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História da

Filosofia
J u i .i á n M arías

Prólogo clr
X a v i e r Z iiiu k i

Epílogo dc
J o s é O r t e g a y C ía s s i i

Tradução
C l a u d i a Bi r i in i: k

Revisão técnica
F r a n k l i n L e o p o i . i x ) i Sm v a

Martins Fontes
Sdo Paulo 2004
Esta obra fo i publicada originalmente em espanhol com o título
HISTORIA DE LA FILOSOFIA por Alianza Editorial. Madri.
Copyright © Juiiún Martas. 1941.
Copyright © 2004, Livraria Martins Fontes Editora Lida..
São Paulo, para a presente edição.

A presente edição foi traduzida com a ajuda da Dirccción General dei Libro.
Archivos y Bibliotecas do Ministério de Educadón. Cultura y Deporte, da Espanha.

1* edição
junho de 2004

T radução
CLAUDIA BERL1NER

Revisão técnica
Franklin Leopoldo e Silva
A com panh am ento e ditorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Renato da Rocha Carlos
Sandra Garcia Cortes
Dinartc Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Calulogavãu na Publicação (CIP)


(C âm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Marías, Julián, 1914-


H isiória da filosofia / Julián Marías ; prólogo de Xavier Zubiri ;
epílogo de José Ortega y G assct; tradução Claudia B erliner; revi­
são técnica Franklin Leopoldo e Silva. - Süo Paulo : Martins Fon­
tes, 2004.

Título original: Historia de la filosofia.


Bibliografia.
IS B N 85*336.1992-8

1. F ilosofia-H istória I. Zubiri, Xavier. II. Ortega y Gassci. José.


III. Título.

04-3080______________________________________________________CDD-109

índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia : História 109

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Lida.
Rua Conselheiro Ramalho. 3301340 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 324}.3677 Fax (11) 3105.6867
e-niail: info@mamnsfofites.com.br http:llwww.martinsfontes.cotn.br
Em memória de meu mestre
D. M a n u e l G a r c ia M o r e n t e
que foi decano e alma da Faculdade de
Filosofia e Letras onde conheci a Filosofia.
Ín d ic e

Prólogo à prim eira edição XVIL Parmênides 22


O poema 23
Reflexão sobre u m livro
p róprio (Prólogo à tradução Os atributos do ente 25
inglesa) XXIX A opinião 25
Ontologia ou metafísica 26
História da filosofia Zenão 27
Melissos 28
In tr o d u ç ã o 3
A influência de
Filosofia 3
Parmênides 29
A idéia de filosofia 4
Origem da filosofia 5 4. De Heráclito a Demócrito 29
A filosofia e sua história 7 O problema geral 29
Verdade e história 8 a) Heráclito 30
Vida e caráter 30
Filosofia grega O devir 31
Os PRESSUPOSTOS DA FILOSOFIA Tò oo<póv 31
GREGA 11 b) Empédocles 32
Vida 32
1. Os PRÉ-SOCRÁTICOS 13
Cosmologia 33
1. A escola de Mileto 13 Biologia 33
0 movimento 14 As quatro raízes 33
Tales de Mileto 15
O amor e o ódio 34
Anaximandro 16
c) Anaxágoras 34
Anaximenes 17
Vida 34
2. O s pitagóricos 17 As homeomerias 35
Pitágoras 17 O “noüs" 36
A escola pitagórica 18 d) Demócrito 36
A matemática 19 Os atomistas 36
3. Parmênides e a escola Os átomos 37
de Eléia 21 Materialismo 37
Xenófanes 21 O conhecimento 37
II A s o f is t ic a e Sócrates 39 .3. Os modos cio ser 73
A analogia do ente 73
1. Os sofistas 39
Os quatro modos 73
Protágoras 41
“Per se” e “per accidens” 73
Górgias 42
Categorias 74
2. Sócrates 42 O verdadeiro e o falso 74
A figura de Sócrates 42 A potência e o ato 75
O saber socrático 43
4. A substância 76
A ética socrática 44
Matéria e forma 77
A transmissão do
O movimento 78
pensamento socrático 45
As causas 79
III. P la t ã o 47 Deus 79
Vida 47 O ente como
Escritos 47 transcendental 80
1. As idéias 48 A essência 81
A descoberta 48 5. A lógica 82
O ser das idéias 51 O “lógos” 82
O conhecimento 52 O conteúdo do “órganon” 83
2. A estrutura da realidade 54 6. A física 85
O mito da caverna 54 A ciência física 85
O esquema dos dois A natureza 85
mundos 55
7. A doutrina da alm a 86
O sentido do mito 56
A essência da alma 86
3. Os problemas da teoria A estética 88
das idéias 56
8. A ética 88
O ser e o ente 56
O bem supremo 88
A comunidade das idéias 58
A felicidade 89
O bem 58
A vida contemplativa 89
O ente como gênero 59
As virtudes 90
4. O homem e a cidade 59
9. A política 90
Doutrina da alma 60
A sociedade 90
Ética 60
A linguagem 91
A cidade 60
Sociedade e Estado 92
5. A filosofia 62 A organização do Estado 92
IV. A r is t ó t e l e s 65 V. O IDEAL DO SÁBIO 95
Vida 65
1. Os moralistas socráticos 98
Obras 67
a) Os cínicos 98
1. Os graus do saber 68 b) Os cirenaicos 99
2. A metafísica 70 2. O estoicismo 100
O ente enquanto tal 70 As etapas do estoicismo 100
Deus 7] A doutrina estóica 100
A substância 72
.3. O epicurismo L04 2. Os universais 143

4. Ceticismo e ecletismo 106 3. A razão 147


VI. O NEOPl ATONISMO 109 III. OS FILÓSOFOS MMDUÍVAIS 151
Plotino 109 1. Scotus Erigena 151
Os filósofos neoplatônicos 111
De Scotus Erigena a
Santo Anselmo 153
O cristianismo
2. Santo Anselmo 154
C r is t i a n i s m o e f i l o s o f i a 115 Personalidade 154
I. A p a t r ís t ic a 117 Fé e razão 155
O argumento ontológico 156
As fontes filosóficas da
patrística 118 3. O século X II 158
Os problemas 118 A escola de Chartres 159
Os gnósticos 119 Abelardo 160
Os apologetas 120 Os vitorinos 161
Justino 120 Hugo de São Vítor 161
Tertuliano 120 Ricardo de São Vítor 162
Os padres gregos 121 As heresias do século XII 163
Clemente de Alexandria 121 4. As filosofias orientais 164
Orígenes 121
a) A filosofia árabe 165
I I. S a n t o A g o s t in h o 123 Seu caráter 165
Os filósofos árabes no
1. A vida e a pessoa 123
Oriente 166
Obras 125
Os filósofos árabes
2. A filosofia 126 espanhóis 167
A formulação do problema 126 b) A filosofia judaica 168
Deus 126
5. O mundo espiritual do
A alma 127
século X III 170
O homem no m undo 128
O surgimento de
3. A significação de Santo Aristóteles 170
Agostinho 130 A fundação das
Universidades 172
Filosofia medieval As ordens mendicantes 172
I. A e s c o l á s t ic a 135 6. São Boaventura 173
1. A época cie transição 135 Personalidade 173
Doutrina 174
2. O caráter da Escolástica 137
Discípulos de São
A forma externa 138 175
Boaventura
Filosofia e teologia 139
7. A filosofia aristotélico-
II. O s GRANDES TEMAS DA
escolástica 176
I d a d e M é d ia 141 177
a) Santo Alberto Magno
l. A criaçao 141 Vida e escritos 177
A obra de Alberto Magno 178 Inglaterra 208
b) Santo Tomás de Aquino 179 Holanda 208
Vida e obras 179 Alemanha 209
A relação com Aristóteles 180
II. O COMEÇO DA FILOSOFIA
Filosofia e teologia 182
MODERNA 211
Divisão da filosofia 183
A metafísica 183 1. Nicolau de Cusa 212
A alma 185 Personalidade 212
A moral 186 Filosofia 212
A acolhida do tomismo 186 2. Giordano Bruno 216
O neotomismo 187 Vida • 216
8. Roger Bacon 188 Doutrina 216
Personalidade 188 3. A física moderna 217
Doutrina 189 Os fundadores da nova
9. A filosofia cristã na ciência da natureza 217
Espanha 189 Nicolau Copérnico 217
Raimundo Lúlio 190 Johannes Kepler 217
Galileu Galilei 218
10. Duns Escoto e Ockham 191
Isaac Newton 218
a) Duns Escoto 192
A natureza 219
Vida e obras 192
O método 219
Filosofia e teologia 192
A metafísica escotista 193 4. A Escolástica espanhola 221
b) Ockham 194 Os teólogos 222
Sua personalidade 194 Suárez 223
A filosofia de Ockham 194
O idealism o d o século
11. Mestre Eckhart 195 X V II 227
12. A últim a fase da 1. D e s c a r t e s 229
filosofia medieval 196 A vida e a pessoa 229
Os ockhamistas 197 Obras 230
O averroísmo 197
A mística especulativa 198 1. O problema cartesiano 231
O século XV 198 A dúvida 231
A teologia 232
Filosofia moderna 2. O homem 233
O R e n a s c im e n to 203 O “cogito” 233
O critério de verdade 234
I. O MUNDO RENASCENTISTA 203
.3. Deus 234
1. O contexto espiritual 203
O “gênio maligno” 234
2. O pensamento humanista 206 A demonstração de Deus 235
Itália 206 A comunicação das
França 207 substâncias 237
lispanha 207 A razão e o ser 237
O problema da substância 238 3. O conhecimento 264
Percepção e aperccpção 264
4. O mundo 240
Verdades de razão e
A “res extensa” 240
verdades de fato 264
Biologia 241
A noção individual 265
5. Racionalismo e idealismo 241 O inalismo 265
li. O CARTESIANISMO NA FRANÇA 243 A lógica 266

1. Malebranche 243 4. Teodicéia 266


Personalidade 243 O otimismo metafísico 266
Obras 244 A liberdade 267
O ocasionalismo 244 Deus na filosofia do
século XVII 268
2. Os pensadores religiosos 246
Os jansenistas 247 O e m p iris m o 269
Pascal 247
I. A FILOSOFIA INGLESA 269
Bossuet 248
Fénelon 249 1. Francis Bacon 270
Vida e escritos 270
III. E s p in o s a 251
Sua doutrina 270
Vida e escritos 251
2. Hobbes 272
1. Metafísica 252
A doutrina do Estado 273
O ponto de partida 252
A substância 252 3. O deísmo 275
Deus 253 A religião natural 275
A comunicação das A moral natural 276
substâncias 253 4. Locke 277
2. Ética 254 Vida e escritos 277
O plano da “Ética” 254 As idéias 277
O homem 254 A moral e o Estado 278

3. O ser como esforço de 5. Berkeley 279


perduração 255 Vida e obras 279
Metafísica de Berkeley 280
IV L e ib n iz 257
Personalidade 257 6. Hume 281
Obras 258 Personalidade 281
Sensualismo 281
1. A situação filosófica de Ceticismo 282
Leibniz 258
7. A escola escocesa 283
2. A metafísica leibnizianc 260
Dinamismo 260 II. O I l u m in is m o 285
As m ô nadas 260 I. O Iluminismo na França 286
A harmonia a) A Enciclopédia 286
preestabelecida 262 Pierre Bayle 286
O papel de Deus 263 Os enciclopedistas 287
C) sensualismo e o O conhecimento
materialismo 287 transcendental 313
Voltaire 288 A razão pura 314
Montesquieu 289
2. A “Crítica da razão pura ” 315
b) Rousseau 290
a) (Js juízos 315
2. A “A ufklärung ” na Juízos analíticos e juízos
Alemanha 291 sintéticos 316
Wolff 291 Juízos “a priori” e “a
A estética 292 posteriori” 316
Lessing 292 b) O espaço e o tempo 317
A transição para o Intuições puras 317
idealismo alemão 292
A matemática 317
3. A doutrina da história c) As categorias 318
em Vico 293 Os juízos e as categorias 318
4. Os iluministas espanhóis 294 A física pura 319
d) A crítica da metafísica
III. A FORMAÇÃO DA ÉPOCA tradicional 320
MODERNA 297
A metafísica 320
1. A filosofia e a história 297 O argumento ontológico 320
2. 0 Estado racionalista As idéias 321
298
0 absolutismo 298 3. A razão prática 322
A diplomacia 298 Natureza e liberdade 322
3. A Reforma 299 O “factum” da moralidade 322
0 livre exame 299 Os objetos da metafísica 323
O problema da Reforma 300 O imperativo categórico 323
A pessoa moral 324
4. A sociedade moderna 301
O primado da razão
a) A vida intelectual 302
prática 324
0 tipo de intelectual 302
Teleologia e estética 325
0 tema da natureza 303
B) O problem a do
A unidade intelectual
da Europa 304 kantism o 325
b) A transformação social 304 1. As interpretações da
As novas classes 304 filosofia kantiana 325
Natureza e graça 305 A metafísica 325
A Revolução Francesa 306 O passado filosófico 326
5. A perda de Deus 307 a) O idealismo alemão 327
b) O neokantismo 327
O id e alism o a le m ã o 311 c) A filosofia atual 328
1. K a n t 311 2. O conhecimento 329
A) A doutrina kantiana 311 3. O ser 330
Vida e escritos de Kant 311
O ser e o ente 330
/. Idealismo transcendental 313 O ser transcendental 332
As lontes de Kant 313 Deus 332
4. A filosofia 334 5. A filosofia do espírito 355
Conceito m undano da O espirito em 1legel 355
filosofia 334 Os estágios do espirito 355
a) 0 espírito subjetivo 356
II. F ic h t e 337
b) O espírito objetivo 357
Personalidade e obras 337
O direito 357
1. A metafísica de Fichte 338 A moralidade 357
Kant e Fichte 338 A eticidade 357
0 eu 339 O Estado 358
A realidade 341 A história universal 358

2. 0 idealismo de Fichte 341 c) O espírito absoluto 359

“Tathandlung” 341 O absoluto e o pensar 360

Intuição e conceito 341 Os estágios do espírito


Idealismo 342 absoluto 360

ü saber 342 V. O PENSAMENTO DA ÉPOCA


ROMÂNTICA 363
III. SCHELLING 343
Vida e obras 343 I. Os movimentos literários 363
As fases da filosofia de
2. A escola histórica 364
Schelling 344
Personalidade filosófica 344 3. Schleiermacher e a
Natureza e espírito 344 filosofia da religião 365
A identidade 345 Personalidade de
A metafísica da liberdade 345 Schleiermacher 365
A religião positiva 346 A religião 365
Teólogos posteriores 365
IV. H e g e l 347
Vida e obras 347 4. Derivações do idealismo 366
Herder 366
1. Esquema da filosofia
Jacobi 366
hegeliana 348
Herbart 367
2. A “Fenomenologia do Krause 368
espírito” 350 Sanz dei Rio 369
0 saber absoluto 350 O socialismo 369
Dialética 350
5. Schopenhauer 372
3. A lógica 350 Personalidade 372
0 sentido da Lógica 350 O m undo como vontade
Os estágios do e representação 373
pensamento hegeliano 351
A marcha da dialética 352 A filosofia no século X IX 375
O problema do panteísmo 353
I. A SUPERAÇÃO DO
A ontologia hegeliana 354
SENSUALISMO 379
4. A filosofia da natureza 354 1. Maine de Biran 380
A natureza 354 Situação filosófica 380
Os estágios 354
Metafísica 380
2. O espiritualismo 381 V. A VOLTA À TRADIÇÃO
Os ecléticos 381 METAFÍSICA 405
Os tradicionalistas 381
1. As primeiras tentativas 406
Balmes 382
Bolzano 406
II. O POSITIVISMO DE COMTE 385 Rosmini e Gioberti 406
Personalidade 385
2. Gratry 408
1. A história 386
A lei dos três estados 386 A filosofia de nosso tem po 411
Relativismo 387 I. B r e n t a n o 411
2. A sociedade 387
I. O lugar de Brentano na
O caráter social do
história da filosofia 411
espírito positivo 387 Personalidade 411
A sociologia 388 A situação filosófica de
A religião da humanidade 388 Brentano 412
3. A ciência 389
2. A psicologia 413
A enciclopédia das Fenômenos físicos e
ciências 389 psíquicos 413
A filosofia 390 O método de Brentano 414
4. O sentido do positivismo 390 Classificação dos
fenômenos psíquicos 414
III. A FILOSOFIA DE INSPIRAÇÃO
A percepção 415
POSITIVISTA 393
3. A ética 416
1. Os pensadores franceses 393
A sanção 416
2. A filosofia inglesa 394 O critério moral 416
“O utilitarismo” 394 Evidência 416
O evolucionismo 395 O amor justo 417
Herbert Spencer 395
4. A existência de Deus 418
3. A época positivista na A significação de Brentano 418
Alemanha 396
II. A IDÉIA DA VIDA 419
O materialismo 396
As tentativas de superação 396 1. Dilthey 419
O neokantismo 397 Personalidade e escritos 419
O ponto de vista de
IV. A DESCOBERTA DA VIDA 399
Dilthey 420
1. Kierkegaard 399 A vida hum ana 422
2. Nieízsche 401 A filosofia 424
Personalidade 401 O sentido da filosofia
diltheyana 425
O dionisíaco e o apolíneo 402
O eterno retorno 402 2. Simmel 426
O super-homem 402 Vida e escritos 426
A moral dos senhores e a A vida como
moral dos escravos 403 transcendência 426
0 tempo 427 Implicação e complicação 454
A essência da vida 428 Juízos analíticos e
sintéticos. 455
3. Bergson 429
Personalidade 429 4. A consciência 455
0 espaço e o tempo 429 Vivência intencional 455
A inteligência e a intuição 430 A redução
O “elã vital” 431 fenomenológica 456
As essências 457
4. Blondel 432
5. A fenomenologia como
5. Unamuno 433
método e como tese
Vida e escritos 433
idecdista 457
0 problema 434 A definição completa 457
0 método 434 O método 458
III. A FILOSOFIA DE LlNGUA O idealismo
in g l e s a 437 fenomenológico 458
1. O pragmatismo 437 6. A filosofia fenomenológica 458
Peirce 438 A filosofia como ciência
James 440 rigorosa 458
Os continuadores do Idéia do m undo e ciência 459
pragmatismo 442 Filosofia transcendental 460
A egologia pura 460
2. 0 personalismo 442
A intersubjetividade
3. Tendências atuais 443 monadológica 462
Santayana 443 Espaço e tempo 462
Alexander 444 Os problemas da filosofia
W hitehead 444 fenomenológica 463
Russell 444 V. A TEORIA DOS VALORES 465
Os movimentos mais
recentes 445 1. O problema do valor 465
O ponto de partida 465
IV. A FENOMENOLOGIA de Objetividade do valor 466
H usserl 449 Valores e bens 467
Flusserl e sua escola 449 Irrealidade do valor 467
I. Os objetos ideais 450 Características do valor 467
0 psicologismo 450 Percepção e cegueira
A fenomenologia 451 para o valor 468
0 ser ideal 452 Ser e valer 468
Problemas do ser ideal 452 2. Scheler 469
2. As significações 453 Personalidade e escritos 469
Palavra, significação e A filosofia de Scheler 470
objeto 453 3. Hartm ann 471
Intenção e preenchimento 453 VI. A FILOSOFIA EXISTENCIAL
3. 0 analítico e o sintético 454 DE H e id e g g e r 473
Todo e parte 454 Personalidade e obras 473
1 .0 problema do ser 475 0 eu e as coisas 498
Ser e tempo 475 A consciência 499
Ser e ente 475 b) As etapas da descoberta 500
0 existir e o ser 476 Eu e circunstância 500
Existir e m undo 476 Perspectivismo 501
A analítica do existir 477 Razão e vida 502
0 método de Heidegger 477
.3. A razão vital 503
A filosofia 477
A realidade radical 503
l. 0 análise do existir 478 Razão vital e razão
A essência do existir 478 histórica 504
0 “estar no m undo” 478 A filosofia 506
0 m undo 479
A coexistência 479 4. A vida humana 508
A existência cotidiana 480 Eu e o m undo 508
A existência autêntica 480 O projeto vital 509
A verdade 480 A moral 510
A morte 482 5. A vida histórica e social 511
A temporalidade 483 A historicidade da vida
>. O “existencialismo” 485 humana 511
Jaspe rs 486 As gerações 511
Buber 487 O homem e a gente 512
Mareei 487 O interindividual e o
Sartre 489 social 513
Os usos 513
I. ORTEGA E SUA FILOSOFIA
Sociedade e dissociação 514
DA RAZÃO VITAL 493
6. A Escola de M adri 515
. A figura de Ortega 493
Morente 516
Vida 493
Zubiri 517
Estilo intelectual 494
Gaos 519
Obras 495
Ferrater 520
. A gênese da filosofia
Apêndice bibliográfico 523
orteguiana 497
a) A crítica do idealismo 497 E pílogo de José Ortega y
Realismo e idealismo 497 Gasset 541
Prólogo à primeira ediçao

É com o maior carinho, querido Manas, que aceito apresentar ao pú­


blico espanhol este livro, destinado a essa juventude de que você ainda faz
praticamente parte. E o carinho sefunde com a profunda satisfação de sen­
tir que as palavras de uma cátedra não caíram totalmente no vazio, e servi­
ram em parte para nutrir uma vida intelectual, que emerge cheia de entu­
siasmo e viço e se afirma pairando acima de todas as vicissitudes a que o
planeta se encontra submetido. Presenciei suas primeiras curiosidades, guiei
seus primeiros passos, endireitei algumas vezes suas sendas. Ao me despedir
de você, já a caminho da maturidade, fi-lo com a paz e o sossego de quem
sente ter cumprido uma parcela da missão que Deus lhe deu neste mundo.
Peço que me desculpe por este orgulho vir envolto nas ondas de terror
que invadem quem tem quinze anos a mais que você. Terror de ver estam­
pados, em alguns lugares, pensamentos que, em seu momento, podem ter
servido numa cátedra ou no diálogo de um seminário, mas que, destituídos
de maturidade, não estavam destinados a um público de leitores. Alguns,
talvez, já não os comparta; você me conhece o suficiente para que isso não
lhe cause estranheza. Estive várias vezes a ponto de deixar correr minha
pena na margem de suas páginas. Detive-me. Decididamente, um livro so­
bre o conjunto da história da filosofia quiçá só possa ser escrito em plena
mocidade, quando o ímpeto propulsor da vida pode mais que a cautela.
Simpático gesto de entusiasmo; em definitivo, é algo inerente à essência do
discipulado intelectual.
Sua obra tem, ademais, raízes que reavivam minhas impressões de
discípulo de um mestre, Ortega, ao magistério de quem também eu devo
muito do que há de menos ruim em meu trabalho.

XVII
H is t ó r ia d a f i l o s o f i a

M(is indo isso são apenas as raízes remotas de seu livro. Resta o livro
n u si; multidão de idéias, a exposição de quase todos os pensadores e tam-
Ih7ii dc algumas épocas são obra pessoal sua. Ao publicá-lo, estou certo de
t/nr pòc em mãos dos recém-ingressados numa Faculdade de Filosofia um
msti umcnto dc trabalho de considerável precisão, que lhes poupará pesqui­
sas difíceis, lhes evitará passos perdidos no vazio e, sobretudo, fará com
tjue se ponham a andar pelo caminho da filosofia. Coisa que para muitos
parecerá ociosa, sobretudo quando, ainda por cima, se dirige o olhar para
0 passado: uma história..., agora que o presente urge, e uma história da fi­
losofia..., de uma suposta ciência, cujo resultado mais evidente é a discor­
dância radical no tocante a seu próprio objeto!

* * *

Contudo, não nos precipitemos.


Ocupar-se da história não é mera curiosidade. Seria se a história fosse
uma mera ciência do passado. Mas:
1° A história não é uma mera ciência.
2° Não se ocupa do passado uma vez que este já não existe.
Não é uma simples ciência, mas existe uma realidade histórica. A his­
toricidade é, com efeito, uma dimensão desse ente real que se chama homem.
E esta sua historicidade não provém exclusiva nem primariamente do
fato de o passado avançar na direção de um presente e empurrá-lo para o
porvir. Esta é uma interpretação positivista da história, absolutamente in­
suficiente. Supõe, com efeito, que o presente é somente algo que passa, e
que passar é não ser o que uma vez foi. A verdade, pelo contrário, consiste
antes em que uma realidade atual - portanto, presente -, o homem, está
constituída parcialmente por uma posse de si mesma, de tal forma que ao
entrar em si se descobre sendo o que é, porque teve um passado e está se
realizando desde um futuro. O “presente” é essa maravilhosa unidade des­
ses três momentos, cuja sucessiva manifestação constitui a trajetória histó-
1i( a: o ponto em que o homem, ser temporal, tangencia paradoxalmente a
eternidade. Sua íntima temporalidade abre precisamente seu olhar para
a eternidade. Com efeito, desde Boécio a definição clássica da eternidade
i nvulve, além da interminabilis vitae, de uma vida interminável, a total si-

XVIII
Pr ó l o g o a p r im k ir a i í d i ç Ao

m ui et perfecta possessio. Reciprocamente, a realidade do homem presen­


te está constituída, entre outras coisas, por esse ponto de tangcncia concre­
to cujo lugar geométrico se chama situação. Ao entrarmos em nos mesmos
nos descobrimos em uma situação que nos pertence consiiiuiivamcme e
na qual se acha inscrito nosso peculiar destino, algumas vezes escolhido,
outras, imposto. E embora a situação não predetermine forçosamente o con­
teúdo de nossa vida nem de seus problemas, circunscreve evidentemente o
âmbito desses problemas e, sobretudo, limita suas possibilidades de solução.
Por isso, a história como ciência é muito mais uma ciência do presente que
uma ciência do passado.
No que concerne à filosofia, isso é mais verdadeiro do que poderia ser
para qualquer outra ocupação intelectual, porque v caráter do conhecimen­
to filosófico faz dele algo constitutivamente problemático. Ziytou|iévr|
maTrj)ir|, o saber que se busca, era como costumava chamá-la Aristóte­
les. Não estranha que aos olhos do leigo este problema tenha uns ares de
discórdia.
No curso da história encontramos três conceitos distintos de filosofia,
que emergem em última instância de três dimensões do homem:
1° A filosofia como um saber sobre as coisas.
2° A filosofia como uma direção para o mundo e para a vida.
3? A filosofia como uma forma de vida e, portanto, como algo que
acontece.
Na verdade, essas três concepções da filosofia, que correspondem a
três concepções distintas da inteligência, conduzem a três formas absoluta­
mente distintas de intelectualidade. Delas o mundo, e às vezes até o pró­
prio pensador, foi se nutrindo sucessiva ou simultaneamente. As três con­
vergem de uma maneira singular na nossa situação e recolocam, de forma
pungente e urgente, o próprio problema da filosofia e da inteligência. Essas
três dimensões da inteligência talvez nos tenham chegado distorcidas pelos
cursos que a história tomou, e a inteligência começou a pagar em si mesma
sua própria deformação. Em sua tentativa de se reformar certamente re­
servará para o futuro formas novas de intelectualidade. Como todas as
precedentes, ainda assim serão defeituosas, ou melhor, limitadas, o que não
as desqualifica, porque o homem é sempre o que é graças a suas limitações,
que lhe permitem escolher o que pode ser. E ao sentirem sua própria limi-

XIX
H is t ó r ia d a f i l o s o f i a

hHiiii. os intelectuais de então voltarão à raiz de onde partiram, tal como


linje ictmcdemos para a raiz de onde partimos. E isto é a história: uma si-
/ i i que implica outra passada como algo real que possibilita nossa pró-
piin situação.
Ocupar-se da história da Jilosojia não é, pois, simples curiosidade,
(■o pivprio movimento a que se vê submetida a inteligência quando em­
preende precisamente a ingente tarefa de pôr-se em marcha desde sua
raiz ultima. Por isso a história da filosofia não i extrínseca à própria f i ­
losofia, como poderia ser a história da mecânica em relação ã mecânica.
A filosofia não é sua história; mas a história da filosofia é filosofia; por­
que a entrada da inteligência em si mesma na situação concreta e radi­
cal em que se encontra instalada é a origem e a colocação em marcha
da filosofia. O problema da filosofia não é outro senão o próprio pro­
blema da inteligência. Com essa afirmação, que no fundo remonta ao
velho Parmênides, começou a existir a filosofia na terra. E por isso Pla­
tão tios dizia que a filosofia é um silencioso diálogo da alm a consigo
mesma em torno do ser.
Contudo, dificilmente o cientista comum conseguirá livrar-se da
idéia de que a filosofia, se não em toda sua amplitude, pelo menos na
medida em que envolve um saber sobre as coisas, se perde nos abismos
de uma discórdia que dissolve sua própria essência.
É inegável que no curso de sua história a filosofia entendeu de.
modos muito diversos sua própria definição como um saber sobre as
coisas. E a primeira aiitude do filósofo deve consistir em não se deixar
levar por duas tendências antagônicas que surgem espontaneamente
num espírito principiante: a de tender para o ceticismo ou a de deci­
dir aderir polemicamente a uma fórm ula, preferindo-a a outras, ten­
tando até mesmo forjar uma nova. Deixemos essas atitudes para ou­
tros. Percorrendo essa rica listagem de definições, é inevitável que se­
jamos invadidos pela impressão de que algo muito grave pulsa sob essa
diversidade. Se forem realmente tão distintas as concepções da filoso­
fia enquanto saber teorético, fica claro que essa diversidade significa
pifcisamente que não só o conteúdo de suas soluções, mas a própria
ideia ile filosofia continua sendo problemática. A diversidade de defi­
na, oes atualiza em nossa mente o p róp rio problem a da filosolia,

XX
Prólogo A p r i m e ir a e d i c a o

como um verdadeiro saber sobre as coisas, li pensai que a existência


de semelhante problema pudesse desqualificar o saber leorétko é con­
denar-se para todo o sempre a não entrar nem sequer no saguão da fi­
losofia. No fundo, os problemas da filosofia nada mais são senão o pro­
blema da Jãosofia.
Mas talvez a questão ressurja com nova angústia ao tentar pre­
cisar a índole desse saber teorético. Não é uma questão nova. Faz m ui­
to tempo, há séculos, a mesma pergunta vem sendo form ulada de diver­
sas maneiras: tem a filosofia um caráter científico? No entanto, essa
maneira de apresentar o problema não é indiferente. De acordo com
ela, o '‘saber das coisas” adquire sua expressão plena e exemplar no
que se chama “saber científico”. E esse pressuposto foi decisivo para o
destino da idéia de filosofia nos tempos modernos.
De fato, sob diversas formas observou-se reiteradas vezes que a filo­
sofia está muito longe de ser uma ciência; que na melhor das hipóteses não
passa de uma pretensão a ciência. E isso, quer conduza a um ceticismo em
relação à filosofia, quer conduza a um máximo otimismo em relação a ela,
como acontece precisamente em Hegel, quando, nas primeiras páginas da
Fenomenologia do espírito, afirma rotundamente que se propõe “colabo­
rar para que a filosofia se aproxime da forma da ciência..., mostrar que
chegou o tempo de elevar a filosofia à categoria de c iê n c ia e quando mais
tarde repete resolutamente que. é preciso que a filosofia deixe de uma vez
por todas de ser um simples amor ã sabedoria para se tornar uma sabedo­
ria efetiva. (Para Hegel, “ciência” não significa uma ciência no mesmo sen­
tido que as demais.)
Com propósito diverso, mas com não menos energia, nas primeiras li­
nhas do prólogo à segunda edição da Crítica da razão pura, Kant começa
dizendo o seguinte: “Se a elaboração dos conhecimentos... segue ou não o
caminho seguro dt uma ciência, é algo que logo se deixa julgar pelos resul­
tados. Quando após muito preparar-se e equipar-se esta elaboração cai em
dificuldades tão logo se acerca do seu fim ou se, para alcançá-lo, precisa
freqüentemente voltar atrás e tomar um outro caminho; quando se torna
igualmente impossível aos diversos colaboradores pôr-se de acordo sobre
a maneira como o objetivo comum deve ser perseguido, então se pode estar
sempre convicto de que um tal estudo se acha ainda bem longe de ter toma-

XXI
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

iln o (iiminho seguro de uma ciência, constituindo-se antes num simples ta-
lr<n " !■diferentemente do que acontece precisamente na lógica, na mate-
nniin a, na física etc., a metafísica “não teve até agora um destino tãofavo-
ittvcl que lhe permitisse encetar o caminho seguro da ciência, apesar de ser
mais antiga que todas as demais”.
Faz um quarto de século que Husserl publicou um vibrante estudo na
revista Logos, intitulado “A filosofia como ciência estrita e rigorosa”. Nele,
depois de mostrar que seria um contra-senso discutir, por exemplo, um
problema de física ou de matemática fazendo entrar em jogo os pontos de
vista de seu autor, suas opiniões, suas preferências ou seu entendimento do
mundo e da vida, defende vigorosamente a necessidade de também fazer
da filosojia uma ciência de evidências apodícticas e absoluta. Em última
instância, nada mais faz senão referir-se à obra de Descartes.
Descartes, com grande cautela, mas no fundo afirmando o mesmo,
começa seus Princípios de filosofia com as seguintes palavras: “Como nas­
cemos em estado de injãncia e emitimos muitos juízos a respeito das coisas
sensíveis antes de possuir o uso integro de nossa razão, somos desviados,
por muitos preconceitos, do conhecimento da verdade e acreditamos não
ser possível livrar-se deles a não ser tentando pôr em dúvida, pelo menos
uma vez na vida, tudo aquilo em que encontremos o menor indício de in­
certeza.”
Desta exposição da questão deduzem-se algumas observações im­
portantes.
I a Descartes, Kant, Husserl comparam a filosofia e as demais ciências
do ponto de vista do tipo de conhecimento que proporcionam: possui ou
não possui a filosofia um tipo de evidência apodíctica comparável ao da
matemática ou ao da física teórica?
2a Essa comparação incide depois sobre o método que conduz a tais
evidências: possui ou não a filosofia um método que conduza com seguran­
ça, por necessidade interna e não só por acaso, a evidências análogas às
que obtêm as demais ciências?
3a Isso conduz finalmente a um critério: na medida em que afiloso-
/iti não possuí esse tipo de conhecimento e esse método seguro das demais
i inicias, seu defeito se transforma numa objeção ao caráter científico da f i­
losofia.

XXII
Prólogo A p r im e ir a e d i ç à o

Pois bem: diante dessa colocação da questão devemos afirmar energi­


camente:
I o Que a diferença que Husserl, Kanl, Descartes assinalam entre a
ciência e a filosofia, embora seja muito profunda, não ê, em definitivo, su­
ficientemente radical.
2o Que a diferença entre a ciência e a filosofia não é uma objeção ao
caráter da filosofia como um saber estrito sobre as coisas.
Porque, afinal, a objeção ã filosofia procede de uma certa concepção
da ciência que, sem prévia discussão, se pretende aplicar univocamente a
todo saber estrito e rigoroso.
1. A diferença radical que separa a filosofia das ciências não procede
do estado do conhecimento científico efilosófico. Escutando Kant, pare­
ceria que a única questão é que, no que se refere a seu objeto, a filosofia, di­
ferentemente da ciência, ainda não conseguiu dar nenhum passo firme que
nos leve a seu objeto. E dizemos que essa diferença não é bastante radical
porque, ingenuamente, pressupõe-se nela que o objeto da filosofia está aí,
no mundo, e que a única coisa afazer é encontrar o caminho seguro que
nos leve a ele.
A situação seria muito mais grave caso se constatasse que o proble­
mático é o próprio objeto da filosofia: existe o objeto dajilosofia? É isso
o que separa radicalmente a filosofia de todas as outras ciências. Se, por
um lado, estas partem da posse de seu objeto e simplesmente procuram
estudá-lo, a filosofia, por sua vez, tem de começar por justificar ati­
vamente a existência de seu objeto; sua posse é o término e não o pres­
suposto de seu estudo, e ela só pode se manter reivindicando cons­
tantemente sua existência. Quando Aristóteles a chamava Çr|xou[iévT|
ejnoxrjuri, entendia que o que se buscava não era tanto o método mas
o próprio objeto da filosofia.
Que significa que a própria existência de seu objeto ê problemática?
Se apenas se ignorasse qual é o objeto da filosofia, o problema, embo­
ra grave, seria no fundo simples. Seria questão de dizer ou bem que a hu­
manidade não conseguiu ainda descobrir esse objeto, ou que este é suficien­
temente complicado para que sua apreensão resulte obscura. Na verdade,
foi o que aconteceu durante milênios com todas as ciências, e por isso seus
objetos não foram descobertos simultaneamente na história: por isso, algu-

XXIII
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

íiiíi.s ciências nasceram depois de outras. Ou então, caso se constatasse que


esse objeto é complicado demais, seria questão de tentar mostrá-lo apenas
para as mentes que tivessem alcançado maturidade suficiente. Tal seria a
dificuldade de quem pretendesse explicar a um aluno de matemática de
uma escola primária o objeto próprio da geometria diferencial. Em qual­
quer desses casos, e considerando-se todas as vicissitudes históricas ou difi­
culdades didáticas, tratar-se-ia simplesmente de um problema dêictico, de
um esforço coleLivo ou individual para indicar (dèixis) qual é esse objeto
que anda perdido por aí entre 05 demais objetos do mundo.
Tudo leva a crer que não se trata disso.
O caráter problemático do objeto da filosofia não decorre apenas do
fato de que efetivamente não se tenha reparado nele, mas do fato de que,
diferentemente de qualquer outro objeto possível, entendendo aqui por ob­
jeto 0 termo real ou ideal sobre 0 qual versa não só uma ciência, mas qual­
quer outra atividade humana, ele é constitutivamente latente. Nesse caso é
claro que:
I o Este objeto latente não é de maneira nenhuma comparável a qual­
quer outro objeto. Portanto, tudo 0 que se queira dizer sobre 0 objeto da f i­
losofia terá de se mover m m plano de considerações radicalmente alheio
ao de todas as demais ciências. Se toda ciência versa sobre um objeto real,
fictício ou ideal, 0 objeto da filosofia não é nem real, nem fictício, nem ideal:
é outra coisa, tão outra que não é coisa.
2° Compreende-se então que esse objeto peculiar não pode estar sepa­
rado de nenhum outro objeto real, fictício ou ideal, mas incluído em todos
eles, sem se identificar com nenhum. É isso que queremos dizer ao afirmar
que ele é constitutivamente latente: latente sob todo objeto. Como 0 homem
se encontra constitutivamente voltado para os objetos reais, fictícios ou
ideais, com os quais constrói sua vida e elabora suas ciências, esse objeto
constitutivamente latente é também, por sua própria índole, essencialmen­
te fugidio.
.3° Aquilo de que esse objeto escapa é precisamente do olhar simples
da mente. Diferentemente, pois, do que pretendia Descartes, 0 objeto da f i­
losofia jamais pode ser descoberto formalmente por uma simplex mentis
inspectio. Depois de ter apreendido os objetos sob os quais pulsa, é neces­
sário um novo ato mental que opere sobre 0 anterior para colocar 0 objeto

XXIV
Prólogo à p r im e ir a e d i ç à o

numa nova dimensão que torne, não transparente, mas visível essa outra
dimensão sua. O ato com que o objeto da filosofia se torna patente não é
uma apreensao, nem uma intuição, mas uma reflexão. Uma reflexão que
não descobre, portanto, um novo objeto, seja ele qual for. Não é um ato que
enriqueça nosso conhecimento sobre o que as coisas são. Não se deve espe­
rar da filosofia que nos conte, por exemplo, a respeito de forças físicas, or­
ganismos ou triângulos, algo que seja inacessível para a matemática, a físi­
ca ou a biologia. Enriquece-nos meramente por nos conduzir a outro tipo
de consideração.
Para evitar equívocos, convém observar que a palavra reflexão í em­
pregada aqui em seu sentido mais inocente e vulgar; um ato ou uma série
de atos que de uma forma ou outra retornam para o objeto de um ato an­
terior através deste. Reflexão não significa aqui simplesmente um ato de
meditação, nem um ato de introspecção, como quando sefala de consciên­
cia reflexa por oposição ã consciência direta. A reflexão em questão consis­
te numa série de atos por meio dos quais se coloca numa nova perspectiva
todo o mundo de nossa vida, incluindo os objetos e todos os conhecimentos
científicos que tenhamos adquirido sobre eles.
Observe-se em segundo lugar que o fato de a reflexão e o que ela nos
revela serem irredutíveis à atitude natural e ao que ela nos revela não sig­
nifica que espontaneamente, m m ou noutro grau, numa ou noutra medi­
da, ela não seja tão primitiva e ingênita como a atitude natural.
II. Conclui-se, portanto, que essa diferença radical entre ciência e f i­
losofia não se volta contra esta última como uma objeção. Não significa que
a filosofia não seja um saber estrito, mas que é um saber distinto. Se a ciên­
cia é um conhecimento que estuda um objeto que está aí, a filosofia, por
tratar de um objeto que por sua própria índole escapa, um objeto que é
evanescente, será um conhecimento que precisa perseguir seu objeto e
retê-lo ante o olhar humano, conquistá-lo. A filosofia consiste apenas na
constituição ativa de seu próprio objeto, na colocação em funcionamento
da reflexão. O grave erro de Hegelfoí no sentido inverso do kantiano. Este,
em última instância, destitui a filosofia de um objeto próprio fazendo com
que ela incida tão-somente sobre nosso modo de conhecimento. Hegel, por
sua vez, substantiva o objeto da filosofia fazendo dele o todo de onde emer­
gem dialeticamente e onde se mantêm, também dialeticamente, todos os
demais objetos.

XXV
H is t ó r ia d a f i l o s o f i a

Por enquanto não é necessário precisar o caráter mais profundo do ob­


jeto da filosofia e de seu método formal. A única coisa que me importa aqui
é sublinhar; contra todo irracionalismo, que o objeto da filosofia é estrita­
mente objeto de conhecimento. Mas que este objeto é radicalmente distinto
de todos os demais. Se qualquer ciência e qualquer atividade humana con­
sidera as coisas como são e tal como são (coç eoriv), a filosofia considera as
coisas enquanto são (ríecrav), (Arist.: Metaf., 1064 a 3). Em outras pala­
vras, o objeto da filosofia ê transcendental. E, como tal, apenas acessível
numa reflexão. O “escândalo da ciência” não só não é uma objeção ã filo­
sofia a ser resolvida, como é uma dimensão positiva a ser conservada. Por
isso Hegel dizia que a filosofia é o mundo ao revés. A explicação desse es­
cândalo é precisamente o problema, o conteúdo e o destino da filosofia. Por
isso, embora o que Kant dizia não fosse correto - “não se aprende filosofia,
só se aprende a filosofar” é absolutamente certo que só se aprende filo­
sofia pondo-se a filosofar.

* * *

E você está começando a filosofar. Ou seja, começará a se debater


com todo tipo de razões e problemas. Permita-me que no umbral dessa
vida que promete ser tão fértil, eu lhe traga ã memória aquela passagem de
Platão em que ele prescreveformalmente a yu^vaaícc do entendimento: “É
belo e divino o ímpeto ardente que te lança às razões das coisas; mas exer­
cita-te e adestra-te nesses exercícios que aparentemente não servem para
nada, e que o vulgo chama de palavrório sutil, enquanto ainda és jovem;
caso contrário, a verdade te escapará das mãos” (Parm., 135 d). Não é ta­
refa nem fácil nem grata. Não é fácil; aí está a sua HISTÓRIA DA FILO ­
SOFIA para demonstrá-lo. Não é grata porque envolve, hoje mais que
nunca, uma violência e uma retorsão íntimas para entregar-se ã verdade:
“A verdade está tão ofuscada nestes tempos - dizia Pascal sobre o seu
tempo - e a mentira está tão assentada, que, a menos que se ame a ver­
dade, já não é possível reconhecê-la” (Pensam., 864). É porque, como
dizia São Paulo sobre sua época, “os homens retêm a verdade agrilhoada”
(Rm 1,19). O pecado contra a Verdade foi sempre o grande drama da his­
tória. Por isso Cristo pedia a seus discípulos: “Consagra-os na verdade”

XXVI
Prólogo A p r i m e ir a e d i ç Ao

Qo 17,17). E São João exortava seus fieis a serem "colaboradores da ver­


dade” (3Jo 8).
Unido neste empenho comum, abraça-o efusivamente seu velho amigo.

X. Z ubiri
Barcelona, 3 de dezembro de 1940.

XXVII
Reflexão sobre um livro próprio
(Prólogo à tradução inglesa)

Debruço os olhos sobre este livro de título genérico, História da filo­


sofia, vinte e quatro anos depois de ter terminado de escrevê-lo, agora que
vai ser lançado em Nova York traduzido para o inglês, como se olha para
um filho já crescido que vai empreender uma longa viagem. Foi meu pri­
meiro livro; também o de melhor fortuna editorial: desde que foi publicado
pela primeira vez em Madri, em janeiro de 1941, teve vinte edições espa­
nholas; é o livro em que estudaram a história da filosofia numerosas tur­
mas de espanhóis e hispano-americanos; em 1963 foi traduzido para o
português; agora ingressa no mundo de língua inglesa. Não é estranho que
um livro espanhol defilosofia tenha tido tanta sorte? Como, apesar do enor­
me prestígio que na época a filosofia alemã tinha na Espanha e na América
hispânica, pode este livro de um desconhecido espanhol de 26 anos so­
brepujar quase por completo as obras alemãs que tinham dominado o mer­
cado e as universidades de língua espanhola? E como isso foi possível tra­
tando-se de um livro que invocava desde sua primeira página a tradição
intelectual de 1931 a 1936, que acabava de ser proscrita e condenada ao
ostracismo e ao esquecimento?
Quem sabe isso se explique voltando às raízes desta História da filo­
sofia. Eu estudara na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de
Madri de 1931 a 1936. 0 esplendor que o ensino dessa Faculdade alcan­
çou era tão superior a tudo o que precedera e, afora isso, durou tão pouco,
que hoje mal parece crível. O departamento de filosofia, sobretudo, tinha
adquirido um brilhantismo e um rigor desconhecidos na Espanha antes e
depois daquele período. Inspirava-o e o animava um dos maiores criadores
da filosofia de nosso tempo, que era ao mesmo tempo um professor excep­
cional: Ortega. Para ele, a filosofia era assunto pessoal; era sua própria vida.

XXIX
H i s t ó r ia d a f il o s o f ia

Os estudantes de Madri assistiam então ao espetáculo fascinante e impro­


vável de uma filosofia sendo feita diante deles. Aqueles anos eram os últi­
mos de uma das etapas mais brilhantes efecundas do pensamento europeu,
entre Ilusserl e Heidegger, de Dilthey a Scheler, de Bergson a Unamuno.
Sentia-se que a filosofia estava descobrindo novas possibilidades, que era
um tempo germinal. (Acho que foi efetivamente assim, e que o fato de hoje
seu horizonte parecer menos promissor não se deve a que essas possibili­
dades não fossem reais e não continuem existindo, mas a certos desalentos,
descuidos e paixões nefastas que vez por outra acometem o homem em
algumas épocas.) Havia um ambiente auroreal na Faculdade de Filosofia
de Madri, corroborado pela evidência de se estar vendo erguer-se, como um
galeão num estaleiro, uma nova filosofia de grande porte.
A imagem do estaleiro não é inadequada, porque aquela Faculdade
começava a ser uma escola. Além de Ortega, lecionavam nela Manuel Gar­
cia Morente, Xavier Zubirijosé Gaos, todos discípulos seus, e cada qual de
todos os outros mais velhos, colaboradores então na mesma empresa co­
mum. Podia-se pensar.; sem extremar demais a esperança, que talvez um
dia o principal meridiano da filosofia européia fosse passar, pela primeira
vez na história, por Madri.
A Faculdade de Filosofia estava persuadida de que a filosofia é insepa­
rável de sua história; de que consiste naquilo que os filósofos do passado f i­
zeram e que chega até a atualidade; em outras palavras, de que a filosofia é
histórica e a história da filosofia éfilosofia estrita: a interpretação criadora
do passado filosófico desde uma filosofia plenamente atual. Por isso voltava-
se para os clássicos do pensamento ocidental sem distinção de épocas: liam-se
- quase sempre em suas línguas originais estudavam-se, comentavam-se
gregos, medievais, modernos, dos pré-socrãticos aos contemporâneos, tudo
isso sem qualquer sinal de ‘'nacionalismo” nem “provincianismo”; a Espa­
nha, que entre 1650 e 1900 permanecera isolada da Europa em muitas di­
mensões - embora não tanto como às vezes se pensa - tinha chegado a ser
um dos países em que se tinha uma visão menos parcial do horizonte efetivo
da cultura; e o pensamento espanhol - filosoficamente muito modesto até
o presente - não era objeto de nenhum trato privilegiado.
Em todos os cursos estudavam-se os clássicos. Não só Zubiri, em seu
curso de História da Filosofia, introduzia-nos nos pré-socráticos e em Aris­

XXX
R eflexão s o b r e u m l iv r o p r ó p r i o

tóteles, em Santo Agostinho e Ockham, em Hegel e Schclling e Schleierma-


cher, em Leibniz e nos estóicos; também Morente, em sua cátedra de Êlica,
expunha a de Aristóteles, a de Espinosa, a de Kant, a de Mi!!, a de Brenta-
no; os cursos de Lógica e Estética de Gaos nos levavam a Platão, a Huaserl;
Ortega, em sua cátedra de Metafísica, comentava Descartes, Dilthey, Berg-
son, os sociólogos franceses, ingleses e alemães.
Foi esse o ambiente em que me formei, eram esses os pressupostos de
minha visão da filosofia; foram essas, em suma, as raízes intelectuais des­
te livro. Mas não creio que isso baste para explicar, primeiro, que eu tivesse
feito o que nem meus professores nem meus companheiros de Universidade
fizeram: escrever uma História da filosofia; e segundo, que se transfor­
masse no livro por meio do qual, durante um quarto de século, se iniciaram
nessa disciplina pessoas de língua espanhola. Para explicar isto é preciso
lembrar o que poderíamos chamar as raízes pessoais que tornaram esse
projeto possível.

* * *

Naquela admirável Faculdade eram ministrados cursos monográficos


penetrantes e iluminadores sobre temas concretos, mas não havia nenhum
curso geral de História da Filosofia, o que em inglês se chama survey, nem
sequer se estudava em seu conjunto uma grande época. E todos os estudan­
tes, de qualquer especialização, tinham de prestar um exame - chamava-
se então “exame intermediário”-, que versava sobre a totalidade da histó­
ria da filosofia e seus grandes temas. Não é preciso dizer que aquele exame
era objeto de preocupação geral, em particular para os que só tinham rece­
bido cursos de introdução áfilosofia e se viam obrigados a preparar-se para
ele com extensos e difíceis livros, quase sempre estrangeiros e nem sempre
muito claros.
Um grupo de moças estudantes, de dezoito a vinte anos, colegas mi­
nhas, amigas muito próximas, me pediram que as ajudasse a se preparar
para aquele exame. Era outubro de 1933; tinha eu dezenove anos e eslava
no terceiro ano de meus estudos universitários - era o que se chama nos Es­
tados Unidos um “junior” mas freqüentara os cursos de meus professores
e lera vorazmente não poucos livros de filosofia. Organizou-se um curso

XXXI
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

privadíssimo, numa das salas de aula da Residência de Senhoritas, dirigida


por Mana de Maeztu. O grupo se reunia quando podia, com freqüência aos
domingos, duas ou três horas pela manhã. As moças obtiveram considerá­
vel êxito nos exames, para grande surpresa dos professores; no ano seguinte,
algumas outras, que estavam com o mesmo exame pendente, me pediram
que organizasse novamente o curso; as mais interessadas eram, no entanto,
as que já haviam sido aprovadas e queriam continuar assistindo àquelas
aulas de filosofia. No fim de cada um dos cursos, quiseram expressar sua
gratidão com um presente: Sein und Zeit de Heidegger e Ethik de Nicolai
Hartmann em 1934; dois volumes de Gesammelte Schriften de Dilthey
em 1935. Conservo os quatro livros, com as assinaturas delas; conservo
também uma lembrança indestrutível daqueles cursos, e uma gratidão de
que aquelas moças nem podiam suspeitar; guardo também a amizade de
quase todas elas. No ano seguinte, durante o ano letivo de 1935-36, Maria
de Maeztu me encarregou formalmente de um curso de filosofia para as re­
sidentes; eis como me vi, aos três anos de undergraduate -formei-me em
Filosofia em junho de 1936, um mês antes da guerra civil transformado
em professor universitário.
Aqueles cursos de filosofia eram únicos em muitos sentidos, mas so­
bretudo em um: meus alunos eram meus colegas de Universidade, minhas
amigas, moças da minha idade, o que significa que não tinham nenhum
respeito por mim. Essa experiência do que poderíamos chamar de “docên­
cia irrespeitosa”foi inestimável para mim. Aquelas garotas não aceitavam
nada in verba magistri; o argumento de autoridade não existia para elas.
Na Faculdade predominava um apreço ilimitado pela clareza e pela inteli­
gibilidade. Ortega costumava citar com freqüência os versos de Goethe:

“Ich bekenne mich zu dem Geschlecht,


das aus dem Dunkel ins Helle strebt. ”
que traduzia:
Eu me conjesso da linhagem daqueles
que do obscuro ao claro aspiram.

E repetia reiteradas vezes que “a cortesia do filósofo é a clareza". Não


havia nenhuma complacência no que. o próprio Ortega uma vez chamara

XXXII
R e f l e x A o SOBRE UM I.IVRO p r ó p r io

“a luxúria da mental obscuridade”. Com isso quero dizer que minhas alu­
nas pretendiam entender tudo o que eu lhes ensinava, e que era nada menos
que a totalidade da história da filosofia do Ocidente; pediam-me que aclarasse
tudo, justificasse tudo; mostrasse por que cada filósofo pensava o que pen­
sava, e por que aquilo era coerente, e se não o era, por quê. Mas isso signi-
ficava que eu tinha de entendê-lo, se não previamente, pelo menos durante
a aula. Nunca tive de me esforçar tanto, nem com tantos frutos, como ante
aquele auditório de catorze ou dezesseis moças florescentes, risonhas, às ve­
zes zombeteiras, de mente tão fresca quanto a pele, aficionadas por discutir,
com afã de ver claro, inexoráveis. Ninguém, nem sequer meus mestres, me
ensinaram tanta filosofia. A rigor, deveria dividir com elas os direitos auto­
rais ou royalties de meus livros.

* 'M

A bem da verdade, divido-os com uma delas. Ao fim da guerra civil,


em 1939, as possibilidades abertas para um homem como eu, que tinha
permanecido e estava decidido a continuar fiel ao espírito daquela Univer­
sidade e ao que ele representava na vida nacional, eram extremamente re­
duzidas e problemáticas. Não se podia nem pensar em docência nas Uni­
versidades espanholas, ou mesmo em colaborar em revistas e periódicos.
Tive de empreender trabalhos de insólita magnitude, porque os menores
eram impossíveis. É uma das tantas ironias do destino. Uma das moças que
freqüentaram meus cursos, que dois anos depois veio a se tornar minha mu­
lher, me animou a escrever uma História da filosofia. Quando lhe fiz ver
as enormes dificuldades da empresa, ofereceu-me uma considerável pilha
de cadernos: eram suas anotações, admiráveis, claras, fidedignas anota­
ções de meus cursos informais. Pus-me a trabalhar sobre elas: foram o pri­
meiro rascunho deste livro. Havia muito a completar; rever tudo, buscar
uma expressão escrita e não oral para o que ali estava dito. Em suma, era
preciso escrever um livro que o fosse verdadeiramente. Ao cabo de um tem­
po invadiu-me o desânimo; eu me refiz, voltei ao trabalho. Em dezembro de
1940 escrevi a última página. Ainda tive tempo, ao corrigir as provas, de
incluir a morte de Bergson, ocorrida nos primeiros dias de janeiro de 1941.
Devo dizer que Ortega, consultado por seu filho sobre a possibilidade de

XXXIII
H is t ó r ia d a f i l o s o f i a

publicar este livro, que representava em todos os sentidos um risco conside­


rável, sem lê-lo respondeu afirmativamente desde seu desterro em Buenos
Aires, e a REVISTA DE OCCIDENTE, a editora de maior prestígio na Es­
panha, publicou o livro de um autor de quem o melhor que se podia espe­
rar é que não se soubesse quem era. Zubiri, que fora durante quatro anos
meu professor de história da filosofia, que me ensinara um sem-número de
coisas, escreveu, desde sua cátedra - então em Barcelona um prólogo para
ele. Em 17 de janeiro dediquei seu primeiro exemplar àquela moça cujo
nome era Lolita Franco e que poucos meses depois levaria o meu.
Contei esses detalhes de como este livro chegou a ser escrito porque a
meu ver são eles que explicam sua excepcional ventura: seus leitores tive­
ram dele a mesma impressão das minhas primeiras alunas: a inteligibilida­
de das doutrinas filosóficas, a história dos esforços do homem ocidental por
esclarecer o mais profundo da realidade, uma história em que até o erro
encontra sua explicação e se torna inteligível e, nessa medida, justificado.
Uma das idéias centrais de Ortega, que atravessava os ensinamentos
filosóficos em Madri durante meus anos de estudante, é a razão histórica;
inspirado por esse princípio, este livro leva em conta a situação total de cada
um dos filósofos, já que as idéias não vêm apenas de outras idéias, mas da
integralidade do mundo em que cada um tem defilosofar. Por isso uma his­
tória da filosofia só pode ser elaborada filosoficamente reconstituindo toda
a série das filosofias do passado a partir de uma filosofia presente capaz de
fornecer a razão delas - sem excluí-las como erros superados, mas incluin­
do-as como suas próprias raízes.
Muitos anos se passaram desde 1941, e este livro foi sendo ampliado,
atualizado, polido e se tornando mais rigoroso no decorrer de suas sucessi­
vas edições; mas é o mesmo que nasceu ante um punhado de moças, numa
das experiências mais puras e intensas do que é a comunicação filosófica.

Madri, janeiro de 1965.

XXXIV
História da
Filosofia
j
Introdução

Filosofia • Por filosofia entenderam-se principalmente duas coi­


sas: uma ciência e u m modo de vida. A palavra filósofo contém em si
duas significações distintas: o homem que possui certo saber e o ho­
m em que vive e se comporta de um modo peculiar. Filosofia como
ciência e filosofia como m odo de vida são duas maneiras de entendê-
la que se alternaram e às vezes até conviveram. Desde seus primór­
dios, na filosofia grega, sempre se falou de uma certa vida teórica, e ao
mesmo tempo tudo era saber, especulação. É necessário compreender
a filosofia de modo tal que na idéia que dela se tenha caibam, simulta­
neamente, as duas coisas. Ambas são, afinal, verdadeiras, uma vez que
constituíram a própria realidade filosófica. E a plenitude cle seu senti­
do e a razão dessa dualidade só poderão ser encontradas na visão total
dessa realidade filosófica; ou seja, na história da filosofia.
Existe uma indubitável implicação entre os dois modos de enten­
der a filosofia. O problema de sua articulação é, em grande medida, o
próprio problema filosófico. Pode-se, no entanto, compreender que am ­
bas as dimensões são inseparáveis, e de fato nunca existiram totalmen­
te desvinculadas. A filosofia é um modo de vida, um modo essencial que,
justamente, consiste em viver numa certa ciência e, portanto, a postula e a
exige. Ê portanto uma ciência que determina o sentido da vida filosófica.
Pois bem: que tipo de ciência? Qual a índole do saber filosófico?
As ciências particulares - a matemática, a física, a história - nos pro­
porcionam uma certeza a respeito de algumas coisas, uma certeza parcial,
que não exclui a dúvida além de seus próprios objetos; por outro lado,
as diversas certezas desses saberes particulares entram em colisão e

3
H is t o r ia d a f i l o s o f i a

reclamam uma instância superior que decida entre elas. 0 homem ne­
cessita, para saber com rigor a que se ater, de uma certeza radical e u n i­
versal, a partir da qual possa viver e ordenar numa perspectiva hierár­
quica as outras certezas parciais.
A religião, a arte e a filosofia dão ao homem uma convicção total
sobre o sentido da realidade como um todo; mas não sem diferenças
essenciais. A religião é uma certeza recebida pelo homem, dada por
Deus gratuitamente: revelada; o homem não alcança por si mesmo essa
certeza, não a conquista nem é obra sua, muito pelo contrário. A arte
significa também uma certa convicção que o homem tem e desde a qual
interpreta a totalidade de sua vida; mas essa crença, de origem certa­
mente humana, não se justifica a si mesma, não pode dar razão de si;
não tem evidência própria, e é, em suma, irresponsável. A filosofia, pelo
contrário, é uma certeza radical universal que é, ademais, autônoma;
isto é, a filosofia se justifica a si mesma, mostra e prova constantemente
sua verdade, nutre-se exclusivamente de evidências; o filósofo está sem­
pre renovando as razões de sua certeza (Ortega).
A idéia de filosofia • Convém deter a atenção um instante em
alguns pontos culminantes da história para ver como se articularam
as interpretações da filosofia como um saber e como uma forma de
vida. Em Aristóteles, a filosofia é uma ciência rigorosa, a sabedoria ou
saber por excelência: a ciência das coisas enquanto são. Contudo, ao
falar dos modos de vida inclui entre eles, como forma exemplar, uma
vida teorética que é justamente a vida do filósofo. Depois de Aristóte­
les, nas escolas estóicas, epicuristas etc., que pululam na Grécia des­
de a morte de Alexandre, e logo em todo o Império Romano, a filoso­
fia se esvazia de conteúdo científico e vai se transformando cada vez
mais num m odo de vida, o do sábio sereno e imperturbável, que é o
ideal humano da época.
Já no cristianismo, para Santo Agostinho trata-se da contraposi­
ção, ainda mais profunda, entre uma viía theoretica e uma vita beata. E
alguns séculos mais tarde, Santo Tomás se moverá entre uma scientia
theologica e um a scientia philosophica; a dualidade passou da esfera da
própria vida para a dos diversos modos de ciência.
Em Descartes, ao começar a época moderna, não se trata mais de
uma ciência ou, pelo menos, simplesmente disso; talvez, de uma ciên­

4
In t r o d u ç ã o

cia para a vida. Trata-se de viver, de viver de certo modo, sabendo o


que se faz e, sobretudo, o que se deve fazer. Assim, a filosofia aparece
como um modo de vida que postula uma ciência. Mas ao mesmo tem­
po se acumulam sobre esta ciência as máximas exigências de rigor in­
telectual e de certeza absoluta.
A história não termina aqui. No momento de maturidade da Eu­
ropa moderna, Kant nos falará, em sua Lógica e no final da Critica da
razão pura, de um conceito escolar e um conceito mundano da filosofia.
A filosofia, segundo seu conceito escolar, é u m sistema de iodos os co­
nhecimentos filosóficos. Mas em seu sentido mundano, que é o mais pro­
fundo e radical, a filosofia é a ciência da relação de todo conhecimen­
to com os fins essenciais da razão humana. O filósofo não é mais um
artífice da razão, mas o legislador da razão humana; e nesse sentido —
diz Kant - é deveras orgulhoso chamar-se filósofo. O fim último é o
destino moral; o conceito de pessoa moral é, portanto, a culminação da
metafísica kantiana. A filosofia em sentido m undano - um modo de
vida essencial do homem - é a que dá sentido à filosofia como ciência.
Por último, em nosso tempo, enquanto Husserl insiste uma vez
mais em apresentar a filosofia como ciência estrita e rigorosa, e Dilthey
a vincula essencialmente à vida humana e à história, a xléia de razão
vital (Ortega) recoloca cle m odo radical o próprio núcleo cla questão,
estabelecendo uma relação intrínseca e necessária entre o saber racio­
nal e a própria vida.
Origem da filosofia • Por que o homem se põe a filosofar? Pou­
cas foram as vezes em que esta questão foi formulada de modo sufi­
ciente. Aristóteles a abordou de tal maneira que exerceu uma influên­
cia decisiva sobre todo o processo ulterior da filosofia. O início de sua
Metafísica é uma resposta a essa pergunta: Todos os homens tendem por
natureza a saber. A razão do desejo de conhecer do homem é, para
Aristóteles, nada menos que sua natureza. E a natureza é a substância
de um a coisa, aquilo em que realmente consiste; portanto, o homem
aparece definido pelo saber; é sua própria essência que move o h o ­
mem a conhecer. E aqui voltamos a encontrar uma implicação mais
clara entre saber e vida, cujo sentido irá se tornando mais diáfano e
transparente ao longo deste livro. Mas Aristóteles diz algo mais. Um

5
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

pouco mais adiante escreve: Pelo assombro começaram os homens, ago­


ra e num princípio, a filosofar, assombrando-se primeiro com as coisas es-
tranhas que tinham mais à mão, e depois, ao avançar assim pouco a pou­
co, indagando-se sobre as coisas mais sérias tais como os movimentos da
Lua, do Sol e dos astros e a geração do Lodo. Temos, pois, como raiz mais
concreta do filosofar uma atitude hum ana que é o assombro. O ho­
mem estranha as coisas próximas, e depois a totalidade de tudo o que
existe. Em vez de se movimentar entre as coisas, fazer uso delas, des­
frutar ou temê-las, coloca-se de fora, estranhado delas, e se pergunta,
com assombro, sobre essas coisas próximas e de todos os dias que
agora, pela primeira vez, aparecem diante dele, portanto, sozinhas,
isoladas em si mesmas pela pergunta: “Que é isto?” Nesse momento
começa a filosofia.
É uma atitude humana completamente nova, denominada teoré-
tica por oposição à atitude mítica (Zubiri). O novo método humano
surge um dia na Grécia, pela primeira vez na história, e desde então
há algo a mais, radicalmente novo no m undo, que torna possível a fi­
losofia. Para o homem mítico, as coisas são poderes propícios ou dani­
nhos, com os quais vive e que utiliza ou evita. É a atitude anterior à
Grécia e que os povos onde não penetra o genial achado helénico
continuam partilhando. A consciência teorética, em contrapartida, vê
coisas no que antes eram poderes. É a grande descoberta das coisas,
tão profunda que hoje nos custa ver que efetivamente é uma desco­
berta, pensar que poderia ser de outro modo. Para isso temos de lan­
çar mão de modos que guardam apenas uma remota analogia com a
atitude mítica, mas que diferem da nossa, européia: por exemplo, a
consciência infantil, a atitude da criança, que se acha n um m undo
cheio de poderes ou personagens benignos ou hostis, mas não de coi­
sas em sentido rigoroso. Na atitude teorética, o homem, em vez de es­
tar entre as coisas, está diante delas, estranhado delas, e então as coisas
adquirem uma significação por si sós, que antes não tinham. Apare­
cem como algo que existe por si, à parte do homem, e que tem uma
consistência determinada: propriedades, algo seu e que lhes é próprio.
Surgem então as coisas como realidades que são, que têm um conteú­
do peculiar. E é exclusivamente nesse sentido que se pode falar de ver­

6
In t r o d u çã o

dade ou falsidade. O homem mítico se move fora desse âmbiio. Ape­


nas como algo que è podem as coisas ser verdadeiras ou falsas. A Ibr-
ma mais antiga desse despertar para as coisas em sua verdade é o as­
sombro. E por isso é a raiz da filosofia.
A filosofia e sua história • A relação da filosofia com sua histó­
ria não coincide, por exemplo, com a relação entre a ciência e sua his­
tória. Neste últim o caso são duas coisas distintas: por um lado, a ciên­
cia e, por outro, o que foi a ciência, ou seja, sua história. São indepen­
dentes, e a ciência pode ser conhecida, cultivada e existir à parte da
história do que foi. A ciência se constrói partindo de um objeto e do
saber que num determinado momento se possui sobre ele. Na filoso­
fia, o problema é ela mesma; além disso, esse problema se formula em
cada caso segundo a situação histórica e pessoal em que se encontra o
filósofo, e essa situação está, por sua vez, determinada em grande me­
dida pela tradição filosófica em que se encontra inserido: todo o pas­
sado filosófico já está incluído em cada ação de filosofar; em terceiro
lugar, o filósofo tem de se indagar sobre a totalidade do problema fi­
losófico, e portanto sobre a própria filosofia, desde sua raiz originária:
não pode partir de um estado existente de fato e aceitá-lo, mas tem de
começar do princípio e, simultaneamente, da situação histórica em que
se encontra. O u seja, a filosofia tem de ser formulada e realizada inte­
gralmente em cada filósofo, não de qualquer modo, mas em cada um
de um m odo insubstituível: aquele que lhe vem imposto por toda a
filosofia anterior. Portanto, em todo filosofar está incluída toda a his­
tória da filosofia, e sem esta nem é inteligível nem, sobretudo, pode­
ria existir. E, ao mesmo tempo, a filosofia não tem outra realidade se­
não a que atinge historicamente em cada filósofo.
Há, portanto, uma inseparável conexão entre filosofia e história
da filosofia. A filosofia é histórica, e sua história lhe pertence essencial­
mente. Por outro lado, a história da filosofia não é uma mera informa­
ção erudita a respeito das opiniões dos filósofos, e sim a exposição ver­
dadeira do conteúdo real da filosofia. É, portanto, com todo rigor, fi­
losofia. A filosofia não se esgota em nenhum de seus sistemas, mas
consiste na história efetiva de todos eles. E, por sua vez, nenhum deles
pode existir isolado, mas necessita e implica todos os anteriores; e

7
H is t ó r ia d a f i l o s o f i a

ainda mais: cada sistema só atinge a plenitude de sua realidade, de sua


verdade, fora de si mesmo, naqueles que a ele sucederão. Todo filoso­
far parle da totalidade do passado e se projeta para o futuro, pondo em
marcha a história da filosofia. É isso, em poucas palavras, o que se quer
dizer quando se afirma que a filosofia é histórica.
Verdade e história • Mas isso não significa que a verdade da fi­
losofia não interesse, que a filosofia seja considerada simplesmente um
fenômeno histórico para o qual é indiferente ser verdadeiro ou falso.
Todos os sistemas filosóficos têm pretensão de verdade; por outro lado,
é evidente o antagonismo entre eles, que estão muito longe de coinci­
dir; mas esse antagonismo não quer dizer de forma nenhuma incom­
patibilidade total. Nenhum sistema pode pretender uma validez abso­
luta e exclusiva, porque nenhum esgota a realidade; na medida em que
cada u m se afirma como único, é falso. Cada sistema filosófico apreen­
de uma porção da realidade, justamente a que é acessível do ponto de
vista ou perspectiva; a verdade de um sistema não implica a falsidade
dos demais, exceto nos pontos em que formalmente se contradigam; a
contradição só surge quando o filósofo afirma mais do que realmente
vê; ou seja, as visões são todas verdadeiras - entenda-se, parcialmente
verdadeiras - e em princípio não se excluem. Mas, além disso, o pon­
to de vista de cada filósofo está condicionado por sua situação históri­
ca, e por isso cada sistema, se for fiel a sua perspectiva, tem de incluir
todos os anteriores como ingredientes de sua própria situação; por isso,
as diversas filosofias verdadeiras não são intercambiãveis, mas estão ri­
gorosamente determinadas por sua inserção na história hum ana1.

I. Ver m inha Introducción a la filosofia (1947), cap. X ll. [Obras, II.I


Filosofia grega
O S PRESSUPOSTOS DA FILOSOFIA GREGA

Se deixarmos de lado o obscuro problema da filosofia oriental -


hindu, chinesa —. em que o mais problemático é o próprio sentido da
palavra/iloso/ia, e nos ativermos ao que foi essa realidade no Ociden­
te, constataremos que sua primeira etapa é a filosofia dos gregos. Essa
fase inicial, cuja duração ultrapassa o milênio, distingue-se de todas
as posteriores pelo fato de não ter pelas costas nenhuma tradição filo­
sófica; ou seja, emerge de um a situação humana concreta - a do h o ­
mem “antigo” -, na qual não se dá o momento, o ingrediente filosófi­
co. Isso tem duas conseqüências importantes; em primeiro lugar, na
Grécia assistimos à germinação do filosofar com uma pureza e radica-
lidade superiores a tudo o que veio depois; por outro lado, o contex­
to vital e histórico do hom em antigo condiciona diretamente a espe­
culação helénica a tal ponto que o tema central da história da filosofia
grega consiste em averiguar por que o homem, ao alcançar certo nível
de sua história, se viu obrigado a exercitar um ofício rigorosamente
novo e desconhecido, que hoje chamamos filosofar. Não podemos en­
trar aqui na discussão desse problema, mas é indispensável indicar pelo
menos alguns dos pressupostos históricos que tornaram possível e
necessária a filosofia no m undo helénico1.
Uma forma de vida define-se, sobretudo, pelo repertório de cren­
ças em que se está inserido. É claro que essas crenças vão mudando de
geração em geração - como mostrou Ortega -, e nisso consiste a m u­

1. Cf. m inha Biografia de la filosofia, I. “A filosofia grega desde sua origem alé Pla­
tão" (Emecé, Buenos Aires, 1954). [Obras, vol. 11.1

11
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

tação histórica; mas certo esquema m ínim o perdura através cle várias
gerações e lhes confere a unidade superior que chamamos época, era,
idade. Quais são as crenças básicas em que está inserido o homem gre­
go, que limitam e configuram sua filosofia?
O heleno se encontra num mundo que existe desde sempre e que
como tal nunca constitui problema, já estando pressuposto em toda
questão. Esse m undo é interpretado como natureza, e por isso como
principio, ou seja, como aquilo de onde emerge ou brota toda realida­
de concreta: aparece, portanto, como dotado de virtualidade, de capa­
cidade produtiva. Mas, ao mesmo tempo, é uma multiplicidade: no
m undo há muitas coisas que são mutáveis e definidas pela contrarie­
dade. Cada uma delas tem uma consistência independente, mas elas
não são sempre, variam; e suas propriedades são entendidas como ter­
mos de oposições e contrariedades: o frio é o contrário do quente, o
par, do ímpar etc.; essa polaridade é característica da mente antiga. As
propriedades inerentes às coisas permitem sua utilização num a técni­
ca que se diferencia radicalmente dos procedimentos mágicos, que
manejam as coisas como poderes.
Esse m undo do homem grego é inteligível. Pode ser compreendi­
do; e essa compreensão consiste em ver ou contemplar essa realidade
e dizer o que é: teoria, lógos e ser são os três termos decisivos do pen­
samento helénico, e se baseiam nessa atitude primária ante o mundo.
A conseqüência disso é que o m undo aparece como algo ordenado e
submetido a uma lei: esta é a noção do cosmos. A razão se insere nes­
sa ordem legal do m undo, que pode ser governado e dirigido; e a for­
ma concreta dessa legalidade no hum ano é a convivência política dos
homens na cidade. É preciso contar com esse esquema m ínim o das
crenças antigas para compreender o fato histórico da filosofia grega.

12
I. O S PRÉ-SOCRÁTICOS

1. A escola de Mileto

Chamam-se pré-socráticos os filósofos gregos anteriores a Sócra­


tes. Esta denominação tem, em primeiro lugar, um valor cronológico:
são os pensadores que viveram entre o final do século VII e o fim do
século V antes de Cristo. Mas tem além disso um sentido mais profun­
do: as primeiras manifestações da filosofia grega podem ser considera­
das verdadeira filosofia porque depois delas houve uma filosofia plena
e indubitável. À luz da filosofia já madura - de Sócrates em diante -, são
filosóficos os primeiros ensaios helénicos, dos quais nem todos mere­
ceriam esse nome se não fossem começo e promessa de algo posterior.
Por serem pré-socráticos, por anunciarem e prepararem uma maturida­
de filosófica, já são filósofos os primeiros pensadores dajônia e da Mag­
na Grécia. Não se deve esquecer que, embora seja verdade que o pre­
sente depende do passado, o presente ao mesmo tempo reflui sobre ele
e o condiciona. As afirmações concretas dos mais velhos pensadores
hindus ou chineses se aproximam com freqüência das de alguns gre­
gos; mas a diferença fundamental está em que depois dos pré-socráti­
cos veio Sócrates, ao passo que à balbuciante especulação oriental não
se seguiu uma plenitude filosófica no sentido que esta palavra adqui­
riu no Ocidente. É esta a razão da radical diferença que encontramos
entre o pensamento inicial dos helenos e dos orientais.
Os últimos pré-socráticos não são anteriores a Sócrates, mas con­
temporâneos seus, na segunda metade do século V. Mas são incorpo­
rados ao grupo que o antecede pelo tema e pelo caráter de sua espe­

13
I IlS T Ó R lA DA FILO SO FIA

culação. Toda a primeira etapa da filosofia trata da natureza («púoiç).


Aristóteles chama esses pensadores (pDOioÀóyoi, os físicos; fazem uma
física com método filosófico. Ante a natureza, o pré-socrático adota
uma atitude que difere enormemente da de Hesíodo, por exemplo.
Este pretende narrar como se configurou e ordenou o m undo, ou a
genealogia dos deuses; faz uma teogonia, conta um mito; a relação en­
tre o mito e a filosofia é próxima, como advertiu Aristóteles, e consti­
tui um grave problema; mas trata-se de coisas distintas. O filósofo pré-
socrático enfrenta a natureza com uma pergunta teórica: pretende di­
zer o que é. O que define primariamente a filosofia é a pergunta que a
mobiliza: que é tudo isso? A esta pergunta não se pode responder com
um mito, e sim com uma filosofia.
O m ovim ento • Pois bem: que é que leva os gregos a se pergun­
tarem o que são as coisas? Qual é a raiz do assombro que levou pela
primeira vez os gregos a filosofar? Em outras palavras: o que é que cau­
sa estranheza ao heleno e o faz sentir-se estranho a esse m undo em
que se encontra? Repare-se que a situação dos pré-socráticos distingue-
se da de todos os filósofos posteriores, pois estes últimos, ao se colo­
carem um problema, dispõem de um repertório de soluções já propos­
tas e ensaiadas antes deles, ao passo que os pré-socráticos têm de des­
cartar as respostas oferecidas pela tradição ou pelo mito e recorrer a
um novo instrumento de certeza, que é justamente a razão.
O que estranha ou assombra o grego é o movimento. Que é que
isso quer dizer? Movimento (kívt|ctiç) tem em grego um sentido mais
amplo que em nossas línguas; equivale a mudança ou variação; o que
nós chamamos movimento é só uma forma particular de kinesis. Dis­
tinguem-se quatro tipos de movimento: I o o movimento local (cpopá),
a mudança de lugar; 2o o movimento quantitativo, isto é, o aumento e
a diminuição (ccüÇricnç kcxí <p0ícnç); 3o o movimento qualitativo ou al­
teração (aÀAoícümç), e 4 o o movimento substancial, isto é, a geração e
a corrupção (YévEcnç Kai cp0opá). Todos esses movimentos, sobretudo
o último, que é o mais profundo e radical, perturbam e inquietam o
homem grego, porque tornam problemático o ser das coisas, mergu­
lham-no na incerteza, de tal forma que não sabe a que se ater em rela­
ção a elas. Se as coisas mudam, o que são na verdade? Se uma coisa

14
Os p r é -s o c r At ic o s

passa de branca a verde, é e não é branca; se algo que era deixa de ser,
disso resulta que a mesma coisa é e não é. A multiplicidade e a contra­
dição penetram no próprio ser clas coisas; o grego pergunta, então, o
que são as coisas de verdade, isto é, sempre, por trás de suas muitas apa­
rências. Busca, para além da multiplicidade de aspectos das coisas, sua
raiz permanente e imutável, que seja superior a essa multiplicidade e
capaz de explicar a razão dela. Daí o interesse fundamental da pergun­
ta inicial da filosofia: o que é de verdade tudo isso, qual é a naLureza
ou o princípio de onde emerge tudo? As diversas respostas que vão
sendo dadas a esta pergunta constituem a história da filosofia grega.
A filosofia grega tem uma origem muito concreta e conhecida.
Começa nas costas jónicas, nas cidades helénicas da Ásia Menor, nos
primeiros anos do século VI a.C., talvez no final do VII. Dentro do
m undo grego, a filosofia tem, pois, uma origem excêntrica; foi só tar­
diamente, no século V, que a especulação filosófica apareceu na Grécia
propriamente dita. As cidades da costa oriental do Egeu eram as mais
ricas e prósperas da Hélade; nelas deu-se primeiro um florescimento
econômico, técnico e científico, promovido parcialmente pelos conta­
tos com outras culturas, sobretudo a egípcia e a iraniana. Foi em Mi-
leto, a mais importante destas cidades, que apareceu pela primeira vez
a filosofia. U m grupo de filósofos, pertencentes a aproximadamente
três gerações sucessivas, homens de grande destaque na vida do país,
tentam dar três respostas à pergunta sobre a natureza. Costuma-se
chamar essa primeira expressão filosófica de escola jónica ou escola de
Mileto, e suas três figuras centrais e representativas são Tales, Anaxi-
mandro e Anaxítnenes, cuja atividade ocupa todo o século VI.
Tales de Mileto • Viveu entre o últim o terço do século VII e
meados do século VI. Os relatos antigos lhe atribuem múltiplas ativi­
dades: engenheiro, astrônomo, financista, político; enquanto tal, é
considerado um dos Sete Sábios da Grécia. Talvez de longínqua ori­
gem fenícia. É provável que tenha viajado pelo Egito, e atribuem a ele
a introdução na Grécia da geometria egípcia (cálculo de distâncias e
alturas segundo a igualdade e semelhança de triângulos, mas, certa­
mente, cle modo empírico). Também predisse um eclipse. É, portanto,
uma grande figura de seu tempo.

15
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Para o que aqui mais nos interessa, sua filosofia, a fonte princi­
pal e de mais valor é Aristóteles, autoridade máxima para as interpre­
tações de toda a época pré-socrática. Aristóteles diz que, segundo Ta­
les, o princípio (àpxr|) de todas as coisas é a água; ou seja, o estado de
umidade. A razão disto seria que o alimento e a semente dos animais e
das plantas são úmidos. A terra flutua sobre a água. Por outro lado, o
m undo estaria cheio de espíritos ou almas e de muitos demônios; ou,
como diz Aristóteles, “tudo está cheio de deuses”.
A isso se denomina hilozoísmo (animação ou vivificação da m a­
téria). Mas o que realmente importa é o fato de Tales, pela primeira
vez na história, se indagar sobre a totalidade de tudo o que existe, não
para se perguntar qual foi a origem mítica do m undo, mas o que na
verdade é a natureza. Entre a teogonia e Tales há um abismo: o mes­
mo que separa a filosofia de toda a mentalidade anterior.
Anaxim andro • Em meados do século VI foi o sucessor de Tales
na direção da escola de Mileto. De sua vida nada se sabe ao certo. Es­
creveu uma obra, que se perdeu, conhecida com o título que poste­
riormente se deu à maioria dos escritos pré-socrálicos: Da natureza
(jiEpí (púaecoç). Atribuem-lhe, sem certeza, diversos inventos matemá­
ticos e astronômicos e, mais provavelmente, a confecção de um mapa.
A pergunta sobre o princípio das coisas responde dizendo que é o ápei-
ron, xô ocTteipov. Esta palavra significa literalmente infinito, não em sen­
tido matemático, e sim no de ilimitação ou indeterminação. E con­
vém entender isso como grandioso, ilimitado em sua magnificência,
que provoca o assombro. É a maravilhosa totalidade do m undo, em
que o homem se encontra com surpresa. Essa natureza é, ademais,
princípio: dela surgem todas as coisas: umas chegam a ser, oulras deixam
de ser, partindo dessa àpxé, mas ela permanece independente e supe­
rior a essas mudanças individuais. As coisas são engendradas por uma
segregação, vão-se separando do conjunto da natureza por um movi­
mento semelhante ao de um crivo, primeiro o frio e o quente, e de­
pois as outras coisas. Esse engendrar e perecer é uma injustiça, uma
áôiKÍcx, um predomínio injusto de um contrário sobre outro (o quen­
te sobre o frio, o úm ido sobre o seco etc.). Por causa dessa injusti­
ça existe o predom ínio das coisas individuais. Mas existe uma ne-

16
Os pré-socrAticos

cessidade que fará as coisas voltarem para esse fundo último, sem in­
justiças, o ápeiron, imortal e incorruptível, em que uns contrários não
predominam sobre os outros. A forma com que irá se executar essa ne­
cessidade é o tempo. O tempo fará com que as coisas voltem a essa u n i­
dade, a essa quietude e indeterminação da tpúaiç, [physis], de onde saí­
ram injustamente.
Anaximandro, além de sua astronomia bastante desenvolvida que
não abordaremos, representa a passagem da simples designação de
uma substância como princípio da natureza para uma idéia desta,
mais aguda e profunda, que já aponta para os traços que irão caracte­
rizá-la em toda a filosofia pré-socrática: uma totalidade, princípio de
tudo, imperecível, alheia à mutação e à pluralidade, oposta às coisas.
Veremos estas características aparecer reiteradamente no centro do pro­
blema filosófico grego.
Anaxímenes • Discípulo de Anaximandro, também de Mileto, na
segunda metade do século VI. É o último milésio importante. Acres­
centa duas coisas novas à doutrina de seu mestre. Em primeiro lugar,
uma indicação concreta de qual é o princípio da natureza: o ar, que
relaciona com a respiração ou alento. Do ar nascem todas as coisas, e
a ele voltam quando se corrompem. Isso pareceria antes um retorno
ao ponto de vista de Tales, substituindo a água pelo ar; mas Anaxíme­
nes agrega uma segunda precisão: o modo concreto de formação das
coisas, partindo do ar, é a condensação e a rarefação. Isso é sumamen­
te importante; há não só a designação de uma substância primordial,
mas a explicação de como, a partir dela, se produzem todas as diver­
sas coisas. O ar rarefeito é fogo; mais condensado, nuvens, água, ter­
ra, rochas, segundo o grau de densidade. À substância primeira, supor­
te da variedade cambiante das coisas, acrescenta-se u m princípio de
movimento. Nesse momento, o domínio persa na Jônia vai im pulsio­
nar a filosofia para o Oeste.

2. Os pitagóricos

Pitágoras • Depois dos milésios, o primeiro núcleo filosófico im ­


portante é o dos pitagóricos. No final do século VI, a filosofia transla-
da-se das costas da Jônia para as da Magna Grécia, ao sul da Itália e da

17
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Sicília, constituindo-se o que Aristóteles chamou de escola itálica. Ao


que ludo indica, a invasão persa na Ásia Menor deslocou para a extre­
midade ocidental do m undo helénico alguns grupos jónicos, e dessa
fecunda emigração surgiu o piiagonsmo.
Trata-se de um dos problemas mais obscuros e complexos da his­
tória grega. Por u m lado, tudo o que se refere à história do m ovim en­
to pitagórico é problemático; em segundo lugar, sua interpretação é
sumamente difícil. Teremos de nos limitar a registrar seus traços mais
importantes, sem entrar nas sérias questões que suscita.
O fundador dessa escola foi Pitágoras; mas Pitágoras é pouco
mais que um nome; sobre ele quase nada se sabe, e o que se sabe é in ­
certo. Parece que era originário da ilha de Samos e foi se estabelecer
em Crotona, na Magna Grécia. A ele são atribuídas várias viagens, en­
tre elas para a Pérsia, onde deve ter conhecido o mago Zaratás, ou seja,
Zoroastro ou Zaratustra. É provável que nunca tenha se ocupado das
matemáticas, embora, posteriormente, sua escola o tenha feito; a ati­
vidade de Pitágoras deve ter sido principalmente religiosa, relaciona­
da com os mistérios órficos que, por sua vez, têm parentesco com os
cultos de Dioniso. Aristóteles fala dos pitagóricos de m odo impessoal,
sublinhando essa vaguidade com sua expressão favorita: os chamados
pitagóricos...
A escola pitagórica • Os pitagóricos estabeleceram-se num a sé­
rie de cidades da Itália continental e da Sicília, depois também se ins­
talaram na Grécia propriamente dita. Formaram uma liga ou seita e se
submetiam a um a grande quantidade de estranhas normas e proibi­
ções; não comiam carne nem favas, não podiam usar trajes de lã, nem
recolher o que tinha caído, nem atiçar o fogo com um ferro etc. É di­
fícil compreender o sentido dessas normas, se é que tinham algum.
Distinguiam-se entre eles os acusmáticos e os matemáticos, de acordo
com o caráter e o grau de sua iniciação. A liga pitagórica tinha uma
tendência contrária à aristocracia; mas acabou formando um a e inter­
vindo na política. Em conseqüência disso, houve uma violenta reação
democrática em Crotona, e os pitagóricos foram perseguidos, muitos
deles mortos, e sua casa incendiada. O fundador conseguiu se salvar
e morreu, segundo dizem, pouco depois. Mais tarde, os pitagóricos
floresceram novamente com o chamado neopitagorismo.
Os prf .-s o c r At ic o s

Mais que isso, no enianio, interessa o sentido da liga pitagóri-


ca como tal. Constituía propriamente um a escola. (A palavra escola,
CTXoXij, significa em grego ócio: convém manter isso presenle.) I:ssa es­
cola define-se pelo modo de vida de seus membros, pessoas emigra­
das, expatriadas - forasteiros, em suma. Seguindo o exemplo dos jogos
olímpicos, os pitagóricos falavam de três modos de vida: o dos que
vão para comprar e vender, o dos que correm no estádio e o dos es­
pectadores, que se limitam a ver. Assim vivem os pitagóricos, forastei­
ros curiosos da Magna Grécia, como espectadores. É o que se chama
de píoç 0ecúpr|TiKÓç, a vida teorética ou contemplativa. A dificuldade
dessa vida é o corpo, com suas necessidades, que sujeitam o homem.
É preciso libertar-se dessas necessidades. O corpo é um túm ulo (otüjaa
afiu a), dizem os pitagóricos. É preciso superá-lo, sem no entanto per­
dê-lo. Para isso é necessário um estado prévio da alma, que é o entu­
siasmo, ou seja, endeusamento. Aqui aparece a conexão com os órficos
e seus ritos, baseados na mania (loucura) e na orgia. A escola pitagó-
rica utiliza esses ritos e os transforma. Chega-se dessa forma a um a
\ida suficiente, teorética, não ligada às necessidades do corpo, um
m odo de viver divino. O homem que chega a isso é o sábio, o oocpóç.
(Parece que a palavra filosofia ou amor à sabedoria, mais modesta que
sofia, surgiu pela primeira vez nos círculos pitagóricos). O perfeito so-
phós é ao mesmo tempo o perfeito cidadão; por isso o pitagorismo
cria um a aristocracia e acaba intervindo em política.
A m atem ática • Outro aspecto importante da atividade dos pita­
góricos é sua especulação matemática. A matemática grega não se pa­
rece m uito com a moderna. Iniciada - quase como uma mera técnica
operatória - na escola de Mileto, recebe a herança do Egito e da Ásia
Menor; mas só no pitagorismo se transforma em ciência autônoma e
rigorosa. Dentro dessa escola - sobretudo no chamado neopitagoris-
mo - desenvolvem-se os conhecimentos matemáticos que depois se­
rão levados adiante pelas escolas de Atenas e de Cízico; no século VI,
a Academia platônica e a escola de Aristóteles forjam os conceitos fi­
losóficos fundamentais que possibilitarão, na época helenística, a par­
tir do século III, a elaboração e sistematização da matemática, sim bo­
lizada na obra de Euclides.

