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Rebelo, J. E. (2007). Viver o luto: a morte dos próximos (pais e filhos). In: O fim da vida (Coord.

José Henrique
Silveira de Brito), pp. 155-172. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, UCP.

Viver o luto:
a morte dos próximos (pais e filhos)

José Eduardo Campos Rebelo


Professor da Universidade de Aveiro
Presidente da APELO –
Associação do Apoio à Pessoa em Luto

rebelo@apelo.pt

2007
ÍNDICE

Introdução

Os afectos

Aspectos centrais do luto

Luto e sistemas familiares

Luto por perda de pais

Luto por perda de filhos

Conclusões

Referências bibliográficas

Rebelo, J.E. i
Viver o luto

INTRODUÇÃO
A perda de uma pessoa pela qual é nutrido um profundo sentimento de amor
constitui uma das experiências psicológicas mais dolorosas, quiçá a mais
dolorosa, sentida pelo ser humano. O vazio, a ausência, a solidão assumem-se
como gritantes expressões da amputação sofrida. Apenas o impossível – o
retorno da pessoa amada – constituiria um reconforto para a pessoa enlutada
(Worden, 1998). Busca-se num gesto, numa imagem, num afago um pequeno
sinal de alento que se diluem numa esperança vã traduzida por sofrimento mais
intenso.

A incompreensão pela perda está centrada em vários factores de carácter


psicológico, antropológico e sociológico. A interpenetração destas três
disciplinas é óbvia. As emoções e comportamentos individuais resultantes de
um acto de perda são uma consequência de um complexo processo de
construção da partilha dos múltiplos e intrincados detalhes na luta pela vida,
i.e., a vinculação. Tanto nas relações entre adultos como entre adultos e crianças
e vice-versa se verifica um estreito diálogo, verbalizado ou não, o qual constitui
o motor da socialização interna da célula mais estreita da comunidade, a
família. Todas estas expressões de partilha são, também, vigiadas sempre, bem
de perto, pela herança cultural, traduzida em referentes sociais mais ou menos
tradicionais.

A perda de parentes próximos, particularmente os pais e os filhos, poderá


assumir consequências profundíssimas a nível individual e no seio da família
onde ocorre. Os danos na conformação psíquica da criança que falha sucessivas
tentativas de vinculação por perda dos pais e de outras pessoas que os
substituem no início da infância ou da jovem que perde o pai durante a sua
adolescência afectarão todas as suas vidas. O mesmo sucedendo com os pais que
perdem filhos, em que para além de poderem vir a conviver com o luto durante
o resto da sua existência, muito frequentemente vêm a sua família arruinada.

Neste trabalho, analisam-se os afectos como elemento central do


relacionamento social, com ênfase para o mais íntimo; aborda-se o processo do
luto numa perspectiva global e da sua interferência nos sistemas familiares;
examina-se em separado o luto ocorrido pela perda de pais e de filhos.

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Viver o luto

OS AFECTOS

PASSADO, PRESENTE E FUTURO

O futuro assume-se como um desígnio supremo da sociedade ocidental actual. É


o elemento chave dos discursos sociais e políticos, remetendo para o amanhã a
génese e o decurso das vivências quotidianas domésticas, do lazer e do trabalho.
O confronto com o prospectivo, fruto de um enraizamento cultural milenar,
acompanha-nos em todos os passos empreendidos em qualquer das direcções
para onde nos orientemos.

A família, elemento base de socialização, começa por ser o primeiro veículo de


integração do arquétipo de existência centrado no devir. Os incentivos são
veiculados das formas mais simples e diversas desde a primeira infância.
Lembramo-nos, por certo, de algumas vozes, carinhosas sempre, ainda que por
vezes simuladas de imperativa firmeza, nos ciciarem ou determinarem: “come
para cresceres e seres forte” ou “estuda para seres alguém”.

