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RITA MARIA BRANDÃO

VOZ E PROCESSOS CRIATIVOS EM AMBIENTES


DE ENSINO-APRENDIZAGEM

Trabalho apresentado ao Departamento de


Música da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, formulado sob a
orientação do Profa. Dra. Susana Cecilia
Igayara, para a Conclusão de Curso de
Licenciatura em Música.

CMU-ECA-USP
São Paulo, 2015
...la creatividad es infinita...

2
AGRADECIMENTOS

À Profa. Dra. Susana Igayara, que me orientou nesse trabalho, por clarear os caminhos que
integram a escrita e a experiência, o saber acadêmico e a vivência, por auxiliar na organização das
ideias e pela abertura e acolhimento para com minhas propostas.
À Profa. Dra. Teca Alencar de Brito, pro brincar junto, e pela participação fundamental na
integração desse trabalho junto ao FLADEM, abrindo as portas para experiências internacionais
muito preciosas. Ao Prof. Dr. Pedro Paulo Salles, pelas aulas inspiradoras, por acreditar no ensino a
partir da criatividade e por contribuir com minha coleção de sons.
À Profa. Dra. Regina Machado, por ter me iniciado no universo da leitura acadêmica, com
as reuniões do grupo de estudos do Canto do Brasil (desde 2007) e por abrir o espaço da escola para
o desenvolvimento das atividades práticas que deram origem e alimentaram esse trabalho.
À Ethel Batres, do FLADEM Guatemala e do Programa ¡Viva la Música!, pelo convite,
organização e produção dedicada da jornada pedagógica pela Guatemala e El Salvador. Ao Carlos
Mota, que junto com Ethel nos acompanhou pelas diversas cidades, com cuidado e paciência. E a
Manoel Portillo, do FLADEM El Salvador, por nos receber e compartilhar conosco seu precioso
trabalho musical.
Ao Tiago Pinheiro, que abriu as portas do Coralusp lá atrás, quando decidi que iria fazer
música. Foi ali que tudo começou, e foi importante voltar com essas propostas, muito inspiradas por
esses anos de vivência musical. À Beth Amin, por facilitar esse retorno, abrindo espaço para as
oficinas, e pela generosidade em compartilhar seus conhecimentos em voz e música.
Aos mestres de sempre, Fernando Barba, Stenio Mendes, Consiglia Latorre, Isla Jai, Thomas
Adam, Fernando Machado (tem um pouco de cada um nesse trajeto). Aos mestres de agora,
Marcelo Gama, Míriam Dascal e Helena Bastos.
Aos amigos e parceiros do Coro Profano e da Nariz de Orquestra, com quem posso
aprender, errar e crescer – é muito bom ter esse espaço de experimentação musical, aberto e vivo,
onde ideias surgem e se desenvolvem. À família do Projeto Alberto Seabra 1128, em especial ao
José Vieira, pelo apoio afetivo constante.
Ao Max Schenkman, parceiro de criatividade e de vida, fonte inesgotável de ideias, pela
cumplicidade e generosidade, por ter embarcado nessa comigo. Não há palavras que expressem
essa gratidão.

3
RESUMO

O presente trabalho relaciona experiência acadêmica e atuação prática nas áreas de música
vocal, processos coletivos e criatividade em ambientes de ensino-aprendizagem de música. O
percurso pedagógico teve início com o projeto de Iniciação Científica, realizado com apoio da
Universidade, intitulado “Processos criativos a partir da canção brasileira” e se desdobrou em uma
série de Oficinas de práticas vocais criativas. Neste trabalho, recupero os principais conceitos
contidos na IC, distendendo-os às atividades desenvolvidas nas oficinas, com o objetivo de discutir
os processos de ensino-aprendizagem de música para adultos na perspectiva da voz, do corpo e da
criatividade. A metodologia adotada é a da pesquisa-ação, que pressupõe uma atitude auto-reflexiva
e o diálogo constante entre teoria e prática. No primeiro capítulo apresento discussão sobre os
conceitos relativos ao trabalho. Em seguida, realizo uma análise dos processos vivenciados na IC e
nas Oficinas realizadas. Nas considerações finais, retomo as ideias principais, observando seus
reflexos nas atividades que desenvolvo e projetando a continuidade do processo. No apêndice,
apresento breve discussão sobre os exercícios utilizados, seguido da descrição dos mesmos, com
objetivo de contribuir com material para prática e reflexão.

PALAVRAS-CHAVE

Criatividade; Ensino-aprendizagem; Processos Coletivos; Voz; Corpo.

4
SUMÁRIO

Abreviaturas p. 6
Lista de Figuras p. 7
Lista de exemplos musicais p. 8

Introdução p. 9

Capítulo 1: Corpo, voz e criatividade p. 11


1.1 O corpo p. 11
1.2 O corpo no processo de ensino-aprendizagem musical p. 13
1.3 O corpo e a voz p. 15
1.4 Criatividade e ensino-aprendizagem p. 16

Capítulo 2: Da iniciação científica às oficinas: um percurso pedagógico p. 21


2.1 O Projeto de iniciação científica p. 21
2.2 As Oficinas p. 25
2.2.1 Práticas criativas em música brasileira: baião p. 25
2.2.2 Voz e criação coletiva: Coralusp e FLADEM p. 28
2.2.3 Voz e criatividade: Guatemala e El Salvador p. 34

Conclusão p. 40

Bibliografia p. 42

Apêndice 1 - Exercícios p. 43

5
ABREVIATURAS

SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP


FLADEM - Foro Latinoamericano de Educação Musical.
IC - Iniciação Científica.
GEPEMAC - Grupo de Estudos e Pesquisas Multidisciplinares nas Artes do Canto
Fig. - Figura.
Ex. - Exemplo
5J - Intervalo de quinta justa.
4J - Intervalo de quarta justa.
PRECEU - Pró-reitora de Cultura e Extensão da USP.

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Lista de Figuras

Fig. 1 - Partitura gráfica criada coletivamente para o arranjo produzido


Fig. 2 - Fotograma do vídeo da apresentação do Vozeiral em junho de 2014 – vídeo
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=U1WJwEUy-Is
Fig. 3 - Apresentação da Nariz de Orquestra (foto: arquivo pessoal)
Fig. 4 - Resumo das oficinas realizadas no XX seminário do FLADEM – vídeo
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dgR-SAt1I7o
Fig. 5 - Gaseosa – composição final da terceira oficina realizada no XX seminário do
FLADEM – vídeo disponível em https://youtu.be/G0R_oBhT6wc
Fig. 6 - Itinerário completo das atividades realizadas na Jornada Pedagógica –
Guatemala e El Salvador.
Fig. 7 - Resumo da jornada pedagógica pela Guatemala e El Salvador – vídeo
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=PUDxS36z36kc
Fig. 8 - Composições finais da oficina realizada para 120 adolescentes das Normales
de Música – vídeo disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=h6Wn2DI86f4

7
Lista de Exemplos Musicais

Ex. 1 - Exemplo de exercício de vocalização com três vogais


Ex. 2 - Exercício de vocalização com uma vogal

8
INTRODUÇÃO

O presente trabalho relaciona experiência acadêmica e atuação prática nas áreas de música
vocal, processos coletivos e criatividade em ambientes de ensino-aprendizagem de música. Realizo
essa discussão numa perspectiva bastante pessoal, valendo-me de minha experiência como
educadora musical (principalmente na área de práticas vocais e canto popular), artista e aluna do
curso de licenciatura em música da Universidade de São Paulo.

A opção pelo curso de licenciatura em música na universidade surgiu da necessidade de


refletir sobre a prática, aprofundar os conhecimentos, e ampliar os horizontes dentro das áreas de
atuação com as quais me relaciono. No decorrer dessa experiência tive a oportunidade de
desenvolver um projeto de Iniciação Científica, com apoio da Universidade, sobre processos
coletivos e canção brasileira. A pesquisa, intitulada “Processos de criação coletiva a partir da
canção brasileira”, sob orientação da Profa. Dra. Susana Cecilia Igayara, foi desenvolvida com um
grupo amador e investigou minha atuação como educadora e condutora de um processo de criação
coletiva de um arranjo vocal.

Esse processo gerou um relatório e uma série de oficinas realizadas posteriormente à


pesquisa. O trabalho foi apresentado no 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP
(SIICUSP), obtendo destaque, sendo selecionado para a Mostra de Destaques (segunda etapa do
processo) em março de 2015.

Neste trabalho, recupero os principais conceitos contidos no projeto de iniciação científica,


distendendo-os às atividades desenvolvidas nas oficinas, com o objetivo de discutir os processos de
ensino-aprendizagem de música para adultos na perspectiva da voz, do corpo e da criatividade.
Destaco os seguintes pontos: corpo como figura central do aprendizado musical; cognição corporal
(o corpo produz conhecimento durante a ação); corpo e a individualidade do aprendizado; relação
entre corpo e voz; criatividade e ensino-aprendizagem; interação entre as linguagens da música e da
dança.

9
Ao abordar o corpo e a voz como centrais no processo de ensino-aprendizado, compreendo
esse trabalho como capaz de lidar com a experiência pessoal, com maneiras diversas de responder a
um mesmo estímulo. Para tanto, desenvolvo a discussão à luz do conceito de pedagogia aberta1,
donde entende-se uma pedagogia inclusiva, contempladora da diversidade e da individualidade no
espaço coletivo. Por pedagogia aberta entendo:

“[...] não atar-se a modelos, porém sem desdenhar os modelos. Abertura é ampliar nossa
visão com discernimento entre o que é aceitável e o que é necessário descartar. Abertura é
eliminar prejuízos, soberbas, dogmatismos e preconceitos, é aceitar outros modos de
organizar o ensino. Mas não apenas pedagogicamente. A real abertura é mental, é a
aceitação, compreensão e aproveitamento da diversidade estética, filosófica, pedagógica,
ideológica e musical” (Simonovich, 2009: 19)2.

Isso implica numa atitude de constante atenção, para adaptar-se a cada momento às
diferentes circunstâncias em que se desenvolve a atividade educativa; perceber desde o contexto
social, cultural e grupal quanto as situações emergenciais que podem ocorrer; saber observar e
reconhecer quando se faz necessária alguma mudança de atitude pedagógica imediata para que se
possa continuar o processo de educação musical; estar em constante processo de observação e
reflexão sobre a própria atuação (Simonovich, 2009: 22). O conceito de pedagogia aberta pressupõe
a atitude de docente reflexivo, aquele que:

“[...] não descarta a prática coletada ou a teoria fornecida por especialistas, mas, no entanto,
busca ou cria material, se interessa por ler sobre educação musical, participa de congressos,
seminários ou jornadas (não apenas com intenção de obter pontuação) e aplica o que aprende
em sua prática pedagógica; mas sobretudo possui seus próprios critérios construídos
mediante a reflexão baseada em sua experiência, leitura e observação de seus alunos”
(Simonovich, 2009: 22)3.

Dessa maneira compreendo esse trabalho como um espaço de discussão e troca de


referências e experiências, em que, mais do que apresentar soluções fechadas, métodos e

1
Pedagogia aberta é o princípio orientador do FLADEM, Foro Latinoameircano de Educação Musical, entidade
formada por educadores musicais da América Latina que investiga a problemática da educação musical a partir das
realidades e particularidades de cada país, objetivando a troca de informações e experiências. Para saber mais sobre o
FLADEM, ver www.fladem.info, sítio oficial da associação.
2
“[...] no atarse a modelos, pero sin desdeñar modelos. Apertura es ampliar nuestra visión, pero con discernimiento
entre aquello que es aceptable y aquello que es necesario descartar. Apertura es eliminar prejuicios, soberbias,
dogmatismos y preconceptos, es aceptar otros modos de organizar la enseñanza. Pero no sólo en lo pedagógico. La real
apertura es mental, es la aceptación, comprensión y aprovechamiento de la diversidad estética, filosófica, pedagógica,
ideológica y musical” (Simonovich, 2009: 19).
3
“[...] no descarta la práctica recopilada o la teoria suministrada por expertos, pero sin embargo busca o crea material,
se interessa por leer sobre educación musical, participa en congressos, seminarios o jornadas (y no con la sola intención
de obtener puntaje) y aplica lo que toma de estos en su práctica pedagógica; pero sobre todo tiene sus próprios criterios
construidos mediante la reflexión baseada en su experiencia, lectura y observación de sus alumnos. (Ibid. 22).

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procedimentos definitivos, procura investigar e compreender os mesmos, observando as diferentes
interações que estabelecem com os indivíduos, as particularidades de cada experiência, as
transformações sofridas ao longo do processo e as possíveis e futuras distensões do mesmo.

A metodologia adotada é a da pesquisa-ação, que pressupõe uma atitude auto-reflexiva e o


diálogo constante entre teoria e prática. Toda a reflexão gerada pela pesquisa teórica dá vida às
atividades realizadas, no sentido de orientar escolhas de procedimentos, avaliar os processos, e
manter acesa a chama do questionamento. Ao mesmo tempo, o conhecimento produzido nas
atividades práticas aponta novos caminhos para a pesquisa teórica, num constante processo de
retroalimentação.

No primeiro capítulo, apresento discussão dos principais conceitos a partir dos referenciais
teóricos. No segundo capítulo realizo um relato analítico da trajetória desse trabalho, partindo de
um resumo do projeto de IC e suas distensões nas oficinas realizadas. Nas considerações finais
retomo algumas questões pertinentes aos processos, observo seus reflexos em outras atividades que
realizo e lanço meu olhar para a continuidade da pesquisa.

As oficinas foram realizadas no período de setembro de 2014 a janeiro de 2015:


- “Práticas criativas em música brasileira: baião”, realizada no Departamento do Música da
USP direcionada aos cantores do Gonville and Caius College Choir no evento Perspectivas
transculturais em canto coral: USP – Cambridge, organizado pelo Comunicantus: Laboratório Coral
e pelo GEPEMAC (setembro de 2014);
- “Voz e Processos Criativos” para dois grupos do Coralusp dirigidos por Tiago Pinheiro
(setembro de 2014);
- Oficinas massivas “Voz e criação coletiva” no XX Seminário do FLADEM, realizado na
Cidade de Heredia na Costa Rica, para educadores musicais da América Latina (setembro de 2014);
- “Voz e Criação Coletiva”, realizada no evento Voz na tenda – 1ª jornada PRECEU/
Coralusp de voz e técnica vocal, a convite de Beth Amin (novembro de 2014);
- “Voz e criatividade” em jornada pedagógica de vinte dias pela Guatemala e El Salvador
atendendo a um público formado exclusivamente por músicos, estudantes de música e educadores
musicais (janeiro/ 2015).