19
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Os pitagóricos descobrem um tipo de ente - os números e as fi­


guras geométricas - que não são corporais, mas que têm realidade e
opõem resistência ao pensamento; isso leva a pensar que já não se
pode identificar diretamente o ser com o ser corporal, o que obriga a
uma decisiva ampliação da noção de ente. Mas os pitagóricos, arrasta­
dos por sua própria descoberta, fazem uma nova identificação, desta
vez de sinal contrário: para eles, o ser vai coincidir com o ser dos ob­
jetos matemáticos. Os números e as figuras são a essência das coisas;
os entes são por imitação dos objetos da matemática; em alguns textos
afirmam que os números são as próprias coisas. A matemática pitagó-
rica não é um a técnica operatória, é antes a descoberta e construção
de novos entes, imutáveis e eternos, diferentemente das coisas variá­
veis e mortais. Daí o mistério que envolvia os achados da escola, por
exemplo a descoberta dos poliedros regulares. Uma tradição refere
que Hipaso de Metaponto foi afogado durante uma travessia - ou bem
naufragou, castigado pelos deuses - por ter revelado o segredo da cons­
trução do dodecaedro.
Por outro lado, a aritmética e a geometria estão em estreita rela­
ção: o 1 é o ponto, o 2 a linha, o 3 a superfície, o 4 o sólido; o número
10, soma dos quatro primeiros, é a famosa tetraktys, o número funda­
mental. Fala-se geometricamente de números quadrados e oblongos,
planos, cúbicos etc. Existem números místicos, dotados de proprieda­
des especiais. Os pitagóricos estabelecem uma série de oposições,
com as quais as qualidades mantêm uma estranha relação: o ilimitado
e o limitado, o par e o ímpar, o m últiplo e o uno etc. O simbolismo des­
sas idéias é problemático e de difícil compreensão.
A escola pitagórica também criou uma teoria matemática da m ú ­
sica. A relação entre as longitudes das cordas e as notas correspon­
dentes foi aproveitada para um estudo quantitativo do musical; como
as distâncias dos planetas correspondem aproximadamente aos inter­
valos musicais, pensou-se que cada astro dá uma nota, e todas juntas
compõem a chamada harmonia das esferas ou música celestial, que
não ouvimos por ser constante e sem variações.
As idéias astronômicas dos pitagóricos foram profundas e pene­
trantes: Ecfanto chegou a afirmar a rotação da Terra. Por sua vez, Alc-

20
Os PRÉ-SOCRÁTICOS

meão de Crotona realizou estudos biológicos e embriológicos preci­


sos. Arquitas de Tarento e Filolau de Tebas foram as duas liguras mais
importantes da matemática pitagórica1.

5? *

Na escola pitagórica encontramos o primeiro exemplo claro de


filosofia entendida como modo de vida. O problema da vida suficien­
te os leva a uma disciplina especial, que consiste na contemplação.
Com os pitagóricos aparece na Grécia o tema da libertação, do homem
suficiente, que se basta a si mesmo; este virá a ser um dos temas per­
manentes do pensamento helénico. Essa preocupação com a alma leva
os pitagóricos à doutrina da transmigração ou metempsicose, relacio­
nada com o problema da imortalidade. E essa questão, intimamente
vinculada à idade e ao tempo, liga-se à especulação sobre os números,
que são, antes de tudo, medida do tempo, idades das coisas. Vemos, pois,
o fundo unitário do complexíssimo movimento pitagórico, centrado
no tema da vida contemplativa e divina.

3. Parmênicles e a escola cie Eléia

Afora os pitagóricos, há outra manifestação filosófica fundamen­


tal na Magna Grécia: a escola eleática, cuja figura central é Parmênides,
e cujos principais continuadores são Zenão e Melissos. Esse grupo de
filósofos foi da mais alta importância. Com eles a filosofia adquire um
nível e um grau de profundidade que antes não tinha, e a influência de
Parmênides foi decisiva em toda a história da filosofia grega e, portan­
to, em sua totalidade até hoje. Essa escola tem, fora dela, um antece­
dente que convém mencionar: Xenófanes.
Xenófanes • Era de Colofão, na Ásia Menor. Não se conhecem as
datas exatas de seu nascimento e morte, mas sabe-se que viveu pelo

1. Sobre o problema da m atem ática grega, ver Biografia de la filosofia, I, iii, e so­
bretudo Ensayos de teoria, “A descoberta dos objetos m atemáticos na filosofia grega”.
[Obras, IV]

21
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

menos 92 anos, e que era posterior a Pitágoras e anterior a Heráclito.


Portanto, viveu na segunda metade do século VI e primeira do século
V Sabe-se lambém que percorria a Ilélade recitando poesias, geral­
mente de sua autoria. A obra de Xenófanes estava escrita em verso;
são elegias de caráter poético e moral, nas quais mesclam-se às vezes
vislumbres de doutrina cosmológica. O mais importante de Xenófa­
nes é, por um lado, sua critica da religião popular grega e, por outro,
certo “panteísmo”, precursor da doutrina da unidade do ser na escola
eleática.
Xenófanes sentia orgulho da sabedoria, que lhe parecia muito
superior à simples força ou à destreza física. Considerava imerecida a
admiração pelos vencedores nos jogos, nas corridas etc. Considerava
imorais e absurdos os deuses de Homero e Hesíodo, dos quais só se
aprendem, dizia ele, roubos, adultérios e mentiras recíprocas. Ao mes­
mo lempo repudia o antropomorfismo dos deuses, dizendo que, as­
sim como os etíopes os representam baixos e negros, os leões ou os
bois os representariam, se pudessem, na figura de leão ou de boi. Em
contraposição a isso, Xenófanes fala de u m único Deus. Citamos a se­
guir os quatro fragmentos de suas sátiras referentes a essa questão
(Diels, frag. 23-26): “U m só Deus, entre deuses e homens o maior, em
nada semelhante aos homens nem na forma nem no pensamento. - Vê
inteiro, pensa inteiro, ouve inteiro. - Mas sem esforço ele tudo gover­
na com a força de seu espírito. - E sempre habita o mesmo lugar, sem
nada mover, nem lhe convém deslocar-se de um lado para outro.”
Estes fragmentos têm um sentido bastante claro. Há unidade -
divina - intensamente sublinhada. E esse Deus uno é imóvel e todo.
Por isso Aristóteles disse que Xenófanes foi o primeiro que “unizou”,
islo é, que foi partidário do uno. E por esse motivo, desconsiderando
o obscuro problema das influências, é forçoso admitir que Xenófanes
foi um precursor da doutrina dos eleatas.
Parm ênides • Parmênides é o filósofo mais importante de todos
os pré-socráticos. Significa na história da filosofia um momento de
fundamental importância: o surgimento da metafísica. Com Parmêni­
des, a filosofia adquire sua verdadeira hierarquia e se constitui de forma
rigorosa. Até então, a especulação grega havia sido cosmológica, física,

22
Os PRÉ-SOCRÁTICOS

com um propósito e um método filosófico; mas é Parmênides quem


descobre o tema próprio da filosofia e o método com o qual sc pode
abordá-lo. Nas mãos dele a filosofia passa a ser metafísica c oniologia;
já não versa mais simplesmente sobre as coisas, mas sobre as coisas
enquanto são, ou seja, como entes. O ente, éóv, Õv, é a grande descober­
ta de Parmênides. A tal ponto que a filosofia stricto sensu começa com
ele, e o pensamento metafísico conserva até nossos dias a marca que
lhe im prim iu a mente de Parmênides. E junto com o objeto, o método
que nos permite chegar a ele, o que os gregos chamaram de vouç, noús ,
e os latinos traduziram por mens, mente, pensamento ou até talvez, em
alguns casos, espírito. Este noüs, como logo veremos, está numa es­
sencial unidade com o ón. A interpretação da filosofia de Parmênides
apresenta sérias dificuldades. Não podemos entrar nelas aqui; apenas
indicaremos o núcleo mais inovador e eficaz de seu pensamento, Nos
últimos anos foram dados passos decisivos para a interpretação do fi­
lósofo eleático com o trabalho de Karl Reinhardt e, sobretudo, de meu
mestre Zubiri.
Parmênides de Eléia viveu do final do século VI à primeira meta­
de do século V: não se conhecem com maior precisão as datas. É im ­
provável que tenha tido uma relação pessoal com Xenófanes, apesar
de indubitáveis influências. Também parece ter sido afetado pelas do
pitagorismo. Platão lhe dedicou um diálogo que leva seu nome, talvez
o mais importante de todos os platônicos. Aristóteles lhe dedica m u i­
ta atenção. Conservam-se, ademais, consideráveis fragmentos de um
poema de Parmênides, escrito em hexâmetros, conhecido com o títu­
lo tradicional Da natureza.
O poema • Compreendia uma introdução de grande força poéti­
ca, e duas partes, a primeira sobre a via da verdade, e a segunda sobre
a via da opinião. Da primeira chegaram até nós mais fragmentos que
da segunda. Limitar-nos-emos a indicar os momentos mais importan­
tes do poema.

2. Transcrevo o grego em caracteres latinos com as seguintes normas: o g („) tem


sempre som suave; o z (Ê), o de cís; o l/i (H), o de z; o ph ('), o d e /; o Mi ('), o de j; o d i­
tongo ou (Ò I), o d e u , e o y ( i ) tem o do ti francês ou ti alemílo; o h (equivalente ao es­
pírito áspero) é aspirado. Transcrevem-se todos os acentos gregos.

23
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Num a carruagem, puxada por fogosos cavalos, avança o poeta


pelo caminho da deusa. Guiam-no as filhas do Sol, que afastam os véus
de seus rostos e deixam a morada da noite, guardada pela Justiça. A
deusa saúda Parmênides e lhe diz ser preciso aprender a conhecer
tudo, “tanto o coração inquebrantável da verdade bem redonda como
as opiniões dos mortais, que não têm certeza verdadeira”, e lhe diz
que existe uma única via de que se possa falar. Com isso termina a in ­
trodução. Há uma clara alusão à passagem da consciência mítica para
a teorética: as helíades tiraram-no da obscuridade. A metáfora dos véus
designa a verdade, entendida na Grécia como um desvelar ou desco­
brir (àÀrjSEia).
Na primeira parte do poema a deusa fala de duas vias; mas estas
não são as duas mencionadas, da verdade e da opinião, pois esta últi­
ma será, a rigor, a terceira. As duas primeiras são duas vias possíveis
do ponto de vista da verdade, das coisas enquanto são: a do que é e que
é impossível que não seja (via da persuasão e da verdade) e a do que
não é; esta últim a via é impraticável, porque o que não é não pode ser
conhecido nem expresso. E aqui se encontra a estreita vinculação do
noüs com o ón, do ente com a mente ou espírito na verdade. Segue-se
em seguida o que poderíamos chamar a ontologia de Parmênides, isto
é, a explicação dos atributos do ente que acaba de descobrir. Mas isso
requer uma exposição articulada.
A segunda parte do poema abandona a via da verdade para en­
trar na da opinião dos mortais. Os fragmentos dela são m uito escassos.
Correspondem à interpretação do movimento, da variação, não do pon­
to de vista do noüs, nem, portanto, do ente, mas da sensação e das coisas.
A isso se somam algumas indicações cosmológicas.
O esquema das vias é, portanto, o seguinte:

MÉTODO OBJETO VIA

cia verdade (via do “que é”).


O noüs o ente
impraticável (via do “que não é”).
A sensação as coisas da opinião (via do “que é e não é”)

24
Os p r é - s o c r A t ic :o s

Os atributos do ente • Convém enumerar e explicai' brevemen­


te os atributos atribuíveis ao õv, ente, segundo Parmémdcs.
I o O óné presente. As coisas, enquanto são, estão presentes para
o pensamento, para o noüs. O ente não foi nem será, mas é ”Ov, ens, é
um particípio do presente. As coisas podem estar longe ou perto dos
sentidos, presentes ou ausentes, mas como entes são imediatas para o
noüs. A mente tem a presença do Õv.
2 o Todas as coisas são entes, ou seja, são. Ficam envolvidas pelo
ser, ficam reunidas, unas. Toda a multiplicidade das coisas não tem
nada a ver com a unidade do ente. O ón é uno. Por isso Parmênides
chega a dizer que o ente é uma esfera, sem orifícios de não-ser.
3 o Este ente é, ademais, imóvel. O movimento é entendido como
um m odo de ser. Chegar a ser ou deixar de ser supõe uma dualidade
de entes, e o ente é uno. Por esse motivo é homogêneo e indivisível, sem­
pre do ponto de vista do ente: se eu divido uma coisa em duas partes,
o ente fica tão indiviso como antes, envolve igualmente as duas partes: a
divisão não o afeta em nada.
4 o O ente é cheio, sem vazios. (O problema do vazio é m uito im ­
portante em toda a filosofia grega.) É continuo e todo. Se houvesse
algo fora do ente, não seria, e se algo fosse fora do ente, seria, ou seja,
seria ente.
5o Pela mesma razão é ingênito e imperecível. O contrário suporia
um não-ser, que é impossível.
Estes são os principais atributos do ente, não das coisas: é isso o
que descobre a primeira via, a da verdade.
A opinião • Como a segunda via, a do que não é, é impraticável,
vejamos a terceira, a da Só^a, a opinião dos mortais. Essa terceira via
move-se dentro da esfera da verdade, e por isso pode ser verdade e erro.
Quanto existe um a e outro só pode ser decidido a partir da verdade.
I o A dóxa se atém às informações do m undo, das coisas. Essas in ­
formações são muitas e cambiantes. As coisas são verdes, vermelhas,
duras, frias, água, ar etc. Além disso, transformam-se umas nas outras
e estão em constante variação. Mas
2° A dóxa entende esse movimento, essa mudança, como um vir
a ser. E nisso consiste seu erro. O sér não se dá nos sentidos, mas no

25
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

noüs. Ou seja, a dóxa, movendo-se na sensação, que é o que tem, salta


para o ser sem utilizar o noüs, de que carece. E esta é sua falsidade.
3o A 8óí;a, além de ser opinião, é dos mortais. Porque seu órgão é
a sensação, a aía0r|oiç, e esta se compõe de contrários e por isso é mor­
tal, perecível como as próprias coisas. A opinião não tem noüs, o úni­
co que é divino, imortal, como o ser.
Por isso Parmênides interpreta o movimento como luz e trevas,
como um iluminar-se e obscurecer. O u seja, o vir a ser não é mais que
um vir a ser aparente. As coisas que parecem vir a ser, já eram, mas nas
trevas. O movimento é variação, não geração: portanto, não existe do
ponto de vista do ser. E tudo isso é convenção (vó|JOç), nomes que os
homens apõem às coisas.
Ontologia ou metafísica • Podemos indagar agora o sentido da
descoberta de Parmênides. As coisas, em grego KpàyiJ.axa, prágmata,
mostram aos sentidos múltiplos atributos ou propriedades. São colo­
ridas, quentes ou frias, duras ou moles, grandes ou pequenas, animais,
árvores, rochas, estrelas, fogo, barcos feitos pelo homem. Mas conside­
radas com outro órgão, com o pensamento ou noüs, apresentam uma
propriedade sumamente importante e comum a todas: antes de ser
brancas, ou vermelhas, ou quentes, são. São, simplesmente. Aparece
o ser como uma propriedade essencial das coisas, como o que depois
foi denominado um atributo real, que só se manifesta para o noüs. As
coisas são agora ovxa, entes. E o õv e o voüç aparecem num a conexão
essencial, de m odo que um não se dá sem o outro. Nesse sentido. Par­
mênides diz que o ser e o noêin ou noús são o mesmo. Aos olhos do
noüs, o ente é uno e imóvel, ante a pluralidade e mudança das coisas que
se dão na sensação. Em Parmênides começa a cisão dos dois mundos,
o da verdade e o da aparência (opinião ou dóxa), que é falsidade quan­
do tomada como realidade verdadeira. Essa cisão será decisiva para o
pensamento grego.
Examinando as coisas um pouco mais de perto, podemos dizer
que, depois de ter-se pensado que as coisas têm uma consistência de­
terminada, Parmênides se dá conta de que isso implica que elas têm
uma consistência determinada - sublinhando desta vez consistência. As
coisas consistem em algo; mas agora a atenção não se dirige ao algo, e

26
Os PRÊ-SOCRÁTICOS

sim a seu prévio consislir, seja o que for aquilo cm que consisLem. As
coisas aparecem antes de tudo como consistentes; c é isso propriamen­
te o que quer dizer o particípio eón, ón, que é o eixo da filosofia par-
menideana. As coisas consistem nisto ou naquilo porque previamen­
te consistem, isto é, consistem em ser o consistente (tò ón). A descober­
ta de Parmêmdes poderia ser formulada, portanto, dizendo que as coi­
sas, antes de qualquer ulterior determinação, consistem em consistir.
Com Parmênides, portanto, a filosofia deixa de ser física para ser
ontologia. Uma ontologia do ente cósmico, físico. E ocorre precisamen­
te que, como o ente é imóvel, a física é impossível do ponto de vista
do ser e, portanto, da filosofia. A física é a ciência da natureza, e natu­
reza é o princípio do movimento das coisas naturais. Se o movimento
não é, não é possível a física como ciência filosófica da natureza. É
este o grave problema que virá a ser debatido por todos os pré-socrá-
ticos posteriores e que não irá encontrar solução suficiente a não ser
em Aristóteles. Se o ente é uno e imóvel, não há natureza, e a física é
impossível. Se o movimento é, necessita-se de uma idéia do ente dis­
tinta da de Parmênides. É isso o que Aristóteles consegue, como vere­
mos no momento propício. Antes dele, a filosofia grega é o esforço
para tornar possível o movimento dentro da metafísica de Parmêni­
des. Esforço fecundo, que move a filosofia e a obriga a indagar sobre
o problema básico. Uma luta de gigantes em torno do ser, para dizê-lo
com uma frase de Platão.
Zenão • É o discípulo mais importante de Parmênides, continua-
dor direto de sua escola. Também de Eléia. Parece ter sido uns quaren­
ta anos mais jovem que Parmênides. Sua descoberta mais interessan­
te é seu método, a dialética. Esse modo de argumentar consiste em to­
mar uma tese aceita pelo adversário ou comumente admitida e mos­
trar que suas conseqüências se contradizem entre si ou a contradizem;
em suma, que é impossível, segundo o princípio de contradição, im ­
plicitamente utilizado por Parmênides.
As teses deste, sobretudo as relacionadas com a unidade do ente
e a possibilidade do movimento, vão contra o que ordinariamente se
pensa. Zenão constrói, para apoiá-las, vários argumentos, que partem
da idéia do movimento e mostram que é impossível. Por exemplo, não

27
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

se pode percorrer u m segmento AB, porque para chegar a B é preciso


passar primeiro por um ponto m édio, C; para chegar a C, por um
pom o D, médio enire A e C, e assim sucessivamente, até o infinito.
I laveria, pois, que passar por um a série infinita de pontos intermediá­
rios, e o movimento seria impossível. Segundo outro exemplo - para
citar um deles Aquiles, que corre dez vezes mais rápido que a tar­
taruga, jamais a alcançará se ela sair com certa vantagem. Pois enquan­
to Aquiles percorre essa vantagem, a tartaruga avançou Vio dessa dis­
tância; enquanto Aquiles percorre esse novo espaço, a tartaruga se afas­
tou outro espaço dez vezes menor e assim até o infinito; portanto não
a alcança nunca. Zenão propunha várias outras aporias (àíioptai) ou
dificuldades, que não detalharemos aqui.
O sentido dessas aporias evidentemente não é o de que Zenão
acreditasse que assim acontece. O movimento se demonstra andando, e,
andando, se chega de A a B e Aquiles alcança a tartaruga. Não se trata
disso, mas da explicação do movimento. Esta é, dentro das idéias do
tempo, impossível, e Parmênides tem razão. Para que o movimento pos­
sa ser interpretado ontologicamente, faz-se necessária um a outra idéia
do ente. Se o ente é o de Parmênides, o movimento não é. As aporias
de Zenão evidenciam isso da forma mais aguda. Será necessária toda a
ontologia de Aristóteles para dar um a resposta suficiente para o pro­
blema colocado por Parmênides. Não se pode compor o movimento,
como não se pode compor desse m odo o contínuo. Aristóteles cons­
truirá um a idéia do ser essencialmente distinta da de Parmênides, e só
então se explicará o ser do movimento e será possível a física.
Melissos • É a última figura importante do eleatismo, mas ele não
é de Eléia, e sim jônio, de Samos. Foi almirante daquela ilha na rebe­
lião contra Atenas e obteve uma grande vitória naval no ano de 442.
Representa a continuidade do pensamento de Parmênides, com algu­
mas características próprias. Nega a multiplicidade e a mobilidade,
nega que o conhecimento das muitas coisas seja um conhecimento da
verdade. Mas enquanto Parmênides afirmava que o ente é finito, Me­
lissos diz que é infinito, porque não tem nem princípio nem fim, que
seriam distintos dele. Pelo mesmo motivo rejeita a idéia de que seja
uma esfera: esta poderia ser interpretada como uma parte limitada da
extensão.

28
Os PRÉ-SOCRATICOS

A influência de Parm ênides • Convem não esquecei que a in­


fluência mais profunda de Parmênides na filosolia não deve ser procu­
rada dentro de sua escola, entre os pensadores eleatas, mas fora dela.
Com o toda filosofia autêntica, a eficácia da de Parmênides eslá no pró­
prio problema que coloca, não na ação escolar ou de um grupo. Ü
grande achado de Parmênides obriga a filosofia grega a se pôr em mar­
cha de fomia metafísica; e suas conseqüências perduram até hoje.

4. De Heráclito a Demócrito

O problem a geral • Parmênides descobriu que as coisas são en­


tes, algo que é; e, em conseqüência, teve de atribuir ao ente uma série
de atributos que se mostram contraditórios com o modo efetivo de as
coisas se comportarem; daí surgia o problema. U m problema, com
efeito, é isto: a consciência de um a contradição. O exemplo clássico
do pau submerso na água, que é reto ao tato e quebrado à vista, que é
reto e não-reto, e, portanto, é e não é. Assim, o ente é uno e imóvel,
mas de fato constata-se que as coisas - que são - movem-se e são m u i­
tas. A contradição que aqui aparece é no fundo a mesma com que teve
de lidar Parmênides: a do ser e do não-ser.
Parmênides descobriu que quando se diz de um a coisa que é bran­
ca, não só temos a coisa e a brancura, mas, ademais, temos o é, que pe­
netra as duas e faz com que a coisa seja branca. O ente é, como diz Pla­
tão, um a terceira coisa, um certo terceiro, xpíxov xt.
Este problema do Ôv, do ente, penetra em todos os problemas
concretos que foram suscitados na filosofia posterior a Parmênides, e
todas as questões acabam por se resolver nessa antinomia do ser e do
não-ser, intimamente ligada à da unidade e pluralidade, e também à do
movimento. O movimento é, com efeito, mover-se de um princípio a
um fim. Assim era entendido na Grécia. Supõe, portanto, pelo menos
uma dualidade, contrária à unicidade do ente, e ademais uma contra­
riedade: o movimento se realiza entre contrários (a passagem do bran­
co para o preto, do quente para o frio, do ser para o não ser), e aqui
nos encontramos de novo no centro do problema do ser uno. Toda a
filosofia grega, de Heráclito a Demócrito, vai se mover dentro da idéia

29
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

do ente de Parmênides, o que confere uma unidade essencial a todo o


período. A filosofia daquele tempo é a progressiva divisão do ente de
Parmênides, conservando seus atributos, para dessa forma introduzir
nele, sem alterar sua essência, a pluralidade e tornai possível o movi­
mento e a solução dos demais problemas colocados.
Mas isso não basta. O ente de Parmênides não admite a plurali­
dade. Fragmentando-o não conseguimos nada; o problema vai-se dis­
tanciando, mas em últim a instância permanece intacto. É isso o que
demonstram os argumentos de Zenão. Será necessário questionar o uno,
a própria unidade, e chegar a um a idéia do ser que, sem excluir a u n i­
dade, a torne compatível e coexistente com a multiplicidade. É neces­
sário, pois, alterar totalmente a própria idéia do ente. E, um século e
meio depois, Aristóteles nos dará um a idéia do èv, do uno, essencial­
mente distinta da parmenideana, e com ela u m conceito do ser tam­
bém completamente novo. Dessa maneira será possível explicar as d i­
ficuldades de Parmênides. Aristóteles terá de dizer que o ente se diz de
muitas maneiras. Logo veremos por quê.
Por ora interessa ver as etapas primeiras dn problema de Parmê­
nides, dentro do âmbito filosófico que ele criou com sua genial desco­
berta.

a) Heráclito

Vida e caráter • Era de Éfeso, na Ásia Menor. Viveu entre os sé­


culos VI e V Dizem que era da família real de Éfeso e estava destina­
do a reger a cidade, mas renunciou e se dedicou à filosofia. Existem
delicados problemas de cronologia entre Xenófanes, Parmênides e
Heráclito. São aproximadamente contemporâneos, mas Heráclito se
move dentro da dialética parmenideana do ser e do não-ser, e, por­
tanto, pode ser considerado filosoficamente sucessor de Parmênides.
Heráclito desprezava a m ultidão e condenava os cultos e ritos da re­
ligião popular. Teofrasto diz que era “melancólico”. Por seu estilo um
tanto sibüino, os gregos o apelidaram de “Heráclito, o Obscuro”. D i­
zem que o oráculo de Delfos nem manifesta nem oculta seu pensa­
mento, mas o indica por sinais. E isso talvez pudesse ser aplicado a
seus escritos.

30
Os PRE-SO C RÁ TIC C »

O devir • O que mais importa é caracterizar a mctalisica dc I lc-


ráclito e siiuá-la dentro da evolução da lilosolia posterior a 1’arméni
des. Heráclito afirma taxativamente a variação ou movimenio tias coi­
sas: Trávxa pei, tudo corre, tudo jí ui. N ingucm pode se banhar duas
vezes no mesmo rio, porque o rio permanece, mas a água já não é a
mesma. A realidade é cambiante e mutável. Por isso a substância pri­
mordial é o fogo, a menos consistente de todas, a que mais facilmente
se transforma. Ademais - diz ele a guerra é o pai de todas as coisas,
;toA£|K)ç; 7iaifip Ttávicüv. O u seja, a discórdia, a contrariedade é a ori­
gem de tudo no m undo. O m undo é um eterno fogo que se transfor­
ma. Com o, segundo um velho princípio do conhecimento, o igual se
conhece pelo igual, a alma seca, a que se parece com o fogo, é a me­
lhor de todas e a que melhor conhece: a alma do sábio. A alma ú m i­
da, como barro, é uma alma inferior.
À primeira vista, não haveria oposição maior a Parmênides. He­
ráclito parece inverter rigorosamente os termos e fazer das coisas m o­
bilidade constitutiva. Ainda que assim fosse, seria oposição demais
para não interpretá-la como um a relação estreita; afora isso, no entan­
to, é preciso reparar em algumas coisas. Em primeiro lugar, Heráclito
fala do m undo, do cosmos, e Parmênides também reconhecia o m ovi­
mento e a pluralidade no m undo: o que negava é que isso tivesse algo
a ver com o ente. Em contrapartida, há toda uma série de textos com
um sentido completamente distinto.
Antes de tudo, Heráclito diz que é judicioso “confessar que to­
das as coisas são u n o ”. Por outro lado, o noús é com um a todos. Estas
afirmações soam de um m odo bem diferente, e têm claras ressonân­
cias parmenideanas. No entanto, há mais: Heráclito introduz um novo
conceito, ao qual confere atributos tradicionais da filosofia de Parmê­
nides. É o conceito do aocpóv.
Tò aoipóv • Heráclito refere-se a o sábio de forma neutra. Não é a
pessoa do sábio nem a sabedoria. Começa dizendo que esse sophón é
uno, e que é sempre. Além disso, é separado de todas as coisas, návxow
Kf-xwpicrpévov. Como se vê, os atributos do sophón e os do eme de Par­
mênides são os mesmos. Heráclito adverte que elevemos seguir o co­
mum, e este ccm um é o noús, como vimos. Isso fica particularmente

3J
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

claro se considerarmos o fragmento que diz: “Os homens despertos


têm um m undo com um , enquanto os que dorm em voltam-se, cada
um , para seu m undo particular.”
O sentido desses textos é evidente. Vemos uma nova cisão em dois
mundos: o hom em desperto, que segue o com um , o noüs, é o que che­
ga a “o sábio”, que é uno e permanente. Em contrapartida, há o m u n ­
do do sonho, que é o m undo particular de cada um , em suma, a opi­
nião. É aqui que tudo é m udança e devir. A chave dessa dualidade tal­
vez esteja em uma das mais expressivas frases de Heráclito: (púcnç
KpÚ7rcea0ai <piA.ei, a natureza gosta de se ocultar. O m un d o oculta o
sophón, que é o que verdadeiramente é, separado de tudo. É necessário
descobri-lo, desvelá-lo, e isso é precisamente a àÀ.r|0£ia, a verdade.
Quando o hom em a descobre, encontra os atributos do ente de Par-
mêmdes.
O hom em , como coisa do m undo, está sujeito ao devir, mas pos­
sui esse algo com um , sobretudo se tem a alma seca, e então tende ao
sophón, ao divino. Não é sophón - isso equivaleria a tornar-se Deus
mas tão-somente filósofo. O hom em volta a deparar, como em Parmê-
nides, com o dilema anterior, com a antinom ia entre seu ser perecível
(as opiniões dos mortais, o “tudo flui”) e seu ser eterno e imortal (o ón
e o noüs, o sophón). Vemos, pois, qual o sentido mais geral da filosofia
de Heráclito. É uma tentativa de interpretar o movimento, radicali­
zando-o, transformando tudo em mutação contínua, mas tomando o
cuidado de distingui-lo do oocpóv separado de tudo. O ser fica separa­
do de todo movimento e de toda multiplicidade. Estamos no âmbito
da metafísica de Parmênides.

b) Empédocles

Vida • Era de Agrigento (Sicília), na Magna Grécia. Ocupava uma


posição preeminente, mas não se contentava em ser rei; queria ser Deus.
Alguns o consideravam um semideus; outros, um charlatão. Percor­
ria toda a Sicília e o Peloponeso ensinando e realizando tratamentos e
curas, e muitos o veneravam. Conta um a tradição que, para ter um fim
digno de sua divindade, atirou-se no Etna. Outra tradição diz que foi
levado ao céu, como Elias. É mais provável que tenha morrido no Pe-

32
Os p r é -s o c r At ic o s

loponeso. Foi uma figura extraordinariamente viva e inlcrcssanU'. Es­


creveu dois poemas: D a natureza e As purificações, imitados por Lucre
cio, dos quais se conservam fragmentos. Encontramos neles idéias re­
ligiosas, cosmológicas, biológicas, de grande interesse, e, sobretudo,
uma doutrina propriamente filosófica.
Cosmologia • Enumeremos simplesmente os pontos mais im ­
portantes. Segundo Empédocles, existem dois sóis: um autêntico, o
fogo, e outro refletido, que é o que vemos. Tinham descoberto que a
luz da lua é refletida, e o homem, como sempre, estendia sua desco­
berta. A noite se produz pela interposição da terra entre o sol e o fogo.
Empédocles descobre o verdadeiro sentido dos eclipses. As estrelas e
os planetas eram fogo autêntico, não refletido; as estrelas, fixas, e os
planetas, livres. Pensou que a luz é algo que vai de um lugar a outro
num tempo muito breve.
Biologia • Os seres são mortais, mas seus princípios são eternos.
A primeira coisa a existir foram as árvores; Empédocles suspeitava va­
gamente de que as plantas tivessem sexo. O calor era principalmente
masculino. Segundo Empédocles, os seres vivos foram gerados por
agregação de membros soltos, ao acaso; depois sobreviveram os que
estavam corretamente organizados. Acreditava na transmigração das
almas e disse de si mesmo: “Em outro tempo fui homem e mulher,
um arbusto e uma ave, e um peixe mudo no mar.” Tem também uma
interessante doutrina da percepção. Há uma determinada adequação
entre a sensação e o tamanho dos poros: por isso os órgãos dos dife­
rentes sentidos variam. As coisas são reconhecidas por seus seme­
lhantes: o fogo, caso haja em mim o fogo, e da mesma forma a água e
as demais coisas.
As quatro raízes • Examinemos a questão central de Empédo­
cles, o problema do ser das coisas. É preciso articular o ser imóvel
com a cambiante multiplicidade das coisas. Empédocles quer resolver
esse problema por meio dos quatro elementos: ar, fogo, água e terra.
É a primeira vez que aparecem formalmente os quatro elementos tra­
dicionais. Sobre eles Empédocles dirá que são as raízes de todas as coi­
sas, piÇcóp.ara rtávxcov. Esses elementos são opostos - neles há a con­
trariedade do seco e do úmido, do frio e do quente. Essas raízes são

33
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

eternas', ao afirmar isso, Empédocles se apóia em Parmênides, mas com


uma diferença: o ente de Parmênides era uma esfera homogênea e não
podia mudar; para Empédocles, também é uma esfera, mas não homo­
gênea, e sim uma mescla. Todos os corpos se compõem da agregação
de substâncias elementares.
O amor e o ódio • Para explicar o movimento, ou seja, que a
partir das quatro raízes se engendrem e pereçam todas as coisas, Em­
pédocles introduz outros dois princípios: (piXía m i v e ík o ç (amor e
ódio). O ódio separa os distintos elementos, e o amor tende a juntá-
los; aí já temos um movimento. Em certo sentido, é o ódio que junta,
porque a união se dá quando os elementos ficaram livres, unidos en­
tre si os semelhantes. O autêntico amor é a atração do dessemelhante.
No movimento do mundo há quatro períodos:
I o A esfera mesclada.
2 o O ódio, que dá início à separação.
3o O domínio do neíkos; o ódio já separou tudo.
4URetorna a philia (o amor) e as coisas começam a se unir de novo.
É u m ciclo que se repete. Formam-se então coisas unidas de ma­
neiras muito variadas - leões com cabeça de asno etc. das quais só
sobrevivem e perduram as que têm um ídgos, uma ratio, uma estrutu­
ra interna que lhes permita continuar sendo. Dessa forma se sucedem
vários ciclos em que as coisas vão mudando, pela ação do amor e do
ódio, e as quatro raízes se mantêm invariáveis e eternas. E voltamos
de novo ao ser e ao não-ser, ao cosmos que não é verdadeiramente e ao
ser, que verdadeiramente é. lntroduz-se a multiplicidade no ente de
Parmênides, dividmdo-o em quatro; mas com isso ainda não se expli­
ca o movimento do ponto de vista do ser. A ontologia do movimento,
a física como filosofia, continua sendo impossível.

c ) A n a x á g o ra s

Vida • Era de Clazómena (Ásia Menor). Viveu no século V. Era


também de família nobre e destinado a mandar. Renunciou a isso para
se dedicar a uma vida Leorética. Anaxágoras foi considerado o homem
que levou essa vida de modo exemplar. Aparece por um lado vincula-

34
Os p r é -s o c :r A r ic o s

do a Empedocles como dois importantes physici in rn lio irs. Mas, poi


outro, tem um vínculo de outro tipo com a sofística e concretamniic
com Protágoras. Ambos foram mestres de Péricles. Anaxágoras loi o
primeiro filósofo de Atenas, embora não fosse natural da cidade. Não
leve muito sucesso ali. Na época, os atenienses não eram muito tole­
rantes e não havia grande liberdade de pensamento: Péricles queria
jonicizar Atenas e torná-la mais aberta; talvez influenciado por Aspá-
sia. Os atenienses zombavam de Anaxágoras e chamavam-no Noüs.
Depois o acusaram, não se sabe bem de quê; tampouco se sabe ao cer-
lo a que o condenaram: há relatos divergentes sobre tudo isso. Parece
que Péricles o libertou, mas não pôde permanecer em Atenas e foi para
Lâmpsaco, onde o receberam muito bem. Anaxágoras exerceu forte
influência sobre a vida ateniense, e é a partir dele que Atenas se trans­
forma na principal cidade filosófica da Grécia. Depois de ter-se difun­
dido pelo Onente e pelo Ocidente, pela Ásia Menor e pela Magna
Grécia, a filosofia passa a se situar principalmente, de modo tardio,
na Grécia propriamente dita, que virá a ser seu centro. A influência de
Anaxágoras não foi extrínseca a seu pensamento, e esteve intimamen­
te vinculada à sua filosofia.
As homeomerias • Para Anaxágoras os elementos não são qua­
tro, e sim infinitos, i í á de tudo em tudo. Cham a cle hom eom erias
(o|ioio)iepf]) as partes homogêneas, partículas pequeníssimas de que
estão feitas as coisas. Se tomamos uma coisa qualquer e a dividimos,
nunca chegaremos, diz Anaxágoras, às raízes de Empédocles; o que
existe são homeomerias. Na menor parte de cada coisa existem partes
pequeníssimas de todas as demais; chama isso de 7rccva7tep|j.ía, pans­

permia, existir em tudo as sementes de tudo.


Como se explica então a formação das diversas coisas? Por união
e separação das homeomerias. Assistimos a um passo a mais na divi­
são do ente de Parmênides: primeiro colocam-no em relação com o
fogo que se move e muda (Heráclito); depois dividem-no nas quatro
raízes de Empédocles, para explicar o mundo e o movimento partin­
do delas; agora Anaxágoras o fragmenta nas homeomerias; e não é a
última etapa. As propriedades do ente se conservam, e o movimento
se explica por união e separação.

35
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

As coisas são diferentes porque as homeomerias se agrupam de


diversas formas, segundo a posição que ocupam. Anaxágoras desco­
bre a importância da forma, do eidos, da disposição das coisas. Leva­
da à vida ateniense, ao teatro, esta descoberta de Anaxágoras é a pers­
pectiva. O século V ateniense está voltado para o eidos, para a plástica:
um século de espectadores.
O “noüs” • A causa do movimento é o noús. Para Anaxágoras,
provavelmente, o noüs é uma matéria mais sutil que as demais, mas
não espiritual; a noção de espírito é alheia ao pensamento daquela épo­
ca. No noüs não se encontram as outras coisas; mas algumas delas - as
animadas - têm noús. Este, portanto, carece de mescla.
Anaxágoras alcançou essa doutrina do voüç por meio de consi­
derações astronômicas; é o princípio que rege o universo, e aparece
vinculado à origem do monoteísmo grego3. A doutrina cle Anaxágoras
teve um alcance e uma dignidade que foram além do que seus pró­
prios desenvolvimentos propunham. Platão e Aristóteles valorizavam
muito a teoria do noús e criticavam Anaxágoras por ter feito um uso m ui­
to restrito dela, quase que só para explicar o movimento, sendo que o
voüç prometia ser a explicação da origem do mundo. O noús anaxagó-
rico, separado da matéria ou pelo menos no limite dela, é, contudo, como
que uma inteligência impessoal que, no entanto, ordena os movimen­
tos cósmicos.
O conhecimento, segundo Anaxágoras, tem certa limitação por­
que as homeomerias não são acessíveis aos sentidos. Sua idéia da per­
cepção é contrária à de Empédocles: conhecem-se as coisas por seus
contrários. São estas as duas teses opostas que se contrapõem nessa
época.

d ) D e m ó crito

Os atomistas • São os últimos pré-socráticos. Cronologicamente


chegam quase a coincidir com Sócrates, mas continuam filiados à tra­
dição preocupada com a cpúcnç, e sobretudo com a linha da filosofia

3. Cf. W. Dilthev: I ntroducción a las ciências dei espirilu (trad, de J. Marfas. Revista
de Occidente), pp. 171-81.

36
0
O S PRÉ-SOCRÁT1COS

eleálica. Os dois principais atomistas foram Leucipo e Dcmócrito, Os


dois, pelo menos o segundo, eram de Abdera (Trácia). De Leucipo
quase nada se sabe de especial. Em termos fundamentais, sua doulii
na coincidia com a de Demócrito. Este foi uma grande figura intelec­
tual da Grécia, grande viajante e escritor. De suas obras, corno das dos
demais pré-socráticos, restam apenas fragmentos. Iremos nos relcrir,
portanto, principalmente a Demócrito.
Os átomos • Os atomistas realizam a última divisão do ente de
Parmênides. Chegam aos átomos ((púaiç); ou seja, às partes insecá-
veis, indivisíveis, que não podem mais ser partidas. Esses átomos dis-
imguem-se entre si exclusivamente por terem formas distintas, e de­
las dependem suas propriedades. Movem-se em torvelinho e se engas­
tam de diversas formas, produzindo assim as coisas. Existem muitos
mundos, uns em formação, outros em destruição, outros em existên­
cia atual. As propriedades baseiam-se na forma e também na sutileza
dos átomos. E cada um deles conserva os atributos fundamentais do
ente de Parmênides, que aparece, por assim dizer, pulverizado.
Materialismo • É a primeira tentativa formal de elaborar um
materialismo. Tudo, inclusive a alma, está composto de átomos. Apa­
rece aqui a interpretação material do ente. Por isso o movimento será
antes de tudo movimento local (epopá). Coloca-se então para os ato­
mistas o problema do lugar, do Tónoç onde têm de estar os átomos.
E, com efeito, dirão que estão no vazio. Isso é de grande importância.
O vazio era, tradicionalmente, o não-ser. Mas este não-ser é necessá­
rio para os átomos. Demócrito faz algo muito original: dá um certo
ser ao vazio, e este se toma espaço. Não é o absoluto não-ser (oúk òv),
mas um não-ser relativo Cfari Ôv), em comparação com o cheio, com
os átomos, e é o ser espacial. O problema do ser e do não-ser é mitiga­
do, mas não resolvido, na forma ãtomos-espaço. E a última tentativa
de solução dentro da idéia parmenideana do ente.
O conhecimento • Segundo Demócrito, a percepção se realiza
do seguinte modo: as coisas emitem uma espécie de espectros ou ima­
gens sutis (eiôcola), compostos de átomos mais finos, que penetram
nos órgãos dos sentidos. Assim, a mente recebe uma cópia ou réplica
da coisa, e nisso consiste o conhecimento; trata-se, portanto, de uma
doutrina sensualista.

37
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

As idéias morais de Demócrito já começam a desenhar a tigura


do “sábio”, do oocpóç: imperturbabilidade, serenidade, autodomínio1.
Aitida é física, cosmologia, especulação sobre o céu, o mundo e o mo­
vimento das coisas, em contraste com o ser imóvel; mas agora já en­
tramos em Sócrates.

4, Sobre a idéia de serenidade, ver m eu estudo “Ataraxia y alcionism o" (em El ofi­
cio dcl pensami cnto, I958). [Obras, VI.]

38
II. A s o f is t ic a e Só c r a t e s

Ajsartir do século V começa uma nova fase da filosofia na Gré­


cia. Esse penodo caracteriza-se essencialmente pela volta do homem
para si mesmo. A preocupação com o mundo segue-se a preocupação
com o homem. Esta não estivera ausente anteriormente: vimos a idéia
da vida teorética, a doutrina da imortalidade ou da transmigração etc.
Mas agora o homem se dá conta de que é preciso indagar quem ele é.
Nisso interferiram algumas razões extrínsecas à filosofia: o predomí­
nio de Atenas depois das guerras médicas, o triunlo da democracia etc.
Aparece em primeiro plano a figura do homem que fala bem, do cida­
dão, e o interesse do ateniense volta-se para a realidade política, civil
e, portanto, para o próprio homem.
A Grécia muda consideravelmente de estilo. O cidadão perfeito,
o TtoXxxriç, substitui o ideal antigo do Ka/\.OKáYa9óç, do homem com-
me ilfau t, belo de corpo e com dotes notáveis, talvez o que chamaría­
mos em espanhol de “una bella persona”. Nqxentrq do pensamento
grego não está mais a cpúcnç;, e sim a ev)õoci(iovía, a felicidade, no sen­
tido de desenvolvimento da essência da pessoa. E, como representa­
ção eminente desse tempo, aparece o sofista.

1. Os sofistas

O movimento sofístico aparece na Grécia no século V. Os solistas


lêm certa afinidade com Anaxágoras, no momento em que a lilosolia
irá começar a exercer influência na vida ateniense. Mas apresentam di­
ferenças essenciais. Distinguem externamente por algumas caracte­
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

rísticas: são professores ambulantes, que vão de cidade em cidade,


ensinando os jovens; lecionam por dinheiro, mediante uma retribui­
ção, caso novo na Grécia e que surpreendeu bastante. Tinham grande
brilhantismo e êxito social; eram oradores e retóricos e, fundamental­
mente, pedagogos. Pretendiam saber e ensinar tudo, e certamente qual­
quer coisa e seu contrário, tese e antítese. Tiveram forte influência na
vida grega e foram personagens importantes; alguns, de grande inteli­
gência. Mas o mais sério, aquilo pelo qual nos interessam aqui, são as
interferências da sofística na filosofia.
A palavra sofista deriva do mesmo vocábulo sofía, sabedoria. Fi-
lóstrato diz que a sofística fala a respeito das mesmas coisas que aque­
les que filosofam. E Aristóteles diz: “A sofística é uma sabedoria apa-
rente, mas que não o é, e o sofista, o quejaz uso da sabedoria aparen-
te, mas que não o é.” Nestas brevíssimas citações fica caracterizado o
problema da sofística: fala de temas filosóficos, e parece uma sabedo-
ria. mas não_é. O sofista parece filósofo, mas não é; é um homem es­
tranhíssimo, diz Platão, cujo ser consiste em não ser. Note-se que isso
não quer dizer que nâo seja filósofo ', isso é algo que também acontece
com o carpinteiro; mas este não consiste em não ser filósofo, e sim em
ser carpinteiro, ao passo que o ser sofista consiste em aparentar ser fi­
lósofo e não sê-lo. Temos dois problemas: 1) a filosofia que possa ha­
ver na sofística; 2 ) o problema filosófico da realidade do sofista.
A sofística coloca mais uma vez o problema do ser e do não-ser,
mas a propósito de si mesma e, portanto, do homem. A idéia que a
aristocracia tinha de o que o homem deve ser transformara-se na Gré­
cia. Em vez de ser o homem bem constituído e bem dotado, bom
guerreiro, por exemplo, é o sábio, o homem que tem noüs e sabe o
que deve ser feito e deve ser dito, o bom cidadão. Quando isso se ge­
neraliza na Grécia, como cada homem tem noús e este é comum, o re­
sultado é uma democracia. Esse noüs e o falar em conformidade com
ele são o que importa. Foi, portanto, a filosofia que tornou possível
essa situação e, portanto, a própria sofística.
A sofística move-se num âmbito retórico. Trata-se de dizer as
coisas de modo que convençam, de dizer bem (£ü_À£yEiv). Não importa
a verdade, e por isso é uma falsa filosofia. Diante disso, Sócrates e Pla­
tão reivindicarão o bem pensar, ou seja, a verdade.

40
A SOrlSTlCA I- S('K UAII s

Ademais, é algo público, dirigido ao crt/cu/tio; tcni, poriaiiio, uma


clara tendência politica. E, por último, é uma puideía, uma pedagogia,
a primeira a propriamente existir.
A dimensão positiva da sofistica e sua justificação histórica con­
sistem, ante uma filosofia construída a partir do ente e que abandona
as coisas - eleatismo na exigência de filosofar a partir das coisas e
explicar a razão delas. O importante foi o fato de os sofistas proclama­
rem a inconsistência das coisas e abandonarem o ponto de vista do ser
e da verdade, que viria a ser recuperado - sem deixar de fazer justiça
à exigência sofistica - por Sócrates e Platão, que terão de se indagar
sobre o que as coisas são ou, dito de outra forma, sobre a consistência
das coisas.
Houve muitos sofistas importantes. Conhecemos vários deles de
modo vivo e penetrante pelos diálogos de Platão. O que interessa de­
les são menos os detalhes de sua atuação e suas idéias do que o signi­
ficado geral do movimento. Os de maior importância foram Hípias,
Pródico, Eutidemo e, sobretudo, Protágoras e Górgias.
Protágoras » Era de Abdera, assim como Demócrito. Teve gran­
de influência em Atenas no tempo de Péricles. Ocupou-se de gramá­
tica e da linguagem, foi um grande retórico e demonstrou certo ceti­
cismo quanto à possibilidade do conhecimento, especialmente dos
deuses. Mas sua fama decorre sobretudo de uma frase sua, transmiti­
da por vários filósofos posteriores, que diz: “O homem é a medida de
todas as coisas: das que são, enquanto são, e das que não são, en­
quanto não são.” Esta frase foi objeto de numerosas interpretações,
que vão do relativismo ao subjetivismo. Não podemos entrar nesse
tema. Basta indicar que, segundo Aristóteles, seria preciso primeiro
saber se se refere ao homem como sujeito de ciência ou de sensação;
ou seja, se se refere ao ponto de vista da verdade ou simplesmente ao
da dóxa. Protágoras não fala do ón, mas das coisas na medida em que
se opõem a ele (xpiinaxa), as coisas que se usam, os bens móveis, e
daí vem o sentido do dinheiro (crematística). Trata-se, pois, do m un­
do da dóxa, e portanto a frase está inserida no âmbito das idéias de
Parmênides. A dóxa é “opinião dos mortais’V|nomes que os homens
Çõem nas coisas”, convenção.

41
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Górgias • Górgias era de Leontinos, na Sicília. Foi um dos gran­


des oradores gregos. Escreveu um livro intiiulado Do não-ser, em que
aparece mais uma vez a clara dependência do elealismo. Mostrava as
dificuldades de sua doulrina do enie, afirmando que não existe ne­
nhum ente, que se existisse não seria cognoscível para o homem, e
que se fosse cognoscível não seria comunicável. Com os sofistas che­
ga-se portanto a uma última dissolução da dialética do ser e do não
ser de Parmênides. A filosofia perde-se na retórica e na renúncia à
verdade. Para recolocar de modo eficaz o problema metafísico será
preciso formulá-lo sobre novas bases. É o que Sócrates irá iniciar e
exigir e o que irão realizar Platão e Aristóteles, sobretudo.

2. Sócrates

A figura de Sócrates • Sócrates ocupa a segunda metade do sé­


culo V ateniense; morreu aos 70 anos, em 399, no início do século IV,
que viria a ser o de máxima plenitude filosófica na Grécia^ Era filho
de um escultor e de uma parteira, e dizia que sua arte era, como a de
sua mãe, uma maièutica, a arte de fazer dar à luz na verdade. Sócrates
é uma das personalidades mais interessantes e inquietantes de toda a
história grega; apaixonou seus contemporâneos a tal ponto que isso
lhe custou a vida, e seu papel na vida da Grécia e na filosofia não ca­
rece de mistério. Sócrates teve uma atuação digna e valente como ci­
dadão e soldado; mas, sobretudo, foi o homem da ágora, o homem da
rua e da praça, que fala e inquieta toda a Atenas. No começo, Sócra­
tes parecia ser apenas mais um sofista; foi somente mais tarde que se
percebeu que não o era, muito pelo contrário, que tinha vindo ao
mundo justamente para superar a sofística e restabelecer o sentido da
verdade no pensamento grego. Rapidamente reuniu-se à sua volta um
núcleo de discípulos atentos e entusiastas; o melhor da juventude ate­
niense, e também de outras cidades da Grécia, tinha a atenção fixa nas
palavras de Sócrates; Alcibíades, Xenofonte, sobretudo Platão, contam-
se entre seus apaixonados ouvintes.
Sócrates afirmava a presença junto dele de um gênio ou demônio
(ô«í|ja)v) familiar, cuja voz o aconselhava nos momentos cruciais de

42
A S O I'IS 'll(.A H SOc.KAII s

sua vida. Esse claímon nunca o incitava a agir; na verdade, cm certas


ocasiões, detinha-o e desviava uma ação. lira uma inspiraçào miima,
c(ue às vezes foi interpretada como algo divino, como uma voz da Di­
vindade.
A ação socrática era exasperante. Um oráculo linha dito que nin­
guém era mais sábio que Sócrates; este, modestamente, pretende de­
monstrar o contrário. Para isso vai perguntar a seus concidadãos, pe­
las ruas e praças, quais são as coisas que ele ignora; é essa a ironia so­
crática. O governante, o sapateiro, o militar, a cortesã, o sofista, todos
são alvo de suas perguntas. Que é o valor, que é a justiça, que é a ami­
zade, que é a ciência? Acontece qué eles tampouco sabem; nem se­
quer têm, como Sócrates, consciência de sua ignorância, e, no fim,
constata-se que o oráculo tinha razão. Trata-se de algo extremamente
incômodo para os interrogados, e esse mal-estar vai-se condensando
em ódio, que termina numa acusação contra Sócrates “por introduzir
novos deuses e corrom per a juventude”, um processo absurdo, toma­
do por Sócrates com serenidade e ironia, e uma sentença de morte,
aceita serenamente por Sócrates, que bebe a cicuta em meio a uma
profunda conversação sobre a imortalidade com seus discípulos, sem
querer faltar às leis injustas com a fuga que lhe propõem e garantem
seus amigos.
O saber socrático • Qual o sentido disso? Como pergunta Só­
crates, e por que não conseguem lhe responder? A p rincipal ogqsicão
de Sócrates dirige-se contra os sofistas: seus maiores esforços tendem
a demonstrar a inanidade de sua pretensa ciência; por isso, ante os re­
tóricos discursos dos sofistas coloca seu diálogo entrecortado de per­
guntas e respostas. Se nos perguntarmos qual é, em suma, a contribui:
ção socrática para a filosofia, encontraremos uma passagem de Aristó­
teles em que ele diz categoricamente que lhe devemos duas coisas:
“os raciocínios indutivos e a definição universal”; e Aristóteles acres­
centa que ambas as coisas referem-se ao princípio da ciência. Quando
Sócrates pergunta, pergunta o que é, por exemplo, a justiça, pede uma
definição. Definir é pôr limites numa coisa e, portanto, dizer o que
algo é, sua essência. A definição nos conduz à essência, e ao saber en­
tendido como um simples discernir ou distinguir segue-se, por exi-

43
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

gência de Sócraies, um novo saber, eniendido como definir, que nos


leva a dizer o que as coisas são, a descobrir sua essência (Zubiri). Dis­
so decorre toda a fecundidade do pensamento socrático, voltado para
a verdade, novamente centrado no pomo de visra-d&-stj t do qual a so-
físlica tinha se afastado. Em Sócraies trata-se de dizer verdadeiramen­
te oque as coisas são. E por esse caminho da essênciaxlefinida se che­
ga à_tec>ria platônica das idéias.
A ética socrática • A principal preocupação de Sócrates é o ho­
mem; não é algo novo, pois já vimos que é próprio dos sofistas e de
toda a época; mas Sócrates considera o homem de um outro ponto de
vista: o da interioridade. “Conhece-te a ti mesmo’’ (yvcoGi aeauxóv),
diz Sócrates; traz à tona tua interioridade. E isso introduz um sentido
novo na Grécia, um sentido de reflexividade, de crilica, de maturida­
de, que enriquece o homem grego, mesmo que isso lhe custe perder
algo do impulso ingênuo e animoso com que tinham sido vi'vidos os
primeiros séculos da história grega. Nesse sentido, embora não se pos­
sa falar de cormpção, é certo que Sócrates alterou de maneira decisiva
o espírito da juventude ateniense. (Vide Ortega: Espíritu de la letra.)
O centro da éticajocrática.é o conceito de areté. virtude. É virtu­
de num sentido distinto do usual, e que se aproxima mais daquele
que tem a palavra quando se fala das virtudes das plantas ou de um
virtuoso do violino. A virtude é a disposição última e radical do ho­
mem, aquilo para o qual nasceu propriamente F essa virtude é ciên­
cia. O homem mau o é por ignorância; aquele que não segue o bem é
porque não o conhece, por isso a virtude pode ser ensinada (ética in­
telectualiza), e o necessário é que cada qual conheça sua areté. É esse
o sentido do imperativo socrático: conhece-te a ti mesmo. Por isso é
um imperativo moral, para que o homem tome posse de si mesmo,
seja dono de si, pelo saber. Assim como da definição socrática emergel
o problema da essência e com ele toda a metafísica de Platão e de/
Aristóteles, da moral de Sócrates nascem todas as escolas éticas que
povoarão s Grécia e o Império Romano a partir de então: primeiro, oí

cínicos e cirenaicos; depois, sobretudo, os epicunstas e os estóicos.


Toda a filosofia grega desde o início do século IV tem uma raiz em Só­
crates; o que nele está apenas indicado ou esboçado teve de se reali­
zar em sua fecunda tradição.

44
A S O FIST IC A E S ô C R A T liS

Sócrates deu uma contribuição doutrinal modcsia para a filoso­


fia. Não foi provavelmente homem de muitas e profundas idéias me­
tafísicas, como viriam a sê-lo em seguida Platão e Aristóteles. Seu pa­
pel foi prepará-las e torná-las possíveis, situando a filosofia pela se­
gunda vez na vi a da verdade, na única que ela pode seguir e da qual
fora desviada pela retórica sofística, pela aparente sabedoria do bem
dizer, incapaz de ser outra coisa a não ser opinião.
A transmissão do pensamento socrático • Sócrates nunca es­
creveu nada. Não nos deixou nenhuma página, nenhuma linha pró­
pria. Conhecemos seu pensamento por meio de outros filósofos, espe­
cialmente de seus discípulos. Xenofonte escreveu as Memoráveis, dedi­
cadas às lembranças de seu mestre; também um Symposion ou Banque­
te e uma Apologia de Sócrates. Mas foi sobretudo Platão que conservou
o pensamento e a figura viva de um Sócrates que, por certo, difere bas­
tante do de Xenofonte. O Sócrates platônico é incomparavelmente
mais rico, profundo e atraente que o de Xenofonte. Mas como Platão
faz de Sócrates o personagem principal de seus diálogos e põe em sua
boca sua própria filosofia, às vezes fica difícil determinar onde termina
o autêntico pensamento socrático e onde começa a filosofia original de
Platjjo. Contudo, a questão é clara na maioria dos casos. Outra fonte
de informação sobre Sócrates, indireta mas nem por isso menos valio­
sa, é Aristóteles. A genial penetração aristotélica toma inapreciáveis to­
das as suas indicações; e, afora isso, a convivência de vinte anos com
Platão deve ter dado a Aristóteles uma grande (familiaridade com o
pensamento de Sócrates. Esta terceira fonte é de especial valor para de­
cidir os limites entre as doutrinas socráticas e as do próprio Platão. E
tem um valor quase simbólico o fato de que a doutrina de Sócrates se
encontre fora dele, como a grande fecundidade de sua filosofia1.

1. N ão se deve esquecer o enorme valor histórico da im agem de Sócrates - desfigu­


rada e hostil, mas reflexo de um a atitude social ateniense - em As nuvens, de Aristófanes.

45
III. P la tã o

Vida • Platão nasceu em Atenas no ano de 427 e morreu, na


plenitude de sua vida intelectual, em 347. Pertencia a uma família
nobre e antiga, cujas origens supostamente remontavam a Codro e
Sólon. Seu nascimento e sua vocação pessoal chamavam-no para a
política, mas a atracãn por Sócrates o levou a se dedicar à filosofia.
Depois de duas tentativas de intervenção na vida pública ateniense, a
morte de Sócrates o afastou totalmente dela: restou-lhe apenas o inte­
resse pelos temas políticos, o que fez com gue_atrihüissejam lugar tão
central em seu sistema à teoria do Estado ou tentasse por várias vezes,
embora com graves riscos, que seu discípulo Díon, cunhado do tira­
no Dionísio de Siracusa, realizasse, durante o reinado deste e o de seu
sobrinho Dionísio, o jovem, o ideal do Estado platônico. Esses proje­
tos se frustraram, e a atividade de Platão se restringiu à sua genial me­
ditação filosófica, a seu grande trabalho de escritor e ao ensino vivo
na escola de filosofia que fundou, por volta de_38J, numa proprieda­
de com bosques, próxima do Cefiso, no caminho de Elêusis,_detlica-
da ao herói Academo. e que por isso se chamou Academia. Esta esco­
la perdurou, ainda que com profundas alterações, até o ano de 529 de
nossa era, quando o imperador Justiniano mandou fechá-la. Ali Pla­
tão exerceu seu magistério até a morte, em estreita e profunda colabo­
ração com seu principal discípulo, Aristóteles.
Escritos • A obra de Platão chegou até nós quase completa. É,
com a obra aristotélica, o mais importante da filosofia e de ioda a cul­
tura grega. Afora isso, seu valor literário talvez seja o mais elevado de
todo o mundo helénico e lhe permite encontrar as expressões e as

47
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

metáforas justas para exprimir um novo modo de pensar. A contri­


buição platônica para a formação da linguagem filosófica é incalculá­
vel. Para expressar seu pensamento, Platão escolheu como gênero li­
terário o diálogo, que tem uma profunda relação com sua doutrina da
dialética como método filosófico, e muitos deles são de impressionan­
te beleza poética. O personagem principal_é sempre Sócrates, que car­
rega o peso da discussão. Os diálogos de juventude, Apologia, Críton,
Eutifron, estão fortemente tingidos de socratismo. Entre as obras da ma­
turidade, as mais importantes são Protágoras, Górgias, Eutidemo (sobre
os sofistas), Fédon , sobre a imortalidade da alma; Symposion ou Ban­
quete, sobre o amor; Fedro, onde se encontra a teoria da alma, e a Re­
pública, sobre a justiça e a idéia do Estado. Por último, Teeteto, Parme­
nides - talvez o mais importante dos escritos platônicos -, Sofista e Po­
litico' e nos anos da velhice, Timeu, onde estão as referências à Atlân-
tida, Filebo, e uma obra considerável, a mais extensa em volume, que
contém uma segunda exposição da teoria do Estado, e na qual não
aparece Sócrates: as Leis. A autenticidade de alguns escritos platôni­
cos, particularmente de algumas de suas cartas - algumas delas, como
a VII, têm suma importância -, suscitou sérias dúvidas e problemas.
O pensamento de Platão revela uma evolução que parte da dou­
trina de Sócrates, chega a sua genial descoberta das idéias e culmina na
discussão das dificuldades e problemas que as idéias colocam, em diá­
logo com Aristóteles. Não podemos seguir aqui todo o caminho da
metafísica platônica, e nos limitaremos a expor as linhas mais vivas e
fecundas da filosofia da maturidade, que contêm todo o problema que
veio a pôr em movimento a história posterior do pensamento grego'.

1. As idéias

A descoberta • Qual o problema, com que Platão tem de se ha­


ver? Com o mesmo problema que a metafísica grega vinha levantan­
do desde Pannênides: com o problema do ser e do não-ser. Durante

1. U m a consideração genética do platonism o dentro da filosofia e da história gre­


ga se encontra em m inha já citada Biografia de la filosofia.

48
P i .a i A o

mais de um século, a filosofia hclcnica lutara para resolvei' a d/xiria dc


lornar compaüvel o ente - uno, imóvel e eterno - com as coisas - múl­
tiplas, variáveis, perecíveis. Vimos que a filosofia pré-socrática poste­
rior a Parmênides se constituíra em uma série de tentaLivas de solução
desse problema central, que a rigor não ultrapassam a área intelectual
em que o próprio Parmênides as tinha formulado. Platão, em contra­
partida, dá à questão uma orientação decisiva: dá um passo para a
frente, tão novo e genial que arrasta ele mesmo, e desde então terá de
trabalhar arduamente em torno de seu próprio achado, de sua doutri­
na, que se transforma para ele no problema mais sério. Platão desco­
bre nada menos que a idéia. Que quer dizer isso?
Platão busca o sendas coisas. Mas essa busca tropeça em várias
dificuldades de diversas índoles, que o empurram, de modo coinci­
dente, para uma solução radical e aparentemente paradoxal. Em pri­
meiro lugar. Platão descobre que as coisas, propriamente, não são; se
eu considero, por exemplo, uma folha de papel branco, verifico que a
rigor não é branca; ou seja, não é totalmente branca, mas tem um pou­
co de cinza ou de amarelo; é somente quase branca; o mesmo ocorre
com sua suposta retangularidade: nem seus lados são total e absoluta­
mente retos, nem são retos seus ângulos. Há mais ainda: esta folha de
papel não existiu desde sempre, só há algum tempo; e daqui a alguns
anos tampouco existirá. Portanto, é branca e não-branca, é retangular
e não-retangular, é e não é; ou - o que dá na mesma - não é plena e
verdadeiramente.
Mas, se agora, em segundo lugar, nos detivermos no outro aspec­
to da questão, verificaremos que - embora a rigor não seja branca - a
folha de papel é quase branca. Que quer dizer isso? Ao dizer de algo que
é quase branco, negamos-lhe a absoluta brancura em comparação com
o que é branco sem restrição; ou seja, para ver que uma coisa não é
verdadeiramente branca, preciso saber o que é branco; mas como ne­
nhuma coisa visível - nem a neve, nem a nuvem, nem a espuma - é
absolutamente branca, isso me remete a alguma realidade distinta de
qualquer coisa concreta, que será a total brancura. Em outras palavras,
o ser quase branco de muitas coisas requer a existência do verdadeira­
mente branco, que não é coisa alguma, que está fora das coisas. E a
esse ser-verrladeiro. distinto das coisas, que Platão chama de idéia.

49
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Em lerceiro lugar, esse problema adquire sua maior agudeza se


tivermos presente o ponto de partida de Platão em relação ao conhe­
cimento. Platão move-se no horizonte do pensamento socrático; no
entanlo, Sócrates - que, a rigor, não íaz uma metafísica, mas estabele­
ce o ponto de vista da verdade em filosofia - pretende conhecer o que
são as coisas; isto é, busca as definições. Enquanto Parmênides se move
no âmbito do ser e procura discernir o que é de verdade do que é
/'mera aparência, Sócrates tenta dizer o que (xí) é aquilo que é, ou seja,'
[ definir, descobrir e fixar as essências das coisas. É precisamente nesse (
[ponto que Platão inicia sua filosofia. '
Pois bem, uma definição é, desde já, uma predicação de forma A
é B. Nela deparo com um problema de unidade e multiplicidade.
Quando digo “o homem é um animal que fala”, identifico o animal com
o homem, digo que duas coisas são uma, que A é B. O que torna pos­
sível que eu faça uma predicação verídica? Reparemos que ao dizer A
é B, A funciona duas vezes: primeiro como sujeito, quando digo A;
mas, em segundo lugar, quando digo que é B, não estou só em B, pois
neste predicado está incluído A: em outras palavras, não se trata de
mencionar primeiro A e depois B, sem outra conexão, e sim de que
este B é o ser B de A, e, por conseguinte, A funciona duas vezes. O pres­
suposto da predicação A é B é que A é A; isto é, a identidade de A con­
sigo mesmo, que por sua vez se desdobra nestes dois momentos: I o
que A é uno; 2° que A é permanente.
Quando digo que o homem é um animal falante, é preciso que o
homem seja unívoco e que, ademais, ao referi-lo ao ser falante, conti­
nue sendo homem. A definição no sentido socrático e platônico parte\
)do pressuposto da identidade e permanência dos entes, questão cer- j
\tamente central. Quando quero dizer algo sobre o cavalo, constato
antes de tudo que existem muitos cavalos; em segundo lugar, que os
1 cavalos que agora encontro não são permanentes: nem existiam faz
cinqüenta anos nem existirão dentro de outros cinqüenta; por último,
quando digo que um cavalo é preto, não afirmo algo rigorosamente
correto, porque ele tem algo de branco ou de cinza; o cavalo perfeito,
o cavalo sem mais nem menos, não existe. Pode-se dizer que quase
| predicamos quase propriedades de quase coisas. '

50
Pi a i ao

Platão, que se dá conta disso - e nisso c o i m s u - m ih grmalidadr ,


supõe - e isso é o fundamenlal - que se lr;ita de uni delnio do i .iva
lo, porque este deveria ser um cavalo absoluto e ahsnltiumn iiu- pirto.
Ante essa dificuldade, afasta-se do cavalo concreio, que é c mm r qur
não é por complelo. para buscar o cavalo verdadeiro. I: l’Ialao U'in de
fazer duas coisas: encontrar o cavalo absoluto e a partir dele ciar o > n

ta dos cavalos aproximados que galopam pelo mundo. Platão parle do


mundo das coisas, que não permitem predicações rigorosas, e recorrc
ao mundo em que estas se dão, que chama de mundo das idéias. Mas
que se entende por idéias?
O ser das idéias • A palavra “idéa” ou “eidos” (i§éa, etSoç) quer
dizer fin ira , aspecto: em suma, aquilo que se vê. Também é traduzida,
em certos contextos, por fo rm a ; assim, em Aristóteles aparece como
sinônimo de morpké, e por outro lado equivale nele a espécie. (Em la­
tim, species tem a mesma raiz que o verbo spicio, ver ou olhar, como
ocorre com os vocábulos gregos eiôoç ou i 8éa; entre as significações
de species encontramos também a de beleza ou formosura, e equivale,
portanto, a forma, de onde vem formosus.) Idéia é o que vejo quando
vejo algo. Quando vejo um homem, vejo-o propriamente - isto é, vejo-o
como homem - porque já tenho de antemão a idéia de homem, por­
que o vejo como participante dela; do mesmo modo, quando digo de
um papel que não é totalmente branco, o que permite vê-lo como
quase branco é a ídéíiTdãbírancura. Quando leio uma palavra escrita,
vejo-a instantaneamente porque já possuo sua idéia ; caso se trate de
uma palavra de uma língua totalmente estranha e desconhecida, não
a vejo diretamente e como tal, mas só como um agregado de letras -
cujas idéias respectivas, em contrapartida, possuo; e se passo para
um vocábulo escrito em caracteres que ignoro, a rigor não vejo as le­
tras, nem poderia reproduzi-las sem uma prévia redução, mediante
um exame detalhado, a formas de traços conhecidos. Um homem que
jnão saiba o que é 1er - não simplesmente que não saiba 1er - não vê
\um livro porque carece de sua idéia. A ideia é. portanto, o pressupos-
t£ do conhecimemoe da visão das coisas como tais. A descoberta das
idéias já estava parcialmente preparada na filosofia anterior; recorde­
mos primeiro a perspectiva, mediante a qual as homeomerias de Ana-

5]
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

xágoras podiam adotar formas diversas variando sua posição; em se­


gundo lugar, a definição socrática, que não diz o que é cada coisa con­
creta, mas todas as compreendidas nela; ou seja, a espécie. Mas há uma
grande distância entre esses antecedentes e a doutrina platônica.
O ser verdadeiro, que a filosofia vinha buscando desde Parmêni-
des, não está nas coisas, mas fora delas: nas idéias. Estas são, portan­
to, entes metafísicos aue encerram o verdadeiro ser das coisas: são o que é
autenticamente, o que Platão chama òvxcoç ov. As idéias têm os atri­
butos exigidos tradicionalmente do ente e que as coisas sensíveis não
podem possuir: são unas, imutáveis, eternas; não têm mescla de não-
ser; não estão sujeitas ao movimento nem à corrupção; são de modo
absoluto e sem restrições. O ser das coisas, esse ser subordinado e de­
ficiente, baseia-se no das idéias de que as coisas participam. Platão
inicia a cisão da realidade em dois_rnundns^ o das coisas sensíveis,
que fica desqualificadoTè o dasldéias, que é o verdadeiro e pleno ser.
[ Vemos, pois, a necessidade da idéia: I o Para que eu possa conhe- \
cer as coisas como o que são. 2° Para que as coisas, que são e não são
- ou seja, não são de verdade -, possam ser. 3° Para explicar como é
possível que as coisas cheguem a ser e deixem de ser - em geral, mo­
vam-se ou mudem -, sem que isso contradiga os predicados tradicio­
nais do ente. 4o Para tornar compatível a unidade do ente com a mul-
|tiplicidade das coisas.
O conhecimento • Ao se indagar sobre o ser das coisas, Platão de­
para com algo bastante paradoxal: que essas coisas não têm ser e, por­
tanto, não lhe servem para encontrá-lo. Onde procurá-lo, então? O ser
verdadeiro está nas idéias, mas as idéias não são acessíveis a meu co­
nhecimento direto, não estão no mundo. No entanto, como vimos, co­
nheço-as de algum modo, tenho-as em mim, e por isso me permitem
conhecer as coisas. Como isso é possível? Para resolver essa questão,
Platão recorre a um de seus procedimentos característicos: conta um
mito.)0 mito de Fedro explica, simultaneamente, a origem do homem,\
\o conhecimento das idéias e o método intelectual do platonismo. /
Segundo o famoso mito que Sócrates conta a Fedro às margens
do Ilisso, a alma, em sua situação originária, pode ser comparada a um
carro puxado por dois cavalos alados, um dócil e de boa raça, o outro

52
Pl Al Au

indócil (os instintos sensuais e as paixões), dirigido por um c o c h e ir o

(a razão) que se esforça por conduzi-lo bem. lisse c a r r o , num lugar su-
praceleste ( tóttoç urcepovpávioç), circula pelo mundo tia s ideias, que

a alma assim contempla, mas não sem custo. As dificuldades paia


guiar a parelha de cavalos fazem com que a alma caia: os cavalos p e r­

dem as asas, e a alma fica encarnada num corpo. Se a alma viu as idéias,
por pouco que seja, esse corpo será humano e não animal; conforme
as tenham contemplado mais ou menos, as almas estão numa hierar­
quia de nove graus, que vai do filósofo ao tirano. A origem do homem
como tal é, portanto, a queda de uma alma de procedência celeste e
que contemplou as idéias. Mas o homem encarnado não as recorda.
De suas asas restam tão-somente cotos doloridos, que se excitam quan­
do o homem vê as coisas, porque estas lhe fazem recordar as idéias,
vistas na existência anterior. É este o método do conhecimento: o ho­
mem parte das coisas, não para ficar nelas, para encontrar nelas um
ser que não têm, mas para que lhe provoquem uma lembrança ou re­
miniscência (anámnesis) das idéias em outro tempo contempladas.
Conhecer, portanto, não é ver o que está fora, mas, ao contrário: re-l
cordar o que está dentro de nós. As coisas são apenas um estímulo para
nos afastarmos delas e nos elevarmos às idéias.
As coisas, diz Platão com um a expressiva metáfora, são sombras
das idéias. As sombras são signos das coisas e podem fazer com que eu
as entenda. Os esfarrapados cotos das asas estremecem e querem vol­
tar a brotar; sente-se uma inquietação, uma comichão dolorosa: “a
virtude das asas consiste em levantar as coisas pesadas para cima, ele­
vando-as aos ares, até onde habita a linhagem dos deuses”, diz Platão.
Este é, como veremos em detalhes, o sentido cognoscitivo do éros pla­
tônico: o amor, parúndo da contemplação das coisas belas, dos corpos
belos, acaba por nos fazer recordar a própria idéia da beleza e nos in­
troduz no mundo ideal.
O homem, que é para Platão um ente caído, aparece, no entan­
to, caracterizado por ter visto as idéias, o verdadeiro ser das coisas:
por participar da verdade; é isso o que o define. Um dos mais profun­
dos argumentos usados por Platão para provar a imortalidade da alma
é que esta, por conhecer a verdade, terá certa adequação a ela; já vi-

53
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

mos a vmculação do ente com o noüs em Parmênides. Nesse argumen­


to está implícita toda uma metafísica. (Na filosofia atual, o problema
da eternidade cias verdades foi suscitado de modo agudo - 1 lusserl e
Heidegger. Contrapõe-se a essa idéia a de uma vinculação temporal
das verdades à existência humana. Mas esta é uma questão sumamen­
te complexa, na qual não podemos entrar aqui.)

2. A estrutura da realidade

O mito da caverna • No livro VII da República conta Platão um


mito de extraordinária força, em que representa simbolicamente a si­
tuação do homem em sua relação com a filosofia e, ao mesmo tempo,
a estrutura da realidade. O curioso é que imediatamente antes, no fi­
nal do livro VI, tinha exposto em forma de tese essa mesma doutrina
sobre a realidade e os métodos para conhe.c.ê-la. Esse procedimento
de Platão lembra, com uma essencial alteração da ordem, a técnica
habitual de fazer compreender uma verdade mediante uma represen­
tação poética que se esclarece e precisa de modo intelectual; mas essa
inversão dos termos revela que não se trata de um simples exemplo
metafórico, mas que o mito agrega algo à explicação que o antecede.
O conteúdo do mito resume-se basicamente ao seguinte. Platão
imagina alguns homens que desde pequenos se encontram numa ca- í\
verna provida de uma abertura por onde penetra a luz exterior; estão
presos de modo tal que não podem se mover nem olhar, a não ser
para o fundo da caverna. Fora desta, nas costas desses homens, brilha
o resplendor de um fogo aceso sobre uma saliência do terreno, e en­
tre o fogo e os homens acorrentados há um caminho com um peque­
no muro; por esse caminho passam homens que levam todo tipo de
objetos e estatuetas, mais altos que o muro, e os acorrentados vêem as
sombras dessas coisas, que se projetam sobre o fundo da caverna:
quando os transeuntes falam, os acorrentados ouvem suas vozes como
se procedessem das sombras que vêem, para eles a única realidade.
Um dos acorrentados, livre cle sua sujeição, contempla a realidade ex­
terior; a luz faz com que lhe doam os olhos, e ele quase não vê; o sol
o deslumbra dolorosamente e o cega. Pouco a pouco tenta habituar-

54
PUTÂO

se; primeiro consegue ver as sombras; em seguida, as imagens tias coi­


sas, refletidas nas águas; depois, as próprias coisas. Veiia o céu de noi­
te, as estrelas e a lua; e ao amanhecer, a imagem rellelida do sol, e, por
último, depois de um longo eslorço (YU|ivocma) poderia contemplar o
próprio sol. Então sentiria que o mundo em que linha vivido antes
era irreal e desdenhável; e se falasse a seus companheiros desse mun­
do de sombras e dissesse que não eram reais, eles ririam dele, e se
tentasse salvá-los e arrastá-los para o mundo real, o matariam.
O que está simbolizado nesse mito? A caverna é o mundo sensí- i
vel, com suas sombras, que são as coisas. O mundo exterior é o mun -1
do verdadeiro, o mundo inteligível ou das idéias. As coisas simbolizam
as idéias; o sol, a idéia do Bem. É possível representar, seguindo as
instruções do próprio Platão, a estrutura da realidade a que se refere
o mito da caverna de modo gráfico. 1
O esquema dos dois mundos • Platão distingue duas grandes
regiões do real, o mundo sensível (das coisas) e o mundo inteligível
(das idéias), que simboliza em dois segmentos de uma reta. Cada uma
destas duas regiões divide-se em duas partes, que indicam dois graus
de realidade dentro de cada mundo; há uma correspondência entre as
primeiras e as segundas porções dos dois segmentos. Por último, a
cada uma das quatro formas de realidade corresponde uma via de co­
nhecimento; as duas que pertencem ao mundo sensível constituem a
opinião ou dóxa; as do mundo inteligível são manifestações do noüs.
Nota-se, portanto, a ressonância da doutrina de Parmênides. Esque­
maticamente, a realidade tem, portanto, esta estrutura:

MUNDO SENSÍVEL MUNDO INTELIGÍVEL


(Realidade aparente) (Realidade verdadeira)

sombras coisas reais objetos matemáticos idéias

conjeiura crença discurso visão noética

dóxa noüs

55
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

O sentido do mito • O mito da caverna, narrado por Platão de­


pois da apresentação desse esquema, acrescenta-lhe algo. De modo
concreto, simboliza ao mesmo tempo a estrutura ontológica do real e
a significação da filosofia. Com isso introduz a unidade fundamental
desses mundos. As duas grandes regiões da realidade ficam unifica­
das na realidade em virtude da intervenção do homem que se con­
fronta com elas. O mundo visível e o mundo inteligível aparecem qua­
lificados por sua referência a duas possibilidades humanas essenciais;
o mundo total é um mundo duplo que se integra num só pela passa­
gem do homem. (De outro ponto de vista, hã um segundo vínculo de
unidade, que é o Bem, fundamento ontológico do ser de ambos os
mundos.) Com o homem da caverna acontece algo que poce ser con­
tado: é o relato em que consiste o mito. O tema do mito da caverna é,
em sua dimensão mais profunda, a essência da filosofia, algo que, como
vemos, mais se conta que se define. A filosofia não pode propriamen­
te ser definida; apesar de Platão ser o homem da definição, tem de ser
contada ou narrada. Aquilo que acontece com o filósofo, o drama da
filosofia, é o que a estrutura do real torna manifesto: é essa a dupla
substância do mito da caverna.
Mas não esqueçamos que a viagem do homem do mito é de ida
e volta: o acon-entado, uma vez tendo contemplado o mundo da luz e
a liberdade, volta para a caverna. Isto é, vai explicar, a partir das coi­
sas, as sombras, a partir das idéias, a realidade sensível. Vemos aqui
prefigurada a filosofia de Platão, e a um só tempo notamos que fica
inconclusa, porque Platão tinha de voltar para a caverna para explicar
a partir da teoria das idéias o ser das coisas, e a rigor, como veremos,
não o faz, porque fica no mundo inteligível, deslumbrado e detido
por seus problemas internos. E o trágico final do mito reflete a forma I
como a filosofia era vivida na época de Platão: na morte do filósofo \
por seus companheiros da caverna pulsa a lembrança de Sócrates. j

3. Os problemas da teoria das idéias

O ser e o ente • Vimos antes que Platão se perguntava sobre o


ser das coisas. Constatava-se, no entanto, que elas não tem ser por si,

56
Pla t ã o

têm-no apenas recebido, participado de outra realidade que está fora


das coisas. E então Platão descobria as idéias.
Cumpre deter-se um pouco no que isso quer dizer. Trata-se de
descobrir o modo de ser das coisas, descobrir o que faz com que as
coisas sejam, e por isso, ao mesmo tempo, descobrir aquilo que se
pode saber das coisas; ou seja, o que são. O problema do conhecimen­
to está inseparavelmente unido ao do ser, e por isso é estritamente
metafísico. Não é possível descobrir uma única coisa e vê-la sem ver
sua idéia; sem ver a idéia do homem, não se pode ver um homem; um
animal não pode ver um livro, porque não tem sua idéia^e a realida­
de livro não existe para ele. Em suma, que foi que Platão descobriu, o
que é realmente a idéia?
Na verdade, Platão descobriu o ser das coisas. O ser é o que faz
com que as coisas sejam, que sejam entes. O ser é o ser do ente, e ao
mesmo tempo, saber uma coisa é saber o que essa coisa é; compreen­
der o ser daquele ente. Suponhamos que tenho uma coisa que vou
conhecer. Aquela coisa é um ente; mas, ao conhecê-la, não tenho em
meu conhecimento a coisa em si mesma. Que tenho, então? Tenho o
ser da coisa, o que aquela coisa é; Platão diria “sua idéia”. Diria que se
tratava de ver uma coisa em sua idéia.
Em suma, verificamos que Platão descobriu o ser, diferente do
ente. Parmênides tinha descoberto o ente, as coisas enquanto são. Pla­
tão descobre o ser, o que faz com que as coisas sejam, e verifica que.
este ser não se confunde com as coisas. Mas, além de dislirigui-los, os
separa: as idéias são algo separado das coisas (absoluto). E agora de­
para com uma dificuldade gravíssima: ele se indagava sobre o ser das
coisas, agora encontrou o ser; mas não sabe o que são as coisas. Pla­
tão fica nas idéias, no ser que descobriu. Falta-lhe nada menos que ex­
plicar com as idéias o ser das coisas (Ortega).
Isso ocorre quando um homem faz uma descoberta genial como
a das idéias: fica nelas, mas não chega a explicar as coisas; sua metafí­
sica fica por fazer. (Ver Ortega: Filosofia pura.) É isso precisamente o
que Aristóteles fará. Critica Platão por se servir desses mitos, não por
serem mitos, mas porque por trás deles não há uma metafísica. O
conceito de participação é completamente insuficiente. A (ié0e£,iç é

57
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

o tipo de relação que existe entre as idéias e as coisas. As coisas parti­


cipam cias idéias. As idéias são corno um véu que cobre várias coisas,
c cias participam dele, diz Platão. A idéia do homem é como um véu
comum que cobre todos os homens. Aristóteles dirá que tudo isso são
somente metáforas. O que é, ontologicamente, a participação? O estar
presente das idéias nas coisas; mas qual é a possibilidade ontológica
da participação, qual é esse modo de presença?
A c o m u n id a d e d a s id é ia s • Dentro das próprias idéias surgem
problemas para Platão. Pensemos na idéia do homem. O homem é um
ser vivo, e e racional. O ser do homem é a idéia do homem. Este ho­
mem que aqui tenho é partiãpação da idéiã"3g~ggrvivo, ou da idéia
de racional? Dentro da própria idéia tenho o problema do uno e do
múltiplo. Como resolverá Platão essa koinonia , a comunidade das idéias?
Será algo semelhante à participação. A idéia do homem está em comu­
nidade com a idéia de ser vivo, com a idéia de racional etc.
Por esses caminhos Platão chega a duas noções importantes: a idéia
do ser como gênero supremo e a idéia do bem como “o sol das idéias”
- dirá com uma última metáfora Platão como a idéia das idéias.
O bem • Que é o bem? Que é a idéia de bem? Ames de tudo, tra­
ta-se de uma idéia. Esta idéia está no ponto mais alto da hierarquia
em que todas se encontram, porque as idéias - e é isso que torna pos­
sível uma K o iv c o v í a ou comunidade - estão dispostas e organizadas
hierarquicamente. Da idéia de bem Platão nos diz que é a mais digna
e suprema; que é, repito, o sol das idéias, e, sobretudo, que é a idéia
das idéias. Não se deve entender isso como uma expressão simples­
mente ponderativa, e sim de modo muito mais estrito: a “idéia das
idéias” é a que faz com que as demais sejam idéias, que confere às de­
mais seu caráter de idéias. Mas as idéias são os verdadeiros entes, e,
portanto, se a idéia de bem confere às demais seu caráter, lhes dá seu
ser. Mas quem pode fazer com que sejam? O ser, é claro. O ser faria
com que cada ente fosse ente; estaria presente nos entes, conferindo-
lhes sua entidade. A isso Platão chama o bem; mas na Grécia o bem
era entendido num sentido que se aproxima mais do significado do
plural bem em espanhol [e português]. Isso permite ver de modo vivo

58
P latão

a vinculação entre o ser e o bem. O bem de cada coisa e o que essa


coisa é, aquilo de que pode lançar mão; e, inversamente, uma coisa e
boa se é o que é. Uma boa faca ou um bom político sao os que são
plenamente - verdadeiramente - uma laca ou um político. Isso natu­
ralmente está próximo daquela implicação do ser, do bem e do uno
de Aristóteles, que virão a ser os chamados transcendentais da Escolás­
tica medieval.
Em certo sentido, a doutrina do bem em Platão é sua teologia. O
bem aparece em muitos textos platônicos - embora nem sempre com
suficiente clareza - de uma maneira que induz a entendê-lo como
Deus. Assim sua doutrina foi interpretada, primeiro pelos neoplatôni-
cos e depois por Santo Agostinho, e desse modo atuou em toda a tra­
dição cristã medieval.
O ente como gênero • Resta um segundo ponto importante: a
idéia do ente como gênero. Tratar-se-ia de um gênero supremo. As ou­
tras coisas seriam espécies sucessivas desse gênero único. Desse modo
poder-se-ia fazer uma divisão do ente em gêneros e espécies, uma di­
visão hierárquica, adicionando sucessivas diferenças. A esse ponto de
vista também se opõe resolutamente Aristóteles, por razões profun­
das, que examinaremos mais adiante. A crítica de Aristóteles à teoria
platônica das idéias vai afirmar, portanto, alguns pontos fundamen­
tais: I o Que as idéias não estão separadas das coisas. 2° Que o ente
não é gênero, mas o mais universal de tudo. 3o Que o ente, o bem e o
uno se acompanham mutuamente; e 4o Que o ser se diz de muitas
maneiras, e que essas maneiras se dizem por analogia. Estas duas últi­
mas noções, embora de forma distinta, não são alheias ao pensamen­
to platônico.

4. O homem e a cidade

Em Platão, a idéia de bem aparece ao mesmo tempo como divin­


dade, como artífice ou demiurgo do mundo. Platão supõe a criação de
uma “alma do mundo”, intermediária entre as idéias e as coisas; é a
animadora do mundo. A alma humana é também, como vimos, algo
iniermediàiio: por um lado, está caída, encarnada num corpo, sujeita

59
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ao mundo sensível, cambiante e corruptível; por outro, viu as idéias e


tem uma peculiar conexão com elas: participa, portanto, do mundo
eterno e inteligível das idéias.
Doutrina da alma • Já vimos a origem mítica do homem em Fe-
dro. Platão insiste de modo particular na imortalidade da alma. Filia-se
assim a uma corrente muito profunda da religião e de todo o pensa­
mento grego, sobretudo dos mistérios dionisíacos e órficos, e do pita-
gorismo, que influenciou profundamente Platão, tanto nesse ponto
como no aspecto matemático. As principais provas da imortalidade da
alma baseiam-se em sua simplicidade e imaterialidade e em sua ade­
quação às idéias eternas e à verdade, que é conhecida pela alma. Essas
provas foram tradicionalmente utilizadas pela filosofia grega e cristã.
A alma tem três partes: uma parte concupiscível ou sensual, a
mais relacionada com as necessidades corporais; uma segunda parte
irascível, correspondente aos impulsos e afetos, e, por último, a par­
te racional, mediante a qual é possível o conhecimento das idéias e
a volição em sentido deliberativo, segundo a razão. Este esquema da
psicologia será mais profundamente desenvolvido no pensamento
aristotélico.
Ética • A moral platônica tem um paralelismo estrito com sua
teoria da alma. Há uma correspondência ética rigorosa entre as partes
da psique humana. Cada uma delas tem de estar regida de um certo
modo, tem de possuir uma virtude particular, uma qualidade na qual
consiste seu funcionamento perfeito. A parte sensual requer a mode­
ração, o que se chama tradicionalmente temperança (sophrosyne). À
parte afetiva corresponde a fortaleza ou andría. A parte racional tem
de estar dotada de sabedoria ou prudência, de phrónesis. Mas há ain­
da uma quarta virtude; as partes da alma são elementos de uma uni­
dade e estão, portanto, numa relação entre si; essa boa relação cons­
titui o mais importante da alma e, por conseguinte, a virtude supre­
ma, a justiça ou dikaiosyne. Estas são as quatro virtudes que passaram
como virtudes fundamentais, inclusive para o cristianismo (prudên­
cia, justiça, fortaleza e temperança, segundo a denominação usual).
A cidade • A moral individual tem uma tradução quase exata na
teoria da constituição civil ou politéia , tal como a expõe na República

60
PUTÀO

e depois, de forma atenuada, de mais fácil realização, nas Leis. Como


a alma, a cidade também pode ser considerada um lodo composto de
três partes, que correspondem às psíquicas. Essas partes são as irês
grandes classes sociais que Platão reconhece: o povo - composlo de
comerciantes, industriais e agricultores os vigilantes e os filósofos.
Há uma estreita correlação entre essas classes e as faculdades da alma
humana, e, portanto, a cada um desses grupos sociais pertence de
modo eminente uma das virtudes. A virtude das classes produtoras é,
naturalmente, a temperança; a dos vigilantes ou guerreiros, a fortale­
za, e a dos filósofos, a sabedoria, a phrónesis ou sophía. Também aqui a
virtude fundamental é a justiça, e isso de modo ainda mais rigoroso,
pois consiste no equilíbrio e boa relação dos indivíduos entre si e com
o Estado, e das diferentes classes entre si e com a comunidade social.
É, pois, a justiça que rege e determina a vida do corpo político, que é
a cidade. O Estado platônico é a pólis grega tradicional, pequenas di­
mensões e escassa população; Platão não chega a imaginar outro tipo
de unidade política.
Os filósofos são os “arcontes” ou governantes encarregados da
direção suprema, da legislação e da educação de todas as classes. A
função dos vigilantes é militar: a defesa do Estado e da ordem social e
política estabelecida contra os inimigos de dentro e de fora. A terceira
classe, a produtora, tem um papel mais passivo e está submetida às duas
classes superiores, às quais tem de sustentar economicamente. Em tro­
ca, recebe delas direção, educação e defesa.
Platão estabelece nas duas classes superiores um regime de co­
munidade não só de bens, mas também de mulheres e filhos, que per­
tencem ao Estado. Não existem propriedade nem família privadas, sal­
vo na terceira classe. Os dirigentes não devem ter interesses particula­
res e devem subordinar tudo ao serviço supremo da pólis.
A educação, semelhante para homens e mulheres, é gradual, e é
ela que opera a seleção dos cidadãos e determina a classe a que irão
pertencer, segundo suas aptidões e méritos. Os menos dotados rece­
bem uma formação elementar e integram a classe produtora; os mais
aptos prosseguem sua educação, e uma nova seleção separa os que fi­
carão entre os vigilantes e os que, depois de uma preparação superior,

61
1 llS T Ó R IA DA F ILO S O F IA

ingressam na classe dos filósofos e terão de carregar, porianto, o peso


do governo. Na educação platônica aliernam-se exercícios físicos com
disciplinas intelectuais; o papel de cada cidadão está rigorosamente
lixado segundo sua idade. Tanto a relação entre os sexos como a repro­
dução estão submetidas ao interesse do Estado, que as regula de modo
conveniente. Em toda a concepção platônica da pólis nota-se uma
profunda subordinação do individuo ao interesse da comunidade. A
autoridade é exercida de modo enérgico, e a condição central para o
progresso da vida política da cidade é que esta seja regida pela justiça.