Cresce-se no estímulo permanente do mais adiante, competindo a pessoa


consigo própria e com os outros pelo instante seguinte, pela perfeição quase
atingida. Acumulam-se vitórias e derrotas, grandiosas e mesquinhas,
sustentadas no esforço de suportar a expectativa. Exalta-se o novo, ainda que
aparente, e relativiza-se ou mesmo menospreza-se o antigo, ainda que pleno de
experiência e saber acumulado num tempo repleto de enriquecimento,
sacrificando valores e conceitos a modas de circunstância.

O TRIÂNGULO DO AMOR

É imbuídos nestes referenciais de cultura, aqui e além reflectidos em princípios


biológicos fundamentais, como o instinto de sobrevivência da espécie humana,
que estruturamos a nossa consciência e nos projectamos em actos de
enquadramento afectivo no seio da família. Num exercício simplista e
obviamente redutor, os pais são o passado, o cônjuge é o presente e os filhos são
o futuro. Em relação a cada um destes três elementos construímos uma
dimensão própria do triângulo de amor em que baseamos o nosso
relacionamento quotidiano.

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Viver o luto

Os laços que estabelecemos com os entes queridos repartem-se por uma, duas
ou pelas três dimensões em que se baseia o amor: a vinculação, exigindo a
proximidade da pessoa amada que nos dá a sensação de segurança física e
psíquica; o compromisso, rodeando o outro dos cuidados e mimos que lhe
conferem bem-estar; a sexualidade, desejando o cônjuge ou idealizando a partir
do exemplo recebido dos pais ou transmitido aos filhos. O amor consumado é o
que comporta de modo equilibrado todas as vertentes mencionadas (Sternberg,
1986).

ASPECTOS CENTRAIS DO LUTO

DEFINIÇÃO E ORIGEM

O conceito de luto por morte de um ente querido, podendo divergir em


conteúdo consoante a perspectiva pelo qual é observado, contém em substância
duas vertentes fundamentais: a perda, decorrente do desaparecimento físico
mais ou menos súbito do objecto de vinculação, e o dispêndio de tempo
necessário para a sua assimilação psicológica. Alguns exemplos de definições
poderão confirmar estas asserções. Na segunda década do século passado,
Freud (1917) considerava o luto como uma “reacção à perda de um ente
querido, à perda de alguma abstracção que ocupou o lugar de um ente
querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém”. Praticamente oito
décadas depois, Kaplan & Sadock (1996) definem o luto como um “síndroma
precipitado pela perda de um ente querido”, Rojas (2001), já no século actual,
enuncia-o como um “processo psicológico pelo qual a tristeza experimentada
por perdas significativas é dissipada” e Rebelo (2004) considera-o “um
período mais ou menos longo que é necessário viver, após a perda de um ente
querido, para que todos os momentos belos com ele partilhados se
transformem em doces e suaves memórias”.

Freud (1917), no trabalho “Luto e Melancolia”, considerou que perante a prova


da realidade reveladora que o objecto perdido deixou de existir, manifesta-se na
pessoa em luto a exigência de que toda a libido desenvolvida em relação ao
objecto seja retirada de todas as ligações com ele existentes. Esta imposição
origina confrontos óbvios, uma vez que “as pessoas nunca abandonam de bom

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Viver o luto

grado uma posição libidinal”. No luto normal a realidade acaba por predominar.
Contudo, a sua assimilação não é instantânea. Prolonga-se pelo tempo com
elevado consumo de energia catexial, permanecendo, entretanto, ao nível
psíquico, o objecto perdido. De forma diferenciada, cada uma das parcelas
emocionais (memórias e expectativas) que vinculavam a libido ao objecto é
relembrada e hipercatexizada, ocorrendo o seu desligamento.

