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ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO

O movimento internacional de ouvidores de vozes: as origens de


uma tenaz prática de resistência
The international movement of voice hearing: the origins of a tenacious practice of
resistance

El movimiento internacional de oyentes de voces: los orígenes de una tenaz práctica


de resistencia

Mario Cardano1

Como citar este artigo: Cardano M. O movimento internacional de ouvidores de vozes: as origens de
uma tenaz prática de resistência. J. nurs. health. 2018;8(n.esp.):e188405.

RESUMO

Objetivo: apresentar um resgate histórico e teórico do Movimento Internacional de Ouvidores de


Vozes no contexto mundial. Métodos: foi realizada uma discussão teórica acerca do Movimento
Internacional de Ouvidores de Vozes, buscando apresentar os marcos teóricos do movimento, assim
como os principais autores que discutem sobre a temática. E ainda, refletir sobre a experiência de
ouvir vozes. Resultados: o movimento nasce na Holanda, na segunda metade dos anos oitenta, para
depois difundir-se, primeiramente na Europa e depois em todo o mundo, para chegar ao Brasil no ano
passado, com o Congresso Nacional Ouvidores de Vozes em Saúde Mental, em 2017. Considerações
finais: o movimento trata-se de um retorno que marca de forma evidente a transição do papel de
paciente, com toda a carga de estigma associada a essa condição, ao de ouvidor que mostra saber
transformar a própria experiência “insensata” em um saber capaz de curar: uma espécie de Nêmesis.
Descritores: Saúde mental; Terapêutica; Sistemas de apoio psicossocial.

ABSTRACT

Objective: to present a historical and theoretical rescue of the International Movement of Voice
Hearing in the world context. Methods: a theoretical discussion about the International Movement
of Voice Hearing was held, as well as the main authors who discuss the theme. Also, reflect on the
experience of hearing voices. Results: the movement was born in the Netherlands in the second half
of the 1980s and then spread to Europe, and later around the world, to arrive in Brazil last year,
with the National Congress of Voice Hearing in Mental Health, in 2017. Final considerations: the
movement is a return that clearly marks the transition from the role of the patient, with all the
stigma associated with this condition, to the voice hearer who shows how to transform his own
"insensate" experience into a knowledge capable of healing: a kind of Nemesis.
Descriptors: Mental Health; Therapeutics; Psychosocial support systems.

1Professor Ordinario Dipartimento di Culture, Politica e Società- Università degli Studi di Torino. E-mail:
mario.cardano@unito.it https://orcid.org/0000-0003-0268-3020
RESUMEN

Objetivo: presentar un rescate histórico y teórico del Movimiento Internacional de Oyentes de Voces
en el contexto mundial. Métodos: se realizó una discusión teórica acerca del Movimiento
Internacional de Oyentes de Voces, buscando presentar los marcos teóricos del movimiento, así como
los principales autores que discuten sobre la temática. Y reflexionar sobre la experiencia de escuchar
voces. Resultados: el movimiento nace en Holanda, en la segunda mitad de 1980, difundiéndose en
Europa y después en todo el mundo, para llegar a Brasil el año pasado, con el Congreso Nacional
Oidor de Voces en Salud Mental, en 2017. Consideraciones finales: el movimiento se trata de un
retorno que marca de forma evidente la transición del papel de paciente, con toda la carga de
estigma asociada a esa condición, al de oidor que muestra saber transformar la propia experiencia
"insensata" en un saber capaz de curar: una especie de Némesis.
Descriptores: Salud mental; Terapéutica; Sistemas de apoyo psicosocial.