5. A filosofia

Veremos agora o que é a filosofia para Platão. Que se entende por


fiLosofia e por filosofar no momento em que o pensamento helénico
chega a essa primeira plenitude?
No começo do livro VII da República, Platão conta, como já vi­
mos, o mito da caverna, que simboliza, por um lado, a diferença entre
a vida usual e a vida filosófica e, por outro, os diversos estratos da rea­
lidade dentro de seu sistema metafísico.
Por outro lado, diz Platão no Banquete: “Nenhum dos deuses fi­
losofa nem deseja tornar-se sábio, porque já o é; nenhum outro sábio
filosofa; tampouco os ignorantes filosofam nem desejam tornar-se sá­
bios.” E acrescenta mais adiante: “Quem são, portanto, os que filoso­
fam, se não são os sábios nem os ignorantes? É claro que são os inter­
mediários (iiexa^ú) entre estes dois.”
Isso é definitivo. Para Platão não filosofa nem quem é sábio nem
quem é ignorante. Ignorante é simplesmente quem não sabe. O inter­
mediário não sabe, mas se dá conta disso; sabe que não sabe, e por isso
quer saber: fa lta -lhe esse saber. Propriamente falando, nem ao sábio
nem ao ignorante faz falta o saber. Eu não tenho galhos, mas não sin­
to falta deles. Só filosofa quem sente falta do saber. Isso vai nos levar a
duas coisas importantes, que transcendem Platão: a relação que pos­
sam ter com a filosofia, por um lado, o amor, e por outro, a Divindade.
No Banquete fala-se “sobre o amor”, e também se faz um elogio
ao deus Eros, que está intimamente relacionado com a filosofia. Para

62
P latào

Platão, o amor é um sentir falta, um buscar o que não se tem, o que


falta. O Amor, que, segunclo o mito, é filho de Poro e de Pênia, é todo
riqueza, mas ao mesmo tempo é necessitado. O amor e lambem o
amante, o erastes, buscam o que lhes falta, e principalmente a beleza.
Sócrates dirá no Banquete, causando grande escândalo, que se o amor
busca a beleza é porque ela lhe falta, e, portanto, não é Deus. Que é
então? Um grande demônio ou gênio, um metaxy, um intermediário
entre os homens e os deuses. E o mesmo ocorre com o filósofo, que é
também metaxy, intermediário entre o sábio e o ignorante. A sabedo­
ria está entre as coisas mais belas, e o amor é amor pelo belo; é neces­
sário, pois, que o amor seja filósofo. Por meio do belo chega-se ao
verdadeiro, e assim os filósofos são “amigos de olhar para a verdade”.
Há uma comunidade essencial entre beleza e verdade. Sob a idéia do
bem e a da verdade, objeto da filosofia, está, muito próxima, a idéia
do belo. E a beleza, para Platão, é mais fácil de ver que a verdade, se
vê e resplandece mais, se impõe de um modo mais vivo e imediato; a
beleza pode nos levar à verdade: por isso o filósofo é um amador, e da
contemplação da beleza de um corpo se eleva à dos corpos em geral,
em seguida, à das almas e, por último, à das próprias idéias. E é então
que sabe, que tem verdadeiramente sophía.
Lembremos que beleza em latim se diz forma', o que é belo éfor-
mosu s; diz-se também species; mas species, como eidos ou idea, é o que
se vê. O que se vê pode ser a beleza e a idéia ; e o mesmo acontece com
a fo rm a , que é o que constitui a essência de uma coisa, seu bem em
sentido grego.

* * *

Vemos que em Platão aparece, como algo essencial da Filosofia,


um momento amoroso. Mas a coisa não é tão simples, porque em gre­
go amor se diz de muitas maneiras. Principalmente cie três: epcoç,
(piAía e àyájiri. O eros, como vimos, é antes de tudo um desejo do que
não se tem e faz falta, um afã, primordialmente, de beleza. A philía se
encontra na própria raiz da palavra filosofia. É uma espécie de amiza­
de, de cuidado e de trato freqüente. Aristóteles se pronunciava a favor

63
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

da philía no que se refere ao filosofar. O que ficava um pouco à mar­


gem era a agápe, que era uma espécie de dilectio, de estima e amor re­
cíproco; esse conceito, essencialmente modificado pelo cristianismo,
será em São João e em São Paulo a caridade, cantas (Zubiri). E Santo
Agostinho diz esta singela e taxativa frase: Non intratur in ventatem nisi
per caritatem: “Não se entra na verdade a não ser pela caridade.”
Portanto, em três filosofias de tanta magnitude como as de Pla­
tão, Aristóteles e Santo Agostinho, a filosofia tem como método, como
via de acesso à verdade, as três formas do amor grego. Para Platão não
se entra na filosofia a não ser pelo éros\ para Aristóteles, por uma cer­
ta philía] para Santo Agostinho, pela caritas. Doze séculos mais tarde
Espinosa definirá a filosofia como am or Dei intellectualis, e em nosso
século Ortega a definirá como “a ciência geral do amor”.

64
IV. A r is t ó t e l e s

Com Aristóteles, a filosofia grega atinge sua plena e total maturi­


dade, de modo tal que a partir de então começará sua decadência, e ja­
mais voltará a alcançar altura semelhante. A Grécia nem sequer é ca­
paz de conservar a metafísica aristotélica, pois lhe falta entendimento
para os problemas filosóficos na dimensão profunda em que os for­
mulara Aristóteles, e o pensamento helénico se banaliza nas mãos das
escolas de moralistas que povoam as cidades helénicas e em seguida
as do Império Romano. Aristóteles é - com Platão - a maior figura da
filosofia grega, e talvez de toda a filosofia. Determinou em maior me­
dida que qualquer outro pensador os caminhos que depois dele a fi­
losofia viria a percorrer. Foi o descobridor de um profundo estrato das
questões metafísicas; o forjador de muitos dos mais importantes con­
ceitos que o intelecto humano maneja há muitos séculos para pensar
o ser das coisas; o criador da lógica como disciplina que até hoje se
mantém quase nos limites que lhe deu Aristóteles, excetuando-se duas
ou três tentativas geniais ao longo de toda a história da filosofia; o ho­
mem, em suma, que possuiu todo o saber de seu tempo, e que onde
pôs a mão deixou a marca única de sua genialidade. Por isso Aristóte­
les esteve presente de modo incalculável em toda a filosofia, e talvez
por isso seja nosso primeiro problema, aquele com que se tem dc en­
frentar mais seriamente o pensamento atual se quiser expor a razao
de si mesmo e situar-se radicalmente em seu próprio tempo e no au­
têntico problema da filosofia.
Vida ♦Aristóteles não era um grego puro, e sim um macedônio,
embora com fortes influências gregas. Nasceu em Estagira, na penín­

65
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

sula Calcídica, no ano de 384 a.C. Seu pai, Nicômaco, era médico e
amigo do rei da Macedônia, Amintas II. É possível, como assinala Ross,
que essa ascendência tenha exercido influência no interesse de Aristó­
teles pelas questões físicas e biológicas. Aos 18 anos entrou para a es­
cola de Platão, em Atenas; ali permaneceu por dezenove anos, até a
morte do mestre, na qualidade de discípulo e de mestre também, in­
timamente vinculado a Platão e ao mesmo tempo em profunda dis­
crepância. Aristóteles, o único autêntico platônico, mostra qual o sen­
tido exclusivo em que é possível um verdadeiro discipulado filosófico.
Com a morte de Platão, Espeusipo encarrega-se da direção da Acade­
mia, e Aristóteles sai dela e de Atenas. Foi para a Mísia, onde perma­
neceu três anos e se casou; mais tarde, com a morte da esposa, teve
outra mulher, mãe de seu filho Nicômaco; também esteve em Mitile-
ne, na ilha de Lesbos.
Por volta de 343, Filipe da Macedônia convidou-o para se encar­
regar da educação de seu filho Alexandre, que tinha 13 anos. Aristó­
teles aceitou e rumou para a Macedônia. A influência de Aristóteles
sobre Alexandre deve ter sido grande; sabe-se que divergiam em re­
lação à questão da fusão da cultura grega com a oriental, que Aristó­
teles não considerava conveniente. Em 334 voltou para Atenas e fun­
dou sua escola. Nos arredores da cidade, num pequeno bosque con­
sagrado a Apoio Liceu e às Musas, alugou várias casas, que viriam a
constituir o Liceu. Ali tratava com seus discípulos, passeando, das
questões filosóficas mais profundas; por isso foram chamados de peri-
paléticos. À tarde expunha para um auditório mais amplo temas mais
acessíveis: retórica, sofística ou política.
Aristóteles desenvolveu uma intensíssima atividade intelectual.
Quase todas as suas obras são dessa época. Reuniu um material cien­
tífico incalculável, que lhe possibilitou fazer avançar de modo prodi­
gioso o saber de seu tempo. Com a morte de Alexandre, em 323, sur­
giu em Atenas um movimento antimacedônico, que acabou sendo
hostil a Aristóteles: foi acusado de impiedade e não quis - disse - que
Atenas pecasse pela terceira vez contra a filosofia - referia-se à perse­
guição de Anaxágoras e à morte de Sócrates; por isso, mudou-se para
Cálcis, na ilha de Eubéia, onde a influência macedônica era forte, e ali
morreu no ano de 322.

66
A ristó tllls

Obras • Aristóteles escreveu dois lipos de livros: uns, chamados


exotéricos, destinados ao grande público, eram, de lorma geral, diálo­
gos, cuja elegância e valor literário são muilo elogiados; os mu ms, íi
losóficos ou acroamáticos, ou também esotéricos, tratavam das questões
mais profundas e eram dirigidos exclusivamente aos núcleos reduzi
dos do Liceu; sua forma era, em geral, a do curso ou lições, e foram às
vezes conservados com redação provisória, sem elaboração, como
simples anotações. Todos os diálogos se perderam; restam apenas frag­
mentos; em contrapartida, o principal da obra científica de Aristóteles
foi conservado. Deve-se, por certo, levar em conta que entre os escri­
tos aristotélicos encontram-se alguns apócrifos, e em muitos casos fo­
ram feitos em colaboração com discípulos, ou foram redigidos por es­
tes com base em suas anotações e papéis de aula.
Aristóteles divide as ciências em teóricas, práticas e poéticas. É
preciso explicar esta divisão. Poiésis, de onde vem poesia, quer dizer
em grego produção, fabricação; o que a caracteriza é ser uma ativida­
de que tem um fim distinto dela mesma; por exemplo, a fabricação de
um armário, cujo fim é o armário, ou a composição de uma ode, cujo
fim é também a ode. A práxis ou prática é uma ação, uma atividade,
cujo fim é ela mesma, não uma coisa externa ao agir; é superior, por
ter o fim em si, e, portanto, suficiência, a autarquia, tão estimada pe­
los gregos; um exemplo seria a política. A theoría ou contemplação é
um modo de práxis; não devemos esquecer que a teoria é também
prática; não se opõem exceto na medida em que a teoria é a práxis su­
prema, diferentemente do que só é prático, mas não chega a ser teóri­
co. A contemplação é uma atividade cujo fim é ela mesma, mas que
ademais contém em si mesma seu próprio objeto. O político, por exem­
plo, precisa de algo além dele, a cidade, para poder exercer sua ação;
o homem teórico não precisa de outra coisa senão de sua própria men­
te; é o mais suficiente de todos e, portanto, superior.
Dessa distinção depreendem-se três tipos de vida e três modos
de ciência.
E, antes de tudo, uma que não entra em nenhum deles, mas é an­
terior: a lógica. Trata-se - assim foi intitulada - do Órganon, instrumen­
to, e serve para todas as ciências. O Órganon de Aristóteles está com­

67
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

posto de diversos tratados: Categorias, De i nterpretatione, Analíticos (pri­


meiros e segundos), Tópicos, Refutações sofisticas e outros pequenos
escritos lógicos.
As ciências teóricas são a matemática, a física e a metafísica. As
principais obras desie grupo são a Física, o livro Do céu, o Do mundo, o
De anim a e uma série de tratados sobre questões físicas e biológicas; e,
sobretudo, os calorze livros da Metafísica ou Filosofia primeira.
As ciências práticas são a ética, a política e a economia, ou seja,
as da vida individual e social do homem. Suas principais obras são as
três Éticas - Ética a Nicômaco, Ética a Éudemo e Grande Ética (a menor
das três e não autêntica) -, a Política e os Econômicos, estes últimos de
interesse bem inferior, e certamente apócrifos.
As obras poéticas capitais são a Poética, que exerceu extraordiná­
ria influência, e a Retórica.
A isso se deve agregar uma grande quantidade de breves tratados
sobre todas as matérias da enciclopédia científica aristotélica e um re­
pertório de questões variadas, de redação provavelmente posterior,
que se chama Problemas. Foi isso que de mais importante nos restou
da obra de Aristóteles.

1. Os graus do saber

No começo de sua Metafísica, Aristóteles coloca a questão do sa­


ber por excelência, que é justamente o que ele chamou de filosofia pri­
meira e desde a edição de Andrônico de Rodes é tradicionalmente
chamado de metafísica. (Os livros da filosofia primeira foram coloca­
dos atrás dos de física e são chamados de tà metà tà physiká', esta de­
nominação, puramente editorial, foi posteriormente interpretada como
um além da física, como uma transfísica, e desse acaso, como é bem
sabido, nasceu o nome da suprema ciência filosófica.)
A primeira frase da Metafísica diz: “Todos os homens tendem por
natureza a saber.” E logo acrescenta que o sinal disso é o gosto que te­
mos pelas sensações e, sobretudo, pela da vista; e distingue o uso que
fazemos delas por sua utilidade para fazer algo, do gosto que também
temos quando não vamos fazer nada. Mas essas sensações, que su­

68
A r is t õ iiíi I s

põem um ínfimo saber, não são privativas do homem, lambém os ani


mais as têm, e alguns deles até memória, que pela permanência da re­
cordação permite aprender.
O homem, em contrapartida, tem ouiros modo1, siipeiioies de
saber, antes de tudo, a experiência, em paria, no scniido ile "expci ien
cia das coisas”. É um conhecimento de familiaridade com as coisas,
com cada coisa, de um modo imediato e concreio, que so nos e dado
pelo individual. Por isso a empeiria não pode sei cn .in.ula, pode se
apenas dar ao outro condições para adquirii essa mesma expei icncia
Há outro modo de saber mais elevado, que c a arie ou tecnu .i, 117 V11
A arte em seu sentido tradicional, como quando se laia da ai ic de cu
rar, que é 0 exemplo a que mais imediatamente se lelcrc Ai isioieles A
tékhne é um saber fazer. O tekhníles, o perito oti lécnico, c o honicni
que sabe fazer as coisas, sabe que meios empregar paia aliancat os
fins desejados. Mas a arte não nos dá o individual, apenas i ciio um
versai, uma idéia das coisas; por isso pode sei ensinada, poiqne do
universal se pode falar, ao passo que o individual so pode m-i visio 011
mostrado. Portanto, a tékhne é superioi a tmpr/n<1 , mas csia lamhcm c
necessária, por exemplo para curar, porque o medico nao lem tlc cu­
rar 0 homem, e sim Sócrates, um indivíduo que c um homem; porian-
to, diretamente Sócrates, e 0 homem apenas de modo mediaio.
Esta tékhne nos dá o quê das coisas, c ale seu porquê; mas só co­
nhecemos algo plenamente quando o sabemos cm suas causas e em
seus princípios primeiros. Esse saber só a sabedoria, a snphla, pode nos
dar. Esse saber supremo tem de dizer 0 que as coisas ,ao e por que são;
isto é, tem de demonstrar as coisas a partir de seus piiniipios A ciên­
cia, 0 saber demonstrativo se chama em grego epislémc; csia c a verda­
deira ciência, a ciência que Aristóteles busca, Çr)TO\)|Jt'vii i-mcrnínn.
Mas os princípios não são demonstráveis - por isso são princípios .
não derivam de nada; por isso é preciso haver uma iniuição deles, e
esta é o noús, outro momento essencial que, com a epislémc, compõe
a verdadeira sabedona. E com isso chegamos ao grau supremo da ciên­
cia, que tem por objeto o ente enquanto tal, as coisas na medida em
que são, entendidas em suas causas e princípios. Todas as ciências -
diz Aristóteles - são mais necessárias que esta: superior, nenhuma.

69
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

E a esse saber, à filosofia, em suma, chegaram os homens pelo as­


sombro, e o assombro é sempre, hoje como no primeiro dia, a raiz do
filosofar.

2. A metafísica

Aristóteles define a filosofia primeira (Metafísica, IV, 1) como a


ciência que considera universalmente o ente enquanto tal, ou seja, a to­
talidade das coisas enquanto são. As outras ciências estudam uma
parte das coisas, segundo um acidente determinado: por exemplo, a
botânica estuda as plantas enquanto organismos vegetais; a matemá­
tica, as figuras e os números do ponto de vista da medida. A metafísi­
ca^ em contrapartida, tem como objeto a totalidade das coisas, mas
enquanto são, o ente enquanto ente, tò ov f] qv. Por outro lado, Aris­
tóteles diz que a metafísica é uma ciência divina, em dois sentidos: no
sentido de que se Deus tivesse alguma, seria ela, e além disso no sen­
tido de que o objeto da metafísica é Deus; e por isso a chama também
ciência teológica ou teologia, 8K0 ÂòyiKr| èjiioTií,ur|. E, por último, defi­
ne-a em outros lugares como ciência da substância, 7 ie p i xrjç oúoíaç.
Que quer dizer isso? São três ciências, ou é uma só? Esse problema
preocupa profundamente Aristóteles, que volta a ele várias vezes e
afirma a unidade da filosofia primeira. A metafísica é uma ciência úni­
ca, e o é a um só tempo do ente enquanto tal, de Deus e da substân­
cia. Tentaremos mostrar a conexão interna desses três momentos e,
com isso, a unidade da metafísica aristotélica.
O ente enquanto tal • Existem diferentes tipos de entes. Em pri­
meiro lugar, as coisas naturais, os objetos físicos. Para Aristóteles, a na­
tureza é o princípio do movimento das coisas (àp^q tr^ç Kivijoecoç);
algo é natural quando tem em si mesmo o princípio de seu movimen­
to, por exemplo uma árvore ou um cavalo, diferentemente de uma
mesa. (Entenda-se, princípio de seu movimento ou de seu repouso
natural, como a pedra). As coisas naturais são, portanto, coisas verda­
deiras; no entanto, elas se movem, chegam a ser e deixam de ser, e nes­
sa medida não são plenamente entes. Existe outro tipo de entes que
não se movem: os objetos matemáticos. Pareceria que a ciência que

70
A r i s t ô t i I ES

versasse sobre eles seria mais ciência. Mas têm um gravíssimo incon­
veniente: não são coisas; existem na menlc, mas não fora dela, separa­
dos. Se na qualidade de imóveis têm mais dignidade de mies, na m e­
dida em que não existem como coisas são menos entes.
Como teria de ser um ente para reunir as duas condições? Teria
de ser imóvel, mas separado, uma coisa. Esse ente, se existisse, se bas­
taria a si mesmo e seria o ente supremo, o que mereceria em sua ple­
nitude a denominação de ente.
Deus • Mas este ente Aristóteles chama de divino, Deus, 0eóç. E
a ciência suprema que trataria dele seria uma ciência teológica. Ou seja,
Deus é em Aristóteles aquele conjunto de condições metafísicas que
fazem com que um ente o seja plenamente. A ciência do ente enquan­
to tal e a de Deus, que é o ente por excelência, são uma e a mesma.
Esse ente é, por certo, vivo, porque o ser vivo é mais plenamente
que o inerte. Contudo, além disso tem de bastar-se a si mesmo. Re­
cordemos que é possível fazer muitas coisas, e duas possíveis ativida­
des são a poiésis e a práxis. A primeira é essencialmente insuficiente,
pois tem um fim fora dela, uma obra. Se Deus fosse Deus por ter uma
poiésis precisaria, para ser, daquelas obras e não se bastaria a si mes­
mo. Na práxis, em contrapartida, o fim não é a obra o érgon, mas o
próprio fazer, a atividade ou enérgeia. Pois bem: a práxis política, por
exemplo, tem dois inconvenientes; em primeiro lugar precisa de uma
cidade na qual se exercer, e nessa medida não é suficiente, embora o
seja como atividade mesma; em segundo lugar, o saber do político se
refere sempre à oportunidade, ao momento, é um saber cairológico.
Mas, como vimos, há outro tipo de práxis, que é a theoría, a vida
teorética. Trata-se de um ver e discernir o ser das coisas em sua totali­
dade; esse modo de vida é o supremo; portanto, Deus terá de ter uma
vida teorética, que é o modo máximo de ser. Mas não basta; porque o
homem, para levar uma vida teorética, precisa do ente, precisa das coi­
sas para sabê-las, e não é absolutamente suficiente. Essa theoría só se­
ria suficiente se se ocupasse de si mesma; por isso Deus é pensamento
do pensamento, vór|aiç vofjaewç. A atividade de Deus é o saber supre­
mo, e a metafísica é divina por ser ciência de Deus, no duplo sentido
de que Deus é seu objeto e ao mesmo tempo seu sujeito eminente.

71
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Theoría não é uma mera consideração, mas o cuidado de deixar


que as coisas sejam o que são, pô-las na luz (év (pcrcí). Isso é sophia, sa­
bedoria, e, em sentido estrito, só Deus a tem. O homem só pode tê-la
em certos instantes; o que pode ter é u m a filosofia, uma certa amizade
com a sophia. Aristóteles dirá que para que o homem seja filósofo não
basta que tenha essa visão por um instante, é imprescindível que te­
nha uma gÇiç, um hábito, uma maneira de viver. E é isso que é verda­
deiramente problemático (Zubiri).
A substância • Em terceiro lugar, a metafísica como ciência da
substância; é preciso mostrar que essa ciência é una com a ciência do
ente enquanto tal e com a de Deus. Diz Aristóteles (Metafísica, IV, 2)
que o ente se diz de muitas maneiras, mas não de modo equívoco, e
sim analógico; ou seja, em relação a um princípio único que dá uni­
dade aos muitos sentidos. Por isso o ente é uno e múltiplo ao mesmo
tempo. Como veremos mais adiante com maior precisão, o sentido
fundamental do ser é a substância. Os outros modos dependem deste,
porque todos são ou substâncias ou afecções da substância. A cor é
cor de uma substância, e se dizemos três nos referimos a três substân­
cias, e até a privação encerra a mesma referência.
Para que haja uma ciência é preciso haver uma unidade, uma
certa natureza, segundo a qual se dizem as outras coisas. Essa unida­
de é a da substância, que é o sentido principal com que se diz o ser, o
fundamento da analogia. Em todas as formas do ser está presente a
substância, e, portanto, esta não é algo distinto do ente enquanto tal e
de Deus, mas o ente como ente encontra sua unidade na substância.
Trata-se, pois, de uma única filosofia primeira ou metafísica com sua
tríplice raiz.
Começamos buscando a ciência tambcm buscada por Aristóte­
les; descobrimos as características da sophia e vimos que é ciência de
Deus, e que é ciência do ente enquanto tal, porque Deus é o conjun­
to das condições ontológicas do ente. Vimos em seguida que essa ciên­
cia é também ciência divina porque nela o homem se assemelha a
Deus. Vimos, por último, que essa ciência é ciência da substância, que
está presente em todos os modos do ente. 0eóç nada mais é que o enie
enquanto tal, a forma plena da substância, e nisso fundamenta-se a
unidade essencial da ciência buscada.

72
A R I S T Ô T I i I.KS

.3. Os modos do ser

A analogia do ente • Um termo é unívoco quando tem uma úni­


ca significação; por exemplo, homem; equívoco, quando tem uma plu­
ralidade de sentidos independentes, sem outra coincidência senão a
do vocábulo: a palavra gato, que designa um animal doméstico ou um
aparelho para levantar grandes pesos. Vimos que a palavra ser não é
equívoca, apesar de seus muitos sentidos, porque estes têm uma co­
nexão ou unidade entre si, não são inteiramente díspares. É uma pa­
lavra análoga ou analógica, como saudável, que se diz de um alimento,
do passear, de um medicamento, da cor da cara, e em cada caso quer
dizer uma coisa distinta: que conserva a saúde, que a produz, que a
devolve, que é indício dela etc. Coisas distintas, mas que envolvem
uma referência comum à saúde. A saúde é, pois, quem funda a unida­
de analógica. O mesmo ocorre, como vimos, com o ser, que tem sua
unidade na substância, porque todos os modos do ente são substân­
cia ou afecções dela, num sentido amplo.
Convém, no entanto, precisar isso um pouco mais. Ao dizer que
o ser se diz de muitas maneiras, não se quer dizer apenas que existem
muitos entes, nem sequer que existem muitas classes de entes, mas
que a palavra ser significa coisas distintas quando digo que algo é um
homem, ou que é verde, ou que são três, ou que uma moeda é lalsa.
Não são os objetos nomeados que se distinguem, mas é o é que signi­
fica uma coisa distinta em cada exemplo, embora sempre implique
uma alusão, mediata ou imediata, à substância.
Os quatro modos • Aristóteles diz concretamente que o ser se
diz de quatro maneiras. Esses modos são os seguintes: I o, o ser per se
( kcx0' orÒTÓ) ou per accidens ( kcctòc crunPE(3r|KÓç), ou seja, por essência
ou por acidente; 2°, segundo as categorias; 3o, o ser verdadeiro e o ser
falso, e 4o, segundo a potência e o ato. Vamos examinar brevemente o
sentido desses quatro modos de ser.
“Per se” e “per accidens” • Quando dizemos, por exemplo,
que o homem é músico, isso é por acidente. Músico é um acidente do
homem; é, simplesmente, algo que acontece ao homem, mas que não
pertence a sua essência. Quando dizemos que o justo é músico, tam-

73
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

bém é per accidens, porque os dois pertencem como acidentes a um


sujeito, homem, que é músico e justo. O ser per se se diz essencial­
mente; o homem é um ser vivo, por exemplo, não acidentalmente,
mas por sua essência. Esse ser essencial se diz em diferentes acepções,
que são os modos segundo os quais se pode predicar o ser. E esses mo­
dos são os chamados predicamentos ou categorias.
Categorias • As categorias são os diversos modos como o ser pode
ser predicado. E são, por isso, as flexões ou quedas do ser, ttccúoeiç tcw
Ôv t o ç . Aristóteles fornece várias listas desses predicamentos, e a mais
completa compreende dez: substância (por exemplo, homem), quan­
tidade (de quatro palmos de altura), qualidade (branco), relação (do­
bro), lugar (no Liceu), tempo (ontem), posição (sentado), estado (cal­
çado), ação (corta), paixão (cortam-lhe). Não se trata da diferença en­
tre essas coisas, mas de que o próprio ser se flexiona em cada um desses
modos e quer dizer uma coisa diferente em cada uma das categorias.
Por isso, se à pergunta “o que é isto?” se responde “sete”, trata-se, sem
considerar a veracidade ou falsidade, de uma incongruência, porque o
é da pergunta se move na categoria de substância, e a resposta na de
quantidade. Essas categorias têm uma unidade que é justamente a subs­
tância, porque todas as demais se referem a ela: é o caso mais claro da
unidade analógica. A substância está presente em todas as outras ca­
tegorias, que não têm sentido exceto a partir do pressuposto dela, à
qual em última instância se referem.
O verdadeiro e o falso • A veracidade ou falsidade se dá prima­
riamente no juízo. O enunciado A é B, que une dois termos, encerra
necessariamente verdade ou falsidade, conforme una o que está na
realidade unido ou o que está separado; o inverso pode ser dito da
negação. Mas há um sentido mais radical de verdade ou falsidade,
que é a verdade ou falsidade das coisas, a do ser. Assim, dizemos que
algo é uma moeda falsa, ou que é café verdadeiro. Aqui a verdade ou
falsidade corresponde à própria coisa. E quando dizemos que 2 mais
2 são 4, o sentido do verbo ser é o de ser verdade. Algo é verdadeiro
(òdr|6éç) quando mostra o ser que tem, e é falso (v|/euôoç) quando mos­
tra outro ser que não o seu, quando manifesta um por outro; quando
tem, portanto, aparência de moeda o que é um simples disco de chum­

74
A r ist ó i I I I s

bo. O disco de chumbo, como tal , é peiieilameme verdadeiro, mas e


falso como moeda : ou seja, quando pretende ser uma moeda sem sé-lo,
quando mostra um ser aparencial que na realidade não tem. Aqui apa
rece o sentido fundamental da verdade (áÀijSeia) em grego. Verdade e
estar descoberto, patente, e há falsidade quando o descoberto não é o
ser que se tem, mas um aparente; ou seja, a falsidade é um encobri­
mento do ser quando se descobre em seu lugar um enganoso, como
quando se encobre o ser de chumbo por trás da falaz aparência de
moeda que se mostra.
A potência e o ato • Por último, o ser se divide segundo a potên­
cia (5úva|iiç) e o ato (èvépyeia). Um ente pode ser atualmente ou ape­
nas uma possibilidade. Uma árvore pode ser uma árvore atual ou uma
árvore em potência, em possibilidade, por exemplo uma semente. A
semente é uma árvore, mas em potência, como a criança é um ho­
mem, ou o pequeno, grande. Mas é preciso ter em mente duas coisas:
em primeiro lugar, não existe uma potência em abstrato, uma potên­
cia é sempre potência para um ato; isto é, a semente tem potência
para ser carvalho, mas não para ser cavalo, nem sequer pinheiro, por
exemplo; isso quer dizer, como afirma Aristóteles, que o ato é ante­
rior (ontologicamente) à potência; como a potência é potência de um
ato determinado, o ato já está presente na própria potencialidade. O
carvalho está presente na bolota, e a galinha no ovo; pela simples ra­
zão de que não existem ovos assim, sem mais, em abstrato, mas que o
ovo é, por exemplo, de galinha, o que significa que a galinha já está
implicada no ovo e é quem lhe confere sua potência. Em segundo lu­
gar, o ser em potência, para existir, precisa ter certa atualidade, embo­
ra não como potência. Isto é, a semente, que é carvalho em potência,
é bolota em ato, e o ovo - galinha em potência - é um ovo atual e m ui­
tíssimo real. O mesmo ente tem, portanto, um ser atual e o ser potên­
cia de outro ente. Isso é sumamente importante para a interpretação
metafísica do movimento.
A idéia de atualidade se expressa em Aristóteles com dois termos
distintos: enérgeia (èvépTEUx) e enteléquia (èvieAíxeioc). Embora às ve­
zes sejam usados como sinônimos, nâo são equivalentes, porque enér­
geia indica a simples atualidade, ao passo que enteléquia significa o

75
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

que atingiu seu fim, seu telos, e, portanto, supõe uma atualização. De
Deus, que é ato puro, que não tem, como veremos, potência nem mo­
vimento, que é, portanto, atual, mas não atualizado, cabe dizer que é
enérgeia, mas não, a rigor, enteléquia.
Vemos, pois, que os modos do ser, que são quatro, têm uma uni­
dade analógica fundamental que é a da substância. Por isso Aristóte­
les diz que a pergunta fundamental da metafísica é: “o que é o ser?” e
acrescenta a título de esclarecimento: “isto é, o que é a substância?”
Examinaremos agora a análise ontológica da substância que Aristóte­
les faz.

4. A substância

Substância se diz em grego ouoía. Esta palavra quer dizer na lin­


guagem usual haveres, fortuna, bens, aquilo que se possui. É o con­
junto das disponibilidades de uma coisa, aquilo de que se pode lan­
çar mão. Em espanhol só encontramos um sentido semelhante quan­
do falamos de que algo tem muita substância; um caldo, por exemplo,
que dizemos ser substancioso; ou também, em outro sentido, quando
falamos de uma pessoa insubstancial, carente de substância. A pala­
vra substância aponta para outra ordem de idéias: é sub-stantia, o que
está debaixo, sujeito, em seu sentido literal de sub-jectum, que é a tra­
dução, não de oúoía, mas de outro termo grego u7ro%eí]u.evov, que
quer dizer substrato ou sujeito. Esse momento é decisivo: a substân­
cia é suporte ou substrato de seus acidentes; o vermelho, o duro, o
quadrado etc. estão suportados pela substância mesa. Por outro la­
do, os acidentes são predicados de outra coisa, de um sujeito, e inver­
samente, a substância não é predicado de nenhuma outra coisa. A me­
sa é mesa por si ao passo que o vermelho é vermelho da mesa. Mas
não se deve esquecer que esse sentido de substrato não é o primário,
e sim o de ousía, e que justamente por ter um haver próprio pode a
substância ser um sujeito ao qual se atribuam como predicados os
acidentes. Por isso, a substância é antes de tudo coisa, algo separa­
do, independente, que existe por si e não em outro. E o modo funda­
mental da substância é a natureza (cpúotç), porque vimos que consis­

76
A r is t ó t e l e s

te no princípio do movimento, naquilo que constiuii as possibilidades


próprias de cada coisa.
Mas existem várias classes de substância. Antes de Uulo, lemos as
coisas concretas, individuais: este homem, esta arvore, esia pedra São
as substâncias em sentido mais rigoroso, as que Aristóteles chamara
de substâncias primeiras. Mas temos outro tipo de entes, que sao os

universais, os gêneros e as espécies, o homem ou a árvore (ou seja, o


correlato das idéias platônicas). Evidentemente, náo sflo substancias
em sentido rigoroso de coisas separadas; Aristóteles nega isso, mas a
que outra categoria podem corresponder? E claro que a nenhuma,
salvo à de substância; e então terá de distingui-las como substâncias
segundas. Que quer dizer isso? Qual é a estrutura ontológica da subs­
tância? Para explicá-lo, Aristóteles recorre à sua genial teoria da maté­
ria e da forma.
Matéria e forma • A substância é interpretada como um com­
posto de dois elementos: matéria e forma. Náo se trata de ctuas parles
reais que se unem para formar a substância, mas de dois momentos on­
tológicos que a análise pode distinguir na ousía. A matéria é aquilo de
que é feita uma coisa; a forma é o que faz com que algo seja o que é.
Por exemplo, a matéria de uma mesa é a madeira, e a forma, a de
mesa. A matéria (i)A,r|) e a forma (juopípii, eiSoç) não podem existir se­
paradas, só é possível encontrar a matéria informada por uma forma, e
a forma informando uma matéria. E não se deve entender a forma em
senlido exclusivamente geométrico, que é secundário, mas como aqui­
lo que confere o ser: ou seja, a madeira ou a carne têm, por sua vez,
forma de madeira ou de carne, e a esta forma pode-se superpor outra,
por exemplo a de mesa. Desse modo, a madeira, que seria uma certa
forma, funcionaria como matéria em relação à forma de mesa.
O ente concreto é o composto hilemórfico (de hyle e morphé ) e
também é chamado oúvoXov. O universal é forma, mas não está, como
as idéias platônicas, separado das coisas, e sim presente nelas, infor­
mando-as. Isto é, o homem, a espécie homem não eslá separada de
cada homem, mas presente nele, como forma humana. Assim se ex­
plica pela vez primeira o problema da relação das idéias ou espécies

77
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

com as coisas individuais, que Platão tentou em vão esclarecer com o


conceito insuficiente de participação. Os universais são substâncias,
mas abstratas, momentos abstratos de cada coisa individual, e por
isso se chamam substâncias segundas.
Há uma estreita relação entre a matéria e a forma e a potência e
o ato. A matéria é simplesmente possibilidade, é potência que só se
atualiza informando-se; não tem, portanto, realidade por si mesma.
Por essa razão, Deus, que é pura realidade atual, não pode ter maté­
ria, porque não tem mescla de potência e ato, é ato puro. Essa teoria é
a que permite, pela primeira vez desde Parmênides, resolver o proble­
ma do movimento.
O movimento • Recordemos que eram dois os graves problemas
debatidos na filosofia grega, intimamente relacionados entre si: o da
unidade do ser e da multiplicidade das coisas, e o do movimento. Os
dois confluíam na grande questão do ser e do não-ser. Vimos que a pri­
meira parte do problema encontra sua solução em Aristóteles admi­
tindo que o ente é uno, mas ao mesmo tempo múltiplo, mediante a
analogia, que concilia e resolve a aporia. Vejamos agora o que se refe­
re mais concretamente ao movimento.
Mover-se ou mudar é chegar a ser e deixar de ser. Todo movi­
mento supõe dois termos, um princípio e um fim. Esta dualidade é
impossível ontologicamente se o ente é uno. Pois bem, dentro da me­
tafísica aristotélica, essa impossibilidade não subsiste. Que é o movi­
mento para Aristóteles? A definição que ele dá, aparentemente obscu­
ra, é no fundo de grande clareza: a atualidade do possível enquanto pos­
sível. Já indicamos os pressupostos necessários para entendê-la. Vimos
que um ente em potência, como a semente ou o ovo, tem também
certa atualidade, qual seja: a que torna possível comer um ovo ou co­
merciar trigo, que é um negócio de realidades, e não de puras possi­
bilidades. Quem come um ovo come um ovo em ato, não uma galinha
em potência; quando essa potência, em vez de permanecer como pos­
sível, se atualiza, há movimento, que é concretamente a geração. Ve­
rifica-se então o que costuma ser chamado de passagem da potência
ao ato, e com mais rigor, a passagem do ente em potência ao ente
atual. O movimento era impossível desde Parmênides, porque era en­

78
A r is t ó t e l e s

tendido como uma passagem do nào-scr ao scr, ou vice-versa. A teo­


ria da analogia do ente permite ver que se trata da passagem de um
modo do ser a outro; isto é, que nos movemos sempre no âmbito tio
ser uno e múltiplo. Dessa maneira o problema crucial do movimento
atinge sua solução madura dentro da filosofia helénica, e a física como
disciplina filosófica se torna possível, já que se pode falar, do ponto
de vista do ser, de uma natureza.
As causas • Para Aristóteles, a ciência, que é do universal, por­
que o individual tem uma infinidade de aspectos e não pode se esgo­
tar num saber, e que não é do acidente, mas da essência, é antes de
tudo ciência demonstrativa, que faz conhecer as coisas por suas cau­
sas e princípios. Saber não é mais discernir, como nos pré-socráticos;
nem sequer definir, como em Sócrates e Platão, mas demonstrar, sa­
ber o porquê. (Cf. Zubiri: Filosofia y metafísica.) Os princípios são, a
um só tempo, princípios do ser e do conhecer; em Aristóteles a teoria
do conhecimento está, como em toda autêntica filosofia, vinculada
essencialmente à metafísica. As causas são os possíveis sentidos em
que se pode perguntar por quê. Aristóteles, no livro 1 de sua Metafísi­
ca, retoma as doutrinas dos predecessores para rastrear nelas, de
modo balbuciante, a própria teoria das causas. Estas são quatro: cau­
sa material, causa formal, causa eficiente e causa final.
A causa material é a matéria, aquilo de que algo é feito. A causa for­
mal ou forma é o que informa um ente e faz com que seja o que é. A
causa eficiente é o princípio primeiro do movimento ou da mudança, é
quem faz a coisa causada. Por último, a causa final é o fim, o para quê.
Por exemplo, se tomarmos uma estátua, a causa material é o bronze de
que está feita; a causa formal, o modelo; a eficiente, o escultor que a fez,
e a final, aquilo para que se esculpiu; por exemplo, o adorno ou a co­
memoração. A causa formal e a final coincidem com freqüência'.
Deus • Já temos elementos suficientes para compreender a teo­
ria de Aristóteles, exposta principalmente no livro XII da Metafísica.

1 Sobre as dificuldades internas da teoria aristotélica da substância e de sua in ­


terpretação d o ponto de vista de matéria e forma, potência e ato, ver m m h a Biografia âc.
la filosofia, ap. 11 (Obras, vol. II, p p. 487-94).

79
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Deus é o primeiro motor imóvel. Que significa isso? Todo móvel preci­
sa de um motor. A é movido por B; este, por C, e assim sucessivamen­
te. Até quando? Teria de ser até o infinito, eiç ifoteipov, mas isso é im­
possível. É preciso que a série dos motores termme em algum mo­
mento, que haja um motor que seja primeiro. E esse motor tem de ser
imóvel, para não necessitar por sua vez de mais um motor e assim até
o infinito. Esse motor imóvel, como o objeto do amor e do desejo, que
move sem ser movido, é Deus. 0eóç aristotélico é o fim, o telos de to­
dos os movimentos, e ele mesmo não se move. Por isso tem de ser ato
puro sem mescla nenhuma de potência, e é, portanto, forma sem ma­
téria. É, por conseguinte, o sumo de realidade, o ente cujas possibili­
dades são todas reais: a substância plena, o ente enquanto tal.
O Deus de Aristóteles é o momento absoluto do mundo. Sua missão
é tornar possível o movimento, e mais ainda, a unidade do movimen­
to: é ele, portanto, que faz com que haja um Universo. Mas não é cria­
dor; esta idéia é estranha ao pensamento grego, e será ela que marca­
rá a profunda diferença entre o pensamento helénico e o cristão. O
Deus de Aristóteles está separado e consiste em pura theoría, em pen­
samento do pensamento ou visão da visão vór|criç vor|aecoç. É só nele
que a rigor se dá a contemplação como algo que se possui de modo
permanente. O Deus aristotélico é o ente absolutamente suficiente, e
por isso é o ente máximo. Nessa teoria culmina toda a filosofia de
Aristóteles.
O ente como transcendental • Resta abordarmos, para comple­
tar esta rápida visão da metafísica aristotélica, um ponto especialmen­
te importante e difícil. Como vimos, Platão considerava o ente gênero
supremo. Esse gênero se dividiria em espécies, que seriam as diferen­
tes classes de entes. Aristóteles nega categoricamente que o ser seja
gênero. E a razão que dá é a seguinte: para que seja possível a divisão
de um gênero em espécies é preciso acrescentar ao gênero uma diferen­
ço específica; assim, ao gênero anim al acrescento a diferença racional
para obter a espécie homem; mas isso não é possível com o ser, porque
a diferença tem de ser distinta do gênero, e se a diferença é distinta do
ser, não é. Portanto, não pode haver nenhuma diferença específica que
se agregue ao ser, e este, portanto, não é gênero.

80
ÀRISIOTI I I s

O raciocínio de Aristóteles é incontestável No entanto, depois de


reconhecer sua indiscutibilidade, resta certo mal estar, porque se per
cebe de modo igualmente evidente a possibilidade de dividir o enle.
Basta pensar nas diferentes classes de entes que existem para perceber
que, com efeito, a divisão é possível. Aristóteles por certo não negaria
isso, e ele mesmo faz várias divisões. Então, o que quer dizer tudo
isso? Algo muito simples: não se pode confundir a divisão em gêneros
e espécies com a divisão sem mais nem menos. O ente pode ser divi­
dido, mas não com uma divisão tão simples. Há uma articulação on­
tológica muito mais complexa, e esta é, precisamente, a analogia do
ente. Existem muitos modos de ser, mas não são espécies, e sim, por
exemplo, categorias, flexões do ente, e o ser está presente em todos es­
ses modos, sem se confundir com nenhum deles. Aristóteles diz que
o ente é o mais universal de todas as coisas, koí0óA.od |iá^iaxa mvxwv,
que envolve e penetra todas, sem se confundir com nenhuma. O ser é
um dos que a filosofia medieval chamou de transcendentais, principal­
mente o ente, o uno e o bem. Não são coisas, mas penetram todas as
coisas e - diz Aristóteles - acompanham-se mutuamente. Um ente é
uno, e seu ser é seu bem em sentido aristotélico. É a unidade tripla do
Ôv, ou èv e ou àyaSóv.
A essência • Aristóteles distingue os termos substância e essên­
cia. Essência se diz em grego com uma expressão estranha, xò xí fjv
eivai, que foi traduzido assim em latim: quod quid ercit esse, literalmen­
te o que era o ser. O interessante é esse pretérito que se introduz no
nome da essência. A essência é, portanto, anterior ao ser, é o que o tor­
na possível, o que faz com que seja. Não se deve entender que a essên­
cia seja um conjunto de características especialmente importantes de
um ente, mas expressa o que faz com que aquilo seja o que é. Quando
dizemos que o homem é animal racional, ou animal que tem lógos, que
fala, não significa que tomamos duas características centrais do ho­
mem, sua animalidade e sua racionalidade, e as unimos, mas que essa
animalidade e essa racionalidade, essencialmente unidas, são as que fa­
zem com que um ente determinado seja um homem. Por isso, quando
se diz que o lógos dá a essência de uma coisa, isso não quer dizer sim­
plesmente que enuncia suas características centrais, mas que na verda­

81
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

de manifesta ou torna patente o ser oculto em que consiste a coisa, o


que a faz ser. A essência tem sempre um estrito significado ontológico
e não deve ser entendida como mero correlato da definição.

5. A lógica

Como já vimos, o conjunto dos tratados lógicos de Aristóteles se


agrupa sob o título general - cunhado por Alexandre de Afrodisias -
de Órganon ou “instrumento”. É a primeira obra em que se estudam
direta e sistematicamente os problemas da lógica, em que esta se cons­
titui como disciplina. A tal ponto, que todo o corpus da lógica aristo-
télica perdura até hoje, quase sem alteração, e só em raros momentos
da história foram introduzidos pontos de vista novos. A perfeição des­
sa obra aristotélica pesou - não sem perturbação - sobre o pensamen­
to lógico posterior e talvez tenha dificultado sua evolução. Mas não
se deve esquecer que a lógica aristotélica tradicionalmente usada foi
bastante formalizada e banalizada, e que a fecundidade do Órganon em
sua forma originária está longe de estar esgotada. Vejamos, antes de
tudo, o sentido dessa disciplina no conjunto da obra de Aristóteles e
a conexão do lógos com o ser e com a verdade.
O “lógos” • A palavra lógos (Aóyoç) quer dizer em grego palavra.
Em latim foi traduzida por verbum, e assim aparece no começo do
evangelho de São João: In principio erat Verbum. Mas também quer di­
zer proporção, razão em sentido matemático, e, portanto, sentido; e, fi­
nalmente, razão em sua significação plena. Mas não esqueçamos que
seu sentido primário deriva do verbo légein, reunir ou recolher e, tam­
bém, dizer. Lógos é o dizer, isto é, a voz significativa.
O lógos diz o que as coisas são, e tem uma estreita relação com o
ser. Os princípios lógicos, por exemplo o de identidade, o de contra­
dição etc., são princípios ontológicos que se referem ao comportamen­
to dos entes. Eu não posso dizer nem pensar que A é e não é C ao
mesmo tempo porque A não pode sê-lo e não sê-lo. A lógica nada mais
é senão metafísica. Pois bem, vimos que o ser se diz de muitas manei­
ras. Com que modo de ser tem a ver o lógos? Evidentemente, com o
ser do ponto de vista da verdade ou da falsidade.

82
A r i s t õ t i : u ;s

Vimos que o verdadeiro e o falso dependem tie como se inani les­


ta ou se lorna paterue o ser das coisas. Verdade ou falsidade só exis­
tem no âmbito da verdade em sentido amplo, entendida como alé/heia,
como descobrimento, desvelamento ou paienteamenio. E as coisas se
manifestam de modo eminente no dizer, quando se diz o que são,
quando se enuncia seu ser. Por isso Aristóteles diz que o lugar natural
da verdade é o juízo. Quando digo A é B, enuncio necessariamente
uma verdade ou uma falsidade, o que não ocorre em outros modos da
linguagem, por exemplo num desejo (“tomara que chova”) ou numa
exclamação (“ai!”). O dizer enunciativo coloca as coisas na verdade.
Mas é claro que essa possibilidade funda-se no caráter de verdade das
próprias coisas, na possibilidade de seu patenteamento.
A verdade mostra o ser de uma coisa, e a falsidade o suplanta por
outro. No juízo verdadeiro, uno o que na verdade está unido, ou se­
paro (em meu juízo negativo) o que está separado, ao passo que no
juízo falso faço o contrário.
O homem é o animal que tem logos; é, portanto, o órgão da ver­
dade. É o ente no qual transcorre a verdade das coisas, o que as des­
cobre e as põe em sua verdade (Zubiri). Por isso Aristóteles diz que a
alma humana é em certo sentido todas as coisas. Existe uma relação
essencial entre o ser e o homem que o sabe e o diz. O que funda essa
relação é o saber, a sophía, a filosofia. Nela o ser alcança sua realidade
atual, à luz da verdade.
O conteúdo do “órganon” • O tratado das Categorias com que
se inicia a Lógica aristotélica estuda em primeiro lugar os termos e
distingue o uso isolado deles - sem complexão, aveu ou|a7iA.oidiç - de
seu uso ligado - segundo a complexão, kcctcc ou(í7i:A.oktiv. Isso leva
Aristóteles à doutrina das categorias (ou predicamentos), que por si
mesmas não afirmam nem negam nada e, portanto, não são verdadei­
ras nem falsas até entrarem numa complexão, para formar proposi­
ções ou juízos.
O tratado da Interpretação ou Hermenêutica (riepi epixnveíaç;)
distingue, antes de tudo, duas classes de palavras: o nome (ovo(ja) e
o verbo (pf)|aa). O nome é uma voz significativa (cpcovij onjxfxvxiKn) por

83
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

convenção, sem referência ao tempo, e nenhuma de suas partes tem


significação separadamente. O verbo acrescenta à sua significação a
do tempo e é signo de algo que se diz de outra coisa; ou seja, o ver­
bo funciona dentro da oração ou discurso (Aóyoç), que é uma voz sig­
nificativa cujas partes têm significação independente; mas nem todo
lógos é enunciação, só aquele em que reside a verdade ou falsidade;
ou seja, a afirmação (Kaxácpamç) e a negação (àraScpacnç) são as duas
espécies em que se divide a enunciação, á7iócpavmç, ou lógos apophan-
tikõs. A partir desses pressupostos Aristóteles estuda as relações entre
as proposições.
Os Primeiros analíticos contêm a teoria aristotélica do silogismo,
que constitui um capítulo central da lógica, elaborado de modo qua­
se perfeito por Aristóteles. O silogismo (ctdàà.oyig^óç) se opõe em cer­
to sentido à indução (emxywyf]): esta, embora às vezes apareça como um
procedimento de raciocínio, redutível ao silogismo (indução comple­
ta), tem valor de intuição direta que se eleva da consideração dos ca­
sos particulares e concretos aos princípios; as coisas induzem a se ele­
var aos princípios universais.
Os Segundos analíticos focalizam o problema da ciência, e por­
tanto da demonstração (OTióõeiÇiç). A demonstração leva à definição,
correlato da essência das coisas, e se apóia nos primeiros princípios,
que, como tais, são indemonstráveis e só podem ser apreendidos di­
reta ou indiretamente pelo noüs. A ciência suprema, como vimos em
outro lugar, é demonstrativa, mas seu fundamento último é a visão
noética dos princípios.
Aqui culmina a lógica aristotélica. Os dois últimos tratados, os
Tópicos e os Argumentos sofísticos, são secundários e se referem aos lu­
gares comuns da dialética, usados na argumentação provável, e à aná­
lise e refutação dos sofismas1.

2. Sobre o problem a da lógica aristotélica e de suas interpretações tradicionais


ver m in h a Introducción a Ia filosofia, ap. 61 (Obras, vol. II). Cf. tam bém Ensayos de teo­
ria (Obras, IV, pp. 414-9) e La filosofia dei Padre Gratry (Obras, IV, pp. 274-7 e 312-4).

84
A r is t ó t e l e s

6. A física

A ciência física • A física tem por objeto os entes móveis. Com­


parada com a filosofia primeira ou metafísica, é filosofia segunda. Por
seu tema, coincide com o conteúdo da especulação filosófica grega da
época pré-socrática. Por essa razão, no livro I da Física Aristóteles tem
de se ocupar das opiniões dos antigos, especialmente dos eleatas, que
negam a natureza e, portanto, a própria possibilidade da física. Para
os eleatas o movimento não existe; isto é, o movimento não é, não tem
ser, e por conseguinte não pode existir uma ciência da natureza. Ante
essa tese, Aristóteles tem de reivindicar a realidade do movimento e
estabelece como princípio e pressuposto que os entes naturais, todos
ou alguns pelo menos, se movem; o que, acrescenta ele, é evidente
pela experiência ou indução (Física, I, 2). Com esse ponto de partida,
Aristóteles terá de chegar aos princípios, às causas e aos elementos. A
ciência tem de começar pelo que é menos cognoscível em si, mas
mais fácil cle conhecer para nós e acessível à sensação - as coisas con­
cretas e complexas para chegar aos princípios e elementos, que são
mais distantes de nós, mas mais claros e cognoscíveis em si mesmos.
É esse o método dessa forma concreta de análise da natureza que é a
física aristotélica.
A natureza • Aristóteles distingue os entes que são por natureza
(cpúcreO e os que são por outras causas, por exemplo artificiais (ànò
téxvriç). São entes naturais os animais e suas partes, as plantas e os
corpos simples, como terra, fogo, água, ar; em contrapartida, uma
cama ou um manto são artificiais. São entes naturais os que têm na­
tureza; e por natureza (qjúmç) Aristóteles entende o princípio do movi­
mento ou do repouso, inerente às próprias coisas. Nesse sentido, a na­
tureza é substância, aquilo de que a coisa pode lançar mão para suas
transformações internas.
Dados esses pressupostos, Aristóteles tem de estabelecer sua teo­
ria das quatro causas e formular, sobretudo, o problema do movimen­
to, na esteira da doutrina da potência e do ato. O movimento, como
atualidade do possível enquanto possível, consiste num modo de ser que
determina a passagem de ser em potência para ser em ato, em virtude

85
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

da descoberta aristotélica de que o ente não é unívoco, mas analógi­


co, e se diz de muitas maneiras (itoKkaxõ)ç).
Em seguida, Aristóteles tem de estudar os problemas físicos do
lugar (tÓ 7
TOç), do vazio (to kevóv) e, sobretudo, do tempo (xpóvoç),
definido como “o número do movimento segundo o antes e o depois”.
O estudo minucioso dos problemas do movimento leva Aristóteles a
inferir o primeiro motor imóvel (Deus), que, por ser imóvel, não per­
tence à natureza, embora seja sua chave, e cujo estudo não corres­
ponde, portanto, à física - ainda que tenha um lugar na problemá­
tica desta disciplina-, mas à filosofia primeira ou metafísica, que é,
como vimos, ciência teológica.

7. A doutrina da alma

Aristóteles trata dos problemas da alma em seu livro intitulado


nepi \|/uxr|ç, geralmente designado por seu nome latino De anima.
Antes de tudo, é preciso ter em mente que o livro De anim a é um li­
vro de física, um dos tratados referentes às coisas naturais. Aristóteles
realizou a primeira elaboração sistemática dos problemas da psique, e
se inscreve na esfera da biologia.
A essência da alma • A alma (vj/u^n) é o princípio da vida; os en­
tes vivos são animados, em comparação com os inanimados, como as
pedras. Vida é, para Aristóteles, nutrir-se, crescer e se consumir por si
mesmo. A alma é, portanto, a form a ou atualidade de um corpo vivo.
A alma informa a matéria do ser vivo e lhe dá seu ser corporal, torna-o
corpo vivo; ou seja, a alma não se superpõe ou se agrega ao corpo,
mas o corpo - como determinado corpo vivo - o é porque tem alma.
Segundo a definição aristotélica (De anim a, 11, 1), a alma é a atualida­
de ou enteléquia primeira de um corpo natural orgânico. Se o olho
fosse um ser vivo - diz Aristóteles -, sua alma seria a vista; o olho é a
matéria da vista, e se esta falta, não há olho; e assim como o olho é,
a rigor, a pupila unida à vista, a alma e o corpo constituem o ser vivo.
O que define o ente animado é o viver; mas o viver se diz em
muitos sentidos, e por isso existem diversas classes de almas; Aristóte­
les distingue três: a vegetativa, a única que as plantas possuem e que

86
A r is t ó t e l e s

se dá também nos animais e nos homens; a sensitiva, de que carecem


as plantas, e a racional, privativa do homem. I:ntenda-se, contudo,
que cada ser vivo possui apenas uma alma; o homem, concretamente,
tem uma alma racional, que é forma de seu corpo, e essa alma impli­
ca as outras funções elementares.
O homem possui sensação (oua9r|cn.ç), que é um contato imedia­
to com as coisas individuais e constitui, como já vimos, o estrato infe­
rior do saber; a fantasia, por meio da memória, proporciona uma ge­
neralização; em terceiro lugar, a faculdade superior é o noüs ou enten­
dimento. Aristóteles rejeita a doutrina das idéias inatas e da reminis­
cência ou anámnesis platônica; substitui esta metáfora pela da tábua
rasa , a tábua encerada sobre a qual são gravadas as impressões; o noüs
é passivo. Mas junto deste entendimento passivo Aristóteles introduz
o chamado noüs poietikós ou entendimento agente, cujo papel é bas­
tante obscuro e que constituiu um dos temas prediletos da Escolásti­
ca medieval, em suas disputas com o averroísmo. Sobre esse noüs
Aristóteles diz, em sua famosa e obscura passagem (De anima, III, 5),
que “é tal que se torna todas as coisas e é tal que as faz todas, ao modo
de um certo hábito, como a luz; pois em certo sentido também a luz
faz serem cores em ato as que são cores em potência”. “Esse entendi­
mento - agrega - é separável, impassível e sem mescla, já que é por
essência uma atividade... Só quando separado é o que é verdadeira­
mente, e só ele é imortal e eterno.” Esta é a principal referência aristo-
télica à imortalidade da alma ou de uma porção dela; mas a interpre­
tação do sentido dessa imortalidade foi amplamente discutida desde
os comentários antigos até a época moderna.
Como a ciência e a sensação são, em certo sentido, o sabido ou o
sentido nelas, Aristóteles pode dizer que a alma é de certo modo todas
as coisas. Com uma feliz metáfora, acrescenta que a alma é como a
mão, pois assim como a mão é o instrumento dos instrumentos - o
que confere ao instrumento seu ser instrumental atual o entendi­
mento é a forma das formas, e o sentido a forma dos sensíveis. Como
já vimos, no saber as coisas adquirem seu ser verdadeiro, seu paten-
teamento, sua àAríBeux; passam a estar, de certo modo, na alma, em­
bora fiquem fora dela; a pedra não está na alma, diz Aristóteles, so­
mente sua forma está.

87
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A estética • A doutrina estética de Aristóteles, em cujos detalhes


não me alongarei aqui, está intimamente relacionada com sua psico­
logia. A principal fonte é a Poética, na qual estuda a tragédia. Aristóte­
les distingue a poesia da história, não porque a primeira use o verso e
a segunda a prosa, o que é acidental, mas porque a história refere o
que sucedeu, e a poesia, o que poderia acontecer. A poesia é mais filo­
sófica e importante que a história - diz Aristóteles -, porque a poesia
se refere mais ao universal, e a história, ao particular. A história afir­
ma que alguém fez ou disse algo, de facto: a poesia, em contrapartida,
estabelece o que um homem de tal tipo faria ou diria provável ou ne­
cessariamente em certa situação. Com isso, Aristóteles aponta para uma
certa compreensão da realidade e da vida humana essencial à poesia
para que esta tenha sentido.
No magistral estudo que dedica à tragédia, Aristóteles a conside­
ra como imitação de uma ação grave, que provoca temor e compaixão,
e opera uma katharsis ou purificação dessas afecções. Trata-se de emo­
ções penosas; e, no entanto, a tragédia, por seu caráter artístico, trans­
forma-se num prazer estético. A arte do trágico livra essas vivências
do desagradável e provoca uma descarga emocional, em virtude da
qual a alma fica aliviada e purificada.

8. A ética

A ética aristotélica é a ontologia do homem. Ao falar dos possíveis


tipos de vidas, já indicamos o que há de mais profundo no problema
ético. Vamos apenas resumir e completar brevemente aquelas idéias.
O bem supremo • A exposição fundamental da moral de Aristó­
teles é a Ética a Nicômaco, provavelmente editada por seu filho, daí
esse título. Nela discute a questão do bem (àyaGóv), que é o fim últi­
mo das coisas e, portanto, das ações humanas. O bem supremo é a fe­
licidade (eu6ai|a.ovía). Mas, de modo ainda mais claro que em Sócrates,
distingue-se a eudaimonía do prazer ou hedoné. Este é, simplesmente,
“um Tim sobrevindo”, algo que não se pode querer e buscar direta­
mente, mas que acompanha a realização plena de uma atividade. Sê-
neca, que recolheu o ensinamento de Aristóteles, comparava-o (De

88
A r is t ó t e l e s

vida beata ) às papoulas que crescem num campo de trigo e o embele­


zam ainda mais, sem que tenham sido semeadas ou procuradas.
A felicidade • A felicidade é a plenitude da realizaçáo aliva do
homem, no que tem de propriamente humano. O bem de cada coisa
é sua função própria, sua atividade, que é ao mesmo tempo sua atua­
lidade; assim, a visão o é do olho, e a marcha, do pé. lí claro que exis­
te uma função própria do carpinteiro ou do sapateiro; mas Aristóteles
se pergunta qual é a do homem em si. Examina a hipótese do viver,
mas verifica que a vida é comum às plantas e aos animais e busca en­
tão o que é exclusivo do homem. Por isso se atém a “certa vida ativa
própria do homem que tem razão”; esta é a felicidade humana. Essa
forma de vida é a vida contemplativa ou teorética, decerto superior à
vida de prazeres, e também à regida pela poiésis ou produção e à vida
simplesmente prática, por exemplo a política. Mas Aristóteles adverte
que para que essa vida teorética seja a felicidade, é preciso que ocupe
realmente a vida, “porque uma andorinha não faz verão, nem mes­
mo um dia, e assim tampouco torna o homem ditoso e feliz um só dia
ou um tempo breve”.
A v id a c o n t e m p la tiv a • Esta atividade é a mais excelente de dois
pontos de vista: porque o entendimento é o que há de mais excelente
em nós, e porque as coisas que o entendimento conhece são as mais
excelentes entre as cognoscíveis. Em segundo lugar, é a atividade
mais contínua, pois não cessa com sua realização, e uma vez visto ou
pensado um objeto, a visão ou a intelecção persistem. Em terceiro lu­
gar, vem acompanhada de prazeres puros e firmes, que são necessá­
rios para a felicidade, embora não se confundam com ela. Em quarto
lugar, é a forma de vida mais suficiente; porque todo homem precisa
das coisas necessárias para a vida, mas o justo, ou o valente etc. pre­
cisam de outras pessoas para exercer sua justiça ou sua coragem, ao
passo que o sábio pode exercer sua contemplação até mesmo no iso­
lamento. Por último, é a única atividade que se busca e se ama por si
mesma, pois não tem nenhum resultado fora da contemplação, ao
passo que na vida ativa buscamos algo fora da própria ação.
Essa forma de vida teorética é, em certo sentido, superior à con­
dição humana, e só é possível na medida em que haja algo divino no

89
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

homem. Embora se seja homem e mortal, não se deve ter, diz Aristó­
teles, sentimentos humanos e mortais, mas é preciso se imortalizar
dentro do possível e viver de acordo com o mais excelente que há em
nós, ainda que seja uma exígua porção de nossa realidade. O mais ex­
celente é o mais próprio de cada coisa; e “seria absurdo - conclui
Aristóteles - não escolher a própria vida, mas a de algum outro” (Éti­
ca a Nicômaco, X, 7).
As virtudes • Aristóteles divide as virtudes em duas classes: dia-
noéticas ou intelectuais, virtudes da diánoia ou do noüs, e virtudes éti­
cas ou, mais estritamente, morais. E faz o caráter da virtude consistir
no termo médio (|aeaóxr|ç) entre duas tendências humanas opostas;
por exemplo, a coragem é o justo meio entre a covardia e a temerida­
de, a liberalidade, entre a avareza e a prodigalidade etc. (Investigar o
sentido mais profundo dessa teoria do mesotes ou termo médio nos le­
varia longe demais. Basta indicar, como simples orientação, que está
relacionada com a idéia de medida métron, e esta com o uno, que por
sua vez se refere de modo direto ao ente, já que se acompanham m u­
tuamente como transcendentais.)
Afora isso, o conteúdo da ética aristotélica é, principalmente,
uma caraclerologia: uma exposição e valoração dos modos de ser do
homem, das diferentes maneiras das almas e das virtudes e vícios que
têm. A Aristóteles devem-se as finas descrições da alma que legaram
para nossa linguagem termos tão acurados e expressivos como mag­
nanimidade, pusilanimidade etc.

9. A política

Aristóteles estudou a fundo os problemas da sociedade e do Es­


tado nos oito livros de sua Política. Além disso, possuía um material
documental extraordinário sobre as constituições das cidades gregas
(158, das quais só chegou até nós a de Atenas), e a isso unia um co­
nhecimento profundo das questões econômicas.
A sociedade • Aristóteles reage aos sofistas e cínicos, que por
diversas razões interpretavam a cidade, a pólis, como nómos , lei ou
convenção. Aristóteles, pelo contrário, inclui a sociedade na natureza.

90
A r is t ó t h l e s

Sua idéia mestra é que a sociedade é natureza e não convenção; por­


tanto, algo inerente ao próprio homem e não simplesmente algo esta­
tuído. De acordo com os princípios da ética aristotélica, toda ativida­
de ou práxis se faz com vistas a um bem, que é, portanto, seu fim e lhe
confere seu sentido. Para interpretar o ser da pólis, Aristóteles parte
desse pressuposto e da idéia de que toda comunidade (koinonía) ou
sociedade tende para um bem.
Aristóteles considera a origem da sociedade. Sua forma elemen­
tar e primária é a casa ou a família (oiicía), formada pela união do ho­
mem com a mulher para perpetuar a espécie; a essa primeira função
sexual soma-se a de mando, representada pela relação amo-escravo;
esta segunda relação tem como finalidade alcançar a estabilidade eco­
nômica na oikía; por isso, para os pobres, o boi faz as vezes do escra­
vo, como diz Hesíodo. A agrupação de várias famílias numa unidade
social superior produz a aldeia ou kóme. E a união de várias aldeias
forma a cidade ou pólis, forma suprema de comunidade para Aristóte­
les. O vínculo unitário da aldeia é a genealogia, a comunidade de san­
gue: os filhos e os filhos destes. A pólis é uma “comunidade perfeita",
autárquica, que se basta a si mesma, diferentemente das aldeias, que
são insuficientes e necessitam umas das outras.
A finalidade da família, da oikía, é simplesmente o viver (to Çíiv);
a finalidade da aldeia ou kóme é mais complexa: o viver bem ou bem-
estar ( t ò ei) Çnv): como a perfeição de cada coisa é sua natureza, e a
pólis é a perfeição de toda comunidade, a pólis é também natureza. E,
por conseguinte, o homem é por natureza um “animal político", um
ser vivo social (Çcoov tcoA.i t i k d v ), e o que vive - por natureza e não por
acaso - sem cidade é inferior ou superior ao homem: o que não pode
viver em sociedade ou não precisa de nada por sua própria suficiên­
cia não é um homem, é uma besta ou um Deus.
A linguagem • A natureza social do homem se manifesta na lin­
guagem, no dizer ou lógos. Os animais também têm voz ((peovr]) que
expressa o prazer e a dor; mas a palavra (Àóyoç) destina-se a manifes­
tar o útil e o prejudicial, o jusio e o injusto; o conhecimento disso é o
que caracteriza o homem e é o fundamento das comunidades. A jus­
tiça é, portanto, essencial à cidade - de acordo com Platão; é a ordem

91
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

da póiis. O homem pode funcionar como coisa - como é o caso da


mulher ou do escravo - ou como homem, o que só pode fazer na co­
munidade. O homem é um animal que fala (Çcòov Àóyov e^ov), e o fa­
lar é uma função social: é dizer a alguém o que as coisas são - por
exemplo, justas ou injustas. Por isso o homem precisa de uma comu­
nidade na qual viver, e seu ser político se funda em seu ser eloqüente.
Isso é o que não acontece com Deus - concretamente com o Deus
aristocrático -, e por isso ele pode ignorar o mundo e ser simplesmen­
te noesis noeseos, pensamento do pensamento, visão da visão. O ho­
mem necessita de um ente sobre o qual verse sua contemplação e um
próximo ou semelhante a quem dizer o que viu, Deus é a suma autar­
quia e se contempla a si próprio.
Sociedade e Estado • Aristóteles atribui uma importante função
à vontade no social e não distingue entre sociedades “naturais”, como
a família, na qual nos encontramos involuntariamente, e associações
fundadas por um ato voluntário, como um círculo, ao qual se perten­
ce ou se deixa de pertencer sempre que se queira. Mais ainda: insiste
no caráter voluntário e mesmo violento da constituição das aldeias e
cidades, e diz que estas comunidades são por natureza. Hoje não di­
ríamos isso. E isso prova que Aristóteles usa de preferência o concei­
to de natureza “de cada coisa” e não o de “a” natureza. Os. dois senti­
dos se cruzam constantemente desde os pré-socráticos, E por isso,
pelo fato de a sociedade ser natural e de a culminação ou perfeição
desta ser a pólis, a sociedade e o Estado se identificam: o social é o po­
lítico, e a pólis significa a interpretação estatal da sociedade.
Aristóteles não se dá conta de que a sociedade não é o Estado,
que em seu contexto histórico coincidem: a sociedade perfeita é a pó­
lis, a cidade-Estado. E quando, a partir da fundação do Império ale­
xandrino, as velhas fronteiras helénicas se rompem, o homem antigo
fica desorientado em relação aos limites reais das comunidades, com
uma desorientação que culmina no cosmopolitismo dos estóicos.
A organização do Estado • A hierarquia dos cidadãos está de
acordo com os tipos de vida possíveis. Os trabalhos inferiores, de fi­
nalidade econômica, estão a cargo de escravos, pelo menos em parte.
Aristóteles defendia a idéia da escravidão segundo a velha convicção
helénica de que os bárbaros deviam servir aos gregos. Neste ponto dis-

92
ArISTÔTI LI'S

crepava da políiica seguida por Alexandre, e que desembocou nu lor


mação das culturas helenísticas.
A economia deve tender para a forma autárquica, para que a cida­
de se baste a si mesma na medida do possível. Aparece aqui novamen­
te, transladado para a comunidade política, o ideal grego de suficiência.
Por isso, Aristóteles é mais favorável à cidade agrícola que à industrial.
Com relação à forma do regime ou constituição, Aristóteles não
acredita que tenha de ser forçosamente única. Considera possíveis três
formas puras, regidas pelo interesse comum. Essas três formas dege­
neram se os governantes se deixam levar por seu interesse pessoal.
Conforme a soberania corresponda a um só, a uma minoria dos me­
lhores ou a todos os cidadãos, o regime é uma monarquia, uma aris­
tocracia ou uma democracia. As respectivas formas degeneradas são a
tirania, a oligarquia, baseada quase sempre na plutocracia, e a dema­
gogia. Aristóteles insiste especialmente nas vantagens do “regime mis­
to” ou república (politeía), mescla ou combinação das formas puras,
por considerar que é o de maior estabilidade e segurança (asphãleia ),
pois este é o tema fundamental de sua Política3. É preciso ter em men­
te que Aristóteles, como Platão, pensa sempre na cidade-Estado, sem
imaginar como formas desejáveis outros tipos de unidades políticas
mais amplas. Em Aristóteles isso é ainda mais surpreendente, embora
se explique por razões profundas, porque estava sendo testemunha
da transformação do mundo helénico, que, em seu tempo e por obra
de seu discípulo Alexandre, passou da multiplicidade de cidades inde­
pendentes para a unidade de um grande império territorial, o efême­
ro império macedônico, logo desmantelado nos reinos dos Diádocos,
mas que desde então manteve a idéia da monarquia de grande exten­
são, sem voltar à atomização das cidades.

* * *

A filosofia de Aristóteles não cabe numa exposição como esta nem


mesmo numa muito mais extensa; menos ainda a discussão dos pro-

3. Ver m in h a Inlroduccián a la Política de Aristóteles (M adri, 1950).

93
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

blemas radicais que coloca e que são, de certo modo, os que a filosofia
posterior encontrou, os que hoje temos de resolver. É um mundo de
idéias: a tentativa mais genial da história de sistematizar em suas ca­
madas mais profundas os problemas metafísicos. Por isso Aristóteles
determinou mais do que ninguém o curso ulterior da história da filo­
sofia, e o encontraremos a partir de agora em todas as partes.
Fui obrigado a omitir muitas coisas importantes e até mesmo es­
senciais. E, ante essa necessidade, optei por prescindir de quase toda a
informação erudita e enumerativa do pensamento aristotélico e expor
com algum rigor, sem falseamento, o problema central de sua metafísi­
ca. Considero preferível ignorar a maior parte das coisas que Aristóte­
les disse, mas ter uma consciência clara de qual é o problema que o
move e em que consiste a originalidade genial de sua solução. Desse
modo é possível entender como a filosofia helénica alcançou sua ma­
turidade na Metafísica aristotélica, e como com ele concluiu-se efetiva­
mente uma etapa da filosofia, que depois terá de percorrer longos sé­
culos pelo caminho que lhe abriu o pensamento de Aristóteles4.

4. Ver m in ha Introducción a la Ética a Nicómaco (M adri, 1960).

94
__________________________ X
V.________________ O IDEAL DO SÁB

Depois de Aristóteles, a filosofia grega perde o caráter que rece­


bera dele e de Platão. Deixa de ser explicitamente metafísica, para se
transformar em simples especulação moral. Não é que deixe de fato
de ser ontologia, mas pára de se ocupar de modo formal e temático
das questões fundamentais da metafísica. Depois de uma época de
extraordinária atividade nesse sentido, vem uma longa lacuna filosó­
fica, dessas que aparecem reiteradamente na história do pensamento
humano: a história da filosofia é, em certo sentido, essencialmente
descontínua. Isso não quer dizer que deixe de haver filosofia nessa
longa época, mas deixa de ser uma filosofia autenticamente original
e criativa e se transforma, em grande medida, num trabalho de exe­
gese ou comentário. E, ao mesmo tempo, como sempre ocorre em
tais épocas, o homem aparece como tema quase exclusivo da filoso­
fia. Ela se torna então, principalmente, ética. É dada primazia às
questões morais e, de modo concreto, ao que se chamou ideal do sá­
bio, do sophós.
Algo semelhante ocorreu, salvando todas as distâncias, no Re­
nascimento, na época do [luminismo, no século XIX. De distintas for
mas, que podem ir do humanismo à “cultura”, o homem se fez pre­
sente nos momentos em que falhou a tensão metafísica, que a huma­
nidade parece não poder sustentar por muito tempo. Na historia, a li
losofia aparece concentrada em alguns intervalos de le m p o , depois
dos quais parece relaxar e perder por longos anos seu vigoi e rigor.
Essa estrutura descontínua da filosofia irá se tornar claramcnie paten­

te ao longo deste livro.

95
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Costuma-se designar esta etapa da filosofia da Grécia com o no­


me de filosofia pós-aristotélica. Evito essa denominação por duas ra­
zões: primeiro, porque intimamente relacionada com esse movimen­
to filosófico há uma corrente anterior, que nasce com Sócrates e em
que se encontram os cínicos e os cirenaicos; segundo, porque também
é posterior a Aristóteles o neoplatonismo, que volta à metafísica e di­
fere profundamente dessa filosofia moral de que falamos. E haveria
ainda uma terceira razão, talvez a mais profunda, que é a de que a
denominação pós-aristotélico, embora em si puramente cronológica,
parece aludir a uma filiação, e a filosofia do período que considera­
mos deriva em pequena medida de Aristóteles, pelo menos do verda­
deiramente vivo e eficaz nele. É verdade que está intimamente rela­
cionada com as escolas procedentes de Platão e Aristóteles; mas é evi­
dente que depois da morte destes, a Academia e o Liceu têm muito
pouco a ver com a autêntica significação/i!osó/ica de seus fundadores.
Portanto, consideraremos aqui uma corrente filosófica que per­
durou por vários séculos, desde Sócrates, no século IV, até o apogeu
do Império Romano, pelo menos até o final do século II de nossa era,
e talvez ainda mais. Esse movimento, iniciado na tradição socrática,
prolifera amplamente na época helenística, e mais ainda na romana.
Seu caráter geral é aquele que apontamos anteriormente: desin­
teresse pela metafísica enquanto tal; atenção primordial às questões
de ética; concepção da filosofia como um modo de vida, com o aban­
dono de seu valor teórico; em suma, nova perda do sentido da verda­
de, embora com um matiz muito distinto do da sofística. E tudo isso
se resume no problema do sábio, na descoberta das características que
definem o homem independente, suficiente, que vive como se deve,
em total serenidade e equilíbrio, e encarna o modo de vida do filósofo,
que agora não é precisamente a vida teorética.
Mas o mais grave problema que as filosofias da época helenística
colocam é o seguinte: do ponto de vista do saber, todas elas - inclusi­
ve a mais valiosa, a estóica - são toscas, de escasso rigor intelectual,
de pouco vôo; não há comparação possível entre elas e a maravilhosa
especulação platônico-aristotélica, de incomum agudeza e profundi­
dade metafísica; no entanto, o fato histórico, de avassaladora evidên­

96
O ID EA I. D O SAlSIO

cia, é que logo depois da morte de Aristóteles essas escolas suplantam


sua filosofia e conseguem uma vigência ininterrupta de cinco séculos.
Como isso foi possível?1
Naqueles séculos o sentido que se dá na Grécia à palavra JilosoJia
muda substancialmente. Se em Platão e Aristóteles é uma ciência, um
saber sobre o que as coisas são, determinado pela necessidade de viver
na verdade, e cuja origem é o assombro, para as escolas posteriores vai
significar algo bem distinto. Para Epicuro, “a filosofia é uma atividade
que procura, com discursos e raciocínios, a vida feliz”; segundo os es­
tóicos, é o exercício de uma arte destinada a reger a vida. Portanto, a
filosofia muda de sentido; a questão não é que a doutrina da Stoa ou de
Epicuro suplante a de Aristóteles, mas que o homem do final do século
IV e começo do III abandona a filosofia enquanto saber e busca um
fundamento para sua vida em outra atividade à qual se aplica, não
sem certo equívoco, o mesmo nome, e que coincide parcialmente
num repertório de idéias e questões comuns.
A razão mais profunda dessa mudança é a crise histórica do
mundo antigo. Quando sua situação se torna crítica, o heleno se vol­
ta para a filosofia, a suprema criação de sua cultura; mas agora não
lhe pede o mesmo que antes, mas um substitutivo para as convicções
religiosas, políticas e sociais - morais, em suma que tinham se tor­
nado problemáticas. A filosofia, outra vez fora da via da verdade, vai se
transformar numa espécie de religiosidade de circunstância, adequa­
da para as massas. Por isso, sua inferioridade intelectual é, justamen­
te, uma das condições do enorme êxito das filosofias desse tempo.
Com elas, o homem antigo em crise obtém uma moral mínima para
tempos duros, uma moral de resistência, até que a situação seja radi­
calmente superada pelo cristianismo, que significa o surgimento do
homem novo.
Tentaremos descrever brevemente a filiação das distintas escolas
desse grupo.

1. Ver u m estudo m ais m in u c io s o deste problem a em m eu estudo La filosofia


estóica (em Biografia de la filosofia).

97
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

1. Os moralistas socráticos

Vimos acima o que houve de mais fecundo e genial na tradição


socrática: Platão e, através deste, Aristóteles. Lembremos, 110 entanto,
que 0 platonismo conservou de Sócrates principalmente a exigência
do saber como definição do universal, que o levou à doutrina das
idéias. Contudo, a preocupação de Sócrates era em grande parte mo­
ral. Essa outra direção de seu pensamento é a que encontra sua conti­
nuação em dois ramos muito secundários da filosofia helénica: os cí­
nicos e os cirenaicos.

a) Os cínicos
O fundador da escola cínica foi Antístenes, um discípulo de Só­
crates, que fundou um ginásio na praça do Cão Ágil, daí 0 nome cíni­
cos (cães ou, melhor, caninos) que foi dado a seus adeptos, e que estes
aceitaram com certo orgulho. O mais conhecido dos cínicos é o suces­
sor de Antístenes, Diógenes de Sinope, famoso por sua vida extrava­
gante e certas demonstrações de engenho, que viveu no século IV
Os cínicos exageram e levam ao extremo a doutrma socrática da
eudaimonía ou felicidade e dão-lhe, ademais, um sentido negativo.
Em primeiro lugar, identificam-na com a autarquia ou suficiência; em
segundo lugar, concluem que o caminho para alcançá-la é a supres­
são das necessidades. Isso traz como conseqüência uma atitude nega­
tiva ante a vida como um todo, desde os prazeres materiais até 0 Es­
tado. O único valor estimável que resta é a independência, a falta de
necessidades e a tranqüilidade. O resultado disso é, naturalmente, 0
mendigo. O nível de vida cai, perde-se todo refinamento, toda vincu-
lação com a cidade e com a cultura. E, com efeito, a Grécia se encheu
de mendigos de pretensões mais ou menos filosóficas, que percor­
riam como vagabundos 0 país, sóbrios e desalinhados, pronunciando
discursos morais e caindo com freqüência no charlatanismo.
A doutrina cínica, se existe, é bem escassa; é antes a renúncia a
qualquer teoria, o desdém pela verdade. Importa tão-somente 0 que
serve para viver, entenda-se, de modo cínico. O bem do homem con­
siste simplesmente em viver em sociedade consigo mesmo. Todo o resto,

98
O ID E A L D O SÁBIO

o bem-estar, as riquezas, as honras e seus contrários, não interessa. O


prazer dos sentidos e o amor são o pipr, o que mais se deve evitar. O
trabalho, o exercício, o comportamento ascético é o único desejável.
Como o cínico despreza tudo o que seja convenção e não natureza, ele
é indiferente à família e à pátria e se sente kosmopolítes, cidadão do m un­
do. É a primeira manifestação importante do cosmopolitismo, que tão
fortemente pesará sobre o mundo helenístico e romano.

b ) Os ciren a ico s

A escola cirenaica, fundada por Aristipo de Cirene, um sofista


posteriormente agregado ao círculo socrático, tem profunda seme­
lhança com a cínica, a despeito de grandes diferenças e até oposições
aparentes. Para Aristipo, o bem supremo é o prazer; a impressão sub­
jetiva é nosso critério de valor, e o prazer é a impressão agradável. O
problema consiste em que não é o prazer que deve nos dominar, mas
nós a ele. E isso é importante. O sábio tem de ser dono de si; não deve,
portanto, se apaixonar. Ademais, o prazer transforma-se facilmente
em desagrado quando nos domina e altera. O sábio tem de dominar
as circunstâncias, estar sempre por cima delas, acomodar-se a quais­
quer situações, à riqueza e à indigência, à prosperidade e às dificulda­
des. Ao mesmo tempo, o cirenaico tem de selecionar seus prazeres
para que estes sejam moderados, duradouros, e não o arrebatem. Em
suma, o suposto hedonismo dos cirenaicos tem uma extraordinária se­
melhança com o ascetismo dos cínicos, embora o ponto de partida
seja muito distinto. Não esqueçamos que o importante para os mora­
listas socráticos, como também mais tarde para os estóicos e epicuris-
tas, é a independência e imperturbabilidade do sábio, e o secundário,
o modo como estas são alcançadas, pelo ascetismo e pela virtude ou
pelo prazer moderado e tranqüilo de cada hora.
O cosmopolitismo também é próprio dos cirenaicos; a escola
também apresenta traços helenísticos marcantes, e nada mais faz se­
não sublinhar e exagerar mais um dos aspectos de Sócrates, encruzi­
lhada de onde saem distintos caminhos da mente grega.

99
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

2. O estoicismo

A escola estóica tem uma profunda relação com os filósofos mora­


listas socráticos, e especialmente com os cínicos. Retoma, em última ins­
tância, a atitude deles perante a vida e a filosofia, embora com persona­
lidades intelectualmente superiores e uma maior elaboração teórica.
As etapas do estoicismo • Distinguem-se três épocas, chamadas
de estoicismo antigo, médio e novo, que se estendem desde 300 a.C.,
aproximadamente, até o século II d.C., ou seja, por meio milênio. O
fundador da escola estóica foi Zenão de Cicio, que a estabeleceu em
Atenas, no chamado Pórtico das pinturas (Síoá poikilé), decorado com
quadros de Polignoto, e esse lugar deu nome ao grupo. As figuras
principais do estoicismo antigo foram, além de Zenão, Cleantes de
Assos - um antigo pugilista, mente tosca e nada teórica - e, sobretu­
do, o terceiro chefe da escola, Crisipo, verdadeiro fundador do estoi­
cismo como doutrina, de cujos numerosos escritos só restam títulos e
fragmentos. Na chamada Stoa média floresceram Panécio de Rodes
(180-110), influenciado pelos acadêmicos, amigo de Cipião e Lélio,
introdutor do estoicismo em Roma, e o sírio Posidômo (175-90),
mestre de Cícero em Rodes, uma das melhores mentes antigas. Na úl­
tima época, quase exclusivamente romana, a figura central e mais in­
fluente do estoicismo é Sêneca (4 a.C.-65 d.C.); cordobês, preceptor
de Nero, cortou as próprias veias por ordem deste; afora suas tragé­
dias, Sêneca escreveu, entre suas obras filosóficas, De ira, De providen-
tia, De beneficiis, De constantia sapientis, De brevitate vitae, De tranquil-
litate animi, De dementia, De vita beata, Naturales quaestiones e as Epis-
tolae ad Lucilium. Posteriores a Sêneca são outros dois importantes
pensadores estóicos: Epicteto (50-120), escravo frígio, depois liberto,
autor das Diatribes ou Disertationes e de um breve Enquiridion ou M a­
nual, escritos em grego, e o imperador Marco Aurélio (121-180), da
dinastia dos Antoninos, que escreveu, em grego também, os famosos
Solilóquios, cujo título é, literalmente, A si mesmo (Eiç èauxóv).
A doutrina estóica • O centro da preocupação estóica é igual­
mente o homem, o sábio. Elaboram uma filosofia dividida em três par­
tes: lógica, física e ética; mas seu verdadeiro interesse é apenas a mo­

100
O ID EA L D O SÁBIO

ral. Os estóicos são sensualistas. É a percepção que vai imprimindo


suas marcas na alma humana e formando suas idéias. O conceito fun­
damental é o de (pavxaaíoc mxocÀ,r|7rnKr|, sumamente problemático. A
associação e a comparação servem para esse fim. Os estóicos reconhe­
ciam umas k o iv íx í evvoiai, noções comuns, presentes em todos e que
determinam o consentimento universal. Posteriormente, a opinião
sobre a origem dessas noções se alterou e pensou-se que eram inatas.
A certeza absoluta correspondia a essas idéias inatas. Essa teoria exer­
ceu uma profunda influência sobre todo o inatismo moderno. As re­
percussões do estoicismo, tanto em lógica como em moral, foram
muito mais extensas e persistentes do que se costuma pensar; na épo­
ca renascentista, em particular, talvez a máxima influência da filosofia
antiga recuperada tenha sido a do estoicismo.
A física estóica é materialista ou, mais precisamente, corporalis-
ta. Admite dois princípios, o ativo e o passivo, ou seja, a matéria e a
razão que reside nela, por eles denominada deus. Esse princípio é cor­
poral e se mistura com a matéria como um fluido gerador ou razão se­
minal (^óyoç aTtepuaxiKÓç). Além dos dois princípios, distinguem-se os
quatro elementos: fogo, água, ar, terra. No entanto, o princípio ativo
é identificado ao fogo, na linha da inspiração de Heráclito: a natureza
é concebida segando o modelo da arte (xé/vri), e por isso o fogo é cha­
mado de artífice (7rüp xe% viK Ó v). O mundo se repete de modo cíclico;
quando os astros atingem de novo suas posições originárias, cumpre-
se um grande ano e sobrevem uma conflagração do mundo, que volta
ao fogo primordial para repetir de novo o ciclo: essa doutrina é um
claro antecedente da do eterno retorno de Nietzsche.
Deus e o mundo aparecem identificados no estoicismo; Deus é
reitor do mundo, mas por sua vez é substância, e o mundo inteiro é a
substância de Deus. A Natureza, regida por um princípio que é razão,
se identifica com a Divindade. O princípio divino liga todas as coisas
mediante uma lei, identificada com a razão universal, e esse encadea­
mento inexorável é o destino ou fado (eí|J.rap|iévr|). Isso torna possível
a adivinhação, e dessa doutrina se depreende um determinismo; por
outro lado, contudo, os estóicos consideram que certa contingência e
liberdade do homem estão incluídas no plano geral do destino, que

101
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

por sua vez aparece como providência. Todas as coisas estão a serviço
da perfeição da totalidade, a única norma de valoração é a lei divina
universal que encadeia tudo, à qual chamamos natureza. Esta é a cul­
minação da física estóica, e disso provém a moral da escola.
A ética estóica se funda também na idéia de autarquia, de sufi­
ciência. O homem, o sábio, deve se bastar a si mesmo. As conexões da
moral estóica com a cínica são muito profundas e complexas. O bem
supremo é a felicidade - que não tem a ver com o prazer e esta con­
siste na virtude. Essa virtude, por sua vez, consiste em viver de acor­
do com a verdadeira natureza: vivere secundum naturam, KOítà cpúaiv
Çf]v. A natureza do homem é racional, e a vida que a ética estóica pos­
tula é a vida racional. A razão humana é uma parcela da razão univer­
sal, e assim nossa natureza nos põe de acordo com o universo inteiro,
ou seja, com a Natureza. O sábio a aceita tal como é, amolda-se total­
mente ao destino: parere Deo libertas est, obedecer a Deus é liberdade.
Essa aceitação do destino é característica da moral da Stoa. Os fados,
que guiam quem quer, arrastam quem não quer; portanto, é inútil resis­
tir. O sábio se torna independente, suportando tudo, como uma ro­
cha que faz frente a todos os embates da água. E, ao mesmo tempo,
obtém sua suficiência diminuindo suas necessidades: sustine et absti-
ne, suporta e renuncia. O sábio deve despojar-se de suas paixões para
alcançar a imperturbabilidade, a “apatia”, a “ataraxia”. O sábio é dono
de si, não se deixa arrebatar por nada, não está à mercê dos aconteci­
mentos exteriores; pode ser feliz em meio às maiores dores e aos pio­
res males. Os bens da vida podem ser, no máximo, desejáveis e apete­
cíveis; mas não têm verdadeiro valor e importância, qualidades exclu­
sivas da virtude. Esta consiste na conformidade racional à ordem das
coisas, na razão reta. O conceito de dever não existe, a rigor, na ética
antiga. O devido (raOijKOv), em latim officium, é antes o adequado, o
decente (isto é, o que convém, decet), o que fica bem, num sentido qua­
se estético. O reto é primariamente o correto ( k c c tó p G m jic O , o que está
de acordo com a razão.
O co sm o p o litism o antigo • Os estóicos não se sentem tão des­
ligados da convivência como os cínicos; têm um interesse muito maior
na comunidade. Marco Aurélio descreve sua natureza como racional

102
O ID E A L D O SÁBIO

e social, à ,o y i k p m í 7C0À,it i k t í . Mas a cidade é também convenção, nó-


mos, e não natureza. O homem não é cidadão desta ou daquela pátria,
mas do mundo: cosmopolita. O papel do cosmopolitismo no mundo
antigo é sumamente importante. Aparentemente assemelha-se à uni­
dade dos homens que o cristianismo afirma, mas na verdade são duas
coisas totalmente distintas. O cristianismo afirma que os homens são
irmãos, sem distinguir o grego do romano, do judeu ou do cita, nem
o escravo do homem livre. Mas essa fraternidade tem um fundamen­
to, um princípio: a irmandade está fundada numa paternidade co­
mum. No cristianismo os homens são irmãos porque são, todos, fi­
lhos de Deus, e não por outro motivo. Percebe-se, portanto, que não
se trata de um fato histórico, mas da verdade sobrenatural do homem;
os homens são irmãos porque Deus é seu pai comum; são seme­
lhantes, ou seja, próximos, embora estejam separados no mundo, por­
que se encontram juntos na paternidade divina: em Deus todos so­
mos unos. E por isso o vínculo cristão entre os homens não é o de pá­
tria, nem o de raça, nem o de convivência, mas a caridade, o amor de
Deus, e portanto o amor aos homens em Deus; ou seja, no que os tor­
na próximos de nós, semelhantes a nós. Não se trata, portanto, de nada
histórico, da conveniência social dos homens em cidades, nações ou
o que quer que seja: “Meu reino não é deste mundo."
No esloicismo falta radicalmente esse princípio de unidade, ape­
la-se tão-somente à natureza do homem. Esta, no entanto, não basta
para fundar uma convivência, a mera identidade de natureza não su­
põe uma tarefa comum que possa agrupar todos os homens numa co­
munidade. O cosmopolitismo, quando se baseia apenas nisso, é sim­
plesmente falso. Mas há outro tipo de razões - históricas - que levam
os estóicos a essa idéia: a superação da cidade como unidade política.
A póhs perde vigência n um longo processo, que se inicia na época de
Alexandre e culmina no Império Romano; o homem antigo sente que
a cidade já não é mais o limite da convivência; o problema está em ver
qual é o novo limite; mas isso é difícil, e o que se constata é a insufi­
ciência do velho; daí a propensão a exagerar e acreditar que o limite é
apenas a totalidade do mundo, quando a verdade é que a unidade po­
lítica daquele tempo era apenas o Império. E essa falta de consciência

103
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

histórica, o brusco salto da cidade para o mundo, que impediu de


pensar com suficiente precisão e profundidade o caráter e as exigên­
cias do Império, foi uma das principais causas da decadência do Im­
pério Romano, que nunca chegou a encontrar sua forma plena e rea­
lizada. Os estóicos, e particularmente Marco Aurélio, o Imperador,
sentiram-se cidadãos de Roma ou do mundo e não souberam ser o
que era necessário naquele momento: cidadãos do Império. E por isso
este fracassou.

