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2.

ACriança

A criança e a experiência com a morte

A criança é criativa, imaginativa e tem uma curiosidade natural que a faz descobrir o mundo, a vida e seus mistérios. Para tudo
busca um porquê, não havendo diferença em relação à morte. Dessa forma, conforme cresce, ela adquire novos conhecimentos
e aprende através da exploração de seu mundo.

Desde cedo a criança vivencia situações que lhe permitem criar uma noção da morte. Percebe as coisas a sua volta, mas muitas
vezes se sente confusa em suas percepções. Portanto, evitar a questão da morte com a criança é negar uma realidade. Isso pode
ser muito prejudicial, uma vez que deixa a criança confusa, por não ter com quem confirmar suas percepções (Kovács, 1992).

Kastenbaum e Aisenberg (1983) citam que, de acordo com vários psicólogos do desenvolvimento, a criança até os dois anos
não tem nenhuma compreensão da morte devido a sua incapacidade de apreensão de qualquer concepção abstrata. Entretanto,
sugerem que há muitos modos pelos quais a mente, nos primeiros anos de vida, entra em contato com a morte. Afirmam que
crianças muito pequenas já podem ficar impressionadas ao se verem expostas à morte. Embora seja possível ainda não possuir
condições cognitivas para

entender a morte, as percepções relativas à mesma podem produzir forte e duradouro impacto sobre elas.

Torres (1999) cita Maurer (1974) ao afirmar que antes dos dois anos a criança intui a morte por intermédio de sua experiência
de dormir e acordar, o que permite a percepção do “ser” e do “não ser” (Mazorra & Tinoco, 2005a; Torres, 1999).

São três os componentes básicos do conceito de morte: universalidade, não funcionalidade e irreversibilidade (Kovács, 1992;
Nunes et al., 1998; Priszkulnik, 1992; Riely, 2003; Schonfeld, 1996; Velasquez-Cordero, 1996).

A universalidade tem a ver com a compreensão de que todos os seres vivos (plantas, bichos e pessoas), sem exceção, um dia,
morrerão. Ou seja, a morte é um evento inevitável. A não funcionalidade caracteriza-se por compreender que, na morte, todas
as funções vitais cessam: a pessoa não respira, não se mexe, não pensa, não sente absolutamente nada. No corpo, nada mais
funciona. Já a irreversibilidade é a capacidade de perceber que quem morre, não volta mais. A morte não é temporária. Não se
morre só um pouquinho. Não existe uma mágica que faça a pessoa “desmorrer” (Kovács, 1992; Nunes et al., 1998; Schonfeld,
1996; Torres, 1999; Velasquez-Cordero, 1996).

Para a criança, a morte é não apenas um desafio cognitivo para seu pensamento, mas também um desafio afetivo (Torres,
1999).

Essa autora fez um estudo sobre a aquisição do conceito de morte pelas crianças, de acordo com os estágios estabelecidos por
Jean Piaget (1987, 1996):

Aponta as seguintes diferenças para cada estágio:

1. Período Sensório-motor: crianças de 0 a 2 anos (antes da aquisição da linguagem)

— O conceito de morte não existe.


— A morte é percebida como ausência e falta.
— A morte corresponde à experiência do dormir e acordar: percepção

do ser e não ser.

2. Período Pré-operacional: crianças de 3 a 5 anos

— As crianças compreendem a morte como um fenômeno temporário e reversível. Não entendem como uma ausência sem
retorno.

— Atribuem vida à morte, ou seja, não separam a vida da morte. Não distinguem os seres animados dos inanimados. Entendem
a morte ligada à imobilidade.

— Apresentam pensamento mágico e egocêntrico. São autorreferentes, e, para elas, tudo é possível.

— Compreendem a linguagem de modo literal/concreto. 3. Período Operacional: crianças de 6 a 9 anos

— Apresentam uma organização em relação a espaço e tempo.


— Distinguem melhor os seres animados dos inanimados.
— Entendem a oposição entre a vida e a morte, compreendendo a morte

como um processo definitivo e permanente. Compreendem a irreversibilidade da morte.