O movimento internacional dos apenas pelo ouvidor, que


Ouvidores de Vozes nasce na Holanda, frequentemente não é nem capaz de
na segunda metade dos anos oitenta, identificar de forma clara a sua
para depois difundir-se, proveniência. Sob esse aspecto a
primeiramente na Europa e depois em experiência das vozes se assemelha à
todo o mundo, para chegar ao Brasil no da dor física. A nossa dor é somente
ano passado, com o Congresso Nacional nossa, não podemos mostrá-la a
Ouvidores de Vozes em Saúde Mental, outros, podemos – isso sim – falar dela,
em setembro de 2017. descrevê-la, mas ninguém nunca
poderá senti-la como nós a sentimos.1
Antes de continuar com a
reconstrução da história deste que – As vozes, além disso, são
justamente – pode ser considerado normalmente distinguidas, pelo
como uma das mais tenazes práticas de ouvidor, das outras vozes e das mais
resistência ao processo de comuns experiências de comunicação
medicalização das diversas formas de entre os homens. Maurice Merleau-
alteridade, uma concisa definição da Ponty descreve esse traço com uma
experiência das vozes parece imagem de particular eficácia. As
oportuna. alucinações, diz Merleau-Ponty,
«desenvolvem-se sobre uma cena
A experiência das vozes é, antes
diferente do mundo percebido, estão
de tudo, uma experiência privada: faz
como em sobreposição». Pouco mais
parte do mundo próprio do ouvidor e
adiante, o filósofo francês acrescenta:
não do mundo compartilhado pela mais
«A alucinação não é no mundo, mas
vasta espécie humana. Enquanto que
“diante” dele» (ibidem).2 Tudo isso é
para as vozes comuns, com as quais é
confirmado na constatação –
tecida a comunicação na vida
documentada pela maior parte dos
cotidiana, é possível imaginar que um
estudos dedicados ao tema das vozes –
outro, no nosso lugar, possa ouvi-las e
de que os ouvidores, talvez não
que, às vezes, ele possa reconhecer a
imediatamente, mas em um breve
pessoa da qual a voz provém; no caso
tempo aprendem a distinguir as vozes
das vozes de que nos ocupamos aqui,
dos discursos proferidos por um falante
isso não acontece. A voz é ouvida

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em carne e osso. É, portanto, tempo transcorrido com elas e do
impróprio pensar nas vozes como a sentido colocado nessa experiência
uma percepção em todos os aspectos (ver mais adiante).
equiparável a todas as outras, exceto Definida – sumariamente – a
pelo fato de não se originarem a partir experiência das vozes, podemos voltar
de um “objeto” que também os outros à Holanda, onde tudo começa, na
não podem reconhecer como tal. O relação entre uma paciente que ouvia
conteúdo dessas vozes e o tom com o «umas vozes na sua cabeça», Pasty
qual se dirigem ao ouvidor é
Hage, e o seu psiquiatra, Marius
extremamente variável, mas, como Romme. Romme reconstrói essa
ensinam os ouvidores, profundamente passagem crucial da história no
ligados às histórias biográficas de quem movimento dos ouvidores de vozes no
ouve as vozes e ao contexto cultural volume Acpting voices, que escreveu
dentro do qual essa experiência toma com a esposa Sandra Escher.5 Romme
forma. conta como a própria paciente, a
Aprendemos que as vozes se senhora Hage, atravessou um período
sobrepõem ao mundo do ouvidor de particularmente crítico: assediada por
formas diversas: como uma espécie de vozes imperativas, que as doses
voz fora de campo que comenta – ora maciças de neurolépticos que tomava
bondosamente, ora não – os eventos; não conseguiam extirpar. Prostrada
como um interlocutor que envolve o pela ansiedade, a senhora Hage
ouvidor em uma conversação; como iniciou, cada vez mais, a expressar a
uma voz disciplinante, que dá ordens, vontade de tirar a sua vida, dirigindo-
que comanda em tom categórico. Essa se para um precipício que somente um
experiência “privada”, mas não por evento totalmente causal conseguiu
isso irreal, é vivida, ao menos uma vez contrastar. O evento em questão, um
na vida, por cerca de 10-15% da ponto de virada na «carreira moral» da
população ocidental.3 Entre todos senhora Hage, foi o encontro com o
esses, somente a metade requer a livro de um controverso psicólogo
ajuda de um serviço de saúde mental.4 americano, Julian Jaynes, L’origine
Se, então, dirigimos o olhar para além della coscienza e il crollo della mente
dos países industrializados, podemos bicamerale.6 A leitura dessa pesada
observar como a experiência das vozes monografia induziu a senhora Hage a
em muitas populações indígenas seja, olhar as vozes que a habitavam nela
não apenas difusa, mas também objeto como nunca tinha feito antes,
de um especial reconhecimento social. reconhecendo nessa sua diferença um
É o caso dos xamãs das tribos modo de ser no mundo próprio dos
siberianas ou dos índios americanos heróis da Grécia antiga, celebrados por
que, durante o luto pela morte de uma Homero, que tinham o privilégio de
pessoa querida, ouvem a voz dela. ouvir a voz dos deuses.
Nesse aspecto comum se insere um No livro que inspirou a senhora
conjunto diversificado de traços Hage a uma releitura da própria
responsáveis pela heterogeneidade da experiência, o autor, Julian Jaynes,
experiência vivida das vozes. Viver sustenta claramente como, antes do
com as vozes é diferente em razão do