3. O epicurismo

Assim como a Stoa corresponde aos cínicos na filosofia pós-aris-


totélica, nota-se um acentuado paralelismo entre os epicuristas e os
cirenaicos; e assim como entre as duas escolas socráticas havia uma
identidade fundamental, o mesmo se dá entre o estoicismo e a doutri­
na de Epicuro. Este era cidadão ateniense, mas nasceu em Samos, para
onde seu pai tinha emigrado. Foi para Atenas no final do século IV e
em 366 fundou sua escola ou comunidade num jardim. Consta que
tinha uma personalidade notável e teve uma extraordinária ascendên­
cia sobre seus adeptos. No epicurismo fica evidente que na Grécia
já não se trata de uma filosofia entendida como ciência, mas de um
modo de vida particular. Também algumas mulheres pertenceram ao
jardim de Epicuro. A escola adquiriu, sobretudo depois da morte do
mestre, um caráter quase religioso e exerceu extraordinária influên­
cia na Grécia e no mundo romano. Até o século IV d.C. o epicurismo
mantém sua atividade e sua influência. A exposição mais importante
das doutrinas de Epicuro é o poema de Tito Lucrécio Caro (97-55),
intitulado De rerum natura.
A filosofia epicurista é materialista; retoma o essencial da de De-
mócrito, com sua teoria dos átomos. Tudo é corporal, formado pela
agregação de átomos diversos; o universo é um puro mecanismo, sem
finalidade nem intervenção alguma dos deuses. Estes são corporais
como os homens, mas feitos de átomos mais finos e resplandecentes,
e ademais possuem a imortalidade. A percepção também é explicada
mediante a teoria atomista dos eídola ou imagens das coisas, que pe­
netram pelos sentidos.

104
O ID E A L D O SÁBIO

Mas também os epicuristas carecem de senso de especulação. Ao


fazer física não se propõem descobrir a verdade da natureza, preten­
dem apenas tranqüilizar-se. Dão, por exemplo, explicações físicas para
o trovão e o raio, mas não uma, e sim várias; na verdade, não lhes im ­
porta qual é a verdadeira, basta saber que pode haver explicações,
compreender que o raio é um fato natural, não uma demonstração da
cólera divina, e conseguir assim que o homem viva em calma, seni te­
mer os deuses. Toda a doutrina epicurista se dirige para a moral, para
o tipo de vida que o sábio deve seguir.
Epicuro opina que o prazer é o verdadeiro bem; e, ademais, que
é ele que nos indica o que convém e o que repugna à nossa natureza.
Retifica, pois, as idéias de hostilidade antinatural ante o prazer que
invadiam grandes zonas da filosofia grega. Parece, à primeira vista,
que o epicurismo é o oposto da filosofia da Stoa; mas as semelhanças
são mais profundas que as diferenças. Em primeiro lugar, Epicuro im ­
põe condições muito determinadas para o prazer: tem de ser puro,
sem mescla de dor nem de desagrado; tem de ser duradouro e estável;
por último, tem de deixar o homem dono de si, livre, imperturbável.
Assim, ficam eliminados quase totalmente os prazeres sensuais para
dar lugar a outros mais sutis e espirituais, e, antes de tudo, à amizade
e aos gozos do trato. As paixões violentas ficam excluídas da ética epi­
curista porque arrebatam o homem. O ideal do sábio é, portanto, o do
homem sereno, moderado em tudo, regido pela temperança, sem in-
quietudes, que conserva um perfeito equilíbrio em qualquer circuns­
tância. Nem a adversidade, nem a dor física, nem a morte alteram o
epicurista. É conhecida a resignação afável e bem-humorada com que
Epicuro suportou sua doença dolorosíssima e sua morte. Trata-se, por­
tanto, de um ideal de grande ascetismo e, em seus traços profundos,
coincide com o estóico. A apartação dos assuntos públicos, o desliga­
mento da comunidade são mais fortes ainda no epicurismo que nos
círculos estóicos. O ponto de partida é distinto: num caso trata-se de
conseguir a virtude; no outro, o que se busca é o prazer; mas o tipo
de vida a que se chega nas duas escolas acaba sendo o mesmo nessa
época crepuscular do mundo antigo e está definido por duas caracte­
rísticas reveladoras de uma humanidade cansada: suficiência e imper­
turbabilidade, bastar-se a si mesmo e não se alterar por nada.

105
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

4. Ceticismo e ecletismo

O desinteresse pela verdade, que predomina nas épocas de falta


de lensão teórica, costuma se unir à desconfiança da verdade ou seja,
ao ceticismo. O homem não confia; surgem as gerações receosas e sus-
picazes, que duvidam de que a verdade possa ser alcançada pelo ho­
mem. Foi o que ocorreu no mundo antigo, e o processo de declínio da
teoria, iniciado com a morte de Aristóteles, é contemporâneo da for­
mação das escolas céticas. Uma das raízes desse ceticismo costuma ser
a pluralidade de opiniões: ao tomar consciência de que se acreditou
em coisas muito diversas sobre cada questão, perde-se a confianca-de
que alguma das respostas seja verdadeira ou que uma nova qseja. É o
famoso argumento da ôiacpcovía xõv So^õjv. No entanto, é preciso
distinguir entre ceticismo como tese filosófica e como atitude vital.
No primeiro caso é uma tese contraditória, pois afirma a im possibili­
dade de conhecer a verdade, e esta afirmação pretende ser ela mesma
verdadeira. Portanto, ao ser formulado, o ceticismo como tese se refu­
ta a si próprio. Outra coisa é a suspensão de qualquer juízo (erco/jí),
o ceticismo vital, que não afirma ne.m nega. Esse ceticismo aparece
vez por outra na história, embora também seja problemático que a
vida humana possa se manter flutuante nessa abstenção sem arraigar
em convicções.
O primeiro e mais famoso dos céticos gregos, se prescindirmos
de antecedentes sofísticos, é Pirro, no começo do século III a.C. O u­
tros céticos são Timão, Arcesilau e Carnéades, que viveram nos sécu­
los III e II. Depois, e a partir do século I de nossa era, aparece uma
nova corrente cética, com Enesidemo e o famoso Sexto Empírico, que
escreveu Hipotiposis pirrônícas. Viveu no século II d.C. O ceticismo in­
vadiu totalmente a Academia, que desde a morte de Platão vinha al­
terando o caráter metafísico de seu fundador, e nela perdurou até seu
fechamento, em 529, por ordem de Justiniano. Os céticos que men­
cionamos pertenceram à Academia média e à nova, que assim foram
chamadas para distingui-las da antiga. Durante séculos, o nome aca­
dêmico significou cético.
O ecletismo é outro fenômeno das épocas de decadência filosófi­
ca. Nelas aparece o espírito de compromisso e conciliação, que torna

106
O IDEAL D O SÁBIO

daqui e dali para compor sistemas que superem as divergências mais


profundas. Em geral, esse proceder banaliza a filosofia, e foi o que fez
a cultura romana em particular, que utilizou o pensamento filosófico
apenas como matéria de erudição e moralização, mas esteve sempre
afastada da problematicidade filosófica.
O mais importante dos ecléticos romanos foi Cícero (106-43),
cuja figura considerável é por demais conhecida. Seus escritos filosó­
ficos não são originais, mas têm o valor de ser um repertório copioso
de referências da filosofia grega. Ao mesmo tempo, a terminologia que
Cícero - um extraordinário talento filológico - cunhou para traduzir
os vocábulos gregos influenciou enormemente, embora nem sempre
acertadamente, as línguas modernas e toda a filosofia européia. Tam­
bém merecem destaque Plutarco, que viveu nos séculos 1 e II de nos­
sa era e escreveu, além de suas famosas Vidas, umas Moralía de con­
teúdo ético, e Fílon de Alexandria, um judeu helenizado que viveu no
século I e tentou encontrar antecedentes bíblicos na filosofia helénica,
sobretudo em Platão. O caráter judaico de sua doutrina se revela es­
pecialmente no papel importantíssimo que nela tem Deus e no esfor­
ço para conciliar as idéias gregas com o Antigo Testamento. Entre
suas obras contam-se uma sobre a criação (chamada em latim De opi-
ficio mundi) e estudos sobre a imutabilidade de Deus e sobre a vida
contemplativa.

107
VI. O NEOPLATONISMO

A metafísica, a rigor ausente da filosofia grega desde Aristóteles,


reaparece mais uma vez n o último grande sistema do mundo heléni­
co: o chamado neoplatonismo. Pela última vez o grande problema me­
tafísico será formulado em termos gregos, embora com certas influên­
cias cristãs e de todo o ciclo das religiões orientais que entram no m un­
do greco-romano nos primeiros séculos de nossa era. É um momento
importantíssimo, no qual a filosofia se divide por meio da única divi­
são realmente descontínua de sua história: por um lado, a filosofia
antiga, e por outro, a m oderna, ou, o que dá no mesmo, a grega e a
cristã, os dois modos fundamentais de pensamento autenticamente
filosófico que até agora surgiram no mundo.
Plotino • O fundador do neoplatonismo é Plotino, no século III
d.C. (204-270), Nasceu no Egito, tentou marchar para o Oriente -
Pérsia e índia - com o imperador Gordiano e depois passou a atuar
sobretudo em Roma. Foi um homem importantíssimo em seu tem­
po, alvo da atenção devota e fervorosa de muitos discípulos. Levou
uma vida de estranho ascetismo e mistério e declarava ter tido vá­
rios êxtases. Sua obra foi recopilada por seu discípulo Porfírio em
seis grupos de nove livros cada um, por isso chamados Enéadas. Esta
obra é de um profundo interesse e contém uma filosofia original, que
exerceu enorme influência sobre o pensamento cristão posterior, d u ­
rante toda a Idade Média, especialmente nos seus primeiros séculos,
até ser superada em termos de influência no século XIII pelos escri­
tos de Aristóteles que começavam a ser conhecidos no Ocidente.
O sistema plotiniano está regido por dois aspectos centrais: seu
panteísmo e sua oposição ao materialismo. O princípio de sua hierar­

109
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

quia ontológica é o Uno, que é ao mesmo tempo o ser, o bem e a Di­


vindade. Do Uno procedem, por emanação.Ltodas.as co_isas. Em pri­
meiro lugar, o noús, o mundo do espírito, das idéias. O noüs já supõe
uma volta sobre si mesmo, uma reflexão, e, portanto, uma dualidade.
Em segundo lugar, a alma, reflexo do noús; Plotino fala de uma “alma
do mundo”, vivificadora e animadora do mundo todo, e das almas
individuais, que guardam um vestígio de sua unidade em seus princí­
pios. Essas almas ocupam uma posição intermediária no mundo, en­
tre o noús e os corpos que informam. E o grau ínfimo do ser é a maté­
ria, que é quase u m não-ser. o múltiplo, o indeterminado, aquilo que
mal é, exceto no último extremo da emanação. A alma deve se liber­
tar da matéria, na qual tem uma série de recaídas mediante as reen-
carnações que a teoria da transmigração admite. Existe a possibilida­
de - muito freqüente - do êxtase, ou seja, do estar fora de si, em que a
alma se liberta inteiramente da matéria e se une e funde com a Divin­
dade, com o Uno, e se transforma no próprio Uno. Retomando uma
idéia de Platão, Plotino concede grande importância à beleza; o belo é
a aparência mais visível das idéias, e nisso se manifesta o mundo su-
pra-sensível em forma sensível.
O neoplatonismo é panteísta. Não há nele distinção entre Deus e
o mundo; este procede do Uno, não por criação - idéia alheia ao pen­
samento grego mas por emanação. Isto é, o próprio ser do Uno se
difunde e manifesta, se explicita no mundo inteiro, desde o noús até a
matéria. Plotino emprega metáforas de grande beleza e sentido para
explicar essa emanação. Compara o Universo, por exemplo, com uma
árvore, cuja raiz é única, e da qual nascem o tronco, os galhos e até as
folhas; ou também, de modo ainda mais agudo e profundo, com uma
luz, com um foco luminoso, que se esparge e difunde pelo espaço, di­
minuindo progressivamente, em luta com a treva, até extinguir-se de
modo paulatino; o último resplendor, já se apagando entre a sombra,
é a matéria. É sempre a mesma luz, a do foco único; mas passa por
uma série de gradações em que vai se debilitando e atenuando, do ser
pleno ao nada. Percebe-se o parentesco da doutrina neoplatônica
com alguns motivos cristãos - talvez por influência do mestre de Plo­
tino, Amónio Sacas; por isso exerceu tamanha influência sobre os Pa­

110
O NEO PLA T O NISM O

dres da Igreja e sobre os pensadores medievais, sobreiudo sobre os mís­


ticos. Um grande número dos escritos destes são de inspiração neo-
platônica, e esse panteísmo foi um sério risco em que a mística cristã
esteve constantemente ameaçada de cair.
Plotino é, a rigor, a primeira mente grega que se atreve a pensar
o mundo - sem dúvida sob a pressão das doutrinas cristãs - propria­
mente como produzido, e não simplesmente “fabricado” ou “ordena­
do”. O mundo tem um ser recebido, é produto da Divindade - o Uno;
mas o pensamento helénico não é capaz de enfrentar o nada , o m un-
do foi produzido pelo Uno, não do nada, mas de si mesmo. O ser divi­
no e o do mundo são, em última instância, idênticos. Daí o conceito
de emanação, a forma concreta do panteísmo neoplatônico, que é, em
suma, a tentativa de pensar a criação sem o nada. Esta é a reação ca­
racterística da mente grega ante a idéia de criação, introduzida pelo
pensamento judaico-cristão.
O homem ocupa uma posição intermediária no sistema de Ploti-
no. Está situado entre os deuses e os animais e inclina-se para uns ou
para os outros - diz ele; está referido ao superior e pode se elevar até
o mais alto. “O homem - acrescenta Plotino - é uma linda criatura, a
mais bela possível, e na trama do universo tem um destino melhor que
o de todos os outros animais existentes sobre a terra.”
Os filósofos neoplatônicos • O neoplatonismo foi cultivado
ininterruptamente até o século VI, até o final do mundo antigo. Sua
influência penetrou no pensamento dos Padres da Igreja e posterior­
mente dos escolásticos medievais. Quando se fala das fontes platôni­
cas dos primeiros séculos da Escolástica, deve-se entender que se tra­
ta primariamente de fontes neoplatõnicas, que constituem um ele­
mento excepcionalmente ativo em toda a filosofia anterior.
Entre os mais importantes continuadores de Plotino estão os se­
guintes: Porfírio (232-304), seu discípulo mais próximo, que escreveu
os livros mais influentes da escola, condensou as doutrinas de Plotino
num breve tratado intitulado ’A(pop|aai Ttpòç xà vor)xá (Sentenças so­
bre os inteligíveis)', escreveu ademais Isagoge ou Introdução às categorias
de Aristóteles, também chamada Sobre as cinco vozes (gênero e espécie, di­
ferença, próprio e acidente), obra de enorme sucesso na Idade Média.

111
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Jâmblico, discípulo de Porfírio, morto por volta de 330, era sírio e cul­
tivou especialmente o aspecto religioso do neoplatonismo, com gran­
de prestígio. Também foi um ncoplatônico o imgeradorj.uliano, o Após-
tatà. O último filósofo importante da escola foi Proclo (420-485),
de Constantinopla, professor e escritor extremamente ativo, que cul­
tivou todas as formas filosóficas da época; sua obra de conjunto, sis­
tematização pouco original do neoplatonismo, foi a iToixeícocnç
0£OÀ.oynq (Elementatio theologica, como a chamaram os latinos); tam­
bém escreveu longos comentários sobre Platão, e outros - muito inte­
ressantes para a história da matemática helénica - sobre o livro 1 dos
Elementos, de Euclides; o prólogo deste comentário é um texto capital
para essa história. Entre os pensadores neoplatônicos deve-se tam­
bém incluir qautor anônimo do século V que até o século XV foi tido
por Dionísio Areopagita, primeiro bispo de Atenas, e que costuma ser
chamado de Pseudo-Dionísio. Suas obras - Da hierarquia celestial, Da
hierarquia eclesiástica, Dos nomes divinos, Teologia mística -, traduzidas
várias vezes para o latim, tiveram imensa autoridade e influência na
Idade Média.

Com o neoplatonismo termina a filosofia grega. A ela segue-se


uma nova etapãlTlosótica, em que será a mente cristã que enfrentará
o problema metafísico. Foi a primeira a existir, e isso é essencial, por­
que a filosofia recebeu das mãos dos gregos seu caráter e seus modos
fundamentais. Toda a filosofia posterior transcorre pelos caminhos
abertos pela mente grega. Portanto, a marca da filosofia helêmca é,
como o grego quis, para sempre, eíç àeí. Em sua essência, os modos
cle pensar da mente ocidental dependem a tal ponto da Grécia que
quando se impôs pensar objetos e até realidades diferentes das que a
Grécia tematizou foi preciso lutar contra a dificuldade de se libertar
dos moldes helénicos de nossa mentalidade.
Desse modo, a filosofia grega tem hoie total atualidade, que é a
que corresponde à sua presença rigorosa na nossa.

112
0 cristianismo
C r is t ia n is m o e f il o s o f ia

A divisão mais profunda da história da filosofia é marcada pelo


cristianismo; as duas grandes etapas do pensamento ocidental estão
separadas por ele. Mas seria um erro crer que o cristianismo é uma fi­
losofia; é uma relipião. coisa muito distinta: nem sequer se pode falar
com rigor de filosofia cristã, se o adjetivo cristã definir um caráter da
filosofia; podemos chamar de filosofia cristã exclusivamente a filosofia
dos cristãos enquanto tais, ou seja, a que está determinada pela situação
cristã de que o filósofo parte. Nesse sentido, o cristianismo tem um pa­
pel decisivo na história da metafísica porque modificou de modo essen­
cial os pressupostos a partir dos quais se move o homem, e, portanto,
a situação de que parte para filosofar. É o homem cristão que é outro,
e por isso é outra sua filosofia, distinta, por exemplo, da grega1.
O cristianismo traz uma idéia totalmente nova, que dá sentido
existência do m undo e do homem: a criação. In principo creavít Deus
caelum et terram. Desta frase inicial do Gênese nasce a filosofia mo­
derna. Vimos como o problema do grego era o movimento: as coisas
são problemáticas porque se movem, porque mudam, porque chegam
a ser e deixam de ser o que são. O que se opõe ao ser é o não ser, o não
ser o que se é. Desde o cristianismo, o que ameaça o ser é o nada. Para
um grego a existência de todas as coisas não constituía questão, e para
o cristão é isso o estranho que tem de ser explicado. As coisas pode­
riam não ser; é sua própria existência que requer justificação, não o

1. Ver m e u estudo La escolástica en su mundo y en eí nuest.ro (em Biografia de la


filosofia).

115
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

fato de que sejam. “O grego se seme estranho ao mundo pela variabi­


lidade deste. O europeu da Era Cristã, por sua nulidade, ou melhor,
nulidade." “Para o grego o mundo é algo que varia; para o homem de
nossa era, é um nada que pretende ser.” “Nessa mudança de hori­
zonte, ser irá significar algo toto coelo diferente do que significou
para a Grécia: para um grego ser é estar ai; para o europeu ociden-
tal ser é, em prim eiro lugar, não ser um nada." “Em certo sentido,
portanto, o grego filosofa desde o ser, e o europeu ocidental, desde o
nada ” (Zubiri: Sobre el problema de la filosofia).
Essa diferença radical separa as duas grandes etapas filosófi­
cas. O problema é formulado de dois modos essencialmente distin­
tos: é outro problema. Assim como existem dois mundos, este m un­
do e o outro, na vida do cristão haverá dois sentidos distintos da
palavra ser, se é que se pode aplicá-la em ambos os casos: o ser de
Deus e o do m undo. O conceito que permite interpretar o ser do
mundo desde o de D eus é o de criação. Temos, por um lado, Deus, o
verdadeiro ser, criador; por outro, o ser criado, a criatura, cujo ser
é recebido. É a verdade religiosa da criação que obriga a interpretar
esse ser e coloca o problema filosófico do ser criador e do criado, de
Deus e da criatura. Desse modo, o cristianismo, que não é filosofia,
afeta-a de modo decisivo, e a filosofia que surge da situação radical
de homem cristão é a que pode ser chamada, nesse sentido concre­
to, filosofia cristã. Não se trata, portanto, de uma consagração pelo
cristianismo de nenhuma filosofia, nem da filiação impossível da re­
ligião cristã a nenhuma delas, mas da filosofia que emerge da ques­
tão capital com que o cristianismo depara: a de sua própria realida­
de ante Deus. N um sentido amplo, isso ocorre em toda a filosofia
européia posterior à Grécia, e de modo eminente na dos primeiros
séculos de nossa era e na filosofia medieval.

116
I. A PATRÍSTICA

Chama-se patrística à especulação dos Padres da Igreja, nos pri­


meiros séculos do cristianismo. O propósito dos cristãos não é intelec­
tual nem teórico. São João ou São Paulo, apesar da extraordinária pro­
fundidade de seus escritos, não tentam fazer filosofia; contudo, é ine­
vitável que a filosofia tenha de se ocupar deles. Contudo, pouco a
pouco e de modo crescente, os temas especulativos vão adquirindo
um lugar no cristianismo, sobretudo por dois estímulos de índole po­
lêmica: as heresias e a reação intelectual do paganismo. As verdades
religiosas são interpretadas, elaboradas, formuladas em dogmas. Os
primeiros séculos de nossa era são os da constituição da dogmática
cristã. E junto com a interpretação ortodoxa surgem abundantes he­
resias, que obrigam a uma precisão conceituai maior para discuti-las,
rejeitá-las e convencer os fiéis da verdade autêntica. A dogmática vai-
se constituindo na esteira da luta contra os n u merosos movimentos
heréticos. Por outro lado, os pagãos prestam uma tardia atenção à re­
ligião de Cristo. No princípio, parecia-lhes uma seita estranha e ab­
surda, que não distinguiam bem do judaísmo, formada por homens
quase dementes, que adoravam um Deus morto e em suplício, sobre
os quais se contavam as histórias mais surpreendentes e desagradá­
veis. Quando São Paulo, no Areópago, se dirige aos refinados e curio­
sos atenienses do século I, que só se interessavam por dizer ou ouvir
algo novo, estes o escutavam com atenção e cortesia enquanto lhes fa­
lava do Deus desconhecido que fora lhes anunciar; mas quando men­
ciona a ressurreição dos mortos, alguns riem e outros dizem que mais
uma vez irão escutá-lo falar daquilo, e quase todos o abandonam._E

117
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

adquirindo"^
conhecida a quase total ignorância do cristianismo demonstraua por
um homem como Tácito. Em seguida, o cristianismo vai adquirindo''
I maior influência, chega às classes mais altas, e o paganismo passa a
j lhe dar atenção. Começam, então, os ataques intelectuais, dos quais a
nova religião tem de se defender do mesmo modo, e para isso tem
de lançar mão dos instrumentos mentais que estão a seu alcance:
os conceitos filosóficos gregos. Por essa via, o cristianismo, que em
muitas de suas figuras de primeira hora mostra uma hostilidade to­
tal à razão (o exemplo famoso é Tertuliano), acaha por incorporar a
filosofia grega para servir-se dela, apologeticamente, na defesa con­
tra os ataques que de seu ponto de vista lhe são dirigidos.
O cristianismo se vê portanto obrigado, em primeiro lugar, a
uma formulação intelectual dos dogmas, e em_segundo lugar a uma
discussão racional com seus inimigos heréticos ou paglos. £ssa é a
origem da especulação patrística, cujo propósito, repito, não é filo­
sófico, e que só com restrições pode ser considerada filosofia.
As fontes filosóficas da patrística • Os Padres da Igreja não
dispõem de um sistema definido e rigoroso. Tomam do pensamento
helénico os elementos de que necessitam em cada caso e, ademais,
é preciso ter em conta que seu conhecimento da filosofia grega é
muito parcial e deficiente. Em geral, são ecléticos: escolhem de to­
das as escolas pagãs o que lhes pareça mais útil para seus fins. Em
Clemente de Alexandria (Stromata, 1, 7) encontra-se uma declara­
ção formal de ecletismo. Mas, desde o começo, a principal fonte de
que se nutrem é o neoplatonismo, que irá influir poderosamente
na Idade Média, sobretudo até o século XIII, quando sua importân­
cia passa a empalidecer ante o prestígio de Aristóteles. Através dos
neoplatônicos (Plotino, Porfírio, etc.), conhecem Platão de modo pou­
co preciso e se esforçam por descobrir nele analogias com o cristia­
nismo; de Aristóteles não sabem muito; os filósofos latinos, Sêneca,
Cícero, são mais conhecidos, e neles encontram um repertório de idéias
procedentes de toda a filosofia grega.
Os problemas • As questões que mais preocupam os Padres
da Igreja são as mais importantes formuladas pelo dogma. Os pro­
blemas filosóficos - e isso ocorre também na Idade Média - quase

118
A p a t r í s t ic a

sempre são impostos por uma verdade religiosa, revelada, que exi­
ge interpretação racional. A razão serve, portanto, para esclarecer e
formular os dogmas, ou para defendê-los. A criação, a relação de
Deus com o mundo, o mal, a alma, o destino da existência, o senti­
do da redenção são problemas capitais da patrística. E ao lado de­
les, questões estritamente teológicas, como as que se referem à es­
sência de Deus, à trindade de pessoas divinas etc. Por último, em
terceiro lugar, aparecem os moralistas cristãos, que irão estabelecer
as bases de uma nova ética que, embora utilize conceitos helénicos,
funda-se, no essencial, na idéia de pecado, na graça e na relação do
homem com seu criador, e culmina na idéia da salvação, alheia ao
pensamento grego.
Esses problemas são manejados por uma série de mentes, com
freqüência de primeira ordem, que nem sempre se mantêm na linha
da ortodoxia e às vezes caem na heresia. Apresentaremos brevemen­
te os momentos mais importantes da evolução que culmina no pensa­
mento genial de Santo Agostinho: os gnóslicos, os apologetas, São
Justino e Tertuliano, os alexandrinos (Clemente e Orígenes), os Padres
capadócios etc.
Os gnósticos • O principal movimento herético dos primeiros
séculos é o gnosticismo. Tem relação com a filosofia grega da última
época, em particular com idéias neoplatômcas, e também com o pen­
samento do judeu helenizado Fílon, que interpretava alegoricamente
a Bíblia. O gnosticismo, heresia cristã, também está intimamente vin­
culado a lodo o sincretismo das religiões orientais, tão complexo e in­
trincado no começo de nossa era. O problema cmóst.ico é o da realida­
de do mundo, e mais concretamente do mal. A posição gnóstica é de
um dualismo entre o bem (Deus) e o mal (a matéria). O ser divino
produz por emanação uma série de cones, cuja perfeição vai decres­
cendo: o mundo é uma etapa intermediária entre o divino e o mate­
rial. Isso faz com que os momentos essenciais do cristianismo, como
a criação do mundo, a redenção do homem, adquiram um caráter na­
tural, como simples momentos da grande luta entre os elementos do
dualismo, o divino e a matéria. Uma idéia gnóstica fundamental é a
da à7toKaTÓcüTaoiç rcáv-ccov, a restituição de todas as coisas a seu pró­

119
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

prio lugar. O saber gnóstico não é ciência em sentido usual, e tam­


pouco é revelação, mas uma ciência ou iluminação especial superior,
que é a chamada gnôsis (yvòcjiç). Evidentemente, essas idéias só po­
dem conciliar-se com os textos sagrados cristãos recorrendo à inter­
pretação alegórica muito forçada, e por isso os gnósticos caem na he­
resia. Em estreita relação com eles há um movimento, chamado gnose
cristã, que os combate com grande agudeza. A importância do gnosti-
cismo, que chegou a constituir uma espécie de Igreja heterodoxa à mar­
gem, foi muito grande, sobretudo até o Concílio de Nicéia, em 325.
Os apologetas • Ante os desvios cristãos, e sobretudo ante a po­
lêmica pagã, os apologetas esforçam -se na defesa do cristianismo. Os
dois mais importantes são Justino, que sofreu o martírio e foi canoni­
zado, e Tertuliano. Posteriores, e de menor importância, são São Ci-
priano, Arnóbio e Lactâncio, que viveram do século II ao século IV.
Justino é escritor de língua grega, e Tertuliano, latino, da África roma-
nizada, de Cartago, como depois o foi Santo Agostinho. E neles se en­
contra urna, atitude de profunda oposição à cultura grega, e em espe­
cial à filosofia.
Justino procedia dela; conheceu-a e a estudou antes de se conver­
ter ao cristianismo. E a utiliza para expor a verdade cristã, servindo-se
constantemente das idéias helénicas, que tenta harmonizar com a re­
velação. Há nele, portanto, uma aceitação do pensamento racional
dos gentios, que contrasta com a hostilidade de Tertuliano.
Tertuliano (169-220) escreveu vários livros importantes: Apologe-
tícus, De idolatria , De anima. Foi um inimigo fervoroso do gnosticismo
e de toda a cultura do paganismo, e mesmo da própria ciência racio­
nal. Ao se voltar contra os gnósticos, que usavam os recursos da filo­
sofia, volta-se contra ela. Há uma série de frases famosas de Tertulia­
no, que afirmam a certeza da revelação fundando-a precisamente em
sua incompreensibilidade, em sua impossibilidade racional, e que
culminam na expressão que tradicionalmente lhe é atribuída, embora
não se encontre em seus escritos: Credo quia absurdum. Mas nem esta
opinião, rigorosamente entendida, é admissível dentro do cristianismo,
nem as doutrinas de Tertuliano, apologeta inflamado, áspero e elo­
qüente, são sempre irrepreensíveis. Por exemplo, as que se referem ao
A PATRÍSTICA

Lraducianismo da alma humana, que procederia, por geração, da dos


pais. Essa doutrina pretendia sobretudo explicar a transmissão do pe-
cado original. Contudo, e em meio à sua apaixonada oposição à espe-
culação helénica, Tertuliano lhe deve muito, e seus escritos estão per­
meados da influência dos filósofos gregos.
Os padres gregos • O gnosticismo foi combatido de modo es­
pecialmente inteligente por uma série de Padres de formação e lín­
gua grega, desde São Irineu (século II) até o final do século IV. Em
São Irineu, um dos primeiros fundadores da dogmática no Oriente,__a
fé é contraposta à iluminação especial dos gnósticos, a pístis à gnôsis.
O retorno à segurança da tradição revelada, à continuidade da Igreja
ameaçada pelo movimento gnóstico é um momento especialmente
importante.
Clemente de Alexandria, que morreu no princípio do século III,
escreveu os Stromata, um livro eclético cheio de idéias filosóficas gre­
gas. Valoriza enormemente a razão e a filosofia; tende a uma compreen­
são, a uma verdadeira gnose, ainda que cristã, subordinada à fé reve­
lada, que é o critério supremo de verdade, e a filosofia é uma etapa
prévia para chegar a esse saber mais elevado que qualquer outro.
Orígenes, discípulo de Clemente, escreveu uma obra funda­
mental: riept àpxcüv, De principiis. Viveu de 185 a 254. Também está
permeado de influências gregas, mais até que seu mestre; reúne todo
o mundo de idéias que fermentavam no século 111 em Alexandria.
Aristóteles, Platão e os estóicos, transmitidos sobretudo por Fílon e os
neoplatônicos, são suas fontes. Em Orígenes, a doutrina da criação
tem uma significação especial, decisiva para toda a filosofia posterior:
ele a interpreta rigorosamente como produção do mundo a partir do__
nada, por um ato de livre vontade de Deus. Assim a criação se opõe
claramente a qualquer geração ou emanação, e dessa forma marca-se
dp modo nítido a sp_pararão entre o pensamento cristão e o grego.
Mas tampouco Orígenes esteve livre da heterodoxia, sempre uma amea­
ça naqueles primeiros séculos de insuficiente precisão dogmática, em
que a Igreja ainda não possuía o corpo doutrinal maduro, que só co­
meçará a existir a partir da teologia agostiniana.
Depois de Alexandria, Antioquia e Capadócia são os centros em
que mais floresce a teologia do Oriente. Uma série de heresias, espe-

121
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

cialmente o arianismo, o nestorianismo e o pelagianismo, dão ocasião


para uma série de controvérsias, trinitárias, cristológicas e antropoló­
gicas, respectivamente. O arianismo foi combatido por São Atanásio,
bispo de Alexandria (século IV), e pelos três Padres capadócios, São
Gregório de Nissa, seu irmão São Basílio Magno e São Gregório Na-
zianzo, que tiveram extraordinária importância para a formação da
dogmática e da moral cristãs. No Ocidente, Santo Ambrósio, o famo­
so bispo de Milão.

sfc * *

No século IV, a Patrística atinge sua plena maturidade. Foi o mo­


mento em que as heresias atingiram sua máxima intensidade. As três
antes citadas e o grande movimento maniqueísta, que se estende do
Oriente ao Ocidente, ameaçam a Igreja. Por outro lado, o pensamen-
to cristão ganhou profundidade e clareza, e ao mesmo tempo vigpnria
social no Império Romano. O mundo antigo está em sua última eta­
pa. Já faz algum tempo que os bárbaros batem em todas as portas do
Império; ao longo de suas fronteiras sente-se a pressão dos povos ger­
mânicos, que vão se infiltrando lentamente, antes de sua grande irrup­
ção no século V E, sobretudo, o paganismo deixou de existir; a cultu­
ra romana se esgota no comentário e continua se nutrindo, ao cabo
dos séculos, de uma filosofia - a grega - que não é capaz de renovar.
Nesse momento aparece Santo Agostinho, a plenitude da Patrística,
que resume numa personalidade imensa o mundo antigo, ao qual ain­
da pertence, e a época moderna, que anuncia, e cujo ponto de parti­
da é ele mesmo. Na obra agostiniana resume-se essa passagem decisi­
va de um mundo a outro.

122
II. S a n t o A g o s t i n h o

1. A vida e a pessoa

Santo Agostinho é uma das figuras mais interessantes de seu


tempo, do cristianismo e da filosofia. Sua personalidade originalíssi­
ma e rica deixa uma marca profunda em todas as coisas em que põe a
mão. A filosofia e a teologia medievais, ou seja, o que se conhece por
Escolástica, toda a dogmática cristã, disciplinas inteiras como a filoso­
fia do espírito e a filosofia da história, ostentam a marca inconfundí­
vel que lhes imprimiu. Mais ainda: o espírito cristão e o da moderni­
dade foram decisivamente influenciados por Santo Agostinho; e tanto
a Reforma como a Contra-Reforma recorreram de modo particular às
fontes agostinianas.
Santo Agostinho é um africano. Não nos esqueçamos disso. Afri­
cano como Tertuliano, filho daquela África romanizada e cristianiza­
da do século IV, semeada de heresias, onde convivem forças religiosas
diversas, animadas por uma paixão extraordinária. Nasce em Tagaste.
na Numídia, perto de Cartago, em 354. Em sua ascendência encon­
tram-se duas influências bem distintas: seu pai, Patrício, magistrado
pagão, batizado apenas ao morrer, homem violento e iracundo, de in­
flamada sensualidade, que tanto viria a perturbar Agostinho; sua mãe,
Mônica, canonizada depois pela Igreja, mulher de grande virtude e
profundo espírito cristão. Agostinho, que amou apaixonadamente sua
mãe, teve de se debater entre os impulsos de sua dupla herança.
Muito jovem, Aurélio Agostinho fez seus primeiros estudos em
Tagaste, em Madaura e depois, aos dezesseis anos, vai para Cartago.

123
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Nessa época apaixona-se por uma mulher, e dela nasce seu filho Adeo-
dato. Também nessa época Agostinho encontra pela primeira vez a
revelação filosófica, ao ler o Horlensíu, de Cícero, que lhe causou uma
impressão muito forte. Desde então tomou consciência do problema
filosófico, e o afã da verdade não mais o abandonaria até a morte.
Busca a Escritura, mas lhe parece pueril, e a soberbia frustra esse pri-
meiro contato com o cristianismo. Então vai buscar a verdade na sei­
ta maniqueísta
Manes nasceu na Babilônia no começo do século III e pregou sua
fé pela Pérsia e por quase toda a Asia, até a índia e a China. De volta à
Pérsia, foi preso e morreu em suplício. Mas sua influência também se
estendeu pelo Ocidente e foi um grave problema para o cristianismo
até meados da Idacle Média. O maniqueísmo contém muitos elemen­
tos cristãos e das diversas heresias, alguns elementos budistas, influên­
cias gnósticas e, sobretudo, idéias fundamentais do masdeísmo, da re­
ligião persa de Zoroastro. Seu ponto de partida é o dualismo irredutí­
vel do bem e do mal, da luz e das trevas, de Deus e do diabo. em
suma. A vida inteira é uma luta entre os dois princípios inconciliáveis.
Santo Agostinho acudiu ao maniqueísmo cheio de entusiasmo.
Em Cartago leciona retórica e eloqüência e se dedica à astrolo­
gia e à filosofia. Depois vai para Roma, e dali para Milão onde sua mãe
vai encontrá-lo. Em Milão conhece o grande bispo Santo Ambrógjp,
teólogo e orador, a quem escuta assiduamente, e que tanto contribuiu
para sua conversão. Descobre então a superioridade da Escritura e,
ainda não ser.do católico, afasta-se da seita de Manes; por último, in-
gressa na Igreja como catecúmena A partir daí vai se aproximando
cada vez mais do cristianismo; estuda São Paulo e os neoplatônicos, e
o ano de 386 é para ele uma data decisiva. Num jardim milanês, tem
uma crise de choro e de desagrado consigo mesmo, de arrependimen­
to e angústia, até que escuta uma voz infantil que lhe ordena: ‘Toile,
lef?e”. toma e lê. Agostinho apanha o Novo Testamento e ao abri-lo lê
um versículo da Epístola aos Romanos que alude à vida de Cristo ante
os apetites da carne. Sente-se transformado e livre, cheio de luz;_o
obstáculo da sensualidade desaparece nele. Agostinho já é totalmente
cristão.

124
Sa n t o A g o s t in h o

A partir desse momento sua vida é outra, e ele se dedica integral­


mente a Deus e a sua atividade religiosa e teológica. Sua história passa
a se confundir com suas obras e seu trabalho evangélico. Retira-se por
uma temporada numa propriedade rural, com sua mãe, seu filho e al­
guns discípulos, e dessa estada procedem alguns de seus escritos mais
interessantes. Em seguida é batizado por Santo Ambrósio e se dispõe a
voltar para a África. Antes de sair da Itália, Agostinho perde a mãe, e
chora angustiadamente; dois anos depois, já em Cartago, morre o fi­
lho. Em seguida é ordenado sacerdote em Hipona e mais tarde consa­
grado bispo desta mesma cidade. Sua atividade é extraordinária, e ju n ­
to com o exemplo fervoroso de sua alma cristã vão surgindo suas obras.
Em agosto de 430 Sanrn Agosjinho morre em Hipona.
Obras • A produção agostiniana é copiosíssima, de alcance e va­
lor desiguais. As obras mais importantes são as referentes à dogmática
e à teologia, e as que expõem seu pensamento filosófico. Sobretudo, as
seguintes:
P Os treze livros das Confissões, um livro autobiográfico em que
I Agostinho conta, com uma intimidade desconhecida no mundo an-
I tigo, sua vida até o ano de 387, e ao mesmo tempo mostra sua for-
^ mação intelectual e as etapas por que sua alma passou até chegar à
verdade cristã, que ilumina sua vida inteira, confessando-a perante
Deus. É um livro sem equivalente na literatura, de altíssimo interes­
se filosófico.
A outra obra máxima de Santo Agostinho é a intitulada De civita-
te Dei, a cidade de Deus. É a primeira filosofia da história, e sua in­
fluência perdurou até Bossuet e Hegel.
Ao lado dessas duas obras podemos incluir os três diálogos que
se seguiram a sua conversão, De beata vita, Contra acadêmicos e De or-
dine. Além desses, os Solíloquia, o De Trinitate etc.
Santo Agostinho recolhe uma série de doutrinas helénicas, so­
bretudo neoplatônicas, de Plotino e Porfírio; conhece pouco Platão e
Aristóteles e somente por via indireta; tem um conhecimento bem
maior dos estóicos, epicuristas, acadêmicos e, sobretudo, de Cícero.
Esse importantíssimo patrimônio da filosofia grega passa para o cris-
tianismo e para a Idade Média através de Santo Agostinho. Mas ele

125
H ist ó r ia d a f ilo s o f ia

geralmente adapta as contribuições dos gregos às necessidades filosó-


ficas da dogmática cristã; é o primeiro momento em que a filosofia
grega como tal vai entrar em contato com o cristianismo. Graças a esse
Lrabalho, a fixação dos dogmas dá um passo gigantesco, e Santo Agos­
tinho se torna o mais importante dos Padres da Igreja latina. Sua obra
filosófica é uma das principais fontes em que se abeberou a metafísi­
ca posterior, e dela nos ocuparemos de forma minuciosa.

2. A filosofia

A formulação do problema • O conteúdo da filosofia agostinia-


na se expressa do modo mais radical nos Solilóquios: Deum et animam
scire cupio. Nihilne plus? Nihil omnino. Quero saber de Deus e da alma.
Nada mais? Nada mais em absoluto. Ou seja, há apenas dois temas na
filosofia agostiniana: Deus e a alma. O centro da especulacão será Deus,
de onde brota seu trabalho metafísico e teológico; por outro lado,
Santo Agostinho, o homem da intimidade e da confissão, nos legará a
filosofia do espírito; e, por último, a relação desse espírito, que vive
no mundo, com Deus o levará à idéia da civitas Dei, e com ela à filo­
sofia da história. Estas são as três grandes contribuições de Santo Agos­
tinho à filosofia e a tríplice raiz de seu problema.
Deus • Esse caráter do pensamento agostiniano tem importan­
tes conseqüências; uma delas, a de pôr o amor, a caridade em pri-
meiro plano na vida intelectual do homem. O conhecimento nãq^e
dá sem amor. Si sapientia Deus est - escreve em De civitate Dei ve-
rus philosophus est amator Dei. E de forma ainda mais clara afirma:
Non intratur in veritatem ntsi per caritatem. Não se entra na verdade
senão pela caridade. Por isso, o que move a própria raiz de seu pen­
samento é a religião, e é esta que põe em movimento sua filosofia. De
Agostinho provém a idéia da lides auaerens intellectum, a fé que bus-
ça a compreensão, e o princípio credo ut íntelligam , creio para enten­
der, que lerão repercussões tão profundas na Escolástica, sobretudo
em Santo Anselmo e Santo Tomás. Os problemas da relação entre
fé e ciência, entre religião e teologia já estão formulados em Santo
Agostinho.

126
S a n t o A g o s t in h o

Santo Agostinho recolhe o pensamento platônico, mas com im ­


portantes alterações. Fm Platão o n o n io de pari i d a são as coisas; San-
to Agostinho, em contrapartida, apóia-se sobretudo na alma como
realidade íntima_no_que chama de o homem interior. Por isso a dialéti-
ca a g o s r i n ia n a para h n s r a r D p u s é c o n fis s ã o Santo Agostinho conta sua
vida. A alma se eleva dos corpos a ela mesma, depois à razão e, por
último, à luz que a ilumina, a Deus ele mesmo. Chega-se a Deus des­
de a realidade criada, e sobretudo desde a intimidade do homem.
J Como o homem é a imagem de Deus, encontra-o, como num es­
pelho, na intimidade de sua alma; afastar-se de Deus é como extrair as
próprias entranhas, esvaziar-se e ser cada vez menos; quando o ho­
mem, em troca, entra em si mesmo, descobre a Divindadg. Mas é ape­
nas mediante uma iluminação sobrenatural que o homem pode co­
nhecer Deus de modo direto.
Segundo a doutrina de Santo Agostinho, Deus criou o mundo a
partir do nada, ou seia, não a partir de seu próprio ser, e livremente.
Também incorpora a teoria platônica das idéias. No sistema agostinia-
no, contudo, estas estão alojadas na mente divina: são os modelos
exemplares, segundo os quais Deus criou as coisas por uma decisão
de sua vontade.
A alma • A alma tem um papel importantíssimo na filosofia agos-
tiniana. O mais interessante não é sua doutrina sobre ela, mas, sobre-
Ludo, o fato de que nos põe em contato com sua peculiar realidade,
como ninguém fizera antes dele. A análise íntima de sua própria al­
ma, que constitui o tema das Confissões, é de imenso valor para o co­
nhecimento interior do homem. Por exemplo, a contribuição de San­
to Agostinho para o problema da experiência da morte.
A alma é espiritual. O caráter do espiritual não é simplesmente
negativo, ou seja, a imaterialidade, mas algo positivo: a faculdade de
entrar em si mesmo. O espírito tem um dentro, um chez soi, em que pode
se recluir, privilégio que não compartilha com nenhuma outra reali­
dade. Santo Agostinho é o homem da interioridade: Noli foras ire, in te
redi, in interiore homine habitat veritas, escreve em De vera religione.
O homem, que é simultaneamente racional - como o anjo - e
mortal - como animal -, ocupa um lugar intermediário. Mas, sobretu­

127
H is t o r ia d a f il o s o f ia

do, é imagem de Deus, imago Dei, por ser uma mente, um espírito. Na
triplicidade das faculdades da alma, memória, inteligência e vontade
ou amor, Santo Agostinho descobre um vestígio da Trindade. A uni­
dade da pessoa, que tem essas três faculdades intimamente entrelaça­
das, mas não é nenhuma delas, é a do eu, que recorda, entende e ama,
com perfeita distinção, mas mantendo a unidade da vida, da mente e
da essência.
Santo Agostinho afirma - com fórmulas análogas à do cogito car­
tesiano, embora distintas por seu sentido profundo e seu alcance filo­
sófico - a evidência íntima do eu, alheio a qualquer possível dúvida,
diferentemente do testemunho dubitável dos sentidos corporais e do
pensamento sobre as coisas. “Nestas verdades, não é preciso temer -
diz (De civitate Dei, XI, 26) - os argumentos dos acadêmicos, que di­
zem: E se estiveres enganado? Pois se me engano, sou. Pois o que não
existe, na verdade nem se enganar pode; por isso existo se me enga­
no. E já que existo se me engano, como posso me enganar sobre o
fato de que existo, quando é certo que existo se me engano? Portanto,
como eu, o enganado, existiria mesmo se me enganasse, sem dúvida
não me engano ao conhecer que existo.”
A alma, que por sua razão natural ou ratio inferior conhece as coi­
sas, a si mesma e, indiretamente, Deus, refletido nas criaturas, pode
receber uma iluminação sobrenatural de Deus e mediante essa ratio
superior elevar-se ao conhecimento das coisas eternas.
Qual a origem da alma? Santo Agostinho fica um tanto perplexo
ante esta questão. Hesita, e com ele toda a Patrística e a primeira par­
te da Idade Média, entre o generacionismo ou traducianismo e o cria-
cionismo. A alma também é engendrada pelas almas dos pais, ou é
criada por Deus por ocasião da concepção do corpo? A doutrina do
pecado original, que lhe parece mais compreensível se a alma do filho
procede diretamente dos pais, como o corpo, leva-o a se inclinar para
o generacionismo; mas ao mesmo tempo sente a fraqueza dessa teoria
e não rejeita a solução criacionista.
O homem no mundo • O problema moral em Santo Agostinho
aparece intimamente relacionado com as questões teológicas da natu­
reza e da graça, da predestinação e da liberdade da vontade humana,

128
S a n t o A g o s t in h o

do pecado e da redenção, em cujos detalhes não podemos entrar aqui.


No entanto, deve-se notar que todo esse complexo de problemas teo­
lógicos exerceu grande influência no desenvolvimento posterior da
titica cristã. Por outro lado, os escritos agostinianos, exagerados e des­
viados de seu sentido próprio, foram amplamente utilizados pela Re­
forma no século XVI - não esqueçamos que Lutero era um monge
agostiniano -. e desse modo uma raiz agostiniana persiste na ética
moderna de filiação protestante.
Para Santo Agostinho, do mesmo modo que o homem tem uma
luz natural que lhe permite conhecer, tem uma consciência moral. A lei
eterna divina, a que tudo está submetido, ilumina nossa inteligência, e
seus imperativos constituem a lei natural. É como uma transcrição da
lei divina em nossa alma. Tudo deve estar sujeito a uma ordem perfei­
ta: ut omnia sint ordenatissima. Mas não basta o homem conhecer a lei; é
preciso também que a queira; aqui aparece o problema da vontade.
A alma tem um peso que a move e a conduz, e este peso é o
amor: pondus meum amor meus. O amor é ativo, e é ele que, em última
instância, determina e qualifica a vontade: recta itaque voluntas est bô­
nus amor et voluntas perversa malus amor. O amor bom, isto é, a carida­
de em seu sentido mais próprio, é o ponto central da ética agostinia­
na. Por isso sua expressão mais densa e concisa é o famoso imperati­
vo ama efaz o que quiseres (Dilige, et quod visfac).
Como a ética, também a filosofia do Estado e da história depen-
de de Deus em Santo Agostinho. Vive em dias'críticos para o lmperio.
A estrutura política do mundo antigo está se transformando de modo
acelerado para dar lugar a outra. A pressão dos bárbaros é cada dia
maior. Alarico chega a ocupar Roma. O cristianismo já penetrara pro­
fundamente na sociedade romana, e os pagãos atribuíam as desventu­
ras que ocorriam ao abandono dos deuses e ao cristianismo; já Tertu-
liano tivera de desmentir essas acusações; e nesse mesmo sentido San­
to Agostinho empreendeu uma enorme obra apologética, na qual ex­
põe todo o sentido da história: A cidade de Deus.
A idéia central de Agostinho é que toda a história humana é uma
luta entre dois reinos'o de Ueus e o do iviuncto, entre a civitas Dei e a
civitas terrena. O Estado, que tem suas raízes em princípios profundeis

129
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

da natureza humana, está encarregado de velar pelas coisas tempo­


rais: o bem-estar, a paz, a justiça. Isso faz com que o Eslado tenha tam­
bém uma significação divina. Toda autoridade vem de Deus, ensina
Santo Agostinho, seguindo São Paulo. E, portanto, os valores religio­
sos não são alheios ao Estado, e este tem de estar impregnado dos prin­
cípios cristãos. Ao mesmo tempo tem de prestar apoio à Igreja com
seu poder, para que esta possa realizar plenamente sua missão. Como
a ética, em Santo Agostinho a política não pode ser separada da cons­
ciência de que o fim último do homem não é terreno, e sim descobrir
Deus na verdade que reside no interior da criatura humana.

3. A significação de Santo Agostinho

Santo Agostinho - corno já foi dito - é o último homem antigo e


o primeiro homem moderno. É um filho daquela África romaniz^da
penetrada pela cultura greco-romana, há muito transformada em pro­
víncia imperial. Seu século vê um mundo em crise, ameaçado por to­
dos os lados, mas que ainda subsiste. O horizonte social e político
que encontra é o Império Romano, a criação máxima da história anti­
ga. As fontes intelectuais que alimentam Santo Agostinho são em sua
maioria de origem helénica. Portanto, a antiguidade nutre o pensa­
mento agostiniano.
Mas não é só isso. Essa influência é mais profunda porque Agos­
tinho não é cristão desde o princípio; sua primeira visão da filosofia
lhe chega de urna fonte claramente gentílica, como é Cícero, um dos
homens mais representativos do modo de ser do homem antigo. O
cristianismo tarda em conquistar Agostinho: Sero te amavi, pulchritudo
tan antiqua et tam nova!, exclama Santo Agostinho nas Confissões.
Segundo Ortega, “Santo Agostinho, que permanecera por muito
tempo imerso no paganismo, que vira o mundo em grande medida
pelos olhos ‘antigos’ não podia evitar uma profunda estima por esses
valores animais da Grécia e de Roma. À luz de sua nova fé, aquela
existência sem Deus tinha de lhe parecer nula e vazia. Não obstante,
era tal a evidência com que ante sua intuição se afirmava a graça vital
do paganismo, que costumava expressar sua estima com uma frase

130
S a n t o A g o s t in h o

equivoca: Virtutes ethnicorum splendida vitia - ‘As virtudes dos pagãos


sao vícios esplêndidos’. Vícios? Então são valores negativos. Esplêndi-
dir,:’ lintão são valores positivos”1.
Esta é a situação em que se encontra Santo Agostinho. Vê o m un­
do com olhos pagãos e entende em sua plenitude a maravilha do m un­
do antigo. Mas, desde o cristianismo, parece-lhe que tudo isso, sem
I )eus, é um puro nada e um mal. O mundo - e com ele a cultura clás­
sica - tem um enorme valor; mas é preciso entendê-lo e vivê-lo desde
I '»eus. Só assim pode ser estimado aos olhos de um cristão.
Mas esse homem fronteiriço que é Santo Agostinho, que vive no
limile entre dois mundos distintos, não só conhece e abarca os dois,
como chega ao mais profundo e original de ambos. É talvez a mente
amiga que melhor compreende a significação total do Império e da
hísiória romanos. Por outro lado, Santo Agostinho representa um dos
exemplos máximos de realização da idéia do cristianismo, um dos três
ou quatro modos supremos de tradução do homem novo. Toda a Es­
colástica, apesar de suas figuras eminentes, vai depender essencial­
mente de Santo Agostinho. O último homem antigo é o começo da
grande etapa medieval da Europa.
E Santo Agostinho mostra também algo característico, não só do
ei isi ianismo, mas da época moderna: a intimidade. Vimos que seu cen-
i m é o homem interior. Pede ao homem que entre na interioridade de
sua mente para encontrar-se a si mesmo e, consigo, Deus. É a grande
lição que será aprendida primeiro por Santo Anselmo, e com ele por
inela a mística de Ocidente. Em contraste com a dispersão no externo
própria do homem antigo, homem de ágora e foro, Santo Agostinho
se encontra com regozijo na interioridade de seu próprio eu. E isso o
leva à afirmação do eu como critério supremo de certeza, numa fór­
mula próxima do cogito cartesiano, embora pensada a partir de outros
pressupostos: Omnis qui se dubitatem intellígit, vemm intelligit, et de hac
ic quam intellígt, certus est.

I O riega acrescenta a seguinte nota: “C o m o é sabido, esta fórm ula, desde sem ­
pre a irib u fd a a Santo A gostinho, não se encontra em suas obras; mas toda sua pro-
(hi(,;lo a parafraseia. Vide M ausbach: Die Ethik Augustinus."

131
H is t ó r ia d a f il o s o p ia

Santo Agostinho conseguiu possuir, como ninguém em seu tem­


po, o que viria a constituir a própria essência de outro modo de ser;
daí sua incomparável fecundidade. As confissões são a primeira tenta­
tiva do homem de se aproximar de si mesmo. Até o idealismo, até o
século XVII, não se chegará a nada semelhante. E nesse momento,
quando, com Descartes, o homem moderno se voltar para si mesmo e
ficar a sós com seu eu, Santo Agostinho adquirirá de novo uma pro­
funda influência.
Santo Agostinho determinou uma das duas grandes direções do
cristianismo, a da interioridade, e fez com que chegasse a seus últimos
extremos. A outra direção ficou nas mãos dos teólogos gregos e, por
isso, na Igreja do Oriente. Isso decidiu em boa medida a história da
Europa, que desde seu nascimento traz a marca do pensamento agos-
tiniano.

132
Filosofia medieval
I. A ESCOLÁS TICA

l . A época de transição

O mundo antigo termina aproximadamente no século V. Restrin­


gindo-nos apenas à história do pensamento, podemos considerar
i (imo data terminal a morte de Santo Agostinho (430). Considera-se
que a Idade Média acaba no século XV, e o limite é dado com freqüên­
cia pelo ano de 1453, em que o Império Bizantino cai em poder dos
turcos. Pois bem: são dez séculos de história, e isso é demais para ser
lomado como uma época; num espaço tão longo há grandes variações,
c uma exposição unitária da filosofia medieval tem necessariamente
dc desconsiderar grandes diferenças.
Em primeiro lugar, há uma grande lacuna de quatro séculos, do
V ao IX, em que não há propriamente filosofia. O mundo se altera ra­
dicalmente com a queda do Império Romano. À grande unidade po­
lítica da antiguidade segue-se o fracionamento; ondas de povos bárba-
ios invadem a Europa e cobrem-na quase totalmente; constituem-se
icmos bárbaros nas diversas regiões do Império, e a cultura clássica
lu a enterrada. Não se costuma reparar o suficiente numa importante
conseqüência das invasões germânicas: o isolamento. À comunidade
dos distintos povos do império opõe-se a separação dos Estados bár­
baros. Visigodos, suevos, ostrogodos, francos formam diversas comu­
nidades políticas desconexas, que levarão muito tempo para adquirir
vinculos comuns; quando isso ocorrer - conquanto se acredite na vol­
ta do Império do Ocidente -, será a formação de algo novo, que se cha­
mara Europa. Portanto, os elementos da cultura antiga ficam quase

135
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

perdidos e, sobreiudo, dispersos. Não foram tão destruídos como se


costuma pensar; a prova é que pouco a pouco vão reaparecendo. Mas
o que resta em cada lugar é muito escasso. E surge então um proble­
ma: salvar o que se encontra, conservar os restos da cultura em nau­
frágio. É essa a missão dos intelectuais desses quatro séculos; seu traba­
lho não é nem pode ser de criação, mas apenas de recopilação. Parale­
lamente na Espanha, na França, na Itália, na Alemanha, na Inglaterra,
alguns homens vão recolher com cuidado o que se sabe da antiguida­
de e reuni-lo em livros de tipo enciclopédico, nada originais, puros
repertórios do saber greco-latino. Esses homens salvarão a continuida­
de da história ocidental e preencherão com o trabalho paciente o vazio
desses séculos de fermentação histórica, para que possa surgir mais
tarde a nova comunidade européia.
A figura central desse tempo é São Isidoro de Sevilha, que viveu
entre os séculos VI e VII (aproximadamente de 570 a 646). Além de
outras obras secundárias de interesse teológico ou histórico, compôs
os 20 livros de suas Etimologias, verdadeira enciclopédia de seu tem­
po, que não se limita às sete artes liberais, mas abarca todos os conhe­
cimentos religiosos, históricos, científicos, médicos, técnicos e de sim­
ples informação que pôde compilar. A contribuição dessa grande per­
sonalidade da Espanha visigoda para o fundo comum do saber medie­
val é das mais consideráveis em sua época.
Na Itália, o pensador mais importante desse período é Boécio,
conselheiro do rei ostrogodo Teodorico, que no final o encarcerou e
mandou decapitá-lo em 525. Durante o tempo de sua prisão compôs
um livro famosíssimo, em prosa e verso, intitulado De consolatione phi-
losophiae. Também traduziu para o latim Isagoge, de Porfírio, e alguns
tratados lógicos aristotélicos, e escreveu monografias sobre lógica, ma­
temáticas e música, e alguns tratados teológicos (De trinitate, De dua-
bus naturis in Christo, De hebdomadibus), cujo principal interesse consis­
te nas definições, utilizadas durante séculos pela filosofia e pela teologia
posteriores. Marciano Capella, que viveu no século V embora originá­
rio de Cartago, trabalhou em Roma. Escreveu um tratado intitulado
As núpcias de Mercúrio e da Filologia, estranha enciclopédia onde são
sistematizados os estudos que viriam a predominar na Idade Média:

136
A ESCOLÁSTICA

o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética,


geometria, astronomia e música), que juntos compõem as sete artes
liberais. Também é importante Cassiodoro, ministro de Teodorico, as­
sim como Boécio.
Na Inglaterra foram preservados importantes núcleos onde a
■ultura básica ficou protegida, uma vez que as ilhas Britânicas foram
menos afetadas pelos invasores. Na Irlanda sobretudo havia convên­
ios onde perdurava o conhecimento do grego, quase perdido em todo
d Ocidente. A figura de maior destaque nesses círculos foi Beda, o Ve­
nerável (hoje São Beda), monge de Jarrow (Northumberland), que
viveu um século depois de São Isidoro (673-735). Sua obra mais im ­
portante, com a qual se inicia a história inglesa, é a Historia ecclesias-
tica gentis Anglorum; também compôs outros tratados, sobretudo o
/V natura rerum, de inspiração isidoriana. Da escola de York, na In­
glaterra, procedia Alcuíno (730-804, aproximadamente), que lecio­
nou durante vários anos na corte de Carlos Magno e foi um dos pro­
pulsores do renascimento intelectual carolíngio, de origem princi­
palmente inglesa.
O discípulo mais importante de Alcuíno foi Rábano Mauro (Rhaba-
niis Maurus), que fundou a escola de Fulda, na Alemanha, onde tam-
l)i-iii surgiram outros centros intelectuais em Münster, Salzburgo etc.
Em toda essa época de transição, o saber antigo dos escritores pa-
!',,ios e o dos Padres da Igreja é conservado sem rigor intelectual, desor­
denadamente e sem distinção de disciplinas, e menos ainda num corpo
de doutrinas sistemático e congruente. É só uma etapa de acumulação,
que prepara o ingente trabalho especulativo dos séculos posteriores.

2. O caráter da Escolástica

A partir do século IX aparecem, como conseqüência do renasci-


inuiio carolíngio, as escolas. E um certo saber, cultivado nelas, que virá
.1 se chamar Escolástica. Esse saber, diferentemente das sete artes libe-
iais, o do Trivium e do Quadrivium, é principalmente teológico e filo-
■.nlien. O trabalho da escola é coletivo; é uma tarefa de cooperação,
■ui eMivita relação com a organização eclesiástica, que assegura uma

137
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

especial continuidade do pensamento. Na Escolástica, sobretudo do


século XI ao XV, existe um corpo unitário de doutrina conservado
como um bem comum , para o qual colaboram os diversos pensadores
individuais que também o utilizam. Como em todas as esferas da vida
medieval, na Escolástica a personalidade do indivíduo não tem muito
destaque. Assim como as catedrais são imensas obras anônimas ou
quase isso, resultado de um grande trabalho coletivo de gerações in­
teiras, também o pensamento medieval vai sendo tecido sem descon-
tinuidade, sobre um fundo comum, até o final da Idade Média. Por
isso o sentido moderno de originalidade não se aplica propriamente à
Escolástica. É freqüente um escritor utilizar com total naturalidade
um material recebido e que não se pode atribuir a ele irrefletidamen-
te, sem risco de errar. Mas isso não quer dizer de forma nenhuma que
a Escolástica seja algo homogêneo ou que nela não existam personali­
dades eminentes. Pelo contrário: nesses séculos medievais encontra­
mos algumas das mentes mais profundas e perspicazes de toda a his­
tória da filosofia; e o pensamento medieval, que é de uma riqueza e
variedade surpreendentes, experimenta ao longo desse tempo uma
nítida evolução bastante radical, que tentaremos perceber com clare­
za. O volume de produções da Escolástica é tão grande que teremos
de nos limitar a indicar as grandes etapas dos problemas e a resenhar
brevemente a significação dos filósofos medievais de maior influência
na filosofia.
A forma exlerna • Os gêneros literários escolásticos correspon­
dem às circunstâncias em que se desenvolveram; mantêm uma estrei­
ta relação com a vida docente, com a vida da escola, primeiro, e de­
pois das Universidades. O ensino escolástico se dá, em primeiro lu­
gar, a partir de textos que são lidos e comentados; por isso se fala de
lectíones; esses textos são às vezes os da própria Escritura, mas com
freqüência são obras de Padres da Igreja, de teólogos ou de filósofos
antigos ou medievais. O Liber Sententiarum de Pedro Lombardo (séc.
XII) foi lido e comentado com insistência. Ao mesmo tempo, a realida­
de viva da escola provoca as disputationes, em que se debatem questões
importantes - no final da Idade Média também as que não o são -, e
os participantes exercitam a argumentação e a demonstração.

138
A ESCOLÁSTICA

Dessa atividade nascem os gêneros literários. Antes cle tudo, os


( omentários (Commentaria ) aos diferentes livros estudados; em se­
gundo lugar, as Quaestiones, grandes repertórios de problemas discu­
tidos, com suas autoridades, argumentos e soluções (Quaestiones dispu-
lalae, Quaestiones quodlibetales); quando as questões são tratadas sepa­
radamente, em obras breves independentes, são chamadas Opuscula;
por último, as grandes sínteses doutrinais da Idade Média, em que se
resume o conteúdo geral cla Escolástica, ou seja, as Summae, sobretu­
do as de Santo Tomás, e em especial a Summa Theologiae. Estas são as
principais formas em que se expressa o pensamento dos escolásticos.
Filosofia e teologia • Em que consiste o conteúdo da Escolásti­
ca? É filosofia? E teologia? São as duas coisas, ou uma terceira? A res­
posta a essas perguntas não é clara à primeira vista. A Escolástica é
por certo teologia; sobre isso não cabe dúvida. Mas, por outro lado, se
há uma filosofia medieval, não é menos certo que esta se encontra de
modo eminente nas obras escolásticas, o que leva necessariamente a
pensar que ambas, teologia e filosofia, coexistem; que, junto com a
teologia escolástica, há uma filosofia escolástica; e em seguida surge o
problema da relação entre ambas, que se costuma tentar resolver re­
correndo à idéia de subordinação e recordando a velha frase: philoso-
phia ancilla theologiae; a filosofia seria uma disciplina auxiliar, subor­
dinada, da qual a teologia se serviria para seus lins próprios. Esse es­
quema é simples e aparentemente satisfatório, mas apenas aparente­
mente. A filosofia não é, nem pode ser, uma ciência subordinada, que
sirva para que se faça algo com ela; como já sabia Aristóteles, a íiloso-
I ia não serve para nada, e todas as ciências são mais necessárias que
ela, embora nenhuma seja superior (Metafísica, I, 2). Por outro lado,
(le lato não é certo que na Idade Média tenha havido uma filosofia alheia
a leologia, da qual esta possa fazer uso. A verdade é com efeito outra.
Os problemas da Escolástica, como, antes, os da Patrística, são
antes cle tudo problemas teológicos, ou mesmo simplesmente dogmá-
i icos, de formulação e interpretação do dogma, às vezes de explicação
i ac ionai ou até mesmo de demonstração. E esses problemas teológicos
suscitam novas questões, que são, por sua vez, filosóficas. Imaginemos,
por exemplo, o dogma da Eucaristia: trata-se de algo religioso, que

139
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

em si mesmo nada tem a ver com a filosofia; mas se quisermos com­


preendê-lo de algum modo, recorreremos ao conceito de transubstan-
ciação, que é um conceito estritamente filosófico; essa idéia nos intro­
duz num mundo distinto, o da metafísica aristotélica, e dentro da teo­
ria filosófica da substância se coloca a questão de como é possível a
transmutação em que consiste a Eucaristia. O dogma da criação nos
força, igualmente, a levantar o problema do ser e nos coloca de novo
na metafísica, e assim por diante nos outros casos. A Escolástica trata,
portanto, de problemas filosóficos, que surgem por ocasião de ques­
tões religiosas e teológicas. Mas não se trata de uma aplicação instru­
mental, e sim de que o horizonte em que esses problemas são formu­
lados está determinado de modo rigoroso pela situação efetiva de onde
brotam. A filosofia medieval é essencialmente distinta da grega, antes
de tudo porque suas perguntas são outras e feitas a partir de outros
pressupostos; o exemplo máximo é o problema da criação, que trans­
forma de modo radical a grande questão ontológica e faz com que a
filosofia cristã dê lugar a uma nova etapa em relação à do mundo an­
tigo. Trata-se, a todo o momento, do complexo teologia-filosofia que
é a Escolástica, numa peculiar unidade, que corresponde à atitude vi­
tal do homem cristão e teórico de onde emerge a especulação. É o lema
de Santo Anselmo,/ides quaerens intellectum, mas com o cuidado de
sublinhar tanto o momento da fides como o do intellectus, na unidade
fundamental do quaerere. Nessa busca articulam-se os dois pólos en­
tre os quais a Escolástica medieval vai se mover1.
Examinaremos brevemente os três problemas centrais da filoso­
fia da Idade Média, isto é, o da criação, o dos universais e o da razão.
Na evolução dos três, que avança de forma paralela, concentra-se
toda a história do pensamento medieval e também o da época em sua
totalidade.

1. Cf. m eu estudo La escolástica en su mundo y en el nu estro (em Biografia de la


l :ilosofia).

140
I I . O S GRANDES TEMAS DA IDADE M É D IA

1. A criação

Vimos que o cristão parte de uma posição essencialmente distin-


ia da grega, ou seja, da niilidade do mundo. Em outras palavras, o m un­
do é contingente, não necessário; não tem em si sua razão de ser, mas
,i recebe de outro, que é Deus. O mundo é um ens ab alio, diferente­
mente do ens a se divino. Deus é criador, e o mundo, criado: dois mo­
dos de ser profundamente distintos e talvez irredutíveis. A criação é,
portanto, o primeiro problema metafísico da Idade Média, do qual
derivam, em suma, todos os demais.
A criação não deve ser confundida com o que os gregos cha­
mam de gênese ou geração. A geração é um modo do movimento, o
movimento substancial; este pressupõe um sujeito, um ente que se
move e passa de um princípio a um fim. O carpinteiro que faz uma
mesa a faz de madeira, e a madeira é o sujeito do movimento. Na cria-
i.,Ki isso não ocorre: não há sujeito. Deus não fabrica ou faz o mundo
i om uma matéria prévia, mas o cria, o põe na existência. A criação é
• i lação a partir do nada; segundo a expressão escolástica, creatio ex
nihilo; de modo mais explícito, ex nihilo sui et subjecti. Mas um princí­
pio da filosofia medieval é que ex nihilo nihil fit, do nada nada se faz,
o que pareceria significar que a criação é impossível, que do nada
iian pode resultar o ser, e seria a fórmula do panteísmo; mas o senti­
do com que essa frase é empregada na Idade Média é de que do nada
nada pode ser feito sem a intervenção de Deus, ou seja, justamente,
sc/n d criação.

141
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Isso abre um abismo metafísico entre Deus e o mundo que o gre­


go não conheceu; por isso aparece agora uma nova questão que afeta
o próprio ser: pode se aplicar a mesma palavra ser a Deus e às criatu
ras? Não é um equívoco? Pode-se, no máximo, falar de uma nova
analogia do ente, num sentido muito mais profundo que o aristotéli-
co. Chegou-se a negar que o ser corresponda a Deus; o ser seria uma
coisa criada, distinta de seu criador, que estaria além do ser. Prima re-
rum creatarum est esse, diziam os platonizantes medievais (ver Zubiri:
En torno al problema de Dios). Vemos, portanto, como a idéia de cria­
ção, de origem religiosa, afeta em sua raiz mais profunda a ontologia
medieval.
Essa criação poderia ser ab aeterno ou no tempo. As opiniões dos
escolásticos estão divididas, não tanto quanto à verdade dogmática de
que a criação aconteceu no tempo, como acerca da possibilidade de
demonstrá-lo racionalmente. Santo Tomás considera que a criação
é demonstrável, mas não sua temporalidade, conhecida tão-somente
por revelação; e a idéia de uma criação desde a eternidade não é con­
traditória, pois o ser criado só quer dizer que seu ser é recebido de
Deus, que é ab alio, independentemente da relação com o tempo.
Mas uma nova questão se coloca, que é a relação de Deus com o
mundo já criado. O mundo não se basta a si mesmo para ser, não tem
razão de ser suficiente; está sustentado por Deus na existência para
não cair no nada; é preciso, pois, dém da criação, a conservação. A
ação de Deus em relação ao mundo é constante; tem de continuar fa­
zendo com que exista a cada momento, e isso equivale a uma criação
continuada. Portanto, o mundo necessita sempre de Deus e é constitu-
tivamente necessitado e insuficiente. É isso o que pensa a Escolástica
dos primeiros séculos. O fundamento ontológico do mundo se en­
contra em Deus, não só em sua origem, mas de modo atual. No nomi­
nalismo dos séculos XIV e XV, contudo, essa convicção vacila. Pensa-
se então que não é necessária a criação continuada, que o mundo não
necessita ser conservado. Continua-se pensando que é um ens ab alio,
que não se basta a si mesmo, que recebeu sua existência das mãos de
seu criador; mas acredita-se que esse ser que Deus lhe dá ao criá-lo
lhe basta para subsistir; o mundo é um ente com capacidade de conti-

142
O S GR A N D E S TEMAS DA ID A D E M i í DIA

num existindo por si só; a cooperação de Deus em sua existência, de­


pois do ato criador, se reduz a não aniquilá-lo, a deixá-lo ser. Desse
modo, à idéia da criação continuada sucede a da relativa suliciência e
autonomia do inundo como criatura. O mundo, uma vez criado, pode
existir por si só, abandonado a suas próprias leis, sem a intervenção
direta e constante da Divindade.
Vemos como o desenvolvimento do problema da criação na Ida-
i k- Média leva a conferir uma maior independência à criatura em rela-
çilo ao criador e, portanto, conduz a um distanciamento de Deus. Por
distintas vias, ao término dessa etapa todos os grandes problemas da
mciafísica medieval levarão o homem a uma idêntica situação.

2. Os universais

A questão dos universais ocupa toda a Idade Média; chegou-se a


dizer que toda a história da Escolástica é a da disputa em torno dos
universais; isso não é correto; mas o problema está presente em todos
os outros problemas e se desenvolve em íntima conexão com a totali­
dade deles. Os universais são os gêneros e as espécies e se opõem aos
indivíduos; a questão é saber que tipo de realidade corresponde a es­
ses universais. Os objetos que se apresentam a nossos sentidos são in­
divíduos: este, aquele; em contrapartida, os conceitos com que pensa­
mos esses mesmos objetos são universais: o homem, a árvore. As coi­
sas que temos à vista são pensadas mediante suas espécies e seus gêne­
ros; qual a relação desses universais com elas? Em outras palavras, em
que medida nossos conhecimentos se referem à realidade? Coloca-se,
portanto, o problema de saber se os universais são ou não coisas, e em
que sentido. Da solução que se dê a essa questão depende a idéia que
leremos do ser das coisas, por um lado, e do conhecimento, por outro;
L-, ao mesmo tempo, uma enorme quantidade de problemas metafísi­
cos e teológicos importantíssimos estão vinculados a essa questão.
A Idade Média parte de uma posição extrema, o realismo, e termi­
na na outra solução extrema e oposta, o nominalismo. O nominalismo
c decerto antigo, quase tanto quanto o realismo, e a história de ambos
apresenta várias complicações e distintos matizes; mas a linha geral

1 43
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

do processo histórico é a que acabamos de indicar. O realismo, que


está em pleno vigor até o século XII, afirma que os universais são res,
coisas. A forma extrema do realismo considera que estão presentes
em todos os indivíduos que neles se incluem e, portanto, não há uma
diferença essencial entre eles, diferem apenas por seus acidentes; são
anteriores às coisas individuais (ante rem). Em essência haveria ape­
nas um homem, e a distinção entre os indivíduos seria puramente
acidental. Isso corresponde à negação da existência individual e beira
perigosamente o panteísmo. Por outro lado, a solução realista era de
grande simplicidade, e além disso prestava-se à interpretação de vá­
rios dogmas, por exemplo o do pecado original; se em essência existe
apenas um único homem, o pecado de Adão afeta, naturalmente, a es­
sência humana, e portanto todos os homens posteriores. O realismo
está representado por Santo Anselmo e, em forma extrema, por Gui­
lherme de Champeaux (séculos XI-XII).
Mas logo surgem adversários da tese realista. A partir do século
XI aparece o que se chamou nominalismo, principalmente com Ros-
celino de Compiègne. O que existe são os indivíduos; não existe nada
na natureza que seja universal; este existe apenas na mente, como
algo posterior às coisas (post rem), e sua expressão é a palavra; Rosce-
lino chega a uma pura interpretação verbalista dos universais: nada
mais são senão sopros da voz, jlatus voeis. Mas essa teoria é também
muito perigosa; se o realismo exagerado ameaçava levar ao panteísmo,
o nominalismo, aplicado à Trindade, nos conduz ao triteísmo: se exis­
tem três pessoas, existem três deuses. A Encarnação também se torna
de difícil compreensão dentro das idéias de Roscelino. As duas pri­
meiras soluções são, portanto, imperfeitas e não resolvem a questão.
Um longo e paciente trabalho mental, desenvolvido por uma parcela
não desprezível de judeus e árabes, leva a fórmulas mais maduras e
sutis no século XIII, especialmente em Santo Tomás.
O século XIII traz para o problema dos universais soluções pró­
prias: trata-se de um realismo moderado. Reconhece-se que a verdadei­
ra substância é o indivíduo, como afirmava Aristóteles, a quem invo­
cam Santo Alberto Magno e Santo Tomás. O indivíduo é a substância
primeira, próte ousía. Mas não se trata tampouco de um nominalismo;

144
Os G R A N D E S TEMAS DA lD A D E M É D IA

o indivíduo é verdadeira realidade, mas é indivíduo de uma espécie e


surge dela por individuação; portanto, para explicar a realidade indi­
vidual, faz-se necessário um princípio de individualização, principium
individuationis. Santo Tomás diz que os universais são formaliter pro­
dutos do espírito, mas fundamentaliter estão fundados no real extra-
mental. Os universais, considerados formalmente, ou seja, enquanto
lais, são produtos da mente; não existem aí sem mais nem menos, são
algo que a mente faz, mas têm um fundamento in re, na realidade. O
universal tem uma existência, mas não como uma coisa separada, e
sim como um momento das coisas; não é res, como queriam os realis­
tas extremados, mas tampouco é uma palavra, é in re.
Trata-se agora de encontrar um princípio de individuação. Ou
seja, o que é que faz com que este seja este e não aquele outro? Santo
lomás diz que um indivíduo é apenas matéria signata quantitate. A
matéria quantificada é, portanto, o princípio de individuação; uma
certa quantidade de matéria é o que individualiza a forma universal
que a informa. Mas não esqueçamos que há uma hierarquia dos enLes
que vai da matéria-prima ao ato puro (Deus). A matéria-prima não
pode existir atualmente, porque é pura possibilidade, mas a matéria
informada pode ser forma ou matéria, conforme a consideremos; por
exemplo, a madeira é uma certa forma, mas matéria de uma mesa, há,
portanto, uma série de formas hierárquicas num mesmo ente, e há
formas essenciais e formas acidentais. Esse princípio de individuação
coloca para Santo Tomás um grave problema; e os anjos? Os anjos não
têm matéria; como é possível neles a individuação? De nenhum mo­
do, segundo a solução tomista; Santo Tomás diz que os anjos não são
indivíduos, mas espécies; a unidade angélica não é individual, mas es­
pecífica, e cada espécie se esgota em cada anjo.
No período final da Idade Média, o problema dos universais so-
Ire uma evolução profunda. Já em mãos de João Duns Escoto, o gran­
de franciscano inglês, e sobretudo nas de Guilherme de Ockham, vol­
ta-se à formulação nominalista da questão. Duns Escoto faz muitas
distinções: a distinctio real is, a distinctio Jormalis e a distinctio Jormalis
a parte rei. A distinção real é a existente entre as várias coisas; por
exemplo, entre um elefante e uma mesa; a distinção de razão é a que

145
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

eu estabeleço ao considerar a coisa em seus diversos aspectos, e pode


ser efetiva ou puramente nominal; é efetiva se distingo, por exemplo,
um jarro como recipiente de água ou como objeto de adorno; a dis­
tinção nominal não corresponde à realidade da coisa, apenas à sua
mera denominação. A clistinctio fonnalis a parte rei é também formal,
mas não a parte intellectus, e sim a parte rei; isto é, não se trata de coi­
sas numericamente distintas, mas não é o pensamento quem coloca a
distinção, e sim a própria coisa. Assim, para Duns Escoto, um ho­
mem tem várias formas: uma forma humana ou humanita:s, mas, além
desta, uma form a que o distingue dos demais homens; isso é uma dis­
tinção formal a parte rei, o que Duns Escoto denomina, com um ter­
mo próprio, haecceitas ou “hecceidade”. A haecceitas consiste em ser
haec res, esta coisa. Em Pedro e em Paulo está toda a essência hum a­
na; mas em Pedro há uma formalitas a mais, que é a petreidade, e em
Paulo, a paulidade. Esse é o princípio da individuação em Duns Esco­
to, que não é apenas material, como na metafísica lomista, mas tam­
bém formal.
A posição de Duns Escoto abre caminho para o nominalismo. A
partir de então, e em especial no século XIV, vão se multiplicar as dis­
tinções e vai-se afirmar cada vez mais a existência dos indivíduos. Já
em Duns Escoto, sem excluir a forma específica, são formal itates. Oc-
kham dá um passo a mais e nega totalmente a existência dos univer­
sais na natureza. São exclusivamente criações do espírito, da mente;
são termos (daí o nome de terminismo dado também a essa linha). E os
termos são simplesmente signos das coisas: substituem na mente a
multiplicidade das coisas. Não são convenções, mas signos naturais.
As coisas são conhecidas mediante seus conceitos, e esses são univer­
sais; para conhecer um indivíduo preciso do universal, da idéia: quan­
do, com Oclcham, os universais passam a ser entendidos como meros
signos, o conhecimento passa a ser simbólico. Ockham é o artífice de
uma grande renúncia: o homem vai renunciar a ter as coisas e se resig­
nará a ficar só com seus símbolos. Será isso que tornará possível o co­
nhecimento simbólico matemático e a física moderna, que nasce nas
escolas nominalistas, sobretudo de Paris. A física aristotélica e a medie­
val queriam conhecer o movimento, as causas mesmas; a física mo-

146
O S G R A N D E S TEM AS DA ID A D E M É D IA

ilerna se contenta com os signos matemáticos de tudo isso; segundo


Cialileu, o livro da natureza está escrito com signos matemáticos; te­
remos uma física que mede variações de movimento, mas renuncia a
saber o que o movimento é. Vemos como a dialética interna cio pro­
blema dos universais, assim como a da criação, leva o homem do sé­
culo XV a voltar os olhos para o mundo e fazer uma ciência da natu­
reza. A terceira grande questão da filosofia medieval, o problema da
razão, centrará definitivamente o homem nesse novo tema que é o
mundo.

3 . A razão

O lógos aparece como um motivo cristão essencial desde os pri­


meiros momentos. O começo do Evangelho de São João diz taxativa­
mente que no princípio era o verbo, o lógos, e que Deus era o lógos.
Isso quer dizer que Deus é, em primeiro lugar, palavra, e, ademais,
razão. Isso coloca vários problemas particularmente importantes, so­
bretudo a posição do homem.
Que é o homem? É um ente finito, uma criatura, um ens creatum,
uma coisa entre as demais; é, como o mundo, algo finito e contingen­
te. Mas, ao mesmo tempo, o homem é lógos: segundo toda a tradição
helénica, o homem é um animal que tem lógos. Por um lado, portan­
to, é uma coisa a mais no mundo; mas, por uulio, sabe o mundo
lodo, como Deus, e tem lógos, como ele. Qual sua relação com Deus e
com o mundo? É uma relação essencialmente equívoca; já que por
um lado é um ente que participa do ser no sentido das criaturas, e por
outro, é um espírito capaz de saber o que é o m undo, um ente que é
lógos. A Idade Média vai dizer que o homem é um certo intermediário
entre o nada e Deus: medium quid inter nihilum et Deum. Além disso,
essa peculiar situação do homem já está indicada desde o Gênese: Fa-
í icimus hominem ad imaginem et similitudinem nostram. O homem está
leito à imagem e semelhança de Deus. Ou seja, a idéia do homem, o
modelo exemplar segundo o qual está criado, é Deus ele mesmo. Por
isso mestre Eckhart dizia que no homem há algo, uma centelha - scin-
lillti, Funken - que é incriada e incriável. Essa afirmação foi interpreta­

147
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

da como uma exclusão do ser criado no homem, portanto como pan­


teísmo, e foi condenada; mas seu sentido correto, como Zubiri de­
monstrou claramente, é o de que o homem tem uma scinlilla incria-
da e incriável, ou seja, sua própria idéia; e isso é completamente or­
todoxo.
Que conseqüências terá para a filosofia esse horizonte em que se
move o cristianismo? Para conhecer a verdade é preciso entrar em si
mesmo, é preciso se interiorizar, como já vimos em Santo Agostinho.
Intra in cubiculum mentis tuae, dirá também Santo Anselmo. De acordo
com isso, o pior que o homem pode fazer para conhecer é olhar as
coisas do mundo, porque a verdade não está nas coisas, mas em Deus,
e Deus, o homem encontra em si mesmo. H como a verdade é Deus, a
via para chegar a ela é a caritas: só pelo amor chegamos a Deus, e só
Deus é a verdade, não é outro o sentido d o /i des quaerens intellectum
de Santo Anselmo; São Boaventura vai chamar a filosofia de caminho
da mente para Deus (Itineranum mentis in Deum), e se parte da fé. As­
sim fica especificada a situação da filosofia medieval em seus primei­
ros séculos.
Em Santo Tomãs, a teoria é um saber especulativo, racional. A
teologia é de fé na medida em que é construída sobre dados sobrena­
turais, revelados; mas o homem trabalha com eles com sua razão, para
interpretá-los e alcançar um saber teológico. Supõe-se, portanto, que
há uma adequação perfeita entre o que Deus é e a razão humana. Se
Deus é íógos, segundo São João, e o homem também vem definido pelo
lógos, há adequação entre ambos e é possível um conhecimento da es­
sência divina; pode haver uma teologia racional, embora fundada so­
bre os dados da revelação. Pois bem, se a teologia e a filosofia tratam
de Deus, em que se diferenciam? Santo Tomás diz que o objeto mate­
rial da teologia e da filosofia pode ser o mesmo quando falam de Deus;
mas o objeto formal é distinto. A teologia tem acesso ao ente divino
por outros caminhos que a filosofia, e portanto, embora esse ente seja
numericamente o mesmo, trata-se de dois objetos formais distintos.
Dessa situação de equilíbrio em Santo Tomás passa-se para uma
muito dilerente em Duns Escoto e em Ockham. Em Duns Escoto, a
teologia não é mais ciência especulativa, mas prática e moralizadora.