11
Capítulo 1: Corpo, voz e criatividade

1.1 O corpo

O corpo não é somente esse agregado de membros gesticulando sob nossos olhos; mais
profundamente é a intensidade do gesto interior, subitamente manifestada na plenitude da
voz. É a nossa maneira de estar no mundo, nosso modo de existir no tempo e no
espaço.(Zumthor, 2005: 165)

Antes de iniciar a discussão sobre o corpo no processo de ensino-aprendizagem, considero


importante discorrer brevemente sobre a visão de corpo que permeia esse trabalho. Por serem
figuras centrais nos processos aqui desenvolvidos, suas concepções influenciaram substancialmente
as escolhas realizadas na elaboração das propostas apresentadas e dos caminhos didáticos
percorridos.

Durante muito tempo, a concepção de corpo esteve à luz do paradigma cartesiano, que
dissocia corpo e mente, tratando o corpo a partir de seu aspecto mecânico sujeito ao saber da mente.
Segundo essa concepção, a mente torna-se “a única fonte de conhecimento da vida ativa” (Dascal,
2008: 42). A dissociação entre corpo e mente pressupõe que o corpo não produz conhecimento, e
que a ação corporal é um ato puramente mecânico.

No entanto, hoje se sabe que corpo e mente estão profundamente implicados, e que o
conhecimento se dá a partir do diálogo entre a percepção corporal e os processos mentais.

“Quando pesquisam o corpo e a mente, os fenomenólogos levam em conta a existência, ou


seja, o mundo e a vida. Não basta dividir e classificar o corpo e, separadamente, estudar as
funções e as possibilidades da mente. É preciso compreender de que forma corpo e mente se
interpretam e estabelecem, no interior de uma unidade indissolúvel, infinitas conexões com o
mundo e a vida” (Dascal, 2008: 42).

A abordagem de Paul Zumthor complementa essa discussão ao compreender o corpo não


apenas no sentido psico-fisiológico do termo, como também num sentido de corpo social, onde
estão presentes as pulsões psíquicas, energias fisiológicas e modulações da existência pessoal
(Zumthor, 2005: 117).

12
Corpo e mente compõe um sistema complexo e integrado de comunicação entre o indivíduo
e o ambiente. Observando aspectos fisiológicos, temos que essa conexão se dá através do sistema
nervoso (cérebro – medula – ramais nervosos): no nível medular, entre a impressão exterior e a ação
seguinte a ela existe atividade anímica de pouca reflexão; já no cerebral entre impressão e ação tem-
se uma atividade anímica mais elaborada (Steiner, 1995: 21).

A maneira como cada indivíduo percebe e reage ao mundo é pessoal e resulta da interligação
entre essas duas atividades anímicas, manifesta em seus gestos, pensamentos, formas de
compreensão e desejos. Rogério Costa apresenta importante contribuição a esse respeito, em seu
artigo A ideia e corpo e a configuração do ambiente da improvisação livre:

“Evidentemente a questão do desejo está totalmente fundada na ideia de corpo. Por isso é
importante introduzir a discussão sobre a relação do corpo com o desejo e trazer para o
primeiro plano o intérprete, seu corpo e sua biografia musical” (Costa, 2008: 90).

1.2 O corpo no processo de ensino-aprendizagem musical

Ao enfocar o corpo no processo de aprendizagem, busquei referências nas áreas de ciências


cognitivas. Estudos apontam para a presença do corpo nos processos de compreensão mental da
música: no fato de a mente se referir a estados corporais para falar ou descrever música; na
presença de registros de sensações neuromusculares no processo de memória musical e formação da
imagem mental dos sons (Godinho, 2006: 364). Segundo esses estudos, nos processos de cognição
musical, corpo e mente vem associados, sem que haja hierarquia entre eles, e existe uma parte da
música que só se percebe e conhece através do corpo.

Em seu artigo “O corpo na formação da imagem mental da música”, José Eduardo Godinho
(2006) discorre sobre a relação entre corpo, mente e música e aponta para a constante presença do
corpo nas imagens mentais da música. Essa inter-relação corpo-música acontece através do
movimento, seja ele uma resposta motora a um estímulo auditivo, seja ele uma ação do corpo na
produção do som. No âmbito fisiológico “a representação mental resulta das conexões estabelecidas
entre os neurônios cerebrais, conexões que são alimentadas por mensagens enviadas ao cérebro
pelos vários canais sensitivos e pelo corpo em geral” (Godinho, 2006: 366).

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O autor, apoiado nas pesquisas de António Damásio4, também destaca o papel dos
sentimentos nesse processo: “os sentimentos assentam também num estado corporal mapeado num
sistema de regiões cerebrais, a partir do qual uma certa imagem mental do corpo pode emergir”
(Godinho, 2006: 367).

Émile-Jaques Dalcroze5 foi um dos pioneiros a inserir movimentos corporais nos ambientes
de ensino-aprendizagem de música. Em suas pesquisas descobriu que existem respostas físicas
imediatas a estímulos rítmicos e que essa resposta se dá por meio de uma reação corporal muscular
e nervosa (Godinho, 2006: 357).

A pesquisa de Dalcroze influenciou abordagens tanto na educação musical quanto nas áreas
de dança e teatro. Em música, um desdobramento importante é a gradual inclusão do corpo e do
movimento no ensino-aprendizado musical. Observa-se processos em que o corpo é tido como
subsidiário ao acesso a conteúdos e outros em que o corpo é colocado como central no processo de
ensino-aprendizagem (Godinho, 2006: 360).

Na primeira acepção, existe ainda um predomínio do saber mental sobre o corporal; o foco
do trabalho recai sobre os conteúdos; o corpo é apenas um condutor, ou uma estratégia para se
adquirir determinado saber. Na segunda, que interessa a esse trabalho, o corpo é tido não como um
suporte, mas como parte integrante e constitutiva dessa mesma compreensão (Godinho, 2006: 360).

“Essa importância fundamental do corpo nos processos mentais restitui-lhe o lugar que
parecia ter perdido em perspectivas mais tradicionais, que olhavam a mente e o seu
funcionamento com uma certa autonomia e independência em relação ao corpo. (...) Dado
que a mente emerge num cérebro que faz parte integrante de um organismo, a mente faz
parte também desse organismo; corpo, cérebro e mente são manifestações de um organismo
vivo” (Damásio. Apud Godinho, 2006: 368).

A experiência musical é o terreno onde o corpo atua e colhe elementos para a representação
mental da música. Da visão integrada entre corpo e mente e suas interações no processo de
compreensão musical, tem-se que: o corpo não é apenas um meio, ou uma via de acesso para o
aprendizado, mas sim o lugar onde o conhecimento se faz; não existe um padrão correto e sim
múltiplas formas de compreensão e percepção musical; os conteúdos não são um fim a se
4
António Damásio é neurocientista português radicado nos EUA, diretor do departamento de neurologia da
Universidade de Iowa e professor no Instituto Salk para estudos biológicos (Jolla, Califórnia)
5
Émile-Jaques Dalcroze (1865-1950), educador musical suíço da chamada primeira geração de educadores musicais do
século XX, um dos pioneiros na proposição de um trabalho sistemático de educação musical baseado no movimento
corporal e na habilidade de escuta. Seu sistema, conhecido como Rítmica, influenciou uma série de educadores
musicais, servindo referência para práticas corporais em outras áreas, como dança e teatro até os dias de hoje.

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conquistar, mas um caminho para a expressão individual e coletiva; o interesse não está no
resultado final e sim no processo; o processo envolve a participação ativa do corpo.

1.3 O corpo e a voz

Ao abordar corpo e voz, parto da relação estabelecida por Zumthor, que trata a voz como um
gesto, a manifestação sonora do corpo, o movimento do corpo que se percebe através da escuta; a
voz que emana do corpo e o amplifica no espaço através do som.

Zumthor desenvolve o conceito de vocalidade, “uma noção antropológica, não histórica,


relativa aos valores que estão ligados à voz como voz e, portanto encontram-se interligados ao texto
que ela transmite.” (Zumthor, 2005: 117) A vocalidade, portanto é um conceito que reúne as
propriedades corporais da voz (considerando o corpo em seu aspecto psicofísico, social, emocional)
com o conteúdo transmitido pela voz através do discurso.

“A voz é verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores


que não são comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma
cultura, criadores de inumeráveis formas de arte” (Zumthor, 2005: 61).

A vocalidade como fio condutor de um trabalho vocal, traz novamente a dimensão do


indivíduo para o centro do processo. Pesquisar a própria vocalidade pressupõe despertar a escuta
para o gesto vocal cotidiano, manifestado na fala, e reconhecê-lo nas interações entre os indivíduos,
o grupo e o ambiente.

O ensino-aprendizado consiste tanto no reconhecimento dos próprios gestos quanto em sua


expansão, ou mesmo na apreensão de novos gestos. A música, ao ampliar o âmbito do gesto vocal,
alimenta essa pesquisa, deslocando a voz de seu estado cotidiano, do âmbito restrito da fala.
Segundo Zumthor, no uso ordinário da língua, o falar utiliza apenas parte reduzida dos recursos da
voz, enquanto que no canto as capacidades da voz se expandem (Zumthor, 2005: 71).

Essa abordagem me conduziu a trilhar caminhos que contemplam a diversidade nas


situações de ensino-aprendizagem, incorporando as diferentes expressões corporais e vocais, seus
processos de aprendizado, suas interações com os outros participantes e com o grupo. Dessa
maneira, a concepção de ensino-aprendizado de música contido nesse trabalho se dá na perspectiva
da criatividade.

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1.4 Criatividade e ensino-aprendizagem
“A criatividade é um processo e não somente um produto.” (John Rink)

Inicio a discussão sobre criatividade a partir das concepções de ensino de Hans-Joachim


Koellreutter e Murray Schafer. Os educadores trazem o ponto de vista do compositor em sala de
aula, e suas ideias em educação vão de encontro às questões trazidas pela música de seu tempo.
Koellreutter, em uma perspectiva humanista, considera a criação elemento prioritário em qualquer
projeto de educação e traz propostas de um “ensino musical dirigido a todos (e não apenas aos
futuros músicos), que privilegia a formação integral dos indivíduos” (Brito, 2001: 19). Murray
Schafer aborda a mesma questão:

“O principal objetivo de meu trabalho tem sido o fazer musical criativo, e embora seja
distinto das principais vertentes da educação, concentradas sobretudo no aperfeiçoamento
das habilidades de execução de jovens músicos, nenhuma dessas atividades pode ser
considerada substituta da outra” (Schafer, 1990: 280).

Observa-se nessa discussão: a necessidade integrar saber mental e corporal; a busca por
democratizar o ensino de música, não objetivando apenas a formação de músicos profissionais. Esse
discurso permeia o pensamento de muitos educadores do século XX, e aparece com uma carga
ideológica bastante forte e necessária a esse período. Nesse debate, as relações entre técnica e
criatividade e entre saber corporal e saber mental ainda aparecem de forma dicotômica. Conforme
os estudos em neurociências e processos cognitivos avançam e influenciam as pesquisas em
educação musical porém, observo e incorporo a tendência em se adotar uma abordagem integrada
desses eixos.

A criatividade, no âmbito pessoal, se manifesta na capacidade do indivíduo de reagir de


maneira diferente à usual aos estímulos recebidos. Segundo o Professor John Rink6, em sua palestra
Introdução à pesquisa sobre criatividade individual e coletiva7, criatividade é parte normal da
atividade humana, todo mundo é criativo; a criatividade pode ser vista na perspectiva psicológica –

6
John Rink - Diretor do AHRC Research Centre for Musical Performance as Creative Practice (Centro de Pesquisa
sobre Performance musical como prática criativa) e Professor de Musical Performance Studies (Estudos de Performance
Musical) na Universidade de Cambridge, Faculdade de Música.
7
A palestra foi apresentada durante a primeira semana de Estudos e Pesquisas USP e Universidade de Cambridge,
realizada em fevereiro de 2014 no departamento de música da USP, organizada pelo GEPEMAC e pelo Comunicantus:
Laboratório Coral.

16
quando cria algo novo para o indivíduo e histórica – quando cria algo novo para a humanidade
(informação verbal).

“A criatividade acontece em pequena ou larga escala, envolvendo habilidades humanas


como a percepção, a memória e a colocação de ideias de diferentes e novas maneiras. O
pesquisador inglês ressalta a importância de se entender que criatividade é um processo
simples e que gera produtos” (LEÃO, 2014)8

Rink aborda a criatividade em ambientes de ensino-aprendizagem, buscando detectar em


que momento acontece o episódio criativo. Seu olhar dirige-se tanto aos alunos quanto aos
professores, em situações individuais e coletivas de estudo e performance. De suas conclusões,
destaco as que mais contribuem a esse trabalho: a criatividade é um processo; o processo criativo
não é linear, tem interrupções, retornos e apresenta soluções não necessariamente definitivas; é
necessário desafiar a polarização entre técnica e expressão; o aprendizado deve integrar os aspectos
da performance.

Ao analisar a criatividade coletiva, o professor se referencia no trabalho de Keith Sawyer9.


Sawyer define criatividade coletiva como um processo social, colaborativo, fruto do trabalho em
grupo, que se manifesta em qualquer grupo de performance (teatral ou musical) com as seguintes
características: processo, imprevisibilidade, intersubjetividade, comunicação complexa e
emergência (Sawyer, 2003: 5). Analiso cada uma dessas características, demonstrando como se
articulam com a concepção didática desenvolvida nesse trabalho.

Processo: trata-se de uma abordagem sociocultural da criatividade coletiva, ao enfocar o


processo interativo e não o produto gerado pelo grupo no processo . “Em se tratando de criatividade
coletiva, o processo é a essência do gênero e deve ser o foco central de qualquer estudo científico.”
(Sawyer, 2003: 5)10.

O foco no processo traz a performance para o ambiente de ensino-aprendizagem,


configurando-o como um espaço onde a interação entre os participantes da performance interessa
mais do que seu resultado final.

8
Extraído da matéria: Caminhos vocais da criatividade, por Izabel Leão, publicada em 10 de março de 2014, disponível
no link: http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=34643 (acesso em 04/06/2015)
9
Dr. R. Keith Sawyer é professor de educação na University of North Carolina em Chapel Hill, e estuda criatividade,
aprendizado e colaboração.
10
“In group creativity, the process is the essence of the genre, and it must be the central focus of any scientific study”
(Sawyer, 2003: 5).

17
Imprevisibilidade: nos processos coletivos, o caráter das performances pode variar de
situações de maior previsibilidade para maior imprevisibilidade. O grau de imprevisibilidade
depende do quanto uma performance está atada a convenções de determinado gênero ou situação.
Em situações de alta imprevisibilidade, nenhum participante de uma performance sabe o que vai
ocorrer em seguida, e cada participante, a cada momento pode mudar totalmente o rumo da
performance. (Sawyer, 2003: 6)

Num ambiente de ensino-aprendizado criativo, considero importante que exista alternância


entre situações de maior e menor grau de imprevisibilidade. Na prática, as formas de tratamento
dadas aos conteúdos vão configurar esses ambientes. Dessa maneira, os conteúdos não são vistos
como um fim a ser atingido, mas como universo de referências para configurações de diferentes
ambientes em que as relações de ensino-aprendizagem vão se estabelecer. Contemplar diferentes
graus de imprevisibilidade significa contemplar diferentes maneiras de aprendizado.