— Há uma diminuição do pensamento mágico, predominando o pensamento concreto.

— Ainda não são capazes de explicar adequadamente as causas da morte.

— Conseguem apreender o conceito de morte em sua totalidade: em relação à não funcionalidade, à irreversibilidade e à
inevitabilidade da morte.

4. Período de Operações Formais: crianças de 10 anos até a adolescência


— O conceito de morte, devido ao pensamento formal, torna-se mais abstrato. Já compreendem a morte como inevitável e
universal, irreversível e pe ssoa l.

— As explicações são de ordem natural, fisiológica e teológica (Torres, 1999).

Vários outros autores também descrevem a compreensão infantil da morte, baseando-se no desenvolvimento cognitivo da
criança, a partir da teoria piagetiana (Bromberg, 1997; Grollman, 1990; Kovács, 1992, 2003; Nunes et al., 1998; Priszkulnik,
1992; Velasquez-Cordero, 1996).

Torres (1999), assim como Bowden (1993), alerta para o fato de que a aquisição do conceito de morte pelas crianças não está
somente correlacionada à idade. Depende também de aspectos social, psicológico, intelectual e da experiência de vida.

Portanto, pode-se afirmar que a criança percebe a morte de forma diferente do adulto, de acordo com faixa etária e condições
cognitivas.

A criança também fica enlutada

Antes de tratar do luto infantil, é importante falar sobre como se estabelecem as relações iniciais da criança. Para isso, baseio-
me em referências à Teoria de Apego, de John Bowlby (1989, 1990, 1995), amplamente apresentadas pelos estudiosos do
assunto luto. Bowlby foi um psiquiatra britânico, o primeiro pensador sobre o desenrolar do apego e das perdas, que
desenvolveu seus estudos a partir de observações realizadas com crianças separadas de suas mães durante um longo tempo.

A teoria do apego nos auxilia a entender a tendência dos seres humanos de estabelecer fortes laços afetivos com outros, assim
como a compreender a

forte reação emocional que ocorre quando esses laços afetivos são ameaçados ou rompidos. Assim, podemos entender o
impacto de uma perda sobre a pessoa e o comportamento humano decorrente dessa perda. Para Bowlby, “tais laços surgem de
uma necessidade de segurança e proteção, iniciam-se cedo na vida, são dirigidos a poucas pessoas específicas e tendem a durar
por uma grande parte do ciclo vital” (Worden, 1998, p. 19).

Bowlby (1989, 1990, 1995) conceitua o comportamento de apego como “qualquer forma de comportamento que resulta em
uma pessoa alcançar e manter proximidade com algum outro indivíduo claramente identificado, considerado mais apto para
lidar com o mundo”. Esse autor afirma que o apego é instintivo, uma necessidade básica do ser humano para seu
desenvolvimento — uma função biológica. Aponta para o fato de que a primeira relação humana de uma criança é fundamental
na formação de sua personalidade.

O apego infantil é desenvolvido no primeiro ano de vida. Aos três meses, o bebê já responde à mãe de modo diferente: sorri,
balbucia e segue-a com o olhar — ou seja, apresenta uma discriminação perceptual. Mas esse comportamento ainda não é a
prova de comportamento de apego. O comportamento de apego é observado quando a criança reage à saída da mãe de seu
ambiente e se comporta de modo a manter a proximidade com ela. A criança busca não só satisfação, mas também segurança.
Isso acontece por volta dos seis meses.

A intensidade e consistência com que se manifesta o comportamento de apego é variável: pode ser de origem orgânica (fome,
fadiga, doença e infelicidade) e ambiental (algo que cause “alarme”) (Bowlby, 1990).

Em seus estudos, Bowlby enumerou cinco respostas que levam ao comportamento de apego, denominadas comportamento
mediador de apego: chorar, sorrir, seguir, agarrar-se, sugar e uma sexta resposta que seria chamar sua mãe (mais tarde, até
gritando o nome dessa mãe).

