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antes de tudo…

preparei alguns textos, escritos por mim, numa tentativa de escrita não-acadêmica, escrita direta, quase
uma fala, o que talvez poderia chamar de escrita da voz. nessa escrita, tem um monte de referências
embutidas, que destaco na coluna lateral, sem utilizar os recursos ABNT etc das escrituras de teses artigos e
tais. coloco algumas citações ao final do texto, as que me trouxeram os insights, junto da referência
bibliográfica, escrita de maneira não formal.

venho atravessada por muitas reflexões, sobre feminismos, branquitude, racismo e como isso se manifesta
nas relações de ensino-aprendizagem, saberes e produção de conhecimento. a busca pessoal pela
desconstrução se manifesta nessa escrita, uma espécie de ativismo epistemológico, de validar o que não é
validado pelo contexto hegemônico em que estamos inseridas. isso passa pela minha forma de escrever, de
conduzir processos, de cantar… passa pelo meu ser.

trago um comentário de Djamila Ribeiro, no livro O Que é Lugar de Fala? citando a pesquisadora negra Lélia
Gonzales:
A pensadora e feminista negra Lélia Gonzalez nos dá uma perspectiva muito interessante
sobre esse tema, porque criticava a hierarquização de saberes como produto da classificação
racial da população. Ou seja, reconhecendo a equação: quem possuiu o privilégio social
possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é
branco. A consequência dessa hierarquização legitimou como superior a explicação
epistemológica eurocêntrica conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade
do que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante e, assim, inviabilizando
outras experiências do conhecimento. Segundo a autora, o racismo se constituiu “como a
‘ciência’ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal)”. Essa reflexão de Lélia Gonzalez
nos dá uma pista sobre quem pode falar ou não, quais vozes são legitimadas e quais não são.

toda minha busca por voz traz muito dessa visão, começando pelo fato de eu ser mulher branca, passando
pelo entendimento do que é feminismo hegemônica (leia-se branca) e de como os universalismos e as
generalizações agem a favor da preservação dessa hegemonia. decididamente, não estou aqui para
preservar hegemonias, mas sim para viver a diversidade.

consciente de meu lugar de branca, compartilho que estou no processo de desconstrução e tenho sim a
intenção de inspirar outras pessoas brancas nesse caminho. é uma questão de vida.

pra gente poder começar

eu me lembro do dia em que decidi me dedicar exclusivamente à


música.
antes desse dia eu já cantava, fazia umas canções, e
compartilhava meu tempo entre uma banda
performática-futurista com amigas da faculdade de arquitetura,
estágios e ativismo cultural. foi quando um amigo me perguntou
por que eu não me dedicava somente à música? e nessa conversa
mencionou a educação como uma possibilidade profissional,
dentro da música.
o chamado profissional mudou muita coisa no meu emocional, e
na minha relação com a minha voz. nesse momento, o que antes
era algo inerente ao meu ser, mas que eu tratava como um lazer,
seria então minha profissão, trabalho, modo de vida.

eu tinha uma bagagem musical que vinha da infância, de ter feito


aulas de piano na casa da minha vó, escutar muita música em
casa e participar do coral da escola durante o ensino médio.
depois do coral, comecei a compor, fui chamada para uma banda
e passei a conviver com a música nesse lugar de troca,
experimentando, criando, arriscando.

assim, inspirei, soltei o ar, dormi, acordei, senti, pensei e fui


estudar. comecei entrando para o coralusp (que na época vivia
um momento muito interessante, se configurando como uma
escola de música para a comunidade). em seguida entrei para a desvendar da voz, eutonia,
escola municipal de música (eu achava que tinha que passar pelo improvisação vocal,
improvisação livre, técnicas
conservatório), fiz inúmeros ​cursos livres​, oficinas, aulas de canto
estendidas de canto, dança
popular e lírico(!), atendimentos com fonoaudiólogas, entrei na contemporânea, yoga, tai chi,
faculdade de música para estudar educação musical, me formei e processos criativos, música
sigo estudando até hoje. corporal, música circular.

mal comecei a estudar, e os trabalhos começaram a surgir, todos


ligados à voz. voz que me levou pro corpo, a corpo que se
djamila ribeiro - lugar de fala
entende desde um ​lugar​, corpo que me leva a muitos lugares, luísa toller - lugar de voz
corpo que fala, canta, vocifera desde um lugar. corpo de mulher isabel nogueira - lugar de
branca, latinoamericana, de são paulo. corpo-voz em estado de escuta
relação, política, poética.

voz que me levou à escuta. de vozes. de pessoas. com suas


próprias histórias, em suas buscas diversas pela voz. gente que
quer ser profissional, ou já canta profissionalmente, amadores,
gente que nunca cantou, gente que acha que não serve para
cantar, gente que precisa liberar-se de travas, encontrar a própria
voz. e fui também conhecendo mais a minha voz, vivendo e
narrando minhas histórias.