Intersubjetividade: a intersubjetividade está relacionada ao significado de uma performance.

“É impossível determinar o significado de uma ação até que outros performers tenham
respondido a ela (...) Em criatividade coletiva, a dependência de cada ação no fluxo da
performance faz com que seja impossível que os performers tenham uma mesma
representação mental sobre o que esta acontecendo. Isso não impede, no entanto, que se crie
uma performance coerente” (Sawyer, 2003: 8-9).11

Assumir a intersubjetividade em situações de ensino-aprendizagem significa compreender


que o conhecimento produzido em um processo não se encontra nos conteúdos que o configuram.
São as diversas maneiras de compreensão dos conteúdos que, em diálogo, produzem um sentido
próprio, um conhecimento que é inerente a cada processo. O saber não é tratado de forma unilateral,
partindo do professor em direção ao aluno, mas como uma construção, resultante da interação entre
os participantes do processo.

Comunicação complexa: em criatividade coletiva, a performance é negociada e construída


de momento a momento. A imprevisibilidade faz com que cada performer tenha uma compreensão
diferente do que está acontecendo, e para manter a intersubjetividade é necessário que os

11
“It is often impossible to determine the meaning of an action until other performers have responded to it. (...) In group
creativity, the dependence of each action on the subsequent flow of the performance results in a situation in which it is
impossible for the performers to have identical mental representations of what is going on. However, although each
performer may have a rather different interpretation of what is going on and where the performance might be going,
they are nonetheless able to collectively create a coherent performance” (Sawyer, 2003: 8-9).

18
performers sejam capazes de negociar sobre suas representações, durante o ato da performance
(Sawyer, 2003: 10). A comunicação complexa se estabelece num nível não verbal – a performance
não é interrompida.

Ao transpor esse conceito para os ambientes de ensino-aprendizado, considero necessário


ressignificar os papéis de professor e aluno. Para que se estabeleça uma comunicação complexa, é
necessário que todos os envolvidos assumam papel ativo no processo.

Segundo Koellreutter, é preciso instaurar o espírito de pesquisa e investigação constante,


tanto no aluno quanto no professor (Brito, 2001: 31). É importante que o aluno tenha autonomia e
consciência durante o processo. Recupero uma passagem de Schafer:

“Numa classe programada para a criação, não há professores: há somente uma comunidade
de aprendizes. O professor pode criar uma situação com uma pergunta ou colocar um
problema; depois disso, seu papel de professor termina. Poderá continuar a participar do ato
de descobertas, porém não mais como professor, não mais como a pessoa que sempre sabe a
resposta” (Schafer, 1990: 286).

Emergência: o termo emergência é utilizado por muitos acadêmicos ao se referir a sistemas


complexos, que tem como propriedade o todo ser maior que a soma das partes. A criatividade
coletiva é um sistema complexo e dinâmico, e como na maioria dos sistemas complexos o
comportamento de todo o sistema emerge das interações entre as partes individuais. (Sawyer, 2003:
12) “Em criatividade coletiva, o grupo conduz cada indivíduo a atuar num nível mais alto do que
poderia ser capaz sozinho” (Sawyer, 2003: 11)12.

A criatividade coletiva está presente em todo o tipo de performance, do mais estruturado ao


improvisado. No entanto, Sawyer ressalta os ambientes de improvisação como aqueles e que essas
características são mais ressaltadas. Em uma reflexão sobre o ensino musical, o autor justifica a
importância de se ensinar música na perspectiva da criatividade e da improvisação:

“O ensino através da criatividade e da improvisação é uma ferramenta efetiva para o


aprendizado colaborativo e construtivista de qualquer conteúdo (Sawyer, 2004a, 2004b). O
professor conduz improvisações coletivas, mais do que atua em performances solo em frente
à assistência da classe. Estudantes se socializam através de práticas comunitárias em sala de

12
“In group creativity, the group leads each individual to perform at a higher level than he or she would have been
capable of alone” (Sawyer, 2003: 11).

19
aula, nas quais toda a classe colabora com o aprendizado de cada um” (Sawyer, 2006: 163).13

13
“Creative and improvisational teaching is an effective tool for collaborative and constructivist learning of any content
(Sawyer, 2004a, 2004b). The teacher leads the classroom in group improvisations, rather than acting as a solo
‘performer’ in front of the class ‘audience’. Students become socialized into classroom communities of practice, in
which the whole class collaborates in each student’s learning” (Sawyer, 2006: 163).

20
Capítulo 2: Da Iniciação Científica às Oficinas: um percurso
pedagógico

2.1. O Projeto de Iniciação Científica

As oficinas apresentadas e discutidas nesse trabalho são resultantes da pesquisa de Iniciação


Científica que realizei durante a graduação. No projeto, tive a oportunidade de observar, vivenciar e
discutir procedimentos de ensino-aprendizagem de música e técnica vocal em processos criativos,
no território da canção popular brasileira. Tratou-se de uma pesquisa-ação, metodologia de pesquisa
com fins formativos, que integra saber teórico e atividade prática num processo de autorreflexão.
(Latorre, 2004: 8)

A pesquisa investigou aspectos referentes a ensino-aprendizagem em processos criativos,


vocalidade e corporalidade, canção brasileira, arranjos vocais e interação entre linguagens (dança
contemporânea, eutonia e six viewpoints). A par com a pesquisa teórica pude observar minha
atuação na condução de um processo criativo junto ao Vozeiral14, com a proposta de produzir
arranjos vocais a partir de processos de criação coletiva.

A proposta formulada consistiu em integrar os conteúdos relativos à voz e à canção


brasileira aos ambientes de práticas criativas. O foco do grupo está no estudo, sendo a performance
parte integrante do processo. O projeto apresentou as seguintes características: aprendizado musical
e vocal concebido a partir do indivíduo, de sua corporalidade, em diálogo constante com o grupo;
ênfase ao processo.

As atividades se desenvolveram no ambiente da improvisação, alternando situações de entre


maior e menor grau de imprevisibilidade sem objetivar uma execução perfeita, acertada no sentido
tradicional do acerto. Para a maioria das atividades não existe erro ou acerto: interessa a relação
entre os indivíduos com os conteúdos apresentados e suas interações no grupo. Como principais
conteúdos, destaco:

14
Vozeiral é um grupo vocal amador criado em 2012 na escola de musica Canto do Brasil, em São Paulo, com objetivo
de integrar a prática vocal a processos coletivos, através da criação coletiva de arranjos vocais.

21
• Desenvolver a compreensão sobre o processo corporal que nos faz produzir um novo som ou
gesto (seja ele vocal, um movimento corporal, ou uma escuta);

• Desenvolver autonomia dos participantes, isto é, uma consciência do que está aprendendo e
de como esse aprendizado se processa no corpo de cada um.

A interação com o grupo se deu ao longo de três meses em encontros semanais com três
horas de duração e foram organizadas da seguinte maneira:

Primeiro mês – reconhecimento individual e coletivo e integração dos participantes; mapear


vocabulários musicais existentes; constituir o ambiente para o processo criativo; pesquisa coletiva
sobre repertório.

Segundo mês – atividades com foco na estruturação musical e vocal do grupo e na criação
do arranjo vocal.

Terceiro mês – detalhamento do arranjo criado e aprofundamento nas questões técnicas


emergentes.

Fig. 1 – Partitura gráfica criada coletivamente para o arranjo produzido

A finalização do processo se deu com performance do arranjo criado e avaliação coletiva.


A seguir apresento algumas conclusões e questões extraídas do processo:

Com relação ao professor-criador, observo a necessidade de manter o estado de alerta e


atenção constantemente, para conduzir as atividades realmente a partir do grupo. A atenção deve
estar direcionada não apenas para os participantes, como também para as interações entre eles e os
conteúdos apresentados e para as situações emergentes dessas interações. Estar aberto para mudar

22
de direção durante o processo caso seja necessário ao grupo. Ter clareza na exposição das ideias e
condução das atividades. Usar o mínimo de palavras para enunciar as atividades, privilegiando o
fazer durante a aula. Quando necessário, fomentar a discussão sobre os processos vivenciados.

Fig. 2 – Fotograma do vídeo da apresentação do Vozeiral em junho de 2014 (clique para ver o vídeo) – acesso
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=U1WJwEUy-Is

Com relação ao grupo, observo que o arranjo realizado foi bastante fiel ao processo. A
maneira como esse grupo pode lidar com os conteúdos está expressa tanto no arranjo quanto em sua
execução. Da avaliação coletiva que realizamos, concordamos sobre a necessidade de um
aprofundamento técnico. Após a pesquisa, a atividade se desenrolou com o grupo por mais três
meses. Durante esse período, busquei inserir procedimentos técnicos em atividades de improvisação
e enfoquei o trabalho no desenvolvimento da autonomia dos participantes.

Duas questões dicotômicas se colocaram: a relação entre saber mental e saber corporal; a
relação entre criatividade e estrutura. O conceito de embodied mind, que pode ser entendido corpo
como meio ativo para a construção do conhecimento é recente, sendo tratado em áreas como a
filosofia, fenomenologia, educação e sociologia a partir da segunda metade do século XX.
(Fridman, 2013: 81-82).

Pude constatar pela prática o quanto ainda é difícil de se assumir a existência de um saber
corporal, aceitá-lo como um saber, e permitir-se entregar a ele sem a constante mediação da mente.
Fomos muito treinados a um fluxo de saber que parte do pensamento à ação. Em educação musical,
isso leva a uma preferência por se adotar métodos em que o corpo atua como um meio ao

23
aprendizado e não como um fim em si mesmo. Segundo José Eduardo Godinho, trata-se de uma
perspectiva mais tradicionalista, que prevê: “uso pragmático do corpo, com vista à aquisição de
conceitos ou à compreensão de aspectos musicais; corpo como utensílio subsidiário e experiência
preparatória” (Godinho, 2006: 359).

A experiência e os estudos mostram que esse não é o único caminho possível, existe uma
espécie de contra-fluxo desse movimento. No entanto, na educação e especificamente na educação
musical observa-se ainda uma carência em processos que promovam a integração desses saberes,
constatada a partir dos trabalhos de Sawyer (2003, 2006), Fridman (2013) e Latorre (2014).

Criatividade e estrutura também se apresentam de maneira dicotômica, polar. De fato,


existem atividades que presumem maior estruturação, o que não significa que não sejam realizadas
de maneira criativa, e vice-versa. Dessa maneira, corroboro com a opinião de que os processos
criativos precisam participar mais dos ambientes de ensino-aprendizagem, em diálogo com as
estruturas e os diferentes territórios da música em que possa trafegar. Segundo Sawyer:

“Meu foco em criatividade coletiva improvisação colaborativa trata música como uma
atividade comunicativa. Música é uma prática colaborativa e musica improvisada em grupo
resulta numa performance emergente, imprevisível. Mas muitos educadores ensinam música
como uma atividade solitária – praticando digitação e escaldas por horas, em casa sozinho;
estudando para aprender como ler notação musical com eficácia/ eficiência; memorizando
uma peça solo para a performance do recital. Mas se música é uma prática colaborativa e se
comunicação é central para a criatividade musical, então nossos métodos educacionais
devem enfatizar a interação coletiva” (Sawyer, 2006: 161).15

No trabalho desenvolvido durante a IC, optei por integrar estrutura e prática, tratando os
conteúdos como referentes nos jogos de improvisação propostos. As questões levantadas acima se
manifestaram no desenrolar das atividades. O grupo formado era bastante heterogêneo no que diz
respeito às biografias musicais16 dos participantes e de suas reações diante dos conteúdos
apresentados.

15
“My focus on group creativity and collaborative improvisation treats music as a communicative activity. Music is a
collaborative practice, and improvised group music results in an emergent, unpredictable performance. But many
educators teach music as a solitary activity – practicing fingering and scales for hours, at home alone; studying to learn
how to read notated music effortlessly; memorizing a solo piece for recital performance. But if music is a collaborative
practice and if communication is central to musical creativity, then our educational methods should emphasize group
interaction” (Sawyer, 2006: 161)
16
Uso o termo a partir da conceituação de Rogério Costa (2008).

24
Concluí que, no caso específico, as estruturas muito definidas presentes nos conteúdos (a
canção, sua complexidade rítmica e melódica, sua temática, as habilidades técnicas envolvidas em
sua execução), dificultaram a manifestação sonora e pessoal em dois participantes com pouca ou
nenhuma vivência musical anterior. Para eles falou mais forte a necessidade do acerto, tendo em
vista os cânones estéticos, as concepções de canto e o excesso de julgamentos com relação às
próprias habilidades musicais.

Por se tratar de um grupo muito pequeno (apenas 6 pessoas incluindo a mim), essas
diferenças, a invés de se diluírem no processo, acabaram se tornando um obstáculo, e um conteúdo
importante a ser trabalhado. Aspectos como a timidez e o medo excessivo foram difíceis de serem
superados pelo grupo e individualmente. Em grupos com mais pessoas (a partir de dez integrantes)
esses obstáculos são mais facilmente transponíveis.

2.2. As Oficinas

As oficinas surgiram como um desdobramento natural da pesquisa de IC e se apresentaram


como mais um espaço de discussão e experimentação dos processos desenvolvidos anteriormente.
Foram intervenções pontuais (um encontro com cada grupo) e massivas (direcionadas a mais de 30
pessoas).

As questões que levantei para a mudança de formato foram: quais procedimentos e


atividades são possíveis de se realizar em grupos muito grandes; que conteúdos abordar; a
necessidade e importância de atuar em colaboração com outro educador. A seguir descrevo como
essas questões se resolveram em cada uma das situações, e analiso as atividades desenvolvidas. A
descrição das atividades expostas encontra-se detalhada no apêndice desse trabalho.

2.2.1. Práticas criativas em música brasileira: baião17

Oficina realizada com as colaborações de Igor Caracas e Carolina Andrade no Departamento


de Música da ECA - USP, como parte das atividades (completar com o nome da atividade). O
objetivo do encontro foi proporcionar um contato com o universo rítmico e melódico da música
popular brasileira, através de práticas criativas, usando a voz e percussão corporal.

17
Obs: Desculpem. o vídeo dessa oficina será postado no youtube a tempo da correção do trabalho

25
A proposta consistiu em apresentar a música popular brasileira em seus diversos aspectos
promovendo um contato entre os cantores ingleses e os brasileiros. Diante da amplitude do território
“canção popular brasileira”, optamos pelo baião pelas seguintes características: trazer fortes
elementos da cultura popular regional, integrar música e dança, ter se popularizado através do rádio,
apresentar em sua célula rítmica um motivo comum a outros ritmos brasileiros, caráter modal –
modo mixolídio.