Ainda segundo o mesmo autor, uma vez concluído o trabalho de luto, o ego, cujo
envolvimento neste trabalho foi tão forte ao ponto de absorver todas as suas
energias, fica de novo livre e desinibido, uma vez que desiste do objecto,
declarando-o morto, e retoma o incentivo de continuar a viver. González (1965)
contraria este princípio, ao insistir em que o trabalho de luto não liquida a
relação existente com o objecto perdido; antes, estabelece um novo tipo de
vínculo que lhe permite, em caso de necessidade, libertar suficiente quantidade
de catexia para enformar um objecto substituto.

Muito embora a presente comunicação se centre no luto por morte de


progenitores e de filhos, é do senso comum que este processo se desencadeia em
consequência de causas múltiplas que não exclusivamente a morte de um ente
querido. Todas as causas, no entanto, têm como denominador comum: a
elevada importância afectiva atribuída à perda (Freud, 1917; Grinberg, 2000).
Segundo Kaplan & Sadock (1996) as causas de luto podem ser sistematizadas
em quatro grandes grupos: i) perda de um ente querido, resultante da
separação, divórcio ou encarceramento; ii) perda de um objecto com elevado
valor afectivo, ou de uma circunstância muito particular, como a imagem
pública ou o estatuto profissional; iii) perda de um objecto fantasiado de afecto,
como, por exemplo, um feto intra-uterino ou o nascimento de uma criança com
mal-formação física ou mental; iv) perda resultante de dano narcisista, como,a
amputação de um membro e a mastectomia.

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Viver o luto

O PROCESSO DE LUTO

Luto: percurso saudável ou doentio?


No decurso da observação e análise dos caminhos do luto, os comportamentos
aparentemente anormais verificados nas pessoas enlutadas problematizavam o
conceito de doença associada ao luto. Freud (1917) desmentiu esse pressuposto
considerando que apesar de serem visíveis, ao longo do luto, alterações
substanciais no comportamento normal da vida, não é aceite considerá-lo como
uma condição patológica. E, uma vez que é superado com o tempo, é “inútil ou
mesmo prejudicial” interferir neste processo, nomeadamente submetê-lo a
tratamento médico. Algumas décadas mais tarde, o psiquiatra George Engel
(1961), à pergunta sobre se o luto era uma doença, respondia “que o luto
representa uma saída do estado de saúde e bem-estar, e assim como a cura é
necessária no campo fisiológico para trazer o corpo de volta ao equilíbrio
homeostático, um período de tempo é igualmente necessário para que o
enlutado retorne a um estado de equilíbrio”.

Noutra perspectiva contraditória apenas na aparência, alguns autores da


corrente psicanalítica consideram que a pessoa em luto é “doente” (González,
1965; Grinberg, 2000). Muito embora o estado mental da pessoa enlutada seja
comum, pelo que parece normal, e por isso não é referida como doente, nela se
reactivam as ansiedades psicóticas precoces (Klein, 1940). O luto é uma reacção
patológica visando a recuperação do equilíbrio somático e psíquico alterado.
Quando se processa sem deformar substancialmente a realidade, então está-se
perante um luto normal, caso contrário, verifica-se o luto patológico (González,
1965).

Definitivamente afastado o conceito de doença associado à fragilidade


emocional decorrente do luto, tornava-se necessário detalhar o seu percurso,
nomeadamente explicar os sintomas visíveis, e compreender a necessidade de
resolução dos fenómenos associados. As primeiras explicações mais sustentadas
surgiram no domínio psicanalítico explanado por Freud ao longo da sua obra,
com particular destaque para o trabalho “Luto e Melancolia”. Após este domínio
de abordagem, praticamente só a partir do fim da década de sessenta é que o
luto começou a ser alvo de atenção específica por parte da ciência. Dois
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Viver o luto

excelentes trabalhos compreensivos sobre o luto foram publicados pelos


psiquiatras Elisabeth Kübler-Ross, em 1969, On death and dying, analisando
mais especificamente o luto do doente com morte anunciada (Kübler-Ross,
1998), e John Bowlby, em 1973, Attachment and Loss, que aborda as principais
consequências emocionais da perda (Bowlby, 1985).