fui (e venho) entendendo que a voz é de cada pessoa, que temos


uma relação de intimidade com nossa voz e, mais que isso, de adriana cavarero - unicidade da
unicidade​. a beleza de cada voz, para mim, está no encontro da voz
pessoa com sua voz própria, a que se conecta com sua essência. é
o que eu busco enquanto voz e o que posso compartilhar é a
busca e os pontos do meu caminho. penso que uma voz não pode
ser ensinada, bem como não posso dar a voz a ninguém. não
posso dar o que já é de cada pessoa. a ​voz-experiência​ é renata gelamo -
justamente esse processo de auto-aprendizagem necessário voz-experiência, voz própria
quando se trata de voz.
entendo que vivemos em um mundo generalizante e por isso
excludente, que escolhe quais vozes serão validadas. e nós
incorporamos essa escuta, muitas vezes reprovando nossa
própria expressão através da voz. no caso da mulher
(principalmente as mulheres negras, indígenas e periféricas) a
desautorização da fala e do saber é ainda mais opressor. e é
estrutural. saber disso me ajuda a seguir e a requalificar minha
escuta e os auto-julgamentos, me inspira a seguir narrando minha audre lorde: a poesia não é um
história, fazendo uso da ​palavra poética voz​-corpo e me estimula luxo (sister outsider)
a buscar caminhos para minha voz.

caminhos que compartilho aqui, nessa proposta de encontro, de


troca, nesse percurso, com o intuito de seguir nos inspirando a
criar. que seja uma boa jornada.

a seguir, deixo algumas citações das referências contidas nesse meu texto, algumas contém links para os
trabalhos completos de cada autora.

O que é lugar de fala? - Djamila Ribeiro


coleção Feminismos Plurais - ed. Letramento - 2017

Gonzalez evidenciou as diferentes trajetórias e estratégias de resistências dessas mulheres e defendeu um


feminismo afrolatinoamericano colocando em evidência o legado de luta, a partilha de caminhos de
enfrentamento ao racismo e sexismo já percorridos. Assim, mais do que compartilhar experiências
baseadas na escravidão, racismo e colonialismo, essas mulheres partilham processos de resistências. A
pensadora também confrontou o paradigma dominante e em muitos de seus textos utilizou uma linguagem
sem obediência às regras da gramática normativa dando visibilidade ao legado linguístico de povos que
foram escravizados.
Os trabalhos e as obras de Gonzalez também têm como proposta a descolonização do conhecimento e a
refutação de uma neutralidade epistemológica. Importante ressaltar o quanto é fundamental para muitas
feministas negras e latinas a reflexão de como a linguagem dominante pode ser utilizada como forma de
manutenção de poder, uma vez que exclui indivíduos que foram apartados das oportunidades de um
sistema educacional justo. A linguagem, a depender da forma como é utilizada, pode ser uma barreira ao
entendimento e criar mais espaços de poder em vez de compartilhamento, além de ser um – entre tantos
outros – impeditivo para uma educação transgressora. [p. 16-17]

Se a obra é a soma das penas: um estudo feminista sobre as cantoras da Vanguarda Paulista - Luísa Toller
dissertação de mestrado - orientação Heloísa Valente - ECA - USP - 2018

Para Paul Zumthor a voz “ultrapassa a língua; é mais ampla do que ela, mais rica”, em alcance de registro e
envergadura sonora, a gama dos efeitos gráficos utilizados pela língua é ultrapassada em muito pela voz:
ela diz a si própria e se coloca como presença. “Cada um de nós pode fazer a experiência do fato de que a
voz, independente daquilo que ela diz, propicia um gozo” (ZUMTHOR, 2005, p.64).
Adriana Cavarero reitera este tipo de visão, relacionando, pois, o fato à compreensão da escrita e do texto
como tradição socialmente masculina e arremata: “Em suma, no discurso cantado, o feminino se confunde
com o masculino e o vence. Esta é a obra da ópera: vozes que esvaziam o papel da palavra. Um alegre
triunfo vocálico sobre o semântico” (CAVARERO, 2011, p.149). Postas estas observações sintéticas acerca da
produção vocal, cabe, agora tratar do lugar desta voz.
Baseando-nos em Zumthor e Cavarero, optamos, doravante, que se use a expressão ​lugar de voz, ​para
designar artística e socialmente essa voz cantada e falada. Tal ideia deve aliar-se ao conceito de ​lugar de
fala​, visando incluir na discussão questões mais subjetivas. [p. 69]

Lugar de fala, lugar de escuta: Criação sonora e performance em diálogo com a pesquisa artística e com
as epistemologias feministas - Isabel Nogueira
artigo publicado na revista digital Vortex - 2017

Caminhos de escuta, lugares de fala: reconhecimento dos caminhos por onde transito, de onde venho e até
chegar aqui. Cotidiano em sons: ouvir os sons e lugares. Pensar em meu próprio lugar de fala e explorar
suas histórias, pontos de vista, colocações e os entrelaçamentos do agora-memória. O que vem daí? Para
onde vai? Como flui? Como é este movimento e sua impermanência? Que som traduz estes lugares,
pensamentos e sensações sobre isto?
A voz é o estar no mundo. Fazer ouvir sua voz é a metáfora para participação, para existência, e ao mesmo
tempo para a singularidade. O timbre que faz reconhecível a pessoa. Forma de onda imbricada com
presença. Uma existência através da voz. [p. 7]