Procurando estabelecer o diálogo entre estrutura e criação, buscamos desenvolver atividades


que contemplassem os seguintes aspectos: movimentos corporais (dança e percussão); improvisação
a partir de conteúdos apresentados; regências compartilhadas.

Planejamento
Chegada:
Apresentação das atividades;
Apresentação musical: O Ovo (Hermeto Pascoal) arranjo coletivo elaborado pela Nariz de
Orquestra.

Aquecimento:
Rítmico (Igor): [figura rítmica geradora do baião + acentuações de semicolcheias]
Melódico (Rita): [notas longas com as sílabas “nhão”; linha melódica do instrumental da
canção Asa Branca com as sílabas "dêro dêro", em cânone; linha melódica da introdução da canção
"Baião"(Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira) com letra]

Aprofundamento:
Rítmico: os instrumentos do baião (apresentação); a célula rítmica; os papéis dos
instrumentos [zabumba, arrasta-pé, agogô]; atividades práticas sobre as células características de
cada instrumento relacionadas à percussão corporal.
Melódico: improvisação melódica sobre o modo mixolídio e o ritmo do baião [regências,
naipes, texturas e solos]
Excertos das canções: leitura coletiva de excertos de três canções a partir de arranjo pré-
elaborado por Carolina Andrade.

26
Preparação para o arranjo:
Divisão do grupo em três “naipes”: ritmos com Igor; melodias com Carolina; texturas com
Rita, para criação dos materiais que irão compor o arranjo.

Finalização:
Apresentação de cada grupo separadamente;
Montagem final do arranjo, reunindo os três naipes, com regências compartilhadas e
momentos de improvisação.

Durante o processo, a Carolina Andrade contribuiu com um material que compilava trechos
de canções18 de Luiz Gonzaga, que poderiam ser usados na montagem do arranjo final. A proposta
inicial era não trabalhar com partituras, para que o processo se desenrolasse no âmbito do corpo.
Porém, a considerar o grau de complexidade da proposta (ingleses cantando em português, músicas
que nunca escutaram antes) e a qualidade do trabalho produzido, optamos por adotar também o
material escrito.

Os ingleses têm muita facilidade com leitura musical, e a partitura com o texto e melodia das
canções os trouxe para um universo um pouco mais conhecido. Utilizamos o material escrito no
final da atividade, após uma vivência corporal e vocal sem mediação de partitura. Funcionou muito
bem, e nos mostrou que a interação entre os dois universos pode ser feita de maneira orgânica e
colaborativa, sem que um anule ou negue o outro.

Fig. 3 – Apresentação da Nariz de Orquestra (foto: arquivo pessoal)

18
Trata-se de um arranjo realizado pela Carolina, que reuniu as canções: Asa Branca, Paraíba e Juazeiro todas de Luiz
Gonzaga e Humberto Teixeira.

27
2.2.2. Voz e Criação Coletiva – Coralusp e FLADEM

A oficina “Voz e Criação Coletiva” surgiu devido a uma proposta de participação enviada
para o XX Seminário do FLADEM. No intuito de aprofundar e discutir as questões levantadas
durante a IC, escrevi uma proposta para participar das Mostras de Atividades Pedagógicas, que são
sessões de 30 a 45 minutos em que são apresentados e discutidos procedimentos de ensino-
aprendizagem. A proposta foi aceita, e a junta diretiva do seminário solicitou a mudança do formato
para Oficina Massiva.

A Oficina Massiva é um espaço de muita responsabilidade dentro do seminário do


FLADEM, por ela passa a maioria das pessoas inscritas no evento. Consiste de três oficinas com
1h30 de duração, ao longo de três dias, cada dia com um grupo diferente, e com cerca de cinquenta
pessoas por grupo. Sabendo disso, e levando em conta experiências anteriores, considerei que seria
fundamental compartilhar esse espaço com alguém que pudesse contribuir com ideias, dialogar,
experimentar.

Convidei o Max Schenkman, músico e educador com experiência em improvisação e


processos criativos, e com quem tenho compartilhado diversas situações de criação coletiva em
ensino-aprendizagem e performance19. Apresentei a proposta a ele e iniciamos um movimento
colaborativo de criação, discussão, experimentos e despertar de ideias, muito rico e produtivo.

Nosso ponto de partida eram três oficinas de caráter massivo, realizadas no período da
manhã, para um público que majoritariamente fala espanhol, formado por educadores musicais de
toda a América Latina, num espaço amplo e ruidoso (um ginásio poliesportivo), e de curta duração
(1h30). Levamos em consideração os seguintes pontos: clareza na exposição dos exercícios;
apresentar poucas regras; valorizar a linguagem gestual e não verbal; privilegiar a alternância de
procedimentos; trabalhar exclusivamente a partir do som produzido pelo grupo20; privilegiar a
prática e o fazer musical.

19
Max participou do grupo formado por ocasião da Iniciação Científica; juntos desenvolvemos um projeto autoral de
performance em improvisação e participamos de grupos de processos criativos e colaborativos dentro do departamento
de música da USP.
20
Optamos por não trabalhar com repertório pré-definido durante essas atividades, no intuito de abrir espaço para as
memórias e biografias sonoras dos participantes, incorporando todos idiomas presentes, mais próximos do ambiente da
improvisação livre.

28
Para elaborar as atividades, juntamos nossas coleções pessoais de experiências em práticas
vocais e processos criativos e colaborativos. Decidimos realizar oficinas preparatórias para testar os
procedimentos levantados, observar nossa atuação, colecionar criticas, propostas, contribuições,
sons, e tudo o mais. Realizamos então duas intervenções em ensaios de dois grupos do Coralusp
dirigidos por Tiago Pinheiro. O planejamento das atividades ficou assim:

Planejamento - Coralusp
Chegada:
Conexão com o corpo, o espaço, o silêncio e o som. [alongar e espreguiçar; bocejos; sem
falar; dirigir a observação ao corpo, ao espaço e aos sons que existem no ambiente; caminhar pelo
espaço; caminhar variando direção, velocidade, postura, gesto]

Aquecimento físico-vocal:
Sem palavras, por imitação. Consistiu de alongamentos, rotações das articulações,
respirações coletivas com ritmo, caretas, mastigações exageradas, produção de fonemas como B
prolongado, sons sibilantes, consoantes fricativas (r, z, v...), glissandos, etc.
Jogos de conexão [flecha; exercício com a bola de tênis]

Integração com os conteúdos:


Jogos de improvisação com parâmetros definidos. [notas longas com vogais; um-dois;
clicks]
Jogos de imitação. [corrente; tim-uê]
Improvisações sobre ideias texturais [vento, mar, chuva, fogo, cidade, pipoca]

Jogos criativos:
Sequência minimal; improvisação em naipes; regências compartilhadas; policanções; passar
o som; contágio livre.

Duas conclusões importantes: Falar menos e fazer mais música – a fala e a elaboração
mental em excesso interrompem o fluxo corporal; Importância do trabalho colaborativo na
preparação e condução das atividades. O aspecto colaborativo permite saber ouvir, aceitar a ideia do
outro, aprender a criticar e ser criticado positivamente, escutar antes de falar, silenciar,
compreender, receber, ser generoso nos dois sentidos, na contribuição e na recepção. Se não

29
conseguíssemos agir assim entre nós, não conseguiríamos transmitir isso ao grupo (de maneira não
verbal).

Este processo apontou os seguintes caminhos: criar o ambiente ritual para o


desenvolvimento das atividades; escolher processos que provocam reações imediatas; realizar ao
menos três repetições de cada atividade; apresentar apenas um limite/regra por repetição; observar
aspectos técnicos da voz durante a improvisação; manter o roteiro aberto a mudanças; combinar
sinais de comunicação não verbais entre nós dois, que serviriam para nos avisar do excesso de falas,
trocar comandos, pedir mudança de planos.

A escolha dos exercícios partiu dos seguintes conteúdos: estado de presença; conexão entre
os participantes do grupo; percepção do próprio corpo e do próprio som; limpeza de ouvidos; escuta
atenta; relação entre escuta e espaço; integração entre som e movimento; capacidade de realizar e
qualificar escolhas durante o fazer musical; texturas; alturas; ritmo; intersubjetividade;
generosidade; aceitação do outro e de si.

Para conseguir clareza, elaboramos os enunciados redigindo-os de maneira concisa, e


traduzimos os mesmos para o espanhol. Procuramos palavras comuns aos dois idiomas, para
facilitar a comunicação.

Planejamento – Oficinas FLADEM


Chegada: andar pelo espaço, andar em diversas direções, com diferentes velocidades
(exercícios de viewpoints). Quando a velocidade no espaço aumentar, dar comandos que chamem a
atenção dos participantes [comandos: uma palma – pegar o pé esquerdo de quem estiver mais perto;
duas palmas – dizer o que comeu no café da manhã; três palmas - fazer uma roda no centro, ao
redor do circulo central da quadra].

Aquecimento físico vocal:


Sem palavras, por imitação. Consistiu de alongamentos, rotações das articulações,
respirações coletivas com ritmo, caretas, mastigações exageradas, produção de fonemas como B
prolongado, sons sibilantes, consoantes fricativas (r, z, v...), glissandos, etc.

30
Integração com os conteúdos:
Exercício de Notas Longas [desenvolvido em quatro tempos]: notas longas (qualquer som
longo); notas longas com vogais (saem as consoantes e os sibilantes, ficam as vogais); notas longas
com a mesma vogal; procurando deixar a inspiração tão longa quanto a expiração.

O exercício de notas longas funciona como uma continuação do aquecimento vocal, é um


momento em que cada um pode ter contato mais íntimo com o som da própria voz, escutar o grupo,
realizar uma limpeza de ouvidos. Sugerimos que os participantes caminhem em direção ao centro
da roda, fechem os olhos e escutem o som em outra perspectiva.

Dinâmica dos Clicks [desenvolvido em quatro tempos]: experimentar clicks livremente;


escolher um click e repetir; clicks com pouca densidade (escuta panorâmica); procurar combinar os
clicks através da escuta - realizar escolhas.

Os clicks são sons que valorizam os ataques consonantais, percussivos, muito curtos. Num
primeiro momento, trabalhamos com alta densidade e variedade. Em seguida pedimos para que
cada um fixe um click e o repita. Na terceira etapa, pedimos para que entre cada repetição do click
se faça um espaço longo de silêncio – sugerimos que o silêncio deve ser proporcional ao numero de
participantes do grupo. Nessa etapa, sinalizamos para que os participantes escutem todos os outros
clicks, numa espécie de escuta panorâmica do grupo, com os olhos fechados.

Passar o Som [em três tempos]: sem instruções, um parte com um som no centro da roda e
inicia a sequência, passando a outra pessoa; segunda etapa: a entrega do som inaugura um diálogo
entre quem passa e quem recebe; terceira etapa: pode seguir algum som que te interesse, enquanto
esse passa pela roda.

Nesse exercício, tratamos o som como um objeto em movimento no espaço, que tem o corpo
como portador. Cada rodada tem início com um som e conforme ela se desenrola vamos
acrescentando novas saídas e gerando simultaneidades.

Roda de conversas:
Pausa para comentários sobre os procedimentos realizados, percepções, sensações dos
participantes.

31
Composição:
Rondó da nota longa.
A: notas longas
B: clicks (corte seco, máximo de dez pessoas)
A: notas longas com vogais
C: passar o som (máximo dez pessoas)
A: notas longas e fim.

A primeira oficina foi a mais didática para nós. Após sua realização nos reunimos e
realizamos uma série de mudanças, principalmente no que diz respeito à sucessão das atividades.
Observamos a necessidade de dividir a sequência de notas longas em duas etapas, dando mais
agilidade ao processo e promovendo maior alternância de fazeres. Optamos por abrir a roda de
discussões no final da oficina, abrindo espaço para perguntas e comentários sobre os procedimentos
adotados. No terceiro dia, mudamos a composição final, sugerindo aos participantes uma
composição sobre a abertura de uma garrafa de gaseosa21.

A partir das rodas de conversa sobre as atividades, tivemos uma dimensão da importância
desse trabalho entre os educadores musicais. Alguns comentários recorrentes entre os participantes
foram bastante relevantes para nós – cito aqui os principais conteúdos abordados: como as
atividades despertam a musicalidade e a criatividade em cada um; como a partir de jogos simples e
com muitas restrições se atinge uma complexidade sonora e musical; é possível fazer música
coletivamente sem que exista uma partitura, ou sem que alguém precise definir o que cantar; as
atividades apresentadas contemplam a diversidade e podem incorporar diferentes expressões; são
facilitadoras do acesso à música; fazem com que voltemos a ser crianças; despertam a escuta e a
atenção.

Observo que a realidade da educação musical em nível latino-americano é carente de


atividades que privilegiem processos criativos, que abordem o corpo como foco central do processo,
no que toca a formação de docentes. Essa carência, no entanto, está inserida num cenário de
crescente procura, difusão e assimilação dessas práticas. Muitos nos questionaram sobre a
possibilidade de integração com conteúdos mais estruturados, sobre a aplicação com crianças, e
sobre a questão da timidez.

21
Gaseosa em espanhol significa refrigerante, ou água adoçada e saborizada, com gás. Trabalhamos com a imagem do
movimento das bolhas de gás quando uma garrafa é aberta.

32
Fig. 4 – Resumo das oficinas realizadas no XX seminário do FLADEM (clique para ver o vídeo)
acesso disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dgR-SAt1I7o

Participar de uma experiência internacional, entre educadores musicais, num seminário com
a abrangência do FLADEM foi marcante e transformador. O formato desse encontro valoriza a
troca de experiências entre os diversos educadores, de diferentes culturas e países. Não só
oferecemos como participamos de oficinas, e ainda de palestras, conferências, mesas de intercâmbio
e concertos. Como nos falou Alejandro Di Vicenzi22: "No começo do seminário, todos estão de uma
maneira, mas a cada atividade, a cada dia, as pessoas vão se transformando". Constatamos na
prática essa observação, desde nossa transformação na maneira de conduzir a atividade, até a reação
dos participantes a cada dia. Vamos nos conhecendo, a nós e aos outros, aprendendo a fazer durante
a experiência.

Fig. 5 – Gaseosa – composição final da terceira oficina realizada no XX seminário do FLADEM (clique para ver o
vídeo) acesso disponível em https://youtu.be/G0R_oBhT6wc

22
Alejandro Di Vicenzi é o atual presidente do FLADEM internacional. Durante esse seminário participamos de uma
oficina oferecida por ele, sobre Voz.

