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antes de entrar no contexto​, há sempre uma regra inquebrável quando se trata de corpo, que é: “respeite

seu corpo, não faça nada que vá te machucar ou ultrapassar seu limite”. isso é bastante relativo, para cada
pessoa há um lugar que é mais desafiador e difícil de lidar, lugares que nos expõem… reconhecer esse lugar
é parte do aprendizado desenvolver a auto-observação de um lugar de acolhimento de si, e de
auto-generosidade.

então, vamos...

mais um mergulho sobre corpo, o corpo que canta, que vocifera, que vocaliza. esse corpo é de mulher, de
homem? é um corpo trans? que cor tem esse corpo? é possível pensar em corpo descolado da pessoa que
nele habita, ou da alma? disse que estou reescrevendo sobre corpo em meu trabalho, e esse texto é uma
abertura, uma introdução a isso. venho movida pelo desejo de falar um pouco sobre fisiologia da voz e em
como pode estar relacionada a pedagogias da voz, e por isso me interessa saber quem somos - quem
somos as pessoas que buscam por essas informações.

um primeiro entendimento que compartilho é o de que não existe uma verdade única sobre voz; ainda que
a ciência da voz avance em suas pesquisas e seja capaz de dissecar corpos em diferentes fazeres
sonoros-vocais, essa mesma ciência não está descolada das pessoas. esse lugar de neutralidade
seguramente não existe. recuperando o tema da unicidade e do direito à própria voz, a pergunta que me
faço é: como essa ciência pode ser apropriada por nós pessoas para gerar autonomia, para que tenhamos
liberdade de escolha sobre o que e como fazer com nossa voz-corpo?

um trabalho que tem me inspirado muito nesse caminho é o doutorado da Joana Mariz. nesse trabalho, a
pesquisadora traça uma correlação entre os aportes da ciência da voz e o vocabulário dos professores de
canto de diferentes escolas e estilos. um destaque é a forma como Joana trata dos aspectos fisiológicos da
produção vocal, trazendo uma leitura bastante acessível desse assunto.

apoiada nas pesquisas de


Johan Sundberg, trata o
mecanismo de produção da
voz através do modelo
fonte-filtro. nesse modelo,
a respiração é a fonte de
energia que põe em
movimento a fonte sonora,
aqui a glote (pregas
vocais), e o filtro é o trato
vocal (língua, mandíbula,
lábios), responsável pela
articulação desse som.
reproduzo aqui o quadro
esquemático que resume
essa relação. (​retirado do
doutorado de Joana Mariz - ver referência completa ao final desse texto)

numa rápida leitura, energia, fonte e filtro têm funcionamentos independentes. diz a Joana:
Embora os fenômenos ocorridos em um desses dois níveis possam promover influências
no comportamento do outro, a ideia de que fonação/fonte e articulação/filtro
contribuem para a produção vocal com certo nível de independência é um ponto de
partida fundamental, por estabelecer funções bem definidas e características próprias
para cada um destes segmentos. (p.43)

em meu corpo tendo a sentir e perceber tudo junto e interligado, e algumas vezes parece ser impossível
separar uma coisa da outra - mas o olhar pedagógico que isola cada uma dessas etapas é bastante
interessante e tem me ajudado no sentido de aprofundar a auto-pesquisa sobre a minha voz.

recomendo fortemente a leitura do capítulo 3 dessa tese, para um aprofundamento nos processos
fisiológicos relativos à produção vocal. aqui, rapidamente vou me ater a alguns pontos que estarão
diretamente relacionados aos exercícios que realizaremos, numa exploração das possibilidades sonoras das
vozes. somo ao doutorado da Joana meus anos de estudo de canto com a cantora e fonoaudióloga Beth
Amin (a queridíssima Betinha) e com Thomas Adam (da Escola do Desvendar da Voz), conectando exercícios
que fazem sentido nesse contexto.

sobre a respiração, eu pessoalmente compartilho de um pensamento de que não há uma verdade que seja
universal. o que considero importante é o contato com a respiração, a consciência de que ela tem um ritmo
próprio, pessoal e que se modula conforme nossas emoções, vivências e atividades que realizamos. a
respiração nos mantém vivas, nos conecta, através do ar, o mundo de dentro com o de fora. sua vitalidade
talvez seja o mais essencial para mim. quando penso em respiração, pessoalmente penso em ritmo
(desvendar), movimento, flexibilidade, vitalidade, autoconhecimento e conexão.

- como eu me conecto com minha respiração? como a percebo em meu canto, em minha fala? como
movimentos de meu corpo podem me ajudar a me conectar com/ interferir na/ responder ao
estímulo da respiração? realizar movimentos é confortável para mim?

para a voz, o ar é a energia e o meio - a energia do ar expirado é que faz vibrar as pregas vocais. também é
o ar que leva as ondas sonoras através do corpo, dos corpos, do espaço. respirar é entrar em contato com
essa energia, e também senti-la de diversas maneiras, pelo som produzido, pelo som escutado. gosto de
pensar a respiração em relação à pele (desvendar), ao tato, à percepção do ar que me rodeia. utilizar os
braços como órgãos da respiração, que ao se movimentarem abrem espaços, desenham formas,
movimentam o ar.