O estudo científico do processo do luto é, como se pode verificar, ainda bem


recente. Apesar de constituir um tema recorrente, pela sua presença constante
na própria vida, o tema do luto não tem merecido a devida atenção por parte
dos investigadores. Em Portugal só muito recentemente se começaram a dar
passos fundamentados na pesquisa e na divulgação da temática geral do luto,
registando-se, nesse sentido, um esforço conjugado da APELO – Associação do
Apoio à Pessoa em Luto e do Instituto Superior Miguel Torga de Coimbra.

Fases do luto
Conforme foi admitido na definição de luto, um dos seus pressupostos basilares
é a necessidade de tempo para a reabilitação emocional da pessoa enlutada em
relação ao objecto perdido. A resolução do processo de luto exige um percurso
tipificado num conjunto de fases referidas por diferentes autores (Parkes, 1972;
Bowlby, 1985; Kaplan & Sadock, 1996; Sharp & Cowie, 1998; Worden, 1998;
Kübler-Ross, 1998 e 2002). Pode-se simplificar todo o processo do luto em três
momentos centrais de vivências emocionais da perda: a negação; o
reconhecimento e a aceitação.

A negação segue-se ao anúncio do falecimento do ente querido. Mesmo que a


morte seja esperada, ocorre um período prévio de choque emocional, onde pode
ser experimentada uma comoção forte, mais ou menos prolongada,
eventualmente interrompida por explosões extremamente intensas de aflição e
de raiva.

A negação emocional da perda propriamente dita, que inclui o choque, visa a


protecção da pessoa em luto face ao estado agudo de sofrimento emocional e
físico que está iminente. Muito embora exista uma percepção racional da perda,
há um tempo em que os níveis de vinculação em relação ao ente querido são tão
elevados que deturpam a própria realidade.

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Viver o luto

Baldados todos os esforços de aprisionamento da pessoa perdida nas vivências


do enlutado, ocorre o reconhecimento emocional da perda. Esta sensação é,
porventura, a mais difícil em termos de sofrimento, uma vez que é
acompanhada de uma visível desorganização emocional do indivíduo. É óbvia
uma elevada agitação e desorientação e são frequentes episódios depressivos
com sintomas típicos, tais como, entre outros, o desalento para a vida, o fastio, a
insónia, a quebra de libido, o isolamento social.

Fenómenos de agressividade dirigidos em diversas frentes, nomeadamente


contra a própria pessoa, sob a forma de culpa, contra a família, a sociedade, a
religião e inclusivamente contra a pessoa perdida são frequentes. A angústia
provocada pela rememoração do ente querido, a irritabilidade e a perda de
capacidade de comunicação são outros dos factores que dificultam o
relacionamento social e a própria aceitação do enlutado.

A aceitação emocional da perda tem lugar após a assimilação da desconstrução


do edifício de partilha afectiva que fora efdificado na relação de vinculação. A
pessoa em luto experimenta um sentimento de libertação em relação à perda,
tomando, então, consciência segurada sua inevitabilidade. Considera, então, que
o sucedido não foi uma derrota face à vida e, como tal, inicia a aceitação serena
da privação, resignando com naturalidade aos vínculos outrora gerados.

Inicia-se nesta fase a extinção da dor da perda. É apreendido que a vida


continuará com novos ajustes e diferentes objectivos e estabelecem-se, novos
elementos de vinculação. O luto retrocede e a pessoa perdida, que no início do
luto se encontrava viva e aprisionada na mente do enlutado, passa a constituir
uma memória comprazida. Ocorre a identificação saudável com o falecido.

Deixado para trás o luto, regressa-se à vida psicológica normal.