33
2.2.3. Voz e Criatividade – Guatemala e El Salvador

O projeto consistiu em circulação de oficinas de criação musical em cidades da Guatemala e


de El Salvador; o convite surgiu a partir da experiência realizada na Costa-Rica e se concretizou
com apoio do Ministério da Cultura do Brasil através do Fundo Nacional de Cultura, do Programa
¡Viva la Música!23 da Guatemala e do FLADEM Guatemala e El Salvador.

Fig. 6 – Itinerário completo das atividades realizadas na Jornada Pedagógica – Guatemala e El Salvador.

Trato aqui principalmente das oficinas de “Voz e Criatividade”, que foram concebidas a
partir da experiência realizada no FLADEM. O que motivou Ethel Batres24 a nos convidar foi o fato
de, em sua percepção, o trabalho que realizamos ser um exemplo de uma pedagogia realmente

23
O Programa objetiva complementar a formação dos docentes, difundir a música no país e promover o intercâmbio
entre educadores da Guatemala e de outros países latino-americanos. Suas atividades, em geral, contemplam as práticas
em processos coletivos e pedagogias abertas, nem sempre presentes na formação acadêmica dos músicos e educadores
musicais desse país.
24
Ethel Batres, membro do FLADEM e do Programa ¡Viva la Música! foi a pessoa que possibilitou a realização dessa
viagem, organizando o itinerário, oferecendo hospedagem, nos acompanhando durante a jornada na maior parte do
tempo, e reunindo e envolvendo os demais organizadores.

34
aberta. Sua expectativa com relação às oficinas era causar algum impacto entre os educadores
musicais, difundir essas práticas e “plantar algumas sementes”. O período na Guatemala foi muito
intenso e de muito trabalho, totalizando dez dias de atividades25 em vinte e dois dias de viagem.
Percorremos diferentes regiões do país, tivemos contato com diversas realidades, e principalmente
com muita gente.

Partimos das atividades realizadas no FLADEM, dado as seguintes conclusões: são


atividades autoexplicativas, que necessitam de pouca elaboração de enunciado, e que provocam
reações imediatas; podem ser realizadas com muitas pessoas; são abertas a diversos idiomas
musicais ao mesmo tempo que apresentam alto grau de restrição (notas longas e clicks); despertam
a escuta e a atenção; estimulam a intersubjetividade.

As oficinas na Guatemala e El Salvador tiveram duração de três horas e seu corpo geral foi
organizado da seguinte maneira:

Planejamento – Guatemala e El Salvador


Chegada
Aquecimento físico vocal
Notas longas: qualquer som longo; com vogais.
Dinâmica dos Clicks: qualquer click; mesmo click; click com pausas; clicks ao centro.
Notas longas com a mesma vogal; notas longas com respiração;
Passar o som
Intervalo
Atividades sobre conteúdos específicos de cada grupo
Composição final
Roda de conversas

Optamos por fazer uma pausa (necessária) e deixar um espaço para atividades que surgissem
de acordo com a percepção do grupo. O processo desencadeou uma serie de reflexões e
transformações sobre as atividades e nossa forma de condução e atuação.

25
Foram realizadas um total de dezesseis oficinas (sendo oito de Voz e Criatividade, oito de Construção de
Instrumentos) e dois concertos. Cada dia de atividade contemplou duas oficinas, uma pela manhã e outra pela tarde,
com uma média de cinquenta participantes por período. Foram três dias de oficina na capital da Guatemala, e um dia em
cada uma das seguintes cidades: Chiquimula, Mazatenango, Quetzaltenango, Chimaltenango e San Salvador.

35
A primeira coisa que observamos foi nossa conexão com o trabalho. Desenvolve-se uma
percepção e um estado de atenção que se aprofunda conforme o processo se desenrola. A
experiência reforça determinados estados mentais e corporais, que naturalmente se manifestam
durante as atividades.

Foi importante deixar um espaço em aberto para escolhas de atividades a partir da


observação do grupo. Cada oficina apresentou demandas diferentes, e nesse espaço pudemos
trabalhar com conteúdos que surgissem a partir da interação entre grupo e as propostas iniciais.
Também abrimos a atividade de composição final. Optamos por não trabalhar com uma proposta
composicional fechada; com alguns grupos, realizamos uma improvisação sinérgica, com outros
sugerimos que se separassem em grupos menores para criar pequenas composições entre eles.

Das atividades que surgiram, destaco “Clicks ao centro”, uma variação da dinâmica dos
Clicks. Após as quatro etapas de clicks, sugerimos uma variação com apenas seis pessoas ao centro
da roda. Os participantes devem se alternar, por tomada ou abandono de posição. Procuramos
qualificar a atividade e a passividade, com enfoque para a escuta atenta e sua relação com a
corporalidade na performance.

Outros procedimentos que surgiram foram as regências de texturas. Trata-se de um exercício


extraído da “Oficina de Improvisação Livre” ministrada por Chefa Alonso26, que consiste em uma
série de sinais combinados entre regente e grupo, para diferentes texturas. Dentro dos sinais
apresentados por ela, destacamos: sons longos, clicks, textura de areia, sons de pequenos animais
falantes, free jazz; e acrescentamos o sinal de ondas (mar). Aos sinais de textura apresentados,
acrescenta-se ainda sinais de início, corte, dinâmicas, mudança de densidade, transições, pulso,
ataques de sons curtos e longos, entre outros que podem ser trazidos e desenvolvidos pelo grupo.

A cada grupo de sinais trabalhados, abrimos espaço para os participantes assumirem a


condução do som. Trabalhamos com até quatro regências simultâneas em um grupo. A organização
dos sons através das regências é uma das maneiras possíveis de trabalhar com o conceito de naipes,
a partir do material gerado pelo grupo. A atividade permitiu que todos pudessem conduzir o grupo
em algum momento, mudando a perspectiva da escuta.

26
Chefa Alonso é doutora em improvisação livre e composição pela Universidade de Brunel (Londres, 2007); a oficina
foi realizada no Instituto de Artes da UNESP no período de 07 a 10 de outubro de 2014.

36
Um outro caminho possível para organizar os sons é através do contágio. Durante a
dinâmica de Passar o Som, sugerimos aos participantes a seguir e imitar um som que está passando
pelo centro, caso o som desperte algum interesse. Isso levou a formação de filas de som. As filas
variaram bastante no inicio da dinâmica, até que se estabeleceram, com todos os participantes
envolvidos sonoramente. Com os naipes formados, estabeleceram-se regências internas, variações
de materiais musicais, diálogos entre os naipes, em resultados sonoros muito interessantes.

A diversidade de experiências ao longo da jornada pedagógica nos mostrou o quanto se pode


trabalhar com propostas abertas de ensino-aprendizagem, e como elas se realizam no âmbito da
percepção. A dinâmica de notas longas tende a ser o desdobramento harmônico de um som
fundamental, principalmente em espaços amplos e com muita reverberação. Na dinâmica dos clicks,
observamos a tendência ao groove, em todas as situações. Nas dinâmicas de passar o som, pudemos
ter um contato mais individual com as biografias musicais dos integrantes dos grupos. Houveram
situações em que surgiram diversos idiomas musicais, como jazz, canções, claves rítmicas locais.
Procuramos deixar o espaço aberto para sua coexistência, além de incorporar ruídos e outros sons
extraídos da percepção do ambiente e da memória de paisagens sonoras.

Observamos também a carência desse tipo de abordagem no ambiente da educação musical


na Guatemala e El Salvador. Nas rodas de conversa, foi constantemente abordado o tema da
criatividade. As atividades de fato geraram respostas imediatas, o que favoreceu o despertar para o
saber corporal. Registros comuns manifestados por aqueles que participam desse tipo de processo
pela primeira vez são a alteração do estado de consciência e a ampliação da escuta.

Ainda da percepção dos participantes, destaco a fala de uma educadora em El Salvador que
levantou a seguinte questão: como nós, que nunca tivemos esse tipo de formação (em práticas
criativas), poderemos saber ensinar, ou realizar algo nesse sentido? Respondemos que a primeira
coisa a fazer é saber que nunca é tarde para começar. E qualificamos a questão da atitude diante do
processo – podemos reduzir os julgamentos para o que consideramos certo e errado. Existe o que
cada um pode realizar no momento e ao longo do tempo. Repetir experiências nesse sentido seria
fundamental.

Finalizo com uma questão que surgiu em oficina realizada para 120 jovens (entre 16 e 18
anos) estudantes de educação musical: o que realizamos aqui é música? Essa oficina foi a mais

37
difícil de todas no processo. Eram muitos jovens, que não se conheciam e tinham medo de se expor
aos outros. No entanto, quando tiveram a oportunidade de trabalhar em pequenos grupos (deixamos
a escolha livre), realizaram sínteses muito interessantes do processo em diálogo com suas biografias
musicais. Destaco as performances: Thriller e Ônibus, nos exemplos em áudio.

Durante a conversa, pudemos constatar como o ensino de música ainda está atado a
conceitos estanques. Recuperamos uma passagem do livro O Ouvido Pensante, em que Schafer
descreve um processo de conceituação de música. A riqueza da abordagem está na incorporação dos
diversos conceitos que surgem ao longo da história da música, sempre relacionados com o presente.

Em seguida, alguns exemplos audiovisuais do trabalho realizado nessa jornada:

Fig. 7 – Resumo da jornada pedagógica pela Guatemala e El Salvador - acesso disponível em


https://www.youtube.com/watch?v=PUDxS36z36kc

38
Fig. 8 – Conversa ao final da oficina realizada para 120 adolescentes das Normales de Música (clique para ver o vídeo)
acesso disponível em https://www.youtube.com/watch?v=h6Wn2DI86f4

39
CONCLUSÃO

Considero esse como um trabalho em andamento, que se iniciou quando decidi seguir a
carreira de música e optei por ser educadora musical. Desde então, venho procurando maneiras de
integrar os processos criativos às situações de ensino-aprendizagem de música. Nessa busca, passei
por uma série de situações, como estudante e professora, relacionadas a práticas criativas, e tenho
viva na memória a percepção de ser esse um espaço em que saber teórico e fazer corporal se
integram na realização musical. Isso me faz acreditar na importância desses processos, e mergulhar
cada vez mais nessa pesquisa.

O caminho trilhado até então inclui uma grande vivência em processos coletivos, fonte para
uma coleção de exercícios. Apresento no apêndice desse trabalho uma compilação desses
procedimentos, com especial atenção para sua formulação, no intuito de produzir um material que
venha a contribuir com outras experiências. O registro e sistematização dos procedimentos, no
entanto, não visa tornar esses processos estanques; ao contrário, trata-se de ideias em movimento,
sujeitas a transformações e interações conforme são vivenciadas.

A metodologia da pesquisa-ação, adotada durante o processo de Iniciação Científica, se


mostrou um terreno profícuo para o desenvolvimento desse trabalho. O olhar crítico e reflexivo
sobre a própria atuação e o constante diálogo entre referenciais teóricos e práticos constituem a base
do processo e são fundamentais para que o mesmo se mantenha vivo e orgânico.

A maior preocupação desse trabalho está em desenvolver uma visão integrada entre saber
mental e corporal, estrutura e criatividade. Por visão integrada entendo uma concepção não
hierarquizada desses conceitos, compreende-los como pertencentes a um sistema complexo. Há
uma tendência a polarizar esses conceitos, e a privilegiar o saber mental e processos estruturados.
Isso é notado não apenas pela prática, mas é fala recorrente em vários trabalhos pesquisados, na
área de educação musical.

Dessa maneira, considero importante desenvolver projetos que privilegiem o saber corporal
e o aprendizado em processos criativos, seja em ambientes coletivos ou individuais de ensino-
aprendizagem. O contato com educadores musicais da América Latina, principalmente América

40
Central, mostrou o quanto existe uma carência no desenvolvimento desses processos, em contraste
com uma crescente procura por esse tipo de atividade.

Abro a perspectiva da continuidade dessa pesquisa, seja em situações de aulas individuais,


seja em oficinas ou em processos coletivos de longa duração. No campo teórico, sinto a necessidade
de aprofundar a pesquisa sobre processos cognitivos, criatividade, embodied mind. Com relação às
atividades, o objetivo é incluir cada vez mais o corpo, não como subsidiário, mas como central nos
processos de ensino-aprendizagem; continuar pesquisando e desenvolvendo procedimentos na área
de música vocal e corporal, a partir de vivências com grupos colaborativos; inserir essas vivências
também no ambiente da aula individual.

Para finalizar, recupero o pensamento de John Rink, ao concluir que a criatividade é um


processo e que o processo criativo não é linear, tem interrupções, retornos e apresenta soluções não
necessariamente definitivas. Sendo um processo, é preciso vivenciá-lo. Dessa maneira, nada do que
é dito ou escrito não se completa de sentido se não passar pela experiência pessoal.

41
BIBLIOGRAFIA

 
BARTHES, Roland. O obvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BOGART, Anne; LANDAU, Tina. The Viewpoints book: A practical guide to the viewpoints and
composition. New York: Theatre Communications Group, 2005.
BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter educador: O humano como objetivo da educação musical.
São Paulo: Peirópolis, 2001.
COSTA, Rogerio. A ideia de corpo e a configuração do ambiente na improvisação musical. Opus.
Goiânia: v. 14, n. 2, p. 87-99, 2008.
DASCAL, Miriam. Eutonia: o saber do corpo. São Paulo: Editora Senac, 2008.
FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De Tramas e fios: Um ensaio sobre música e
educação. São Paulo: UNESP, 2008.
FRIDMAN, Ana Luisa . Diálogos com a música de culturas não ocidentais: Um percurso para a
elaboração de propostas de improvisação. São Paulo, 2013 168f. Tese (Doutorado em
Música). ECA – USP.
GAINZA, Violeta Hemsy de. La Improvisación musical. Buenos Aires: Melos de Ricordi
Americana, 2009.
GODINHO, José Carlos. O corpo na aprendizagem e na representação mental da música. in: ILARI,
Beatriz Senoi (org.). Em busca da mente musical. Curitiba: Ed. da UFPR, 2006. p. 353-
379.
LATORRE, Maria Consiglia Raphaela Carozzo. Sonoridades múltiplas: práticas criativas e
interações poético-estéticas para uma educação sonoro-musical na contemporaneidade.
Fortaleza, 2014. 222f. Tese (Doutorado em Educação Brasileira). UFC.
MACHADO, Regina. A Voz na canção popular brasileira: um estudo sobre a vanguarda paulista.
Campinas, 2007. 114f. Dissertação (Mestrado em Música) UNICAMP.
SAWYER, R. Keith. Group Creativity: Music, Theater, Collaboration. New York: Lawrence
Erlbaum Associates, 2003.
_________________ Group creativity: musical performance and collaboration. Music and
Psychology Research. Society for Education, vol. 34(2), 148‒165, 2006.
SCHAFER, R. Murray. O Ouvido pensante. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1990.
SIMONOVICH, Alejandro. Apertura, identidad y musicalización: bases para uma educación
musical latinoamericana. Buenos Aires: FLADEM, 2009.
ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Trad. J. P. Ferreira e S. Queiroz.
Cotia: Ateliê Editorial, 2005.