148
O S G R A N D E S TEMAS DA iD A D li M E D IA

i ) homem, que é razão, íará uma filosofia racional, porque aqui se ira-
i,i de um lógos. Em contraposição, a teologia é sobrenatural; a razão
pouco lem a fazer nela; é, antes de tudo, práxis.
I in Ockham se acentuam estas tendências escotistas. Para Oc-
kliam, a razão será um assunto exclusivamente humano. A razão é,
mui, própria do homem, mas não de Deus; este é onipotente e não
pode estar submetido a nenhuma lei, nem sequer à da razão. Isso lhe
Iurece uma limitação inadmissível do arbítrio divino. As coisas são
■omo são, até mesmo verdadeiras ou boas, porque Deus quer; se Deus
quisesse que matar fosse bom, ou que 2 mais 2 fossem 19, seriam -
i Iicgarão a dizer os contmuadores do ockhamismo. Ockham é volun-
lansia e não admite nada acima da vontade divina, nem mesmo a ra-
.•ao. "A partir desse momento, a especulação metafísica se lança, por
assim dizer, numa vertiginosa carreira, na qual o íógos, que começou
eiido essência de Deus, vai terminar sendo simplesmente essência do
homem. É o momento, no século XIV, em que Ockham vai afirmar,
dr maneira textual e taxativa, que a essência da Divindade é arbitra­
riedade, livre-arbítrio, onipotência, e que, portanto, a necessidade racio­
nal e uma propriedade exclusiva dos conceitos humanos.” “No momen-
lo em que o nominalismo de Ockham reduziu a razão a uma coisa de
/oro íntimo do homem, uma determinação sua puramente humana, e
nao essência da Divindade, nesse momento o espírito humano tam­
bém fica segregado desta. Portanto, sozinho, sem mundo e sem Deus,
0 espírito humano começa a se sentir inseguro no universo” (Zubiri:
1Icgel y el problema metafísico').
Se Deus não é razão, a razão humana não pode se ocupar dele. A
Divindade deixa de ser o grande tema teórico do homem no final da
Idade Média, e isso o separa de Deus. A razão volta-se para os objetos
aos quais é adequada, aqueles que pode alcançar. Quais são eles? An-
les de tudo, o próprio homem; em segundo lugar, o mundo, cuja mara­
vilhosa estrutura começa a ser descoberta então: estrutura não só racio­
nal. mas matemática. O conhecimento simbólico a que o nominalismo
nos levou se adapta à índole matemática da natureza. E esse mundo
independente de Deus - de quem recebeu seu impulso criador, mas
que não tem de conservá-lo - transforma-se no oulro grande objeto

149
1 llS T Õ R IA DA F IL O S O F IA

para o qual se volia a razão humana, ao se lornar inacessível à Di\inda-


cle. O homem e o mundo são os dois grandes temas: por isso o huma­
nismo e a ciência da natureza, a física moderna, serão as duas ocupações
magnas do homem renascentista, que se encontra afastado de Deus.
Vemos, pois, como toda a história da filosofia medieval, tomada
em suas três questões mais profundas, a da criação, a dos universais e
a da razão, conduz unitariamente para essa nova situação com que se
encontrará a metafísica moderna.

150
III. OS FILÓSOFOS MEDIHVAIS

* A filosofia medieval começa propriamente no século IX. Como


vimos, o pensamento anterior era simplesmente um trabalho de acu­
mulação e conservação da cultura clássica e da especulação patrística,J
sem originalidade nem grandes possibilidades próprias. Falta, ademais,
“ioda a organização suficiente do estudo filosófico, que só vai aparecer
nas escolas que surgem no princípio do século IX, especialmente na
França, em torno da corte de Carlos Magno; é o chamado renasci­
mento carolíngio. Dessas escolas, formadas por mestres de todos os
países da Europa, e sobretudo franceses, ingleses e italianos, surgirá,
no reinado de Carlos, o Calvo, o primeiro impulso importante da fi­
losofia na Idade Média, em torno da figura do pensador inglês João
Scotus Erigena.

1. Scotus Erigena

loão Scotus Erigena procedia das Ilhas Britânicas, provavelmen ­


te da Irlanda, onde fora conservado, mais que em qualquer outro lu ­
gar, o cqniiâgimento da__cukura clássica, inclusive a língua grega.
Mas sua atividade intelectual foi exercida principalmente na França,
na corte de Carlos, o Calvo, aonde checou em meados do século IX .
lim Scotus Erigena já encontramos o primeiro exemplo da influência
inglesa na cultura da Europa. De modo geral, muitas idéias e movi­
mentos intelectuais europeus procedem da Inglaterra; mas não se de-
senvolvem em seu país de origem, e sim no continente, de onde voL-
tam para a Grã-Bretanha, que sofre novamente sua influência. Assim
ocorre com a Escolástica, e mais tarde com as ciências naturais, que

151
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

nascem com Roger Bacon e depois se desenvolvem na França e na


llália para voltar a florescer na Inglaterra no século XVII; algo seme-
Ihante virá a acontecer com o Iluminismo, de inspiração britânica
também, mas desenvolvido na França e nos países germânicos, se­
guindo os passos do empirismo sensualista e do deísmo dos filósofos
ingleses; e, por último, um fenômeno análogo ocorre com a propaga­
ção do romantismo, que nasce nas Ilhas em finais do século XVIII,
determina seu florescimento na Alemanha e no resto do continente e
depois volta a ganhar importante impulso na Inglaterra.
Scotus Erigena está muito influenciado pela mística neoplatôni-
ca, especialmente pelo escritor anônimo que pensaram ser Dionísio
Areopagita, o primeiro bispo de Atenas, e que hoje é conhecido por
Pseudo-Dionísio. Scotus traduziu suas oErãs do grego para o latim e
com isso garantiu sua sorte e uma enorme influência no pensamento
medieval. O êxito de Scotus Erigena foi muito grande. Estimularam-
no a escrever contra a idéia da predestinação, que alguns hereges vi­
nham divulgando com sucesso, e compôs seu tratado De praedestina-
tione, que pareceu excessivamente ousado e foi condenado. Sua prin­
cipal obra é o tratado De divisione naturae.
O propósito de Scotus Erigena é sempre estritamente ortodoxo;
nem sequer imagina que possa haver discrepância _entre a filosofia
verdadeira e a religião revelada; é a razão, e nada mais, que interpreta
o que nos revelam os textos sagrados. Há uma identidade entre filoso­
fia e religião quando ambas são verdadeiras: veram esse philosophiam
veram religionem, convemmque veram religionem esse veram philosophiam.
Scotus dá primazia à revelação em sentido rigoroso, à autoridade de
Deus; mas há outras autoridades: a dos Padres da Igreja e a dos co­
mentaristas sagrados anteriores, e esta deve se subordinar à razão, que
ocupa o segundo lugar, depois da palavra divina.
A m etafísica de Scotus Erigena é exposta em sua De divisione na-
furae. Essa divisão supõe uma série de^emanações ou participaçõesj)or
meio das quais nascem todas as coisas do único ente verdadeiro, que
é Deus. Esse processo é composto de quatro etapas:
I a A natureza que cria e não é criada ( natura creans nec creada),
ou seja, Deus em sua primeira realidade. É incognosrfvpl p a respeito

152
O S R I.O S O F O S MEDIEVAIS

dele apenas corresponde a teologia negativa, com a qual Pseudo-Dio-


nlsio Areopagita granjeou tanta simpatia.
2a A natureza que cria e é criacla_(raíura creans creada), isto é, Deus
na medida em que contém as causas primeiras dos entes. Ao reconhecer
cm si essas causas, Deus é criado e se manifesta em suas teqfanias.
3a A natureza que é criada e que não cria (natura creada nec creans):
os seres criados no tempo, corporais ou espirituais, que são simples
manifestações ou teofanias de Deus. Scotus Erigena, que é realista ex-
I remado, afirma a anterioridade do gênero em relação à espécie, e des­
ta em relação ao indivíduo.
4a A natureza que não é criada nem cria (natura nec creada nec
i reans), isto é, Deus como fim do universo inteiro. A finalidade de todo
movimento é seu princípio; Deus retorna a si mesmo, e as coisas se
deificam, se resolvem no todo divino (Gécooiç).
João Scotus apresenta uma metafísica interessante, que aborda
de modo agudo vários problemas fundamentais da Idade Média e de­
fine a primeira fase da Escolástica. Mas sua doutrina é perigosa e, na-
luralmente, propensa ao panteísmo. Essa acusação de panteísmo, fun­
damentada ou não, será lançada durante a lclade Média contra vários
pensadores; e não esqueçamos que na maioria dos casos estes esta­
vam muito longe de professar o panteísmo deliberadamente, embora
suas doutrinas - ou às vezes apenas suas fórmulas - tendessem para
ele. Scotus Erigena chega a um monopsiquismo humano, conseqüên­
cia de seu extremo realismo; este é outro dos perigos que virá a amea­
çar de diversas formas a Escolástica. Portanto, no primeiro pensador
medieval importante encontram-se os aspectos que caracterizarão po­
sitivamente a época e as dificuldades com que há de tropeçar.
De Scotus Erigena a Santo Anselmo • O século X é um século
terrível para a Europa ocidental: por todos os lados lutas e invasões;
os normanclos atacam, devastam e saqueiam; o florescimento carolín-
gio e de todo o século IX desaparece, e as escolas ficam em situação
difícil; o pensamento medieval se recolhe nos claustros e a partir de
então irá adquirir o caráter monacal que por muito tempo pesará so­
bre ele; a Ordem Beneditina torna-se a principal depositária do saber
teológico e filosófico. Rareiam as grandes figuras. A de maior interes­
se é a do monge Gerbert.

153
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Gerbert de Aurillac adquiriu uma formação intelectual comple­


tíssima, principalmente na Espanha, onde entrou em contato com as
escolas árabes, lecionou em Reims e em Paris, foi abade, arcebispo e,
por último, Papa, com o nome de Silvestre II. Morreu em 1003. Ger­
bert não é um filósofo original: destacou-se como lógico e moralista
e foi, sobretudo, o centro de um núcleo intelectual que viria a ganhar
maior destaque no século XI.
Nessa centúria está em grande voga o realismo extremo de que já
falamos, que tem um representante notável em O don de Tournay, ci­
dade donde fundou uma escola muito freqüentada. O don aplicou seu
realismo principalmente à interpretação do pecado original e ao pro­
blema da criação das almas das crianças; segundo ele, tratar-se-ia ape­
nas do surgimento de novas propriedades individuais, acidentais, na
substância humana única.
Contra esse realismo aparece a máxima dos nominalistas, a senten-
tia vocum, que afirma que os universais são vozes, não res. O principal
deles é Roscelino de Compiègne, que leciona na França, Inglaterra e
em Roma, no final do século XI. O nominalismo nascente mal sobre­
viveu a Roscelino; só reaparece, com outros pressupostos, nos últimos
séculos da Idade Média.

2. Santo Anselmo

Personalidade • Santo Anselmo nasceu em 1033 e morreu em


1109. Era piamontês, de Aosta, e como membro da comunidade cris­
tã medieval, da comunidade européia que começava a se formar, não
limitou sua vida e atividade ao país de origem, mas viveu sobretudo
na França e na Inglaterra. Foi primeiro para a Normandia, para o mos­
teiro de Bec, e ali passou longos anos, os melhores e mais importan­
tes. Foi prior e depois abade de Bec e, por último, foi nomeado arce­
bispo da Cantuária, em 1093, onde permaneceu até a morte. Toda a
vida de Santo Anselmo esteve dedicada ao estudo e à vida religiosa e,
em sua última época, à preservação dos direitos do poder espiritual
da Igreja, então fortemente ameaçados.
Santo Anselmo é o primeiro grande filósofo medieval depois de
Scotus Erigena. É, a rigor, o fundador da Escolástica, que com ele ad­

154
O S R L Ó S O F O S M ED IEVA IS

i|iini' seu perfil definitivo. For outro lado, contudo, Santo Anselmo
i .1,1 imerso na tradição patrística, de ascendência agostiniana e platô-
iui .1 ou, mais ainda, neoplatônica. Ainda não aparecem nele as fontes
distintas das da Patrística - que exercerão tão forte influência na Es-
11 'List ica posterior: os árabes e - através deles - Aristóteles. Santo An-
•i-Iiiio c um fiel agostiniano; no prefácio de seu Monologion escreve:
Nihil polui invenire me dixisse quod non catholiconm Patrum et maxime
biiili Augustini scriptis cohaereat. É presente sua conformidade cons­
um e com os Padres, e com Santo Agostinho especialmente. Mas, por
"iii m lado, já se encontram em Santo Anselmo as linhas gerais que vi-
i,U) a definir a Escolástica, e sua obra constitui uma primeira síntese
di l.i A filosofia e a teologia da Idade Média guardam, portanto, a mar-
■.i profunda de seu pensamento.
Suas obras são bastante numerosas. Muitas de interesse predo­
minantemente teológico; inúmeras cartas repletas de substância dou-
iimal; as que mais importam para a filosofia - escritos breves todas
rl.is - são o Monologion (Excmplum meditandi de ratione Jidei) e o Pros-
loyjon, que leva como primeiro título a frase que resume o sentido de
unia a sua filosofia: Fides quaerens intellectunv, além disso, escreveu a
irsposta ao Gaunilonis liber pro insipiente, o De veritate e o Cur Deus
IllllllO.

Fé e razão • A obra teológica - e filosófica - de Santo Anselmo


rs ia orientada, sobretudo, para as demonstrações da existência de Deus.
I isso o que mais se destaca em seus escritos e está mais intimamente
associado a seu nome. Mas é preciso interpretar essas provas dentro
11.1 totalidade de seu pensamento.
Santo Anselmo parte da fé; as demonstrações não se destinam a
s u s t en t a r a fé, mas estão sustentadas por ela. Credo ut intelligam é seu
Iu liit ípio. No Proslogion, sua obra capital, escreve: neque enim quaero
mlrl libere ut credam, sed credo ut intelligam. Santo Anselmo crê para
i niciulcr, não o inverso. Mas não se trata tampouco de algo separado
11.1 lc; c a própria fé que tende a saber: a fé que busca a intelecção; e
i '.s.i nccessidade emerge do caráter interno da fé. Santo Anselmo dis-
iliii'.iu- entre uma fé viva, que obra, e uma fé morta, ociosa; a fé viva se
luiula num amor ou dilectio, que é o que lhe dá vida. Esse amor faz

155
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

com que o homem, afastado pelo pecado da face de Deus, esteja an­
sioso para voltar a ela. A fé viva quer contemplar a face de Deus; quer
que Deus se mostre na luz, na verdade; busca, portanto, o verdadeiro
Deus; e isso é intelligere, entender. “Se não cresse, não entenderia”,
acrescenta Santo Anselmo; ou seja, sem fé, ou seja, dilectio, amor, não
poderia chegar à verdade de Deus. Temos aqui a mais clara ressonân­
cia do non intratur irt veritatem nisi per caritatem de Santo Agostinho,
que talvez só possa ser plenamente compreendido a partir de Santo
Anselmo.
Vemos, portanto, que da religião de Santo Anselmo faz parte de
modo particular a teologia; mas não o êxito desta última. “O cristão -
diz ele textualmente - deve avançar por meio da fé até a inteligência,
não chegar pela inteligência à fé, ou, quando não consegue entender,
afastar-se da fé. Pelo contrário, quando consegue chegar à inteligên­
cia, se compraz; mas quando não consegue, quando não consegue
compreender, venera” (Epístola XLI). Esta é, claramente definida, a si­
tuação de Santo Anselmo, da qual brota toda a sua filosofia.
O argum ento ontológico • Santo Anselmo, em Monologion, dá
várias provas da existência de Deus; mas a mais importante é a que
expõe no Proslogion, e que desde Kant costuma ser chamada de ar­
gumento ontológico. Essa prova da existência divina teve imensa re­
percussão em toda a história da filosofia. Já nos tempos de Santo
Anselmo, um monge chamado Gaunilon a atacou, e seu autor repli­
cou a suas objeções; depois, as opiniões se dividiram e a interpreta­
ção do argumento variou. São Boaventura está próximo dele; Santo
Tomás o rejeita; Duns Escoto o aceita, modificando-o; Descartes e
Leibníz fazem uso dele, com certas alterações; posteriormente, Kant,
na Critica da razão pura, estabelece sua impossibilidade de modo
aparentemente definitivo; mas depois Hegel o reformula em outros
termos, e mais tarde é profundamente estudado por Brentano e, so­
bretudo, pelo Pe. Gratry, no século XIX. Até hoje, o argumento onto­
lógico é um tema central da filosofia, pois não se trata apenas de
uma simples argumentação lógica, mas de uma questão em que
toda a metafísica está implicada. E essa a razão da singular fortuna
da prova anselmiana.

156
Os F lL O S O F O S m e d i e v a i s

N.io podemos entrar aqui detalhadam ente na interpretação do


.MiMinu-nio'. Apenas indicarem os de modo breve o essencial de seu
M iilulo. Santo Anselm o parte de Deus, de um Deus oculto e que não
M m.imlesta para o hom em caído. O ponto de partida é religioso: a fé
do liom em feito para ver Deus e que não o viu. Essa fé busca com -
I iiccm lcr, fazer uma teologia: jid e s quaerens intellectum-, mas ainda não
i|>.iii-i c a necessidade n em a possibilidade de dem on strar a existência
ili Deus; Santo Anselm o invoca o Salmo 13: Dixit insipiens in corde
.in): non est Deus; disse o insensato em seu coração: não existe Deus.
Ante essa negação, pela prim eira vez se questiona a existência de
I »i-us. e a prova tem sentid o, sentido de que careceria sem o insensa-
1" I Santo Anselmo form ula sua célebre prova nestes term os: o in-
i-nsnio, ao dizer que não existe Deus, entende o que diz; se dizem os
que Deus é o maior ente que possa ser pensado, tam bém o entende;
pui lanto, Deus está em seu entendim ento; o que nega é que, adem ais,
i ‘.ii-|a in re, exista na realidade. Mas se Deus só existe no pensam ento,
I iiiiIrm os pensar que tam bém existiria na realidade, e isso é mais que
" primeiro. Portanto, podem os pensar algo m aior que Deus, se este
m.io existe. Mas isso contradiz o ponto de partida, segundo o qual
I ii-iis e tal que não se pode pensar em algo maior. Logo, Deus, que
1-xiMo no entendim ento, tem de existir tam bém na realidade. Ou seja,
'.I- so existe no entendim ento, não cum pre a condição necessária; por-
i.m lo, não é de Deus que se fala.
A rigor, a prova de Santo Anselmo m ostra que não se pode negar
qm- Deus exista. E consiste em opor à negação do insensato o sentido
iln que diz. 0 insensato não entende o que diz, e precisam ente por
i‘.so r insensato; não pensa em Deus, e sua negação é um equívoco;
ii.io sa b e o que diz, e nisso consiste a insensatez. Se, em contrapartida,
pt-nsa com plenitude o que é Deus, percebe-se que não pode não
ex istir Por isso Santo Anselm o opõe à insensatez a interioridade, a
vn11,[ a si mesm o, segundo o exem plo agostiniano. A entrada em si
m esm o faz com que o hom em , ao encontrar a si próprio, encontre

I Ver meu livro San A nselm o y el insensato (O bras, IV).

157
H is t ó r ia d a r l o s o f ia

D eus, à im agem e sem elhança do qual está feito. O argum ento o n to ­


lógico é, portanto, um apelo ao senso íntim o, ao fundo da pessoa, e se
baseia concretam ente na negação do insensato.
Esse encontro com Deus na intim idade da m ente abre cam inho
para a especulação de Santo A nselm o; por essa via irá transcorrer o
pensam ento m edieval da ép oca seguinte.

3. O século XII

D epois de Santo A nselm o, a Escolástica está con stituíd a. Há um


repertório de questões dentro das quais passará a se m over, e aparece
o corpo de doutrina que se poderá cham ar de o “b em co m u m ” da
Idade Média ou a “síntese esco lástica”, e que prepara as grandes obras
de co n ju n to do século X III, em particular a Sum a teológica de Santo
Tomás. Ao m esm o tem po, o m undo de idéias do O cid en te europeu
adquire firm eza; os grupos h istó rico s que haverão de co m p o r a Euro­
pa vão ganhando consistência. Durante todo o século X II a organiza­
ção social da Idade Média cam inha para sua consolid ação, que atingi­
rá sua plenitude na centúria seguinte. As escolas se transform am em
ceniros intelectuais im portantes, que logo conduzirão à criação das
Universidades. O principal núcleo da filosofia nesse tem po é a F ran ­
ça; sobretudo as escolas de C hartres e de Paris. Pouco depois, a fun­
dação da U niversidade parisiense, o foco intelectual m ais im portante
de toda a Idade M édia, estabelecerá definitivam ente Paris com o capi­
tal da Escolástica.
No século XII, a questão dos universais é form ulada com todo ri­
gor; em geral, predom ina o realism o, mas há uma série de tentativas
de oposição a seu extrem ism o, que se aproxim am da so lu ção m odera­
da que Santo Tomás virá a im por. A influência árabe e judaica se faz
sentir na Escolástica de modo in ten so , e com ela a de A ristóteles, qua­
se d esconhecid o até então em suas próprias obras. Essa ferm entação
intelectual determ ina tam bém o surgim ento de o rien tações teológicas
heterodoxas, em particular panteístas, e o dualismo ressurge nas h e ­
resias dos albigensianos e cátaros. Por últim o, há um grande floresci­
m ento da m ística, que se apresenta co m um caráter especulativo. To-

158
O S FILÓSOFOS MEDIEVAIS

<l.r. irndcncias, ao atingirem o auge de seu desenvolvimento, pro-


. In ii ,i< 111 momenLo culm inante da filosofia medieval, de Rogério Bacon
,i Mii-.in I ckhart e de São Boaventura a Santo Tomás de Aquino.
A csi-ola de C h artres • Foi fundada por Fulberto, bispo de C har-
iM • 111u- m orreu no início do século XI, mas alcançou sua verdadeira
■1111ii ii lancia 110 século X II, com o núcleo de tendência platônica e rea-
i .i.i I iiire os mais interessantes pensadores desse grupo estão os ir-
iii,ui', IVrnardo e Teodorico de Chartres, que foram chanceleres da es-
■h Li '>uas doutrinas são conhecidas p rincipalm ente pelas obras de
........Iiscipulo inglês Jo ã o de Salisbury. Para eles som ente as realidades
..... ... i .ais m erecem o nom e de entes; as coisas sensíveis individuais
nau ao mais que som bras. Bernardo distinguia três tipos de realida-
i li". I V us, a m atéria, extraída do nada pela criação, e as idéias, form as
• m 111piares p o r meio das quais estão presentes na m ente divina os
pnv.ivcis e os existentes. A união das idéias com a m atéria produz o
mundo sensível. A forte influência platônica é visível nesse realism o
i \ticino.
I discípulo de Bernardo, chanceler depois dele e antes de Teodo-
iii o. ( iilb e n de la Porrée (G ilb ertu s P orretan u s) ch egou a ser bispo
ili 1'oiliers. G ilberi se opõe ao realismo da escola cle Chartres; evita
qualquer perigo de panteísm o ao distinguir as idéias divinas cle suas
■<■(nas, que são as formas nativas inerentes às coisas sensíveis. O s uni-
\i i sais não são as idéias, mas im agens das idéias. A m ente com para as
' 'M i Mias sem elhantes e realiza um a união m ental; essa forma com u m
i o universal, gênero ou espécie. Portanto, de G ilbert de la Porrée nas-
i c n prim eiro esboço da solu ção do século XIII.
O uiros pensadores im portantes relacionados com a escola de
i liai i res são G uilherm e de C onches e o já citado Jo ã o de Salisbury, fi-
li imiId perspicaz e interessante, cujas duas obras principais são: M eta-
lnyii lis e Polycraticus. Afora esse grupo, mas em relação e em polêm i-
<a rnm cle, encontram -se vários adversários das soluções realistas ex-
in mas, que elaboram diversas teorias para resolver o problem a dos
universais, partindo da existência dos indivíduos e considerando os
!',<'iuTos e as espécies com o distintos aspectos daqueles. Entre esses fi-
Io m i Io s m erecem ser citados o inglês Adelardo de Bath e o flam engo

159
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

G autier de M ortagne, autores da tecria dos respectus, dos status e, por


ú ltim o, da collectio, cu jo sentid o se infere facilm ente de seus nom es.
A b e la rd o • A figura de Abelardo, dialético batalh ad or e apaixo­
nado, as histórias de seus am ores com Heloísa, de sua m utilação e de
sua vida agitada, até sua m orte, são m uito conhecidas. Partindo desses
dados com provados, tentou-se até construir uma im agem de um A be­
lardo livre-pensador e antiescolástico, que a investigação m od erna d e­
m onstrou ser inexistente. N asceu perto de N antes, em 1 0 7 9 , de uma
família de guerreiros que gostava de fazer alguns estudos antes de se­
guir a carreira de arm as; foi o que Abelardo fez; mas foi seduzido pelas
letras, e nelas perm aneceu para sem pre; seu espírito com bativo dedi­
cou -se à dialética e às polêm icas com seus sucessivos m estres. F re­
qüentou a escola de R oscelino; em seguida a de G uilherm e de C ham -
peaux; depois fundou uma escola em M elun, que m ais tarde transferiu
para C orbeil. Anos depois volta para Paris, estuda teologia co m Ansel­
m o de Laon e leciona co m im enso sucesso. Segundo um a carta de um
co n tem p orân eo, os d iscípulos acudiam de todos os p on tos da França,
de Flandres, da Inglaterra, de Suábia. Após essa glória vieram as des­
graças, e Pedro Abelardo se tornou religioso e levou sua agitação e sua
doutrina para diversos m onastérios, até m orrer em 1 1 4 2 .
A belardo era um espírito apaixonado e refinado. Sua cultura é
profunda e abrangente; houve qu em dissesse que nele, e em todo o
século X II, há co m o que um a an tecipação do R en ascim en to. Escreveu
um a grande obra de teologia, da qual se conserva um a Intm ductio ad
theologiam ; seu fam oso livro Sic et non, no qual reúne autorid ad es teo­
lógicas e bíblicas aparentem ente contrad itórias, b u scan d o sua co n ci­
liação; outra o bra, esta filosófica, Scito te ipsum seu Ethica\ um a D ialéc­
tica e vários outros escritos.
Pedro Abelardo estabelece relações precisas entre filosofia e reli­
gião. Os m istérios não podem ser d em onstrados e co n h e cid o s ex p eri­
m entalm ente; só podem ser entend idos ou só se pode crer neles se­
gundo analogias e sem elhanças. Apesar disso, tende na prática a in ter­
pretar d iversos dogm as, p o r ex em p lo o da Trind ade, e in co rreu em
erros que foram condenados. Q uanto à questão dos universais, critica
prim eiro o “n o m in alism o ” de R oscelino; mas depois ataca sobretudo

160
Os F IL Ó S O F O S M ED IEV A IS

i .in11u i 11u ilc ( hainpeaux, por causa de suas doutrinas realistas ex-
ih 11hi' V p in d o Abelardo, o intelecto apreende as sem elhanças dos
li ii 11\ii 11ii mediante a abstração; o resultado dessa abstração, lunda-
il i M 1111iii' n.i im aginação, porque o co n h ecim en to com eça pelo indi-
v(1111.11 i '.cnsiu-l, é o universal; este não pode ser coisa, res, porque as
i . H- , i . li.id san predicados dos sujeitos e os universais são; mas tam -
|iiiiii ii i- uma sim ples vox, é um serm o, um discurso relacionado co m o
i ui ii i i ii In real, um verdadeiro nom en, no sentido rigoroso em que equi-
' ili' .i vd\ significativa. A teoria dos serm on es se aproxim a do que de-
I ii o ■\ii i,i a ser o concep tu alism o.
h u la n lo , em bora não tivesse um a im p o rtân cia doutrinal co m -
11.11 .i\ i'I .i de Scotus Erigena ou de Santo A nselm o, Abelardo exerceu
iuii,i m lluencia pessoal extraordinária nas escolas e abordou de form a
u'liil.i questões im portantes. Sua atividade preparou o apogeu de Pa-
ii . ' nm o centro escolástico e a plenitude filosófica e teológica do sé-
•itli • XIII.
O s v ito rin o s • A abadia agostiniana de São V íto r torn a-se, no
•l i uh) XII, um dos centros intelectu ais m ais im portantes da cristan-
il.nli I , antes de tudo, um núcleo m ístico, m as de um a m ística que
ii í >i exclu i o saber racional, nem m esm o o das ciên cias profanas, m as
■ li ii ui,i energicam ente. A abadia de São V íto r cultiva de m odo in ten -
ii ,i lilosofia e a teologia; a profunda espiritualidade religiosa dos vi-
ini ii ms está sustentada por um saber rigoroso e am plo. A sistem atiza-
i,,i* >da Escolástica dá um passo a m ais na obra dos pensadores de São
Viini, sobretud o Hugo e Ricardo.
Hugo de São V íto r, o principal deles, é autor de um a obra abran-
!'■ m e e sintética, intitulada D e sacram en tis, que já é uma Sum a teoló-
ri. ,i. mais com pleta e perfeita que a tentativa de Abelardo. Hugo reco-
m riid a que se aprend am todas as ciências, sagradas e profanas; acre-
tlii.i que se apóiam e fortalecem m u tu am ente, e que todas são úteis.
I 'iM ingue quatro ciências: a ciên cia teórica, que investiga a verdade; a
i in ic ia prática ou m oral; a m ecânica, saber sobre as atividades h um a-
ii.i'., e a lógica, ciência da expressão e da discussão. Hugo recom end a
esp ecialm ente o estudo clas sete artes liberais, o trivium e o quadriviu m ,
t- ,is co n sid era inseparáveis.

161
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

No problem a dos universais e do co n h ecim en to , H ugo de São


Vítor utiliza tam bém a teoria da abstração de origem aristotélica, a n ­
tes da grande influência de A ristóteles no século X III. Para ele, a h is­
tória do m u n d o está ordenada em torno de dois m o m en to s funda­
m entais, a criação do m undo e sua restauração m ed ian te C risto en ­
carnado e os sacram entos; a obra da restauração é o o b je to principal
da E scritu ra; m as a criação é estudada pelas ciên cias profanas. Desse
m odo u n em -se para Hugo os dois tipos de ciên cias. A filosofia de
Hugo está fortem ente tingida de agostinism o; afirma co m o prim eiro
co n h e cim en to o da existência própria e o da alm a, d istin ta do corpo.
É outra filosofia da intim idade, o que, por outro lado, correspon d e a
sua orientação m ística ortodoxa.
R ic a rd o de S ã o V íto r, d iscípulo de Hugo, reproduz e dá co n ti­
nuidade, co m originalidade, ao pensam ento de seu m estre. Escreveu
um L íber excerption u m e o De Trinitate. O cu pou-se das provas da exis­
tência de D eus, rejeitando as apriorísticas e insistindo p articu larm en ­
te na base sensível e de observação. Tam bém em Ricardo se dá a união
estreita entre a m ística e o pensar racional que cu lm in ará na m ística
especulativa de Eckhart.
O co n h ecim en to de D eus e do hom em se esclarecem m u tu am en ­
te. C o n h ecem o s o hom em m ediante a experiência, e o q u e nele en ­
con tram os n o s serve de p onto de apoio para inferir - m utatis m utan-
dis - algum as determ inações do ente divino; e in versam en te, o que o
raciocínio n o s ensina sobre a D ivindade se aplica ao co n h ecim en to do
hom em em seu ser m ais profundo, im agem sua. Talvez R icardo de
São V ítor seja o filósofo que m ais técn ica e agudam ente utilizou o m é­
todo in telectu al que consiste em co n tem p lar alternad am en te, com os
diversos m eio s adequados, a realidade divina e sua im agem hum ana.
Por isso, seu D e Trinitate é um a das co n tribu içõ es m edievais m ais in ­
teressantes à teologia e à antropologia ao m esm o tem po.
Um a relação estreita com a m ística m arca a grande figura do cris­
tianism o no sécu lo XII: São Bernardo de Claraval (C lairvau x). É ele
quem anim a e inspira a O rdem de Cister, fundada no final do século
anterior, para to rn ar mais rigorosa e ascética a observ ância de Cluny.
O espírito cisiercien se foi de um a austeridade extrem a, co m o a pró-

162
Os F IL Ó S O F O S M ED IEV A IS

I *i i.i ■.n l.i ilc São Bernardo. É conhecido seu espírito de ardente religio-
■I. I n li i Mia capacidade de direção sobre os hom ens. C oncede seus ch­
i' ii" .1 lilosofia, mas nele predom ina a m ística, que lem em São Ber-
M.in In mu dc seus prim eiros representantes m edievais.
I ui iv os teólogos que fazem da filosofia um uso exclusivam ente
in m iin m ta l, o mais interessante é Pedro L om bard o, cham ado, por
ii 11 i-liMicia, m agister sen ten tiaru m , que foi bispo de Paris e m orreu
i in II (H. Seus Libri IV sen tentiarum foram , durante toda a Idade M é-
............... ivpertório teológico com entad o inúm eras vezes em toda a Es-
i m|.i .in .1 posterior.
■ V. lu -resias do s é c u lo X II • Esta centúria, tão ch eia de ativida-
<|i m irlrctu al, não conseguiu m anter-se livre de co rren tes heterodo-
■,i ■i m icologia, vinculadas a orientações filosóficas à m argem da li-
nli.i j'.cial da Escolástica. Nesse sentido, pode-se afirm ar, com o faz
M mm ii r de VVulf, que essas filosofias são “an tiesco lásticas”; m as não
i i|iu-i.amos que elas se m ovem no m esm o cam po de problem as da
i 11 il.iMica, e que ju stam en te por isso suas so lu çõ es aparecem com o
ili i icp an tes e a polêm ica se m antém viva durante toda a Idade M é­
dia l-v.as heresias versam principalm ente sobre alguns pontos deba-
i h li • o ateísm o - infreqüente em sua forma rigorosa o panteísm o,
II m ain ialism o, a eternidade do m undo. Estes são os pontos mais co n -
iiMM it idos sobre os quais se debruçará depois a filosofia árabe e que
ii i.iii repercussões heterod oxas até o final da Idade M édia.
No sécu lo XII aparecem , sobretudo na F rança e em alguns pon-
in da Itália, dois m ovim entos heréticos distintos, m as aparentados:
■I1. .ilbigcn sianos (de Albi) e os cátaros. São con hecid as as violentas lu-
i.i ■qiu- essas heresias suscitaram , assim com o o in ten so trabalho teo-
Ini'H o c de pregação que determ inaram , e que cu lm in o u na fundação
i la ( >idcm D om inicana por São D om ingos de G usm ão. Essas heresias
idiiiiii-m um certo dualism o do bem e do m al, este ú ltim o oposto a
I v ii', c in d epen dente dele, o que equivalia à negação do m onoteísm o
i ir .tan, c. além do mais, a heresia tinha co nseqü ên cias morais. C áta-
/iK quer dizer p u ros; os p erfeitos levam uma vida esp ecialm en te auste-
i a i-1 o n siitu em um clero p articular; esta contrap osição entre um m o-
di-lo d ilid l e uma m aioria incapaz de tal perfeição levou a um grave

163
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

im oralísm o. A repressão do m ovim en to albigensian o, n o co m eço do


século X III, foi duríssim a e term inou depois de várias “cruzadas”, com
a co n seq u en te desolação das com arcas afetadas pela luta. A heresia
dos cátaros era particu larm ente perigosa, porqu e seu m aterialism o,
que negava a espiritualidade e a im ortalidade da alm a, contrad izia a
um só tem p o os dogm as cató lico s e o próprio fun d am en to da ética
cristã.
P or outro lado, há um a série de m ovim entos que se aproxim am
m ais ou m en o s do p an teísm o. As idéias neo p latô n icas do m on ism o e
da em anação estão em voga. É o que en co n tram o s em Bernardo de
Tours, au to r de um livro ch am ad o D e mundi u niversitate. M aior im ­
portân cia tem a seita de A m aury de Benes. Segu nd o Amaury, tudo é
u no, porqu e tudo é D eus: O m n ia unum, qu ia qu idqu id est est Deus. O
ser de todas as coisas está fund ad o no ser d ivino; há, portan to , um a
im anên cia da D ivindade no m u n d o . O h o m em é u m a m anifestação
ou aparição de D eus, co m o o p ró p rio Cristo. Essas idéias provocaram
grande agitação e encontraram ressonâncias (Joaquim de Floris) e um a
viva op o sição . O utro rep resen tan te das ten d ên cias panteístas foi Da-
vid de D in an t, que distingue en tre D eus, as alm as e a m atéria, mas su ­
põe u m a u n id ad e n u m érica e co n sid era D eus u m a m a téria id ê n ti­
ca. E m 1 2 1 5 , o cardeal R oberto de C ou rçon proibiu a leitura na U n i­
versidade de Paris das obras de física e m etafísica de A ristóteles, que
acabavam de ser co n h ecid as, ju n ta m en te com os escrito s de David de
D in an t, de A m aury e de u m certo M aurício de E span h a. N essa c o n ­
d en ação de A ristó teles, ju n to co m os re p rese n tan tes das ten d ên cias
pan teístas, tão alheias a seu p en sam en to, deve-se ver a con fu são das
d outrin as aristotélicas, ainda mal co n h ecid as, com as de alguns c o ­
m entaristas árabes. A in flu ência de Averróis, so b retu d o , determ inará
m ais tarde u m m ovim ento p o u co ortod oxo, co n h ecid o pelo nom e de
averroísm o latino.

4. As filosofias orien ta is

Ao m esm o tem po em que a filosofia se desenvolve no O cidente,


um m ov im en to sem elhante se origina nos povos orien tais, con creta-

164
r O S F ILÓ SO FO S MEDIEVAIS

tiii Mic entre os árabes e jud eus. Não se trata cle m aneira algum a de
..... . lilosoíia original e au tô n o m a, árabe ou hebraica, nem tam pouco
■li oni.i especulação fechada, sem contato co m os cristãos. Em prim ei-
i" lu|',;ir, o im pulso procede antes de tudo dos gregos, principalm ente
•li Ai istóteles e de alguns neo p latô n ico s. P or outro lado, o cristian is-
mn in n um a in flu ên cia d ecisiv a n o p e n sam en to m u çu lm a n o e ju -
ili li, 110 caso do m aom etism o, a influência se estend e à própria reli-
>’i.ti i ,i rigor, o Islã pod eria ser consid erado um a heresia ju d a ico -cris-
i.i i|uc a p arece em v irtu d e das relações de M aom é co m ju d e u s e
i i M aos; os dogm as m u çu lm an o s são form ulados negativam ente, com
ii |'i ilcm ico, contra a doutrina da Trindade, por exem plo, cuja in flu ên -
i i.i rlcs acusam : “N ão há outro D eus senão Alá; não é filho n em pai,
n u n iem sem elh an te.” A qui se percebe tanto a p olêm ica contra o po-
Iiii M uo árabe prim itivo co m o contra o dogm a trinitário. Inversam en-
i' I 11losofia dos árabes e ju d e u s é co n h ecida pelos escolásticos cris-
i.ins i: exerce forte influ ên cia sobre eles. A dem ais, o co n h ecim en to de
\i i-.loteies fez co m que a filosofia oriental se adiantasse em relação à
■In1, cristãos, e n o sécu lo X II já tinha atingido a m aturidade, que na
I i it opa só seria atingida no século seguinte. M as o grande papel dos
ii ihcs e jud eus foi, so bretu d o , a transm issão do p ensam ento aristoté-
lu o; são sobretud o os árabes espanhóis que trazem para os países o ci-
ili ui,lis os textos do grande grego, e essa co n trib u ição é a que caracte-
M ,i.i ép oca de plenitude da Escolástica. Tanto do ponto de vista da
■i.iiism issão co m o do da atividade filosófica, à Espanha árabe cab e o
lii),,;tr de d estaque na Idade M édia.

ci) A filoso fia á ra b e

S e u c a r á te r • O s árabes tom am co n h ecim en to de Aristóteles sob


II im pério dos A bássidas, no século V II, por m eio dos sírios. A fonte é
indireta. Os textos aristo télico s são traduzidos - nem sem pre bem -
i li >urego para o síríaco , do siríaco para o árabe, e às vezes se intercala
■’ h rb ra ico . Essas tradu ções árabes, indiretíssim as, são as que por sua
vi-.- sao vertidas para o latim e chegam ao co n h e cim en to dos escolás-
i ii os algum as vezes são prim eiro traduzidas para o rom ânico e depois
Imi a o latim ; em outras ocasiõ es, em contrapartid a, há algum texto

165
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

grego disponível e a versão latina é direta. A dem ais, os árabes geral­


m ente co n h ecem um A ristóteles desfigurado pelos com entaristas neo-
platôn icos; de qualquer m aneira, no que veio a ser ch am ad o de sín-
cretism o á r a b e há uma grande p roporção de elem en tos aristotélicos.
O s árabes e sobretudo Averróis foram os grandes com entad ores de
A ristóteles na Idade Média.
A filosofia árabe é tam bém um a escolástica m u çu lm an a. A in ter­
pretação racional do Alcorão é seu tem a principal, e as relações entre
religião e filosofia guardam paralelism o com as do O cid en te. Algo se­
m elhante ocorre com a filosofia ju d aica, e desse m o d o , em torno das
três religiões, form am -se três escolásticas, de im portância desigual, que
se in flu enciam reciprocam ente.
O s filó s o fo s á ra b e s n o O rie n te • A especulação árabe com eça
em torno do cen tro intelectual de Bagdá. No sécu lo IX surge um a p ri­
meira grande figura, sim ultânea a Scotus Erigena n o O ciden te: Alkin-
di. No sécu lo seguinte vive outro pensador mais im portan te, m orto
por volta de 9 5 0 : Alfarabi; este não se limita à trad u ção, dedica-se
p rin cipalm ente ao com entário de Aristóteles e introduz a teoria do in ­
telecto agente com o forma separada da m atéria, qu e viria a ter tanta
im portância na filosofia m u çu lm an a, e a distinção entre a essência e a
existência. D epois aparece Avicena (Ib n Sina), que viveu entre 9 8 0 e
1 0 3 7 . F oi lilósofo, teólogo e um dos m édicos m ais fam osos do m u n ­
do islâm ico e de toda a Idade M édia. Teve uma estranha precocidade,
e sua vida foi agitada e ocupada por cargos p ú blico s e prazeres, a des­
peito do que deixou uma copiosa obra. Sua obra m ais im portan te, Al-
Sifa (a C u ra), é um a Sum a de sua filosofia, de insp iração fortem ente
aristotélica. Tam bém escreveu A l-N ay at (a Salvação) e m uitos outros
tratados. Na Idade M édia teve m u ita influência a ch am ad a M etafísi­
ca d e A vicen a, da qual provém g ran d e parte das id éias dos esc o lá sti­
co s cristãos. Avicena recolheu a distinção entre essên cia e existência,
que em suas m ãos adquiriu grande im portância; introduziu a noção
de in ten cionalid ad e, tão fecunda em nosso tem po, e deixou uma pro­
funda m arca em toda a filosofia posterior, m uito particularm ente em
Santo Tomás.
Ao lado desse grupo de filosofias aparece entre os árabes um m o­
vim ento teológico ortodoxo, vinculado à m ística do sufism o, forte-

166
O S F IL Ó S O F O S M EDIEVA IS

mm ........... 111u-iu iaclo pelo cristian ism o (Ver Asín: El Islam cristian izado)
' I............m ito s hindus neop latônicas. O m ais im portante desses teó-
I. -1 ■ ' AIim.t], autor de dois livros intitulados A d estru ição dos filóso-
■ \ i< n ovação das ciên cias religiosas. Algazel é um m ístico ortod oxo,
ui-- |i.Miifi'.ta, d iferentem ente de outros árabes que aceitam as teorias
‘ l i i m.maçao.
( K liló so fo s á ra b e s e sp a n h ó is • Do século X ao X III, a Espa-
■ii. ' .li.ilic v um centro intelectu al im portantíssim o. C órdoba é a capi-
i it ili m' llorcscim ento. E n qu anto a filosofia oriental vai decaindo ela
.............. auge na Espanha, e o ram o espanhol é um a continu ação da-
i|in li i|iu- culm ina em Avicena. Desde o final do século XI, e em todo
i i'i iili) X II, aparecem n o O cidente vários grandes pensadores m u-
i iiliii.m os: Avempace (Ib n Bad ja), que m orreu em 1 1 3 8 ; A bentofail
1 I lo o I 185) e, sobretud o, Averróis.
Averróis (Ibn R ochd ou Ibn Rusd) nasceu em C órdoba em 1 1 2 6
■ nu ii ii‘ii em 1198. Foi m éd ico, m atem ático, jurisconsu lto, teólogo e
lili imiIo ; ocupou o cargo de juiz e caiu em graça e em desgraça, co n -
li it me as épocas. Averróis é o com entador por excelência durante toda
i li I.kIc Média: Averróis, c h e ’lg ra n com en to feo , diz D antc na Divina Co­
nn liii Tam bém escreveu tratados originais. V ários p on tos do pensa-
in u iio de Averróis tiveram grande influência nos séculos seguintes.
I m prim eiro lugar, a eternidade do m undo e, portanto, da m até-
II .i r do m ovim ento. A m atéria é um a potência universal, e o prim ei-
ii i m otor extrai as forças ativas da matéria; esse processo se realiza eter-
ii.im ciitc, e é a causa do m undo sensível e m aterial. Em segundo lu-
r.u, Averróis acredita que o in telecto hum ano é um a forma im aterial,
■ . e ú nica; é a últim a das inteligências planetárias e uma só para
iin hi a esp écie; é, portanto, im pessoal; os diferentes tipos de união do
liiiiiicm co m o intelecto universal determ inam os diferentes tipos de
i iin h ccim en to , desde o sensível até a ilum inação da m ística e da pro-
Iri i.i Por esse m otivo, a co n sciên cia individual se desvanece e só per-
iiu iic ce a específica; Averróis nega a im ortalidade pessoal; perdura
.ipi-nas o intelecto úm eo da espécie. A eternidade do m ovim ento e a
unidade do intelecto h u m ano são os dois pontos por m eio dos quais
o avrrroísm o latino aparece na filosofia ocidental. Por últim o, Averróis

167
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

estabelece um sistem a de relações entve a fé e o saber. D istingue três


tipos de espíritos: os hom ens de dem onstração, os h o m en s dialéticos,
que se conten tam com racio cín ios prováveis, e os h om en s de exo rta­
ção, satisfeitos com a oratória e as im agens. O A lcorão tem diversos
sen tid os, con form e a profundidade com que é interp retad o, e por isso
serve para todos os hom ens. Essa idéia dá lugar à fam osa teoria da du ­
p la v erd ad e, que predom inou no averroísm o latin o, segund o a qual
um a coisa pode ser verdadeira em teologia e falsa em filosofia, ou
vice-versa.

b) A filo sofia ju d a ica

A filosofia judaica se desenvolve na Idade M édia sob a influência


dos árabes, sobretu d o na Espanha. Tam bém os sécu lo s X I e X II são os
de m aior florescim ento. O caráter geral da filosofia ju d a ica é sem e­
lhante ao da árabe, da qual, na verdade, procede, co m con trib u içõ es
n eop latônicas e m ísticas da C abala. C om o os m u çu lm an os, os ju d eu s
procuram elaborar um a escolástica hebraica, e sua filosofia está in se­
paravelm ente ligada às qu estões teológicas.
Entre os pensadores hebreu s espanhóis m ais im portan tes en co n ­
tra-se A vicebron (Ib n G abirol), que viveu na prim eira m etade do sé­
cu lo X I e ficou m uito con h ecid o entre os cristãos por seu Fons vitae. A
tese m ais fam osa de Avicebron é a de que a alm a está com p osta de p o ­
tência e ato e, portanto, é m aterial, em bora não forçosam en te corpo-
ral. Ay iceb ro n está m uito in fluenciad o pelo neop laton ism o. O utros
pensadores interessantes são Ibn Zaddik de C órdoba e Yehuda Hale-
vi, autor do C u zary, livro de apologética israelita. M as a figura m áxi­
ma da filosofia hebraica é M aim ónides.
M oses Ben M aim on ou M oisés M aim ónides Cl 1 3 5 - 1 2 0 4 ) nasceu
em C órd oba, com o Averróis, seu contem porâneo m u çu lm an o , e sua
principal obra é o C u ia dos p erp lex os (D ux p erp lex o ru m ), não dos d es­
g a rra d o s co m o se costum a traduzir. Foi escrita em árabe, co m caracte­
res h ebraicos, e intitulada D alalat al-H airin , e depois traduzida para o
h ebraico com o título M oreii N ebuchim . O propósito desse livro é har-
m onizar a filosofia aristotélica co m a religião jud aica. É uma verda­
deira Sum a de escolástica jud aica, o exem plo mais com p lexo e perfei-

168
O S F IL Ó S O F O S M ED IEVA IS

In ili v.c 11po de obra nas filosofias orientais. O obieto snprptno ria rc-
11)*.i In e da filosofia é o co n h ecim en to de D eus; é preciso pôr de a co r-
ili * ii |ii iím p ios e resultados de am bas; o tratado de M aim ônides é di-
iii'iiln ans que, donos desses conh ecim en to s, têm dúvidas ou estão
Iii 11il<mis quanto ao m odo de tornar com patíveis as duas coisas; ira-
...........Ir uma indecisão, não de um extravio.
M aim ônides é próxim o de Averróis, em bora divirja dele em vá-
■i-• pom os. Não se entrega totalm ente à interp retação alegórica da
HiUia, mas adm ite que é forçoso interpretá-la levando em conta os re-
1111.ii los estabelecid os da filosofia, sem se d eixar d om inar pelo litera-
li u i" Apesar de suas cautelas, a filosofia de M aim ônides pareceu sus-
I» na para os teólogos ju d eu s e enfrentou não poucas dificuldades. A
ii ■«Intua de M aim ônides é negativa; pode-se dizer de Deus o que não
.■ in.i\ i n o o que é. A essência de Deus é inacessível, m as não seus efei-
I •i-.ie uma— hierarquia

de. i esferas entre Deus e os entes~ do m u—n■d— o- ;
I i i . se ocupa, com o providência, da totalidade das co isas. O in telec-
i " Im niano é tam bém ú nico e separado, com o em Averróis; o hom em
■i 1 1\ uliial possui o in telecto passivo, e pela ação do intelecto agente
l"iiu a sc nele um in telecto adqu irido, destinado a se unir, depois da
nu a ir ao intelecto agente. Portanto, resta para o hom em a possibilida-
■I' i Ir salvar algo de si m ediante a acum ulação que a filosofia realiza.
I'i 111 bc -se a influência dessas idéias na teoria de Rspinosa. que, com o
niili ii, leva em conta as obras de M aim ônides.

* * *

A im portância da filosofia árabe e ju d aica, e em especial de seus


I n iiiu p ais representantes - Avicena, Averróis e M a im ô n id e s-, é gran-
11. mais pela sua influência sobre a Escolástica cristã que por seu in-
ii i rv .c próprio. Não se pode com parar o alcance m etafísico e teológi-
■o desses pensadores co m o dos grandes cristãos medievais. Mas sua
r.iaiulc vantagem , que lhes perm itiu adiantar-se um século aos cris-
i.ins, loi o co n h ecim en to de Aristóteles. Isso lhes dá um m aterial filo-
■i11ii o im ensam ente su p erio r ao dos pensadores cristãos con tem p orâ-
iii tis, e essa vantagem durará até o século X III. Neste livro, cu jo tema

169
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

é a filosofia ocid ental, não é possível tratar das peculiaridades do p en ­


sam ento árabe e jud aico, apenas de suas conexões co m a filosofia do
O cidente; sua inspiração grega, sua contribuição para o escolasticis-
mo e sua influência sobre a filosofia ocidental posterior. Um a figura
posterior, de im portância decisiva, é o filósofo árabe Ibn Jald u n (Ibn
Khaldung), de origem espanhola, nascido em Tunis e m orto no Cairo
( 1 3 3 2 - 1 4 0 6 ) . Sua principal obra é sua Introdução à H istória (M uqaddi-
mah), genial filosofia da sociedade e da história2.

5. O m u n d o espiritual do século XIII

O su rg im e n to de A ris tó te le s • O século X III m arca um a nov


etapa na filosofia. Assim com o em seus primórdios o cristianism o teve
de enfrentar o pensam ento grego, isso volta a ocorrer, de form a dis­
tinta, na Idade Média. Até esse m om ento, a filosofia cristã se co n sti­
tuíra sobre a base de raros escritos gregos, de tipo p latôn ico ou neo-
platônico; no século X III, irrom pe na área filosófica do O cidente a fi­
gura m áxim a da G récia, e a Escolástica é obrigada a consid erar essa fi­
losofia m aravilhosam ente profunda e aguda, mas distinta de sua tra­
dição, que os árabes lhe trazem . Há um a etapa de assim ilação do pen ­
sam ento aristotélico, concentrada sobretudo nas obras de Santo Al­
berto M agno e de Santo Tomás de Aquino. Em bora isso enriqueça
en orm em ente as possibilidades da Escolástica, talvez tam bém desvie
a filosofia cristã de outros cam inh os aos quais seu gênio original a po­
deria ter levado. Em todo caso, a presença de A ristóteles assinala a
passagem para um a nova época extrem am ente fecunda.
A Espanha desem penha um im portante papel nesse trabalho de
transm issão. D esde o século X II traduzia-se intensam ente na Espa­
nha; a escola de tradutores de Toledo, em particular, fundada pelo ar­
cebispo don R aim undo, é um dos centros de m aior atividade na Eu­
ropa. Traduzem livros árabes e ju d eu s: Alfarabi, Algazel, Avicena, Avi-
cebron ; depois, os árabes trazem para o O cidente as versões de Aris-

2. V e r o liv ro d e M igue l C r u z H e r n a n d e z : La filo so fia á r a b e (M a d r i , 1 9 6 3 ) .

170
Os FILÓSOFOS MEDIEVAIS

inii |r i|iu* '..lo traduzidas para o castelhano e daí para o latim, ou


. iiiuii 11iii i. 111K-nlc para o latim. Entre esses tradutores, o mais im por-
11•1111 i‘ i iinulissalvio ou D om inicus G undisalvus, às vezes cham ado,
|mi c iiii de transcrição, G undissalinus, autor, tam bém , de uma enci-
i |n|ii 'li.i lilosolica de tendência aristotélica intitulada De d iv ision ep h i-
i um tratado D e im m ortalitate anim ae.: outros tradutores são
i ii i ililn ili i rcm ona ou Jo ã o de Espanha. Tam bém encontram os na
I nu <|>i algumas versões diretas do grego, que são m uito superiores;
. ..i.. i I i , .is de Roberto G rosseteste, bispo de L in coln, e, sobretudo,
.|i ■ .i 1111ii-i mr de M oerbecke, o grande tradutor d om inicano, que rea-
li ............ ou revisão de outras traduções de Aristóteles, a pedido
■li i min lomás.
A lilosolia de A ristóteles, especialm ente sua M etafísica e seus li-
vIn di ijui-siões naturais, despertou suspeitas. Era um volum e gran-
i|i ili ui.ir. de doutrinas im portantíssim as, que vinham m isturadas
i r .......-ui ui-, pouco ortodoxas dos com entadores árabes. Em 1 2 1 0 , um
i mu ilm provincial de Paris proíbe que as obras de Aristóteles sobre
hli> nh.i natural sejam lidas e explicadas; em 1 2 1 5 , o legado Roberto
ili i n inçon renova a proibição, em bora autorize a lógica e a ética para
i ii 11'mi Iuudada Universidade de Paris; em Toulouse, no entanto, seu
• .i ui In i untinua autorizado. Pouco depois, Gregório IX ordena uma
n vi .ui (k- Aristóteles para que sua leitura seja perm itida depois de
i 1111 ir.iilo; de fato, o prestígio de Aristóteles é cada vez maior, a ponto
di i i 11 I i ò ô o s legados do Papa Urbano V exigirem a leitura de Aris-
inirli ■. para a licenciatura em artes. Foi sobretudo o im enso trabalho
de .,mto Tomás o responsável pela incorporação da filosofia aristoté-
lii .i .in pensam ento cristão.
A partir daí, a sorte da Escolástica está decidida. À influência pla-
11ii 111 o agostiniana som a-se a aristotélica, mais im portante ainda. Os
lili imiIom crisLãos, em posse de um instrum ento m ental incom paravel-
iiirn ir superior, atingem sua plena maturidade. Ao m esm o tem po,
iirvii' século X III aparecem as Universidades mais im portantes, so-
liictm lo Paris e O xford, e as duas grandes ordens m endicantes, a cios
II .iiu iscanos e a dos dom inicanos. Ju n tos, esses elem entos produzem
i ■j i ;11h 1c século clássico da Idade Média.

171
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A fu n d ação das U n iv ersid ad es • Ao principiar o século XIII, nas­


ce a U niversidade de Paris, u m a das m aiores forças esp iritu ais da Ida­
de Média. Um a U niversidade não é um ed ifício nem u m cen tro único
de en sin o , mas um grande ag ru p am en to de professores e alunos das
escolas (un iversitas m agislroru m et sch olariu m ), su bm etid o à au torid a­
de de um chanceler. A vida escolar em Paris era m uito florescen te; vai
se organizando aos poucos e se d istribu i em quatro faculdades: de teo­
logia, de artes (filosofia), de d ireito e de m edicina. Os m ais n u m ero ­
sos eram os estudantes e p rofessores de artes, e esses se dividiam em
nações (p icard os, gauleses, n orm an d os, ingleses); seu ch efe era o rei­
tor, que acabou por suplantar o ch an celer na direção da U niversid a­
de. O s graus das faculdades eram o bacharelato, a licen ciatu ra e o
d outorado, os títulos de áo cto r ou magister. A U niversidade de Paris
estava su bm etid a a duas proteções - e influências: a do rei da França
e a do Papa. O s dois se davam co n ta da im ensa im portância desse cen ­
tro in telectu al, que chegou a ser com p arad o com a do Im pério e do
P ontificado. In o cên cio III foi o grande p rotetor e in sp irad or da U n i­
versidade parisiense em seus co m eço s.
P ou co depois é fundada a U niversidade de O xford , que adquire
grande im p ortân cia. Dessa form a co n stitu i-se um cen tro intelectual
inglês, distinto do da França, em q u e se m antêm m uito vivas as tradi­
ções p latônicas e agostinianas, e o n d e se cultiva tam bém o aristotelis-
m o, m as co m ênfase sobretud o no aspecto em pírico e cien tífico de
seu sistem a. Em vez de su blin har a d ireção lógica e m etafísica e a su ­
bord inação à teologia, O xford u tiliza a m atem ática e a física de A ris­
tóteles e dos árabes e prepara o no m in alism o de O ck h am e o em piris­
m o inglês da ép oca m oderna. U m p o u co mais tardia é a U niversidade
de C am brid ge, qu e se organiza p len am en te no século X IV A de B olo­
nha é tão antiga qu anto a de Paris, m as no século X III sua im p o rtân ­
cia não se deve à filosofia, e sim aos estud os ju ríd ico s. D epois são fun­
dadas as de Páclua, Salam anca, T oulouse, M ontpellier; em seguida as
de Praga, V iena, H eidelberg, C olô n ia, já no século XIV, e, na Espanha,
a de Valladolid.
A s o rd e n s m e n d ica n tes • No co m eço do século XIII constituem -
se, de certo m od o em su bstitu ição aos ben ed itinos, as duas grandes

172
O S FILÓSOFOS MEDIEVAIS

■>iili ii ■ m endicantes dos franciscanos e dos d om inican os. São Fran -


i iM n dc Assis funda a O rd em dos Irm ãos M enores, e São D om ingos
■li ( 111" mão a O rdem de Pregadores. A função dessas ordens em prin-
■11mi não é a m esm a: aos franciscanos correspond e m ais a unção; aos
d om in icanos, a pregação. Esta últim a ordem , fundada por ocasião da
In ic .ia albigensiana, estava encarregada da defesa da ortodoxia, e por
i-.Mi lhe foi confiada a In qu isição. Mas tam bém os franciscanos logo
■li scnvolveram um a grande atividade teológica e filosófica, de volu-
iiir c qualidade com paráveis. O s franciscanos, esp ecialm en te na dire-
■,iM indicada por São Boaventura, conservam as influências p latôn ico-
,i>'.i n m ianas anteriores, m as desde D uns Escoto entram tam bém , com o
o-, d om in icanos, no aristotelism o.
As ordens m end icantes logo penetram na U niversidade de Paris,
ii.ui sem grandes polêm icas co m os seculares. Ao final, essa interven-
i .10 i- consagrad a e se to rn a tão grande que a U niversid ade fica nas
111,11 is de franciscanos e d om in icanos. O prim eiro m estre dom in ican o
lin Rolando de C rem ona, e 0 prim eiro franciscano, A lexandre de Ha-
li ‘. I )esde então, as m aiores figuras da filosofia m edieval perten cem a
r-.sas ordens: d om inicanos são Santo A lberto M agno, Santo Tomás de
\i|iiino e M estre E ckh art; fran ciscan os, São Boaventura, Rogério Ba-
■" li. D uns E scoto, G uilherm e de O ckham . O s m enores e os pregado-
ii". m an têm -se, portanto, n o m esm o nível de au têntica genialidade fi-
Insolica. Se Santo Tom ás sistem atizou m elh or que ninguém a Escolás-
tu ;i i- in corporou A ristóteles ao pensam ento cristão, os franciscanos
mj',leses, por sua vez, estabeleceram as bases da física nom inalista e
Iui1pararam o cam inho, por u m lado, para a ciên cia natural m od ern a,
di- ( lalileu e N ew ton, e p o r outro, para a filosofia que virá a cu lm in ar
lui idealism o de D escartes a Leibniz.

6. São B o a v en tu ra

P e rso n a lid a d e • São Boaventura (cham ad o G iovanni Fidanza)


ii.isiTu em Bagnorea na Toscana em 1 2 2 1 ; entrou para a ordem fran-
. iv a n a ; estudou em Paris co m o discípulo de Alexandre de Hales, pen-
■,idui- interessante, que d eixou uma im portante S u m m a theologica; le ­

173
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

cion ou em Paris com o su cessor de A lexandre, em m eio às polêm icas


co n ira os m end ican tes, e foi grande am igo de San to Tom ás; em 1 2 5 7
Toi nom ead o geral da O rdem e aban d onou o en sin o ; m orreu en q u an ­
to participava do C oncílio de Lyon, em 1 2 7 4 . A Igreja lhe deu o nom e
de Dflctor seraphicu s.
As principais obras de São Boaventura são: C om en tários sobre as
S en ten ças, Q uaestiones d isp u tatae, D e reductione artiu m a d theologiam ,
Breviloquium e, sobretud o, U in erariu m mentis ín Deum.
São Boaventura representa no século XIII o esp írito de con tin u ida­
de; graças a ele foram conservad as as linhas gerais da ideologia esco­
lástica tradicional. N os C om en tários sobre as S enten ças escreve textu al­
m ente: N on enim intendo novas opin ion es ad versare, sed com m u n es et ap-
p ro b a ta s retexere. Seu caráter pessoal e sua form ação proced ente de
Santo A gostinho, de São Bernardo e dos V itorm os levam -no a co n ti­
nuar essas grandes correntes de m ística especulativa do século XII.
Insiste n o caráter mais prático e afetivo que puram ente teórico da teo ­
logia, claro anteced ente da posição nom inalista nos dois séculos se­
guintes. São Boaventura, ch eio de fervor religioso, está im pregnado
de um a ternura que correspond e a sua autêntica linhagem francisca-
na. As co isas naturais, feitas segu nd o um a sem elh an ça co m a D ivin­
dade, con servam um vestígio dela; o am or das coisas é tam bém am or
de D eus, de qu em são vestígio; e não esqueçam os que essa ternura
franciscana pela natureza não é de m od o nen hu m alheia à co n stitu i­
ção da esplêndida física m atem ática do R enascim ento, em bora isso
possa parecer estranho para alguns.
D o u trin a • A finalidade dos co n h ecim en to s h u m an o s é Deus.
Esse co n h e cim en to é alcançado de diversas m aneiras e em diversos
graus e cu lm in a na u nião m ística. A insp iração agostin ian a é evid en­
te em São Boaventura. Para ele, a filosofia é na verdade itin erarium
mentis in D eum . C onhece-se Deus na natureza, por seus vestígios; pode
ser co n h e cid o , de m odo m ais im ed iato, em sua própria im agem , que
é nossa alm a - volta o tem a do ho m em interior de Santo A gostinho e
Santo A nselm o; quando a graça co m u n ica as três virtudes teologais,
vê-se D eus in im ag in e, em nós, e, por últim o, pode-se co n h ecer Deus
d iretam ente, em seu ser, em sua bon d ade, no próprio m istério trinitá-

174
O S F IL Ó S O F O S M ED IE V A IS

ii " . . « im o cu lm inação, na con tem plação extática, no áp ice cia m ente


M/>rv mrníis), segundo a expressão de Boaventura.
' i. i o Boaventura adm ite a possibilidade da dem onstração de Deus
i .ii n i.i a prova o n tológica de Santo Anselm o: a com preensão p ró p ria
ila i-.sm cia divina faz ver a necessidade de sua existência. No tocante
i I v iis c à alm a, Boaventura não adm ite que sejam con h ecid o s, com o
.> ii".io das coisas, pelos sen tid os, mas só d iretam ente; Deus é luz, e
■ .1 co n h ecim en to se dá por razão da luz incriada. N ecessário enim
. '/ii'i lei p on ere qu od an im a novit D eum et se ip sam et qu ae sunt in se ipsa
•ii/ii- lu lm in iatlo sensuum exterioru m . P or outro lado, São Boaventura
iir.iv.ii- esp ecialm ente em que o hom em é causa eficiente de seus atos
. e rejeita a d ou trina averroísta da unidade do entend im ento.
São Boaventura afirm a a pluralidade das form as su bstanciais;
i Irm da fo rm a com pletiva, reconhece outras form as subordinadas. De
11iodo geral, essa teoria foi aceita pelos fran ciscan os, desde A lexandre
il’ I lales até o final da Idade M édia. O m u n d o foi criado no tem po;
■ .'.a verdade dogm ática não é negada salvo pelos averroístas h etero-
i luxos; m as São B oaventura acredita adem ais que essa verdade não é
11niliccida apenas p or revelação, mas tam bém racionalm ente, e que é
. m iiiad iió ria com a criação a b aetern o, que Santo Tomás consid era
I n o iv e i. Esse problem a da eternidade do m u ndo é um a das qu estões
. .m ia is da época, su scitada pelo aristotelism o e pelos com en tad ores
ai abr s . São Boaventura e Santo Tomás, de acordo sobre o fato da tem -
I ii a alidade, diferem a respeito da origem do co n h ecim en to dessa ver-
i I.u Il-, que o franciscano põe na razão, ao passo que o d om inicano re­
lega a fé.
I )e São Boaventura brota toda uma co rren te cla especulação m e-
ilii-\al. que virá a ser extrem am en te fecunda; a controvérsia entre essa
iiiiriiia ç ã o e a tom ista vivifica o p ensam ento da Idade M édia. E se é
i ri lo que o tom ism o pred om inou em m aior m edida na Escolástica, a
oi im ia çã o dos pensadores franciscanos exerceu, por sua vez, um a in-
lliiriu ia m aior na filosofia m oderna, que representa a con tinu id ad e
mais autêntica e fecunda do pensam ento cristão medieval.
D isc íp u lo s de S ã o B o a v e n tu ra • A atividade docente do grande
II ii" .1ri* franciscano teve m u itos seguidores. Em prim eiro lugar, M a­

175
H is t o r ia d a f il o s o f ia

teus A quasparta, que lecionou em Paris e em B olonha, foi geral da or­


dem , cardeal e bispo do Porto. Tam bém foi discípulo direto Jo h n Pec-
kham , professor em O xford e depois arcebispo de Canterbury. O utros
d iscípulos posteriores, m enos d iretos, são Pedro Jo ã o O livi e, sobre­
tudo, Richard de M iddleton, cham ad o de Mediavilla.
A influência desses m estres franciscanos foi m uito grande, e eles
m antiveram as linhas gerais do pen sam en to de São B oaven tura ante
o tom ism o dom inante. No entanto, n o final do século X III aparece na
O rdem dos Irm ãos M enores um a figura que virá a o cu p a r o p rim ei­
ro plano: Jo ã o D uns Escoto; desde então, a orientação franciscana se
personaliza no escotism o, e a influência direta de São Boaventura di­
m inui; m as não se pode ignorar que na verdade perdura de m odo efi­
caz, da m an eira m ais in teressan te em filosofia: não n u m d iscip u la-
do restrito e im óvel, mas co m o m o to r de um a renovação m etafísica.
O papel de um au tên tico filóso fo não é perpetuar-se n u m “ism o ”
qualquer, m as ter um a efetiva atualidade em outros p en sad ores com
nom e próprio e distinto e pôr inexoravelm en te em an d am en to a h is­
tória da filosofia.

7. A filosofia aristotélico-escolástica

O século X III, com o vim os, en con tra-se ante o enorm e problem
de enfrentar Aristóteles. É um a filosofia de uma profundidade e de
um valor que se im põem ao prim eiro contato. No aristotelism o há
instrum entos m entais com os quais se pode chegar m uito longe; mas
é preciso aplicá-los a tem as m uito diferentes daqueles para os quais
foram pensados; a íntim a união de teologia e filosofia que se cham a
Escolástica é algo com pletam ente diferente do horizonte em que se
move o pensam ento aristotélico. C om o aplicá-lo aos problem as da
Idade M édia? Mas há algo ainda m ais grave. O aristotelism o não é só
a lógica im pecável do Órganon\ tam pouco é apenas um arsenal de
con ceitos úteis - m atéria, form a, su bstância, acidente, categorias etc.;
é, antes de qu alqu er coisa, um a filo so fia , um a m etafísica, pensada em
grego, a partir de pressupostos radicalm ente distintos, n ão-cristãos, e
que, no en tan to, em m uitos sentid os parece ser a verdade. Q ue fazer

176
O S F IL Ó S O F O S M ED ILV A IS

...... . iv.n? A rislóleles fala de Deus e diz sobre ele coisas extrem am en-
ii itMul.is c interessantes; fala do m undo e do m ovim ento, e da razão
il. !. •. i um uma penetração lum inosa até então desconhecida. Mas esse.
I v ir. não e o Deus cristão; não é criador, não tem três pessoas, sua re­
li i 1111 id iii o m undo é outra; e o m undo aristotélico tam pouco é aque-
li 111u- saiu das m ãos de D eus segundo o G ênese.
i > problema é m uito sério. A E scolástica não pode renunciar a
\i i .lou-lcs, não pode ignorá-lo. A filosofia do Estagirita se im põe por
11.i esm agadora superioridade, pela verdade que ião evidentem ente
111<i'•11a Mas é preciso adaptá-la à nova situação, aos problem as que
I pi ■i ii upam os hom ens do século XIII. É necessário incorporar a m en-
......... ...oiélica à filosofia cristã. C om que conseqü ên cias para esta? Isso
i ui ui a questão. A genialidade pujante do aristotelism o talvez fosse
i t i ' v.iva para que pudesse ser recebida sem riscos; talvez a influência
11' Ai isióieles tenha obrigado a filosofia cristã a ser outra coisa, e pos-
I I ii Iulactes originais que poderiam ter am adurecido percorrendo ou-
i ui i am inho m alograram ; o problem a perm anece de pé.
|a São Boaventura acolhe em suas obras a influência de Aristóte-
I' v mas apenas de forma m arginal, de m odo secundário, sem que o
I" i ipaietism o afete o núcleo central de sua filosofia, que continua sen-
ilii essencialm ente platônica e agostiniana. Isso não era o bastante. Era
I 'U i íso encarar com determ inação a totalidade ingente da filosofia aris-
in irlin i; indagá-la, tentar com preendê-la e incorporá-la ao sistema ideo-
ln)',ii'o da Idade Média. Esta foi a extraordinária em presa assum ida e
M,ili. ada no século XIII por dois dom inicanos, m estre e discípulo, am ­
bos i anonizados pela Igreja; Alberto de Bollstadt (então cham ado Al-
I 'I i lo de C olônia e hoje A lberto Magno) e Tomás de Aquino.

a) Santo A lberto M agno

V ida e e s c rito s • A lberto nasceu, provavelm ente, em 1 1 9 3 - há


11uvitlas sobre a data; outros indicam 1 2 0 6 - 0 7 - e m orreu em C o lô ­
nia cm 1 2 8 0 . Ingressou na ordem dom inicana, trabalhou e viajou
n iu iio, c lecionou em C olônia, H ildesheim , Friburgo, Ratisbona, Es-
II .isburgo; voltou para C olônia, onde foi professor de Santo Tomás de
A qum o, e dali foi para Paris, o centro da Escolástica. Depois foi bispo

177
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

de R atisbona e no fim retirou-se para Colônia, onde viveu e lecionou.


A atividade d ocente e eclesiástica de Santo Alberto foi extraordinária.
O volu m e de seus escritos é enorm e; a autoridade que alcan
foi Lão grande que, conform e ressalta Rogério Bacon, era tão citado quan­
to os grandes mortos, com o Aristóteles, Averróis ou Avicena, ou quanto
os Padres da Igreja. Suas obras são, p rincipalm ente, paráfrases, m uito
am plas e ricas, da m aioria dos livros aristolélicos; além destas, trata­
dos originais de filosofia e teologia, e uma im ensa eru d ição , que se es­
tende tam bém aos árabes e jud eus e tornou possível a sín tese genial
de seu d iscíp u lo Tomás.
A o b ra de A lb erto M agno • O propósito de A lberto é a in ter­
pretação e assim ilação de todas as disciplinas filosóficas de A ristóte­
les: n ostra in ten ü o est om nes dietas p artes fa cere Latim s intelligibiles. Para
isso faz p a r á fra ses das obras de A ristóteles, explicand o-as exten sam en ­
te para to rn á-las mais com p reensíveis, e aum entand o-as co m co m en ­
tários dos m u çu lm an o s e ju d e u s, além de outros seus. É um propósi­
to de vulgarização, que tropeça com grandes dificuldades, traduzidas
em inú m eros defeitos. C om freqü ência falta clareza, a perspectiva se
perde; não há um a arquitetura m ental rigorosa e precisa, co m o a que
Santo Tom ás construirá depois. Adem ais, m uitas vezes a in co rp o ra­
ção buscada n ão é atingida. A lberto M agno está aprisionad o dem ais à
estrutura do pensam ento tradicional da Escolástica; sobre esse esque­
ma verte sua im ensa erudição aristotélica, mas não con segu e unir
num a síntese congruente e harm oniosa a filosofia do pen sador helé­
n ico co m a m entalidade cristã.
O que consegu e é pôr em circulação uma quantidade incalcu
vel de idéias, já consolidadas, para os pensadores da ép oca. A ristóte­
les é desde en tão algo que está ao alcance da m ão, que se pod e estu­
dar e utilizar facilm ente. A difícil incorporação já foi tentad a; os ma­
teriais já estão à disposição: a m ente de Santo Tomás já encontrará,
feito por seu m estre, o trabalho mais penoso e m enos profund o, e po­
derá se d ed icar ao trabalho su p erior e realizá-lo. Por outro lado, Al­
berto M agno, nesse sentido seguidor fiel de A ristóteles, é um hom em
de ciência enciclopédico. Rogério Bacon na Inglaterra e Alberto na Ale­
m anha são as duas grandes figuras da ciência no século X III. Alberto

178
O S F IL Ó S O F O S M ED IEV A IS

I missiii e cultiva todas as ciências, desde a astronom ia até a m edicina, e


.1 ■I,i.: avançar; o senso da observação e do experim ento, que não foi de
modo nenhum alheio à Idade Média, dirigiu seu copioso labor nessa
■ .leia. Por últim o, além de sua obra mais estritam ente filosófica, Al-
I >■ i io Magno cultiva a teologia e leva tam bém a ela os esquem as in telec-
iii.us do aristotelism o, antecipando a realização m adura de Tomás.

b) Santo Tomás de A quino

V ida e o b ras • Tom ás era filho da família dos co n d es de A quino;


ii.islvu em R occasecca em ] 2 2 5 ; estudou prim eiro n o m onastério de
Monte C assino e em 1 2 3 9 foi para N ápoles a fim de cu rsar as sete ar-
ii". liberais; ali estudou o trivium (gram ática, retórica e dialética) com
IVdro M artin, e o quadríviu m (aritm ética, geom etria, astronom ia e
m usica) co m Pedro de Ibérnia. Estuda tam bém artes na U niversidade
i Ir N ápoles, e em 1 2 4 4 tom a nesta cidade o h ábito de São D om ingos.
Pouco depois dirige-se para Paris com o m estre geral da O rdem , m as
.(•iis irm ãos, incom odad os com sua entrada na religião, raptam -no no
i .iininho e o levam para R occasecca. No ano seguinte vai para Paris,
iinde co n h ece Alberto M agno, e estuda co m ele nessa cidade e depois
u i C olônia. Em 1 2 5 2 volta para Paris, onde se torna mestre em te o ­
lo g ia , e ali atua durante alguns anos. De 1 2 5 9 a 1 2 6 9 leciona em dis-
111nas cidades da Itália (Agnani, O rvieto, R om a, V iterbo). Volta para
r.ms, seu verdadeiro centro; depois reside em N ápoles e sai dessa ci-
il.idr em 1 2 7 4 , con vocad o por G regório X para assistir ao segundo
( o n d lio de Lyon. Mas sua saúde não suportou o extenu ante trabalho
m iclcctu al a que se su bm etia: adoeceu no cam in h o e m orreu em Fos-
■.,i Nova em 7 de m arço de 1 2 7 4 .
San to Tom ás foi um h om em puram ente espiritual. Toda a sua
vida esteve dedicada ao trabalho da filosofia e da teologia e m ovida
prla religião. Era um h o m em singularm ente sim ples e bond oso, inte-
C.ialmente consagrado à grande obra intelectual que conseguiu levar a
■a b o . O s testem unhos m ais próxim os que se têm dele indicam a pro-
Imula afeição que inspirava em seus am igos mais chegados; é o caso
dr seu m estre Alberto M agno, que, já m uito idoso, se pôs a cam in h o
p ara Paris a fim de d efend er as doutrinas de seu d iscípulo, co n d en a-

179
I IlST Ó R IA DA FILOSOFIA

das pelo bisp o Tem pier, e que sem p re sentiu p rofu n d am en te a m o r­


te de Tom ás; tam bém de seu bióg rafo G uilherm e de T occo e, so b re­
tudo, de seu co m p an h eiro de O rd em e am igo fiel frei R eginaldo de
Piperno. A Igreja canonizou Tom ás e reconheceu, afora sua santidade,
seu valor relevante para a E sco lástica. Santo Tom ás foi ch am ad o Doc-
tor A ngelicus.
As obras de Santo Tom ás são m uito num erosas; algum as, de in ­
teresse m ais d iretam ente ap o lo g ético ou de exegese de textos sagra­
dos co m o a C aten a a u rea su p er qu attu or E van gelia; outras, de tipo es­
tritam ente teológico dogm ático ou ju ríd ico ; aqui nos interessam so ­
bretudo as obras filosóficas e as de sistem atização da teologia, nas quais
é prin cip alm en te a filosofia tom ista que está exposta. Antes de tudo,
os C om en tários a A ristóteles, um a longa série de escritos em que estu ­
da e analisa o pensam ento do Estagirita. Em segundo lugar, os Opús­
culos, tratados breves de filosofia ou teologia, ricos de doutrina, entre
os quais se en co n tram o escrito D e en te et essentia, o D e unitate intellec-
tus, o D e prin cípio individuations etc. Em terceiro lugar, as Q uaestiones
qu odlibetales e as Q uaestiones dispu tatae (De veritate, D e poten tia, De an i­
m a etc.). Por ú ltim o, os tratados teológicos, em esp ecial a S um m a con ­
tra G entiles, o C om pen diu m th eolog iae an d R eginaldum e , sobretud o, a
obra m ais im p ortante de Santo Tom ás, a grande exp o sição sistem áti­
ca de seu p ensam ento e tam bém de toda a Escolástica: a S u m m a theo-
logica. Esses são os escritos tom islas que é preciso ter em conta para
estudar San to Tomás do p o n to de vista da história da filosofia. Já no
século XIII to rnaram -se os textos fundam entais da E scolástica, e boa
parte da produção posterior desta consistiu em com en tário s sobre os
livros de Santo Tomás, sobretudo das distintas partes da Sum a teológica.
A re la ç ã o co m A r is tó te le s • Santo Tomás realiza a adaptação da
filosofia grega de A ristóteles ao p ensam ento cristão da Escolástica. A
base geral de seu pen sam en to é, portanto, a dogm ática cristã, os Pa­
dres da Igreja, a tradição m edieval anterior e, sobretu d o, Aristóteles.
Tom ás trabalhou longam ente sobre os escritos peripatéticos, em par­
ticu lar com as tradu ções diretas de G uilherm e de M oerbeke; e no lu­
gar das longas e dificultosas paráfrases de Alberto M agno, im precisas
e ch eias de dificuldades não resolvidas, Sanlo Tom ás faz com entários

180
O S F IL Ó S O F O S M ED IEV A IS

i 111 que segue de perto o texto de Aristóteles e tenta esclarecê-lo ple-


ii.im cnte. Há sem dúvida uma estreita afinidade entre a m ente de San-
i' ■ lom ás e a de A ristóteles. Brentano fala, co m um a palavra feliz, de
uma congen ialida.de; isso faz co m que em m u itos pontos a exp osição
d,is doutrinas tom istas equivalha à das aristotélicas; é o que ocorre
■u iii a lógica, co m as linhas gerais de sua física e de sua m etafísica,
i um o esquem a de sua psicologia e de sua ética; m as não devem os e s­
qu ecer que as m esm as idéias aristotélicas são utilizadas com fins bem
diM intos, a dezesseis séculos cle distância e, antes de tudo, co m o cris-
i i.mismo entre um e outro; além disso, Santo Tom ás era filosoficam en­
te genial dem ais para sim plesm ente se d obrar ao aristotelism o, e o
■.eiiiido geral de seu sistem a difere profundam ente dele. Basta pensar
que iod a a atividade in telectu al de Santo Tom ás se volta para a fun ­
il, im entação da teologia cristã, baseada em pressup ostos totalm ente
alheios à m ente helénica.
O grande p roblem a de Aristóteles foi o dos m od os de ser, na ten-
i.iiiva de resolver a questão que a filosofia grega vinha arrastando an-
i',ustiadamente desde Parm ênides, e sobretud o a elaboração de sua
teoria da substância, em íntim a conexão co m o ente enquanto tal e
i mu D eus enten d id o co m o m otor im óvel. O u seja, a con stitu ição da
m etafísica, da “ciên cia bu scad a”, e toda a ordenação do problem a do
saber; além disso, a reivindicação da física, co lo cad a em questão pelo
i Inu ism o, com sua d outrina da unidade e im obilidade do ente. O s
problem as que m ovem San to Tomás são totalm ente outros. Antes de
n u lo , a d em on stração da existên cia de Deus e a explicação de sua es­
sên cia, na m edida em que seja possível; a interp retação racional dos
d ogm as ou o isolam ento de seu núcleo m isterioso, su p ra-racional,
mas não anti-racional - por exem plo, a Trindade, a criação do m u ndo,
.1 I■itcaristia; por outro lado, a doutrina da alm a hum ana, espiritual e
im ortal; a ética, orientada para a vida sobrenatu ral; o problem a dos
universais, e m u itos outros.
Trata-se, pois, de duas coisas bem distintas; e a expressão, tão
usada, de filo s o fia aristotélico-esco lásíica ou aristotélíco-tom ista é eq u i­
vocada. Só tem sentid o qu and o se aplica aos sistem as m edievais que
i" ilid am o s e significa a incorporação do aristotelism o à E scolástica;

181
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

m as não deve ser entendida co m o designação de u m a filo s o fia que in ­


cluísse a de A ristóteles e a de Santo Tomás. Por isso, a rigor, as duas
d en o m in açõ es invocadas acim a n ão são equivalentes, e a segunda não
é correia: não existe um a filosofia aristo télico -to m ista, e sim apenas
tom ista, e o torriismo é aristotélico-esco lásü co no sen tid o que acabo de
indicar.
F ilo s o fia e te o lo g ia • Para San to Tomás há um a distinção clara:
trata-se de duas ciên cias, de dois tipos distintos de saber. A teologia
se funda na revelação divina; a filosofia, no exercício da razão h u m a­
na; houve qu em dissesse, com razão, que a rigor não é o hom em que
faz a teologia, m as sim D eus ao se revelar. F ilosofia e teologia têm de
ser verdadeiras; D eus é a p rópria verdade e não cabe duvidar da reve­
lação; a razão, usada retam ente, tam bém nos leva à verdade. P ortan ­
to, não pode haver con flito entre filosofia e teologia, porque seria
uma discórdia dentro da verdade.
São, portan to , duas ciên cias ind epend entes, m as co m um cam po
co m u m ; sua distinção d ecorre, antes de tudo, do ob jeto fo r m a l, mas
seu ob jeto m aterial coin cid e parcialm ente. Existem dogm as revelados
que p od em ser co n h ecid o s pela razão; por exem plo - indicará Santo
Tom ás a existência de D eus e m u itos atributos seus, a criação etc.;
não o b stan te, sua revelação não é supérflua, porqu e, por m eio da ra­
zão, apenas m uito p ou cos co n h ecerão essas verdades. N os casos em
que é possível co m p reen d er racio n alm en te, isso é preferível à pura
crença. E n co n tram os aqui um a ressonância atenuada do fid e s q u ae-
rens intellectum ; Santo Tom ás não crê que se possa, a não ser parcial­
m ente, ten tar a com p reensão racio n al do objeto da fé. A razão aplica­
da aos tem as que são tam bém assu n to de fé e de teologia é a cham ada
teologia n atu ral, portanto, existe u m a teologia natural além da theolo-
gia fid e i. Essa teologia natural é para Santo Tomás filosofia, e o que ela
tem de m ais im portante; a rigor, é a filosofia tomista.
A revelação é critério de verdade. No caso de um a contradição
entre a revelação e a filosofia, o erro nun ca pode estar na prim eira;
portan to, o desacordo entre um a d outrina filosófica e um dogm a re­
velado é um indício de que a prim eira é falsa, de que a razão se extra­
viou e não chegou à verdade, m otivo pelo qual se ch o ca com ela. Nes-

182
r O S FILÓ SO FO S MEDIEVAIS

i i i indo existe um a su bordinação da filosofia, não precisam ente à


h iiluj.’,ia com o ciên cia, m as à revelação; no en tan to , o sentido dessa
m i I ii >idinação não é o de um a trava ou im p osição, pelo contrário: a fi-
ln .nlia im põe com o norm a para si m esm a o qu e lhe é mais próprio,
i mi M-ja, a verdade. A revelação a coloca de sobreaviso, mas é a própria
ia ’ao íilosófica que bu scará o saber verdadeiro.
D iv isão da filo s o fia • C om o para os gregos, tam bém para San-
i" loinás a origem da filosofia é o assom bro; o afã de co n h ecer só se
aqm riu quando se co n h e cem as coisas em suas causas: Tom ás é um
In>m ai istotélico; m as, com o a causa prim eira é D eus, só o con h ecim en -
n> dc Deus pode bastar para a m ente hum ana e satisfazer a filosofia. O
Inn dessa filosofia é que se desenhe na alm a toda a ordem do u n iv er­
so c de suas causas; ut in e a d esc n b a tu r totus ord o universi et cau saru m
• l i i A alm a hum ana - que já em A ristóteles era com parada co m a
mao, porque, assim co m o esta é em certo sen tid o todos os in siru m en -
ii is, aquela é de certo m od o todas as coisas - envolve co m seu saber a
11>ialidade do universo e assim excede sua função de sim ples criatura
para participar do caráter de espírito, à im agem da Divindade.
lissa ord em do universo é tríplice. H á, em prim eiro lugar, um a
urdem que a m ente h um ana encontra co m o existente: a ordem das
■ oisas, da natureza, do ser real. A ela se aplica a filo so fia natural em
><*iilido estrito ou física, cu jo o b jeto é o ens m obile, e tam bém a m ate­
rnal ica, mas, sobretud o, a m etafísica, que estuda, segundo a definição
arisio télica, o ens ín quantum ens, e cu lm ina no saber a respeito de
I >i-1is. Em segundo lugar, há a ordem do p en sam en to, o b jeto da filo-
'.olia racional ou lógica. E m terceiro lugar, a ord em dos atos de vonta-
cli-, produzida pelo h o m em , a ordem m oral, estudada pela filosofia
moral ou ética, e tam bém , em suas dim ensões coletivas, a ciên cia do
I '.lado, a econom ia e a p olítica. É esse o esquem a das disciplinas filo­
sóficas tom istas. Não pod em os d etalhá-lo aqui, pois isso nos levaria
longe dem ais; bastará ex p o r brevem ente os pontos de m aior in teres­
se, que m arcam seu lugar e sua influência na história da filosofia.
A m e ta física • O ser é o con ceito mais universal de todos, segu n ­
do Santo Tom ás, que recolhe o ensino aristotélico. Illud quod p rim o ca-
ihi sub ap p reh en sion e est ens, cujus intellectus includitur in om nibus, q u ae-

183
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

cu m que quis apprehendit. Mas essa universalidade não é a do gênero,


com o já tin ha m ostrado A ristóteles em contraposição à op in ião platô­
nica; o ente é um dos tran scen den tais, que estão presentes em todas as
coisas, sem se confundir com nenhu m a; esses transcend entais são ens,
res, aliquid, u nu m et bonum . E, co m o form as particulares do bonum te­
m os, n o to can te ao entend im ento e ao apetite, o veru m e o pulchrum ,
a verdade e a beleza.
O s dois sentidos fundam entais da palavra ser são a essência e a
existên cia; a Escolástica discutira longam ente a diferen ça entre am ­
bas; Santo Tom ás afirm a a d istin ção real entre a essência e a existência
das criatu ras, que são entes co n tin g en tes; em con trap artid a, em Deus
essa d istinção não existe; da essên cia de Deus decorre n ecessariam en ­
te sua ex istên cia; é isso que se cham a a sseid ad e, ser um ens a se, e de­
sem penha u m papel essencial n a dem onstração da ex istên cia de Deus
e em toda a teologia.
Santo Tom ás, que rejeita a prova ontológica de San to A nselm o,
dem onstra a existên cia de Deus de cin co m aneiras, que são as fam o­
sas cinco vias: I a Pelo m ovim ento: existe o m ovim ento; tu d o o que se
move é m ovido por outro m otor; se esse m otor se m ove, necessitará
por sua vez de outro, e assim ao infinito; isso é im possível, porque
não haverá nen h u m m otor se não houver um prim eiro, e esle é Deus.
2 a Pela causa eficiente: há um a série de causas eficientes: tem de h a­
ver uma prim eira causa, porqu e, caso contrário, não haveria nenhum
efeito, e essa ca u sa p rím a é Deus. 3 a Pelo possível e pelo necessário: a
geração e a co rru p ção m ostram que existem entes que pod em ser ou
não ser; esses entes alguma vez não foram , e teria havido um tem po
em que não havia nada, e nada teria chegado a ser; tem de haver um
ente n ecessário por si m esm o, e este se cham a Deus. 4 a P elos graus da
perfeição: há diversos graus de todas as perfeições, que se aproxim am
m ais ou m e n o s das p erfeiçõ es ab so lu tas e p or isso são grau s delas;
há, portanto, u m ente que é sum am ente perfeito, e é o ente su m o; este
ente é causa de toda perfeição e de todo ser, e se cham a D eus. 5 a Pelo
governo do m u n d o : os entes inteligen tes tendem a um fim e a uma
ordem , não p o r acaso, mas pela inteligência que os dirige; há um ente
inteligente q u e ordena a natureza e a im pulsiona para seu fim , e esse
ente é Deus.