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nascimento da psiquiatria, ouvir as vontade própria. Eles não têm
vozes era considerado um fenômeno momentos em que param para refletir
bastante comum e um fato bastante sobre o que fazer. São os deuses a
difundido: as antigas teocracias tomar o lugar da consciência: todas as
mesopotâmicas, egípcias e hebraicas suas ações não encontram o seu início
se baseavam na autoridade da voz em planos, razões e motivos
divina revelada e mediada pelos conscientes, mas nas ações e nos
sacerdotes e pelos profetas; na Grécia discursos dos deuses. A mente dos
antiga, o transe oracular era uma heróis da Ilíada era – em extrema
instituição difundida e objeto de síntese – uma «mente bicameral», na
veneração. Em época medieval, as qual um hemisfério cerebral hospedava
vozes podiam ser atribuídas aos santos as vozes dos deuses, que guiava as
ou, em alguns casos, ao demônio, mas ações heroicas, ora de Aquiles, ora de
certamente não à loucura. A religião Agamenon, ora de Menelau e de todos
ocidental, católica em particular – os heróis cantados por Homero. Em
prossegue Jaynes – é permeada de conclusão – escreve Jaynes – «o texto
vozes e deve a uma Voz, a de Deus, a mais antigo da humanidade (…), se
revelação do código universal dos considerado de forma objetiva, revela-
comportamentos humanos. O estudo nos uma forma mental muito diferente
de Julian Jaynes desenvolve a tese da nossa». Sobre a solidez filológica da
segundo a qual a experiência de ouvir interpretação de Jaynes do poema
vozes possa, de alguma forma, homérico, assim como sobre a
considerar-se vestígio de uma época consistência do modelo de mente
em que a consciência humana, assim proposto em Il crollo dellamente
como hoje a conhecemos, não tinha bicamerale, foram apresentadas
ainda surgido. Ele afirma numerosas e fundadas críticas.7 Isso,
substancialmente que a consciência, todavia, não tem importância aqui. O
que acreditamos conatural aos seres livro de Jaynes permanece relevante
humanos, seja um produto bastante pela sua capacidade de inspirar um
recente: «houve um tempo em que a específico “contradiscurso”8 sobre a
natureza humana era dividida em duas experiência das vozes, um discurso
partes: uma parte que dirige, chamada capaz de desencadear o processo de
deus, e uma parte que se submete, desmedicalização9 de uma forma de
chamada homem»6, houve um tempo alteridade profundamente
em que ouvir as vozes era a norma. «perturbante» como é a experiência
Jaynes indica em um texto da das vozes.
classicidade grega, a Ilíada (um poema Voltando à história de Pasty
épico, atribuído a Homero), a Hage, Romme recorda como, para a
representação plástica do própria paciente, o fato de atribuir às
funcionamento da mente bicameral. próprias vozes uma origem, ao mesmo
Na Ilíada – observa Jaynes – não está tempo remota e nobre, foi de grande
presente nem uma palavra que conforto para ela. Partindo dessa
exprima o conceito de vontade. Os constatação, Romme começou a se
homens na Ilíada, portanto, não têm perguntar se esta sua paciente era
uma consciência, não tem uma capaz de comunicar a outros ouvidores