Matérias em jornais:
LEÃO, Izabel. Caminhos vocais da criatividade. Jornal da USP Online, ano XXXI. n. 1067.
Publicada em 10 de março de 2014, disponível em:
<http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=34643> (acesso em 04/06/2015)

Endereços da internet:
www.fladem.info - sítio oficial do Foro Latinoamericano de Educação Musical
www.sixviewpoints.com - sítio oficial da técnica dos Six Viewpoints, por Mary Overlie

42
APÊNDICE 1 – Exercícios

Os exercícios aqui apresentados foram escolhidos e transformados a partir do registro de


experiências relacionadas a processos criativos e práticas vocais em constante diálogo com a
pesquisa bibliográfica, e com a observação e vivência desses processos em diversas situações de
ensino-aprendizagem. A necessidade de enunciar com clareza as atividades realizadas me levou a
escrever os exercícios. Este processo teve inicio durante a pesquisa de IC e aparece aqui revisado,
acrescido de atividades pesquisadas e desenvolvidas durante as oficinas. Em seguida apresento
resumo da discussão desenvolvida na IC sobre a classificação das atividades e a descrição das
mesmas.

A escolha e a elaboração das atividades objetivaram relacionar a escuta ao fazer musical.


Nossa concepção se fundamenta na relação entre os níveis da escuta qualificados por Barthes
(1990) e os níveis da voz cantada, como descritos na dissertação de mestrado A Voz na Canção
Popular Brasileira: um estudo sobre a vanguarda paulista de Regina Machado (2007). Ambos
tratam a escuta e os níveis da voz cantada enquanto processo físico, técnico e interpretativo;
indicial, alerta e subjetivo.

A partir das características de cada um desses processos, definimos três focos principais para
a classificação das atividades: o corpo e seus processos de aprendizado, percepção e memória; a
linguagem musical como condutora e mediadora desses processos; e as interações criativas e
expressivas entre ambos como procedimento adotado.

Consideramos atividades de nível físico as que despertam a atenção, o estado de presença e a


escuta aberta; direcionam a atenção para o processo da voz e da escuta, buscando localizar e
perceber a ação cotidiana de falar e ouvir. A atenção se desenvolve em atividades de percepção do
corpo no espaço; de ligação com os outros corpos no espaço; de escuta da paisagem sonora; de
percepção dos processos físicos ligados à voz cotidiana; escuta da própria voz.

43
Como caminhos para o aprofundamento da escuta, buscamos exercícios que promovessem a
sinestesia (ora com o tato, ora com a visão). Nesse nível, exercícios que contemplam a interação
entre as linguagens da dança e do teatro são constantes. Esses exercícios promovem mudanças nos
estados corporais cotidianos, contribuindo para a percepção dos mesmos. Igualmente atuam sobre a
cognição, possibilitando que se estabeleçam novas conexões entre pensamento e realização.

As atividades de nível técnico têm como foco principal conteúdos de técnica vocal e
elementos da linguagem musical. Ao dirigir a atenção para a linguagem, buscamos aprofundar a
escuta e, num processo de correlação ampliar o repertório de gestos, sejam eles físicos (no caso do
aprendizado corporal relacionado à técnica vocal, por exemplo) ou expressivos (já no âmbito da
linguagem musical). Toda elaboração técnica precede o reconhecimento físico do som e da voz.
Assim se estabelece o diálogo entre os níveis físico e técnico: o estado de atenção que se
desenvolve no nível físico pressupõe a atitude de investigação e pesquisa para explorar os
conteúdos técnicos.

No nível interpretativo as atividades fornecem o ambiente para que o encontro criativo entre
o corpo e a linguagem se realize, no indivíduo e no grupo. Consiste, portanto, nos procedimentos
didáticos de aplicação dos conteúdos elencados acima. Adotamos a improvisação como principal
ferramenta para o desenrolar do processo. Numa atividade de improvisação, o grau de
imprevisibilidade para as escolhas de cada um se torna mais alto, abrindo espaço para o movimento
criativo. Ao jogar com estruturas sonoras e musicais, conduzimos o grupo à incorporação das
mesmas, sendo que cada indivíduo realiza isso à sua maneira. Nas atividades de improvisação o
caráter individual do aprendizado é valorizado.

Utilizamos nesse trabalho o conceito de framework, a partir de workshop realizado com a


pesquisadora Franziska Schroeder. Schroeder utiliza o termo para indicar as restrições ou limites
que considera importantes no ensino da improvisação livre: partindo de limites, podemos ampliar a
escuta, aprofundar o estado de atenção, para então distender, transformar ou mesmo romper com os
limites.

O processo criativo consiste na realização consciente das interações entre corpo e


linguagem; ele presume a apropriação criativa dos conteúdos. Trata-se, portanto, de desenvolver
caminhos que promovam o encontro criativo e expressivo entre corpo e técnica. Consideramos que

44
o processo criativo não dispensa a elaboração técnica: ele pressupõe a técnica como mais uma
ferramenta para a expressão.

O uso e a aplicação dos exercícios sempre serão inerentes a cada processo vivenciado. Cada
proposta apresentada pode ser transformada com a experiência pessoal e coletiva. Acreditamos que
as atividades aqui descritas podem contribuir como um banco de memória para o desenvolvimento
de outras futuras, o que torna o processo vivo.

Atividades de nível físico

Os exercícios aqui listados envolvem a preparação corporal, a percepção das estruturas do


corpo diretamente envolvidas na produção vocal e o despertar da atenção. O objetivo desses
exercícios é desenvolver a autonomia com relação ao fazer vocal e musical, através da consciência
corporal. Traço um paralelo com procedimentos de dança contemporânea, quando se diz que o
corpo constrói conhecimento dançando, e que a cognição se dá em tempo real. Para isso, existe um
trabalho de despertar dessa consciência, que consiste em reconhecer o próprio corpo nas atividades
que este realiza.

Antes de qualquer exercício, existe um momento de chegada, que consiste em um momento


livre e individual de espreguiçamentos, alongamentos, suspiros entre outros procedimentos.
Procuramos deixar o grupo livre para escolher seus movimentos, mapear suas tensões e agir de
acordo com a escuta do corpo. Esse momento é fundamental para que se inaugure uma relação
pessoal com o próprio corpo e se desenvolva uma atitude de pesquisa individual, antes das
atividades dirigidas e coletivas. Na chegada, os participantes também têm a oportunidade de
escolher os movimentos que sentem vontade de explorar, a partir do repertório pessoal.

A preparação corporal consiste em exercícios que trabalham com a percepção da postura, do


peso do corpo (sentado e em pé), com o reconhecimento das tensões e com a percepção do corpo no
espaço.

Com relação à respiração, selecionei procedimentos ainda relacionados ao nível físico, que
consistem em reconhecer o gesto cotidiano da respiração antes de elaborá-lo tecnicamente. Abordo
a respiração a partir da percepção dos movimentos corporais relativos a ela, objetivando
desenvolver a atenção e a observação de cada um para esse processo.

45
A preparação corporal envolve ainda a percepção e conscientização de estruturas
diretamente ligadas ao canto, como músculos da face, articulação temporomandibular (ATM),
língua, mandíbula e laringe. Recolhi exercícios que objetivam despertar a consciência para essas
estruturas, referenciados no trabalho da fonoaudióloga e professora de canto Beth Amin. Com
relação aos exercícios ligados à laringe, destaco a fala de Amin sobre sua aplicação: “São exercícios
usados em terapia de fonoaudiologia, para dar flexibilidade à musculatura laríngea, buscando
relaxar e ampliar espaços internos, melhorar o fechamento das cordas vocais, distribuir a tensão e a
força ao longo de toda a prega” (Amin, 2014).

Com relação ao despertar da atenção, selecionei exercícios que estimulam a conexão entre o
grupo, a percepção do espaço, o reflexo a estímulos e a prontidão para o movimento e para a ação.

Percepção corporal (postura, alongamento, rotações):


• Percepção do apoio do corpo sobre os pés: Em pé, de olhos fechados, observar como o
peso do corpo se distribui na planta dos pés. Chamar atenção para as diferentes regiões
da planta dos pés que se apoiam no chão, buscando reconhecer esses lugares. Brincar
com o peso do corpo, deslocando-o para frente, para trás e para as laterais, massageando
a planta dos pés com o próprio peso, experimentando desequilíbrios e novos equilíbrios.
Observar o que os deslocamentos de peso provocam no corpo como um todo (na
postura, na respiração). Orientar o peso na direção dos metatarsos. Abrir os olhos e
observar as sensações relativas ao trabalho.

• Percepção do apoio do corpo sobre os ísquios: Sentado, sentir o apoio da bacia sobre a
cadeira. Caminhar com o quadril sobre o assento, sensibilizando os ísquios. Realizar
pequenas básculas dos quadris para frente e para trás. Observar como esses movimentos
refletem na posição da coluna vertebral (principalmente na região lombar) e na
respiração.

• Rotações das articulações: realizar movimentos circulares com as principais articulações


do corpo, buscando reduzir tensões comumente acumuladas nesses locais e deixar o
corpo disponível para o movimento. Trabalhamos com as seguintes articulações:
tornozelos, joelhos, articulação coxofemoral, punhos, cotovelos, ombros, pescoço. Após
cada rotação, estimulamos a observação de como o corpo reagiu ao movimento,

46
comparando as partes do corpo que se moveram com as que ainda não foram ativadas,
percebendo a respiração, as alterações na postura, e abrindo espaço para observações e
comentários pessoais sobre a experiência.

• Percepção do peso dos braços e dos ombros: Levantar os braços até a altura dos ombros
e deixá-los cair, soltando um suspiro. O mesmo, elevando os braços acima da cabeça.
Suspender os ombros até quase tocarem as orelhas e soltá-los de uma vez junto com um
suspiro. Realizamos esses movimentos para aliviar o acúmulo de tensões sobre a região
da cintura escapular. A sonorização do gesto auxilia no alívio da tensão.

• “Balancinhos”: Soltar o peso do corpo com pequenos balanços, observando o


relaxamento das articulações, procurando empurrar o chão com os pés para realizar o
movimento e deixando esse balanço repercutir na respiração e no som da voz. Esse
movimento, que consiste num chacoalhar corporal, ativa a circulação, desperta a
atenção, aquece o corpo, libera algumas tensões acumuladas e sensibiliza a região
pélvica (centro gravitacional do corpo), bastante importante para a prática vocal.
Sugerimos que os “balancinhos” se iniciem em silêncio, dirigindo inicialmente a atenção
para as partes do corpo que estão mais tensas. Em seguida, observar como eles refletem
na respiração, procurando sonorizar a saída de ar com sons sibilantes. Por fim, deixar a
mandíbula relaxar, entreabrindo a boca, e observar como os movimentos podem
repercutir no som da voz.

• Coluna vertebral: O trabalho sobre a coluna objetiva em primeiro lugar reconhecê-la


como uma estrutura articulada. Realizamos diversos enrolamentos de coluna, tanto de pé
quanto sentados, procurando abrir o espaço entre as articulações das vértebras a partir
dos movimentos de enrolar e desenrolar. Esses movimentos podem ser realizados com
toda a extensão da coluna, ou apenas sobre uma região (cervical, dorsal e lombar). Num
primeiro momento, trabalhamos com a percepção da coluna e sua relação com a postura
geral do corpo. Em seguida, associamos o trabalho com a respiração, conforme
detalharemos a seguir.

• Costelas: Percepção do tamanho, da posição e dos movimentos das costelas a partir do


tato. Desenhar o contorno das costelas com a ponta dos dedos, partindo do final do osso

47
esterno, em direção à cintura. Ainda com a ponta dos dedos, tocar os ossos das costelas,
observando seu contorno e a posição que ocupam no corpo. Perceber o espaço entre os
ossos das costelas, onde estão localizados os músculos intercostais. Massagear os
músculos intercostais com a ponta dos dedos. Perceber a posição das costelas flutuantes,
localizadas na altura da cintura, e sua distância em relação ao osso ilíaco.

• Movimentar o tórax a partir de movimentos de abertura e fechamento das costelas. Este


movimento consiste em abraçar as costelas com as mãos e inclinar o tronco ora para a
direita, ora para a esquerda, percebendo as costelas se abrirem e se fecharem (comparar
com o movimento do fole de uma sanfona). Observar se o movimento parte dos ombros
ou se parte das costelas.

• Alongamentos para pescoço, ombros, costelas e costas: Deixar a cabeça cair para um dos
lados, e soltar seu peso alongando o pescoço; repetir o movimento para o outro lado.
Deixar a cabeça cair para frente, alongando a cervical. Elevar um braço pela lateral,
passando por sobre a cabeça, alongando a parede lateral do abdômen e as costelas;
repetir o movimento com o outro lado (esse alongamento pode ser realizado em pé ou
sentado). Muitos alongamentos são associados aos exercícios respiratórios,
principalmente os que envolvem a região das costelas e as costas (região lombar).
Orientamos os alunos a expirarem, sonorizando a expiração com sons sibilantes ([s] ou
[x]) conforme aumentam o alongamento.

• Percussões sobre os ossos: Percutir os ossos com as pontas dos dedos, experimentando
os sons provocados. Realizar as percussões sobre o esterno, clavícula, osso ilíaco, caixa
craniana. As percussões ósseas estimulam a percepção da caixa de ressonância.

• Em pé ou sentado, de olhos fechados, observar a respiração procurando identificar: se


ela é nasal ou bucal; a relação entre inspiração e expiração, qual é mais demorada ou se
têm a mesma duração, se existe intervalo entre uma e outra ou se a ação é contínua; qual
o caminho do ar no corpo, e que regiões do corpo se movimentam nas trocas aéreas.
Neste processo é importante que a observação não altere a ação, para que se tenha real
consciência do gesto corporal, antes de elaborá-lo tecnicamente. Costumamos observar a

48
respiração juntamente com os exercícios de observação da postura, do peso e das tensões
do corpo.

Respiração:

• Observar a respiração com auxílio do tato: Apoiar as mãos em diferentes regiões do


tronco e sentir se há movimentos relativos à respiração (esterno, ombros, costelas,
abdômen, lombar).

• Exercício de esquecimento da respiração: Este exercício objetiva sensibilizar músculos


envolvidos na respiração a partir de movimentos corporais. Sentado, apoiado sobre os
ísquios, realizar um pequeno enrolamento da lombar ao expirar, produzindo o som de
[f]. Desenrolar o tronco deixando o ar entrar. Exercício extraído de atividades com o
Desvendar da Voz, auxilia na sensibilização da musculatura do baixo ventre conferindo
mobilidade para a lombar. A sonorização pode ser feita com outras consoantes, como [x]
ou [s].