Em busca de um conceito de lugar, Massey destaca que em primeiro lugar, ele é absolutamente não
estático, posto que, se os lugares podem ser conceituados em termos das interações sociais que agrupam,
e estas interações são processos, os lugares também são processos. Em segundo lugar, os lugares não têm
fronteiras no sentido de divisões demarcatórias necessárias para a conceituação do lugar em si, as
particularidades de suas relações com o exterior podem também constituir o lugar. Logo, os lugares não
têm identidades únicas ou singulares, eles estão cheios de conflitos internos. Finalmente nada disso, nas
palavras da autora, nega o lugar nem a importância da singularidade de um lugar (...) [p. 10]

Vozes Plurais - filosofia da expressão da voz - Adriana Cavarero


Ed. Humanitas

O jogo entre emissão vocálica e percepção acústica envolve necessariamente os órgãos internos: implica a
correspondência de cavidades carnosas que aludem ao corpo profundo, o mais corpóreo dos corpos. A
impalpabilidade das vibrações sonoras, mesmo incolores como o ar, sai de uma boca úmida e irrompe do
vermelho da carne. Também por isso, (...) a voz é o equivalente daquilo que a pessoa ​única possui de mais
escondido e mais verdadeiro. Não se trata, porém, de um tesouro inatingível, de uma essência inefável e,
muito menos de uma espécie de núcleo secreto do eu, mas sim de uma vitalidade profunda do ser único
que goza da sua autorrevelação por meio da emissão da voz. [p. 18-19]

… Os aspectos misóginos são bem conhecidos. Segundo a tradição, o canto convém à mulher bem mais do
que ao homem, sobretudo porque cabe a ela representar a esfera do corpo como oposta àquela, bem mais
importante, do espírito. Sintomaticamente, a ordem simbólica patriarcal que identifica o masculino com o
racional e o feminino com o corpóreo é a mesma que privilegia o semântico em relação ao vocálico. Dito
de outro modo, mesmo a tradição androcêntrica sabe que a voz provém da “vibração de uma garganta de
carne” e, exatamente porque o sabe, classifica-a na esfera corpórea - secundária, transitória e inessencial -
reservada às mulheres. Feminilizados por princípio, tanto o aspecto vocálico da palavra quanto
principalmente o canto comparecem como elementos antagonistas de uma esfera racional masculina
centrada, por sua vez, no elemento semântico. Para dizer com uma fórmula: a mulher canta, o homem
pensa. [p. 20]
La Poesia no es un Luxo em:​ ​La hermana, la extranjera (sister outsider) - Audre Lorde
edição espanhola produzida por: Lesbianas Independientes Feministas Socialistas - LIFS

Cuando concebimos el modo de vida europeo como un mero problema a resolver, pretendemos alcanzar la
libertad basándonos tan sólo en nuestras ideas, porque los padres blancos nos dijeron que lo valioso son las
ideas.
Pero a medida que ahondamos en el contacto con nuestra conciencia ancestral y no europea, que ve la vida
como una situación que debe experimentarse y con la que hay que interactuar, vamos aprendiendo a
valorar nuestros sentimientos y a respetar las fuentes ocultas del poder de donde emana el verdadero
conocimiento y, por tanto, la acción duradera.
Estoy convencida de que, en nuestros tiempos, las mujeres llevamos dentro la posibilidad de fusionar estas
dos perspectivas, tan necesarias ambas para la supervivencia, y de que es en la poesía donde más nos
acercamos a esa combinación. Me refiero a la poesía entendida como reveladora destilación de la
experiencia y no al estéril juego de palabras que, tantas veces, los padres blancos han querido hacer pasar
por poesía en un intento de camuflar el desesperado deseo de imaginar sin llegar a discernir.
Para las mujeres, la poesía no es un lujo. Es una necesidad vital. [p. 4]

Narrar a voz: trajetórias da voz-experiência em busca de uma voz própria - Renata Gelamo
tese de doutorado - orientação Luiza Helena Christov - IA - Unesp - 2018

Pesquisar a experiência traz consigo deslocamentos na maneira de investigar e um outro posicionamento


subjetivo diante dela. A heterogeneidade da experiência e da subjetividade, muitas vezes ignorada pelas
pesquisas com tendências mais positivistas, estão aqui num lugar da legitimidade.
É uma pesquisa que possibilita um saber capaz de iluminar o próprio fazer e nos colocar diante de
surpresas, que nos faz voltar a pensar e descobrir novos sentidos, novas possibilidades e novos caminhos. É
um saber que nasce da própria experiência de investigar. [p.7]

A voz-experiência seria uma voz que escuta, pode ser escutada e pode narrar a própria história, por isso é
uma voz em relação com o outro; é uma voz que habita o próprio corpo e que se expõe; que cuida de si,
presta atenção, se percebe. Por esse caminho da voz-experiência podemos chegar à voz própria: uma voz
que pode enunciar a si próprio, inventar a si próprio, num espaço que é público. [p.15]

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