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de vozes o próprio convencimento, e se pediu para contar a própria
estes últimos poderiam tirar proveito a experiência em uma conferência,
partir da adesão a essa crença singular. organizada em 31 de outubro de 1987,
Romme observa o seguinte: à qual participaram 360 ouvidores de
vozes. Foi essa a primeira ocasião na
Quando me encontrei sentado ali, qual a experiência das vozes foi
escutando as suas conversas, contada e discutida em público em um
fiquei impressionado com a contexto não medicalizante. Em
vivacidade que aquelas pessoas seguida Romme e Escher participaram
demostravam ao reconhecer as de uma conferência em Trieste (Itália),
suas experiências recíprocas. No na qual encontraram Paul Baker, já
início me pareceu difícil seguir ativo na defesa dos direitos dos
essas conversas; aos meus chamados «sobreviventes da
ouvidos, os conteúdos eram psiquiatria». Baker ficou
estranhos e fora do comum e, impressionado com os resultados das
além disso, tudo era discutido pesquisas realizadas pelos estudiosos
livremente, como se constituísse holandeses, e da sua interpretação da
um mundo real à parte.5 experiência das vozes. Em novembro
Sucederam-se diversos colóquios do mesmo ano Baker foi convidado
e a participação a um popular para a conferência de Mastricht
programa de televisão holandês, (Holanda) intitulada “Pessoas que
apresentados como o único caminho ouvem vozes”, organizada pela
para falar com clareza dessa Resonance Foundation (uma
experiência, para alcançar um número organização de autoajuda de ouvidores
suficientemente amplo de pessoas e de vozes) e pelo Departamento de
para ter a possibilidade de colher Psiquiatria Social da Universidade de
testemunhos de não internados e de Limburg. Baker ficou impressionado
quem tivesse desenvolvido uma boa com a abordagem adotada e em
estratégia para enfrentar as próprias particular com a ênfase colocada na
vozes. Tanto Romme quanto Hage aliança entre os Ouvidores de vozes e
participaram da transmissão televisiva profissionais. O convite de Romme para
e convidaram os espectadores que essa conferência foi explícito: convido
viviam ou tinham vivido essa vocês para experimentar fazer a
experiência, a contatá-los. mesma coisa na Inglaterra. Em cada
Responderam ao chamado 700 pessoas. país devem ser constituídos grupos nos
Romme decidiu então enviar um quais as pessoas possam falar
questionário às pessoas que tinham conjuntamente sobre ouvir vozes,
respondido ao chamado televisivo, de grupos de pessoas com a mesma
forma a reunir mais informações sobre experiência acabam por mudar
a experiência das vozes. A alguns dos comportamentos, na América e na
ouvidores que devolveram o Inglaterra, no momento, os psiquiatras
questionário foi pedido para se comportam como pais. O meu
participarem de uma entrevista objetivo não é mudar a psiquiatria ou
discursiva e entre estes últimos, foram mudar os pais, mas oferecer aos
escolhidos vinte, aos quais Romme