• Ritmo e respiração: Este exercício consiste em movimentar o ar com a respiração, a


partir de movimentos corporais. Com o grupo em roda, dar três passos para trás, abrir os
braços e inspirar; sem seguida, expirar com som de [f], caminhando para frente e
levando os braços para cima. Os movimentos devem ser curtos e ritmados; com relação
à inspiração, usamos a expressão: deixar o ar entrar, com o objetivo de evitar
movimentos excessivos na região do pescoço e ombros. Este exercício também é
recolhido de atividades com o Desvendar da Voz.

• Respiração e movimentos corporais: Soltar o ar em [s], varrendo o ambiente com o


olhar, provocando rotação de pescoço no sentido horizontal. Olhar de um lado para outro
soltando o ar com s durante o movimento; conectar a respiração com o movimento.
Procurar fazer com que a respiração não sofra alteração com o movimento da cabeça.

Músculos da face, laringe, língua, primeiras articulações sonoras:


• Alongamento do músculo masseter, utilizando as mãos, tracionando o músculo para
baixo, deixando a mandíbula se abrir.

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• Trabalhar os músculos da face, com caretas, movimentos exagerados, estimulando os
orbiculares dos lábios e o zigomático.

• Exercícios para a língua: Esticar a língua para fora da boca e deixar que ela voltar
lentamente; varrer o véu palatino com a língua, desde os incisivos superiores até o palato
mole; apoiar a ponta da língua nos incisivos inferiores e movimentá-la para fora e para
dentro da boca, sem articular a mandíbula.

• Mastigação do som: com movimentos exagerados e muito fluxo de ar, realizar uma
mastigação com sonorização, estimulando o trato vocal.

• B prolongado: realizar o som da consoante [b], prolongando-o ligeiramente, em região


confortável da voz, provocando ligeira movimentação da laringe.

• Exercícios com trato vocal semiocluído, em que o ar sai com fricção: Glissandos com
vibração de língua e lábio e com a consoante [v].

Percepção do espaço, som e movimento:


• Caminhar no espaço: Exercício básico da técnica dos Six Viewpoints consiste em
caminhar no espaço em linha reta, sem desviar a direção, sem variar a velocidade, sem
criar intencionalidade, apenas observando o espaço. O objetivo desse exercício é isolar o
parâmetro espaço e explorar sua percepção ao extremo.

• Caminhar, variando as maneiras de caminhar (provocando deslocamentos), a partir de


instruções como: como gatos, como sapos, como crianças, como bêbados, como
monges, etc.

• Caminhar em linhas retas, deixando clara a mudança de direção com o olhar. Buscar
trajetórias retas e decididas. Observar a respiração, a velocidade, o deslocamento no
espaço, sua posição em relação ao espaço, em relação aos outros corpos em
deslocamento.

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• Caminhar percebendo os sons dentro existentes dentro e fora do espaço ocupado.
Orientar o movimento a partir da percepção sonora, procurando se relacionar claramente
com essa percepção, de maneira que a escuta defina a direção a ser tomada na
caminhada pelo espaço. Nessa dinâmica, realizar escolhas de se afastar ou se aproximar
dos sons escutados.

• Caminhar produzindo um som: Enquanto o corpo se movimenta pelo espaço, produzir


algum som. Observar o som produzido com os outros sons presentes no espaço, escolher
que sons causam atração ou repulsa e se relacionar claramente com eles, ora se
aproximando, ora se afastando dos mesmos. Observar a ocupação sonora do espaço a
partir dos sons existentes na paisagem sonora e dos sons produzidos pelo grupo.

• Produzir sons propositalmente a partir do efeito que se quer produzir – de aproximação


ou repulsa; instigar o grupo a produzir não apenas sons agradáveis, mas também sons
que possam ser negados pelos outros, ou que causem desconforto. O importante é ter
clareza nas escolhas.

• Caminhar no espaço em pares: Este exercício foi recolhido a partir de workshop com a
técnica dos Six Viewpoints. Uma pessoa guia a outra em movimento pelo espaço pela
nuca. O exercício trabalha a percepção do espaço a partir de uma maneira inusitada. O
toque na nuca deve ser sutil, e o líder é estimulado a variar a movimentação e a
trajetória. Quem é guiado deve se deixar levar. O exercício trabalha com a relação
interpessoal no grupo, com a disponibilidade, com a capacidade de liderança e com a
percepção do espaço.

Jogos de conexão:
• Exercício do “João-bobo”: O exercício é realizado em trios e trabalha com o medo, a
confiança, a entrega e a co-implicância. Brincar de “João-bobo” significa fazer-se de
boneco nas mãos de duas pessoas, enquanto elas jogam com o peso de seu corpo, de uma
para outra. A pessoa que está na posição do boneco, deve entregar o peso de seu corpo à
dupla que está jogando, sem interferir no movimento.

51
• Exercício com bola de tênis: Este exercício foi adaptado a partir do workshop realizado
com Fernando Machado e Hannah Dunster. Com o grupo em roda, jogar uma bola de
tênis de um para outro aleatoriamente. Na segunda rodada, jogar a bola dizendo o
próprio nome junto com o movimento. Na terceira rodada, jogar a bola dizendo o nome
da pessoa para quem se joga. Observar a prontidão para jogar e receber a bola, a atenção
para os movimentos.

• Uma variação do exercício anterior consiste em criar uma sequência definida para a
jogada, ou seja, jogar sempre para a mesma pessoa, dizendo o nome da pessoa para
quem se joga a bola. Quando a sequência for estabelecida, realizar o exercício com duas
ou mais bolas. Ao ter mais bolas em jogo, os participantes devem manter a atenção e a
conexão, de modo que só lancem a bola quando o outro estiver pronto para receber.

• Roda de nomes: O exercício é realizado para promover um primeiro contato entre os


participantes do grupo, e consiste num jogo de memória utilizando os próprios nomes.
Na primeira rodada, um participante diz seu nome estalando os dedos da mão esquerda,
dando início à roda. Na sequência cada participante repete o gesto, até a roda se
completar. Na segunda rodada, o primeiro participante diz seu nome estalando os dedos
da mão direita e o nome do participante a sua esquerda estalando os dedos da mão
esquerda, e assim sucessivamente, até a roda se completar. É importante que se
estabeleça um pulso constante durante o jogo.

• Uma variação do exercício anterior consiste em falar o próprio nome e em seguida o


nome da pessoa para onde se dirige o sentido da roda. Nessa variação, a roda pode
mudar de sentido a qualquer momento, o que exigirá do grupo maior atenção para a
sequência. Quem erra deve sair da roda, deixando o jogo mais ágil e estimulando a
atenção e a prontidão durante a dinâmica.

Atividades de nível técnico

Os exercícios que seguem contemplam os conteúdos relativos ao aprendizado técnico vocal


e musical, bem como as dinâmicas de improvisação desenvolvidas ao longo dos processos. O

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ambiente em que esses exercícios se desenvolvem está relacionado com o nível interpretativo,
visando uma apropriação criativa dos conteúdos trabalhados.

A abordagem sobre técnica vocal objetiva desenvolver consciência e autonomia com relação
aos processos corporais envolvidos no canto, desde a respiração ao gesto vocal. Com relação aos
conteúdos musicais, apresento exercícios que tratam o pulso a partir de movimentos corporais,
melodias na escala maior em vocalizações e cânones, percepção de texturas e percepção dos
parâmetros do som: altura, duração, intensidade e timbre.

• Exercício de vibração lingual ou labial com movimentos corporais: A vibração, lingual


ou labial, promove o aquecimento das pregas vocais, conferindo maior elasticidade ao
músculo vocalis e promovendo equilíbrio no fechamento das pregas. Deixar a cargo de
cada participante escolher a vibração que é capaz de realizar com maior conforto.

• Realizar as vibrações associando-as a movimentos corporais correspondentes à altura do


som. Os participantes realizam gestos como se desenhassem o som no espaço,
sonorizando esses gestos com as vibrações. Inicialmente, cada um realiza seu gesto
individualmente; no segundo momento, todo grupo sonoriza o gesto de uma pessoa.
Atentar o grupo para a correspondência entre gesto e som no âmbito das alturas, e
estimular a variedade de gestos. Estimular os participantes a realizarem gestos que
possam sonorizar, buscando ampliar as alturas gradualmente.

• Exercícios de vibração labial ou lingual em intervalos definidos, utilizando glissandos


em intervalos de 5J e 8J, associando gestos às vocalizações.

• Exercícios de ressonância utilizando a consoante [m]: Exercício em que os participantes


escolhem a altura do som, e experimentam movimentos faciais (mastigações),
observando as diferentes regiões de ressonância ativadas com a movimentação. Podem-
se utilizar alturas definidas e melodias com âmbito de segunda maior, associadas aos
movimentos.

• Ressonância com a sílaba “ning”: Esta sílaba é bastante utilizada nos exercícios do
Desvendar da Voz, e tem a propriedade de abrir os ressonadores superiores (seio

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esfenoidal e frontal) por conta da vogal [i] e ampliar a ressonância na caixa craniana
com o fonema [ng]. Realizar o exercício com duas alturas diferentes em intervalo de
terça maior, deixando que cada participante escolha a altura que preferia cantar. Realizar
o mesmo exercício com as notas de uma tríade de dó maior, deixando que cada
participante escolha sua nota na formação da tríade. É importante deixar o fonema [ng]
soar e observar sua propagação no espaço interno do corpo, no espaço da sala e na soma
com as outras vozes. Esse exercício prescinde de silêncio após a vocalização, a fim de
despertar a atenção para a ressonância do som.

• Improvisação com ressonância, ou som dos sinos: O exercício explora diversas maneiras
de imitar sons de sinos com a voz. Num primeiro momento, o grupo realiza uma
pesquisa individual dos sons possíveis. Em seguida, em roda, cada um apresenta um
som, deixando-o soar em tempo confortável. Num terceiro momento, um regente aciona
os sinos, definindo a dinâmica e a duração das ressonâncias pela associação entre gesto e
som.

• Vocalizações com melodias: Nesses exercícios, observar o encontro entre voz e melodia,
valorizando a escuta e a percepção.

• Exercício de vocalização com três vogais: Exercício realizado em duas etapas. Na


primeira etapa, trabalhar com a repetição da melodia no âmbito de uma oitava, com o
objetivo de aquecer a voz e reconhecer suas reações em diferentes regiões de sua
tessitura. Em seguida, fixar uma altura em que as variações de registro são mais
aparentes para o grupo, a fim de explorar a percepção dos mesmos. Dessa maneira, com
a vogal [u] na região aguda, percebe-se o sub-registro de cabeça, com a valorização dos
ressonadores agudos. Com a vogal [o], percebe-se o mix cabeça e peito. Com a vogal [a]
sensibilizar os ressonadores mais baixos, e a percepção do sub-registro de peito.

Ex. 1 - Exemplo de exercício de vocalização com três vogais

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• Uma variação do exercício anterior é a sua execução em cânone, formando uma textura
de terças paralelas. Ao trabalhar com o cânone, estamos incluindo o conteúdo de
harmonia vocal.

• Exercício de vocalização com uma vogal: Melodia realizada com a vogal [a], buscando a
livre passagem do ar pela laringe, da maneira mais ligada possível. Primeiro realizar em
uníssono, em diferentes alturas. Para realizar a melodia em legato, associamos sua
execução ao direcionamento do peso do corpo para os metatarsos. Ao direcionar o foco
da execução para o movimento corporal, promove-se uma mudança na conduta
respiratória: a saída do ar se dá em fluxo contínuo e direcionado, apenas com a alteração
do eixo do corpo.

Ex. 2 – Exercício de vocalização com uma vogal

• Uma variação do exercício anterior é a associação do cânone a movimentos espaciais.


Trabalhamos esse exercício inicialmente em duplas, com as duplas posicionadas frente a
frente. A dupla que inicia o exercício caminha em direção a outra. A segunda dupla
repete o movimento no sentido oposto, no tempo do cânone. Em seguida, trabalhamos o
cânone em roda. Quem inicia a melodia, caminha pelo centro da roda, em direção a uma
pessoa. A pessoa a quem se dirige iniciará a segunda entrada do cânone e assim
sucessivamente. Ao trabalhar a melodia em movimento, estimula-se o poder de decisão
sobre o som, procurando enfatizar a direcionalidade da melodia sugerida pelo exercício,
a consciência do ataque e do corte, e a autonomia para realizar o cânone.

• Exercícios de estruturação rítmica a partir do estabelecimento de um pulso com


subdivisão binária, utilizando movimentos dos pés e palmas. O pulso é marcado com
movimentos dos pés alternados. A subdivisão binária é marcada com as palmas. Alternar
momentos em que pés e palmas soam juntos, com momentos de defasagem, a fim de
estimular a percepção do conteúdo.

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Atividades de nível interpretativo

Notas longas com vogais (nlv): Exercício recolhido de atividades de improvisação vocal
realizadas com Beth Amin. Segundo Beth, foi extraído de dinâmicas coordenadas por Bob Stoloff,
no Vocal Summit (grupo de improvisação vocal da Berkley College of Music).

O exercício consiste em emitir notas longas em diferentes alturas, com vogais. Todos devem
cantar a mesma vogal: uma vez definida a vogal, essa deve ser assimilada pelo grupo. Alterações de
vogais podem ocorrer durante a dinâmica, sendo que quando uma nova vogal é lançada para o
grupo esse deve aderir coletivamente à mudança. Não é permitido alterar a altura escolhida durante
a emissão da nota longa. Alterações de altura devem ser feitas após as respirações. Observar para
não configurar ritmos nem melodias.

Observações: Antes do exercício, deve existir silêncio. É importante que o professor


observe a capacidade do grupo de se concentrar, e escutar o silêncio que antecede o som. Qualquer
integrante pode iniciar o exercício, escolhendo a vogal e a altura em que irá emitir o som. O grupo
vai emitindo suas notas, escolhendo alturas para preencher o espaço acústico, observando a relação
entre som e silêncio, o tempo da respiração, o espaço que a vogal ocupa no corpo e no ambiente,
escutando as ressonâncias e a sonoridade resultante.

O trabalho com a escuta permite que a cada rodada o grupo tenha capacidade de realizar
escolhas mais conscientes no que diz respeito aos sons que emite. O professor pode observar o
tempo de duração de cada vogal, as diferentes variações de dinâmica e densidade, e estimular o
grupo a lidar conscientemente com esses parâmetros.

Variações: Iniciar a dinâmica permitindo qualquer som longo (as regras são: não variar a
altura, não interromper o fluxo de ar); restringir o universo dos sons para vogais (qualquer vogal);
em seguida restringir para a mesma vogal; permitir um movimento de altura durante o som longo.

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Clicks: Exercício trazido por Max Schenkman a partir de workshop realizado com a Profa.
Dra. Franziska Schroeder, em improvisação livre.