Afirma que, a partir do terceiro ano de vida, a criança é muito mais capaz de aceitar a ausência temporária da mãe. Esse
sentimento de segurança está condicionado a alguns fatores:

— As figuras subordinadas devem ser familiarizadas (de preferência a criança deve tê-las conhecido junto com a mãe).

— A criança deve ser saudável e não estar assustada.

— A criança deve saber onde está a mãe e confiar que pode reatar contato com ela a curto prazo (Bowlby, 1990).

Bowlby (1989) reforça que um traço do comportamento de apego é a intensidade da emoção que o acompanha. Se tudo vai
bem, há satisfação e um senso de segurança; se a relação está ameaçada, existe ciúme, ansiedade e raiva; se houver uma
ruptura, pode ocorrer dor e depressão.

Quanto aos distúrbios emocionais, o autor enfatiza dois fatores ambientais de maior importância na primeira infância. O
primeiro é a morte da mãe ou uma separação prolongada. O segundo é a atitude emocional da mãe para com o filho: como ela
lida com ele ao alimentá-lo, desmamá-lo, treinar o controle dos esfíncteres e outros aspectos do cuidado materno corriqueiro.

Bowlby (1995) distingue três modelos de apego:

1. Apego Seguro: o indivíduo se sente confiante de que seus pais estarão disponíveis, oferecendo resposta e ajuda caso se
depare com alguma situação ameaçadora. Este fato o encoraja a explorar o mundo.

2. Apego Ansioso: o indivíduo se mostra incerto quanto à disponibilidade de resposta ou ajuda por parte dos pais, caso
necessário, tendendo à ansiedade em caso de separação, ficando “grudado” e ansioso na exploração do mundo.

3. Apego Evitativo: o indivíduo não tem nenhuma confiança de que receberá resposta e ajuda quando procurar cuidado. Sente a
rejeição como certa. Procura viver sem o amor e a ajuda dos outros, tentando tornar-se emocionalmente autossuficiente.
A criação de um padrão de apego seguro depende não somente das características pessoais da mãe, mas também de um
contexto maior de sua família.

Bowlby (1995) afirma que a privação prolongada dos cuidados maternos pode trazer efeitos graves e de longo alcance sobre a
personalidade de uma criança pequena e, consequentemente, sobre toda a sua vida futura.

Aponta três tipos de experiências que podem produzir uma personalidade “incapaz de afeição” e delinquente em algumas
crianças:

1. Falta de qualquer oportunidade para estabelecer ligação com uma figura materna nos primeiros três anos de vida.

2. Privação por um período limitado (mínimo de três e mais de seis meses) nos primeiros três ou quatro anos.

3. Mudança de uma figura materna por outra durante o mesmo período.

Sobre a questão do apego na infância, Berthould (1998) afirma que, a partir dos três anos, a criança é capaz de explorar melhor
seu ambiente, aventurando- se a ficar por mais tempo longe de sua figura de apego. Além disso, relaciona-se com um maior
número de pessoas, conhecendo-as, e passa a demonstrar maior interesse por outras crianças. Dessa forma, a ausência da figura
materna é tolerada mais facilmente, contanto que esteja com pessoas conhecidas ou de sua confiança. Diz ainda que, por volta
dos seis anos, a criança passa a demonstrar outras formas de manifestação do padrão de apego em função de expectativas
sociais, quando é incentivada a agir com mais

maturidade. Nesta fase, a criança expande seus vínculos afetivos (na escola, com professores, amiguinhos) e já não sente tanta
necessidade da presença dos pais, exceto quando se encontra em situações que envolvem mais estresse. No entanto, a criança
poderá sentir-se segura apenas com a certeza de que seus pais estarão acessíveis no caso de ela necessitar deles. É importante
salientar que essas alterações são gradativas, de acordo com o desenvolvimento da criança. Os adolescentes já se sentem
capazes de ficar sozinhos, menos ansiosos na ausência dos pais, sem necessitar da presença deles.

Nessa fase, outras espécies de vínculos, que não o apego, são estabelecidas: de amizade, companheirismo, atração sexual,
paixão, amor; vínculos passageiros e duradouros, que também dão sentido à nossa existência.

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