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Viver o luto

LUTO E SISTEMAS FAMILIARES


Até ao momento, as reacções de luto foram abordadas na perspectiva do
indivíduo e da sua relação com a pessoa falecida. Todavia, a maioria das perdas
significativas ocorre no contexto de uma unidade familiar, com consequências
significativas para a estabilidade da própria família, com sofrimento profundo,
desequilíbrio emocional e, por vezes, a própria desestruturação. Factores como
estágios do ciclo de vida familiar, papéis desempenhados pela pessoa falecida,
padrões de poder, afecto e comunicação e factores sócio-culturais poderão pesar
de modo significativo na ruptura familiar (Vess et al., 1985; Davies et al., 1986,
citados por Worden, 1998).

A intervenção terapêutica ao nível familiar, sempre numa perspectiva sistémica,


exige, antes de mais uma noção bem clara do desenho de toda a família, o
enquadramento funcional da pessoa falecida na família, bem como o nível de
adaptação à vida (Bowen, 1989) , uma vez que a família é uma unidade
interaccional na qual todos os membros se influenciam reciprocamente. Não é
suficiente tratar cada indivíduo que se relacionava com a pessoa falecida e lidar
com o seu luto sem relacioná-lo com toda a rede familiar.

A necessidade de observar o luto de uma família e os lutos percorridos pelos


seus membros resulta do impacto dos mitos familiares, os quais funcionam de
modo semelhante às defesas desenvolvidas pelo indivíduo e definem o grupo
familiar, caracterizando-o e individualizando-o. É aceite, por isso, que cada
mudança ocorrida após a morte de um membro da família simboliza a morte da
própria família, deixando a tarefa principal de formar uma nova família para o
passado (Greaves, 1983).

A FAMÍLIA FACE AOS SENTIMENTOS

As famílias apresentam padrões diversos de capacidade de expressão e


tolerância dos sentimentos. Se os sentimentos expressos abertamente não são
tolerados, podem ocorrer vários tipos de conduta de actuação que servem como
equivalentes do luto. Estas famílias não só não criam espaços de diálogo sobre o
luto e o familiar desaparecido, como apresentam desculpas ou fazem
comentários que permitem que os demais membros da família permaneçam em

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Viver o luto

silêncio. Pelo contrário, as famílias que expressam abertamente os seus


sentimentos lidam com maior facilidade com o processo do luto, conversando
de forma mais aberta sobre a pessoa falecida. As famílias funcionais são mais
prováveis de processar sentimentos sobre a morte, incluindo admitir e aceitar
sentimentos de vulnerabilidade (Davies et al., 1986 cit. por Worden, 1998).

É conveniente salientar a necessidade de analisar o processo do luto ao nível do


sistema familiar, uma vez que o luto não resolvido não só constituirá um factor
determinante na patologia familiar, como poderá contribuir para relações
patológicas através das gerações. O luto postergado está relacionado com o facto
de a família de origem impedir que a pessoa viva uma perda e uma separação
emocional na família actual. Numa análise sobre este fenómeno relacionado
com o abuso de drogas, verifica-se que pais de jovens aditivos nunca tiveram um
luto completo ou resolveram laços ambivalentes com os seus próprios pais.
Consequentemente, tendem a projectar os seus conflitos sobre a perda e o
abandono nas suas famílias actuais (Reilly, 1978 citado por Worden, 1998).

AVALIAÇÃO DO LUTO

Quando se avalia o luto em sistemas familiares é necessário considerar três


áreas relevantes: o papel que a pessoa falecida desempenhava no sei da família;
a integração emocional da família; a expressão emocional da família face ao
luto.

