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Sotaques, Dicções e Pronúncias

a f(n)orma de falar de uma língua

A princípio o fato de se tratar do português-brasileiro, por si só, já atrai a


idéia de uma língua com vários sotaques, não apenas o do Brasil, como
também o de Portugal, Moçambique, Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau,
Timor Leste e São Tomé e Príncipe. Em seguida e especificamente a
questão de uma normatização de um português-brasileiro que represente a
dicção – no sentido de pronúncia – dessa língua, e dessa normatização estar
relacionada à arte do canto.

Existe um documento, redigido por Mário de Andrade e publicado em 1938,


“NORMAS para a boa pronuncia da lingua nacional no canto erudito”, que
encerra em si toda uma questão política, de unificação nacional e da
ideologia da Era Vargas, além de sua função técnica e musical. A revisão de
tal documento, e mais do que isso, a elaboração de um novo manual, traz à
tona outra questão, a relação entre a fala e o canto, os diversos sotaques de
um país, e como a canção produzida nas diferentes regiões registra e traduz
esses sotaques. Traz também uma imagem de como escutamos, ou
desejamos escutar a nossa língua hoje.

A relação da normatização da pronúncia com o canto erudito me parece


bastante específica, não apenas no que diz respeito ao entendimento da
língua, como também no que tange as necessidades técnicas dos cantores.
A pronúncia italiana, com suas vogais abertas, sem nasalizações, com o “r”
rolado na frente em qualquer situação, não necessariamente atende a
sonoridade da língua. Apesar de determinados fonemas mudarem a posição
do som na ressonância

É possível afirmar que existe uma “Norma Média” da pronúncia do


português-brasileiro? Em que medida essa “média” pode levar em conta
regionalismos e exceções, sem que a ela se atribuam conotações
ideológicas e/ou políticas? E mais, sendo ainda música, acrescentar a
possibilidade da audição como recurso além da escrita fonética e de
exemplos escritos. Afinal trata-se dos sotaques de uma língua viva, e de
uma arte registrada e veiculada através das mídias de seu tempo, não
apenas via escrita. E em se tratando de arte, porque não atribuir
conotações poéticas?

Escuto agora Ella Fitzgerald cantando “A Felicidade”, de Tom e Vinícius. Em


português-americano. Prevalesce a dicção da cantora sobre o texto da
canção, o que muda a compreensão que temos da mesma. A mesma
“Felicidade” que cantada por João Gilberto nos leva ao Rio de Janeiro no
início da década de 60, aqui nos remete aos clubes de jazz. Não se trata
mais do texto de Vinícius, mas de outra gramática musical que se apropria
de uma obra e a recria a partir de sua própria “norma”.

Ao mesmo tempo, ouço Maria João cantar “Flor”, com sotaque de


pernambucana, ou ainda, na Dicção do Lenine. Aqui, a cantora mergulha no
universo da Dicção de um cancionista específico, não apenas seu sotaque
na fala, como também nas intervenções vocais e nos scats. Ultrapassa o
português-brasileiro e encontra as exceções na dicção de uma voz
exclusiva.

Esperanza Spalding interpretando “Ponta de Areia”, com uma introdução


vocal que remete ao arranjo do conjunto “Boca Livre”, mas que logo após a
primeira estrofe já explode num arranjo com gramática jazzística,
rearmonizações, imrpovisações.

A canção popular brasileira é mundialmente reconhecida, e amplamente


recriada por intérpretes de diversos países. As vozes sempre se sobrepõem,
criando novos sentidos e novas sensações para os que se propõem a
escutá-las. A idéia de que a música possui uma elasticidade de conteúdos,
uma possibilidade poética de se transformar, aumenta a gama de escolhas
possíveis para uma interpretação.

É possível pensar a existência das “normas” de pronúncia de uma língua


como uma espécie de material de apoio que possa atender às necessidades
de uma escolha artística, de uma poética. É também possível pensar a
existência de normas dentro da linguagem, gramáticas musicais específicas,
para além da voz, mas nas quais as vozes estão inseridas ou relacionadas. E
como essas vozes são ouvidas e traduzidas, ou até, traduzem o que
escutam.

Playlist relacionada ao texto:

http://www.youtube.com/view_play_list?p=2E63E66F154DBFA4

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