” tua diferença, quer
dizer, eu a coloco em relação sem hierarquizar com minha norma. Admito tua existência em meu sistema.
Eu te crio novamente. – Mas talvez seja preciso que nós terminemos com a própria ideia escala. Comutar
qualquer redução.
Não apenas consentir no direito à diferença, mas, antes disso, no direito à opacidade, que não é o
fechamento em uma autarquia impenetrável, mas a subsistência em uma singularidade não redutível.
Opacidades podem coexistir, confluir, tramando os tecidos cuja verdadeira compreensão levaria à textura
de certa trama e não à natureza dos componentes. Renunciar, por um tempo talvez, a essa velha
assombração de surpreender o fundo das naturezas. Seria grandiosa e generosa a iniciativa de inaugurar tal
movimento, cuja referência não seria a Humanidade mas a diferença exultante das humanidades. Caduca,
assim, a dualidade de pensar em si mesmo e pensar o outro. Qualquer Outro é um cidadão e não mais um
bárbaro. O que está aqui está aberto, tanto quanto o de lá. Eu não saberia projetar de um a outro. O aqui-lá
é a trama que não trama fronteiras. O direito à opacidade não estabeleceria o autismo, ele fundamentaria
realmente a Relação, em liberdades.
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aude lorde - la hermana, la extranjera - cap. 2 - la transformación del silencio en lenguaje y acción
esse livro é um marco para mim. destaco uma sequência de parágrafos do segundo capítulo, que aborda as
vulnerabilidades, o medo e outros temas que atravessam a prática da pesquisa com voz.

Al tomar una conciencia obligada y esencial de mi mortalidad, de lo que deseaba y le pedía a la vida, por
breve que fuera, mis prioridades y omisiones se perfilaron con cruel precisión, y fue de mis silencios de lo
que más me arrepentí. ¿De qué he sentido miedo alguna vez? De preguntar o de hablar por creer que iba a
hacer daño, o a provocar una muerte. Pero siempre nos estamos haciendo daño de una manera u otra, y el
dolor termina por transformarse o por cesar. La muerte es, por otra parte, el silencio definitivo. Y puede
presentarse en cualquier momento, ahora mismo, tanto si he dicho lo que era necesario decir como si me
he traicionado incurriendo en pequeños silencios a la vez que planeaba llegar a hablar algún día, o esperaba
a que me llegaran palabras prestadas. Con todo esto, empecé a vislumbrar una fuente interna de poder que
deriva de saber que, si bien lo más deseable es no sentir miedo, también se puede obtener una gran
fortaleza aprendiendo a analizar el miedo.

¿Qué palabras son ésas que todavía no poseéis? ¿Qué necesitáis decir? ¿A qué tiranías os sometéis día tras
día, tratando de hacerlas vuestras, hasta que por su culpa enfermáis y morís, todavía en silencio? Puede que
para algunas de las aquí presentes, yo sea el rostro de uno de vuestros miedos. Porque soy mujer, porque
soy Negra, porque soy lesbiana, porque soy yo misma... una mujer Negra, poeta y guerrera dedicada a su
trabajo, que ha venido a preguntaros, ¿os dedicáis vosotras al vuestro?

Ni qué decir tiene que tengo miedo, porque la transformación del silencio en palabras y obras es un proceso
de autorrevelación y, como tal, siempre parece plagado de peligros. Cuando le expliqué el tema que íbamos
a tratar en este encuentro, mi hija me dijo: "Háblales de por qué nunca se llega a ser por completo una
persona cuando se guarda silencio, porque en tu fuero interno siempre hay una parte de ti que quiere
hacerse oír y, cuando te empeñas en no prestarle atención, se va acalorando más y más, se va enfureciendo,
y si no le das salida, llegará un momento en que se rebelará y te pegará un puñetazo en la boca desde
dentro".

Los motivos del silencio están teñidos con los miedos de cada cual; miedo al desprecio, a la censura, a la
crítica, o al reconocimiento, al reto, a la aniquilación. Mas, por encima de todo, creo que tememos esa
visibilidad sin la cual no es posible vivir de veras.

cena 04 - reflexos no caminho

essa lista aqui é um resumo de um olhar para as práticas de ensino-aprendizagem de música em um viés
não capitalista - outros modos de fazer
opacidade como novo viés para o entendimento da alteridade
ritos, rituais
estado de presença, estado de escuta, estado de brincar
la que no sabe, la que aprende
comunidade de aprendizagem
conhecimento não linear e não planificado
elementos da música como caminhos, pistas, ferramentas
gosto pelo processo
processos comunitários
colaboração/ cooperação
processos catárticos
deslocamentos
errâncias
derivas

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