184
O S F IL Ó S O F O S M ED IEVA IS

I i,i'. sio , em sum a, as cinco vias. A idéia fundam ental que as


..... .. q iir Deus, invisível e infinito, é dem onstrável por seus efeitos
■.i1 i'.' r, i- Imilos. Sabe-se, portanto, que D eus é, mas não o que é. Ainda
,r 'im , ru br de certo m odo saber de Deus, pela visão das criaturas, e
i ■11 dr iri s maneiras: por via de causalidade, por via de excelên cia e
I ii ii vi,i de negação. Santo Tom ás distingue, de todo m o d o , duas pos-
■iluiiilailrs de ver: um a, segundo a sim ples razão natural, outra m e-
ili.mii- uma luz sobrenatural; alguns vêem luz - diz - , mas não estão
n,i In.- t/uídum vident lum en, sed non sunt in lum íne.
( ) m undo está criado por Deus; já vim os que a criação é a co lo -
, n..li i du inundo na existên cia, por um ato livre e voluntário de D eus;
,i ii vrlaçao acrescenta que é algo que se deu no tem po, em bora, se-
>■1iiiclu Sam o Tomás, isso seja indem onstrável racionalm ente. D eus é
' ui',,i do m undo num d uplo sentido: é causa eficien te e, adem ais,
i ,nr>,i i-xL-mplar; por outro lado, é causa final, pois todos os fins se en -
i !• ii i.am a Deus.
No locan te aos universais, a doutrina de Santo Tom ás é o realis-
iiid m o d erad o : os universais têm realidade, mas não existem universais
■ iK|iliiiuo tais, apenas em form a abstrata; a esp écie só se dá m dividua-
li ula, c o princípio de individuação é a m a téria signata. Daí a teoria
■l.i rsp ccificid ad e e não da individualidade dos an jo s, por serem estes
m u lu iais.
A a lm a • A doutrina tom ista sobre a alm a difere da tradicional
li.i I 'scolástica, de origem platônico-agostiniano, e se aproxim a, se bem
111ir com uma transposição cristã essencial, da de Aristóteles. Santo
Im iias, em conform idade co m a psicologia aristotélica, interpreta a
.ilma c o m o fo r m a su bstancial do corpo h u m ano, prim eiro princípio de
mi.i vida. A alm a é qu em faz com que o corpo seja co rp o, ou seja, co r­
po vivo. E xistem tantas alm as ou form as substanciais quanto corp os
hum anos; Santo Tomás rejeita o m on op siq u ism o de origem árabe,
que aparece com força n o averroísm o latino. Tam bém nega que o co r­
po r a alm a sejam duas su bstân cias com p letas, de m o d o que a alma
il.ii ia ao co rp o a vida, m as não a corporeidade; a união da alm a com
o ro rp o é um a união su bstan cial; ou seja, a alm a e o co rp o, unidos, for­
ni. im a su bstân cia com p leta e única que é o h o m em , sem intervenção

185
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

de n en h u m a outra form a. O C o n cílio de Viena ( 1 3 1 1 - 1 2 ) defim u que


a alm a racional é por si e essen cialm en te a forma do corp o hum ano.
Por outro lado, a alm a h u m an a - diferen tem en te da anim al - é
um a jo rm a su bsisten te; isto é, a m ente ou en ten d im en to tem uma o p e­
ração própria, da qual não participa essencialm ente o co rp o, e, p or­
tanto, pode subsistir e exercer essa operação m esm o separada do su b s­
trato corp oral. P ortanto, a alm a é algo in corpóreo e não tem co m p o ­
sição de m atéria e form a; e é esp iritu al, por estar dotada de razão e ser
um a mens. Portanto, a alm a hum ana é in corrup tível e im ortal; sua
im aterialidade e sim plicidad e to rn am im possível sua d ecom posição
ou co rru p ção ; sua espiritualidade e consegu in te su b sistên cia im pe­
d em -na de pod er ser acid en talm en te corrom p id a, qu an d o se dá a co r­
rupção do com p osto hum ano. A alm a hum ana é, portan to , im ortal, e
só poderia p erecer se Deus a an iquilasse. Santo Tom ás en co n tra outra
prova da im ortalid ade pessoal no d esejo que o h o m em tem de perm a­
n ecer em seu m odo de ser; e co m o esse desejo natural - acrescenta ele
- não pod e ser em vão, toda su b stân cia intelectual é incorruptível.
A m o r a l • A ética tom ista in sere-se no quadro da m oral aristo-
télica, em bora co n sid eran d o o p o n to de partida cristão. A m oral é
m otus ration alis crea tu ra e a d D eu m , um m ovim ento da criatura ra cio ­
nal na d ireção de D eus. Esse m o v im en to tem co m o fim a b em -av en -
turança, que co n siste na visão im ed iata de D eus. P ortan to , o fim ú l­
tim o do h o m em é D eus, que ele alcan ça pelo co n h e cim en to , pela
co n tem p lação ; a ética de San to Tom ás tem um claro m atiz in telec-
tualista. A prim eira lei da von tad e hum ana é lex cieterna, q u a e est qu a-
si ratio Dei.
A filosofia do Estado de Santo Tom ás está subordinada à Política
de A ristóteles. O hom em é por natureza an im al socialc ou politicum , e a
sociedade existe para o indivíduo, e não o inverso. O poder deriva de
Deus. Santo Tomás estuda os possíveis tipos de governo e considera o
m elhor a m onarquia m oderada por um a am pla participação do povo,
e o pior, a tirania. Em todo caso, a autoridade su perior é a da Igreja.
A a co lh id a do to m ism o • O sistem a de Santo Tom ás significava
uma inovação radical dentro da Escolástica. Sua oposição a grande n ú ­
m ero de doutrinas p lalô n ico -ag o stin ian as e o evidente p red om ín io do

186
O S F IL Ó S O F O S M ED IEV A IS

■lir.io iclism o despertaram a hostilidade dos franciscanos. Até m esm o


.i Ij m i m s d om inican os op u nh am -se ao tom ism o.
O s prim eiros ataques são escritos; os p rin cip ais, os de G u ilh er­
me de la Mare e de R icardo de M ediavilla, referem -se, sobretud o, à
h i Mi,i da unidade das form as substanciais. M as depois vêm as co n d e­
nações oficiais. A prim eira, em 1 2 7 7 , é a do bisp o de Paris, Estevão
li mpicr, que afetou algum as das proposições tom istas; esta con d en a-
•.ui restrita à diocese parisien se, estendeu-se depois a O xford, com
" . dois arcebispos de C anterbury, R oberto Kilw ardby (d om in ican o) e
|"lm Peckham (franciscano).
Ao m esm o tem po, co n tu d o , e co m m ais força, ocorre a acolhida
n im ilal do tom ism o, em prim eiro lugar, na O rd em dos Pregadores,
........ .eguida na U niversidade de Paris e logo em todas as escolas. Em
I i.' Santo Tom ás foi can o n izad o , e desde então até h oje a Igreja vem
iir.istin d o no grande valor do sistem a tom ista.
O n co to m ism o • A influ ência de Santo Tom ás na teologia e na
liloMilia não co n h eceu in terru p ção ; desde sua m o rte m ultiplicaram -
•e o', com en tários à S u m m a theologica e às dem ais obras de Santo To-
iii.e. a teo lo g ia em p a rtic u la r d esfru to u a im en sa c o n trib u iç ã o to ­
m e .ta, que lhe deu um a estru tu ra sistem ática precisa e rigorosa. No
entanto, depois da Idade M édia e do passageiro esp len d or da E sco ­
la a a a espanhola no sécu lo X V I, o p ensam ento tom ista perdeu fecu n ­
didade. Na segunda m etade do sécu lo X IX , in icia-se um m ovim ento
intelectual m uito in ten so , vivam ente apoiado pela Igreja e particular-
II iei! 11 por Leão XIII em sua E n cíclica A etem i P atn s (1 8 7 9 ), e cultivado
ii.i Italia por Sanseverino, Tongiorgi e Taparelli, qu e tende a restaurar
■i tom ism o e a abordar os problem as trágicos e filosóficos desde seus
I 'li v.u p ostos gerais. O fruto m ais bem -su ced id o desse m ovim ento foi
i I Universidade de Louvain, inspirada e anim ada pelo cardeal Mercier.
I iitie o s principais p e n sa d o re sn eo to m ista se stã o J. M ariiain e o Pe. M a-
n i liai e na Alem anha, von H erlling e Bãumker, que tanto contribu í-
laiu para o estudo da filosofia medieval; Dyroff, Cathrein, dedicado à fi-
li iMilia moral, o psicólogo F rõbes e o historiador da filosofia Gilson.

187
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

8. R o g e r Bacon

O século XIII é quase totalm ente tom ado pela influência de Ar


tóteles e por sua grande sistem atização tomista. M as há algum as orien­
tações independentes, de grande interesse, e que se desviam da co r­
rente central da Escolástica. É o que ocorre com o av erroísm o latino, já
m encionado, que teve com o principal representante Siger de Brabante
e renovou as doutrinas árabes da eternidade do m u n d o e da unidade
do en tendim ento hum ano e, sobretudo, colocou em prim eiro plano a
famosa teoria da dupla verdade. Há, por outro lado, u m ram o da E sco­
lástica inglesa de filiação tradicional, platônico-agostiniana, mas que
se dedica de um m odo novo e intenso ao cultivo d as ciên cias experi­
m entais. Essa corrente britânica vincula-se ao grupo anglo-francês que
se estabeleceu em Chartres no sécu lo XII, que em seguida ganha novo
desenvolvim ento em O xford, onde, além da filosofia e da teologia tra­
dicionais, cultivam -se as línguas, as m atem áticas e as ciên cias da natu­
reza; a outra grande dim ensão de A ristóteles, descuidada no con tin en ­
te, é recolhida na Inglaterra e logo virá a florescer no Renascim ento eu­
ropeu. A prim eira figura im portante desse núcleo é Roberto Grossetes-
te, bispo de Lincoln, mas sobretud o Roger Bacon.
P e rso n a lid a d e • Esse pensador inglês é uma personalidade es­
tranha e fecunda; certam ente m ais do que foi, três séculos depois,
Francis Bacon. Roger nasceu por volta de 1 2 1 0 -1 4 , estudou em O x ­
ford e em Paris, entrou na O rdem F ran ciscana e se d ed icou apaixona­
dam ente ao estudo da filosofia, das línguas e das ciên cias. Dentro da
O rdem foi alvo constante de perseguições e suspeitas dos superiores;
só co n h ece u m curto período de alívio durante o p on tificad o de C le­
m ente IV (1 2 6 5 -6 8 ) , seu am igo G uido Fulcod i, que o protegeu e esti­
m ulou a co m p o r suas principais obras: Opus m ajus, Opus minus e Opus
tertium. Escreveu até 1 2 7 7 , época em que foram cond enad as por Tem-
pier várias idéias suas, e no ano seguinte foi preso, não se sabe até
quando; tam p ou co se sabe a data exata de sua m orte, que se calcula
ser por volta de 1 2 9 2 -9 4 .
Roger Bacon se dedicou a todas as ciências co n h ecid as em seu
tem po, e as co n h ece m elhor que ninguém . É um verdadeiro investi-

188
O S F IL Ó S O F O S M ED IEVA IS

ivi'l"i e experim entador. A plica a m atem ática à física, fabrica instru-


■lo 1111is ópticos, é alquim ista, astrônom o, lingüista. Estuda adem ais o
I" ii .nnenio m edieval, e em seu Opus m ajus en co n tram o s quase um a
ii ni.iiiva de história da filosofia.
D o u lrin a • Para B acon, a filosofia e as ciências não têm outro
11indo senão o de explicar a verdade revelada na Escritura: Una est
(.mm/n sapien tia p erfecta q u a e in sa cra scn p tu ra totaliter conãnetur.
I '' ii ■ensinou os hom ens a filosofar, pois, sozin hos, não teriam conse-
i'iii 111>, mas a m aldade hum ana fez com que D eus não m anifestasse
pli n.im ente as verdades e estas se m isturassem com o erro. Por isso, a
■i id.ideira sabedoria se en con tra nos prim eiros tem pos e por isso é
I<i11 iso buscá-la nos filósofos antigos. Daí a necessidade da história e
il i línguas, e das m atem áticas para a interpretação da natureza. Ba-
■mi lepresenta, p ortan to, co m o já dissem os, um tradicion alism o cientí-
tii ii. tom ando o cuidando de dar igual peso aos dois term os dessa de-
iHnninaçáo.
Bacon reconhece três m odos de saber: a autoridade, a razão e a
• ip ei i('iicia. A autoridade não basta, e requer ela m esm a o raciocínio;
iii.i'. rsic não é seguro en q u anto não for confirm ado pela experiência,
i|iu e a principal fonte de certeza. Essa exp eriên cia é dupla: externa e
mii ina A prim eira é p e r sensus exteriores, ao passo que a segunda é
....... verdadeira scientia in terior, fundada em inspiração divina. A ilu-
m m .içao de Deus, que cu lm in a no raptus, tem um papel im portante.
\ i sperim entação de B acon vincula-se num extrem o com a intenção
■>1>11 naiural da m ística.
liacon na verdade representa na filosofia e na teologia um ponto
........... . avançado que Santo Tomás, por exem plo; m as há nele um ger-
iiii novo, o do interesse pela natureza, e dele surgirá, através dos físi-
■n lian ciscan o s dos sécu lo s X IV e XV e da escola de Paris, a ciência
ii.iliii.il m oderna.

l). A filosofia cristã na E span ha

Alora os árabes e ju d eu s antes m encionad os, a filosofia não co n -


.............. grandes figuras na Idade M édia espanhola. A Espanha cristã,
......... . que exigiriam m uito tem po para expor, aparece à margem

189
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

da form ação da Escolástica; seu papel é su m am ente in teressan te, mas


secu nd ário e de transm issão, na escola de tradutores de Toledo; Do-
m inicu s G undisalvus, já citad o, é a personalidade m ais saliente desse
núcleo. M as, dentro desses lim ites, há na Espanha vários filósofos com
interesse próprio, que exerceram influência em sua ép oca e que a c o n ­
servaram - pelo m enos alguns - d urante m uitos séculos.
No sécu lo X III, Pedro de E sp an ha teve um a atu ação intensíssi-
ma. N ascido em Portugal, foi bisp o, arcebispo, cardeal e, por últim o,
Papa, co m o nom e de Jo ã o X X I. E stu d ou m ed icin a, teologia e filoso­
fia, e escreveu S u m m u lae lo g ica les, de extraord inária fam a em seu tem ­
po, que se transform aram em verdadeiro livro de texto. É autor dos
versos m n em o técn ico s da silogística e das d en o m in açõ es dos m odos
válidos do silogism o, B a r b a r a , C elaren t etc.
Tam bém tem interesse u m m éd ico e teólogo v alen cian o , Arnaldo
de V illanova, e, sobretud o, R aim u ndo Lúlio, de qu em é preciso falar
mais prolongad am ente. No sécu lo X V viveu outro teólogo e m édico
catalão, Raim undo de Sabu nd e (S íb o n d ), de qu em M ontaigne falou
longam ente, autor de um a T heología n atu ralis seu L íber d e creatu res, de
inspiração luliana.
R a im u n d o L ú lio • R aim undo Lúlio (R am ón Lhull em sua forma
catalã, n ão-latm izada) nasceu e.m M aiorca, ap arentem ente em 1 2 3 3 , e
m orreu, não se sabe se m artirizado pelos sarracen os, por volta de
1 3 1 5 . Su a ju v en tu d e foi cortesã e de “escandalosa galan teria”; mas a
im agem cle C risto cru cificad o lh e ap areceu várias vezes, e ele a b a n ­
d onou a fam ília, sua fazenda e sua pátria e se d ed icou à pregação e n ­
tre os infiéis. Sua vida é um prod igioso rom ance. Percorreu inúm eras
vezes a Itália e a França, grandes zonas da África e da Ásia, navegou
por todo o M ed iterrân eo, naufragou, foi feito p risioneiro e apedreja­
do, e dizem que chegou até a A bissínia e Tartária. Esteve o tem po todo
anim ado pelo afã ap ostólico, com exaltad o fervor.
Para a conversão dos infiéis, aprendeu árabe e se d ed icou à lógi­
ca. Estudou as ciên cias, foi m ístico e poeta. Escreveu em catalão e em
latim , e tam bém em árabe um a num erosa série de livros. O s p rin ci­
pais são os seguintes: L ibre de c o n tem p la d o en D èu, A rt ab reu ja d a
d ’a tr o b a r veritat (Ars co m p en d iosa inveniendi veritatem seu Ars m agna et

190
I

O S FILÓ SO FO S MEDIEVAIS

íiiii/ní), l.iher de ascensu et descensu intellectus, Ars g en eralis ultim a, e o


In m m isiico intitulado Libre d e am ic e am at, que faz parte de seu ro-
iii,nu c lilosófico B lanquerna.
i ) pensador de M aiorca considera que a co n versão dos infiéis
i'Mj',1' ,i prova racional da verdade cristã; acred ita que a razão pode e
i li-vi- d rm o n strar tudo; nas m ãos de Lúlio a filosofia se torna apologé-
in ■' Raim undo Lúlio im aginou um p roced im ento para en con trar a
' . li I.hIl- e prová-la au tom aticam ente: é a cham ad a Ars m agna. C onsis-
i' u iiina com plexa com binação de conceitos, relativos sobretudo a Deus
■ .1 .ilma, que form am tábuas passíveis de serem m anejad as com o um
.iiiibolisino m atem ático para achar e d em onstrar os atribu tos de Deus
•11 I ssas táb u as, c u jo m a n e jo é d ifícil de co m p re e n d e r, m u ltip li-
■, 11.1111 se e c o m p lic a ra m -se cad a vez m ais. Essa id éia de c o n stru ir
i lilnsolia de m odo dedutivo e quase m atem ático m ediante um a co m -
liin .içâo geral e x e rce u forte atração so b re o u tro s p e n sa d o re s, em
Ii,i 11u iilar so b re L eib n iz; m as o valor filo só fic o d essas ten tativ as é
111, 11-, q u e p ro b lem á tico .
0 grande inLeresse de Lúlio é sua estranha e poderosa personali-
il.uli-, foi cham ad o D octor ilu m in ado e despertou grande adm iração,
■'ii,i lo n n a ção é claram ente franciscana, co m um a base platônica e
irn sim ian a e uma cu lm in ação na m ística. A ssinalou -se acertad am en-
ic d parentesco espiritual de R ogério Bacon co m Raim undo Lúlio. O s
ilnis cultivam as ciên cias e as línguas orientais, co m os m esm os fins
ili rv.m gelização e renovação da cristandade. N os d ois há uma clara
I ii im azia do saber teológ ico, e mais ainda m ístico , sobre qu alqu er ou-
n.i rièn cia . O s dois tem as do pensam ento fran ciscan o , a su bordina-
'..iii de io d o s os co n h ecim en to s à teologia e a m archa da m ente in d i­
vidual rum o a D eus, estão presentes na obra de Roger Bacon e na de
Iv.imumdo Lúlio. São os dois tem as que se resum em nos títulos de duas
■>1na-, de São Boaventura: D e reductione artium ad theologiam e Itinerarium
tneníis i/i Deum.

10. D u n s Escoto e O ck h a m

1)s finais dos séculos X III e X IV m arcam um a nova etapa na Es-


i nl.r-.nca, que se prolonga, em d ecad ência, no sécu lo XV. À plenitud e

191
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

do tom ism o sucede uma corren te filosófica, de preferência francisca-


na, que incorpora, com o Santo Tom ás, a filosofia aristotélica, mas que
adquire características voluntaristas e nom inalistas cada vez mais acen ­
tuadas. C om esses pensadores se chega ao extrem o da evolução dialé­
tica dos grandes problem as da filosofia m edieval; vim os acim a a posi­
ção que representam no tocante às três questões da criação, dos u ni­
versais e do lógos. Indicarem os agora os m om entos m ais im portantes
da filosofia dos dois grandes franciscanos ingleses Jo ã o D uns Escoto e
G uilherm e de O ckham .

a) D u ns Escoto

V ida e o b ras • Nasceu nas Ilhas Britânicas, m uito provavelmente


na Escócia, em 1 266. Entrou na O rdem de São Francisco; estudou e le­
cionou em O xford; em 1 3 0 4 foi para Paris; em 1 3 0 8 , para Colônia, e ali
m orreu nesse mesmo ano, ainda m uito jovem . Escoto é um dos poucos
filósofos precoces da história; a filosofia, salvo exceções com o a sua ou
a de Schelling, costum a exigir a plena maturidade. Duns Escoto foi des­
de cedo um caso de genialidade filosófica e dem onstrou um espírito
agudíssimo e penetrante, que lhe valeu o nom e de D octor subtilis. Foi
defensor do dogma atual da Imaculada C oncepção da Virgem.
Várias das obras tradicionais atribuídas a D uns E scoto não são
autênticas. As mais im portantes entre as seguras são Opus oxoniense,
sobretudo, e o tratado D e p rim o rem m om nium principio.
F ilo s o fia e te o lo g ia • A situação de equilíbrio em que as duas
disciplinas aparecem em Santo Tomás vai se romper. A distância entre
a filosofia e a teologia é m uito m aior em Escoto, e o será mais ainda
em O ckh am . Não diferem só por seu objeto fo r m a l, m as tam bém por
seu objeto m aterial. A teologia se reduz ao que nos é dado por revela­
ção, de um m odo sobren atu ral, em contrapartida, tudo o que a razão
entende n atu ralm en te é assunto da filosofia. A história do final da Ida­
de M édia e da época m oderna será a progressiva d issociação entre o
mundo da natureza e o da graça, e o esquecim ento do velho princípio:
g ra tia n atu ram non tollit, sed perficit. A teologia não é especulativa, e
sim prática. Desaparece cada vez m ais a theologia rationis para dar lu­
gar exclusivam ente à theologia fid e i. Logo a ratio, o lógos, se afasta to­
talm ente do theós.

192
t
I

O S FILÓ SO FO S MEDIEVAIS

Issa atitude, no entanto, não deve ser confundida com a teoria


ii i dupla verdade, de lm hagem averroísta, já que a verdade revelada
•1.1 h nlngia m antém o lugar principal e oferece uma certeza sobrena-
ihi.iI I a im possibilidade de penetrar racionalm ente o m istério de
I v iis c|ue separa a filosofia do saber sobre a Divindade.
A m etafísica e sc o tista • Duns Escoto distingue - são sempre inu-
...... aveis e sutis suas d istinções - três tipos de m atéria-prim a: a m a te-
iiii /n im o prim a, indeterm inada, mas com um a certa realidade, com o
11■ ' 11 i.ido; a m atéria secun do p r im a , que possui os atributos da quan-
i idade c já supõe a inform ação por um a form a corporal, e, por últi-
, .1 m atéria tertio p rim a, que é m atéria para as m odificações dos en-
ii que já são corporais.
l’or outro lado, tam bém as fo rm a s são várias, e Duns Escoto dis-
11ni’,iu- cn lre a res e as fo rm a lita tes que a constituem . Já vim os o papel
d i".tas form alitates, em especial da haecceitas, e da distinção formal a
1'iiiti' rei para a interp retação do problem a dos universais.
Duns Escoto adm ite o argum ento on tológico de Santo Anselm o
Imi ,i dem onstrar a existência de Deus, com algumas m odificações, que
' li |mis loram recolhidas por Leibniz; se D eus é possível, existe; é pre-
■isii dem onstrar prim eiro sua possibilidade, e esta é provada em Duns
I <m o - com o em Leibniz - por sua im possibilidade de contrad ição,
|.i que em D eus não existe nada negativo. D eus, com o ens a se, é ne-
' i v.ario, e sua essência coincide com sua existência; portanto, sua p o s­
sibilidade im plica sua realidade. É isso que D uns Escoto cham ava co-
Liitin ista ratio A nselm i d e sum m o cogitabile.
Duns Escoto, diferentem ente de Santo Tomás, é voluntarista. Afir-
mi. i ,i primazia da vontade sobre o co n h ecim en to ; e isso em todas as
■111li-ns; a vontade não é passiva, mas sim a tiv a ; não é determ inada
I ii H uma necessidade ( voluntas nihil de necessitate vult): sua im portân-
■ i.i m oral é superior, e por isso o am or é su perior à fé, e vale mais
.1ui,n Deus que co n h ecê-lo , e inversam ente: a perversão da vontade é
iii,iis grave que a do entend im ento. Todas essas tendências escotistas
\ uai) a ad qu irir sua m áxim a agudeza nos sécu lo s seguintes e d eter­
m inarão a passagem da Idade Média para o R enascim ento. Irem os en -
11m irando suas co n seqü ên cias nas páginas que se seguem.

193
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

b) O ckham

S u a p e rso n a lid a d e • G uilherm e de O ck h am nasceu na Inglater­


ra, talvez na cidade cu jo nom e leva, no final do século X III, entre 1 2 8 0
e 1 2 9 0 . Foi tam bém franciscano, estudou em O xford , onde foi pro­
fessor, e em seguida em Paris. A pós um a grande atividade científica,
envolveu-se em questões p olíticas e religiosas, e algum as de suas pro­
p osições foram condenadas. N o século XIV com eçava a se dissolver a
grande estrutura medieval; a luta entre o Pontificado e o Im pério es­
tava novam ente deüagrada. O ck h am tom ou partido do im perador e
foi excom ungado por Jo ão X X II por causa de sua postura na questão
dos direitos tem porais. Refugiou-se na corte do im perador Luís da
Baviera, a quem disse a famosa frase: Tu m e defen das gladio, ego te d e­
fe n d a m ca lam o. M orreu em M unique em 1 3 5 0 .
A lém de suas obras p o lítico-eclesiásticas ( Q uaestiones octo de auc-
ton ta te su m m i pontificis, C om pen diu m erroru m Joa n n ís p a p a e XXII, Bre-
viloquium d e potestate p a p a e e tc.), escreveu S uper IV Libros Sententia-
rum, Q u odlibeta septem , C entiloquium T heologicum , D e sa cram en to alta-
ris, S u m m a totius logicae e com entários de Aristóteles.
A filo s o fia de O ck h a m • Tudo o que está ap o n tad o em Duns
Escoto é levado ao extrem o p o r O ck h am . As te n d ên cia s cu jo germ e
aquele in d ica, este as desenvolve até suas últim as co n seqü ên cias. Em
prim eiro lugar, leva ao m áxim o a distância entre a teologia e a física.
A prim eira tem uma extensão ainda m aior, m as não co m o ciên cia ra­
cional; as verdades da fé sâo inacessíveis à razão, e a filosofia nada
tem a fazer com elas. A ciên cia é cognitio v era sed du bitabilis n a ta fie r i
evidens p e r discursum . D eus não é razão; esta é algo que só tem valor
“no foro ín tim o ” do hom em . D eus é onipotência, livre-arbítrio, vonta­
de sem travas, n em sequer as da razão; o volu ntarism o de D uns Es­
coto se transform a nessa posição que exclu i a razão da D ivindade e,
p ortanto, su b trai esta da esp ecu lação racio n al do h o m em . D eus d e­
saparece do horizonte intelectual e deixa de ser o b jeto próprio da
m ente, co m o era na Idade M édia até então. N esse m om en to com eça
o processo que se pode cham ar de a p erd a d e D eus, cu jas etapas são as
da ép oca m od erna.

194
O S FILÓ SO FO S MFD1EVAIS

iii» iiu an ic à questão dos universais, co m o já vim os anierior-


!(>• "n i ), I- |i;im é n om in alista; não têm realidade nem nas coisas nem
it>i nu i ui- divina, com o exem plares eternos das coisas; são abstrações
il' ■ |mi nu hum ano, co n ceito s ou term os: conceptus mentis significans
1111111*i i pln m singularia. A ciên cia trata dos universais e, portanto, não
i . ......... . tlr coisas, m as só de signos ou sím bo lo s; isso prepara o auge
d " |n ir..ii m atem ático do R enascim ento.
' '■ I liam é, portanto, o extrem o da Lendência franciscana da filo-
............... clu-val. O hom em , cindido do m u ndo desde o cristianism o,
li. i sem Deus. “Portanto, só, sem m u ndo e sem Deus - escreve
■ ui ui i , o espírito hum ano com eça a se sen tir inseguro no universo.”
■\ |>m111 de então, e ao longo dos séculos da m odernidade, o hom em
■, ii |ii11In da filosofia, antes de qualquer coisa, segurança. A filosofia m o-
•li ma r-.lá movida pela precaução, pela cautela, m ais pelo m edo ao
. nu qiu- pelo afã da verdade.

I I . Mestre Eckhart

A grande figura de m estre Eckhart é mal conhecid a e m al estu-


>I I i I uma das personalidades m ais geniais da filosofia m edieval;
11i.i a-, dificuldades de sua interpretação são m uito grandes. Não po-
<li i ui f. i-iurar aqui no estudo de seu pensam ento. Basta indicar seu
Iiiimi i- alertar para o fato de que é um elem en to essencial para co m -
lei a filosofia m edieval e a passagem para a m oderna.
I t kliart nasceu em 1 2 6 0 , provavelm ente em G otha; foi dom ini-
i ....... i alvez discípulo direto de Alberto M agno. Lecionou teologia em
I 'Mi no mesmo período que D uns E sco to, n o princípio do século
-.IV I ogo ocupou cargos na ordem d om inicana e foi grande prega-
i li n ( i'. Iianciscanos abriram um processo contra ele, que foi acusado
ili p.m ieism o e averroísm o. Em 1 3 2 9 , dois anos depois de sua m orte,
' .Mia-, de suas proposições foram condenadas. “Mas nada mais distan-
i. ili I i kliaii -e s c re v e Z u b ir i- q u e o panteísm o que com inaudita pre-
i i|ui.ii.ao lhe foi atribu íd o .” E ckh art deixou m u itos serm ões em ale-
iii.ii 11- diversas obras latinas. Sua m ística especulativa influenciou pro-
linulam ente o desenvolvim ento de toda a m ística alem ã e tam bém da

195
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

flam enga e francesa do sécu lo XY ; e, de m odo direto, está presente nos


grandes m ísticos esp an h óis do século XVI.
Já vim os o sentid o de sua doutrina da scintilla a n im a e, da ce n te­
lha da alm a, incriada e incriáv el, e com o n ão há panteísm o em sua
afirm ação, m as sim a co n v icção , rigorosam ente orto d o xa, de que a
id éia do hom em , seu m od elo exem plar, do qual é im agem , é Deus ele
m esm o. D eus está além do ser; chega a dizer que é um pu ro n ad a, para
m arcar sua radical m fin itu d e e superioridade so bre todas as essências.
O cam in h o para chegar a D eus é a própria alm a, e E ck h art bu sca o re­
tiro e o isolam ento.
“Sem Eckhart seria totalm ente inexplicável a origem da filosofia
m oderna. Fazer esta brotar de Cusa ou de O ckham é uma im precisão
fácil. Tudo indica que o nom inalism o de O ckham seria incapaz de ter
gestado em sua dom inante negatividade o princípio positivo que N ico-
lau de Cusa viria a extrair.” “E a dificuldade de en tend er Eckhart é mais
grave do que parece à prim eira vista, não só porque ainda não se co ­
nh ecem todos seus escritos latinos, mas porque um a visão leal do pro­
blem a nos obrigaria a um a reinterpretação total da m etafísica m edie­
val.” “Veríam os então em Eckhart um pensam ento genial, que não co n ­
segue expressar em co n ceito s e term os de Escola novas intuições m eta­
físicas, antípodas, em m uitos sentidos, do agosrinism o e da Reforma.
Para Santo Agostinho é problem a o m undo, porque acreditou saber
quem é Deus. Para Eckhart é problem a Deus, talvez porque tenha acre­
ditado saber o que é o m undo. Por outro lado, enquanto a Reforma
apela para o indivíduo, E ckh art recorre ao retiro da vida interior, algo
que provavelm ente se acha a duzentas léguas de todo o m ovim ento lu­
terano. Som ente dessa m aneira saberem os o que é especulação e o que
é m ística em Eckhart, e em que consiste sua radical unidade" (Zubiri).

12. A última f a s e da filosofia medieval

D epois de O ck ham e de E ck h art, a filosofia m edieval inicia uma


d ecad ência rápida, d om inada pela com p licação crescen te de suas dis­
tin ções e pela dispersão em qu estões acessórias. Mas seria um erro crer
que tudo term ina em m eados do século XIV, e por outro lado que a

196
O S F IL Ó S O F O S M ED IE V A IS

i |ii i ulaçao do final desse século e do segu inte não con tém elem en -
iiI-. Iri m ídos, qu e d epois vão atuar na filosofia m oderna. Interessa,
............ iar nos co m p lex o s problem as que essa ép oca suscita, assinalar
ni imi-nios e as figuras capitais dessa etapa final em que a Escolás-
........ .. ia em crise.
( )s o c k h a m ista s • Na Inglaterra e na F ran ça, sobretud o, o ock a-
................. rapidam ente aceito e tem um a série de argutos cultivadores,
............... quais o d o m in ican o inglês R oberto H olkot, con tem porân eo
ili i >< Idiain, e so bretu d o o m estre parisiense N icolau de A utrecourt,
In-i ii.im ente posterior, espírito crítico que às vezes se aproxim a do
i i 111usino latino. T am bém é seu d iscípulo o cardeal Pierre d’Ailly
i I '■'.() 1 4 2 0 ), que cu ltivou a cosm ografia, e cu ja Im ago m undi teve
....... m lluencia decisiva sobre as idéias de C olo m b o a respeito da es-
li i u uladc da Terra, que o levaram ao d esco brim en to do Novo M un-
>1" I hscipulo do cardeal e su cessor seu co m o ch an celer da U niversi-
il.nli dr Paris loi Jo ã o G erson ( 1 3 6 3 -1 4 2 9 ) , um a das figuras m ais im -
l"'M ,m ii‘s do século XV, que acabou se voltand o para a m ística.
Por outro lado, os nom inalistas franceses cultivam com grande
inii ir.idade as ciên cias da natureza e, a rigor, antecipam boa parte das
ili .i n liriia s dos físicos do R enascim ento. Jo ã o Buridan, que viveu na
I 'Miiii iia metade do sécu lo XIV; Alberto de Saxô n ia, m orto em 1 3 9 0 ,
.nlueiud o, N icolau de O resm e, que m orreu em 1 3 8 2 , são os prin-
• 11mis ockham istas cien tífico s” segundo a d en om in ação de G ilson.
In iil.m de O resm e, b isp o de Lisieux, que escreveu em latim e em
li uh i">. an tecip and o-se nisso a D escartes, foi um pensador de grande
•l< i.iqtic, que fez avançar consid eravelm ente a física e a astronom ia.
I i leveu o tratado D e dxjform itate qualitatum , Traité de la sp h ère e c o ­
m e i ii.m o s à s o bras físicas de Aristóteles.
( ) iiv erro ísm o • O m ovim ento filosófico cham ad o de averroís-
......I.ii mo, iniciado n o século X III, prossegue até o final da Idade M é-
i li.i i -1 o n im u a a rep ercu tir no R enascim ento. Pode-se dizer que co n s-
iii um uma corrente filosófica independente da Escolástica, em bora em
■i Mii.i ivlação com seus problem as. A figura m ais im portante do aver-
ii ii , m u latino é Siger de Brabante, que viveu no século XIII e se apoiou
11. 1-. ensinam entos aristotélicos interpretados por Averróis. Para Siger

197
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

de Brabante, que teve m uitas de suas proposições cond enad as, a eter­
nidade do m undo e a unidade do entend im ento h u m ano são tais que
só há um intelecto da esp écie, e desaparece a cren ça na im ortalidade
do h om em individual. Tam bém é de origem averroísta latina a d outri­
na da du pla verdade, segundo a qual uma m esm a proposição pode ser
verdadeira em teologia e falsa em filosofia, ou vice-versa.
No sécu lo XIV, Jo â o d e ja n d u n (m orto em 1 3 2 8 ) con tin u a a ten­
dência averroísta, ainda m ais exagerada, su blinhan d o a dependência
em relação ao filósofo cord obês. C onced e prim azia à filosofia, e a ela
atribui prim ariam ente a verdade.
A m ística esp eculativa • Influenciados por mestre Eckhart acham-
se vários im portantes m ísticos do século XIV, sobretu d o na Alemanha
e nos Países Baixos, que m antêm relação com os franceses, com o o
m encionad o G erson e D ionísio, o Cartuxo. Esses m ístico s, inspirado­
res m ais ou m enos diretos da renovação religiosa do sécu lo XV, so bre­
tudo da cham ada devotio m o d ern a , precursora do R enascim ento, são
p rincipalm ente Jo ão Tauler (1 3 0 0 -6 1 ) , H enrique Suso ( 1 3 0 0 -6 5 ) e
Jo ã o R uysbroeck ( 1 2 9 3 - 1 3 8 1 ) , e o autor d esco n hecid o de Theologia
deutsch, que tanto influenciou Lutero. Desses grupos religiosos nas­
cem os estím ulos que inspirarão a vida espiritual do século XVI, tan­
to entre os protestantes co m o na C ontra-R eform a.
O sé c u lo X V • Na últim a centúria da Idade M édia acentua-se
decad ência da Escolástica. As p rin cipais escolas - tom ista, escotista,
ockham ista - continuam funcionando, mas sua atividade vai se tornan­
do um vão form alism o. Há alguns com entaristas im portantes, com o o
de Santo Tom ás, C ajetano, e os escotistas Pedro Tartareto, fam oso por
seus com entários a A ristóteles, e o belga Pedro C rockaert, d om inica­
no e p osteriorm ente tom ista, que foi professor de F ran cisco de Vitó­
ria; o escotism o perdurou até o século XVII e tem representantes
com o W adding, o célebre ed itor de Escoto, e M erinero, professor de
Alcalá. Mas o últim o escolástico im portante, cu ja obra não é sim ples
exegese ou ensino, é o ockham ista Gabriel Biel (1 4 2 5 -9 5 ). A renovação
da E scolástica na Espanha no sécu lo XVI tem um caráter distinto e
abertam ente influenciado pelo R enascim ento.

198
O S F IL Ó S O F O S M EDIEVA IS

Vimos os cam inhos percorridos pela filosofia medieval. Passa-


■......... uma breve vista d’o lh o s em sua im ensa riqueza, su ficien te para
...... i|>ivmder os radicais problem as que su scitou e a profundidade
■ i nipl.ir com que os sou be abordar. A cabam os de ver, por outro
I.iiIn. i|iu' a filosofia m edieval não se esgota - afinal, o que poderia
■11ii u i dizer isso? - e que seu final aponta para algo novo. É um final,
|Miti|iii' e ao m esm o tem po um co m eço , e nisso que agora com eça
i im im uará se realizando.
A lilosofia m od erna não surge do nada. Tam pouco nasce, com o
i lirp m a crer o superficial pensam ento dos hum anistas, de uma rea-
.......... I scolástica para voltar aos gregos e latinos, sobretud o a Platão e
. 1,11 estóicos. Na verdade, foi o contrário. O s filósofos gregos - dos la-
i ii ii |l o u c o há o que dizer - atingiram um a nova eficácia na Escolás-
II, .1 c a suposta restauração dos hum anistas foi um obstáculo e um
ii i mi esso, que durou até surgir a autêntica filosofia m oderna, de Des-
>.iiirs a Leibniz, na qual a E scolástica encontra sua verdadeira co n ti-
iiiI.ii.,io, mais que em nenhum outro “R enascim ento”, e com ela o pen-
.,iiiin iio vivo dos gregos.
I \-sde Platão e A ristóteles - e m esm o desde Parm êm des - até
I V m artes e Leibniz e em seguida Kant e H egel, e ainda depois deles
11.1 mna linha ininterru pta ligando os problem as e a verdade, em bora
i il \i . não o tem po; e essa linha é, nem m ais nem m enos, a da histó-
11.1 (la lilosofia.

199
Filosofia m oderna
O Renascimento

I. O MUNDO RENASCENTISTA

I. O contexto espiritual

No final da Idade M édia a situação religiosa em que o hom em vi-


\i , i i ornara-se problem ática. A teologia estava em profunda crise, com
..... .. lestaque cada vez m aior para o aspecto sobrenatural, e por isso se
li h iiava m ística. Além disso, tam bém estava em situação igualm ente
' ni h ,i toda a organização m edieval, a Igreja e o Im pério. O poder -
|icdiT quase espiritual, m ais que tem poral - do Im pério esfacelara-se
i i nm eçavam a nascer as nações. Surge a preocupação com o Estado.
No Renascim ento vão aparecendo todos os seus teóricos, de diversas
linhagens, de M aquiavel a H obbes. Em geral, o problem a é abordado
11)111 o incipiente racionalism o, com esse novo uso da razão aplicada
a< ' hom em e à natureza, tem as aos quais se volta depois de renunciar
.1 Deus. E o racionalism o é anti-histórico: o vício radical do pensa-
Mn-iiio sobre a sociedade e o Estado, que são realidades históricas, em
i ■■( I. i a época m oderna. Procura-se resolver o problem a esquem atica­
m ente: D e optim o reípublicae statu, dequ e nova insula U topia, de T h o ­
mas M ore; Civitas Solis, de C am panella; e depois, L ev iatã, de H obbes.
A m ística floresce em Flandres e depois na França e no resto da
I ui opa. Vive-se em com u nid ades que cultivam um a nova religiosida-
ili- Sente-se aversão à teologia. Não im porta saber, só sentir e fazer:
'M ais vale sentir a com p u n ção que saber d efin i-la.” Em Flandres, o fi­
nal da Idade M édia, em arte assim com o em tudo, já é R enascim ento;
o--, irm ãos Van Eyck, por exem plo. Na m ística, R uysbroeck; na Fran-
i..i, D ionísio, o C artu xo, Jo ã o G erson; na A lem anha, Suso, Tauler, To­
ma:. de Kempis.

203
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

C om uma evidente inspiração franciscana, co m eça-se a desci >


brir a natureza. Do am or pelas coisas de São Fran cisco de Assis ao nu
m inalism o dos filósofos franciscanos, produtor do p ensam ento mau-
rnático, tudo leva ao interesse pela natureza. Um nom e: Petrarca, que
sobe com propósitos de contem plação ao alto de um a m ontanha, m;is,
uma vez no topo, com o ainda não sabe olhar m uito b em , põe-se a lei
Santo A gostinho.
Alguns títulos de livros, m uito eloqüentes, indicam essa linha di
visória entre duas épocas; Petrarca (e m uitos outros): De contem pl 11
mundi\ Agrippa: De incertitudine et van ilate scientiarum\ Nicolau de
Cusa: D e d octa ígnorantia. Pouco depois, Francis Bacon escreve: No-
vum O rganum , título de am anhecer contra os do poente; De dignitate rl
augm entis scientiarum , de Bacon tam bém , com o réplica ao de Agrippa,
e o mais triunfante e significativo: De interpretatíone n atu rae et regno ho-
minis. A im pressão do “outono” logo se dissipa e, em seu lugar, começa
a se im por, triunfante, a consciência do “R enascim ento”.
A parece o hum anism o, que prolifera abu ndantem ente. Chegam
ao O cid en te os livros gregos e latinos; a devoção pelo antigo chega ao
extrem o, por certo sem critério e sem que se saiba m uito bem o que é
cada coisa. A Escolástica é atacada. O hum anism o se liga à nova reli­
giosidade, co m a con sciên cia de que é preciso uma reform a; essa idéia
ainda é orto d o xa; logo deixará de sê-lo e se transform ará na Reforma
luterana.
O interesse pela natureza transcende sua própria esfera. O h
m em não se contenta mais em se voltar com afinco ao natural; procu­
ra im por esse caráter a todas as coisas. Haverá não só um a ciência n a­
tural, m as um direito natural, um a religião natural, um a m oral natu­
ral, um natu ralism o hum ano. Q ue qu er dizer “religião natural”? É o
que resta da religião depois de extraírem dela todo o sobrenatural: reve­
lação, dogm a, história etc. A religião natural é o que o hom em sente
por sua p rópria natureza, um D eus, não com o o Deus pessoal do dog­
ma cristão, m as um a idéia de D eus. O direito natural, a m oral natural
são os que com p etem ao hom em pelo m ero fato de ser h om em . Trata-
se de algo fora da história e fora, sobretudo, da graça.
Portanto, no Renascimento m uitas coisas são feitas. D escobrim en­
tos que am pliam o m undo, co m o os dos espanhóis e portugueses, so-

204
0 M U N D O RE N A SC E N TIST A

I'" iiuln invenções, com o a im prensa, as arm as de fogo e uma série


ili ii ' im as superiores às m edievais; p olítica realista das novas nacio-
ii.ilul.uli-s, com o a de Fernando, o Católico, ou I.uís XI, e teorias do Es-
t.iilo, liim tu r a hum anística em hom latim e nas línguas vulgares; m o-
' il miMica; uma arte que abandona o gótico e restaura os estilos anti-
r.' ■■■ lam bem se cultiva bastante um a coisa que cham am filosofia. Mas
i il' i pena exam iná-la com m ais vagar. Tem os de distinguir na filoso-
li i icnascentista dois aspectos diferentes: um deles é a massa do pen-
. iim iuo dos séculos XV e XV I, que se apresenta co m as característi-
•■i1■i ipicas do “R enascim ento”, ou seja, oposição à Idade Média e res-
i.iiii ação - renascim ento - da antiguidade; o outro é a corrente, talvez
n in in s visível, mas mais profunda, que dá continuidade à autêntica fi­
lo i »1ia medieval e atinge a plena m aturidade em D escartes. Aqui, na-
im alm ente, não há ruptura m as um levar às últim as conseqüências a
ili.ili-lica interna dos problem as filosóficos m edievais.
Os hum anistas, os pensadores da Academ ia Platônica de F lo ren -
' .i. I undada em 1 4 4 0 , os da Academ ia R om ana, todos aqueles em be-
iiilns do caudal clássico procedente sobretudo do Im pério Bizantino
• ui ruínas, de Lorenzo Valia a Luis Vives, propõem -se, em prim eiro
lii)',;ii\ d escartar a E sco lástica e restau rar a filoso fia dos antigos. No
• i ii.into, esquecem que a E scolástica estava fundada em grande m edi-
<1.1 nos escritos platônicos e n eoplatônicos e, sobretud o, em A ristóte-
li \ lilósofo antigo. Q ue quer dizer isso? A verdade é que o A ristóteles
ila Iescolástica não interessava m uito. Estava latinizado - em um im ­
puro latim medieval - e, adem ais, passara pela teologia. Estava cheio
de silogism os e distinções, que tinham se m u ltiplicado nas m ãos dos
li.u lcs medievais. Não era isso o interessante do m u ndo antigo. M ui-
11> m elh or era Platão, que perm itia falar da alm a e do am or e escrevia
ui mi grego tão perfeito. E algo ainda m elhor: os estóicos. Esses ti-
nluiin todas as vantagens: ocupavam -se de preferência do hom em - e
i1>■->(i se ajustava ao hum anism o e à preocu pação geral do R enascim en-
io em escritos cheios de dignidade e de nobreza; m ostravam e x e m ­
plos de vida sossegada e serena, cheia de m esura, sem o frenesi dos
u liiin o s tem pos m edievais; e, sobretud o, faziam toda a sua filosofia
j'i ia r em torno do conceito mais benquisto: a natureza. Viver segundo

205
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

a natureza, isso é que era preciso. Pouco im portava que a natureza es


tóica, a physis, se parecesse bem pou co com a renascentista; tam pouco
que, durante muito tem po, a palavra n atureza tivesse sido equiparadn
à palavra graça. Não era necessário entrar em distinções tão sutis.
Essa filosofia do R enascim ento se caracteriza por um a consideni
vel falta de p recisão e rigor. Se a com p ararm os com os b o n s m om en ­
tos da E scolástica, a inferioridade é evidente, e não seria exagero coti
siderar negativam ente o R enascim ento na filosofia. A interpretação dos
antigos é extrem am ente superficial e falsa. Citam -se co m o grandes !i-
lósofos C ícero e Q uintiliano, que são equiparados a Platão, sem dis­
tinguir hierarquias. A visão do platon ism o, fundam entalm ente neo-
platônica, e a de Aristóteles carecem de sentido filosófico e histórico. A
época renascentista não é, de m odo n enhu m , um período m etafísico
criativo. A inda não se pensou de form a plena a situação ontológica
desse m u ndo habitad o pelo hom em racional e afastado de D eus que a
Idade M édia n o s deixou. O hom em não se indagou seriam ente sobre
sua nova situação intelectual. Isso só virá a ocorrer nos prim eiros d e­
cên io s do sécu lo X V II por obra de D escartes, reto m an d o a tradição
m etafísica ap aren tem en te in terro m p id a. A m od ern id ad e vai então
p en sar m etafisicam en te seus p ró p rio s p ressu p osto s; e isso é o car-
tesianism o.

2 . O pensam ento humanista

Itá lia • O R enascim ento com eça na Itália. Alguns, correndo o ris­
co de pôr a perder qu alqu er significação precisa desse co n ceito , qui­
seram re m etê-lo para fins do sécu lo X III, chegand o a in clu ir D ante.
É um exag ero ; m as P etrarca ( 1 3 0 4 - 7 4 ) já rep resen ta u m a prim eira
versão do hom em renascentista. No sécu lo XV surge um grande foco,
m ais literário que filosófico, na corte de Cosm e de M édicis, em F lo ­
rença, e aparece a Academ ia P latônica, com figuras de hum anistas
co m o o cardeal grego Bessarion, M arsílio F icin o , Pico delia M iran-
dola etc. Há tam bém “aristotélicos” na Itália, que reivindicam um
A ristóteles bastante desfigurado, co m o H erm olao Bárbaro e Pietro
Pom ponazzi.

206
O M U N D O R E N A SC E N TIST A

l Iiti grupo separado, m as co m estreitos vínculos, é form ado pe-


li ■. u-oricos da política e do Estado. Em prim eiro lugar, o arguto secre-
I,ii ui llorentino Nicolau M aquiavel ( 1 4 6 9 -1 5 2 7 ) , que expôs em seu
/'um ip e a teoria de um Estado que não se subordina a nenhum a ins-
i ii ii ia superior, nem religiosa, nem moral. Tam bém Campanella (1 5 6 8 -
I ii W), frei calabrês, escreveu seu Civilas Solis, um a utopia de tendên-
i i.i socialista, inspirada, co m o todos os livros desse tipo, na R epública
•I' Platão. Mas seu Estado é um a m onarquia universal, de caráter teo-
i i .ii ico, co m a autoridade papal no alto.
Entre os pensadores renascentistas italianos de orientação natu-
i.ilr.ia en co n tram -se, sobretud o, o grande artista e físico Leonardo da
\ nu i ( 1 4 5 2 - 1 5 1 9 ) e B ernardino Telesio ( 1 5 0 8 - 8 8 ) , que se dedicou ao
i .indo das ciências naturais e fundou um vitalism o de base física. As-
iiii se prepara o cam inho para a fundação da ciência natural m o d er­
na, que teria na Itália a figura genial de G alileu.
F ra n ç a • O R enascim ento francês tem um a tendência m arcada-
iiu-iite cética. É o caso de M ichel de M ontaigne, autor dos Essais, mais
notáveis por sua agudeza e engenho literário que pela profundidade
lilosófica. A critica de M ontaigne, d ebochada e penetrante, em bora
11p erficial, teve grande influência, que se m anteve até o Ilum inism o.
i > cético m ais extrem ado é C harron. Q uanto ao m ovim ento antiaris-
lo iélico e de oposição à E scolástica, sua principal figura na França é
1’ic-rre de la Ram ée, cham ad o Petrus Ram us, que atacou v iolentam en­
te- a filosofia aristotélica e acabou aderindo ao calvinism o. O h um anis­
mo rapidam ente estabeleceu relações com a R eform a, com o tam bém
ocorre co m o grande h elenista Enrique Estienne (Stephanus) ou com
|uan de Valdés na Espanha.
E sp a n h a • Além da atividade puram ente literária, o R enasci­
m ento tem na Espanha representantes característicos, e dos mais im ­
portantes. Em bora isso às vezes tenha sido qu estionad o, a cultura es­
panhola foi afetada pelas correntes renascentistas; aparecem aqui,
co m o em toda a Europa, a preocupação estética, o interesse pela lín ­
gua vulgar - Valdés - . pelas línguas e literaturas clássicas - a U niver­
sidade C om p lu tense, C isneros, N ebrija, frei Luis de León, Árias M on-
tano, O R enascim ento esp an hol certam ente rom peu m enos que em

207
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ouiros lugares com a tradição m edieval, e por isso foi m en o s visível


No en tan to, e no que se refere ao p ensam ento filosófico, a corrente
cética está representada pelo português Francisco Sán ch ez, que escre
veu o célebre livro Quod nihil scitur. E, sobretudo, o h u m anism o an
tiescolástico, m as católico o rto d o xo, fiel ao mais su bstantivo do m u n ­
do m edieval e ao m esm o tem po ch eio do espírito do tem p o , é repre
sentado na Espanha pela grande figura de Luis Vives ( 1 4 9 2 -1 5 4 0 ) ,
que nasceu em Valência, viveu em Louvain, em Paris, na Inglaterra, e
m orreu em Bruges. Vives, am igo dos hom ens m ais egrégios de sua
época, m ais europeu que qu alqu er outro, é um pen sador m odesto,
pertencente a um núcleo h istó rico qu e não com portava u m a filosofia
de altos vôos, m as de ind ubitável penetração e interesse. Escreveu
m uito sobre q u estões de m oral e ed u cação, e seu tratado D e an im a e(
vita é um d o s livros mais vivos e agudos que o m ov im en to hum anís-
tico produziu.
Tam bém escreveram tratad os filosóficos, com um esp írito in d e­
pendente da Escolástica, Sebastián F o x M orcillo e os m éd ico s Vallés
e, sobretudo, G óm ez Pereira, au tor da A nton iana M a rg a n ta , publicada
em 1 5 5 4 , na qual há qu em tenh a en con trad o idéias análogas a algu­
mas cartesianas.
Mas o m ais im portante do p ensam ento espanhol n o s séculos
XVI e XVII não se encontra aqui, m as no esplêndido e fugaz floresci­
m ento da E sco lástica que se produz em torn o do C on cílio de Trento e
dirige filosófica e teologicam ente todo o m ovim ento da C ontra-R efor-
m a, vivificado, p o r outro lado, pela obra dos grandes m ístico s, em
particular San ta Teresa e São Jo ã o da C ruz, cu jo interesse intelectual,
em bora não estritam ente filosó fico , é m uito grande.
In g la te rra • A figura m ais interessan te do h u m anism o inglês é
Thom as M ore, ch an celer de H enrique V III decapitado por sua oposi­
ção às m edidas anglicanas do rei; recen tem ente foi can on izad o pela
Igreja. More escreveu a U topia (D e op tim o reipublicae statu d eq u e nova
insula U topia), um ideal, tam bém de tipo socialista, do E stad o, cheio
de rem in iscên cias platônicas, que foi o m ais famoso dos tratad os so­
bre esse tem a p u blicad o no R enascim en to.
H o lan d a • O m aior dos h um anistas europeus, o que encarnou
suas características com m ais p lenitud e, e ao m esm o tem p o aquele

2 0 8
O M U N D O RE N A SC E N TIST A

t(tii- obteve mais fama e teve a influência mais extensa, foi Erasm o de
l-iiitm la m . Foi um grande escrito r latino, que im pôs um estilo de pe-
i nli.it co rreção e elegância e teve im itadores e adm iradores em toda a
I lim pa, q u e sentiu por ele vivo fervor. Escreveu um a série de livros
muno lidos em todos os países, em especial o Elogio d a loucura ( Laus
■.iiiliiliae), o Enquirídion e os C olóquios. Erasm o, apesar de seu contato
i mu os reform istas, m anteve-se dentro do dogm a, em bora seu catoli-
i i .mo fosse tíbio e sem pre m esclado de ironia e crítica eclesiástica.
I i.i .mo, cô n ego e próxim o do cardinalato, não d eixo u de ser um cris-
i .i o . talvez de fé m enos profunda que a do hom em m edieval, mas de
■ p into aberto e com p reensivo. C om todas as suas lim itações e seus
inegáveis riscos, Erasm o, que representa o espírito de concórdia nu-
in.i cp o ca duríssim a e violenta, é o tipo mais acabado do hom em re-
n.iscentista.
A lem a n h a • 0 R enascim ento alemão é de grande im portância,
■i-u caráter é distinto do dos dem ais países, e talvez tenha m aior fe-
■im didade filosófica. Em vez do predom ínio do h um anism o, com sua
im d ê n cia m arcadam ente literária, o pensam ento alem ão de fins do sé-
u ilo XV e do século XVI está intim am ente ligado à m ística especulati-
\;i. Su so , Tauler, Angelus Silesius, o autor anônim o da Teologia alem ã ,
todos p ro ced em da m ística especulativa de E ckhart; tam bém os m ísti-
i os protestantes vinculam -se a essa tradição. O R enascim ento alem ão
inclui igualm ente a alquim ia, a astrologia e até a m agia. Dessa m anei-
iii. a esp eculação m ística u ne-se ao estudo das ciên cias naturais.
E n co n tram os essa m escla com p lexa, e co m ela o abandono da fi­
losofia racional e rigorosa, em Agrippa von N ettesheim , autor do livro
intitulado De incertitudine et van itate scientiarum citad o acim a. Teo-
Inisto P aracelso, m édico e filósofo singular, levou essas idéias para o
estudo d o m undo físico e do hom em , a qu em consid era um espelho
do universo. A ciência n atu ral deve a Paracelso, apesar de suas extra­
vagâncias, alguns avanços.
M aior interesse tem o pensam ento religioso e m ístico. Antes de
i udo, é claro, a teologia dos reform istas, sobretudo de Lutero, e em m e­
ntir grau de Zw inglio; mas essa questão ultrapassa nosso tem a. À Re-
lorm a v incula-se o h um anism o alem ão de M elan ch th o n e R euchlin,

209
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

por um lado, e por outro, a m ística protestante. Os m ísticos mais im ­


portantes são Sebastian Frank, Valentin Weigel e, sobretud o, Jako b
Böhm e (1 5 7 5 -1 6 2 4 ). Böhm e era sapateiro; levou urna vida recatada c
sim ples, dedicada à m edilação. Sua obra capital é a cham ada Aurora.
Tem in fluências de Paracelso e de N icolau de Cusa, e deste tom a sua
in terp retação de Deus co m o u nid ad e dos co n trário s. B öh m e é pan-
teísta; há nele um a id en tificação de D eus com o m u n d o . Sua in ­
fluência no pensam ento alem ão foi duradoura.

210
II. O COMEÇO DA FILOSOFIA MODERNA

Vamos estudar agora os m om entos m ais fecundos do pensam en-


lo ilos séculos XV e XVI, aqueles que efetivam ente prepararam o ca ­
m inho para os grandes sistem as m etafísicos m odernos, a partir de
I vscartes. Há um a linha de pensadores, d escontínua e pouco visível,
■|iu- m antém vivo o au têntico problem a filosófico ou cria as bases n e-
■cssárias para formular de m odo original e suficiente as perguntas es-
■enciais da nova m etafísica européia. Os dois pon tos fundam entais
•.ao a continuidade da tradição medieval e grega, por um lado, e a
nova idéia de natureza, por outro. Por isso incluím os nesse capítulo
m om entos aparentem ente díspares que costum am ser estudados se­
paradam ente: N icolau de Cusa e Giordano Bruno, os físicos m o d er­
nos e, em terceiro lugar, os escolásticos espanhóis do século XVI. À
I ii im eira vista, em bora os dois prim eiros pertençam à cham ada filoso-
li.i renascentista, os físicos ficam fora da filosofia e os espanhóis re­
presentam um m ovim ento de reação ante a Idade Média “superada”.
Na verdade, os físicos pensam a idéia m oderna de natureza, fundada
no nom inalism o m edieval, e, em bora sua ciência não seja filosófica,
■■eus pressupostos o são rigorosam ente; adem ais, sem o papel da nova
1isica não se pode entender bem a m etafísica idealista do século XVII.
Q uanto aos espanhóis, são principalm ente teólogos, com uma exce-
i.an ou outra, que tem por direito próprio um lugar na história da fi­
losofia; e seu escolasticism o tem o claro sentido de recolher toda a filo­
sofia m edieval e sin tetizá-la desde a altura dos novos tem p os; esse
e. sobretud o, o caso de Suárez. Não se trata de um sim ples com en tá­
rio de Santo Tomás ou de D uns Escoto, mas de um a formulação ori­

211
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ginal dos p roblem as, por h o m en s q u e não são m ais do sécu lo XIII,
mas são m ovid os pelos tem as da m od ernid ade. Caso fosse necessária
algum a prova disso, basta assinalar alguns fatos claríssim os: dessa E s­
colástica sai algo tão m odern o c o m o o direito in tern acio n al; seu n ú ­
cleo principal está form ado p o r je su íta s, os grandes h o m en s de seu
tem po; e, antes de tudo, esses p en sam en tos têm seu cen tro no C o n cí­
lio de Trento, ou seja, estão situ ad os no ponto cru cial da época m o ­
derna, na luta da Reform a e da C on tra-R eform a. E lem brem os a pro­
funda in flu ên cia, m ais ou m enos ex p lícita, de Suárez em D escartes,
Leibniz e em toda a filosofia alem ã até Hegel; sua presen ça efetiva,
portanto, em toda a m etafísica m od erna.

1. Nicolau de Cusa

P e rso n a lid a d e • N icolau C hrypffs (K rebs) nasceu em Cusa em


1 4 0 1 ; de sua cidade natal recebeu o n o m e pelo qual é co n h ecid o : Ni­
colau C usano ou de Cusa. Estudou em Pádua, ocu p ou altos cargos
eclesiásticos e foi nom eado cardeal e bispo de Brixen. M orreu em 1 4 6 4 .
N icolau de C usa escreveu vários livros de filosofia, dos quais os mais
im portantes são: D e docta ig n ora n tia, A p olog ia d octae ig n oran tiae e De
con jectu res; d estaca-se o prim eiro, su a obra-prim a.
N icolau de C usa é um dos filósofos m ais interessantes de seu
tem po. Por u m lado in clu i-se na lin h a de form ação da Escolástica,
m as ao m esm o tem po já ecoam nele os tem as que haverão de indicar
a passagem para a filosofia m oderna. D e O ckham a D escartes transcor­
rem cerca de trezentos anos, que rep resentam um a grave d escontinu i-
dade, um a en o rm e lacuna entre d ois m om en tos de plen itud e m etafí­
sica: nesse espaço encontram -se algum as m entes nas quais se m antém
o au têntico esp írito filosófico e em qu e se realizam as etapas in term e­
diárias: um a delas é a do cardeal de C usa.
F ilo s o fia • O ponto de partida de N icolau de Cusa é a m ística,
con cretam ente a de E ck h art, ou seja, a m ística especulativa. A isso se
som a um extraord inário interesse pelo m u ndo e o hábito de m anip u ­
lar con ceitos m etafísicos. É essa a via p ela qual se chega à filosofia m o­
derna. O esquem a de de Cusa é o seguinte: Deus ou o infinito; o m un-

212
O CO M EÇO DA FILO SOFIA MODERNA

iln c o hom em , ou o finito; D eus redentor, que é a união do finito e do


m lm ito. Esse tem a da união de am bos é o p on to central de sua filoso-
li.i lixisiem diversos m od os de conhecer: em prim eiro lugar, o dos
-.i-iitidos (sensus), que não nos dá uma verdade su íicien te, apenas im a­
gens; em segundo lugar, a raíio (que um idealista alem ão teria preferi­
do traduzir por en ten d im en to , V erstand), que com p reend e de m odo
abstrato e fragm entário essas im agens em sua diversidade; em tercei­
ro lugar, o intellectus (que correspon d eria, por sua vez, à razão ou Ver-
nunft), que, ajudado pela graça sobrenatural, nos leva à verdade de
I )eus. M as essa verdade n o s faz com p reend er que o infinito é im pene-
iravel, e tom am os então ciên cia de nossa ign orância; essa é a verda­
deira filosofia, a docta ign oran tia em que consiste o m ais alto saber. E
isso se vincula à idéia da teologia negativa e à situ ação geral da época.
A ratio perm anece na diversidade dos co n trário s; o intellectus,
cm con trapartid a, nos leva à intu ição da unidade de Deus. A D ivinda­
de aparece em N icolau de Cusa com o coin ciden tia oppositoru m , u n id a­
de dos contrários. N essa unidad e superior su p era-se a contradição:
no in finito coin cid em tod os os m om en tos divergentes. Essa idéia teve
^ a m ais profunda repercussão em Hegel. N icolau em prega idéias
m atem áticas para tornar isso com preensível: por exem p lo, a reta e a
circu n ferên cia tendem a co in cid ir à m edida que se aum enta o raio; no
lim ite co in cid em , se o raio ten d er ao in finito; se, ao inverso, o raio se
torn ar in finitam en te p equ en o , a circu nferência co in cid e com seu ce n ­
tro; a reta coin cid e no lim ite com o triângulo qu and o um de seus â n ­
g ulos aum enta.
N icolau de Cusa com para e sim ultaneam ente distingue com agu­
deza a m ente divina e a m en te hum ana. “Se todas as coisas estão na
m ente divina - escreve ele - , co m o em sua precisa e própria verdade,
todas estão em nossa m ente co m o à im agem ou sem elh an ça da verda­
de própria, ou seja, n o cion alm en te. C om efeito, o co n h ecim en to se
dá p o r sem elhança. Todas as coisas estão em D eus, m as ali são os
exem plares das coisas; todas estão em nossa m ente, mas aqui são se­
m elhanças das co isas.” As coisas são, em relação a suas idéias ex em ­
plares na m ente divina, algo com parável ao qu e são as idéias h u m a­
nas em relação às coisas. O co n h ecim en to , para de Cusa, se funda na

213
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

sem elh a n ça ; grave afirm ação, pois já com eça a se alterar a interpreta
ção escolástica do conhecim ento e da verdade com o ad a eq u a tio intel
leclus et rei: co n h ecer não é mais se apropriar da própria coisa, mas de
algo sem elh an te a ela. E agrega o cardeal de Cusa: “Entre a m ente divi­
na e a nossa há a mesma diferença que entre fazer e ver. A m ente di­
vina, ao con ceber, cria; a nossa, ao conceber, assim ila n oções, ou, ao
fazer, visões intelectuais. A m ente divina é uma força entificadora; n o s­
sa m ente é um a força assim ilativa.”
À atividade criadora de Deus correspond e a atividade vidente do
hom em . A ssim ilare é assemelhar, o b ter uma sim ilitudo, uma sem elhan­
ça da coisa que D eus criou. D eus, ao criar as coisas, lhes dá sua enti­
dade, o hom em obtém um precipitado que é a assim ilação. Não há a d a e ­
quatio, mas sim assim ilatio. A verdade da m ente hum ana é um a im a­
gem e sem elh a n ça da verdade da m ente divina.
Para N icolau de Cusa o m u ndo tem enorm e im portância; seu
grande interesse é colocá-lo de acordo com Deus e superar a contrarie­
dade. Ao hom em medieval interessa o ser do m undo, porque é criado
e lhe descobre Deus; para N icolau, D eus interessa sobretudo para en ­
tender o m undo. E o m undo é, segundo de Cusa, explicatio Dei. A u n i­
dade do infinito se explica e m anifesta na múltipla variedade do m un­
do. Todas as coisas estão em Deus; m as, inversam ente, D eus está em
todas elas e as explica ou mostra. O m undo é m anifestação de Deus,
teojania. Cada coisa, diz de Cusa, é quasi infinitas finita aut deus creatus,
com o um a infinidade finita ou um D eus criado; e chega a dizer do u ni­
verso que é Deus sensibilis, e do hom em que é um deus occasionatus.
Essas expressões provocaram a acusação de panteísm o contra o
cardeal de Cusa, assim com o contra m estre Eckhart. C om o Eckhart,
tam bém N icolau repudiou energicam ente essa acusação. A presença
de D eus no m u n do, a interpretação deste com o explicatio D ei não im ­
plicam , segund o N icolau de Cusa, a supressão do dualism o de Deus e
do m undo e da idéia de criação; m as vim os com o no final da Idade
Média acentu a-se a independência do m undo criado em relação a seu
criador.
O m undo de de Cusa é o m elhor dos m undos, idéia que será re
cuperada pelo otim ism o m etafísico de Leibniz. Por outro lado, é or-

214
O COM EÇO DA FILOSOFIA MODERNA

ilrm e razão, princípio que Hegel tam bém professará. Adem ais, é in-
111111o no espaço e no tem po, m as não com o D eus, com positiva e to-
i.11 inlinitude e eternidade, mas com o uma indeterm inação ou j limita
■.10. Dessa forma afirm a-se claram ente a posição m oderna em relação
•ui infinito. Para um grego, ser infinito era um defeito; a falha era ju s -
i.nnente a falta de limites; o positivo era ter lim ites, ser algo d eterm i­
nado. O cristianism o, em contrapartida, põe a infinitude em Deus
1orno o mais alto valor; a finitude é sentida com o um a lim itação, com o
.il^o negativo; mas a finitude do ser criado, do hom em e do m undo é
M-mpre sublinhada. Agora, N icolau de Cusa estende essa “quase infi-
1111lide” ao m undo, num sentido físico e m atem ático. Esse sentido in-
Imitista predom ina em toda a m etafísica m od erna, de G iordano B ru ­
no aos idealistas alemães. A influência de N icolau em Espinosa é m ui­
to profunda.
Por últim o, 0 cardeal de Cusa afirma um individualism o dentro
do universo. Cada coisa é um a concentração individual do cosm os,
uma unidade que reflete, co m o u m espelho, 0 universo; em p articu ­
lar os hom ens, que refletem o m u ndo, cada um de m odo distinto, e
'.ào verdadeiros m icrocosm os. Há uma absoluta variedade nessas u n i­
dades, porque Deus não se repete nunca. É um prim eiro esb oço da
leoria leibniziana das m ônadas. A m ente é “um a m edida viva, que
atinge sua capacidade m edindo outras coisas”. A m ens é interpretada
co m o m ensura. E o co n h ecim en to do m undo m ensurável nos dá, em
1roca, o con hecim ento do hom em . Aqui vem os a sem ente da física e
do hum anism o, que nascem ju n to s. E a m ente, se é um espelho, é um
L-spelho vivo, que consiste em atividade. Se a m ente divina é vis enliji-
ca tiv a, a hum ana é vis assimilativa', daí à “força de representação” de
Leibniz há apenas um passo. Portanto, na aurora do século XV, na
im ediata tradição dos filósofos nom inalistas e da m ística especulativa,
aparecem um depois do outro os grandes m otivos da metafísica m o ­
derna. Em Nicolau de Cusa está, em forma germinal, toda a filosofia que
virá a se desenvolver na Europa, desde Giordano Bruno, de um m odo
im preciso e confuso, até a esplêndida m aturidade hegeliana. Mas essa
11losofia só com eça a ter um a verdadeira realidade no século XV II, no
pensam ento cartesiano. Isso ju stifica plenam ente a presente in terp re­
tação do Renascim ento.

215
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

2. Giordano Bruno

V ida • G iordano Bruno é o filósofo italiano m ais im portante do


R enascim ento. Nasceu em N ola, em 1 5 4 8 , e entrou para a ordem do­
m inicana; d epois a aband onou , acusado de heresia, e viajou por di­
versos países da Europa: Su íça, Fran ça, Inglaterra e A lem anha, vol­
tando depois para a Itália. A In qu isição rom ana o prendeu em 1 5 9 2 ,
e em 1 6 0 0 foi queim ado por não se retratar de suas doutrinas h etero ­
doxas. Essa m orte trágica e o apaixonad o brilhan tism o de seus escri­
tos lhe valeram grande fama, que co n tribu iu para au m en tar sua in ­
fluência posterior.
Bruno acusa as influências de seu tem po; vincula-se a Raim undo
Lúlio, aos cultivadores da filosofia natu ral, em p articular C op érnico,
e, sobretud o, a N icolau de Cusa. Sua grande preocu pação é tam bém
o m u ndo, e fala dele com exaltação poética e entusiasm o por sua infi-
nitude. As principais obras de G iordano Bruno foram : D e la causa,
principio e uno; D e Vinfinito, universo e m ondi e Degli er o icifu ro ri, em ita­
liano; em latim , D e triplici m inim o et m en su ra, D e m o n ad e, num ero et f i ­
g u ra e D e in m en so et innum erabilibus.
D o u trin a • Bruno é panteísta. Sua tese fundam ental é a im anên­
cia de Deus n o m undo. D eus é - com o em Cusa - com plicatio om nium ,
coincidentia oppositorum ; mas Bruno não fica nisso. D eus é, além disso,
alma do m u ndo, cau sa im m anens. Isso foi interpretado co m o panteís­
m o, com o identificação do m u ndo com Deus, em bora G iordano Bru­
no não se considerasse panteísta e apelasse para o con ceito da natura
naturans, a natureza criadora, a alma divina do mundo, em oposição à na­
tura n atu rata, o m undo das coisas produzidas; mas isso não consegue
esclarecer a questão decisiva da transcendência de Deus. Para Bruno, o
Deus transcend ente é exclusivam ente objeto de adoração e culto, mas
o Deus da filosofia é causa im anente e harm onia do U niverso; daí sua
tendência a ressuscitar a doutrina averroísta da dupla verdade.
Esse universo é infinito, tam bém espacialm ente. E está ch eio de
vida e de beleza, pois tudo são m o m en to s da vida divina. Tudo é ri­
queza e m ultiplicidade. Em Bruno há um entusiasm o estético pela
naiureza, que é a chave da atitude renascentista.

216
O COMEÇO DA FILOSOFIA MODERNA

hi ui ui i.unbém adota a teoria m onádica de N icolau de Cusa. As


min l,n Ir-, viiais individuais são indivisíveis e indestrutíveis, e suas in-
iiiui.r. i um l)inações produzem a harm onia universal. A alma do m u n-
•I. ■i .1 niOiiada fundam ental, m onas m onadum . A substância é una, e
i , "i i individuais não passam de particularizações - circon slanzie,
,h Hiimo - da substância divina. O individualism o de Bruno volta a
• ui ' ui panteísm o. Sua in fluência reaparece em Leibniz e, especial-
.. , cm Espinosa e em Schelling.

J. A física moderna

i K Im u lad o res da n o v a ciê n c ia da n a tu rez a • Partindo da me-


u Im i a nom inalista, nos séculos XVI e XVII se constitui uma ciência
ii iim al que difere essencialm ente da aristotélica e medieval em dois
Iii iiiii is decisivos: a idéia de natureza e o m étodo físico. De C op ém ico
i '■•Irwion elabora-se a nova física, que ch ego u co m o um adm irável
i i ii po dc doutrina até nossos dias, quando sofre outra radical transfor-
ii i.u.a n nas mãos de Einstein, que form ula sua teoria da relatividade, de
I'l.iiii k, fundador da m ecânica quântica, e dos físicos que estabelece-
i.liii as bases da m ecânica ondulatória (H eisenberg, Schrödinger, Bro-
i'lir. D irac) e da física n u clear (H ahn, Ferm i, O ppenheim er etc.).
N ico la u C o p é rn ic o , cônego polonês, viveu de 1 4 7 3 a 1 5 4 3 . Es>-
iiidiui m atem áticas, astronom ia e m edicina e, no ano de sua m orte,
pu blicou sua obra D e revolutionibus orbium caelestiu m , em que afirm a
111ie o Sol é o centro de nosso sistem a, e a Terra, co m os dem ais p lan e­
ias, gira em torno dele. Essa idéia, que recuperava antiquíssim as hi-
pn irses gregas, recebeu acolh id a hostil em m u itos círculos de o p i­
nião, porque contradizia todas as representações habituais. Na E spa­
nha. o sistem a co p ern ican o foi aceito e ensinado rapidam ente. D esde
cn ia o , a atividade do p ensam ento m atem ático aplicado à física tor-
im u-se m uito intensa.
Jo h an n es K epler (1 5 7 1 -1 6 3 0 ), astrônom o alemão, adotou as idéias
■n pern ican as e pu blicou em 1 6 0 9 sua P hysica caelestis. Kepler deu e x ­
pressão m atem ática rigorosa às descobertas de N icolau C op érn ico,
que form ulou nas três fam osas leis das órbitas planetárias. Nelas esia-

217
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

belecia que as órbitas são elípticas (não circulares, co m o se con sid era­
va m ais p erfeito ), que a linha reta que une os planetas ao Sol varri-
áreas iguais em iniervalos de tem po iguais, e que os quadrados dos
tem pos de translação dos planetas são p roporcionais aos cu b o s di-
suas distâncias ao Sol. K epler afirm a do m odo mais en fático o mate-
m atism o na ciên cia: “O h o m em não pode co n h e ce r perfeitam ente
nada além de m agnitudes ou por m eio cle m agnitu d es”, escreve ele.
C on tud o, K epler não co n h ece ainda o princípio geral da nova física
nem tem plenam ente a idéia m o d ern a de natureza.
G a lile u G a lile i ( 1 5 6 4 -1 6 4 2 ) , nascid o em Pisa, na Itália, é o ver­
dadeiro fundador da física m oderna. Suas principais obras são: II sag-
giatore, D ialogo dei m assim i sistem i e D iscorsi e dim ostrazion i m atem atiche
intorno a due nuove scienze. Foi professor em Pádua, descobriu os satéli­
tes de Jú p iter e se declarou copernicano. Foi processado pela Inquisição
rom ana e obrigado a se retratar; co n ta-se, em bora não esteja com p ro­
vado, que pronunciou a fam osa frase Eppur se m uove. Posteriorm ente,
a Igreja reconheceu o alto valor e a ortodoxia de seu pensam ento. É em
Galileu que se encontra de m odo claro a idéia de natureza que vai carac­
terizar a época m oderna e a totalidade de seu m étodo. Verem os logo em
seguida essas idéias, que nele aparecem m aduras.
D epois de Galileu há um a longa série de físicos que com pletam
e desenvolvem sua ciência: T orricelli, seu d iscípulo, in ven to r do b a­
rôm etro; o francês G assendi, que renovou o atom ism o; o inglês Ro-
bert Boyle, que dá caráter cien tífico à qu ím ica; o holand ês H uyghens,
d esco brid o r de im portantes leis m ecân icas e autor da teoria ondula­
tória da luz; Snell, óp tico, e tam bém D escartes, que d escobre a geo­
m etria analítica; Leibniz, d esco b rid o r do cálcu lo in finitesim al, e, so ­
bretudo, o inglês N ewton, que d escobre e ao m esm o tem po form ula
de m odo geral o princípio da física m oderna.
Is a a c N e w to n ( 1 6 4 2 - 1 7 2 7 ) , p rofessor de C am b rid g e, filósofo,
m atem ático, físico e teólogo, p u b lico u em 1 6 8 7 um dos livros mais
im portantes da história: P h ilosop h iae n aturalis prin cip ia m athem atica.
Newton form ula a lei da gravitação universal e interpreta a totalidade
da m ecânica em função das atrações de m assas, expressáveis m atem a­
ticam ente. C om ele a física m oderna atinge a sua pureza, baseando-se

2 1 8
( 5 COMIÍÇO DA FILOSOFIA MODERNA

iiiiiH ......... .. unitário de m áxim a generalidade. C om os dois gran-


il. i ui ,i i iinu-iuos m atem áticos do século X V II, a geom etria analítica e
" ' .il' ulii iu i 11uiL-simal, a física já pode seguir seu cam in h o, o “seguro
i iiuiiiiliii (l.i ciOniia”, de que falará um século depois Kant.
V n .iim c z a • A ristóteles entendia por natureza o principio do m o-
tiMii mu, mu ente é natural quando tem em si m esm o o princípio de
i ir. 11111\im cntos, e, portanto, suas próprias possibilid ad es ontológi-
i .!• n i nu, cito de natureza está m uito vinculad o à idéia substancial.
A -.nu, mn cachorro é um en te natural, ao passo que um a m esa é ar-
nli' u i, nbra da arte, e não tem em si princípio de m ovim ento. A físi-
.......... '.iniclica e m edieval é a ciên cia da natureza, que procura d esco-
I ............. /)/i /i í Ipio ou as cau sas do m ovim ento.
I >i",(le o ockham ism o se co m eça a pensar que o co n h ecim en to
li.in r 11iiihecim ento de coisas, m as sim de sím bolos. Isso nos leva ao
I>■ i r .,11 m aiem ático; e G alileu dirá taxativam ente que o grande livro
.1 ' n.iiiiicza está escrito em caracteres m atem áticos. O m ovim ento
ii i .m iclico era um chegar a ser ou deixar de ser; p ortanto, era en ten -
111' I' i de m odo ontológico, do ponto de vista do ser das coisas. A par-
iii ilr ( lalileu, o m ovim ento será consid erad o co m o variação de fen ô-
niriHis algo quantitativo, capaz de ser m edido e expresso m atem atica-
i m i nr A física não será ciên cia d e coisas, m as de v ariações d e fe n ô m e -
ni", Diante do m ovim ento, a física aristotélica e m edieval pedia seu
p u n i i/tio, portanto um a afirm ação real sobre coisas; a física m od erna
h iiiiiu ia aos princípios e só pede sua lei de fen ô m en o s, determ inada
m atem aticam ente. O físico renuncia a saber as causas e se contenta com
uma equação que lhe perm ita m edir o curso dos fenôm enos. Essa re­
nuncia extrem am ente fecunda separa a física do que é outra coisa, por
■ 1'iiiplo filosofia, e a constitui com o ciência positiva; assim se engendra
.1 liM( a m oderna. (Ver Zubiri: L a n ueva fís ic a .)
O m éto d o • D urante m uito tem po acred itou -se que o que ca-
i .k leriza a nova física é o experim ento. D iferentem en te da física esco -
l.i-.iica, racional, a de G alileu seria exp erim ental, em pírica, e n asceria
il.i observação da natureza. Isso não é co rreto ; o que diferencia a físi-
■,i m od erna é a cham ada an álise da n atu reza. O ponto de partida do fí-
•.ico c uma hipótese, ou seja, um a con stru ção a p rio rí, de tipo m atem á-

219
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

lico . Antes de experim entar, G alileu sabe o que vai a co n tecer; o e x p r


rim en to sim p lesm ente co m p ro v a a posteriori esse sab er apriorístico. ()
físico interroga a natureza com um esquem a ou qu estion ário prévio,
que é a hip ótese m atem ática, a co n stru ção m ental - m en te concipi<>.
co n ceb o co m a m ente, dizia G alileu. E com os in stru m en to s, com n
exp erim en to , o físico interroga a natureza e a obriga a responder, ,i
con firm ar ou d esm entir a hip ótese. “A física é, p o rtan to - escreve Oi
tega - , um saber a p rio ri, co n firm ad o por um sab er a p o sterio ri.” A li
sica é ciên cia, e, portan to , co n stru ção apriorística; m as não é ciêncin
ideal, co m o a m atem ática, e sim de realidade, e por isso requer c o n ­
firm ação experim ental. M as o d ecisivo de Galileu e de toda a m o v a
scien za é a prim eira qu estão; m ais ainda: os ex p erim en to s não co n fir­
m am nunca ex a ta m en te a hipótese porqu e as co n d içõ es reais não co in ­
cid em co m as do caso ideal da co n stru ção m ental a p rio ri, e os físicos
esco lásticos argum entavam co n tra os m od ern os b a sea n d o -se nos ex p e­
rim entos. A ssim , um a bola que roda por um a su perfície inclinada j a ­
m ais satisfará a lei do plano in clin ad o , porque a im p erfeição do plano
e da esfera e a resistência do ar provocam atritos pertu rbad ores. C on­
tudo, a lei física não se refere às bolas reais que rodam pelos planos da
realidade, m as à esfera perfeita e ao plano perfeito que não existem ,
n u m espaço sem atrito. (Cf. O rtega y Gasset: L a "Filosofia de la H isto­
r ia ” d e H egel y la historiologla.)
O m étod o indutivo - n u m sen tid o que exced e am plam ente o
co n ian o - é o que a física m o d ern a usa eficazm ente desde Kepler, que
se serve dele para d eterm inar a form a elíptica das ó rbitas planetárias.
N ew ton - que o cham a de análise, por oposição à sín tese - leva-o a
um a grande p recisão e lhe atribu i o m áxim o alcance. O m étod o ana­
lítico consiste em partir dos fen ô m en o s e dos exp erim en to s e elevar-
se às leis universais. In h a c p h ilo so p h ia [ex p erim en tali] - escreve New ­
ton - proposition es dedu cun tur ex p h aen om en is, et reddu ntu r g en erais p er
inductionem . O fund am ento do m éto d o indutivo é a própria idéia de
n atu reza co m o o m odo p erm anente de ser e com p ortar-se da realida­
de. S uposta a existência da natureza, as coisas particulares nos indu­
zem a nos elevarm os a p ro p o siçõ es gerais. Um ú nico fato revela uma
d eterm inação natural, em virtude da concórdia p erm an en te da natu-

2 20
( ) C OM EÇ O DA FILOSOFIA MODERNA

h r.i 11 iir.ip i 1111'sina; a natureza é sibi sem p er consona. E este é - acres-


....... . Mi'wion o fundam ento de toda a filosofia: Et hoc estfu n d a m en -
...... fiiilnso/i/iinc lotius'.
I .1 nova idéia da natureza é m ovida por razões filosóficas e está
I . i i !11 pressupostos m etafísicos, alheios à p ositiv id ad e da ciência.
I*iii im ) lis piin cípios da ciên cia n atu ral, que não perten cem ao d om í-
........li -.la, '.ao um problem a para a filosofia.

-/ A iscolástica espanhola

I In m-c u Io XVI ocorre u m extraord inário flo rescim en to da E sco -


I I 11. a, i|iu- in n seu centro na Espanha e cu lm ina no C on cílio de Tren-
t>< M.. g lan d es teólogos d eparam co m os problem as colocad os pela
l ' 1111Mi.i . adem ais, reafirm am a tradição escolástica ante a crítica dos
........ .i <m isias; volta-se ao to m ism o e às grandes obras sistem áticas da
lil iil< M rd ia, não para rep eti-las, mas para co m en tá-la s e esclarecê-
i.i li.i v m la d e , para realizar u m fecundo trabalho original. Além dis-
ii us esco lástico s esp anh óis ind agam -se sobre um a série de proble-
ni,i jii»Inicos e sociais que o R enascim en to suscitara; por exem plo, o
ilin-iio m iern acion al é um tem a im p ortan te para eles e está vinculado
,i qiu -.iao da cond ição dos índ ios no N ovo M undo recém -d esco b erto .
..il.im anca e Alcalá são os dois cen tro s in telectu ais desse m ovim ento,
i|iir irp ercu te d iretam ente em C oim bra e em Rom a. Q uase todos es-
.1 esco lásticos tinham se form ado em Paris, que con tin u ava sendo
uiii loco im portantíssim o.
liste florescim ento, no en tan to , foi efêm ero. F ico u reduzido à
h .p an h a e a Portugal, e d epois da m orte de Suárez, em 1 6 1 7 , a E sco-
l.isiii a en tro u em d ecadência. O pred om ínio da teologia sobre o inte-
ii s-.e filosófico, a o rien tação im p o sta pela C ontra-R eform a fizeram
■"in que os escolásticos esp an h ó is não entrassem su ficien tem en te em
i nntato c o m a filosofia e a ciê n c ia naturais da Europa m od ern a, e esse

I Cl m e u e n sa io “F ísica y m e ta físic a en N ew to n ", e m 5 a n Anselm o y e! insensato.


IO bras, IV]

221
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

vigoroso m ovim en to não se in co rp o ro u à form ação da nova metal im


ca. Se as co isas tivessem o co rrid o de outra form a, provavelm enlc .1
sorte da Espanha e da Europa Leria sido diferente. É claro que o que
teve a m áxim a eficácia e tran scen d ên cia foi a co n trib u ição doutrinal .1
teologia caló lica e à dogm ática n o C o n cílio de Trento.
O s te ó lo g o s • Duas grandes O rd en s, am bas fundadas por dois
santos espanhóis, são as que encabeçam essa restauração: a O rdem dos
Pregadores e a C om panhia de Jesu s, fundadas respectivam ente poi
São D om in gos de G usm ão e San to In ácio de Loyola, co m elem entos
esp anh óis e franceses e um sen tid o universal desde 0 p rin cíp io. Se a
O rdem D om in ican a representa a organização da Igreja n o século XIII,
a C om p anhia de Jesu s significa a defesa do catolicism o no século XVI.
Em prim eiro lugar aparecem os dom inicanos. E en tre eles, F ran ­
cisco de V itória ( 1 4 8 0 - 1 5 4 6 ) , que estud ou em Paris e foi professor em
Salam anca. E screveu im p ortan tes co m en tário s à S u m a teológica, e
suas aulas ou relection es - em p a rticu la r D e ju s titia e D e Inãis et ju re
belli - rep resentam um a esp ecial co n trib u ição ao d ireito in tern acio ­
nal, m u ito an terio r ao D e ju r e belli a c p acis de G rócio ( 1 6 2 5 ).
V itória reu n iu u m nú cleo im p o rtan te de d iscíp u los de sua O r­
dem. D om ingo de Soto ( 1 4 9 4 -1 5 6 0 ) , tam bém professor de Salam anca;
M elchor Cano ( 1 5 0 9 -6 0 ), que lecionou em Alcalá e em Salam anca, e foi
bispo de C anárias, escreveu um livro fundam ental, D e locis theologicis.
D epois, Carranza e, sobretudo, D om ingo Bánez ( 1 5 2 8 -1 6 0 4 ) , que es­
creveu co m en tário s à S u m a e levou ao extrem o a agudeza da teologia
em sua teoria da p rem o çã o física .
Em m eados do século XVI aparecem na Espanha os teólogos je ­
suítas. O s m ais im portantes foram A lfonso Salm erón, professor em In-
golstadt e teólogo tridentino; Luis de M olina ( 1 5 3 3 - 1 6 0 0 ) , autor do
fam oso tratado D e liberi arbitrii cum g ra tia e donis con cordia, em que e x ­
põe sua teoria da ciên cia m édia, que teve grande influência na teologia
e determ inou o m ovim ento co n h e cid o por m olinism o; o português
Fonseca, grande com entad or de A ristóteles; e, sobretud o, Francisco
Suárez, que não foi apenas teólogo, m as tam bém filósofo original.
O ú ltim o p ensad or im portante desse grupo foi 0 português Jo
de Santo Tom ás ( 1 5 8 9 - 1 6 4 4 ) , au to r de um Cursus p hilosophicu s e um
Cursus theologicus de grande interesse.