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ouvidores de vozes uma organização práticas de auto e mútua ajuda e os
por meio da qual emancipar-se.5 conteúdos do «contradiscurso» que as
dão forma.
Sucessivamente a esse encontro,
Baker iniciará suas atividades na É possível reconhecer as raízes da
Inglaterra para difundir os estudos de prática de auto e mútua ajuda que
Romme e Escher e para promover a caracteriza os grupos de Ouvidores
rede dos ouvidores. Sucederam-se presentes em todo o mundo na
assim uma série de iniciativas públicas exortação de Marius Romme à própria
e foram iniciados os primeiros grupos paciente, Pasty Hage, para
de auto e mútua ajuda primeiramente compartilhar com outros ouvidores a
na Holanda e na Inglaterra, mas com o própria interpretação das vozes. Nos
passar do tempo também em outros grupos dos ouvidores podemos
países. Em novembro de 1990, ocorre compreender, expressos de forma
em Manchester a primeira conferência particularmente nítida, os traços
do movimento, à qual se seguiram distintivos da auto e mútua ajuda.
outras duas: em Londres, em março de Antes de tudo, o compartilhamento da
1991, novamente em Manchester, em própria experiência – das vozes – entre
setembro de 1991. Por último, em 1993 pares, permite a cada um dos
é oficialmente constituída a Rede participantes amadurecer a convicção
Britânica dos Ouvidores de Vozes. – tudo menos que óbvia – de não ser o
único a viver uma experiência no
Foi fundado o The International
mínimo singular. O confronto entre as
Network for Training, Education and
diversas interpretações das vozes,
Research into Hearing voices
qualquer que seja a sua plausibilidade,
(Intervoice), um network internacional
deixa amadurecer a convicção de que
para ouvidores de vozes que se propõe
a explicação estigmatizante da
a conectar todas as iniciativas a favor
psiquiatria de base biológica, que
dos ouvidores difundidas pelo mundo.
alude a alguma coisa que não funciona
Até o momento fazem parte da rede
do cérebro do ouvidor, não seja a única
dos Ouvidores de Vozes, 21 países
possível. Além disso, a valorização de
europeus, a Austrália, a Nova Zelândia,
um saber experiente que não nasce da
a Palestina, o Japão, o Canadá, os
ciência, mas da experiência, torna
Estados Unidos, a Uganda e, desde
possível apreender dos pares
2017, também o Brasil. Na Europa
específicas estratégias de
estão ativos grupos de ouvidores de
enfrentamento, antes, e aceitação,
vozes na Áustria, Bélgica, Bósnia
depois, das vozes. Por último, mas não
Herzegovina, Croácia, Dinamarca,
menos importante, a experiência de
Finlândia, França, Alemanha, Grécia,
poder ser útil a outros, com o
Irlanda, Itália, Malta, Noruega,
compartilhamento do próprio saber e
Holanda, Portugal, Reino Unido,
com a simples presença no grupo,
Sérvia, Eslovênia, Espanha, Suécia e
permite o restabelecimento da
Suíça. Concluo com algumas
autoestima. Cada um aprende que
observações sobre os dois traços
distintivos mais importantes do pode apoiar os próprios pares, que a
própria experiência – frequentemente
movimento dos ouvidores de vozes, as
pontuada por sofrimentos profundos –

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pode ajudar o outro a conviver com a Escolhe-se, em uma frase, concentrar
própria diferença. Os grupos de a atenção sobre um conjunto
Ouvidores se encontram com homogêneo de experiências, o das
regularidade, normalmente em vozes, em vez de sobre um conjunto
contextos informais, longe dos serviços heterogêneo de sintomas, os atribuídos
psiquiátricos, e da sua condução (ou à esquizofrenia.
facilitação). Ocupam-se O segundo movimento dialético,
principalmente de ouvidores que implícito nas produções discursivas do
empregam o seu «saber por
Movimento dos Ouvidores de Vozes,
experiência» para promover a conduz à restituição das vozes aos
reconquista do controle sobre a vida de territórios da normalidade. Essa
quem decide unir-se a eles. estratégia discursiva é reconhecível na
O contradiscurso que quase totalidade dos discursos, por
contradistingue o perfil cultural do assim dizer, oficiais do Movimento dos
movimento dos Ouvidores de Vozes Ouvidores, mas aparece também nas
compõe-se, essencialmente, de quatro conversações comuns. Recordo que a
movimentos dialéticos, os quais primeira vez que encontrei Jacqui
explico a seguir: i) a focalização; ii) a Dillon em Londres, ao apresentar-me
restituição das vozes à normalidade; as iniciativas da Rede que coordena,
iii) a atribuição de sentido; iv) a sua Jacqui definiu os ouvidores de vozes de
valorização.10 O movimento dialético forma simples e compacta: “different-
da focalização consiste na separação minded people”, uma expressão que,
da experiência das vozes do mais vasto no contexto do nosso discurso, estava
e heterogêneo conjunto de sintomas para “pessoas normais, mas com uma
comumente atribuídos à patologia da mente diversa”. A mesma tese foi
qual as alucinações verbais constituem rebatida com uma singular eficácia
o traço distintivo, a esquizofrenia. Nos comunicativa por Ron Coleman, na
discursos dos ouvidores que tive primeira Coordenação Nacional do
oportunidade de analisar, assim como Movimento dos Ouvidores de Vozes,
nestes – profissionais e acadêmicos – ocorrido na cidade de Reggio Emilia
que apoiam as razões deste (Itália), em 2008: «Ouvir vozes é uma
movimento, a atenção recai quase experiência normal. É uma resposta
exclusivamente sobre a experiência normal a eventos anormais que podem
das vozes, examinadas ora nos seus acontecer na vida». Na mesma direção
conteúdos, ora na sua gênese, ora no vão as conclusões de Lisa Blackman em
seu impacto na vida cotidiana do um estudo sobre a rede britânica dos
ouvidor. Por outro lado, muito pouca Ouvidores de Vozes, realizado nos anos
atenção é dada à relação que as vozes noventa.
mantêm com os outros distúrbios que, A Rede dos Ouvidores de Vozes
com as alucinações verbais, concorrem move-se a partir da premissa pela qual
à composição do quadro ouvir as vozes é uma normal variante
sintomatológico da esquizofrenia, do comportamento, muito semelhante
como as alterações do pensamento, da a ser canhoto e não o mero sinal de
linguagem, do comportamento, da
vontade, da atenção e da emotividade.