O papel da pessoa falecida na família

Há vários tipos de papéis desempenhados pelos membros da família, como o de


doente, o que estabelece valores, o bode expiatório, o que alimenta, o cabeça do
grupo, etc. Na medida em que a pessoa falecida tinha uma posição funcional
significativa na família, a sua morte irá criar uma alteração correspondente do
equilíbrio funcional. Bowen vê a unidade familiar como estando calma e
equilibrada quando cada membro está funcionando de forma razoavelmente
eficaz. Mas o acréscimo ou a perda de um membro da família pode resultar em
desequilíbrio. Pela morte, a família pode ser privada de um importante papel e
outro membro deve ser escolhido para preencher o que ficou vago (Bowen,
1989).
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Viver o luto

A integração emocional da família

Numa família bem integrada, os seus membros serão mais capazes de se


ajudarem reciprocamente a lidar com a morte, mesmo a de um membro
significativo da família, com pouca ajuda externa. Pelo contrário, uma família
menos integrada pode evidenciar uma reacção de luto mínima na hora da
morte, mas os seus membros podem evidenciar mais tarde vários sintomas
físicos ou emocionais ou algum tipo de má conduta social. (Bowen, 1989).

A expressão emocional na família face ao luto

As famílias evidenciam no seu interior padrões de comunicação diversos, os


quais conduzem a comportamentos divergentes em relação ao processo do luto.
Nas famílias menos funcionais a tristeza pode equivaler à loucura e é manifesta
por comentários como "Eu já chorei muito". Existe um reforço na rigidez do
papel relacionado com o género, como o elogio do pai em relação ao filho pela
não expressão de sentimentos aquando do funeral. Estas famílias que
conspiram para reprimir os seus sentimentos ou mantê-los afastados podem, na
verdade, impedir que o indivíduo resolva o seu luto de forma adequada. Por seu
turno, em famílias mais funcionais os progenitores, independentemente do
género, exprimem abertamente o luto e as suas emoções. (Davies et al., 1986 cit.
por Worden, 1998).

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Viver o luto

LUTO POR PERDA DE PAIS


A privação definitiva de um ou ambos os pais terá consequências diferenciadas
no luto que desenvolveremos consoante, no essencial, o tipo e intensidade de
amor que com ele(s) havíamos criado e a fase do ciclo de vida em que nos
encontremos.

Reportando-nos ao triângulo do amor referido no início deste trabalho, a


relação que mantínhamos com o pai ou a mãe que agora perdemos poderia
significar uma grande dependência emocional de um, dois ou três dos seguintes
níveis: vinculação, cuidado e referência sobre a paixão. Desatar os laços
afectivos será tanto mais penoso e complexo quanto mais intrincada era a teia
afectiva que nos ligava ao ente querido.

O momento do nosso percurso de vida em que nos despedimos da pessoa amada


é um factor decisivo no luto e poderá assumir repercussões determinantes no
restante trajecto de existência. A perda dos pais no início da infância obriga a
novos investimentos de vinculação em outras figuras de adopção. Se esses
investimentos falham, por perdas sucessivas decorrentes de morte ou outro tipo
de separação física, a criança não interioriza a sensação de segurança física e
psíquica que as pessoas próximas nos conferem, normalizando a solidão
emocional e o desafecto como elementos naturais de vida. Está provado que
jovens e adultos psicopatas e sociopatas não alcançaram a vinculação durante a
sua infância (Bowlby, 2001).

A perda do pai ou da mãe, respectivamente pela filha ou o filho, durante a


formação e consolidação da personalidade, na adolescência e início da adultez,
poderá criar nestes grande insegurança no seu envolvimento social, com
particular destaque para o relacionamento amoroso. Durante a escolha daquele
ou daquela que irá ocupar o espaço central da sua intimidade afectiva, a
presença viva do pai ou da mãe confere à/ao jovem a segurança emocional
adequada a uma transição tranquila e estável do progenitor para o cônjuge de
toda a imensa esfera sentimental inerente à realização de uma ligação plena.
Quando o pai acompanha a filha e a mãe o filho ao altar ou à mesa da
Conservatória, onde se processa a solenidade formal do casamento, estão a
simbolizar, também, a aceitação da transferência de afectos que lhes eram

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Viver o luto

consagrados. A perda do progenitor durante a adolescência e início da adultez


poderá ter como consequência a dificuldade em envolvimentos conjugais sólidos
e duradouros.