222
I ) [ OMIiCO [)A FILOSOFIA MODERNA

* iu in / • I i.Du isco Suárez nasceu em G ranada em 1 5 4 8 e m or-


lt>li cm I i .1 m.i i tu 1 0 17. Seu nascim en to coincidiu co m o de G iordano
.................... .. il.ii.t-. (li- nascim en to e m orte são posteriores em um ano
1» ili i i u . ii H f. suarez ingressou em 1 5 6 4 na C om p an hia de Jesu s,
i|i|nii ili h i .uli) rejeitado por ser consid erad o p ou co inteligente.
I ..i |n. 'li ' ........... segóvia, Ávila, Valladolid, R om a, A lcalá, Salam anca;
|iin ............. . ■li ili 1597, na U niversidade de C oim bra. F o i co n h ecid o
i iiiii.< l u mi i xiíiiiiis e logo co n q u isto u autoridade universal.
I 'i |>i <r. de publicar vários tratados teoló g ico s, Suárez im prim iu,
MH oii ........... . i-in que iniciou seu m agistério em C oim b ra, sua obra
lil...... .a a ir. dois grandes volu m es de suas D isputationes m etaphysicae.
................... .. i r veu o tratado De D eo uno et trino, sua grande obra ju r í-
ilii .i 1 1, 11i;i/)iis «< D eo legislatore, D efen sio fid ei adv ersu s A nglican ae sec-
i , i, , i i,i, m iiira o rei Ja m e s I da Inglaterra - e o tratado De an im a.
.u.i i In .e. i nm pletas co m p reen d em 2 6 volu m es in folio.
'ui.ui ■ o único grande filósofo escolástico d epois de O ck h am -
.......... uma tradição teo ló g ica e filosófica de m u itos séculos, sufo-
iil i |'i l.i m oi-m e quantidade de op iniões e co m en tário s, e que era
ii .iit.niiiKl.i de m odo rotineiro. Por isso precisa, antes de tudo, co m -
I ■i ui' i 1'vsc passado, ju stific á -lo ; em sum a, r e p e n s a r a trad ição tendo
, "i i í-./ii d1. (Oiscis. Para tanto sep ara, pela prim eira vez na história da
i ' " L r .in a, a m etafísica da teologia e elabora u m a con stru ção siste-
............ . da lilosofia prim eira, calcad a em A ristóteles m as ind epen d en-
h ili li-, qtu- leva em con ta a totalidade das d outrinas dos com en tad o -
i. i r i'i is c m edievais e a obra dos escolásticos - sobretud o de Santo
II *111.i > , para d eterm inar a “verdadeira sen ten ça”. Nas 5 4 D isputatio-
iii v nu /tiphysicae estuda co m clareza e rigor o p roblem a do ser ind e-
........ ...... das qu estões teológicas, sem n o entan to perder de
\i i . i (|iu- sua m etafísica está voltada para a teologia, para a qual serve
<I- Iiiiid .un enlação prévia. “Suárez é, desde A ristóteles - escreveu Zu-
■>i 11 a prim eira tentativa de fazer da m etafísica um corp o de d outri-
ii.i liln soíica in d epend ente. C om Suárez, ela se eleva à categoria de
dl .i 11>111ui au tônom a e sistem ática.”
A obra de Suárez não é um com en tário . É um a filosofia original,
i|in m an tém relativa fidelidade ao tom ism o, m as tem , em relação a

22 3
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ele, a m esm a ind ep en d ên cia que E sco to ou outro grande pensadoi


m edieval. D iscrepa dele em m u ilos p roblem as, até m esm o alguns ini
portantes, m as em Suárez eles estão sobretud o pensados e resolvidos
desde sua própria situação e nu m a perspectiva d istinta, que inclui ,i
con sid eração de todo o co n teú d o d ou trin al do esco lasticism o .
Por essas razões, Suárez é u m filósofo com realidade e eficácia,
inserido na h istória efetiva da filosofia, qu e interferiu m ais do que se
costum a p en sar no pensam ento da ép oca m oderna. Essa vez, não se
Lrata de n en h u m “gênio o cu lto ”, de n en h u m “grande p en sa d o r” in é­
dito, sem in flu ên cias e sem co n seq ü ên cias. D urante os sécu lo s XVII c
XV III, as D isputatíones serviram de texto em inú m eras U niversidades
européias, até m esm o protestantes; D escartes, Leibniz, G rócio, os idea­
listas alem ães as co n h eceram e utilizaram . Pode-se dizer qu e duranie
dois sécu lo s a Europa aprendeu m etafísica em Suárez, em b o ra esta te­
nha sido u tiliza d a m ais para elabo rar um a m etafísica d iferente do que
continuada na linha de sua própria inspiração. Por interm édio de Suárez
penetrou na filosofia m od erna o qu e havia de m ais fecu n d o na obra
da Escolástica, que dessa forma foi incorporad a a um a nova m etafísica,
elaborada desde outro ponto de vista e co m outro m étod o.
A m etafísica de Suárez aborda com m uita p ersp icácia e rigor os
pontos fund am entais da filosofia escolástica. E m bora ten te, co m o vi­
m os, se m an ter fiel ao tom ism o, sem pre que possível não recusa os
desvios qu and o lhe parecem n ecessário s. Algum as vezes retom a ante­
ced en tes da filosofia pré-tom ista; ou tras, pelo co n trá rio , está mais
próxim o de D u ns E sco to e dos n o m in alistas; outras vezes exp õe so lu ­
ções originais e próprias. A seu ver, a doutrina tom ista da distin ção real
entre essência e existên cia é errô n ea; co n sid era que sua d istin ção é da
ordem da sim p les abstração m ental, e que num ente co m p lexo ex is­
tente cada um dos elem en tos m etafísico s tem sua ex istên cia im plica­
da em sua essên cia; na existên cia, co m o na essência, há com p osição
de elem en tos parciais; a m atéria-p rim a, co n cretam en te, possui uma
existên cia p rópria, sem o ato d eterm in ad or da form a, e D eus poderia
m antê-la separada.
Q u anto à qu estão dos u niversais, Suárez, que presta especial
atenção ao problem a da ind ivid u ação em relação às p esso a s e aos en-

2 2 4
O C O M E Ç O DA FILOSOFIA MODERNA

l*« iiiiitiri i.iis, li.lo adm ite que a m a téria sig n ata qu an titate seja o prin-
i i|'iH 11o 11\nltuli/ador. O qu e é decisivo no indivídu o é sua incom uni-
i iil'ih, 1, 1, 1, , m u i ez afirm a que os elem entos co n stitu tivo s de cada
............... .. •.ui princípios de individuação: sua unidade modal co n sli-
ihi ,i nu11v KIuaiitlacle do co m p osto . As investigações de Suárez sobre
.« ............ ..11h 1ac 1c , de interesse trinitário e an trop oló gico , são extrem a-
III) 111< .11J II i, is .
I'.ii.i '.uarez, a ú nica analogia entre o ser, que é predicado de
...... I" p i.ip n o e absolu to de D eus, e as coisas é qu e são criad as co m
ii li ii tu i ,i ,i Divindade. A su pressão da d istinção real entre essência e
i íim c iii i.i não significa um a id entificação do ser divino e do ser cria-
d.., |iiti-, ,;u). respectivam ente, a se e a b alio, necessário o prim eiro e
........ m )m•111c* o segundo. Suárez co n ced e valor ap o d íctico para a de-
iii.mi .ii,ii.,i() da existên cia de D eus apenas aos argum entos m etafísicos
■ dii ma a im possibilidade de ver e co n h ecer n atu ralm en te D eus, a
ii ui ,ri iIr m aneira ind ireta, refletido nas criaturas.
I m si-u T ratado das leis, Suárez tom a p o sição na questão da ori-
i»i m do poder. Nega a teoria do direito divino dos reis, usada pelos
I ui ui ■.i.mies, segundo a qual o rei obteria seu p o d er im ediatam ente de
I '■ ii ' alirm a a tese da so beran ia popu lar; a autoridade real se funda
■i>• i mi .i-ntim ento do povo, que é qu em tem o poder, derivado de
I *■ 11■■. ' ■ pode destituir os so beran o s ind ignos de governar2.

* * *

No século XV I surge um a co rren te de filosofia inglesa, co m Ba-


II ii 11 I lobbes, an terior a D escartes e ao idealism o do co n tin en te; m as
i i •n u larcm o s depois, já qu e é o desencad ean te do em pirism o britâ-
ii ii d dos dois séculos segu intes e form a um ram o au tôn om o d entro
da lilusofia européia m od erna.

}. V rr "S u á re z en la p e r s p e c tiv a d e la ra z ó n h is tó r ic a " (e m E nsayos d e leo r ía ).


|< iJwiis, IV]

225

<) idealismo do século XVII

’> l i l n s n l i a m oderna se co n stitu i no sécu lo XVII. D epois das


i mi iiii.i'. ( it- restauração da antiguidade e de oposição à E scolástica,
i Imli, ili .contínua de p ensadores que con servam vivo o sentid o da
...... . ,i d esem boca nu m a etapa de esp lêndid a m aturidade filosó-
li> i |.i .ilmli cm outro lugar à estrutura d esco n tín u a da filosofia; vi-
....... . Iimj.;<>h períodos de tem po que são co m o lacunas na esp ecula-
..iIm lilo so lica; épocas em que o h om em fica reduzido a um trabalho
ili 11 Hiientflrio e exegese ou a um a m editação trivial sobre si m esm o;
ii i i iiii 11v tem pos, contu d o, em que se su ced em , num co n ju n to den -
ii ui-, pensadores geniais. É o que ocorre n o s sécu lo s V e IV a .C.
it.> 1 ■11•i ia, onde, depois da grande figura de P arm ênid es e dos pré-
...... .nu os posteriores, vivem , em im ediata relação de m agistério e
ili - ip i 11.ido, Sócrates, Platão e A ristóteles; e depois vem um a longa
■i.i|i.i de d eclín io. Na Idade M édia en co n tram o s um fenôm eno aná-
li i>',<' ii século X III e a prim eira m etade do sécu lo X IV vêem desfilar
i’, ri.m d es personalidades do pen sam en to m edieval: São Boaventu-
i.i ‘-..imo Tom ás, D uns E sco to , B acon, E ck h art, O ck h am ; e depois
mu novo declive até o século XVII. Nesse m om ento vão suceder-se
i 1111la mente pensadores co m o D escartes, M alebran ch e, Espinosa,
i i linn.:, sem falar de B ossuet, F én elo n , P ascal, que estão na zona
. .. iiiça da filosofia e do pensam ento religioso, e, por outro lado,
ii iii^leses, de Francis Bacon a Hum e. Em seguida a m etafísica de-
i .li mai:, uma vez, até se erguer, em outro esp lêndid o im pulso, o
ii li .ilisino alem ão de Kant a Hegel, ao qual logo se seguirá a época

227
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

cin zen ta do sécu lo X IX , p ositivista e naturalista. E em n o sso s dia1,


estam os assistin d o a um ú ltim o R en ascim en to po d ero so do pensa
m ento m etafísico .
Nas p rim eiras décad as do sécu lo X V II, a ép oca m o d ern a se c o ­
loca, pela p rim eira vez, o problem a filosófico. Esta é a obra de D es­
ca rte s1.

1. In fo rm a ç õ e s m ais detalh ad as so b re a s o rig e n s h istó ricas e a estru tu ra da filo­


so fia d esse te m p o p o d em se r e n c o n tra d a s em “La m etafísica m o d e rn a ” (e m Biografia de
la filosofia). [O bras, 11]

2 28
I. D e s c a r t e s

^ viil.i c a pesso a • René D escartes é a figura decisiva da passa-


.......... li 1111Kl epoca para outra. A geração que marca o trânsito cio m un-
•I........dii ,il para o espírito m od erno em sua m aturidade é a sua. Des-
i uh 111 Ortega - é o p rim eiro hom em m oderno.
I J. im i*u em La Haye, Touraine, em 1 5 9 6 . Procedia de um a famí-
li i u iilHe r. enferm iço, foi criado entre m uitos cuidados. C om seu bom
••i 111>< i iini-iiio conseguiu recu perar a saúde. Ao cu m p rir oito anos vai
. iihl.n i in colégio dos jesu ítas em La Flèche. Esse colégio, im portan-
ii iiiini n.i vida francesa da ép oca, tinha um interesse especial pelas
111m11111, i- literaturas clássicas, que D escartes estudou a fundo. D epois
■1111Di < 11cli- o estudo da filosofia, nos m oldes da E scolástica tradicio-
■u i . r iii qualquer referência ou alusão às descobertas da ciência na-
iiii.11 in iu lfiiia. A m atem ática lhe parece interessante, mas desconsi-
•l< i .1 ,i i niiexão co m a física, que ele seria um dos prim eiros a estabe-
i-1 de m odo genial.
I ui I n 14 sai de La F lèch e; vai para Paris e ali se dedica a um a
hl.i iIr piazeres. Ao m esm o tem po sente um ceticism o total. A ciên -
■i.i 111ii- aprendeu em La F lèch e lhe parece sem con sistên cia, duvido-
i .i i .i logica e a m atem ática têm evidência e certeza, m as em con tra-
I mi iida ii;U) lêm utilidade nenh u m a para o co n h ecim en to da realida-
d< I'.i i . i co n h ecer o m u ndo, em 1 6 1 8 D escartes abraça a vida m ilitar,
mi lli ilanda, sob as ordens de M aurício de Nassau. Ali entra em co n -
i ..........ui as ciências m atem áticas e naturais. Aproveita todas as ocasiões
|i.n.i ver lu d o, para subm ergir na contem p lação da realidade, sem
l'"ii|).ii ladigas, gastos ou perigos, com o observou G oethe.

229
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

D epois ingressa no exército im perial de M axim iliano da Baviei.i


no com eço da G uerra dos Trinta A nos contra os b oêm ios de Freden
co V, com cu ja filha, a princesa palatina Elizabete, teve depois tão pro­
funda e nobre am izade. Em diferentes exércitos, viaja pela Alem anha,
Áustria, H ungria, Suíça e Itália. N o acam pam ento de inverno de Neu-
burg, em 10 de novem bro de 1 6 1 9 , faz uma d escoberta sensacional, n
do m étodo. D epois vai para Loreto, cu m p rir um a prom essa de grati­
dão à Virgem por seu achado, e em 1 6 2 5 se estabelece de novo em
Paris.
A partir de 1 6 2 9 reside na H olanda. Apreciava a tranqüilidade,
liberdade e ind epen d ência daquele país. É a época de grande ativida­
de cartesiana. Escreve e pu blica suas obras mais im portantes. Relacio-
na-se com filósofos e h om ens de ciência da Europa; sofre ao m esm o
tem po a am argura de se ver atacado, principalm ente pelos jesu ítas,
apesar de co n tin u ar católico. Alguns discípulos o d ecep cio n am , e ele
cultiva co m m ais interesse que n u n ca a am izade ep istolar co m a prin­
cesa Elizabete. Q uando a conh eceu em 1 6 4 3 , D escartes pôde con sta­
tar que Elizabete, um a bela m oça de vinte e cinco anos, tinha estuda­
do suas obras co m um interesse e um a inteligência de que D escartes
fala com em oção na dedicatória dos Princípios. Desde en tão, a am iza­
de é cada vez m ais profunda e m ais fecunda intelectualm ente.
D escartes só sai da Holanda para curtas viagens, um a delas para
a D inam arca. M ais tarde passa a viajar para a França, onde adquirira
grande renom e, com m aior freqü ência. Em 1 6 4 6 estabelece um a rela­
ção epistolar co m a rainha C ristina da Suécia. D epois, esta o convida
para ir a E sto colm o ; D escartes aceita e chega à capital sueca em outu ­
bro de 4 9 . A pesar da amizade e adm iração de C ristina, cu ja con v er­
são ao catolicism o foi influenciada por essas conversas, não se sente à
vontade na corte. E pou co depois, em fevereiro de 1 6 5 0 , o frio de Es­
tocolm o lhe provoca um a pneum onia e D escartes m orre naquelg-m ês.
term inando sua vida exem plar de h om em em busca da verdade.
O b ra s • A obra de D escartes é de considerável extensão. Não se
lim itou à filosofia, com p reend end o tam bém obras fundam entais de
m atem áticas, biologia, física e um a extensa correspondência. Suas p rin ­
cipais obras são: Discou rs d e la m éthodc, publicado em 1 6 3 7 com D iop-

230
D esc a r tes

< r t,ro m élr ie; M editationes de p rim a philosophic* (


l i i l l l . 1» "li|i i.iii-s c as respostas de D escartes; os P rin cipia p h ilosop h iae
M li'M l /imii ili s passions d e 1’ã m e ( 1 6 4 9 ), e R egulae ad directionem in-
|rim pulilii .itl.is depois de sua m orte, em 1 7 0 1 . Entre as obras não es-
mii lilnsnlitas, a citada G éom étn e an alyü qu e e Traité de 1’hom m e.
I hfm li ii •. i .1 icvcu em latim , co m o quase todos os pensadores de seu
ii 11 |i>i ui,r. i.inibêm em francês, e foi um dos prim eiros prosadores
Ihiiii i I i- i uliivadores da filosofia em língua vulgar.

I () ffioblema cartesiano

\ 1111\ ida • D escartes sente uma profunda insegu ran ça. Nada
I ..................................................................................... i m r confiança. Todo o pa
u ni...... .. in, ms opostas foram defendidas; dessa pluralidade nasce o
II in imiih (o cham ado pirron ism o histórico). O s sentid os nos enganam
........In q u ciid a ; existe, adem ais, o sonho e a alu cinação; o pensam en-
i,. li.ui ui, u v r confiança, porque se com etem paralogism os e se in co r-
............. 11i-c11K-ncia em erro. As ú nicas ciências que parecem seguras, a
ui ii' iii.iiu a e a lógica, não são ciên cias reais, não servem para co n h e-
i * i ,i ii .iluladc. Que fazer nessa situação? D escartes qu er construir, se
i .. I>H possível, um a filosofia totalm ente certa, da qual não se possa
i i i '1 i,l.ii c sc vê profundam ente m ergulhado na dúvida. E esta há de
■' |u .i.im ente, o fundam ento em que se apoiará; ao co m eçar a filo-
■,I li I Vs. artes parte da ú nica coisa que tem : de sua própria dúvida
■l, ' i;i i ii Iira 1 inrprtp7a É preciso pôr em dúvida todas as coisas, pelo
u i '..... . uma vez na vida, diz D escartes. Não irá ad m itir nenhum a v er-
■J ii li ' Ir mie possa duvidar. N ão basta não duvidar realm ente dela; é
I < i .d que não reste dúvida nem m esm o co m o possibilidade. Por
i .M I >i ■-.rai tes faz da Dúvida o próprio m étodo de sua filosofia.
'-.n aceitará para sua filosofia princípios dos quais não caiba dú-
ii l.i I rm b re m que rejeitou a suposta evidência dos sentidos, a segu ­
iam..i do pensam ento e, sobretud o, o saber tradicional e recebido. A
imiiH-iia tentativa de D escartes é, portanto, ficar totalm ente s ó : é,
i mu rlc ito , a situação em que se encontra o hom em no final da Idade
Media I' a partir dessa solid ão que D escartes tem de tentar reco n s­

231
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

truir a certeza, um a certeza ao abrigo da dúvida. D escartes bu sca, cm


prim eiro lugar, n ão errar. C om eça a filosofia da precaução.
E, com o verem os, surgirão as três grandes questões da filosol 1.1
m edieval - e talvez de toda a filo so fia: o m undo, o h o m em e Deus, l >
que m udou foi tão-som ente a ordem e o papel que cada um deles tem
A te o lo g ia • No tocante à teologia, que tem um a certeza supe­
rior, D escartes com eça por afirm ar a situação de desvio que encou
trou em seu tem po. Não irá se o cu par dela, em bora seja algo suma
m ente respeitável. Precisam ente por ser dem asiado respeitável e ele
vada. As razões que dá são sintom áticas de todo esse m odo de pensai
do final da Escolástica.
“Eu reverenciava nossa teologia e pretendia tanto com o outro
qualquer ganhar o céu; mas tendo aprendido, com o coisa m uito se­
gura, que seu cam inho não está m enos aberto para os m ais ignorantes
que para os m ais doutos, e que as verdades reveladas que conduzem
a ele estão acim a de nossa inteligência, não teria ousado subm etê-las
à fragilidade cle m eus raciocínios, e pensava que para ten tar exam iná-
las e acertar era preciso ter algum a extraordinária assistência do céu e
ser mais que h o m em ” (D iscurso do m étodo, I a parte).
D escartes su blinha o caráter p rático, religioso da teologia; trata-
se de ganhar o céu ; mas aco n tece que se pode ganhar sem saber nada
de teologia, o que põe em evidência sua in u tilid ad e. C on vém reparar
que D escartes não exprim e isso co m o uma d escoberta sua, pelo co n ­
trário: é algo que aprendeu; p o rtan to , coisa já sabida e transm itid a, e
adem ais perfeitam ente segura; é, p o rtan to , a opin ião d o tem po. Em se­
gundo lugar, é assunto de revelação que está acim a da inteligência
hum ana. A razão nada pode em relação ao grande tem a de D eus; se­
ria preciso ser mais que hom em . É, claram ente, questão de ju risd ição .
O h om em , co m sua razão, por u m lado; por outro, D eus, o n ip o ten ­
te, inacessível, acim a de qu alqu er razão, que vez ou outra se digna a
se revelar para o hom em . A teologia não é o hom em que a faz, m as
Deus; o h o m em não tem nada a fazer nesse terreno: D eus está alto
demais.

232
D esc a r tes

4 ( > home ni

i > ■n ^ ilo ” • Desde os prim eiros passos, D escartes tem de renun-


i ini ........ mulo. A natureza, que tão gozosam ente se m ostrava ao h o-
................ .11m isia por m eio dos sentidos, é algo totalm ente inseguro.
A .ilih ni.K.,ni, o engano dos sentidos, nossos erros fazem com que não
■■ 11 |h ■■ .ivcl encontrar a m enor segurança no m undo. D escartes se
J i ............ pensar que tudo é falso; mas co n clu i que há algo que não
I h h li i I" sua existência. “Enquanto pensava que tudo era falso, era
Iii« i i h necessariam ente que eu, que o pensava, fosse algo; e obser-
iiiiln que csia verdade: penso, logo existo, era tão firm e e tão segura
•|ih h hl,i'. as mais extravagantes suposições dos cético s não eram ca-
i xi i'. iIr quebrantá-la, ju lg u ei que podia adm iti-la sem escrúpulos
iH iiin n primeiro princípio da filosofia que bu scava” (D iscurso do m é-
iiiilii. 'I 1 parle).
| mu efeito, se estou n u m erro, sou eu que estou nesse erro; se
11h i iijMiio, se duvido, sou eu o enganado ou o dubitativo. Para que
i" Mn mar “eu so u ” me equivocasse, teria de co m eçar por ser, ou seja,
Hiiii /hisso me equivocar nisso. Esta prim eira verdade de m inha exis-
...... .. o ( o w to, ergo sum das M editações, é a prim eira verdade indubi-
i . ■I i l.i qual não posso duvidar, m esm o que quisesse.
Nao há nada certo, exceto eu. E eu não sou m ais que u m a coisa
,|in |ii'/is«, mens, cogitatio. Ego sum res cogitans - diz taxativam ente Des-
i Mh ■, /i- ne suis q u ’une chose qui pense. Portanto, nem sequer h om em
. "i p o i a l , som ente razão. Pelo visto, não é possível reter o m u ndo,
i|in esc apa; n em sequer o co rp o; só é seguro e certo o sujeito pensan-
h i > hom em fica sozinho co m seus pensam entos. A filosofia vai fu n -
il.ii M- cm m im , com o con sciên cia, com o razão: a partir de en tãqjg.
ilm a iiic séculos, virá a ser idealism o - a grande descoberta e o grande
11o de Descartes.
1'ssa solução é congruente. Deus ficara de fora por ficar fora da
i i io, era isso que era decisivo. Não é de estranhar, portanto, que se
■i h i ii ii re na razão o único p onto firme em que se apoiar. Isso, em m eio
i n u lo , não é novo; o que agora ocorre é que a razão é assunto h u m a­
in I. por isso a filosofia não é sim plesm ente racion alism o, mas tam bém

233
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

idealism o. Procurarão fundar no h o m em , ou m elhor, no eu , iod;i .1


m etafísica; a h istória dessa tentativa é a história da filo sofia m odeni;i
O c r ité r io d e v erd ad e • O m u nd o não resistiu à dúvida ca
siana; no prim eiro encontro co m ela, ele se perdeu, e só perm anei e
firm e o eu. Mas D escartes está apenas com eçan d o sua filosofia, colo
can d o 0 pé ond e o terreno é seguro. D escartes se interessa pelo mim
do, se interessa pelas coisas e por essa natureza a qu e se aplica a c i Cmi

cia de seu tem po. Mas está preso em sua co n sciên cia, en cerrado cm
seu eu p ensan te, sem poder dar o passo que o leve às coisas. Como
sair dessa subjetividade? C om o co n tin u ar sua filosofia, agora que en
co n tro u o p rin cíp io indubitável? A ntes de bu scar um a segunda verdn
de, D escartes se detém na p rim eira. É um a verdade b e m h u m ilde.
mas lhe servirá para ver co m o é um a verdade.. Isto é, antes de em ­
preender a bu sca de novas verdades, D escartes exam in a a ú n ica que
possui para ver em que co n siste sua veracidade, em qu e se reconhece
que 0 é. Busca, p ortanto, um critério d e certez a para re co n h ecer as ver­
dades que possa vir a en co n trar (O rteg a). E constata qu e a verdade do
cogito consiste em que não pode duvidar dele; e não pode duvidar
porque percebe qu e tem de ser assim , porque é ev id en te; e essa evi­
d ência consiste na absoluta cla rez a e distin ção que essa idéia tem . Esse
é o critério de verdade: a evidência. E m posse de um a verdade firme e
um critério seguro, D escartes se d isp õe a recon qu istar o m u ndo. Mas
para isso tem de dar um a grande volta. E a volta cartesiana para ir do
eu ao m undo passa, coisa estranha, por Deus. C om o é possível?

3. D eus

O “g ê n io m a lig n o ” • V im os que D escartes aband ona a teolog


que D eus é incom preensível; e agora, de m odo su rp reen d en te, entre
o h om em e o m u n do se interp õe a D ivindade, e D escartes terá de se
ocupar dela. É preciso explicar isso. D escartes sabe que existe, e 0 sabe
porqu e penetra, cie m odo claro e d istin to, sua verdade. É um a verda­
de que se ju stific a a si m esm a; qu an d o deparar com algo sem elhante
terá forçosam en te de adm itir qu e é verdade. A m enos qu e esteja n u ­
m a situação de engano, que seja vítim a de um a ilusão e qu e haja al-

234
D esc a r tes

ui i(ii« ip laça ver c o m o evidente o mais falso. E n tã o a evidência


IiAh ui i mi i.i p;ira nada, e n ã o se poderia afirmar o u tr a verdade senão
ri i|i i|in i'U existo; e esta p o rq u e , é claro, se m e e n g a n a m , o en gana-
ilii .mi i li, o u , o que dá n a m e s m a , eu, o en g an ad o, sou. O h o m e m fi-
i ui i.i i li In ui ivamente preso e m si m e s m o , s e m p o d e r sa b e r c o m ce rte-
mi ii ui i ..ilvn sua e xistência. Q u e m poderia e n g a n a r -m e de tal m o d o ?
I ii ii , i i \isiisse; não sab em os, m as tam pouco sab em os o contrário,
il 1111 nil.i .i- que isso se afirm a do ponto de vista d o co n h ecim en to ra-
i it 11i.iI i hliisófico, sem co n sid erar a revelação, qu e D escartes exclui
i|n .iiiiliiin tia dúvida.) M as se D eu s me enganasse d esse m odo, m e fa-
■ii, I........... que não é, su bm erg in d o -m e no erro, não p or m inha de-
1itinl.nI . iK-iu por m inha p recipitação, mas por m in h a própria evi-
.!.• ii, i, i li.ui seria Deus; repugna pensar tal engano p o r parte da D ivin-
11.1.11 I I.ui sabem os se existe D eus; mas se existe, n ã o pode me enga"7
ii ii .......... . poderia fazê-lo seria algum poderoso g ên io maligno. Para
• >i.iiiiin'. seguros da evid ên cia, para que possam os nos fiar da verda-
iii i|in ,i- m oslra com o tal, co m suas provas claras e distintas ao al-
• ......... I.i m ao, teríam os d e d em on strar que D eus existe. Sem isso, não
I ii ii I........ .. d;ir mais n en h u m passo na filosofia, n em bu scar outra ver-
i I hIi ■■rii.io a de que eu sou.
A d e m o n stra ç ã o de D e u s • C om efeito, D escartes prova a exis-
'<■11' i.i tli Deus. E a d em on stra de várias m aneiras, com argum entos
•li ili .nu es diversos. Por um lado, diz D escartes, en co n tro em m inha
iin nu ,i ideia de D eus, isto é, de um ente in finito , perfeitíssim o, om -
i"'ii mi- que sabe tudo etc. Pois bem , essa idéia não pode proced er
i Ih li.ul,i nem tam pouco de m im m esm o, que sou finito, im perfeito,
h.n-.il i heio de dúvidas e ignorân cia, porqu e então o efeito seria su-
.......... . a causa, e isso é im possível. Por co n segu in te, a idéia de D eus
n ui ilr lei sido posta em m im por algum ente su perior, que corres-
Iii uh l.i ,i perfeição dessa idéia, ou seja, por D eus ele m esm o; e assim
• piiiv,i sim existência.
A m ura dem onstração é aquela que desde K ant se costum a ch a-
111.11 il<- on tológica, isto é , o argum ento de Santo A nselm o no Proslogion
i vii li ,ii im a), No entanto, há profundas diferenças entre o sentido des-
I .iic.iim eiuo e a prova cartesian a. D escartes diz: eu tenho a idéia de

235
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

um ente perfeitíssim o, que é D eus; pois bem , a ex istên cia é uma pei
feição, e a en co n tro incluída essen cialm en te na idéia desse ente; poi
tanto, é necessário que D eus exista. As duas provas cartesianas, in ii
m am ente relacionadas entre si. têm nm elem ento co m u m : eu tenho n
idéia de um en te perfeito, logo existe. O que as distingue é a ra zã o pehi
qual a idéia prova a existência: na prim eira, afirm a-se que só Deus
pode pôr sua idéia em m im ; na segu nda, m ostra-se qu e essa idéia de
Deus que eu possuo im plica sua existên cia. Portanto, as duas provas
se exigem e apóiam reciprocam ente.
A rigor, o ponto de partida da d em onstração cartesiana é a reali
dacle do eu, com parada com a idéia clara e distinta da D ivindade. M i­
nha finitude e m inha im perfeição se opõem à in finitu d e e perfeição
de D eus, cu ja idéia encontro em m im . M ediante a elevação ao in fin i­
to de tudo o que há em m im de p ositivo e a anulação dos lim ites, ele­
vo-m e intelectu alm ente até D eus. E m outras palavras, n o hom em se
en co n tra a im agem de D eus, que p erm ite chegar ao con h ecim en to
deste. “Essa idéia [de Deus] - diz D escartes no final da M ed itação UI -
nasceu e foi produzida com igo desd e que fui criad o, assim com o a
idéia de m im m esm o. E, na verdade, não deve causar estranheza que
D eus, ao m e criar, tenha posto em m im essa idéia para que seja com o
a m arca do artífice im pressa em su a obra\ e tam pouco é n ecessário que
essa m arca seja algo diferente dessa p rópria obra. Pelo sim p les fato de
Deus ter m e criad o, é m uito crível qu e tenha me prod uzid o, de certo
m od o, a sua im agem e sem elh an ça , e qu e eu co n ceb a essa sem elhança,
na qual se ach a co n tid a a id éia de D eu s, m ediante a m esm a facu ld a­
de com que m e co n ceb o a m im m esm o; ou seja, qu and o reflito sobre
m im , não só co n h e ço que sou u m a co isa im p erfeita, in co m p leta e de­
pendente de outra, que tende e a sp ira sem cessar a algo m elh o r e m aior
que o qu e sou, m as ao m esm o tem po tam bém co n h eço que aquele de
qu em depend o possui em si todas essas grandes coisas às quais asp i­
ro, e cujas id éias encontro em m im , não indefinidam ente e só em potên ­
cia, m as qu e goza de fato delas, atu al e infinitam ente, e p ortanto que é
Deus. E toda a força do argum ento qu e usei aqui para provar a exis­
tência de D eus consiste em re co n h ecer que não seria possível que m i­
nha natureza fosse tal co m o é, ou seja , que eu tivesse em m im a idéia
de um D eus, se D eus não existisse verdad eiram en te.”

236
D esc a r tes

M.I-. ,i i liavc da prova cartesiana é o sen tid o que D escartes, e


l mil i Ir •|ilase lodo o sécu lo X V II, dá à palavra idéia. A ideia não é .
|liiili>........ ..... algo que ocorre ao hom em ; tam p ou co algo que este
|it ii-i.i r i|iu tk-ve coin cidir co m a realidade, é a realidade ela m esm a,
rUlii I ii/rr i's/ la chose m êm e conçue, diz taxativam ente D escartes. É
>»n <|ii< c i |i\ isivo, o fu n dam ento de sua dupla prova; mas é ao m es-
ilti* ii 1111)o o mais problem ático dela, e não cab e a esta obra um a in-
vr iiiMi.ao aprofundada do problem a que isso im plica.
\ imos a necessidade de Deus e as razões que D escartes dá para
|iinvai Mia existência; e agora alguém poderia perguntar qual é o sen-
inln oiiiolog ico desse estranho argum ento do “gênio m aligno”.
A ( o m u n ica ç ã o d as s u b s tâ n c ia s • Se so m o s enganados por um
I l < i prive-iso, se nossa m aior evidência é puro erro, isso qu er dizer
. ................lias idéias não têm verdade, que são som en te “id éias”, sem
•I■i> M.ui.i lhes correspond a fora delas. Estaria então preso em m im ,
"ira .m i ia pensante que não poderia alcan çar as outras coisas, con -
•" la in e iiie a su b stân cia ex ten sa que é o m u n d o . Esse p ro b lem a da
vi ui nlr e do co n h ecim en to , form ulado em term os cartesianos, é o da
........una açâo das su bstân cias, que se m ostra tão dificultosa partindo
'In rii, i oisa pensante, absolu tam ente distinta e heterogênea de toda
■■ir......xiensa, até m esm o da realidade tão próxim a de meu corpo.
I uiendi assim que eu era um a su bstân cia cu ja essência ou natu-
m -a ioda não é senão pensar, e que, para ser, não tem necessidade de
........ lugar nem depende de nenhum a coisa m aterial; de m odo
•111r !■ Ie eu, ou seja, a alm a, pela qual sou o que sou, é totalm ente d is-
iiiiia Ho c o rp o ...” (D iscurso do m étodo, 4 a parte).
A razão e o s e r • D escartes to m ou tanto cu id ad o de su b lin h ar a
iliMiiH.ao ou ind ep en d ência de sua alm a p en san te, que agora não
Iii ii li -.an para o m undo. As idéias da res cogilans podem ser, apesar de
■'Hla Mia evidência, puras quim eras, sem a m eno r relação co m a res
i wniMí, separada por um abism o m etafísico: fantasm agorias claras e
ili ■11111.i<■ Mas isso não é o m ais grave, em bora o seja bastante. Essa
im possibilidad e de o eu co n h ecer com verdade o m undo não só afeta
■v.r i o n h ccim e n lo , co m o a própria índole da res cogitans. Razão não
i' a laruklade de produzir idéias sem verdade e sem realidade; se não for

237
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

capaz de se apoderar do m u n d o , se não fizer com que o eu consig.i


abarcar toda a extensão das coisas desse m odo estranho que se cham.i
saber, e ter sua verdade, não m erece a denom inação de razão. Portanto,
para o hom em é im prescindível, para ser na realidade o que é cartesia-
nam enre - u ma coisa qu e pensa, um ente racional conseguir obTêi
um co n h ecim ento das coisas, transcend er a si próprio, ser capaz de
verdade. E é Deus quem dá a segurança de que isso é assim ; não enga
na o h om em ; ou seja, faz com que suas idéias claras e distintas sejam
verdadeiras; err. outras palavras, que quando as idéias o sejam plena­
m ente, sejam m ais que idéias, e reflitam a realidade das coisas.
D eus é a su bstân cia infinita qu e funda o ser da su b stân cia extensa
e da su bstân cia pensante. As duas são distintas e h eterogêneas, mas
coin cid em em ser, no m esm o sen tid o radical de ser criad o. E nessa
raiz com u m que as duas su bstân cias finitas encontram em D eus fun­
da-se a p ossibilidade de sua co in cid ên cia e, em su m a, da verdade.
D eus, fund am ento o n tológico do eu e das co isas, é qu em torna possí-
vel que o m u nd o seja sabido pelo h o m em.
É desse p onto de vista que ad qu irem pleno sen tid o as provas de
D escartes. As idéias que tenho das coisas - diz ele - pod em m uito
b em ser apenas um produto m eu, algo dependente de m inha n atu re­
za pensante, e nada m ais; e, p o r isso, essas idéias pod em ser verdadei­
ras ou falsas; nada m e garante que exista o que elas significam , que a
elas corresponda algo fora de m in h a subjetividade que as pensa. A
idéia de D eus, em contrapartid a, é tão perfeita, de tal m o d o alheia a
m inha natu reza e a m m has possibilid ad es, que não pode proced er de
m im ; ela vem a m im de fora; p o rtan to , de outra coisa q u e não sou eu,
de algo que tran scen de a ela m esm a. P ortan to, essa idéia de Deus me
coloca diante de u m a realidade distinta de m im . Por isso exerce uma
ação libertad ora sobre o hom em fazend o-o sair de si p ró p rio para en ­
co n trar a realidade efetiva do que n ão é ele.
0 p ro b le m a da s u b s tâ n c ia • M as aqui surge um a questão m u
to séria, que afeta em sua raiz a ontolog ia cartesiana. O eu e o m undo
são duas su bstâncias c riadas, finitas, e seu fundam ento on tológico é
Deus, a su bstância infinita; m as agora cabe perguntar: o q ue é res, o
que é s u b s tâ m ja ? P er substantiam - diz D escartes ( P rin cip ia. 1 , 5 1 ) - ni-

238
D esc a rtes

fill iilhhl ifiii lliyrir possum us, q u a m rem q u ae i ta existit, ut nulla a lia re in-
■Aurtil iiiI ' u sln tdiim . A su bstân cia se define, p o rtan io , pela in d ep en -
il/ni y . i .ubsiancia é nã o necessitar de outra coisa para existir; tra-
>i *i ili mi 1,1 determ inação negativa, que não n o s diz o que é ser subs-
liliii i.i |ii>',iiivnmcnte.
I i i iiiiiio lado, D escartes adverte que a rigor o único ente in d e-
M,i' ii . . P e n s , um a vez que os entes criad os n ecessitam dele, e a
jiiil.i' i,i uil \tiincia não se aplica u nivocam ente a D eus e a eles, só se
1111111 .i iiiiii/iiyii am ente. Mas é aqu i que co m eça a dificuldade. A m ente
i ii Miiimlti cham am su bstân cias porque só precisam de Deus para
. -i ui di. D escartes; têm , p ortanto, um a ind ep end ência relativa,
ui nu nl.i Mas D escartes agrega que não p o d em o s co n h ecer a su b s-
i.im i.i /mi -,i só, porque não n o s afeta, e só a apreend em os por algum
ui 11ii1111, |H)r exem plo a exten são ou o pen sam ento. E então tem os de
■■li ii i i" imantar: q ue há de com u m entre D eus e os entes cria d o s.
i|in |ii i iiniii ch a m á-los igu alm ente de su b siân cias?
I 'i >i , 11'ics aclara que assim se c h am am apenas por analogia; m as
....... .ui.ili c,ia - com o já m ostrou A ristóteles - exige um fu n d am en to
i|in ■ |,i, por certo , unívoco. Q ual pode ser o fundam ento com u m da
in.iliijMi ,i substância cartesiana? A ú n ica característica definitória da
■ui i.iik ui c para D escartes a in d epend ência. Mas esta i tam bém a n a -
h ifti a. pi iis a ind epen dência das su bstâncias criad as é apenas relativa,
i ' luiiil.im ento da su posta analogia é por sua vez analógico; o que
■11iii',.iIr ;i dizer que a n o ção de su bstância em D escartes é equívoca.
1 -.1111 li ■ii o. D escartes não tem um a noção su ficien te do s e r ; para ele é
iIjmi i.iii uhvio que acredita poder p rescind ir de seu sentido para se
I» ii|i.n d iretam ente dos entes. E esta é a d eficiên cia radical da m etafí-
•ii , i i . ii icsinna. cu jas co n seq ü ên cias afetam tod o o pensam ento da
i'| ii ii ,i m oderna.

* * *

Vem os, pois, que D escartes tem de passar por Deus para ch egar
......... m udo, c qu e, m esm o ren u nciand o à teologia, há um m o m en to
i mi 111ii- in ii de se o cu p ar in telectu alm en te de D eus. Mas certam en te

239
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

não é preciso que faça teologia; basta provar a existên cia de Deus, ■■
ele o faz m ed ian te a prova on to ló g ica. É o argum ento o n tológ ico qui
perm ite ao hom em idealista, que tinha perdido Deus e em seguida tam
bém o m u n d o , reconqu istar um e, em co n seqü ên cia, o outro. A filo
sofia cartesiana e, co m o verem os, tod o o idealism o até Leibniz, fun
da-se no argum ento ontológico.

4. O m undo

A “re s e x t e n s a ” • O m u ndo físico está determ inad o em D escar­


tes pela extensão. Ju n to da res in fin ita que é Deus aparecem as duas
su b stân cias fin itas, a su bstân cia p e n sa n te - o h o m em - e a su b stâ n ­
cia extensa - o m u ndo. São duas esferas da realidade que não têm n e ­
nhum co n tato ou sem elhança entre si. E isso coloca o problem a de
sua com u nicação, conseqüência do idealism o, que é o problem a do sé­
cu lo XVII. O p róprio fato do co n h e cim en to ou o ser do h o m em já co ­
loca essa questão. C om o posso co n h e ce r o m undo? C om o pode o e x ­
tenso passar para m im , que sou in ex ten so e inespacial? M ais ainda:
co m o posso eu agir sobre m eu p ró p rio corpo para m o v ê-lo , sendo
duas realidades díspares e sem possível interação? Tem de ser Deus,
fundam ento o n to ló g ico das duas su b stân cias infinitas, que efetue essa
im possível co m u n icação das su bstân cias. Esse problem a, form ulado
por D escartes, tem três solu ções p o ssíveis, que serão dadas por ele
m esm o - e m ais claram ente por M alebran ch e por E spinosa e por
Leibniz.
O m u ndo é sim ples extensão. A força não é um a idéia clara,
D escartes a elim in a. A física cartesiana é geom etria; L eibniz terá de re­
tificar essa n o ção , pond o a idéia de força em prim eiro plano e trans­
form ando a física estática em d inâm ica. A essas duas co n cep çõ es co r­
respondem as duas grandes d esco b ertas m atem áticas de am bos: a
geom etria analítica e o cálcu lo infinitesim al. A prim eira é a aplicação
da análise, do cálcu lo operatório, à geom etria - e, portanto, em D escar­
tes, à própria realidade física; o seg u nd o perm ite a m ensuração das
variações e o desenvolvim ento da d in âm ica. Matéria e espaço são uma
única e m esm a coisa; a espacialidade é a principal qualidade da maté-

240
D esc a r tes

fl« * 1 iiiiiiiili' poderia ser exp licad o por uma série de m ovim entos de
iMiu.-lmliii, que, tlcpois da criação, se desenvolve de m odo puram en-
ii mu •.uni ii Aqui en co n tram o s a ressonância da idéia de que a co n -
v> ......... . 1111 m undo, a criação continu ada, não é necessária, e o m u n -
.............. . vi .- i nado, se basta a si m esm o.
iiiiilii)»ia • D escartes estend e esse m ecan ism o a toda a física - a
-.li , n ii |i r. de ótica e m eteorologia - e tam bém à biologia. O s ani-
iii ii i" p.iia He puras m áqu in as autôm atas, res exten sa. M áquinas, é
i Id ii |Mi Icinssim as, co m o obras da m ão de D eus, m as sem sem e-
II, ui, 111uii a substância esp iritu al e pensante que é o hom em . N este,
,i H.imlula pineal - o ú n ico órgão ím par que en co n tra, e, além disso,
•i. Iu iii ai i d escon hecida - é o ponto em que a alm a e o corp o pod em
i ......... . m utuam ente. A partir dela, a alma orienta o m ovim ento dos
. /'H ir, s iiiiunciis, e vice-versa. P osteriorm ente reco n h eceu a im possi-
liilii Lu Ir de explicar a evidente com u nicação. Em seu Tratado das p ai-
■■'I Mi m a i-i es inicia a série de tentativas de ex p licar o m ecanism o da
P ii |ui hum ana m ediante a co m bin ação de alguns m otores p síqu icos
1111ii l.i 11ir i ii ai s. Esta é, reduzida a sua m ais m ínim a expressão, a teoria
. ,iiI, -.íana do m undo.

1. liacionalismo e idealismo

I Vsi artes funda sua esp eculação no critério de evidência. Essa


'. nlrnrm não se refere à p ercepção nem aos sen tid os, que nos enga-
ii iMi . oin lieq ü ência, m as à clareza e distinção das id éias; é a ev id ên -
■i.i da j .i^ao. Portanto, o m étod o cartesiano é o racionalism o. A ú n ica
ui i.iiu ia com valor para o ho m em é a razão, que é com u m a todos. O
li< iitu-111 i- su bstância p en sante, raison. Esta é um a das raízes da ciên -
■i.i api loristica do século X V II. E o racionalism o cartesiano é tam bém
i i . 111-.a do espírito igualm ente apriorista e an ti-h istó rico que inform a
i,MIn o século seguinte e cu lm in a de forma dram ática na Revolução
I laiu v sa.
I'oi m uro lado, o sistem a de D escartes é id ea lista . Q ue quer dizer
i .-•■>■' l ) idealism o é a tese op osta ao realism o m etafísico. Para o realis-
( iiécia e Idade M édia - as coisas têm um ser por si, eu sim ples-

241
1
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

m enie existo entre elas, e a verdadeira realidade são as coisas - res. Sn


quer dizer ser em s i, ser in depen dente d e mim. O idealism o, pelo con tra­
rio, pensa que nada sei de seguro exceto eu m esm o (o cogito); que so
sei das coisas na medida em que as veja, toque, pense, queira etc. (a
palavra cogitatio não significa apenas p e n s a r , m as todo ato psíquico);
ou seja, na m edida em que estejam em relação com igo e eu seja teste­
m unha delas. Não sei nem posso saber com o são as coisas separadas
de m im ; nem sequer se existem em m im , pois nada sei delas sem es-
tar presente. O u seja, as coisas aparecem com o sendo p a r a m im ; são,
portanto, Tdéias m inhas, e a realidade que lhes correspond e é essa rea-
lidade ideal. O eu funda o ser das coisas com o idéias suas; é isso o
idealism o.
C om o, em princípio, a razão não é o ponto em que o hom em se
vincula à realidade suprem a de Deus, m as algo privativo, reduzido a
sua subjetividade, o racionalism o se converte forçosam ente em idea­
lism o; por isso será preciso que D eus salve essa subjetividade e garan­
ta a transcend ência do sujeito.
D escartes funda sua filosofia nesses dois princípios. A partir de
então e até nossos dias, a filosofia será am bas as coisas - racionalista e
idealista - co m raras exceções. Foi só nestes últim os anos que a m eta­
física chegou a posições que, partindo da grande verdade parcial co n ­
tida nos dois p rin cíp ios cartesianos, corrigem a dim ensão de erro que
os afeta. Por um lado, p ercebe-se a essencial dependência que o eu,
por sua vez, tem em relação às coisas, co m as quais sem pre depara em
sua vida; por outro, altera-se a idéia exclusivista da razão especulativa
e de tipo m atem ático. Na Espanha, O rtega deu um passo decisivo
nesse sentido: sua m etafísica da razão vital1.

1. Cf. "L o s d o s c a rie sia n ism o s” em Ensayos de teoría. (O bras, IV.)

242
11. O CARTESIANISMO NA F R A N Ç A

i ii",i aiics determ ina toda a filosofia do século XV II no con tin en-
i‘ *.«t.i m lliicncia é visível, não só em seus discípulos e seguidores
íimi ili.iins. mas nos pensadores independentes, até m esm o nos teólo-
, cm I .i s c a i , em Fénelon ou em Bossuet. E, sobretudo, em M ale-
iM nu In-, e lora da França nas grandes figuras de Espinosa e Leibniz.
' • ............ o desenvolvim ento dessa filosofia.

I M alebranche

I V rsn n a lid a d e • N icolas M alebranche nasceu em Paris em 1 6 3 8


i mm K'ii cm 1715. Era de fam ília ilustre e sem pre teve a saúde frágil,
i . |i ii ||ii- causou m uitos sofrim entos e exigiu m uitos cuidados. Estu-
i|i ui lilusdfia no Collège de la M arche e se sentiu d ecepcionad o, com o
hi m 11111‘s em La F lèche; depois, na Sorbo n n e, estudou teologia, e
i im pnuco lhe satisfizeram os m étodos intelectuais. Em 1 6 6 0 ingres-
i iii 11.i O rdem do O ratório, que deu à França altas m entalidades,
•l< ilr ii próprio M alebranche até o Padre G ratry n o século XIX. F on -
ii ui lli- ili;-ia que M alebranche fora levado ao estado sacerdotal “pela
Mii ui e. a e pela graça”. Os oratorianos tinham um a grande inquietude
iiiii lei utal e cultivavam Platão e Santo Agostinho, ao m esm o tem po
i ui i|iie sc interessavam por Descartes. Em 1 6 6 4 , M alebranche com -
pinii num a livraria o Traité d e 1’hom m e, de D escartes, que lhe causou
....... . Ini midavel impressão, e descobriu nele o m étodo que secretam en-
ii- \mlia buscando e esperando desde sem pre. A partir de em ão, sua
iiii liiu ça n para a filosofia ficou clara e estudou seriam ente Descartes.

243
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

C om pletou essa form ação com Santo A gostinho, sobretudo, e tam bcm
com um p ensad or dos Países Baixos, A rnold G eu lin cx, e os orienui
dores da ciên cia natural; Bacon, H obbes, G assendi etc. D ez anos de­
pois se iniciou a produção literária de M alebranche. Ao m esm o tem ­
po com eçaram as relações - cordiais ou polêm icas - co m a m aioria das
grandes figuras contem porâneas: Arnauld, Fénelon, Bossuet, Leibniz,
Locke, Berkeley. M alebranche sentia um profundo apego pelo retiro c
pela m editação solitária; sua vida foi recatada e silenciosa sem pre que
possível, dentro da com u nidad e oratoriana. E m orreu aos 7 7 anos,
ch eio de calm a e de profunda religiosidade.
O b ra s • A principal obra de M alebranche é a R ech erch e d e la vé-
rité. D epois p u blico u C onversations chrétienn es, e em seguida as in titu ­
ladas M éditation s chrétiennes. M ais tarde escreveu Traité d e la nature et
de la g r â c e , que su scitou um a violenta p olêm ica e foi in clu íd o no ín d i­
ce pela In qu isição. Tam bém escreveu um diálogo m uito im portante,
intitulado Entretiens sur la m étaphysiqu e et sur la religion, e um Traité de
m orale. Essas são as obras mais im portantes da produção filosófica de
M alebranche.
O o c a s io n a lis m o • O centro da filosofia de M alebranche es
em sua teoria do ocasionalism o, iniciada por Arnold G eu lin cx, pro­
fessor em Louvain e p osteriorm en te, d epois de sua conversão ao cal-
vinism o, em Leiden. O problem a de M alebranche, que parte da situa­
ção cartesiana, é o da tran scen d ência do su jeito e, em geral, o da co ­
m u n icação das substâncias. D escartes ainda tentara salvar de algum a
m aneira a in teração das substâncias, reduzindo-as a p equ en os m ovi­
m entos e alteraçõ es da glândula pineal. M alebranche vai afirm ar taxa­
tivam ente que não há nem pode haver co m u n icação n en h u m a entre a
m ente e os co rp os. “É evidente qu e os corp os não são visíveis por si
m esm os, que não pod em agir sobre nosso espírito n em ser represen­
tados nele" (R ech erch e de la vérité, esclarecim en to X). O co n h e cim en ­
to direto do m u n d o é, portanto, absolutam ente im possível; m as há
algo que possibilita esse co n h ecim en to : por um lado, Deus tem em si
as idéias de tod os os entes criados; por outro, “D eus está m uito in ti­
m am ente u nid o a nossas alm as por sua presença, de m od o que se
pode dizer que é o lugar dos esp írilos, assim com o os esp aços são em

244
O (.ARTESIANISMO NA FRANÇA

ii .................. lugar dos co rp o s. P ressu p o n d o-se essas duas co isas,


p 111111 11111' ii c ,p in to pode ver o que há em D eus que representa os
.............. ... |.i que isso é m uito espiritual, m uito inteligível e m uito
|in -i iii* p.u.i o esp írito.” E, algum as páginas d epois, M alebranche
n ii '.i i ni.i "Sc m\o víssem os D eus de alguma m aneira, não veríam os
ui ........... . 11 iisii" (R echerche de la vérité, livro III, 2 a parte, cap ítulo V I).
\ ililn uldade está nesse d e algum a m an eira. C o n h ece-se Deus in-
1111•chui i ui icílctid o , co m o em um espelho, nas coisas criadas, se-
)M111<li i ,■ 11 ■-111 de São Paulo ( R om an os, I, 2 0 ); Invisibilia Dei... p e r ea
/iii hi mi/ií mtellecta conspiciuntur. M alebranche esforça-se para
iimiiIi i um sentido reto e adm issível da visão de D eus, mas não con -
•nu i \ii.ii o erro. Com freqüência inverte os term os da fórm ula pau-
............. ... ma o co n h ecim en to direto de Deus e o das coisas nele. Esse
.............. .. utiu, sobretudo entre os “ontologistas” italianos do século
i l'i'M iimi e G ioberti.
I I 'eus que faz co m que eu co n heça as coisas inacessíveis. Sua
■ |>iiiii i . i I k taclf iraz em si as idéias das coisas corp orais, criadas por
i i' I i s t o o que têm em co m u m todas as coisas: ser criadas. O ser
, i,i |Hr',<■iiic nas coisas e as unifica num sentid o, apesar de sua radi-
■,il ■11- - i ulade. Essa vincu lação ontológica total é o que perm ite que
■h l m m sentido da ra zão. N um a subjetividade sem referência à
ii .iliil.idc nao se poderia dizer que houvesse razão. As coisas são ex-
11 n .r. e corp orais, alheias a m eu esp írito; m as as idéias de Deus, os
....... Irlus segundo os quais as coisas estão cria d a s - união do agosti-
i ii iiii i r do cartesianism o - , são espirituais, são adequadas ao ser pen-
.......... r o lugar dos esp íritos é Deus. O hom em participa de D eus, e,
ui I, d.is coisas, e assim se evita o abism o m etafísico. Não há interação
iliu-iii entre as su bstâncias; a congruência entre elas é operada por
l 'i li'., essa é a teoria das cau sas ocasion ais: eu não percebo as coisas,
m.e.. p o r oc a siã o de um m ovim ento da res ex ten sa, Deus provoca em
1111111 uma certa idéia; p o r oc a siã o de um a volição m inh a, D eus m ove o
■i 'I po extenso que é m eu b raço. O decisivo é essa relação do espírito
I iu iim iu i com D eus, e co m as coisas apenas n ’Ele. M alebranche se dá
|ili ii.iiiiciite conta disso: “N ão existe ninguém que não con cord e co m
i |iie tod os os hom ens são capazes de co n h ecer a verdade, e até os filó­

245
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

sofos m enos esclarecid os estão de acordo com que o h om em partn i


pa de um a c e n a razão que não d eterm inam . Por isso definem -tu ■
com o a n im a l R A TIO N IS p a r tic ep s ; pois não existe ninguém que mm
saiba, pelo m enos co nfu sam en te, que a diferença essen cial do hom em
consiste na união necessária que tem co m a razão universal” (R cch a
che. de la vérité. esclarecim ento X).
As palavras de M alebvanche são de tal m odo claras e significativas
que prefiro citá-las textualm ente a fazer qualquer com en tário. Vemo'.
em Deus todas as coisas; é a co n d ição necessária de todo saber e dr
toda a verdade. M alebranche tom a literalm ente e co m todo rigor as pa
lavras de São Jo ã o no quarto Evangelho: D eus é lux v era q u a e illuminal
om nem hom in em venientem in hunc m undum . Portanto, D eus é ab so lu ta­
m ente necessário; em bora não se co n h eça a plenitude da essência divi
na, é forçoso pelo m enos saber qu e existe. A filosofia de M alebranche
tam bém necessita de um a prova da existência de D eus, e nela en co n ­
tra seu fundam ento. M alebranche leva o cartesianism o a suas últim as
co n seqü ências na direção m arcada por seu fundador. O utros filósofos
seguirão outros cam inhos, saindo do m esm o ponto de partida.

2. Os p en sadores religiosos

N o sécu lo X V II e nos p rim eiro s an o s do X V III ap arece na F ran ­


ça um a série de pensadores cató lico s, p referentem ente teólogos e
tam bém m ístico s, in fluenciad os de m od o profundo pela filosofia car­
tesiana. Surge assim um a co rren te intelectu al m uito fecunda, que ca­
racteriza a vida espiritual francesa d urante um século e cond icionará
a sorte u lterio r da filosofia na França. E m outros países, o p ensam en­
to teológico se m antém apegado às form as m entais e tam bém cxposi-
tivas da E sco lástica, e a filosofia m o d ern a segue um cu rso ind epen­
dente ou n em seq u er penetra neles. O s pensadores religiosos france­
ses estão inseridos na tradição m edieval, articulada em torno de dois
pontos capitais: Santo A gostinho e Santo Tom ás; mas receb em a in ­
fluência do cartesian ism o , sobretud o no que se refere ao m étodo, e
dessa síntese surge um a nova form a de pensam ento, que se poderia
talvez cham ar de “teologia cartesiana” ou quem sabe m oderna. Sobre os

246
O I ARTESIANISMO NA FRANÇA

>.in ■.igostm ianos m antém -se a arquitetura geral do tom ism o


t ........... .um irin p o , u iilizam -se as conclu sões filosóficas de D escartes
...........m l,, ,. nu-iodo de investigação e de ex p o sição literária. Desse
■Iii••I,> .il\ .1 ,i tradição helénica e m edieval, atreland o-a ao pensa-
ihmu, u i,nlrin o , (.■ o pen sam en to católico da F ran ça adquire um a vi-
i.ilül i,l, (|ii logo perdeu em outros lugares. P or outro lado, esses teó-
, I i.in.iiM ( (instantem ente n o s problem as da filosofia, e com fre-
•111, 11, i.i ,ii icsi cn iam -lh e a p recisão e o rigor que a teologia sem pre
,1.......... .... ti .am cnio m etafísico.
' | .m sriiistas • C o rn élio Ja n se n ou Ja n sen iu s, bispo de Ypres,
i mi in n ..... irlaçáo com o abade de Sain t-C yran, tentara fund am entar
........c., i .u ili-.mo i- nos Padres da Igreja um a in terp retação teológica da
ii.iiiii, .i hum ana e da graça. Em 1 6 4 0 , p ou co d epois da m orte de seu
m i, 'I ,i|u u-m i o Augustinus d e ja n se m u s, que foi condenado três anos
, l, |••>i i ) i^ p in io ja n sen ista se infiltrara, so b retu d o , na abadia de
i ,11 l'. i\ . 11. dm gida por M adre Angélica Arnauld. P or m otivo da co n -
•I, ii.ii .in do Augustinus e da co n d en sação em cin co p roposições, lam -
U-iii 11 ti ii I, li,idas, da d ou trina jan sen ista, instau rou -se na Fran ça um a
I........ i \ IV.i p o lêm ica, c u jo s d etalh es não ca b e m aqui O s ja n s e n is -
i.i, ii|iiinham, por outro lado, à m oral casu ística dos jesu ítas, que
i, n i' .im k- lassidão. O s m ais im portantes pensadores do grupo de
r,,n l>‘i 'v.11 Inram A ntoine A rnauld ( 1 6 1 2 - 9 4 ) e Pierre N icole ( 1 6 2 5 -
1 , 1 All-in di- suas obras teológicas, am bos são au tores do fam oso li-
v i.. i iiiiLido I a logique ou Vart de p en ser, co n h e cid o co m o n o m e de
I iii;ii ,i i/c ro rl-R oy al.
r.ts ra l • Estreitas relações com os solitários de Port-Royal teve
l'.| ii i I'.i-.ml ( 1 6 2 3 - 6 2 ) , genial m atem ático, de estranha precocid ad e,
mi li, ii I- polem ista, esp írito profundo e apaixonad am ente religioso.
111 , al i-,c i-veu, além de tratados físico -m atem ático s, as Lettres à un
I 'i,'Wm idl ini Provinciates, m ed ian te as quais interveio na polêm ica an-
11|, .mi ii a .c sobretud o, suas P en sées sur la religion, obra fragm entária,
i ui',oi iipiMKis anotações d ispersas para um livro não escrito, de ex-
ii.iiiiiliiia n o interesse religioso e filosófico.
\11.11 n icm en te, Pascal se op õ e ao cartesian ism o , à su a co n fia n -
• i M.i i.i. ao, c é quase cé tico . Na verdade, Pascal é em grande m edida

247
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

cartesiano, até m esm o qu ando se opõe a D escartes. Por outro lado.


Pascal está rigorosam ente determ inado por pressupostos cristãos, e é
a partir deles qu e seu pensam ento se m ove. Se, por u m lado, Pascal
apreende o h o m em , co m o D escartes, p o r sua dim ensão p en san te, por
outro sente co m extrem a agudeza sua fragilidade, necessid ad e e m isé­
ria: o h om em é um can iço p en san te (un roseau pen san t). E dessa m iséria
do hom em sem D eus se eleva à grandeza do hom em co m D eus, que é
grande porqu e se sabe n ecessitad o e pod e co n h ecer a D ivindade. A
antropologia pascaliana é do m ais alto interesse.
No tocante ao problem a de sua atitude ante a razão, deve-se des­
tacar que Pascal distingue entre o cu e cham a raison - que costum a
entender com o raciocínio ou silogism o - e o que cham a coeu r, coração.
“O coração - diz ele - tem razões que a razão d esco n h e ce ." E acres­
centa: “C o n h ecem o s a verdade não só pela razão, m as tam bém pelo
coração; deste ú ltim o m odo co n h ecem o s os prim eiros p rin cíp ios, e
em vão o racio cín io , que não participa deles, tenta co m b a tê-lo s... O
co n h ecim en to dos prim eiros p rin cíp ios é mais firm e qu e qualquer
um dos que nos dão nossos raciocínios. E é nesses co n h e cim en to s do
coração e do in stin to que a razão tem de se apoiar e fun d ar todo seu
d iscu rso.” N ão se trata, p ortanto, de nada sentim ental, o c o e u r é para
Pascal um a faculdade para o co n h ecim en to das verdades principais,
fundam ento do racio cín io.
Pascal b u sca D eus, m as é, antes de tudo, um h om em religioso, e
qu er bu scá-lo em C risto, não só co m a sim ples razão. E escreve estas
palavras de resson ância agostiniana: “Fazem um ídolo da própria ver­
dade. Pois a verdade fora da caridade não é D eus; é sua im agem , um
ídolo que não se deve am ar n em adorar.” E resum e toda a sua atitude
filosófica num a frase que esclarece sua verdadeira significação. “Dois
excessos: ex clu ir a razão, não ad m itir nada além da razão .”
B o ssu e t • U m a das figuras centrais dessa corren te teológica in ­
fluenciada pelo cartesianism o éJacq u es-B én ig n e Bossuet ( 1 6 2 7 -1 7 0 4 ) ,
bispo dc M eaux, grande personagem em seu tem po, que foi a alm a da
Igreja da F rança durante m eio século. Foi um grande orad or sagrado,
hisLoriador, teólogo e filósofo. E m p enh o u -se, ju n to com L eibn iz, nas
negociações irên icas, que pretendiam reunir as Igrejas cristãs, e escre-

248
( ) <AKI fiSlANISMO NA FRANÇA

i v i .1 I li \h'i h i .lie. viir itittíes das Igrejas protestan tes. Suas obras filosófi-
. I* .I. Mli h u im portância são o tratado D e la co n n aissan ce d e Dieu et d e
■ï iM.'nir ï I Mm o n i\ sui l'histoire u niverselle, verdadeira filosofia da his-
............ 11h ,i- vinc ula co m a C id ad e d e Deus, de San to A gostinho, e pre-
...........I' ! ! I in modo a obra de V ico e Herder e, so bretu d o , de Hegel.
I I m Inn • O utra grande figura da Igreja da Fran ça é F én elo n ,
»!•. lu Ih ï de ( am brai ( 1 6 5 1 - 1 7 1 5 ) . A propósito do quietism o, a he-
I. ' . iiiiiinlii.-ulii pelo esp an h ol M iguel de M olinos, autor do Gui a es-
I a iimil ï dilm idida na F ran ça por m adam e G uyon, Fén elon tcve um a
I .ï ï oui Bossuet, e algum as proposições de sua H istoire des m a-
<iiii ,li ■, Mji/ifs loram con d enad as. F énelon , co m o fiel cristão, retra-
I *111 .ï ili ,eu cito . Sua obra filosófica m ais interessante é o Traité de
I . ■hii m< r <!(' Dieu.
I i iiclon representa, em certo sentid o, u m a co n tin u ação do pen-
inii mu di1 Bossuet, mas vai m ais longe. Não só in corp ora um a série
■I' il' ï n bcrtas cartesianas, co m o o dualism o e a com p reensão do h o-
iii.-m I nm o ente p ensante, m as adota para si o m étod o de D escartes:
. h r . h l.i universal. A p artir da evidência ind u bitável do eu tenta re-
- Mip.mm a realidade e chegar a Deus. A segunda parte de seu tratado
. . I.n.im cnte cartesiana. M as enq u an to D escartes é pura e sim ples-
■II. nii um filósofo, F én elo n é teólogo acim a de qu alqu er outra co isa ,
I h)1 isso a o rien tação de seu p en sam en to é em ú ltim a in stâ n cia
Ih m d istin ta.

249
II I . E s p i n o s a

Viil i i i ■.( i n o s • Baru ch de Espinosa nasceu em Amsterdã (H o-


Uik í h i ui |j' W Procedia de um a família ju d ia espanhola, que im i-
im u i ii 1111ii >'■ .mies para Portugal e depois para os Países Baixos. Suas
"pinim , ir IijMosas provocaram sua expulsão da sinagoga, e desde en -
n . i i n l.n ninou mais co m m eios cristãos, em bora não tenha profes-
.......................Innao. Seu nom e hebraico foi latinizado, e ele o usou na
I...... . . ili IV nrdictus, Bento. Viveu na H olanda, sobretudo em sua ci-
il.nli ii.n.il c i'ui 1 laia, sem pre pobre e m odesto, dedicado a polir cris-
i ii ' i|ii ii o-. I spinoza (ou, se preferirem, Espinosa, na forma espanhola
ili .1 ii '.o h in io m e, provavelm ente a usada originariam ente na família)
Iih ■.riiipn doentio, m od esto e com grande necessidade de ind epen-
111iii i.i Nao aceitou um a n om eação de professor na Universidade de
l lrH Irlln-rg para não com p rom eter sua liberdade, e m anteve uma leal
.um. .ide com Ja n de W itt. M orreu, ainda jo v em , em 1 6 7 7 .
I s c reveu. salvo algum a obra em holandês, quase tudo em latim.
■I ir. principais escritos são Tractatus de intellectus em en dation e, Breve
Ihiíiiili) de Deus, o h om em e su a felic id a d e (em h olan d ês), Tractatus theo-
/ueii <>■[wliticus, Tractatus politicus, um a exposição dos Princípios de
I >i- i nnes; C ogitata m etap h y sica e, sobretudo, sua obra-prim a, pu bli-
■,ul,i depois de sua m orte: a Ethica ordine seo m etrico dem on strata. Essa
■il ii ,i segue a forma de exposição dos livros de m atem ática, com axio-
m;is. d ehnições, proposições com suas d em on strações, escólios e co-
II »la ri os. É_um exem plo extrem o da tendência racionalista e m atem á-
nca, aplicada até à forma exterior da filosofia.

251
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

I. M etafísica

ü p o n to de p artid a • Espinosa está inserido num a tradição filo­


sófica m últipla. Em prim eiro lugar e de m odo m ais direto, na tradição
cartesiana p ró x im a; está adem ais vinculado a uma rradirão
ca, sobretud o ao escotism o e ao ockham ism o, e con h eceu e estudou a
obra de Suárez. Tem tam bém con tato co m as fontes hebraicas: em
prim eiro lugar, a Bíblia e tam bém o Talm ude; em segundo lugar, os fi­
lósofos ju d e u s m edievais, principalm ente M aim ônides e a Cabala.
Deve-se acrescentar outro m om en to , que é a tradição grega, em parti­
cular o estoicism o. E, além disso, a influência da ciência natural con-
tem porânea e da filosofia de G iordano B ru n o , e da teoria do Estado e
da política dg H o bbes. Estas são as principais raízes do pensam ento
cle E spinosa, que lhe conferem um caráter peculiar den tro da m etafi-
sica d o século X V II.
A s u b s tâ n c ia • E spinosa parte da situação de D escartes. Este di­
zia que por substância se entende aquilo que n ão precisa de nada
para existir, e, a rigor, só D eus poderia ser su bstância: m as logo en ­
contrava o utras substâncias que não necessitam de outras criaturas
para existir, em bora precisem de D eu s: a res cogitans e a res extensa.
Espinosa tom a isso com todo rigor e define a substância deste m odo:
P er su bstantíam intelligo id qu od in se est et p er se concipitur; hoc est, id
cujus conceptus non indiget canceptu alterius rei, a quo fo r m a r i d ebeat:
i Por su bstância entendo aquilo que é em si e se co n ceb e por si; isto é,
I aquilo cu jo conceito não necessita do conceito de outra coisa para se_
|formar. Portanto, para Espinosa haverá uma única substância. Que
sâo, então, as outras coisas? Não são substâncias: são atributos', o atri­
buto é o que o entendim ento percebe da substância com o constituinte
de sua essência. Existem infinitos atributos; mas o in telecto conhece
a p e n a sjin is cngitatio e extensio, pensam ento e exten são . Ou seja, a res
cogitans e a res extensa cartesiana, rebaixadas na hierarquia ontológica;
não são mais substâncias, e sim sim ples atributos da substância única.
As coisas singulares - que já em D escartes ficavam despojadas de
seu tradicional caráter su bstancial, reservado às duas res - são m odos
da su bstância, isto é, afecções dela, aquilo que é em outro e se con ce-

252
E s p in o s a

be por outro. Esses m odos afetam a substância segundo seus diferen ­


tes atributos.
D eu s • E spinosa define Deus com o o ente absolu tam en te in finito;
ou seja, a substância que contém infinitos atributos, cada um dos
quais expressa um a essência eterna e infinita. Esse ente coin cid e com
a única substância possível. É o ente necessário e a se, e fica id en tifi­
cado com a substância; os atributos desta são os infinitos atributos de
Deus. E este Deus de Espinosa, igual à substância, é natureza. Deus sive
n atu ra, diz Espinosa. A substância - ou seja Deus - é tudo o que ex iste,
e todas as c oisas são afeccões suas. É, portanto, natureza num d up lo
sen tid o : no sentido de que todas as coisas procedem de D eus, de que
é a origem de todas as coisas - a isso Espinosa cham a n atura naturans;
m as, por outro lado, D eus não engendra nada distinto d’E le, de m odo
que é natureza num segundo sentido: as próprias coisas que em ergem
ou brotam - e a isso cham a natura naturata. O sistem a de Espinosa é.
portanto, panteista.
O Deus de E spinosa está expresso pelas coisas singulares no
dois atributos fundam entais que o hom em conh ece: pensam ento e
extensão. Volta, p ortanto, para o esquema cartesiano, mas com u m a
m odificação essencial: das três substâncias de D escartes, um a in fin ita
e duas finitas, só a prim eira conserva o caráter su bstan cial, e as outras
duas são atributos seus.
A co m u n ic a çã o d as su b stâ n cia s • V im os aparecer esse p ro b le­
m a na m etafísica cartesiana, e sua primeira solução ocasionalista. Ma-
lebranche nega que haja efetivam ente um a com u nicação das su b stân ­
cias. A doutrina de Espinosa é ainda mais radical: consiste em negar
p u ra e sim plesm ente toda pluralidade de su bstâncias. Há apenas u m a ,
co m dois atributos da m esm a: não pode haver com u n icação, só corres­
p on d ên cia. Há um estrito paralelismo entre os dois atributos c o n h e ci­
dos - extensão e p ensam ento - da substância única, portanto entre a
m ente e as coisas corporais: Ordo et connexio d iearu m idem est, a c ordo
et conn exio rerum. A ordem ideal é a m esm a que a real. E é ju sta m e n ­
te o fato de fazer a extensão e o pensam ento - em sum a, o m undo em
seu mais amplo sentido - perderem o caráter subsistente que ainda c o n ­
servavam em D escartes, para reduzi-los a m eros atributos da su b stân ­

253
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

cia única, que obriga a identificar esta co m Deus, por um lad o , e com
a natureza por outro: Deus sive su bstan tia sive natura. Nesse m om enio
surge o panteísm o de Espinosa. Em sua filosofia, p raticam en te não sr
ocupa de ouira coisa senão de D eus; mas isso, que pod eria p a re m
uma nova teologia, não é m ais que o estudo m etafísico da substância,
e, ao m esm o tem p o , a consideração racional da natureza, entendida,
ao m odo cartesian o , geom etricam ente.
No sistem a de Espinosa, co m o em todos os dem ais do século
XVII, é p reciso garantir a existência de Deus. E isso num sen tid o tal­
vez ainda m ais extrem o, já que tem de atribuir à própria natureza, ju n ­
to com o caráter substancial, a divindade. S er não qu er d izer em Espi-
nosa ser cria d o p o r D eus, mas sim p lesm ente ser divino.

2. Ética

O p la n o d a “É tic a ” • A m etafísica de Espinosa cu lm in a em sua


ética. Por isso, sua obra fundam ental, a que expõe o co n teú d o geral
de sua filosofia, leva esse título, Está dividida em cin co partes: I. De
Deus. II. Da natu reza e da origem da m ente. III. Da o rig em e da n a­
tureza das p aix õ e s. IV Da servid ão h u m ana, ou da fo rça das p a i­
xões. V Da p o tên cia do intelecto , ou da liberdade h um ana. Expõe,
portanto, prim eiro, sua ontologia: a teoria de Deus ou da substância:
em segundo lu gar estuda a estrutura da m ente e aborda o problem a
do co n h e cim en to ; em seguida enu m era e define as p aixões, in terp re­
tadas de um m od o naturalista e g eom étrico: quer falar das açõ es e dos
apetites hu m ano s “com o se fossem linhas, planos ou co rp o s ”; por úl­
tim o, expõe a teoria da escravidão hum ana ou da liberdad e, segundo
pred om inem n o h om em as paixões ou a razão; é nessas ú ltim as par­
tes que form ula propriam ente o problem a ético, no qual resum e todo
o sentido de su a filosofia.
O h o m e m • Para Espinosa, tudo é natureza; não faz sentid o co n ­
trap or-lh e o u tra co isa, por ex e m p lo espirito. O h o m em é cogitatio',
m as esse p ensam ento é tão natureza quanto uma pedra. O hom em é
um m odo da su bstância, um a sim ples m odificação de D eus, nos dois
atributos da exten são e do pen sam ento; nisso consiste a peculiarida-

254
I iSPINOSA

11- 11m■m i|'i. ii ui c o r p o e alma: a alm a é a idéia d o co rp o , h


1 1i.i Hiii.i. \ ii.i i iii ic s p o n d ê n c ia entre as idéias e as coisas, há u m
ii 11 •i ■11‘ li -imii n itre a alm a e o corpo. Tudo o que acontece com
4éli Min........................ suas próprias paixões, é natural e segue o
................. ........ . iiaiurcza. Para Espinosa, “é livre a coisa que exis-
p> | i ! i .............. .. r v ,ui;ulc cie sua natureza e d ecid e agir por si só”; é
nr i.i <11IiIh ui,ulc na qual só Deus é livre. E sp inosa é d eterm inis­
ta u i" , |""li i u iM ilcrar o hom em co m o um im pério dentro de
intiH 11111ii imi 1'niianio, o h om em não é livre, nem o m undo tem
<im i 11m ili.l iili luilu c necessário e está determ inado causalm ente. O
...................... .i i .iv11 porque acred ita ser livre e se vê arrastado pela n e-
i hl i,l, \n i iin ,si \ç 1 um m odo de liberdade: o co n h e cim en to .
............. " In .....ui ,abc o que é, sabe que não é livre e não se sente
•liu i,i ui........ .. lu zid o , mas sim determ inado segundo sua essência; por
.•'iM t,i i liberdade. O ser do hom em , que é um m od o da subs-
>ni, ..................ui n\ r um corpus, consiste em não ser livre e em sabê-lo,
, mi i -1 i li.i 11.11111* j .i, em D eus. Aqui ressoa o p rin cíp io estóico: p a re-
í, ) , ■ Iil'i i fie. o bed ecer a D eus é liberdade.
\ 1111■ 11|i.i. n saber sobre o ser, sobre a su bstância, é um saber de
I ........... > i mndo suprem o de co n h ecim en to , n o qu al residem a li-
l„ ui i,|i i ,i Irlii idade, é o a m o r D ei intellectualis, o am o r intelectual a
I ii ii ........ .. ii i ul m inam , a um só tem po, a filosofia e a vida hum ana
•III I pll II r.,1

1 < > sri como esforço de perduração

■i III pane da Ética, Espinosa expõe um a idéia do ser com o afã


I, 11>i<lui.ii ii ilnmamente, que im porta conhecer, ainda que seja com su-
■>i , i I <ii vi<I.hli' j n da coisa - diz Espinosa enquanto está em si, tende a
i'i ' ■•■I n ■■iii -■eu se r, e esse esforço (con atu s) n ão é sen ão a essência
.li ii il i l.i ( i usa, esse esforço envolve um tempo indefinido, infinito: é um
ij j i li ii mi ii ui.ir sendo sem pre. A mente hum ana tende a perdurar inde-'
11M111. 1111i i 11c c e con scien te desse esforço, que, qu an d o se refere ape-
II.i. .i mm 111<■. se cham a von tade, e quando se refere sim ultaneam ente à
mu ui' i ,m curpo, se cham a apetite', e esse apetite de ser não é senão a
I ii i '111111 i . ucia do hom em : o desejo é o apetite co m co n sciên cia. _

255
H istória da filosofia
1
Não tend em os às coisas - diz E spinosa não qu erem os ou a p r
tecem os algo porqu e o co n sid erem os b o m , m as, ao co n trário , julg:i
m os qu e algo é bom porqu e ten d em o s para ele, porque o querem os,
o ap etecem o s ou d esejam os. Esta cu piditas é o principal afeto do ho
m em ; existem outros dois que são fundam entais, a alegria e a tristeza,
que co rresp o n d em ao au m en to ou à d im inuição do ser e da perfeição,
destes três afetos proced em tod os os outros e toda a vida psíquica do
h om em : o am or, o ódio etc.
P ortan to , o qu e co n stitu i o ser das coisas para Fspinosa p um ?<;-
fo r ç o (con atu s), um a ten d ên cia, e esse esforço é um afã de ser sem pre \
Portanto, s e r a u e r dizer nara E sp ino sa q u erer ser sem p re, ter ap etite dç
etern id ad e ou. pelo m enos. de perduracão. A essên cia do hom em e
d ese jo : o h o m em co n siste em d e se ja r ser sem p re e sa b e r q u e o d e ­
seja. N esta form a radical en laçam -se o problem a do ser e o problem a
da im ortalid ade em Espinosa.

256
IV. L eibn iz

................ • G ottfried W ilh elm L eibniz n asceu em Leipzig


n u i' ..............ou ii i-m I la n n o v e re m 1 7 1 6 . Sua fam ília era protestan -
l, j ii i.lii ,in jiu k lic a . L eibniz estudou in ten sam en te desde m uito
I •••■t ,i In umi.i . clássicas, grego e latim ; as literaturas da Antiguidade,
ii !>ii ■ 11,i •■■■mI.iviku, qu e co n h ecia m u ito b em , e depois a dos m o -
íl» ■.• ■ i............... m ip a n ella , D escartes, H o bbes; travou co n h ecim en -
i ,..i i ui.li. ui. um a e a física co n tem p o rân ea, e estudou as obras de
I ■..................ilili ii alem disso, trabalhou seriam ente em questões ju rí-
>In i . I n .h M ii , i s , iniciou-se na alquim ia e sentiu im ensa curiosidade
I ' •l.i i Ini inas do saber.
'■ <|<nI iinriiic Leibniz co m eça a intervir na vida de seu tem po.
I i. •* 11 il ■.li I, i‘. para as socied ad es eruditas européias; vai para a Fran-
< ■i . i mi ii> diplom ática e trava relações co m os m elhores in telec-
Mi •' .I.i' 11ii li . anos; vai tam bém para Londres. D epois, em 1 6 7 6 , des-
t i !■ o * ili iiln m linitesim al ou calcul des injinim ent petits, ao m esm o
i, ••■|............. |iu- N ew ton d esco b ria a m esm a d iscip lin a, em bora de for-
........I r ........ i oni o nom e de m étod o d os/lu x os. Isso su scitou um a gran-
li i' -l< m ii.i cn iie os partidários de am bos - mais do que entre eles
............... , ui.i parece que a descoberta se deu de m odo independente
i ui iiilliirn i ia de um so bre o outro.
mIiuii p;iia a A lem anha e foi nom eado b ibliotecário de H anno-
<.11 ■ii ii Ir passou a viver desde então, excetu an d o seus períodos de
■In.!.' ii Ali desenvolveu intensa atividade intelectu al, d iplom ática e
1'nliin ,i i i oino historiador dos A nnales Brunsvicenses. Por iniciativa
•ii.i l"i luiiil.ula a A cadem ia de C iências de Berlim , nos m oldes da de

257
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Paris e Londres, em 1 7 0 0 , e L eibn iz foi seu prim eiro presidente. 1 m


um grande personagem de sua ép oca e esteve, adem ais, na Itália, Áus
tria e H olanda. O cu p o u -se ativam ente de seu p ro jeto de união da:.
Igrejas cristãs. Sentia-se m uito p ró x im o do cato licism o , m as não qui-
ria ab ju rar e se converter, e sim u n ir novam ente os d o is cred os; api-
sar de seus esforços e dos de Bossuet e Rojas Spínola, o plano fracassou
| Leibniz m orreu na solid ão, o bscu ram en te e quase ab an d on ad o, d i~
I pois de um a vida intensa e de m aravilhosa plenitude in telectu al.
O b ra s • L eibniz escreveu in ú m ero s livros de m atem ática, física,
história e, so b retu d o , filosofia. Q u ase todas as suas obras estão escn
tas em francês ou em latim e apenas poucas e secu n d árias, em ale­
mão. Esta língua ainda não tinha cu ltu ra filosófica, e só a adquiriu nas
m ãos de W olff, d iscípulo de Leibniz. Toda a p ersonalidad e leibnizia
na acusa um a forte influên cia francesa, e ele em pregou de preferên­
cia, além da língua in tern acio n al - o latim - , a língua cu lta da época.
As p rin cipais obras filo só fica s de L eibniz são: dois livros exten sos, os
N ou v eau x essais su r l’en ten dem en t hu m ain e a T h éod icée (o p rim eiro, di­
rigido co n tra o E ssay C oncerning H u m an U nderstanding do filósofo in ­
glês L ocke, não foi pu blicad o em vida de Leibniz, p o rqu e L ocke m o r­
reu en q u an to era preparada sua p u b licação ; a Teodic é ia d iscute o p ro-
b lem aj a ju stificação de D eu s, ou seja, o de sua bond ade e onipotência
em relação co m o mal e com a liberdad e hum ana); adem ais, vários es­
critos breves, sobretu d o o D iscours d e m étap h y siq u e, talvez o m ais sis­
tem ático e in teressante; o S ystèm e nouveau de la n atu re; os Principes de
la nature et de la g râ ce, fo n d és en raison , e a M on ad olog ie, que com pôs
para o p rín cip e Eugênio de Saboya. M anteve, além disso, um a extensa
co rresp o n d ên cia in telectu al com A rnauld, C larke etc., ainda em gran­
de parte inédita.

I. A situação filosófica de Leibniz

Leibniz en cerra um período da filosofia, a época b a rro ca , em ter­


mos gerais, que se inicia filosoficam ente com D escartes. O u seja, Leib­
niz aparece no final de um a ép oca de densidade m etafísica poucas ve­
zes igualada. Q uand o Leibniz ch ega à m aturidade, já faz sessenta

2 58
I J - I BN1 Z

f|iit * i : Mi.t.ili ii ,i im en s am en te . O s s istem a s do racionalism o


U v11 1 1 1 1■111111 oiiii rapid ez: D escartes, M a leb ra n ch e , E spinosa,
dl |‘ii|I li’, j.uiscnistas. Nessa é p o c a h o u v e ta m b é m u m
Mm(* ........ . ...... Iro l o g ic o , a E scolástica e s p a n h o la . Suárez, Mel-
I iiiin li iiii . . M olm a, lo d o o m o v i m e n to e m to r n o do C oncílio
llPlUii lillin i i -.i.i a ir n i o a essa dupla co rren te , a do racionalism o
Li*I.......... ... I r o l a s t i c a - s o b re tu d o e sp a n h o la - p o r outro.
|i,liiin.r. .i IIiim iu co m grande freqü ência n om es esp anhóis,
J t t t l ....................... i- lisvrain u m a u tên tico valo r in telectual e u m lugar
h i-im iii ' h.i d " iKMisamento: os que tiveram eficácia e rigor m en-
Mk < ...................‘ 'Ml. iilante p ara q u e m m a n t é m a c o r d a d o o sen so da
■Milriili i ii.i.' ■-.!,i di- fáceis glorificações e m q ue, n a co n fu sã o , per-
>>,i

itk M i. I.' i I.ii■ ,i i hierarquia. Leibniz su p e ra p o r co m p le to o d es-


tllHli.......... I ii i" .i I-snilástica q u e c arac te rizo u os p en sa d o re s superfi-
, 1,11 » i|n l'i li.r.! iini-uio e q ue a in d a se m a n te v e , pelo m e n o s e x te r n a -
•iii mi ui • ........ . racion alistas; volta de m od o exp lícito a u tilizar
•• 111•11 .ii I. >i. In ;is c m u itas das m edievais, além de vários co n ce ito s
ii. |h|.i ii 111111 .u11 . em Trento. D ed ica-se a lém disso in te n sa m en te à
ii. tu ni.Hii .i i- ,i nova ciê n cia n atu ral e p r o m o v e u m extra o rd in á rio
jit >|Mi .. .li milhas. Desse m o d o , reú n e e d o m i n a p o r c o m p le to t o-
♦|ti - . i ii i.lii i.i . Iiliisóficas, teo lógicas e cien tíficas. L e ib n i z é o re su m o
•m|.... .........I. iml.i a ;ua é p o ca .
... .......... nnic lo n c r e t o e m q ue Leibniz se m o v e é a situação filo-
■ >1ii i . li m hLmuii Desca rte s e E spinosa. Leibniz é talvez o p rim eiro
u i. ■ii -i -i i ui ,1-niido estrito; e m D escartes, o idealism o ainda está las-
iii -i.I ii ii. ii . i Iimiio c d e idéias escolásticas, e E sp in o sa não é p ro p ria-
.................li i I i .i.i nu que te m de mais peculiar, e m b o r a o seja no c o n t e x -
11•|i|i i>ln»'.n n di .i-ii le m p o e m que seu s p ro b le m a s lhe são c o lo c a d o s .
1 1 iImii . \n,i o b rig a d o a fo rm u la r c o m rigor as g ran d es q uestões da
r I ii ii ii . h i.i dl- alterar e ss en cia lm e n te a idéia da física e o p ró p rio
im i .............. ... '.iilisu tn d a , no qual, d esde Aristóteles, a filosofia se m p re
"1 i I III li II I

259
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

2. A metafísica leibniziana

D in a m is m o • Para D escartes, o ser era res cogitan s ou res ex/eu


sa. O m u n d o físico era ex ten são , algo quieto. D esco n h ecia a idéia d<
força, pois lhe parecia confusa e o bscu ra, e im possível de ser traduzi
da em co n ceito s g eom étricos. Para D escartes, um m o v im en to consis
tia na m u d an ça de posição de u m m óvel em relação a um ponto de
referência; os dois pontos são intercam biáveis: dá na m esm a dizei
que A se m ove em relação a B, ou que B se m ove em relação a A; o que
interessa para a física é a m u d an ça de posição. D escartes acha que a
quantidade de m ovim ento (mv) perm anece constante. L eibniz d em on s­
tra que a co n stan te é a força viva (l/2m v2). Leibniz co n sid era absurda
essa física estática, geom étrica. U m m ovim en to n ão é um a sim ples
m udança de p o sição , m as algo rea l, produzido por um a força. Se uma
bola de. bilh ar bate em outra, esta se m ovim enta, e isso oco rre porque
existe um a força, uma vis que faz com que a segunda bola se ponha
em m o vim en to . Esse co n ceito de força, vis, im petus, con atu s, é o fu n ­
d am ental da física - e da m etafísica de Leibniz. A idéia da natureza es­
tática e inerte de D escartes é su bstitu íd a p or um a idéia dinâm ica-, co n ­
tra a física da ex ten são , um a física da energia; não g eo m étrica, m as fí­
sica: não esq u eçam o s qu e, desde a G récia, a natureza é p rin cípio dc
m ovim ento. L eibniz tem de chegar a um a nova idéia da su bstância.
A s m ô n a d a s • A estru tu ra m etafísica do m u n d o é p a r a T e.ibniz a
das m ô n a d a s. M ônada - (aováç - qu er dizer u nidadg. As m ôn ad as são
as su bstân cias sim ples, sem partes, que entram na fo rm ação dos co m -
gQSLQè; são os elem en tos das co isas. C om o não têm partes, são rigoro­
sam ente ind ivisíveis, á to m os, e, p o rtan to , in exten sas, p ois os átom os
não podem ter extensão, já que esta c sem pre divisível. U m átom o
m aterial é u m a expressão co n trad itória: a m ônada é um á to m o form al.
Essas m ônad as sim ples não p od em ser corrom p id as, nem p erecer por
d issolu ção, nem co m eçar por co m p o sição . P ortanto, um a m ônada só
chega a ser p o r criação e só deixa de ser p o r aniq u ilam en to . Com eça,
p ortan to, a ser tout d ’un cou p, não p o r geração. Essas m ônad as - diz
Leibniz - n ão têm jan elas; ou seja, não há nada que possa se despren-

260
I MUNIZ

iiiim I |'i ii j>.iI.■ o iu ra e influir nela. M as as m ô n a d a s têm


'Ii -11111. c. c i a r e si; ad em ais, m u d a m de m o d o co n tí-
IIM. i — i mui hm. a n.ii) c ex trín seca , e sim a m an ifestação de suas
|Ih Iii I.*>Ii iiiii i ii .I-.