sobre a fonação - trabalho com os registros da voz. os registros estão ligados aos mecanismos de
fechamento da glote, associados principalmente à ação de 2 grupos musculares - TA ou vocalis, a parte
muscular da glote, e CT, um grupo muscular que conecta as cartilagens cricóide e tireóide, onde a glote está
inserida. [ver Joana Mariz, cap. 3 p. 50 em diante e apêndice 1, p. 182]

na relação músculo/ mecanismo de ativação e registros da voz, existe toda uma discussão terminológica, de
aproximação da ciência da voz com a linguagem usada nos lugares da voz cantada, aprofundada no
trabalho da Joana. aqui, vou me ater à ação dos músculos TA e CT e suas relações com exercícios coletados,
provocações sonoras e jogos vocais que possam estimular a pesquisa sonora conectada à percepção do
funcionamento do próprio corpo.
é muito importante destacar o papel da subjetividade, cada pessoa percebe de uma maneira, sendo a
escuta aberta fundamental no processo.

o par de músculos TA são a parte filamentosa da prega vocal - agem principalmente na produção de sons
graves, frys e o que chamamos de voz de peito. alguns exercícios de estimulação de TA:
- fry
- sons com vogais abertas como É e A, na região grave e média
- sons com expressões de “desafeto” e “antipatia”
- sons com o trato vocal horizontalizado

já o CT é um grupo muscular que age aproximando a cartilagem cricóide da tiróide, fazendo as pregas
ficarem mais alongadas. essa ação faz com que TA relaxe (são antagonistas) e aproxima ainda mais as
pregas, que acabam vibrando na parte do tecido mole (mucosa). da ação do CT temos o que chamamos de
voz de cabeça e os falsetes. para estimular a ação desses músculos:
- cantar vogais fechadas com o lábio protruído U, O
- sons de VVVVV bem agudos
- sons com pouco volume
- sons com o fonema ning, e o fonema ng

exercícios com saltos para estimular a mudança rápida de uma ação muscular para outra;
exercícios em grau conjunto ou glissandos para trabalhar a resistência e elasticidade dos grupos
musculares;
exercícios de glissandos com curta extensão para jogar uma lupa nos regiões onde ocorrem as mudanças de
padrão muscular;

sempre que trabalho essa escuta de registros da voz, gosto de explorar ambientes pouco ou nada tonais.
pensando nesse caminho de isolar parâmetros, tenho observado que deixar a voz movendo-se por seus
registros sem a tonalidade pode ser uma abertura de caminhos para a descoberta de uma flexibilidade, que
por vezes o ambiente tonal não proporciona. também é uma oportunidade para a pessoa buscar seu som a
partir do que seu corpo se propõe a fazer. nesse sentido, algumas perguntas me interessam:

- como escuto o som que produzo? o que sinto quando eu escuto?


- com que som me identifico? qual som eu não gosto?
- que voz eu entendo/ escuto/ acolho como minha?
- como posso me apropriar de sons inéditos da minha voz, ou de sons que não reconhecia como
meus?
- é possível brincar com meus sons?
- que sentimentos surgem?
- para onde quero ir com minha voz? qual é a minha escolha?

mais uma vez, aqui, braços e movimentos do corpo auxiliam na pesquisa dessa vocalidade. bem como
acessar as vogais e os fonemas em geral de forma lúdica, ou se conectando com imagens arquetípicas,
personagens, línguas inventadas, e outras formas de exploração expressiva que possa envolver o corpo, a
emoção e o processo de descoberta, antes da fala, antes da linguagem.

a ideia de jogo, do lúdico, acredito que é um caminho interessante e possível, no que diz respeito a acessar
lugares de medo, vergonha, auto-julgamento severo, etc, dentro de um ambiente acolhedor. é um caminho
de despertar da criança interior, ou da capacidade de investigar e de se intrigar com o desconhecido. no
caminho da descoberta dos sons possíveis, gosto de trabalhar com contágios de imitações.

seguem algumas pistas com ideias para jogos e dinâmicas:

PASSAR O SOM:
- uma pessoa começa realizando um som, e esse mesmo som deve passar por toda a roda, sem ser
deformado
- uma pessoa começa realizando um som, e passa para outra que o imita e posteriormente o transforma,
passando para uma terceira pessoa e assim por diante
- uma pessoa realiza um som com um movimento, e passa para outra pessoa, que deve realizar outro som
com outro movimento

CONTÁGIOS:
- cada pessoa começa a realizar sons intercalados com os silêncios da sua inspiração - sempre buscar algum
som do grupo para imitar
- cardume - todo o grupo age como um cardume - inicia com um som longo e conforme alguma pessoa
propõe uma alteração na sonoridade, todo o grupo deve mover-se junto

PERGUNTA E RESPOSTA
- jogo de imitação, pode ser estrita, pode ser com variações

JOGOS COM PARÂMETROS:


- uma pessoa realiza um som, a pessoa seguinte deve alterar apenas a altura (ou a duração ou o timbre…)

e mais perguntas:
- como essas dinâmicas podem ser adaptadas ou realizadas dentro de um ambiente de pesquisa da
voz em seu nível físico/fisiológico?
- que outras dinâmicas podem ser propostas nesse sentido?

bibliografia:
Joana Mariz - Entre a expressão e a técnica: a terminologia do professor de canto - um estudo de caso em
pedagogia vocal de canto erudito e popular no eixo Rio-São Paulo - tese de doutorado - orientadora: Dra.
Martha Herr - IA UNESP - SP - 2013

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