Quando nos encontramos na meia-idade ou mais adiante e realizámos


atempadamente e de modo sereno as etapas da vinculação infantil, da
construção apoiada da personalidade e da transição e consolidação afectiva
através da ligação conjugal, os pais afiguram-se-nos como um passado, muito
embora de grande importância de apego, mas de que com maior ou menor
brevidade nos despediremos. Concentramos grande parte da atenção emocional
no presente, o cônjuge, e em quem nos perpetua, os filhos, mantendo através do
amor filial um elo em relação aos pais. Ainda que não desejemos que ocorra com
brevidade, acolheremos com suavidade o momento da sua morte,
particularmente se sentirmos que o ente querido se finou serenamente com
conforto físico e afectivo.

LUTO POR PERDA DE FILHOS


A morte de uma criança constitui uma perda aflitiva que influencia de modo
determinante o equilíbrio da família. Em consequência das normalmente
intensas relações de vinculação existentes entre pais e filhos, a perda de crianças
provoca, em regra, manifestações de luto profundo, inclusivamente com
manifestações patológicas. De acordo com Kaplan & Sadock (1996), eis as
características fundamentais para a pessoa enlutada decorrentes da perda de
uma criança:

• Pode constituir uma experiência bem mais intensa do que a morte de um


adulto;

• Os sentimentos de culpa e abandono podem ser esmagadores;

• Ocorrem os estádios de choque, negação, raiva, regateio e aceitação;

• As manifestações de luto podem permanecer durante toda a vida;

• Mais de metade dos casamentos onde se verifica a morte de uma criança


terminam em divórcio.

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Viver o luto

Muito embora as características apontadas sejam, segundo os autores,


direccionadas para a perda das crianças, a sua extensão para filhos pode ser
admitida. Na minha experiência pessoal de moderador de um grupo de
entreajuda de pais em luto, tenho tido a oportunidade de verificar que,
independentemente da idade da(o) filha(o) no momento da sua morte, as
manifestações de luto experimentadas pelo pais são muito semelhantes (Rebelo,
2005) .

CONSEQUÊNCIAS PARA OS PAIS

Como foi referido, perder uma criança, qualquer que seja a idade, pode ser uma
das perdas mais devastadoras da vida e o seu impacto pode permanecer por
toda a vida. Os vínculos com os pais são fortes. Eles reflectem os aspectos da
personalidade dos pais e as dimensões históricas e sociais.

A criança representa para os pais tanto o melhor quanto o pior self.


Dificuldades e ambivalências na vida dos pais são manifestas na
ligação com a criança. A criança nasce num mundo de desejos e
expectativas, num mundo de elos psicológicos intrincados, num
mundo que tem uma história. A ligação pais-criança também pode ser
uma repetição da ligação entre os pais e seus pais, de forma que a
criança pode ser sentida como estando a elogiar ou a julgar o self dos
pais. A partir do dia em que a criança nasce, estes desejos e
expectativas, laços e história passam a fazer parte do jogo entre os
pais e a criança. (Klass, 1988)

Embora ambos os pais passem pela perda, a experiência do luto evidencia, em


regra, especificidades em cada um dos pais devido aos seus variados
relacionamentos com a criança e aos seus diferentes estilos de lidar com a
situação. Tais diferenças podem provocar um esforço excessivo no casal, com
resultados contraditórios de tensão e afastamento ou cumplicidade e
convergência entre os membros da família. Não é raro, neste último caso,
verificar-se um desejo de intimidade e proximidade superior ao anteriormente
vivido. Alguns pais ficam surpresos ou experimentam sentimentos de culpa
quando se apercebem que tentam preencher parte do vazio resultante da perda

Rebelo, J.E. pág. 167


Viver o luto

através da prática sexual. É importante que os pais reconheçam e compreendam


estas necessidades e sentimentos, como parte do processo de luto normal.