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uma doença radicada em uma reação falam) da sua vida, do seu modo de ser-
bioquímica do cérebro.11 no-mundo, das experiências que viveu.
Esse significado, todavia, não se
A normalidade da experiência das
mostra de forma imediata, evidente.
vozes também é reivindicada
Parece, ao contrário, que as vozes se
remetendo-se à literatura etnológica12
expressam de forma oblíqua, que
que documenta como, em algumas
revelam o seu significado recorrendo a
culturas, a experiência de ouvir vozes
uma linguagem metafórica12, que
seja, ao mesmo tempo, difusa e
requer um árduo – e frequentemente
subsumida ao estigma. Da restituição
doloroso – trabalho interpretativo para
das vozes à normalidade decorre – e
mostrar-se. O movimento dos
não se trata de uma coisa qualquer – a
Ouvidores sustenta fortemente a
autorização à sua escuta, a
necessidade desse exercício
possibilidade de uma integração
interpretativo, em aberta oposição
dentro da vida, da biografia do
com a psiquiatria de base biológica,
ouvidor. Tudo isso em aberta oposição
que exorta o paciente e as pessoas que
com o discurso hegemônico dentro da
tomam conta dele a ignorar as vozes.11
psiquiatria, que se propõe a
O saber empregado para dar forma a
descontruir as vozes no plano
uma outra leitura das vozes é
ontológico e dissolver, com os
normalmente um saber ao qual a
medicamentos, aquele resíduo de
psiquiatria convencional reconhece
“rumor” que permanece. Em uma
pouca ou nenhuma legitimidade. É sem
frase, se a psiquiatria convencional se
dúvida o caso da chave interpretativa
coloca contra as vozes, os Ouvidores de
das vozes que desencadeou o
Vozes se propõem a viver com as
movimento dos Ouvidores, a extraída
vozes.11
do livro de Julian Jaynes, Il crollo della
Com o terceiro movimento mente bicamerale. Ainda mais distante
dialético, a atribuição de sentido, as do modelo da psiquiatria científica é o
posições dos Ouvidores de Vozes saber que inspirou de forma
assumem de modo mais completo a consistente as interpretações das
forma de “contradiscursos”.8 Em vozes na primeira temporada do
relação a isso é oportuno evidenciar o movimento dos Ouvidores, o que
caráter plural dessas produções recorre ao mundo do paranormal e da
discursivas, e a sua pacífica espiritualidade em sentido amplo.
convivência dentro do variegado Entram aqui as interpretações das
universo cultural dos Ouvidores. Além vozes como expressão, ora de uma
da variabilidade que os capacidade telepática, ora de uma
contradistingue, estes contradiscursos sensibilidade mediúnica que se
se movem a partir de uma premissa estende além dos limites da vida,
comum: as vozes têm sentido, são mostrando-se como capacidade de
muito mais do que um incômodo rumor escuta das vozes dos defuntos.11 Com o
de fundo, de uma casual composição desenvolvimento e a difusão do
de palavras. As vozes trazem um movimento dos Ouvidores de vozes, as
significado profundo, radicado na referências ao mundo do paranormal e
biografia do ouvidor; falam (e lhe da espiritualidade diminuíram,