O exercício consiste em disparar sons de curtíssima duração, como clicks. Na primeira


etapa, sugere-se que o grupo experimente os diferentes clicks que pode produzir. Em seguida, pede-
se para que cada um escolha um click, para disparar na roda. Sugere-se que o intervalo entre cada
click disparado seja correspondente ao número de sons que o grupo pode produzir (se o grupo tem
10 pessoas, para cada click fazer um intervalo de 9 silêncios). Realizar escolhas de onde encaixar
seu click.

Observações: No exercício, valorizar a escuta panorâmica, e a polarização da escuta para o


próprio som e para o som do grupo.

Variações: Fechar os olhos para escutar de onde vem os clicks. Utilizar palavras no lugar
dos clicks. Quando o grupo é muito grande, pode-se estabelecer a dinâmica de clicks ao centro:
após as quatro etapas de clicks, sugerir uma variação com apenas seis clicks ao centro da roda. Os
participantes devem se alternar na roda central, por tomada ou abandono de posição. Qualificar a
atividade e a passividade, com enfoque para a escuta atenta e sua relação com a corporalidade na
performance.

Passar o som: Exercício desenvolvido por Max Schenkman durante os ensaios da Nariz de
Orquestra.

Com todos em roda, o jogo se inicia quando uma pessoa sai de seu lugar, atravessa a roda
fazendo um som e o entrega para outra pessoa da roda. Quem recebe o som repete a ação: sai de seu
lugar com seu som, atravessa a roda e leva o som a outra pessoa.

Observações: Não é necessário repetir o som que recebeu – cada participante pode se
relacionar de diferentes maneiras com o som. É interessante que se estabeleça um diálogo entre os
participantes no momento em que o som é passado, e que os dois sons possam coexistir por um
espaço de tempo. É comum nesse exercício que gestos sejam associados aos sons (costuma
acontecer sem que haja estímulo verbal).

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Variações: Pode-se aumentar gradativamente a quantidade de sons simultâneos que
atravessam a roda (de acordo com o tamanho do grupo). Passar o som com diálogos: estabelecer
diálogos com outros sons que passam pela roda; estabelecer diálogos com a pessoa a quem entrega
o som. Passar o som com contágio por flagelo: durante a dinâmica de Passar o Som, estimular os
participantes a seguir e imitar um som que está passando pelo centro, caso o som desperte algum
interesse.

Sons e suspensões: Exercício extraído de workshop com Marcelo Gama, em técnica dos Six
Viewpoints aplicada à improvisação vocal.

Exercício consiste em emitir sons no pulso e criar suspensões ou silêncios. O grupo, em roda
estabelece um pulso coletivo e juntos respiram e atacam um som em conjunto. Esses sons são livres,
podendo variar de ruídos, percussões vocais e corporais, palavras, sílabas, sons com frequência
definida.

Observações: Esse exercício trabalha a consciência coletiva do pulso e a percepção do


silêncio. Pode ser executado em sessões curtas, sendo que a cada repetição pode-se acelerar ou
retardar o andamento. O professor pode sugerir que o pulso inicialmente seja marcado com os pés,
porém é importante que a cada repetição o grupo internalize a pulsação, deixando o espaço entre os
sons ser preenchido apenas pelo silêncio. Também é interessante estimular o contágio entre os
participantes, despertando a escuta para os sons coletivos, o olhar para o outro. Quanto mais rápido,
menos tempo o participante tem para julgar e realizar escolhas, dessa maneira é mais capaz que o
som produzido seja resultante de um impulso ou reflexo e menos de um ato racional e reflexivo.
Sugerimos alternar esse exercício com o de notas longas com vogais, para maior compreensão da
importância do silêncio e da sensação de pulso.

Variações: Podem-se incluir movimentos corporais nas dinâmicas; pode-se trabalhar com a
defasagem entre sons e silêncios, provocando mudanças nas texturas e suspensões locais (entre
pequenos grupos dentro do coletivo).

Sequência minimal: Este exercício foi originalmente recolhido em atividades realizadas


com Stenio Mendes e Fernando Barba, e transformado durante as atividades com o grupo.

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O objetivo é montar uma sequência de sons composta de pequenas unidades sonoras feitas
pelos participantes. Os sons devem ser realizados pelos participantes na ordem em que estão
dispostos na roda e repetidos ciclicamente. Quando todos estiverem soando, o primeiro a colocar
seu som silencia, e assim sucessivamente até o último som se calar.

Observações: O exercício trabalha os conceitos de motivo e textura e as relações de


autonomia e interdependência dentro de um conjunto. Estimula a escuta, a percepção rítmica, e a
memória. O exercício pode ser realizado com um pulso definido e marcado pelo grupo. O professor
deve estimular o grupo a silenciar a marcação do pulso, mantendo apenas sua percepção interna.
Também pode orientar o grupo a escutar e ter calma para realizar as escolhas sonoras, sem antecipar
o gesto; com relação ao gesto sonoro proposto, o professor pode orientar para que os participantes
escolham um som possível de ser repetido por ele mesmo. Não há necessidade de ser uma escolha
sofisticada, mas algo que possa ser memorizado, reproduzido e manipulado por quem a realiza. A
complexidade está na resultante dos sons propostos. Os integrantes devem atentar para os espaços
existentes entre os sons, para realizar suas escolhas.

Variações: Uma variação possível para essa atividade é a realização de regências. Uma vez
que todos os sons estão na roda, um integrante pode reger o conjunto, elencando os sons que são
tocados e os que são silenciados, realizar regência de dinâmicas, etc. O grupo deve ser estimulado a
ouvir o que não soa, a manter a atenção durante o silêncio e a memória dos sons que não estão
sendo tocados. Outra variação é o estabelecimento de uma voz solista sobre a textura criada.

Tim-Uê: Exercício adaptado do original de Meredith Monk. Esse exercício foi recolhido a
partir de atividades de improvisação vocal realizadas com Beth Amin.

O exercício consiste em passar as sílabas “Tim” e “Uê”, com alturas definidas, em roda. As
sílabas são geradas por uma pessoa, que transmite o som enquanto pressiona gentilmente a mão do
vizinho. Quem recebe a pressão na mão, deve reproduzir o som, e envia-lo para o seguinte,
repetindo o mesmo gesto. Quando o som gerado retorna à origem, a fonte sonora dispara outro som,
e a dinâmica prossegue até que a fonte pare de gerar os sons.

Observações: O exercício trabalha com a percepção de alturas e com timbre. As sílabas


escolhidas projetam harmônicos diferentes, o “tim” valoriza a projeção de harmônicos agudos,
enquanto “uê” favorece os graves. O contraste entre os timbres das sílabas funciona como um

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facilitador na percepção das alturas. Durante a dinâmica, é importante que o grupo consiga passar o
som na mesma altura que escutou e sustentá-lo até que receba a pressão nas mãos.

Variações: a fonte sonora pode emitir outro som, mesmo antes do primeiro retornar;
qualquer jogador pode mudar o sentido da roda; pode-se alternar o gerador dos sons; pode-se jogar
com duas ou mais fontes sonoras.

Contágio livre: Exercício recolhido de atividades com Fernando Barba (Barbatuques) e


Stenio Mendes.

O exercício consiste em se deixar contagiar pelos sons do grupo. A dinâmica deve partir do
silêncio e não se define quem vai iniciar. Quando um som é apresentado, o grupo deve aguardar até
que ele se consolide. Qualquer um que se sentir contagiado pelo som apresentado, pode responder
ao estímulo.

Observações: A dinâmica trabalha com a escuta aberta e atenta, e com o silêncio que
antecede o som. Deixar-se contagiar é não antecipar o gesto criativo à escuta, é experimentar o
silêncio interno. O tempo que cada som leva para se consolidar é o tempo que cada um tem para
experimentar sua escolha até que ela se torne cíclica. O grupo deve escutar o gesto apresentado até
perceber que este se consolidou e é dessa percepção que deve surgir o novo gesto. Cada um deve ter
a clareza de se colocar em atitude de contágio, sem antecipar a resposta, escutando cada novo som
apresentado. Quando todos os sons forem apresentados, o grupo deve ser estimulado a escutar cada
um deles na roda, uma espécie de escuta panorâmica. A partir desse momento, todos podem realizar
novas escolhas, quando o contágio livre de fato se inicia.

Variações: A partir do contágio livre o grupo pode estabelecer naipes; explorar variações
dentro dos naipes; estabelecer diálogos entre os naipes; explorar variações de densidade e dinâmica;
explorar regências internas nos naipes; explorar regência geral.

Aquecimento policancional:
Exercício desenvolvido a partir de dinâmicas de improvisação envolvendo canções
brasileiras. O exercício consiste em cantar em conjunto diferentes canções simultaneamente, de
forma a criar uma textura polifônica. O desencadeamento das canções se dá pelo contágio. Pode-se
restringir o universo cancional por compositor, tema, palavra, entre outras possibilidades.

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Variações (a partir da dinâmica realizada com Alejandro Di Vicenzi): Caminhar pelo
espaço carregando uma cadeira - experimentar diversas maneiras de transporta-la, escolher a
maneira mais cômoda de carregar. Encontrar um lugar no espaço para deixar a cadeira - sentar na
cadeira de diferentes maneiras, escolher maneiras confortáveis de sentar. Na posição de maior
conforto, começar a cantarolar uma melodia que traga na memória - buscar melodias que goste de
cantar (associar conforto e afeto). Escutar o som da melodia no espaço - se ela se projeta, se fica
apenas ao redor de quem a entoa; escutar as outras melodias no espaço. Ainda sentados, alternar
entre cantar e silenciar - pode-se aqui escolher pequenos grupos para cantar alternadamente; pode-
se também trabalhar com timbres (cantar com as palavras, cantar com humming). Nesse jogo de
alternância, pode-se deixar parte do grupo sentado em silêncio, e parte em pé, cantando e
transitando pelo espaço.

Um-Dois (one-two): Exercício adaptado do original desenvolvido por John Smith,


percussionista inglês que trabalha com improvisação livre. Recolhido em workshop de
improvisação livre ministrado pela Prof. Dra. Franziska Schroeder.

O exercício consiste em falar as palavras UM e DOIS, alternadas em uma roda, criando um


pulso coletivo. As vozes vão se acumulando, formando dois naipes.

Observações: Procurar manter o pulso. Quando todas as vozes se colocarem, o grupo é


estimulado a escutar todas as vozes soando juntas. Perceber a mudança de timbre, densidade e
dinâmica.

Variações: A cada repetição, podem-se variar as maneiras de emitir as palavras. Estimular


as variações de altura, timbre intensidade, duração. Variar o idioma, estabelecer diálogos internos,
deixar-se contagiar pelo som do grupo. Pode-se também migrar de um para dois, explorando figuras
rítmicas e pausas na estrutura estabelecida. Variar o pulso, pelo método da distensão, prolongando a
sílaba para além da voz falada, explorando gestualidades vocais pouco usuais no cotidiano. Pode-se
acrescentar novos naipes à dinâmica, como UM, DOIS,TRÊS, por exemplo.

One-Two com Tim-Uê:


Substituir as silabas um e dois por [tim] e [uê], do exercício proposto por Meredith Monk
(ver Tim-Uê). Valorizar a ressonância, percebendo o ataque do começo de cada sílaba e a

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ressonância que se sucede. Experimentar a ideia de contágio ao longo do exercício, para as
variações apresentadas, estimulando a escuta e percepção do todo.

Exercício da fonte geradora: Dinâmica desenvolvida por Marcelo Gama durante workshop
de Técnica dos Six Viewpoints e Improviso Vocal.

Os participantes são dispostos em fila ou em roda. Uma pessoa é a fonte geradora de sons
vocais e deve emitir um som repetidamente. A pessoa a seu lado deve variar o som escutado a partir
de um parâmetro do som (altura, duração, intensidade e timbre). A próxima pessoa deve utilizar o
mesmo parâmetro para variar o segundo som produzido e assim sucessivamente, até que todos
apresentem suas variações.

Observações: O exercício começa isolando-se um parâmetro para ser variado. Os


participantes devem ter clareza tanto na produção do som quanto na variação, buscando restringir
sua ação ao parâmetro selecionado. O exercício trabalha com a atenção, a escuta, a restrição do
universo sonoro e promove a discussão sobre os parâmetros do som e sua realização vocal. É
interessante que tanto o som gerado quanto as variações sejam repetidas ciclicamente, produzindo
diferentes resultados sonoros.

Variações: Após algumas rodadas isolando parâmetros e trabalhando sobre cada um


individualmente, sugerimos combinar os parâmetros de diversas maneiras. Num primeiro momento,
um integrante é a fonte geradora e o som vai sendo transformado pelos demais participantes, sendo
que cada um utiliza um parâmetro diferente na variação. Pode-se jogar com diferentes posições e
formações espaciais, delimitando o território de cada parâmetro a ser variado e criando partituras
espaciais. Podem-se combinar parâmetros para as variações.

Triângulo Rotativo: Exercício recolhido em workshop sobre a Técnica do Six Viewpoints,


ministrado por Marcelo Gama. O exercício é uma adaptação de Gama a partir de práticas
vivenciadas com Mary Overlie.

O exercício consiste em um “siga-o-mestre”. Devem-se formar trios entre os participantes e


o “siga-o-mestre” se processa dentro de cada trio. Os trios são dispostos em formação triangular,
com uma pessoa à frente (o mestre), e duas atrás (os seguidores), todos voltados para a mesma
direção. Quem está à frente gera os sons, enquanto os de trás devem segui-lo. Durante a dinâmica

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pode-se trocar de mestre tanto pela passagem do comando (o mestre entrega o comando a outro)
quanto pelo roubo (alguém se dirige à posição do mestre e troca de lugar).

Observações: Inicialmente trabalha-se com a imitação do som, e a instrução dada é para


que os participantes sejam fiéis à imitação do som gerado. Procura-se dar um tempo para que cada
participante possa experimentar o comando. O professor deve orientar o grupo escutar o som
realizado pelos outros trios a fim de estabelecer diálogos entre as diversas formações. O exercício
explora a escuta, a atenção e a ampliação dos vocabulários vocais e musicais, a partir do
reconhecimento do gesto do outro.

Variações: A troca de mestre pode se dar pela entrega do comando, dessa maneira quem
está à frente dirige-se à pessoa com quem deseja mudar de posição. Também se pode trabalhar com
o roubo do comando, sendo que quem quer comandar, ocupa a posição dianteira. É importante
atentar para a generosidade tanto de quem comanda quanto dos que o seguem. Pode-se dar a regra:
“não querer liderar”. Após um tempo realizando imitações, pode-se trabalhar sobre variações a
partir dos parâmetros do som (altura, duração, intensidade e timbre) isolados ou combinados.
Podem-se combinar movimentos aos sons.

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