O processo do luto pela perda de uma criança pode revestir-se de maior


complexidade quando os pais da criança são divorciados. Durante o período
mais crítico os pais mantêm-se juntos. Esta estreita proximidade pode despertar
emoções fortes e comportamentos extremos, desde o empático e cuidadoso até
um esforço para a obtenção de força e poder (Burks, 1980 citado por Worden,
1998).

Rebelo, J.E. pág. 168


Viver o luto

CONCLUSÕES
O estigma da morte na cultura ocidental prevalece como elemento delimitador
da estrutura psicológica individual e social com ela relacionada. Como resultado
da incapacidade de aceitação emocional da morte, a sociedade condiciona os
comportamentos do luto a limites estritos e recatados de expressão. Ora, a
pessoa em luto, tendo necessidade de expressar um conjunto de manifestações
psicológicas ao longo de um período de tempo como reacção à perda do seu ente
querido, não tem capacidade de se ajustar em termos temporais e de quantidade
e qualidade de emoções à exigências sociais. Com efeito, uma vez que a
assimilação afectiva é bem mais complexa e demorada do que a assimilação
racional, o luto exige tempo não balizado para que a pessoa em luto
desconstrua, através de fases gradativas, os laços de vinculação que criou com o
ente querido.

O desenvolvimento do luto normal exige a assimilação de todas as emoções do


processo, mesmo na fase dos episódios depressivos. A agressividade dirigida
contra a pessoa perdida, contra si própria, sob a forma de culpa, contra
familiares e amigos e contra a sociedade e a tristeza devem ser vividas, criando-
se um espaço próprio para expressão das emoções respectivas. O seu
escamoteamento pode trazer consequências negativas ao nível individual,
através da fixação numa determinada fase do luto, e ao nível do sistema
familiar, afectando as vivências comuns do luto e fazendo aflorar conflitos
colaterais que poderão romper irreversivelmente com a homeostasia e resultar
na desestruturação familiar.

A perda de pais resulta em lutos distintos face à intensidade da vinculação que


com eles estabelecida e com as etapas do ciclo de vida em que se encontram a
pessoa perdida e o órfão. Para além do processo de resolução do luto, a morte
dos pais pode, em determinados períodos sensíveis da ontogénese cognitivo-
emocional do indivíduo, originar danos profundos na sua personalidade e
capacidade de relacionamento social.

A perda de filhos, particularmente crianças, dadas as condições particulares de


vinculação existentes entre pais e filhos, onde as relações inatas de protecção da
descendência e adquiridas de projecção e continuidade social, tem como

Rebelo, J.E. pág. 169


Viver o luto

consequência um processo de luto bastante doloroso e complexo. Tal é


manifestado quer ao nível individual dos membros da família quer no âmbito do
próprio sistema familiar. A permanência do luto no curso de todo o restante
período de vida dos pais é uma factor normal e não uma fixação patológica,
como o seria, em regra, no caso de luto em relação a um indivíduo adulto. No
contexto da família, este tipo de luto é de tal forma intrincado que pode
originar, transitória ou definitivamente, o seu desmembramento.

A morte, única certeza que sempre nos acompanha, é ainda um tabu. Como tal,
todo o processo conducente à reorganização emocional desenvolvido pelas
pessoas que nutrem pelo ente querido profundos sentimentos de vinculação é
aceite dentro de limites bem padronizados e demasiado estreitos e severos para
a natural urgência de expressão das intensas emoções negativas nele geradas.
Uma sociedade saudável é a que disponibiliza aos seus elementos espaço para a
gestão serena da construção, da manutenção e da perda dos afectos. É, por isso,
indispensável que o luto, como a morte, ocupem o lugar natural que lhe é devido
na vivência pessoal e no convívio social. Só derrotando os temores que à volta de
ambos erigimos, conseguiremos desvanecer as angústias mórbidas com que os
fantasiamos.

Rebelo, J.E. pág. 170


Viver o luto

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