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enquanto emergem novas molduras desde a mais tenra idade, iniciaram a
interpretativas construídas também na habitá-la, para chegar a uma
esteira da mais estreita colaboração concepção não unitária de si, mas de
entre a rede dos ouvidores e um todo ausente de toda conotação
conjunto heterogêneo de acadêmicos e patológica. A esse respeito, Jacqui
profissionais críticos. A partir do novo Dillon se exprime assim:
século, como bem documenta o último
texto da trilogia de Marius Romme e Comecei a me dar conta que era
Sandra Escher (escrito desta vez com habitada por diversas pessoas.
um aporte decisivo de uma ouvidora, Essas “vozes” tinham diferentes
Jacqui Dillon), afirma-se uma nova nomes e identidade, diferentes e
chave interpretativa, que atribui a distintas personalidades. Essa
responsabilidade da irrupção das vozes consciência gerou em mim um
à experiência do trauma, tese que – por surpreendente conforto. A
outro lado – goza de um sólido suporte percepção da minha própria
empírico como documenta a revisão identidade mudou. Passei de ser
aos cuidados de John Read e colegas.13 “eu” a ser “nós”. (...) Iniciei a
Essa chave de leitura se mostra de compreender que as minhas vozes
forma particularmente evidente no eram “si” dissociados que se
testemunho de Jacqui Dillon, reunido constituíam como representações
no já citado volume Living with voices. internalizadas do mundo no qual
Jacqui Dillon conta que iniciou a ouvir tinha crescido. Esses vários “si”
vozes com a idade de três anos, como tinham sido criados a partir da
resultado de uma experiência brutal: minha experiência. (...)Fiquei
«a minha família estava envolvida com emocionada ao constatar o que a
um grupo organizado de pedófilos minha mente tinha conseguido
sádicos, que abusava de crianças e inventar. Às vezes sentia que
participava de práticas tinha criado uma obra de arte.12
12
sadomasoquistas extremas». Jacqui O último movimento dialético na
conta que esses abusos prosseguiram base do contradiscurso dos Ouvidores
até os seus quinze anos, deixando leva a uma explícita valorização da
marcas que se imprimiram nela por experiência das vozes. Os primeiros
muitos anos ainda. O ponto de virada germes do processo de valorização das
decisivo no processo de recovery é vozes mostram-se na elaboração de
identificado no encontro – mais uma uma moldura interpretativa dessa
vez – com um livro, neste caso o de experiência alternativa em relação
Judith Lewins Herman, Trauma and àquela estigmatizante proposta pela
Recovery. Trauma and Recovery psiquiatria tradicional. Tudo isso
permitiu a Jacqui Dillon reconhecer, aparece de forma evidente nas origens
posteriormente, as estratégias de do movimento dos ouvidores, com
enfrentamento das quais se utilizou Pasty Hage que reivindica para si o
para se proteger das agressões que foi privilégio dos heróis da antiga Grécia,
obrigada a sofrer: a dissociação. Nos o de poder ouvir a voz dos deuses. As
processos de dissociação Jacqui Dillon vozes se configuram como um dom
individua a origem das vozes que, especial, como um carisma, em todas

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aquelas interpretações da sua gênese Foram anos mais tarde que decidi
que fazem referência ao mundo do trabalhar no campo da saúde
paranormal e, de forma geral, da mental como consultora e
mediunidade. É nessa chave que educadora. Aproximei-me de um
Cristina Contini leu as primeiras clínico que pretendia iniciar
expressões da própria diferença, como grupos terapêuticos para
a consequência de um «dom imenso» ouvidores de vozes [...].
que tornou mais aguda a sua Encontrei o meu nicho. Tive a
sensibilidade.14 oportunidade de transformar o
que era um evento catastrófico
Menos evidente, mas não por isso
em uma vocação que me permitiu
menos decisivo, é o processo de
aproveitar os aspectos positivos
valorização da experiência das vozes
da vida.12
que se move a partir da sua inscrição
no registro mais laico, por assim dizer, Debra Lamphsire utiliza com
da teoria do trauma. Do exame dos particular eficácia a imagem do nicho,
materiais que pude adquirir parece-me que alude à individuação de um
que posso reconhecer dois percursos contexto – de certo modo protegido –
paralelos. O primeiro percurso se dentro do qual transformar a própria
entrevê nas palavras de Jacqui Dillon diferença em uma atividade
referidas mais acima. Dillon, em um profissional, dentro da qual tirar
agudo exercício de reflexividade, olha proveito do seu “saber por
à própria vida e chega quase a experiência” para guiar em direção ao
regozijar-se com a capacidade que processo de recuperação outras
soube mostrar ao construir, em defesa pessoas que, como ela, ouvem vozes.
da própria integridade, uma Trata-se, também, de um contexto no
comunidade de “si”, um «nós», qual a sua nova identidade, a de
contraposto ao «eu». Um exercício, facilitadora dos grupos de ajuda
acrescenta Jacqui Dillon, que assume mútua, pode obter reconhecimento,
os traços de uma verdadeira e própria pode encontrar no grupo de pessoas
«obra de arte».12 com as quais coopera – ouvidores e
profissionais – legitimação. Esse
Essa confiança é reforçada no
peculiar processo, antes de tradução
segundo percurso que configura uma
do estigma em carisma, e depois de
forma particular de profissionalização
profissionalização do carisma é
da própria diferença, do carisma que a
reconhecível nas biografias dos mais
contradistingue. Esse percurso
conhecidos líderes do movimento dos
encontra uma eficaz ilustração nas
ouvidores, de Ron Coleman a Rufus
histórias de uma outra ouvidora, Debra
May, de Jacqui Dillon a Cristina Contini
Lampshire, que dá o próprio
e muitos outros ainda.
testemunho no texto citado várias
vezes, Living with voices. Na É difícil não evidenciar a
reconstrução do percurso que a conduz peculiaridade desta última passagem
à recovery, à reconquista da sua vida, do processo de valorização das vozes
Debra reporta duas passagens-chave, que leva os ouvidores que fazem essa
que reproponho a seguir. experiência a habitar, embora com

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papel e identidade especiais, o mundo 4 Romme M, Escher S. L’elaborazione
da psiquiatria, dos serviços de saúde di un diverso approccio sull’esperienza
mental. Para alguns dos mais degli Uditori di voci. Riv sper freniatr
conhecidos facilitadores, med leg alien ment. 2006; CXXX(2):
principalmente, Ron Coleman, trata-se 141-165.
de um retorno aos lugares que os viram 5 Romme M, Escher S. Accettare le
sujeitos de um poder psiquiátrico cego, voci. Le allucinazioni uditive: capirle e
incapaz de reconhecer o sentido da sua conviverci. Milano: Giuffrè Editore;
experiência. Trata-se de um retorno
1997.
que marca de forma evidente a
transição do papel de paciente, com 6 Jaynes J. Il crollo della mente
toda a carga de estigma associada a bicamerale e l’origine della coscienza,
essa condição, ao de ouvidor que Milano: Impramatur Editore; 2018.
mostra saber transformar a própria 7 Cavanna AE, Trimble M, Cinti F,
experiência “insensata” em um saber Monaco F. The ‘bicameralmind’ 30
capaz de curar: uma espécie de years on: a critical reappraisal of
nêmesis. O caráter paradoxal desse Julian Jaynes’ hypothesis. Funct
retorno atenua-se reconhecendo neurol. 2007; 22(1): 11-5.
como, graças à presença de figuras
profissionais caracterizadas por uma 8 Armostrong N, Murphy E.
tão evidente alteridade, também o Conceptualizing resistance. Health: an
contexto dos serviços de saúde mental interdisciplinary journal for the social
modifica os próprios contornos, study of health, illness and medicine.
aceitando – ao menos assim parece – o 2011; 16(3):314–26.
desafio ao paradigma diagnóstico, 9 Conrad P. The medicalization of
biomédico que provém do movimento society: on the transformation of
dos Ouvidores de Vozes. human conditions into treatable
disorders. Baltimore: The Johns
Hopkins University Press; 2007.
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Milano: Franco Angeli; 2012.
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London/New York: Free Association
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Books; 2007.
percepção. 1ª Edição. São Paulo: WMF
Martins Fontes; 1945. 12 Romme M, Escher S, Dillon J,
Corstens D, Morris M. Living with
3 Jenner JA, Wiersma D. L’efficacia
voices. 50 stories of recovery.
degli interventi psicosociali per le
Herefordshire: PCCS Books Ltd; 2009.
allucinazioni uditivo verbali. Riv sper
freniatr med leg alien ment. 2006; 13 Read J, van Os J, Morrison AP, Ross
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Data de publicação: 19/09/2018

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