...... . ^ ' : ^ 1 1 Ima vis rep ra esen tativ a ou força de rep re-
■kíi, i t-1 1 iii.Mi.kI.i n-presenta ou reflete o u n iv e rso inteiro, ativa-
14, .!■ ili u ii i' 1'iiiii . li' vis t a . Por isso, as m ô n a d a s são insubstituí-
• inl.i um i ii lli ii o u n iv erso de u m m o d o p ró p rio . A metafísica
i j'lniiili'.M i- tw isp ectiv ista. N e m to d as as m ô n a d a s são de
|ii> i i i . .............Ili'iciii o u niverso co m d iversos graus de clareza.
i.ii iml.r, :is m ô n a d a s t ê m c o n s c i ê n cia de seu refletir.
i|.. I.' ii ............ u m ia e m e m ó r ia , p o d e -s e falar n ã o só de v erc ep -
.11' . d ', ii. I'liii': esie é o ca so das m ô n a d a s h u m a n a s . Mas essa
i f i r f t f in I. i" . ii in .1 c u m fazer da m ô n a d a , u m c o n a to , u m a ap eti-
10 ' 111. cm ii i|" i li i p ro p rio fundo o n to ló g ic o dela, de sua p ró p ria
»♦•li.l i.l. .................|iu' a c o n t e c e c o m a m ô n a d a brota de sen p ró p rio
I. ii i- ri. -.iliilulades internas, sem in terven ção exterior.
I ............. 1 1 ihm:: laz o co n tr á r io de E sp in os a: e n q u a n to este re-
<Jy» i .il. ........... ilulade a u m en te ú n ic o , n a tu re z a o u D e u s , Leibniz
ki ii ui i " I <--i nu i.i o caráter de coisa sin gular que tinha desde A ristó-
11 U i I ■ - ■ 11" .ciiiido, a volta à in te r p r e ta ç ã o d o co n c e ito de subs-
i*ii- i i ■..Ni.! liii.ci ou bem de u m a coisa, oúoicc e m grego , c m vez de
■ui ........................... tia in d ep en d ên cia - c o m o D e scartes e, mais ain-
h I |'iii" i .'|iii na m etafísica grega foi s e m p r e u m a c o n s e q ü ê n c ia
I . M ii. i uh .......... .. no se n tid o da ousía. A s u b s tâ n cia , dizia A ristó-
'j I i .. l u i r n n dc ra d a c o is a . A nte a dualid ad e cartesian a da res ex-
........ . i <l.i h . i iii;ií(iii.s, p re sid id as pela res infinita q u e é Deus, Leibniz
• -li.i |.-ii i m ii.i ab solu ta p lu ralid a d e de m ô n a d a s su b s ta nciais, que
..u i............. a ■om todo rigor, a totalidade de suas possibilidades o n -
M l"|M.......... a .iilciiancia o u n a tu re z a v olta a s e r p rin cíp io do m o v i m e n -
<i- u i pi< <pi i . r . ' oisas, c o m o e m Aristóteles. A p e s a r de suas ap aren tes
.................... .... i o m Platão, pela teoria das idéias inatas, Leibniz é o
Mi.jit .i i I ,imii li. o dos m etafísicos do racio n alism o , e daí d ecorre em
i'*nii ii.i nu om paiavel fecu nd id ade, que a filosofia sem pre recuperou
■|nmi|ii -.i po-, cm c o n t a t o vivo c o m Aristóteles.

261
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A h a rm o n ia p re e s ta b e le c id a • C om o as m últiplas m ônadas qiu


co n stitu em o m u n d o não têm ja n ela s, o problem a da im possível eo
m u n icação das su bstâncias não é m ais apenas um problem a do cn
n h ecim en to , mas, antes de tu d o, da própria ordem e da con gru ên eu
do m undo em seu co n ju n to . O aco n tecer do u niverso só pode ser ex
plicado partind o-se do pressup osto de que tudo em erge do fundo in
dividual de cada m ônada. C om o é então que elas form am um m untlo
cheio de co n exõ es, que seja possível co n h ecer as coisas, e que ttuln
ocorre no m u ndo com o se ocorresse essa qu im érica co m u n icação dns
su bstâncias, que é preciso rejeitar? É forçoso adm itir um a ordem esla
belecid a previam ente a cada m ônad a, que faz co m que, ao desenvol
ver solitariam ente suas p ossibilidad es, coincid a co m todas as restan
tes e se en co n trem h arm o n icam en te, constitu ind o u m m u n d o , apesar
de sua radical solidão e in d ep end ência. E essa ordem só Deus pode
tê-la realizado em seus desígnios, ao criar suas m ôn ad as, isoladas e
reunidas ao m esm o tem po. “É p reciso, pois, dizer que D eus criou pri
m eiro a alm a, ou qu alqu er outra unidade real, de m aneira que tudo
nasça de seu p róprio fundo, por um a perfeita esp ontaneid ade com re­
lação a si m esm a, e, no entanto, em perfeita conform idade com as co i­
sas de fora” (S ystèm e n ou veau , 14). F oi o que Leibniz ch am ou de h a r ­
m onia p reesta b elecid a .
Estas são as três solu ções possíveis para o problem a idealista da
com u n icação das substâncias: o o casion alism o, o m on ism o e a har­
m onia p reestabelecid a. C onform e um exem plo fam oso, o problem a
equivaleria ao de sincronizar vários relógios. Na solu ção de D escartes
e M alebranche, o relojoeiro - D eus - sincroniza con stan tem en te os
dois relógios - p ensam ento e exten são que não têm qu alqu er rela­
ção direta entre si. Em Espinosa o problem a é negado; isto é, não exis­
tem dois relógios, m as um só co m duas esferas: dois aspectos da m es­
ma realidade, dois atributos da m esm a substância, que coin cidem com
Deus. Em L eibniz os relógios não são dois, mas m u itos; e tam pouco
têm relação entre si, nem o relo joeiro acerta co n stan tem en te sua hora:
isso seria um m ilagre perpétuo, e lhe parece absurdo; m as o relo joei­
ro con struiu os relógios de m od o que m arquem ao m esm o tempo a
mesm a hora, sem se influenciarem m utuam ente e sem que sejam to-

262
LlilHNIZ

mil. ........ . uh iiH-nic, c c m virtude de sua c o n s tr u ç ã o prévia, os


UM**...- -....I............ . ■.iiuronia, Inarm onicamente. Esta é a h a rm o n ia
jIm Ii i i' I 1

i i |ii'|" I ii. I >cits • Sc v o lta rm o s a a te n ç ã o para o p ro b le m a do


•••ill' n u , ...... m i ....... r. (|ue ta m b é m e m Leib niz é D eu s que garante
• m in iii'Ii'Ii'IM i.i 1 1c m in h a s idéias c o m a realid ade das coisas ao fa-
"in. 1'ln " il> i n v o lv im en to de m i n h a m ô n a d a p en san te c o m
Ixl " mi............. v em M a leb ran ch e tod as as coisas são vistas e sabi-
ili* i in i 'i M M u i rib m z , p ropriam ente falan d o, só são sabidas p o r
§e>ti l . ............-»picssa isso em term os claríssim os: “N o rigor da ver-
•.l'i.i........... i i ii.in existe c au sa e x te r n a q u e aja so b re n ós, e x c e to
1 1 ií ■ "ili nu e m m u n i c a d o im e d ia ta m e n te e m virtude de no ssa
....................... |ii iiilíMiria. Disso se segue que n ã o existe o u tro objeto
i r » " ..........|iii 11 ii|uc a no ssa alm a e que ex cite im e d ia ta m e n te nossa
• i".'i" \ mim n;lo te m o s em no ssa a lm a as idéias de to d a s as
...................... . .1 i m i v irtu d e da a ç ã o c o n tín u a de D eus sobre n ó s . . . ”
c í i v .......... . mu itiphysicfue, 2 8 ). O que q u e r dizer, e m o u tra s palavras,
ui' .i ......... . ic m , e m s u m a , janelas, só que, e m vez de p ô r em
u m ......... ui iim.i m ô n a d a c o m o u tra , e stão to d a s abertas para a Di-
m l *. |»
I 'i i li ii in.i e n c o n t r a m o s , mais u m a vez, na plenitude da filoso-
11 • I. il'iii mim ;i necessid ad e de garantir Deus, p ressu p osto funda-
........... . .li iimI,i ;i -,ua metafísica, p o rq ue é q u e m torn a possível o ser
i ■ ni"iiiiil,r. rnien d iclo c o m o essa força a u t ô n o m a e esp on tân ea de
• | i. ■n i.n , .iii. t|iie espelha o universo d esde a infinita plu ralidade de

>M ■ |>< i |ii i iiv.i I'ortanto Leibniz precisa p ro v a r na filosofia a existên-


11 'Ii hi ir r pura isso e sgrim e de n o v o , ainda que m o d ificad o , o ar-
,........... ... >miiiiln^ico, que v e m a ser assim u m fu n d a m en to capital de
■■Li ............ .1 racionalista do século XV II. S eg u n d o Leibniz, é pre-
i " |u ii' ,n ,i p ossib ilid a d e de D eus, e só e n tã o se garante sua existên-
ii ' t u - iiuuli- d a prova o n to ló gica, pois Deus é o ens a se. Se D eus é
■" iil i •isu- 1: a e ssê n cia divina é possível, diz Leibniz, p o rq u e ,
■ui" ii.iii n ii erra nen h u m a negação, não pode ter nen h u m a co n tra-
......... |ii i ii .it ii i > Deus existe. (Cf. Discours de m étaphysiqu e, 2 3 , e M o-
1.1. /i 'li Vil II)

263
H is t ó r ia d a f il o s o h ia

M as Leibniz faz algo m ais. Tenta tam bém um a prova a p osteriou


e exp erim en tal. Se o ens a s e é im p ossível, tam bém o são todos os m
tes a b a lio , já que estes só ex istem p o r este aliu d que é, ju stam en te, o
ens a se; p o rtan to , nesse caso n ão haveria nada. Se não existe o cnw
n ecessário, não há entes possíveis; p ois bem , estes ex istem , já que os
vem os; logo existe o ens a se. J u n t a s , as duas p ro p o siçõ es enunciachis
co m p õ em a d em on stração leib n izian a da existên cia d e Deus. Se o ente
n ecessá rio é possível, existe; se n ão ex iste o en te n ecessário, n ão h á nenhum
ente possível. E ste raciocínio fund a-se na existên cia, co n h ecid a a poste
riori, dos en tes possíveis e co n tin g en tes. A fórm ula m ín im a do argu­
m en to seria esta: E xiste algo, logo ex iste D eu s’.

3 . O conhecim ento

P e rc e p ç ã o e a p e rc e p ç ã o • As m õnad as têm p ercep çõ es. M as es­


tas p ercep çõ es não são sem pre igu ais, pod em ser claras ou obscuras,
d istintas ou confusas. As coisas têm percepções in sen síveis, sem
co n sciên cia, e o h o m em tam bém , e m diferentes graus. U m a sensação
é um a idéia confusa. Q uando as p ercep çõ es têm clarid ad e e co n sciê n ­
cia e vêm acom p anhad as da m em ó ria, são apercepções, e estas são
p róprias de alm as. Entre as alm as h á um a hierarquia, e as hum anas
chegam a co n h e ce r verdades u n iv ersais e necessárias; então se pode
falar de razão, e a alm a é espírito. N o alto da h ierarqu ia das mônada^
está D eu s, que é ato puro.
V erd a d e s d e ra z ã o e v e rd a d e s d e fa to • Leibniz distingue entre
o que ch am a de vérités d e raison e v érités d e ja it . As verdades de razão
são n ecessárias; é inconcebível que n ã o o sejam ; ou seja , baseiam -se
no p rin cíp io de contrad ição. P ortan to , são evidentes a p rio ri, in d e­
p en d en tem ente de qualquer exp eriên cia. As verdades de fato, em c o n ­
trapartida, não se ju stificam sim p lesm en te a priori. N ão p od em se b a ­
sear apenas no p rin cíp io de id en tid ad e e n o de co n trad ição, e sim no

1. U m a a n á lise d o s p ro b lem a s q u e essa p rov a c o lo c a p od e s e r lida em m eu en


saio “E l p ro b le m a d e D io s en la filosofia d e n u e s tro tie m p o ” (e m San A n selm oy lo insen­
sato). [O bras, IV.]

264
I.IIDNIZ

• !■ in, I ini', nuns tiois são q u a tro ; isso é v e rd a d e de ra-


| B i' i ■11 ii'> •|in-■i Mdois c no que é o q uairo ; dois mais dois n ão
liil ' - í ■|i* ii in ( nilim ho d escob riu a A m é ric a ; isso é u m a ver-
iU i ir ■■ ■ 1 <í" iiin.i c o n f ir m a ç ã o e x p e rim e n ta l; poderia n ã o ser
|*é mi . ■■ iiii-it111<>ik> q u e C o lo m b o n ã o tivesse d e sco b e r to a
ÍV i
I iiu ijiii iihIm k Iii.il • No en tan to , isso não é tão claro. Não es-
.^ • • « > 11" i"- i i■n'ii i.u111co m é m em si toda a sua realidade e n ada lhe
P * " '• I’" 1lauto, tu d o o que o co rra co m ela está in clu íd o
mm «ii > ■ u . |>
1ti co n se g u in te, em sua n o ção com p leta. C olo m -
I* i b . I "M ' \iiu i u h p o rqu e isso estava in clu íd o em seu ser C o-
j. i Mi in li, in i om pleta. Se C ésar não tivesse cruzado o R ubi-
* l i 11ii ii iii 11n exem plo fam oso não teria sido César. Portan-
i - l i ............. .in' ii n oção individual co m p leta veríam os que as
• i , i ' i ! i.ii" i ,i,i(i inclu íd as na essência da m ônad a, e sua ausên-
i» ....................... Indas as verdades seriam , pois, vérités de raison, n e-
..............i/ninM Mim qu em possu i a n oção co m p leta das m ônadas?
i■ • | 'ti.m in, so para ele desaparece a d istinção m encion ad a,
,•>. i ■■■., i .. Inu iinii subsiste.
i .'ii iiiii, i 111■<M para L eibniz não haveria características acid en -
Hi ■. ..... li' i Ir iiida pred icação verdadeira está fundada na nature-
I í ............... Iui los os juízos são , p o rta n to , an alíticos: nada m a is são
,............. i ’ln 11.11, .iii da n oção de su jeito. Mais tarde, K ant exp orá a im -
i i ■" ,■,!• l i '..... ..ui entre ju íz o s analíticos e ju íz o s sin tético s, a partir
i' i> •11ii* .in'. m etafísicos d istin to s dos de Leibniz.
I I in .u i..m o • Iodas as id éias p roced em da atividade in tern a da
i- i i ii. k I.i c recebido de fora. L eibniz está a cem léguas de distân-
tr ii. 111,ili 11ir i em p irism o , q u e é form alm ente im possível em sua
•«oi . i n . .1 A . idéias, portan to , são in atas nesse sentid o co n creto. Não
• .......... m i o de tun problem a p sico ló g ico co m o de um a questão m e-
Mh*. i \ MInns tem su a o r i g e m - ativa - na p ró p ria m e n te , na vis re-
fi.......... .. ({in as produz. P o r isso Leibniz está em total o p o sição a
I .d l ■ i i i ui In o em p irism o in g lês, que tem forte influên cia n o co n ti-
i.i. nu ■ v,n •11mim ar o sécu lo X V III. L eibniz retifica o p rin cíp io iradi-
•■■ii.il 'li 111 if imo existe n a d a n o e n te n d im e n to que não te n h a estado

265
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

anles nos sentid os, exceto o p róprio entendim ento: N ihil est in inlrl
lectu qu od prius non fu erit in sensu... nisi intelectus ipse.
A ló g ica • A lógica tradicional, dem onstrativa, não satisfaz LeiIj
niz. Cre qu e só serve para d em onstrar verdades já co n h ecid as e nau
para ericontrá-las. Essa o b jeção , assim com o a tend ência ao inatisnio,
já tinham aparecido em D escartes, e em Leibniz chegam a seu extre
mo. Leibniz quis fazer uma verdadeira ars inveniendi, um a lógica que
servisse para d escobrir verdades, um a com bin atória u niversal que estu­
dasse as possíveis com bin ações dos conceitos. Poder-se-ia operar de
m odo apriorístico e seguro, de m aneira m atem ática, para a investiga­
ção da verdade. Esta é a famosa A rs m agna co m b in atoria, que inspirou
filósofos desde Raim undo Lúlio. D aqui nasce a idéia da m athesis tmi-
versalis, que atualm ente vem m ostrand o sua fecundidade no cam po
da fenom enologia e da logística ou lógica m atem ática.

4. Teodicéia

A T eodicéia de Leibniz tem co m o subtítulo E nsaios so b re a b on d a­


de de D eus, a lib erd ad e do hom em e a origem do mal. Isso explica o sen ­
tido e o alcance desta “ju stificação de D eu s”. Por um lado, Deus é d e­
finido com o o nip otente e infinitam ente bom ; mas existe o m al no
m undo. Por outro lado, diz-se que o hom em é livre e responsável, mas
Leibniz m ostra que tudo o que o co rre está previam ente inclu íd o na
m ônada. C om o tornar com patíveis essas idéias? Este é o problem a.
O o tim ism o m e ta fís ic o • O mal pode ser m etafísico (a im per
feição e a finitude do m undo e do h o m em ), físico (a dor, as desgraças
etc.) ou m oral (a m aldade, o pecado etc.). O mal m etafísico nasce da
im possibilidade de o m undo ser infinito com o seu criad or; o m al físi­
co se ju stifica co m o ocasião para valores m ais elevados (p o r exem plo,
a adversidade cria a oportunidade para dem onstrações de força m o­
ral, heroísm o, abnegação); além disso, Leibniz crê que a vida, em su ­
ma, não é m á, e que é m aior o prazer que a dor. Por ú ltim o, o mal
m oral, que con stitu i o problem a m ais grave, é antes um d e/eito, algo
negativo; D eus não quer o mal m oral, sim plesm ente o perm ite, por­
que é cond ição para outros bens m aiores. Não se pode con sid erar iso-

2 6 6
LriiBNiz

#lti■ um l i i " n.it) co iih ecem o s todos os planos de Deus, e cada


ipIM ■<• “ i |iili',iilo na lotai idade de seus desígnios. C om o D eu sé
iiliiiii i I>■1111, podem os assegurar que o m u ndo é o m elh or dos
0H ntih» i i , , r. , iU -.r|;i. contém o m áxim o de bem com o m ínim o cle
I r|n...............In..ui para o bem do co n ju n to . É o que se cham a p rln -
iln 1 • vincula aos argum entos de D uns Escoto para pro-
4 I i i i . o ui.ii l.i i mu epção. D eus faz o m elhor porqu e pode e é bom ;
% rM i< |mii11 ,.i . li.in seria D eus, porque não seria onipoten te; se pu-
fjfr» t i ......... 1111‘,i .'.e, tam pouco seria Deus, porqu e não seria infinita-
IW iii 1....... 1'iiiuii. tl aui l , erg o /ecit: “Pôde, convinh a, logo o fez”, con -
•|4i|.« I ...... I ,. iiiii De m o d o análogo, Leibniz funda seu otim ism o
tliiiili iiM.i.i iliiiiiii i|uc o m undo é o m elhor dos m undos possíveis.
» h l" i il.nli ■ Indas as m ônadas são espon tân eas, porque nada de
í «it i ii" i li 'I i.ij',1 las nem obrigá-las a nada; m as isso não basta para
.|in h |-1111 li« i, . A liberdade su põe, adem ais da espontaneidade, a de-
||iii i.ii, In i ,i lii i'„m. O hom em é livre porque escolhe entre os possí-
• I. |o >i i li i li liberar. No en tanto, deparam os co m a dificuldade da
P t**' I' li' m 'll vin.i, Deus, desde o com eço, vê o ser das m ônadas, e es-
!i?i I n . . ii .mi i ui m tudo o c[ue lhes há de acontecer e o que hão de fa-
íh i . itii*•i pif.Mvcl a liberdade?
I i iliiii 1.1111..i mão de algum as distinções sutis da teologia católi-
ro (j.il.i. i ui |, 11 Ih i■•.panhol M olina, para interpretar a ciência de Deus.
1'i-i.i i. ui ui . npos de ciência: I o C iência de pura intelecção. 2 °
i.. iiiii. 11 •li >i'..\n 5" C iência m édia. Por m eio da prim eira, D eus co -
..................1 1 e. i oisas possíveis; pela ciência de visão conh ece as coi-
'j ................ . liiiiiiiis, pela ciên cia m édia, D eus co n h ece o s Juturíveis,
ri, i . iiiiiiiii ennd icion ad os, as coisas que aco n tecerão em certas
........................... M-m que estas co n d içõ es estejam dadas. Deus sabe o
■j.t' > ........ ... hvie laria, sem que esteja determ inado que isso tenha
•li i i .nu mi ',e irate, portan to , de futuros, co m o C risto sabe que se
•tu I li.. i i*iii M ilonio tivessem ocorrid o m ilagres, as pessoas teriam
i' i i " p. i me mi i.i (Mt 9 ,2 1). As co isas co n tin g en te s não são n ecessá-
ii i- •ti.i mi i ev,id ad e só é dada a p o sterio ri, d ep o is de um d ecreto
h * ........ . divina, p o ste rio r à ciên cia de sim p les in telecçã o e à
........ i,i Mu i Ii.i

267
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

D eus cria os hom ens, e os cria livres. Isso q u er dizer que decidem
agir livrem ente, em bora ten h am sido d eterm inad os p o r Deus a cjxísM i

D eus q u er que os hom en s sejam livres e p erm ite que possam pei ,n
p orqu e é m elhor essa liberdade que a falta dela. O pecado apareu .
p o rtan to , co m o um mal possível que co n d icio n a u m bem superioi .1
liberdade hum ana.
D e u s na filo s o fia do s é c u lo X V II • V im os qu e, apesar do isol.i
m ento da teologia, D eus não estava perdido. Toda essa filosofia raeio
nalista e idealista, de D escartes a L eibniz, pode su rgir porque Deie.
está lá, seguro em bora isolado. A razão talvez não possa con h ecer .1
essên cia divina, não possa fazer teologia, m as sabe co m certeza que
D eus existe. A situação da ép oca, insisto, é que D eus esiá um tanio
afastado, um tanto inacessível e in operante na atividade intelectual,
m as, não obstante, seguro. A p óiam -se nele, em bora n ão seja um temn
em que os olhares se d eten ham co m interesse co n stan te. D eixa de sei
0 h orizon te sem pre visível para se transform ar no solo intelectual d;i
m ente européia do século X V II.
É isso 0 que dá um a unid ad e profunda ao p eríod o da história d:i
filosofia que vai de D escartes a Leibniz. Esse grupo de sistem as apare
ce envolto num ar com u m , que revela um a filiação sem elhante. Perce
be-se um a profunda coerên cia entre todas essas con stru ções filosóficas
que se apinham nesses d ecênios. E esse co n ju n to de sistem as filosófi­
cos aparecerá contraposto a outro grupo de altos ed ifícios metafísicos:
0 cham ado idealism o alem ão, que com eça com Kant para culm inar em
Hegel. A filosofia da ép oca rom ântica dirigirá um a crítica à totalidade
da m etafísica do tem po barroco. Nessa o bjeção, esses sistem as apare­
cem form ando um todo, sem nen h u m a distinção entre eles; interessa­
rá ver o sentido dessa qualificação de conjunto. Essa filosofia é den om i­
nada dogm ática. Q ue qu er dizer isso? Terem os de ver qual 0 destino do
problem a de Deus nas m ãos dos idealistas alem ães. Esse problem a se
expressará na questão do argum ento ontológico e nos revelará a situa­
ção m etafísica da nova etapa da filosofia m od erna2.

2. V er m eu en sa io “La p érd id a d e D io s" (em San A n selm oy el i n s e n s a t o lO bras, IV |

268
C) empirismo

I A I ILOSOFIA INGLESA

I »•i t i nlii \V| .ui sé cu lo XVIII d e s e n v o lv e -s e na In glaterra, p a -


in ,ii. ii h .iIimiio racionalista do co n tin en te , u m a filosofia c o m
fnilW ii 11 ,i i> .i |H11|>1 i.is, c la r a m e n t e d e fin id as. E n t re F r a n c i s B a c o n
f | '«i ui 111111ii In unia série de p e n sa d o re s q ue se o p õ e m e m certa
flftMliil.i i.i liln nlos q ue a c a b a m o s de estu d ar, de D escartes a Leib
|ll» 11 i n,i IiIm-.iiIi.i m g lcsa dois a sp e c to s que a diferenciam da co n ti-
f«iii il um,! |>i( «Mu p a ç ã o m e n o r c o m as q u e s tõ e s rig o ro sam en te m e -
............... ui,ui ii a le n ç â o p a ra a teoria d o c o n h e c i m e n to (q u e , é
, I.............. 1 1 1 . p irs s u p õ e u m a metafísica) e p a ra a filosofia d o E s ta d o ;
. ■D , 11,i 11•> mu io d o , an te o ra cio n alism o de te n d ê n c ia apriorística e
n u........ ii , i um e m p ir is m o sensualista. A filosofia inglesa ten d e a se
.......... |........ In)',ia r a c o n c e d e r p rim azia, n o to c a n te ao saber, à e x p e -
I ll'll< I I i II' ivcl
\ lilii 'ili.i hrilãnica da é p o c a m o d e r n a é de inegável im p o r tâ n -
«. 11 ui,i . i iKv - ui.ms d o p o n t o de vista de sua influência e de suas c o n -
•t •................. Iir.ioi icas d o q ue de sua esu iia significação filosófica. A p e-
• ii 1 1< mi jm.iikIc n o m e e cla a m p la influência q u e ex e rc e r a m , os filó-
*. ,|i, • I >i ii .ii ui os d e ss e s s é c u l o s n ã o tê m o v a lo r d o s e x t r a o r d i n á r i o s
iii ti mliiii m g lcse s d a Id ad e M éd ia, R o g e r B a co n , D u n s E s c o t o e
i ii ii II ii 11111 di ( )ck h am , se m co n tar outros de im portância u m tanto m e-
................ . ,i iiipic m u ito g ran d e. P o rta n to , te m o s de b u s c a r a g ran d e
............ Imi,.. ii ■ m glcsa para a filosofia na é p o c a medieval, pelo m e n o s
i ......... ........o na Idade M o d e rn a .
......... iido, d o s p e n sa d o re s ingleses d o s sé cu lo s XVI ao XVIII p ro -
■il. ui .i ulrias que talvez mais in te n sa m e n te te n h am interferido na

269
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

transform ação da sociedade européia: o sensualism o, a crítica da lauil


dade de co n h ecer, que em alguns casos chega ao ce ticism o , as id n .r.
de to lerân cia, os p rincípios liberais, o espírito do Ilu m in ism o , o di-i
m o ou religião natural e, fin alm en te, co m o reação prática con tra o i <■
ticism o m etafísico, a filosofia do “b o m sen so ”, ou com m o n sen se, a me
ral utilitária e o pragm atism o. Todos esses elem en to s, que exerceram
extraord inária influência sobre a estrutura da E urop a nos século-.
XV III e X IX , têm sua origem n o s sistem as id eo ló g ico s d om inantes nu
Inglaterra nos séculos anteriores, que têm profundas rep ercu sso r.
nos países co n tin en tais, esp ecialm en te na F rança e na A lem anha.

1. Francis Bacon

V id a e e s c r ito s • B aco n nasceu em 1 5 6 1 e m orreu em 1 6 2 6 . I


portan to , an terio r em algum as g erações a D escartes. F o i ch an celer c
barão de Verulam : um grande personagem político na Inglaterra elisa
betana e im ed iatam ente posterior. D epois foi d esp ojad o de seus pos
tos, e n o retiro d ed icou -se ao trabalho intelectual. F o ra m -lh e atribui
das, de m o d o sum am ente im provável, as obras de Sh akespeare.
A p rin cip al obra de Bacon é o N ovum O rganu m , qu e expõe uma
lógica indutiva, oposta à lógica aristotélica, dedutiva e silogística; tam
bém escreveu, so b o título geral ln stau ratio m a g n a , o tratado D e digni
tate et au gm en tis scien tíaru m e n u m ero so s ensaios de d iferen tes m até­
rias: Fílum L abyrin thi, D e in terpretation e n atu rae et regno hom inis, Tem
poris p artu s m a sa d u s sive in stau ratio m agna im perii hum ani in universum,
C ogitata et visa. Seus títulos, co m o se vê, têm tod os u m sentid o posi
tivo e de co m e ço triunfal de um a nova ciência.
Su a d o u trin a • A fama que B aco n alcançou é exagerada. Duran­
te m uito tem po foi considerado o instaurador da filosofia m oderna,
igual ou su p erior a D escartes. É algo sem fundam ento, e foi preciso li
m itar sua significação à de in tro d u tor do em pirism o e do m étodo in
dutivo; m as m esm o nisso não se deve esquecer o papel de seu com p a­
triota de m esm o nom e Rogério Bacon três séculos antes; este foi mais
original que o chanceler renascentista e preparou em grande m edida seu
cam in ho, em bora com co nseqü ên cias incom paravelm ente m enores.

270
A I II.OSOFIA INGLESA

|l...... il ii'iiiln .1 .1 i iilm inação do R en ascim en to , que em filosofia


(Ht I >11 I. mim I i.ipn ele indecisão que vai do ú ltim o sistem a esco-
I ......... ím il I .1I n Ia — o o ck h a m ism o - à p rim eira fo rm u lação
1 ' I u i ■li• |)i-iis;imcnto da m od ernid ad e - a filosofia cartesia-
I m I' " "M " mi' M-ssc- especulativo se une ao técn ico : saber é p o ­
lit l 1 1> ili ......... I (In N ovum O rganum co lo ca n u m m esm o plano o
* ' "ii iii/i I ,i in.io c o intelecto; daí o n ovo sentid o vivo que dá
I . ............... inii lu ,i do órgan on ou in stru m en to para designar a ló-
n h.............. . .mula nem o en ten d im en to entregue a si m esm o e
íi» i fin 11, ni....... Imi Iin. h as coisas; os instru m entos - materiais ou m e n ­
tis ............ |n, Ihi ', ilao verdadeira eficácia. E assim co m o o técn ico ,
h i » i r i l m il 'i '.uborilinar-se às exig ên cias d a realidade c o m que
j{(ff,i h iim.i /h in 111 si im in u ia vincitur, só se v e n c e a n atu reza o b e d e c e n -
il • . . I ,
i h i I'.,h mi .i investigação filosófica exige u m exam e prévio dos
i i i .in Mn tu li i | i >'. ) que pod em ocu ltar a verdade. C om o no carte-
111 *i ni., nu In ,i . it iu i a preocu p ação crítica e o tem o r ao erro. Esses
ui i. i [11.u i n I !' Idola tribus. São os p reco n ceito s da tribo, da es-
n - h I ni 111111-1 iiir irn ic s a sua natureza: as falácias dos sentidos, a te n ­
'll i,' í i i " i n h .u.ao, etc. 2 o Idola specus. O s p reconceitos da ca v er-
,i i . in i |M, , .u |,i linm cm se en co n tra (alusão ao m ito p latônico: as ten-
liii' i,i . i u 11 Ir.posiçOes individuais, que pod em co n d u zir a erro). 3 o
i,i -l i I " i' ........... ídolos da p r a ç a , da socied ad e hum ana e da própria
...................m ,li ijiii nus servim os. 4 o Id ola theatrí. São os preco n ceito s
il mu .i i. Lu li huid ad os n o prestígio de que alguns gozam na cen a
," i U i ...........pu i u ulcin co m p rom eter a visão d ireta e pessoal das coisas
• i ii i i u .i n|iiin.io reta.
i ............. i, I.u In, Bacon faz um a crítica do m étod o silogístico. Seu
11|M i" u n u Indico, que lhe dá um valor d em on strativo, se anula
I •< I" i .......I, ,i picm issa m aior cle um silogism o s e r u m prin cípio u ni-
I i il 111m u.ui r obtid o silogisticam ente, m as, com freqü ência, m e-
iii mu m111,i .ipiecnsào inexata e superficial das coisas. Se a prem issa
m i......... ni 11n i m reta, o rigor e a certeza da in ferên cia são pu ram en te
I......................... i m iiTcsse. Isso leva Bacon a estab elecer sua teoria da in-
........ . .I n m .i m tic de fa to s singulares, agrupados de m odo sistem áti-

271
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

co e co n v en ien te, obtêm -se por abstração, depois de segu ir um pio


cesso exp erim en tal e lógico rigoroso, os co n ceito s gerais das coisas i
as leis da natureza.
Essa in d u ção baconiana, tam bém cham ada in com p leta por oposi
ção à que se baseia em todos os casos particulares co rresp o n d em r.,
não dá um a certeza absoluta, m as sim suficiente para a ciên cia , quau
do é realizada co m o m áxim o de escrú pulos. Em certo sen tid o, esse
m étod o se o p õ e ao do racio n alism o filosó fico e tam b ém ao da físn .1
m atem ática m od ern a, desde G alileu. B aco n não teve um a con sciên cia
clara do valor da m atem ática e do racio cín io ap rio rístico , e seu empi
rism o foi m u ito m enos fecundo que a n uova scien za dos físicos renas
centistas e o racionalism o dos filóso fo s proced entes do cartesianism o

2. H obbes

T h o m as H o bbes ( 1 5 8 8 - 1 6 7 9 ) é outro p en sad o r inglês in tercs


sante. Sua longa vida fez co m que sobrevivesse até m esm o a Espino
sa, em bora a data de seu n ascim en to o inscreva na g eração p ré-cartc
siana. Teve m u ito co n tato co m a F ran ça, e ali co n h e ceu D escartes c
se im pregnou do m étod o das ciên cias m atem áticas e físicas. D uranlc
vários an o s de sua ju v e n tu d e foi secretário de B acon e particip o u das
p reo cu p açõ es d este, ap lican d o , co n tu d o , aos o b je to s h u m a n o s o mc
todo natu ralista da física m o d ern a. O h o m em ind ivid u al e social c,
portan to , a p sico lo g ia, a antrop ologia, a po lítica, a ciên cia do Estado
e da socied ad e são os tem as de H obbes. Escreveu suas o b ras em latim
e em in glês, p rin cip alm en te De co rp o re, D e hom in e, D e eiv e e o Levia-
tã, que é sua teoria do Estad o e tom a o título da besta de que fala o
livro de Jó .
H obbes é tam bém em pirista. O co n h ecim en to se funda na ex p e­
riência, e seu interesse é a in stru ção do h o m em para a prática. Por o u ­
tro lado, é nom in alista e assim co n tin u a a tradição m edieval de O x ­
ford; os universais não existem n em fora da m ente n em n ela, pois
nossas rep resentações são individuais; são sim plesm en te n om es, signos
clas coisas, e 0 pensam ento é um a o p eração sim bólica, um a espécie dc
cálcu lo , e está estreitam ente ligado à linguagem .

272
A I II O s n i IA INGLESA

A iiiH iilin' ' li I lnhluv. i- naturalista. B usca a ex p licação cau sal,


ftH liliH ■< 1 111 "I ■ lni'iis c qu er exp licar os fen ô m en o s de m od o
tin •I I.......in m ill- m ovim entos. D escartes tam bém adm itia o m e-
itii Ii,n a >i ( 1%. >N'mmI, m a s a e le co n trap u n h a o m u n d o im aterial
Jimm imii u i" 11. .1.1 >t-s supõe que os p ro cesso s p síq u ico s e m entais
HIM In n .1 1........■"i poral e m aterial; para ele, a alm a não pode ser

0R#IhIhI l‘..i I .!• lluhl n-s c m aterialista e nega que a vontade seja li-
Hi h it i " i l " o .K mi 111' I i-r d om ina um d eterm in ism o natural.
I I li in 11111.1 I In I •,iado • H obbes parte da igualdade entre todos
* Itmii. it \. h ilii.i i|tu- todos aspiram ao m esm o; quando não o al-
rrii. .ii, "In . v. in ,i m im izade e o ódio; qu em não consegue o que
.1. . Mllll.ldo outro e, para se precaver, o ataca. Daí a co n -
, •I<i i" ............... i.i tin hom em de H obbes; h om o hom ini lupus, o h om em
*..i l"l>.. ■I. i I. ..... -ui O s h o m en s não têm um interesse direto na co m -
li.uiiii i >ir .i iiu-lhantes, só a têm en quanto possam su b m etê-los.
* • m 1 iii" i" ii 11.1discórdia entre os hum anos são: a com p etição, que
|1|i;,‘t........ ,i|'i. •.■.in's para o b te r lucro; a d esco n fian ça, que leva os h o-
im ifí .1 ■. .ii ii .oi'Mi com vistas à segurança, e a glória, que os h o stili-
i i |'"i u i.iii’ o-, ili' reputação.
i .I .mi.ii..in natural d efine um estado de perpétua lula, de guer-
M •I. i . •. li' i mu 1.1todos (b ellu m om nium con tra om n es), segundo a co -
u l i .. i.li li ii 11in l.i ili- I lobbes. N ão se trata, co n tu d o , de atos isolad os
in In I in I , ii. uni cstado - um tem po, diz H o bbes - em que se está,
......I 'Ii |"i o..iii p m n a n e n te em que não há certeza do contrário.
I ' I........'in esta dotad o de u m pod er do qual dispõe co n fo rm e
I u . 11h i I in n in certas paixões e d esejos que o levam a bu scar coisas
■ '|<M I. I .m i Iliiia-las dos dem ais. C om o todos co n h e cem essa atitud e,
li ........ ims tios outros; o estado natural é o ataque. Mas o h o m em
■ I n .m u ili i|iic essa situ ação de insegurança é insu stentável; nesse
. i " I " ili Iu i.i vive-se de form a m iserável, e o h o m em se vê obrigad o
■ ini . .ii ,i p.i.' I lobbes distingue entre ju s ou direito, que in terp reta
■nu •lil ii iih iilr, e lex ou lei, que significa obrigação. O h o m em tem li-
lii cl.n l' isto c, direito - de fazer tudo o que possa e queira; m as co m
lim Im, nu r possível fazer três coisas: ex ercê-lo , ren u n ciar a ele ou

273
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

lransferi-lo. Q uando a transferência do direito é m útua, tem -se um


pacto, co n trato ou convênio: covenant. Isso leva à idéia da com unul.i
de política.
Para conseguir segurança, o hom em lenia su b stitu ir o status m<i
turae por um status civilis, m ediante um convênio em que cada um
transfere seu direito para o Estado. A rigor, não se trata de um co n w
nio co m a pessoa ou pessoas encarregadas de regê-lo, m as de cada um
com cada um . O soberano sim p lesm ente representa essa força consh
tuída pelo convênio; o restante dos hom ens são seus súditos. Por.
bem : o Estado assim co n stitu íd o é absolu to: seu poder, o m esm o qur
o indivíduo tinha antes, é irrestrito; o p o d er n ão tem outro lim ite sendo
a potên cia. Q uando os ho m en s se d espojam de seu poder, o Estado o
assum e integralm ente, m anda sem lim itação; é u m a m áqu ina podero
sa, um m onstro que devora os indivíduos e ante o qual não há n enhu ­
ma outra instância. H obbes não en contra nom e m elhor que o da gran
de besta bíblica: Leviatã', é isso o Estado, superior a tudo, com o um
Deus m ortal.
O Estado de H obbes decide tu do; não só a po lítica, m as também
a m oral e a religião; se esta não é reco n h ecid a por ele, n ão passa de
superstição. Esse sistem a, agudo e profundo em m u itos pontos, repre­
senta a co n cep ção autoritária e absolutista do Estado, baseada ao
m esm o tem po no princípio da igualdade e num total pessim ism o em
relação à natureza hum ana. E m bora H obbes fale às vezes de Deus,
sua teoria tem no fundo um sen tid o ateu. Em con trap osição às idéias
de espiritualidade e liberdade, o sistem a político de H obbes está d o­
m inado pelo m ecanism o naturalista e pela afirm ação do poder oním o-
do do Estado.
Essa doutrina, de forte in flu ên cia no século XV III e de grandes
co n seqü ências históricas, que chegam até n ossos dias, suscitou em
seu tem po dois tipos de reação: um a, representada pelo P atriarch a de
Sir Robert Film er, procura salvar o absolutism o m on árqu ico dos
Sluarts m ediante a teoria do direilo divino dos reis, baseada na co n ­
cepção de que nenhum hom em nasce livre, m as sim subm etido a
uma autoridade paterna, do que deriva a legitim idade do governo pa­
ternal e patriarcal dos m onarcas; a outra reação, que se contrapôs por

274
A I II DSOI IA INGLESA

| i|i I i I iih i i .1 cli I o i' k c , que defende os princípios da liber-


■ i |i 11t.iiiii ui uimiid; du seja, os da segunda Revolução Inglesa

I I I J< IMIli)

I |i ii|{............ • O naturalism o da ép oca m oderna leva na-


I t i U’ ‘ ............. . i-iiD de religião natural. A isso tam bém se denom i-
* ,i ■iii •■1111■M.u.;io com o teísm o. Teísm o é a crença em D eus;
1 1 1 111'i*isD, sobrenatural, co n h ecid o por revelação. O
t ...........m .ip.iiiul.i, surge com o um a reação ao ateísm o que se
^ fjli• i ei i iili. .............lijcsa, mas dentro do estritam ente natural. Deus
f í ......... i i.li. |MLi i.i. ,io, sem nenhum a ajuda sobrenatural. A religião
tlriliiul ................ .1. 1111ii’ nossa razão nos diz sobre Deus e sobre nos-
M |i I». i.. . . mi I Ir I , portanto, uma religião sem revelação, sem dog-
................ . li'." l'1' 1 culto. Todo o século XV III do Ilum inism o, co m
|llii |i|i 11 <111 , i ! M iprcmo”, está dom inado pelo deísm o.
I t.i|in i ■■pii",M o pensador inglês Edward H erbert of C herbu ry
|| iM I li-IM i . iij.is principais obras são: De veritate, prout distinguitur
il i» *. I.iii,.n, ,i iviisimí/e, a possibili, et a fa ls o e De religíone gentilium ,
0 i l•m••*11/1■i ii/Miií cos i ausis. O con teú do da religião natural - um co n -
in iiln m inniiii r aiv iio universalm ente por todos os hom ens porque
i. :lt 11ii li.i . (I.i razão natural. Esse conteú d o resum e-se à existên -
»if um i suprem o”, a quem devem os veneração, que consiste
n. um .I. i li.i pu-dade, no dever do hom em de se arrepender cle

1 u | * I. In .i por ultim o, na crença em outra vida, em que a co n d u ­
zi'/ i-: i I.' i i i ii |ir,io prêm io ou seu ju sto castigo. As religiões p ositi-
■ r piiiiiln |I n h m o f Cherbury, têm um a origem histórica e proce-
:[■ c»i -i i l m i.r.i.i poética, das ideologias filosóficas ou dos interesses
-II - . 1 1■ i ..ii riilo tais. O cristianism o, particularm ente o prim itivo,
=i i t.i .i ......... . mais próxim a e pura da religião natural.
i . . m i i ■■■<i , rsqu ece naturalm ente m uitas coisas. Nem é tão certo
.- mu i i „il .r.v n iin ie n to ao conteú do da religião natural, nem as reli-
j í í i . ui .li I,iid a origem que Herbert lhes atribui. Além disso, dei-
&j ii. l, ii................ au tên tico da religião, relígio, com o relig ação do
li..1111 ui i m u I V u s .

275
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A m o ra l n a tu ra l • P aralelam ente ao deísm o, os m oralistas iiir.li


ses do sécu lo XV II procuram fundar a m oral na naLureza, tornam Ip a
in d epend ente de todo co n teú d o religioso ou teo ló g ico . É o caso iln
bispo C um berlan d ( 1 6 2 2 - 1 7 1 8 ) , au tor do livro De le g ih is natiihn
que su põe um instinto social do h o m em , pacífico e b en év olo, ao m n
trário de H o b b es; a m oral se funda, segundo ele, na experiência da
natureza e dos atos hu m anos; o qu e se m ostra útil para a comumiLi
de é o bom . A parece aqui, p o rtan to , um a prim eira m anifestaçao di
utilitarism o so cial que irá cu lm in ar no século X IX em Bentham ■
Stuart M ill.
O u tros m oralistas britân ico s encontram o fun d am en to da moia
lidade não na exp eriên cia, m as num a evidência im ediata e a priai i da
razão. A m oral co n siste em se aju star à verdadeira natu reza das coi'.a
e co m p ortar-se co m elas de form a adequada a seu m od o de ser; é a in
tu ição im ed iata que nos m ostra essa natureza das coisas. Essa tendeu
cia está representada principalm ente por Cudworth (1 6 1 7 -8 8 ) e Sanuicl
C larke ( 1 6 7 5 - 1 7 2 9 ) . O prim eiro escreveu The True In tellectu al System
o f the U n iverse e A Treatise C on cern in g E ternal an d In m u tah le M orality
Clarke foi tam bém um notável m etafísico, que m ed ito u profunda
m ente so bre o problem a da D ivindad e e m anteve um a perspicaz coi
respondência com Leibniz. Sua obra mais interessante é A Demonstration
o f the Being an d A ttributes o f G od.
Mas a form a m ais interessante e característica da m oral inglesa e
a cle lord Shaftesbu ry ( 1 6 7 1 - 1 7 1 3 ) , autor de C h aracteristics o f Men,
M anners, O pinions, Times. É a ética do m oral sen se ou senso m oral: o
hom em tem u m a faculdade inata para ju lg ar - co m um juízo de valoi
- as ações e as personalidades e d ecid ir sobre sua qu alificação moral,
aprová-las ou rejeitá-las. É esse senso m oral im ediato qu e decide v
o rien ta o h o m em , esp ecialm ente para valorizar um tipo de personali
dade em seu co n ju n to , um a form a bela e harm on iosa de alm a hum a­
na. Sh aftesbu ry está im pregnado de idéias gregas e renascentisias, c
sua ética está intensam en te m arcad a de esteticism o. A influência dc
Shaftesbury, em parte artística e literária, foi m uito am pla na Inglater
ra, na F ran ça do Ilum inism o e n o classicism o alem ão, de Herder a
G oethe.

2 7 ft
A FILOSOFIA INGLESA

' hl I I i-st I i I o s • Jo h n Locke nasceu em 1 6 3 2 e m orreu em


i "I I 'Hull'll lilosofia, m ed icin a e ciências n alu rais em O xford; de-
l- - hi in.iiui interesse, estud ou D escartes e B aco n e teve co n tato
• i I - ii hnylc. o grande físico e qu ím ico in glês, e com o m éd ico
; i - I ...... r1.1 i asa de lord Shaftesbury (avô do m oralista m en cio n a-
f >11ii HI a I ,ngo de co n selh eiro , m édico e precep to r de seu filho e
* ■* i k Im I s',;I relação o levou a intervir na p olítica. D urante o rei-
| I. |,uni's I em igrou e depois p articipou da segunda revolução
■i i ' i I. IhHH Viveu bastante tem po na H olanda e na França. Sua
"<!' 'I' in Ini extrem am ente im portante, m aior que a dos outros filó-
1 'in'll i '. (1 em p irism o en co n tro u nele seu exp o sito r m ais háb il
’ mii i ilido, L* por m eio dele pred om inou n o p ensam ento do sé-
‘ ■>1:;. til III
A 'ib i.i m ais im portan te de Locke é o E ssay C oncerning H um an
' . I ' r in,(in;■ (I nsaio so bre o en tend im ento h u m an o ), p u blicad o em
I '»• I ,. n véu tam bém o bras de política - Two Treatises o f C ov ern -
< I ( Iu ta s sobre a tolerân cia , que d efiniram a posição de Loc-
* ■‘ in.ui 11.1 religiosa.
\ >, nit u s ■ Locke tam bém é em pirista: a origem do co n h ecim en -
f .'i .i ■ I it I irm ia. Locke, co m o em geral os ingleses, em prega o term o
ii > mim '.1'iitido m uito am plo: é idéia tudo o que penso ou percebo,
’ ■•■li 'i qiii' e conteú do de co n sciên cia; nesse sentid o, aproxim a-se do
>;| i il.i iiigilíilio cartesiana, do que h o je ch am aríam os representa-
iii ii ii II m i, vivência. As idéias não são inatas, com o pensava o ra-
l in ii. ..........mu mental. A alm a é tam qu am tab u la rasa, com o um a tá-
l>>’ •11 ........... ii' não há nada escrito. As idéias procedem da experiência,
* .i i 1'i'tli -et de dois tip o s: p ercep ção ex tern a m ediante os sen ti-
i ui Mmmkiio, e p ercepção interna de estados p síqu icos, ou reflexão.
i ■ ■|ii iIt11ii-1 m aneira, a reflexão opera so bre um m aterial forn ecid o
i i > •ir iic.ln.
I -1 it-iii dois tipos de idéias: sim ples (sim ple id eas) e com p ostas
'"/■li *i-i/ i(Icíis), As p rim eiras p roced em d iretam ente de um ú nico
"O 'in mi ile vários ao m esm o tem po, ou então da reflexão, ou, por

277
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ú ltim o, da sensação e da reflexão ju n tas. As idéias co m p lexas irsul


tam da atividade da m ente, que co m b in a ou associa as idéias sim plr .
Entre as sim ples, Locke distingue as que têm validade objetiva
(qualid ad es prim árias) e as que só têm validade su b jetiv a (qualidadi
secundárias). As prim eiras (núm ero, ligura, extensão, m ovim ento, so
lidez e tc.) são inseparáveis dos co rp o s e lhes p erten cem ; as segunil.i'.
(cor, cheiro, sabor, tem peratura e tc.) são sensações su bjetivas de quem
as p ercebe. Essa distinção n ão é de L ocke, é antiga na filosofia, vem
do atom ism o grego e chega até D escartes, mas na filosofia de Locki-
d esem penha um im portante papel.
A form ação de idéias co m p lex as se funda na m em ória. As idéias
sim ples não são instantâneas e d eixam um a m arca na m en te; por isso
não p od em se co m b in ar ou associar entre si. Esta idéia da associaçã o c
cen tral na p sicologia inglesa. Os m od os, as idéias su b stan ciais, ;is
idéias de relação são co m p lexas e resultam da atividade associativa da
m ente. P ortan to , todas essas idéias, inclusive a de su b stân cia e a pró­
pria idéia de D eus, proced em em últim a instância da exp eriên cia, me
diante sucessivas abstrações, generalizações e associações.
O em p irism o de Locke lim ita a possibilidade de con h ecer, so
bretudo no que se refere aos grandes tem as tradicionais da m etafísica
C om ele co m eça a d esconfiança em relação à faculdade cognoscitiva.
que cu lm in ará n o ceticism o de H um e e obrigará Kant a form ular de
m odo fund am ental o problem a da validade e possibilid ad e do co n h e­
cim en to racional.
A m o ra l e o E sta d o • A m oral de Locke apresenta certas vacila­
ções. Em term o s gerais, é d eterm inista e não co n ced e liberdade a
vontade hu m ana; m as deixa uma certa liberdade de in d iferen ça, que
perm ite ao h o m em decidir. A m oral, independenLe da religião, co n ­
siste na ad equ ação a um a n orm a, que pode ser a lei divina, a do Esta­
do ou a n orm a social da opinião.
No tocante ao Estado, Locke é o representante típ ico da ideolo­
gia liberal. No m esm o barco em qu e G uilherm e de O range ia da H o­
landa para a Inglaterra viajava Locke: co m o rei da m o n arqu ia mista
ia o teórico da m on arqu ia m ista. Locke rejeita o p atriarcalism o de Fil-
m er e sua d ou trin a do direito divino e do absolu tism o dos reis. Seu

2 78
A I II.OSOFIA INGLESA

ti ili |i m iil.i ( .m .ilogo ao de H obbes: o estado de natureza; mas


i|ii» iMii ihii i.Hiihi-ni para Locke na igualdade e na liberdade,
ii liiimi ir, ii'm .is m esm as co n d içõ es de n ascim en to e as m es-
4 ^ liii 111■l,iili n.in leni m aliz agressivo. Da liberdade em erge a obri-
^ ^ iiii h,i ......... lii i i- senhor de todas as coisas, que é D eus, o qual
111Mii li i iiiiiiiii/l. I n qu anto em H obbes da igualdade nascia um a
• |1»l * iir.n ind epend ência, para Locke brota um am or dos ho-
hhhi* mi |i< In muros, que jam ais devem rom p er essa lei natural. A
UH"* " .......... ir li.ui nascem na liberdade - por isso os pais, que têm
iU •Hlihi «li li i m i( cm um a legítim a jurisd ição sobre eles; m as nas-
vylii i iiii.i i h lii iil.ulc c por isso o rei não tem autoridade absoluta,
«rai iii ■■i.i 111■|ii ivo l’or isso a form a do Estado é a m onarquia co n s-
•ii 11- Imh«i i i. pii .eniativa, co m ind epen d ência em relação à Igreja,
• lii tu......... . iim i . ii.i de religião. Tal é o p ensam ento de L ocke, que
. ..u i .......... li d I" ma dc govern o adotada na Inglaterra depois da re-
. I....... li 11 i *' que elim inou da antes tu rbu lenta história inglesa as
p i ii M i !■ 1' ■ ii vnluçóes, inaugurando um p eríod o que já dura m ais
mu 11.............li 111111-11io . U sando a term inologia orteguiana, poder-
- ii l .i,ii 111- um I siado co m o pele que substitu i u m Estado com o
J|MI> lln i "Mi 11)i'l llll)

* I h i l a l i ’v

S '!.i......... In.is • cicorge Berkeley nasceu na Irlanda em 1 6 8 5 . Es-


ini|"ii ■ mi l 'iiblin no Trinity C ollege; depois foi deão de D rom ore e
.|i I i i \ i ui .. iMnela loi para a A m érica, co m vistas a fundar um
«ii.imiIi i i.l. i 111 m issionário nas Berm udas; de volta à Irlanda, foi n o-
iiit .ui I h ............. de C loyne. No final de sua vida, m u dou -se
.............. .. i .ill m orreu em 1 7 5 3 . Berkeley estava tom ado de esp í-
•ilii ii 11i/ni..i 11u leve profunda in fluência em sua filosofia e em sua
ui i u i ......... .ui filosófica d ep en d e, sobretu d o, de Locke, de quem
■ um i i> iivi. i nu im iador, em bora apresente um a preocu pação m uito
ui ii* mu ir .i i im ediata pelas qu estões m etafísicas. B erkeley está m u i-
iii 1111' 111 ii. i.ii |m |n-Ui p laton ism o tradicional na Inglaterra e determ i-
imiIm mi............uniu esp iritu alista por suas co n v icçõ e s religiosas, que

279
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

procura d efend er contra os ataques cético s, m aterialistas ou a lu u


Por isso chega a um a das form as m ais extrem as de id ealism o qiu- m-

co n h ecem .
Suas p rincipais obras são: E ssay Towards a New T heory o j Visio/i.
T hrec D ialogues b etw een H ylas an d Philonous (Três diálogos entre I lil.u
e F ilo n o u s), P rincipies o j H u m an K n ow ledge (Prin cípios do conheci
m ento hum ano), Alciphron, or the M inute P hilosopher (Alcífron, ou o lili >
sofo m enor) e Siris, em que expõe, ju n tam en te com reflexões metaíísi
cas e m édicas, as virtudes do alcatrão.
M e ta fís ic a de B e rk e le y • A teoria das idéias de Locke leva Bn
keley ao cam p o da m etafísica. Berkeley é n om in alista; não acredii;i
que existam idéias g e r a is ; não pode haver, por exem plo, um a idéia gc
ral do triângulo, porque o triângulo que im agino é forçosam ente eqiii
látero, isósceles ou escalen o , ao passo que o triângulo em geral não
con tém esta d istinção. Berkeley se refere à intuição do triângulo, mas
não pensa n o con ceito ou pensam ento de triângulo, que é verdadeira
m ente universal.
Berkeley prolessa um espiritualism o e idealism o extrem ado. Para
ele não existe a m atéria. Tanto as qualidades prim árias co m o as secun
dárias são su bjetivas; a extensão ou a solidez, assim co m o a cor, são
idéias, co n teú d o s de m inha p ercepção; por trás delas não há nenhuma
su bstância m aterial. Seu ser se esgota em serem percebidas: esse est
p erc ip i; este é o princíp io fund am ental de Berkeley.
Todo o m u nd o m aterial é só representação ou percepção minha.
Existe apenas o eu esp iritu al, do qual tem os um a certeza intuitiva.
Por isso não tem sentid o falar de causas dos fenôm enos físicos, dando
um sentid o real a esta expressão; existem apenas co n cord ân cias, rela­
ções entre as idéias. A ciên cia física estabelece essas leis ou conexões
entre os fen ô m en o s, enten d id o s co m o idéias.
Essas idéias proced em de D eus, que é quem as põe em nosso es­
pírito; a regularidade dessas id éias, fundada na vontade de D eus, faz
com que exista para n ó s o que cham am os um m u ndo corp óreo. Aqui
en co n tram o s de novo, por outros cam inh os, D eus co m o fundam ento
do m u n do nessa nova form a de idealism o. Para M alebranche ou para
Leibniz, só pod em os ver e saber as coisas em ou por D eus; para Ber-

280
A I I II >M)I IA IN l.il.ESA

. <t<i> ui ............... l i' . i ■■.|)iiiu)>. e Deus, que é qu em age sobre eles e


i r ...... ..... ...111 iu.iii ii.il" Nao só vem os as coisas em Deus, m as,
lii» < tim ....................... I v i r vivemos, nos m ovem os e so m o s”.

I i 1 1 <111 I11I<<I< ■ |i.ivul I lum e é o filósofo que leva às últim as


<, ■-, 1<-.i■11 1 1<1 u i 11 ,i<..1<) em pirista que se in icia em Bacon. Nasceu
ck. 1 •••mi I . I I 1 m orreu cm 1776. Estudou direito e filosofia;
< < i" ' •<•!■■ ................. ililerem es ocasiões, na F rança e teve grande
iiiii'!.............. il>i< mi iiv. enciclopedistas e ilum inistas. Foi secretário
t ■ 1 '"!■ << mI 1 1111 <.I<- ,i 1 '.u;i lama na Inglaterra, F ran ça e Alem anha
I 1 ' |■illn<11
<'..»■ ............Mi-, im p o n a n ic é 0 Treatise o j H um an N ature (Tratado
í ■ "-.i",i. M iiniii.in.il l.im bem escreveu várias reform ulações de di-
,,.<<i> 1 I1 .1.1 nin a, co m o as intituladas An Inquiry C oncerníng

I I . 1 li.|i 1 fii/hli/u; (Investigação sobre 0 entendimento humano),


- |'i<i 1 .mi 1 1mm; lhe Principies o j M orais (Investigação sobre os
1 .........1" " 1I.1 1111 >1. 11), Diálogos sobre a religião natural. Além de sua
• ■ ■ i.i ' "h< 1 ii 111 iiiiki copiosa produção historiográfica, sobretudo
......... .. li I li-.ini v i>l h.nglancl.
•n 1>.■>.<11 .1 no - ( ) t-m pirism o de David H um e chega a seu extre-
' pi mi li H111.1 rm sensualism o. Segundo ele, as idéias se fundam
" • u i ........ui 1111 ] 11a im pressão intuitiva. As idéias são cópias páli-
1' ui iv.n iil.ulr tias im pressões diretas; a crença na con tin u id a-
i< 1 < i' 1I111111' m 1111 h la nessa capacidade de reproduzir as im pres-
' i'l.i'. 1 iii.n u 111 m undo de representações,
r. 1 1 1 l< v li 11,1 uma critica geral do co n ceito de su bstância, m as
• ......... 11 In ,1 1 '.iibsiancia m aterial e corp órea. As “coisas” têm um
í 1 i|i<i 1 1 .iMiia em ser percebid o; m as a realidade espiritual do eu
i" ..........I" < 11111111.1 Im ne. Hume faz um a nova crítica da idéia de
■«1 ■.mu. 1,1 1 1. .iiiiitU i com a qual a p ercepção e a reflexão nos dão
.......................li ' lem cn io s que atribu ím os à su bstância co m o suporte
I, I' ui .1 ii.m 1 111 o iu ia m o s em nenhum a parte a im pressão de subs-
"'ni' 1.1 l ui ni 1111' .e. im pressões de cor, dureza, sabor, cheiro, extensão,

281
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

forma redonda, suavidade, e refiro tudo a um algo d escon hecid o qtu-


cham o m açã, um a su bstância. As im pressões sensíveis têm m ais viva
cidade que as im aginadas, e isso produz em n ó s a cren ça (M ie/ ) na
realidade do representado. Portanto, Hume explica a noção de su bs­
tância co m o resultado de um processo associativo, sem reparar em
que na verdade ocorre o co n trário : m inha p ercepção direta e im edia­
ta é a da m açã, e as sensações só aparecem com o elem en tos abstratos,
quando analiso m inha p ercepção da coisa.
Mas não é só isso. H um e não limita sua crítica às substâncias m a­
teriais, estend e-a ao próprio eu. O eu é tam bém um feixe ou coleção
de p ercepções ou con teú dos de consciência que se sucedem co n ti­
nuam ente. O eu, portanto, não tem realidade su bstan cial; é resultado
da im aginação. Mas Hum e esq u ece que sou eu que tenho as percep­
ções, que sou eu que deparo co m elas e, portanto, sou distinto delas.
Q uem u ne esta co leçã o de estad os de consciên cia e faz co m que co n s­
tituam um a a lm a l Ao fazer sua crítica sensualista, H um e nem sequei
roça o problem a do eu; afora o problem a de sua ín d ole, substancial
ou não, o eu é algo radicalm ente distinto de suas representações.
Além da crítica dos co n ceito s de substância e de alm a. Hum e faz
a crítica do con ceito de cau sa. Segundo ele, o víncu lo causal nada
m ais significa senâo um a relação de coexistên cia e su cessão. Q uando
um fen ôm eno coincide repetidas vezes com outro ou o sucede no
tem po, cham am os, em virtude de um a a ssociaçã o de idéias, o primeiro
de cau sa, e o segundo de efeito, e dizem os que este acon tece p orqu e o
prim eiro ocorre. A sucessão, por m ais vezes que se repita, não nos dã
a certeza de sua reiteração indefinida e não nos perm ite afirm ar um
vínculo de causalidade no sentid o de um a co n ex ã o n ecessária.
C e tic is m o • O em pirism o de Hum e, que chega a suas últimas
con sequências, se transform a em ceticism o. O conhecim en to não pode
atingir a verdade metafísica. N ão se podem d em onstrar nem refutar as
co n v icções íntim as e im ediatas que m ovem o hom em . A razão disso -
com o já apontava de certa form a o nom inalism o - é que o co n h eci­
m ento não é entend ido aqui co m o co n h ecim en to de coisas. A realida­
de se transform a, em últim a instância, em percepção, em experiência,
em idéia. A contem plação dessas idéias, que não chegam a ser coisas,

282
' iv ii i a ir i< . 1 1 '.A

tffe» té** mi* 1 I'" ! •! .....................uli|iiiv i. c cciirism o. Vemos o que


,,u ii i i» ;ti ui |H.Mii li. I ■> ii ii, u irs iii presente para garantir
| | ^ i i i ' l ’ ii i 'I ■ 1111m1111 i l i i i i um que as idéias sejam idéias
*«► • . • «i,í.• 11ii nu iri i ii iniiiic ile razão. Na esteira de
I (ui ti - ■ .ii *«11■ui ii ili ...... . i.kIicíiI esse problem a, e sua
M (li M i i i ■i > ............. ............. . ( n iiiti ita r a z ã o p u ra.

* \ I •I m/i I i l 1 l| I '.I |

■i; i.. i. i.-I. i i p u i i ,am< nu- ii.i lisLócia, surge no


i i," • ......... I-• . i iiln ' l\ iiin.i n açao am ira o ceticis-
l ii i ■ ■ i i “ ■ u m 11 ii i I li ii i .i i l i . m i a d a r atola cscocesa, d e
> ■ í ■ >■ 11 ........... uniu uh
i • ■j ■ | 'i ............... I' i i .i 111.i -,;in I l io m a s R e id ( 1 7 1 0 -

• ! 1 i 1i ■ •■! i • > | ;; '••• i > | <iiiin-iiti cm irvcii An Incfuiiy


;(• I i st '<•, • '• I; •■ I •< l i ■ l i m , l/l/l <f i i Hl 1)1 li l/l -r Mm /">S(iy.S OH lhe

... H - ;ftí i ' ■i 1111■i i i »>Mili, l, iivi I 'iMvri \ i>/ Miin; o sc^un-
1 1| p. ..i ■1.1 i I;.' til'- .il •!.. I i11111>iM liiii I i 'ii/li/ii . ii/ M iu a l l ’h i-
i i: ' ' i i ' Ml i, '1.1 .,11./ .'i/iif.il / ' i H i t i ( ) p o n l o de par-
i I . ii 1■i - 1 . | , i .! ! . ■ | ■ i ,■ 11. 11 ■ i i 'I I n ui i l i i i o i i l i e e i m e n t o ,
‘■ín. • | ■■-. iii .ii- i, l i l i ■ ,iii.i -i I ■i i l i n i i i r im rdialo, que
- ii, | i . , , ■i . 11 i, ....................... i .m in i-, i ui, ikIc ;i r a z ü o s ã . A
ii' ■*. l i, i,.......... ...........li nniii ii i ui .ii .ut '.ciiso comum, ao
i .......... i i i Iii ii i , ma Mina de certeza; todas
t M■■ • .......... i " i l i | ..........li i\ ii la "I ii i .ii.i e v i d C n c i a i m e d i a t a .
I mi . 1 .i In, i iii ii 111 • ii.c. i ui .a1, e nos ancora novam en-
*. . o. ■!> íii,l:ítii i,i - ,i nr ui ii ir i ii ia liliiMilica da escola escocesa
III. i i • i tu ui mi • mo Itiiintilar de modo maduro o
> : ) it i"' i' | i ' " 11|*.i‘ i
•i •> .i tit ...............Unem ia na l:rança (Royer-C ollard
i - 1 , i í ,,,in . .1111 uti li i na ( aialim ha, onde suas m arcas po-
a • . ■ i,i. mi I 111111 i M iiicnd ez 1’clayo.

.'H 1
II. O I l u m i n i s m o

Não se pode considerar todo o com plexo m ovim ento intelectual


cham ado Ilum inism o com o um a sim ples m anifestação do em pirism o.
Nele entram outros elem entos, e particularm ente os que procedem
do racionalism o idealista e, em últim a instância, do cartesianism o.
Mas podem os incluir o pensam ento “das Luzes” na corrente em piris-
ta p o r duas razões: em prim eiro lugar, porque, co m o vim os, o em pi­
rism o inglês depende, em boa m edida, do racionalism o continental e
não exclu i, pelo contrário supõe a influência deste; em segundo lugar,
porque o Ilum inism o, na escassa medida em que é filosofia, se preo­
cupa mais com as questões do conhecim ento que co m as questões m e­
tafísicas e segue os cam inh os em piristas, levando-os ao extrem o até o
sensualism o absoluto. Por outro lado, os elem entos m ais im portantes
do Ilum in ism o, o deísm o, a ideologia política, partidária da liberdade
e do governo representativo, a tolerância, as doutrinas econôm icas etc.,
têm sua origem no pensam ento em pirista dos séculos XVI a XVIII.
A época do Ilum inism o - o século XV III - representa o fim da
especulação m etafísica do século XVII. Depois de quase um a centúria
de intensa e profunda atividade filosófica, encontram os uma nova la­
cu n a em que o pensam ento filosófico perde sua tensão e se banaliza.
É um a época de difusão das idéias do período anterior. E a difusão
tem sem pre esta conseqüência: as idéias, para agirem sobre as m assas,
para m odificar a superfície da história, precisam se banalizar, perder
seu rigor e sua dificuldade, transform ar-se num a imagem superficial
de si m esm as. Então, ao preço de deixar de ser o que na verdade são,
difund em -se e as massas participam delas. No século XV III, um a sé­

285
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

rie de escritores hábeis e engenh osos, que cham am a si m esm os, com
lanta insistência quanto im propriedade, "filósofos”, expõem , glosam
e generalizam uma série de idéias que - de outra forma e com outro
alcance - foram pensadas pelas grandes m entes européias do século
XVII. Essas idéias, ao cabo de alguns anos, tom am conta do am bien­
te, transform am -se no ar que se respira, tornam -se o pressuposto de
que se parte. E ncon tram o-nos num m undo distinto. A Europa m u ­
dou totalm ente, de um m odo rápido, quase brusco, revolucionário. E
esta transform ação do que se pensa determ inará pouco depois a radi­
cal m udança da história que co n h ecem o s com o nom e de Revolução
Francesa.

1. O Ilum inism o na F r a n ç a

Desde o fim do século XVII e durante todo o século XV III opera-


se na França um a m udança de idéias e convicções que altera o caráter
de sua política, de sua organização social e de sua vida espiritual. De
1 6 8 0 a 1 7 1 5 ocorrem as m aiores variações substanciais; a partir de
então, tudo girará em torno da difusão e propagação das novas idéias;
mas o esquem a da história francesa já mudou. Da disciplina, da h ie­
rarquia, da autoridade, dos dogm as, passa-se para as idéias de inde­
pendência, de igualdade, de uma religião natural, e até de um co n cre­
to anticristianism o. É a passagem da m entalidade de Bossuet para a
de Voltaire; a crítica de todas as co n v icções tradicionais, da fé cristã à
monarquia absoluta, passando pela visão da história e das norm as so­
ciais. É uma efetiva revolução nos pressupostos m entais da França, e,
com o a França é então o principal país da com unidade européia, da
Europa toda. (Ver o m agnífico livro de Paul Hazard: A crise d a con s­
ciên cia eu ro p éia .)

a) A Enciclopédia

P ierre B ay le • O Ilum inism o q u er reunir todos os con h ecim en -


los científicos e torná-los acessíveis aos grandes círculos. O s proble­
mas rigorosam ente filosóficos - não digam os mais teológicos - pas­
sam para segundo plano. A “filosofia” se refere agora, principalm ente,

286
O IL U M IN IS M O

aos resultados da ciência natural e às doutrinas em piristas e deísias


(.los ingleses; é uma vulgarização da porção m enos metafísica do car-
icsianism o e do pensam ento britânico. Por um lado, o pensam ento é
radonalista e, por conseguinte, revolucionário: pretende formular e
resolver as questões de unia vez por todas, m atem aticam ente, sem le­
var em conta as circunstâncias históricas; por outro lado, a teoria do
co n h ecim en to dom inante é o em pirism o sensualista. As duas corren ­
tes filosóficas, a continental e a inglesa, convergem no llum inism o.
O órgão adequado para essa vulgarização da filosofia e da ciên ­
cia é a “E nciclop éd ia”. E, co m efeito, o prim eiro representante típico
desse m ovim ento, Pierre Bayle ( 1 6 4 7 - 1 7 0 6 ) , é autor de uma: o Dic-
tkm n aire historique et critique. Bayle exerceu uma crítica aguda e nega-
i iva a respeito de várias questões. Em bora não negasse as verdades re­
ligiosas, tornava-as com p letam ente independentes da razão, e até
contrárias a ela. É cético, e considera que a razão não pode com preen­
der nada que diga respeito aos dogmas. Isso, num século apegado à
K izão, tinha de desem bocar num total afastam ento da religião; da abs-
lenção se passa à negação definitiva; os inim igos do cristianism o logo
ui ilizam am plam ente as idéias de Bayle.
O s e n c ic lo p e d is ta s • Mas muito m aior im portância teve a ch a­
mada E n ciclopédia ou d icion ário racional das ciências, das artes e dos ofí-
i io.s, publicada de 1 7 5 0 a 1 7 8 0 , apesar das proibições que tentaram
im pedir sua im pressão. O s editores da Enciclopédia eram Diderot e
d A lem bert; os colaboradores eram as m aiores figuras da época: Vol-
i.ure, M ontesquieu, Rousseau, Turgot, H olbach e m uitos outros. A En-
■iclopédia, que à prim eira vista não era m ais que um dicionário, foi o
véu ulo m áxim o das idéias do llum inism o. Com certa habilidade in-
iroduzia os pensam entos crítico s e atacava a Igreja e todas as convic-
i.oes vigentes. Dos dois editores, d’A lem bert era um grande m atem á-
iiin e escreveu, além de sua colaboração científica, o Discurso prelim i-
lu ii. com uma tentativa de classificação das ciências. Diderot foi um es-
i n io r Iccu ndo, novelista, dram aturgo e ensaísta, que term inou num a
o n eiu ação quase totalm ente m aterialista e atéia.
( ) sen su a lism o e o m a teria lism o • Essa orientação do m ovim en-
io ilum inista procede de um sacerdote católico, o abade Etienne de

287
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

C ondillac. N asceu em 1 7 1 5 e m orreu em 1 7 8 0 . Sua p rin cip al obra é


o Traité des sen sation s, e nela exp õe um a teoria sensualista pura. C on ­
dillac supõe um a estátua à qual iriam sendo dados su cessivam en te os
sentidos, do olfato ao tato; ao chegar ao final teríam os a con sciên cia
hum ana co m p leta e, p ortanto, todo o con h ecim en to . C on d illac, que
era cren te, ex clu i de seu sensu alism o a época an terior à queda de
Adão e a vida ultraterrena, e fala de D eus e da alm a sim p les com o
unidade da co n sciên cia. Mas esta reserva não se m an tém depois. E n ­
quanto os ch am ad os ideólogos, sobretu d o o cond e D estu tt de Tracy
( 1 7 5 4 - 1 8 3 6 ) , cultivam , conform e seus m étodos, a p sicologia e a lógi­
ca, o sen su alism o de C ondillac en co n tra uma co n tin u ação n o grupo
mais extrem ad o dos enciclopedistas, que o transform am em sim ples
m aterialism o ateu.
Os p rin cip ais pensadores desse n úcleo são o m éd ico La M ettrie
(autor de um livro de título b em eloqüente: L’h om m e m a ch in e); Helvé-
tius ( 1 7 1 5 - 7 1 ) , que escreveu D e l’esprit, e, sobretudo, u m alem ão re­
sidente em P aris, o barão de H o lb a ch , autor de S y stèm e d e la nature
e de L a m o ra le universelle. Todos esses escritores con sid eram que a ú ni­
ca via de co n h ecim en to é a sensação, que tudo na natu reza é m atéria,
inclusive o fund am ento da vida psíqu ica; que as religiões são um en ­
gano e que, p o rtan to , não se pode falar da existência de D eu s nem da
im ortalidade da alma hum ana. O valor filosófico de suas o b ras, pouco
originais, é ín fim o. De m uito m aior interesse são os pensadores do
Ilum inism o qu e se orientam para a história e a teoria da sociedade e
do Estado, sobretudo Voltaire, M ontesquieu e Rousseau, e tam bém Tur-
got e C o n d o rcei, os teóricos da idéia de progresso.
V o lta ire • François Arouet de Voltaire ( 1 6 9 4 -1 7 7 8 ) foi um gran­
de personagem de sua época. D esfrutou extraordinária fam a que lhe
valeu a am izade de Frederico o Grande da Prússia e de Catarina da R ús­
sia. Seu êxito e sua influência foram incom paráveis no sécu lo XVIII,
N enhum escrito r foi tão lido, co m en tad o , discutido, adm irado. O va­
lor real de Voltaire não corresponde a essa celebridade. Tem os de dis­
tinguir nele três aspectos: a literatura, a filosofia e a h istória.
Voltaire é um excelente escritor. Com ele a prosa francesa atingiu
um de seus p ico s; é extrem am ente perspicaz, engenhoso e divertido.

288
O IL U M IN IS M O

'•i iis co n to s e novelas, em particular, acusam um esplêndido talento


In i.trio. Filosoficam ente a coisa é outra. Não é original nem pm lun
di' Seu D ictionnairc philosop h iqu e está im pregnado das idéias lilosóli
■ do sécu lo XVII, que ele adota no que elas têm de m ais su p crlicial:
ii i-iiipirism o, o deísm o e a im agem física do m u n d o , popularizada,
ru iia n to , Voltaire não tem verdadeiro interesse filosófico. Suas críti-
. . i*> irreligiosas, que em sua ép oca foram d em olid oras, nos parecem
Iii i|t- ingênuas e inofensivas. Teve uma falta de visão total no que se
ii li ie à religião e ao cristianism o, e sua hostilidade é o ponto em que
m u'vela mais claram ente a inconsistência de seu pensam ento. Não só
Io>i atacar o cristianism o, mas por fazê-lo com um a superficialidade
iliMiluta, desde uma posição anticlerical, sem nenhu m a con sciên cia
11.i verdadeira questão.
A co n trib u ição m ais interessante e profunda de Voltaire é sua
■'Ina histórica. Escreveu um livro sobre a grande ép oca anterior inti-
111lado L e siècle de Louis XIV Mas sua principal obra historiográfica é o
I \sili su r les m oeurs et Vesprit des nations. Aqui aparece pela prim eira
um a idéia nova da história. Já não é crôn ica, sim ples relato de fa-
ins ou aco n tecim ento s, mas seu objeto são os costu m es e o espírito das
/iiKocs. O s povos aparecem , portanto, com o u nid ad es históricas com
um esp írito e costum es; a idéia alem ã de Volksgeist, de “espírito n a cio ­
nal' , é, co m o m ostrou O rtega, m era tradução do esprit des nations.
\ i iliaire en co n tra um novo o b jeto da história, e esta dá em suas m ãos
ii prim eiro passo para se tornar uma autêntica ciên cia, em bora não
■' msiga su perar o naturalism o.
M o n te sq u ie u • O barão de M ontesquieu ( 1 6 8 9 - 1 7 5 5 ) signifi-
i nu um a contribu ição d iferente para o p ensam ento do Ilum inism o. É
lam bém u m engenhoso escritor, sobretudo em suas Lettres p ersan es, em
i|ut- laz um a crítica cheia de graça e de ironia da socied ad e francesa de
■fii icm p o . Mas, sobretudo, é escritor político e h istórico. Sua prin ci-
11. 11 obra é Uesprit des lois. Sua tese é que as leis de cad a país são um re-
lliwo do povo que as tem ; o naturalism o da ép oca faz com que M on-
ii'sq u icu sublinhe esp ecialm ente a influência do clim a. M ontesquieu
i iin h cce três formas de co n stitu ição , que se repetem na história; em
I 'i im d ro lugar, o despotism o, em que só cabe a o bed iên cia tem erosa,

289
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

e depois, duas form as de Estado, nas quais descobre um m otor da h is­


tória, d istinto para cada um a delas. Na m onarquia, o m o to r principal
é a h on ra; na rep ú blica, a virtude. Q uando estes faltam em seu respec­
tivo regim e, a n ação não funciona com o deveria. M ediante essa teo­
ria, M ontesquieu fornece um com p lem en to decisivo para a idéia de
história em Voltaire: um elem ento dinâm ico que explica o aco n tecer
histórico. (Cf. O rtega: G uillerm o D iltkey y la idea de la v id a.)

b) Rousseau

Rousseau, apesar de suas ligações com os enciclop ed istas, tem


um lugar à parte na história do pensam ento. Jea n -Ja cq u es Rousseau
nasceu em G enebra, em 1 7 1 2 . Era filho de um relojoeiro protestante
e teve um a infância de precoce excitação im aginativa. D epois, sua
vida foi errante e infeliz, com freqüentes in d ícios de anorm alidade.
Suas C onfessions, um livro em que exibe, rom anticam ente, sua in tim i­
dade, são o m elh o r relato dela. O bteve um prêm io oferecid o pela
Academ ia de D ijo n com seu D iscours sur les sciences et les arts, em que
negava que estas tivessem contribu íd o para a depuração dos co stu ­
mes. Esse estudo o tornou fam oso. Rousseau considera que o hom em
é naturalm ente bom , e que é a civilização que o corrom pe. Seu im pe­
rativo é a volta à natureza. Este é o fam oso n aturalism o de Rousseau,
fundado em idéias religiosas, que nascem de seu calvinism o originá­
rio. Rousseau prescinde do pecado original e afirma a bon d ad e n atu ­
ral do h om em , à qual deve voltar. Essas idéias inspiram outro trabalho
seu, o D iscours su r l’origine de l’inégalité p arm i les hom m es, e ele as apli­
ca à pedagogia em seu famoso livro Emile. Rousseau representa uma
forte reação sentim en tal contra a dureza fria e racionalista da E n ciclo ­
pédia e escreve um a novela apaixonada e lacrim osa, que teve im enso
êxito: Ju lie, ou la N ouvelle H éloise. A esse naturalism o v incu la-se a
idéia de religião. Rousseau se converteu ao catolicism o, depois nova­
m ente ao calvinism o e term inou num a posição deísta; a religião de
Rousseau é sen tim en tal; encontra Deus na Natureza, pela qual ex p e­
rim enta profunda adm iração.
Mas o que teve co n seqü ências mais graves foi a filosofia social de
Rousseau. Sua obra sobre este tem a é o C ontraio social. O s hom en s,
no esiado de natu reza, fazem um con trato tácito, que é a origem da so-

290
O IL U M IN IS M O

■n il.utc c do Estado. P ortanto, para Rousseau, estes se luiulam num


ui m i In voluntário; o indivíduo é anterior à sociedade. O que dclcrm i-
ii.i o I siatlo é a vontade, m as Rousseau distingue, além da vontade m-
ih v iiliu l, duas vontades coletivas: a v o lo n tég én éra le e a volonte de tous.
I .1,1 r ;i som a das vontades individuais, e quase nunca é unânim e; a
■|i ii- im porta p oliticam ente é a volon té g én érale, a vontade da m aioria,
ijiii i' a von tade do Estado. O im portan te é isso. A vontade m ajoritária,
I ii ii lo, é a vontade da co m u nid ad e com o tal; ou seja, tam bém dos
■li i ivpantes, não com o ind ivídu os, mas com o m em bros do Estado. É
■i pi 11k ipio da dem ocracia e do sufrágio universal. O im portante aqui
i . poi um lado, o respeito pelas m inorias, que têm d ireito de fazer va­
li i ,iia vontade, m as, ao m esm o tem po, a aceitação da vontade geral
pi Lis m inorias, com o expressão da vontade da com unid ad e política.
V. co n seq ü ên cias dessas idéias foram profundas. Rousseau m orreu
i ni 17 7 8 , antes do início da R evolução Francesa; m as suas idéias co n -
n ib u lram essencialm ente para esse m ovim ento e tiveram grande in-
lliii ncia na história política européia.

2. A “A u f k l á r u n g ” na A le m a n h a

Ao Ilum inism o francês correspon d e na A lem anha um m ovim en-


io sem elh an te, mas não id ên tico , tam bém cham ado ilustração ou ilu-
m m ism o: A ufklárung. C onsiste tam bém na popularização da filosofia,
cm esp ecial a de Leibniz, e igu alm ente da inglesa. M as na Alem anha
i sse esp írito ilum inista é m enos revolucionário e m enos inim igo da
irlig ião ; a Reform a já tinha realizado a transform ação do con teú do re-
I iim o s o alem ão, e a A ufklárung não se confronta com a longa tradição ca ­

tólica, co m o na França. De resto, dom ina na Alem anha o m esm o espí-


i iio racionalista e científico, e a corte prussiana de Frederico, o G rande,
i mu a Academ ia de C iências de Berlim , é u m grande centro da id eo­
logia do Ilum inism o.
W o lff • O popu larizad or da filosofia leibniziana foi C hristian
W ollf ( 1 6 7 9 - 1 7 5 4 ) , p rofessor de Halle, expulso d ep ois desta U niver-
Mtlade, da qual passou para a de M arburgo, para em seguida ser reem -
possado em Halle com grandes honras por Fred erico . W olff, pensa­

291
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

dor de escassa originalid ade, escreveu m uitas obras em latim e mais


ainda em alem ão, cu jo s títulos gerais são com freqü ên cia P en sam entos
racion ais sobre... W olff foi o in tro d u to r do alem ão nas U niversid ades e
na prod ução filosófica. Seu p en sam en to consiste na vulgarização e di­
fusão da filosofia de Leibniz, particu larm ente de suas partes m enos
profundas. Segu in d o os an teced en tes de C lauberg e L eclerc, do final
do sécu lo X V II, introduziu a divisão da m etafísica em on tolog ia ou
m etafísica geral, teologia racio n al, psicologia racio n al e cosm ologia
racional (isto é, ontologias de D eus, do hom em e do m u n d o ). A*filoso-
fia aprendida u sualm en te na A lem an ha no século X V III é a de W olff;
aquela an te a qual terá de to m ar p o sição m ais im ed iatam en te Kant em
sua C ritica d a r a z ã o pu ra.
A e s t é t ic a • U m a d iscip lina filosófica que se co n stitu i in d ep en ­
d en tem ente n o Ilum inism o alem ão é a estética, a ciên cia da beleza,
que se cu ltiva de um m odo a u tô n o m o pela vez prim eira. O fundador
da estética foi u m d iscípulo de W olff, A lexander Baum garten (1 7 1 4 -
6 2 ), que p u b lico u em 1 7 5 0 sua A esthetica. Tam bém relacion ad a com
esses p ro blem as tem os a atividade histórica de W in ck e lm a n n , c o n ­
tem p orân eo de B aum garten, que p u b lico u sua fam osa H istória d a arte
d a A n tigu idade, de tanta im p o rtân cia para o estudo da arte e da cu ltu ­
ra da G récia.
L e s s in g • O escrito r que representa mais claram en te o espírito
da A u fkläru n g é G o tth o ld E p h raim Lessing ( 1 7 2 9 - 8 1 ) . F oi um g ran ­
de lite rato , p o eta, dram atu rg o, en saísta. Sen tiu p ro fu n d a p re o cu p a ­
ção por q u estões filosóficas, esp ecialm en te pelo sen tid o da história e
da busca do saber. De Lessing é a fam osa frase de que se Deus lhe
m ostrasse nu m a m ão a verdade e na outra o cam in h o para bu scá-la,
escolheria o cam in h o . Seu estudo so bre o Laocoonte é outro passo im ­
portante na co m p reen são da arte grega. O racion alism o de Lessing -
com ten d ên cias esp inosistas - é lo leran te, não agressivo co m o o de
Voltaire, e n ão tem a hostilidade deste contra a religião cristã.
A tr a n s iç ã o p ara o id e a lis m o a le m ã o • As co rren tes religiosas
alem ãs do sécu lo XV III - co n cretam en te o pietism o fundado por Spe-
ner e F ran k e - e o interesse pela h istória levam o Ilu m in ism o alem ão
para outros cam in h o s. Volta-se a dar um alto valor ao sen tim en to - fe-

292
O IL U M IN IS M O

m i ' i mi -i i o que aparece na Franga co m Rousseau; iraia-se de c ik o iii i.n


.1 i-iiiido das grandes etapas h istóricas; volta-se a adm irai ;i Idade
Mrdi.i e o alem ão, corno reação co n tra a A ufklärun g, de um Irin laeio
ii ilr.iuo. Aparece o m ovim ento cham ad o Sturm und D rang. I lerdei lal
■iv '.!•|;i a p onte entre as duas tend ências. D epois aparecerá uma serie
■li i si n lo res que preparam ou aco m p anh am o idealism o alem ão, a
I.u n k ’ etapa que vai de Kant a Hegel.

.3. A doutrina da história e m Vico

Ao traçar um quadro do p anoram a in telectu al do século XVI11,


m.in se deve om itir a figura, u m tanto d esco n exa, do filósofo n apolita-
im ( iiam battista V ico ( 1 6 6 8 - 1 7 4 4 ) . Em bora a rigor seu pensam ento
ii.iii se en caix e exatam ente den tro das form as e pressup ostos do Ilu-
im iiism o, sua posição h istó rica está d eterm inad a por co n d içõ es afins,
i suas relações co m os in iciad ores daquele m o v im en to in telectu al são
lu q iie n te s.
V ico n asceu na ép oca em que N ápoles era u m vice-rein ad o esp a­
nhol. Era ju rista e filósofo; foi o prim eiro a co lo ca r em dúvida a exis-
leneia de H om ero - antes só se d iscutia seu lo cal de n ascim en to ; para
V ico, em con trapartid a, H om ero , Zoroastro ou H ércu les não são pes-
>as, m as ép ocas ou ciclo s cu ltu rais person ificad os. D epois de pu bli-
■ar d iversas obras latinas (D e an tiqu íssim a Italoru m sap ien tia e x linguae
líitinae origin ibus eru en d a, D e uno universi ju ris p rin cíp io et fin e uno, D e
n m stan tia ju risp ru d en tis), V ico escreveu a fam osa S cien za n uova (o tí-
i u lo co m p leto é Principi di S cien za nuova d ’in torn o a lia com u n e n atu ra
tlclle n azion i), cu ja prim eira ed ição é de 1 7 3 0 , e a definitiva (cham ad a
Si ie n z a n u ova secon d a), de 1 7 4 4 .
A o b ra de V ico - de grande com p lexid ad e e estru tu ra con fu sa -
co n sid era co m o protagonistas da história u niversal um a série de n a-
t<)es. V ico estabelece um a série de axiom as prévios (clegnità) e assinala
q u e, en q u an to a filosofia co n sid era o h om em co m o deve ser, a legis­
lação o co n sid era co m o é. Esta tom a os vícios do ho m em e os ap ro­
veita, tran sfo rm an d o -o s: da ferocidade deriva a m ilícia; da avareza, o
co m é rcio ; da am bição , a vida da corte. Estam os a m eio cam in h o entre

293
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

a idéia de natureza e a de h istó ria. O s costum es h u m an o s têm uma


certa n atu reza, um a estru tu ra qu e se m anifesta na língua - por isso
ch am a a histó ria d e filo lo g ia - e p articularm ente nos provérbios.
A evolu ção histórica das n a çõ e s, que são os su jeito s da história,
aco n tece segundo um ritm o altern ad o de idas e vindas (corsi e ricorsi).
A ida co n sta de três fases: a) A prim eira se caracteriza por um pred o ­
m ínio da fa n t a s ia sobre o ra cio cín io ; é criad o ra. V ico a ch am a de divi­
na, p o rq u e cria deuses. O s h o m en s são ferozes, m as reverenciam os
que criaram ; é a época da teocracia, b) A idade h eró ica : acred ita-se em
h eróis ou sem ideu ses de origem d ivina; a forma de govern o é a a risto ­
cracia. c) A idade hu m an a: gente b en ign a, inteligen te, m odesta e se n ­
sata; a form a de governo é a igualdade, que se traduz pela m onarquia.
O s h o m en s da prim eira dessas id ad es são religiosos e pied osos; os da
segunda, m eticu losos e co lérico s; o s da terceira, o ficio sos, instru íd os
pelos d everes civis. A essas três etapas co rresp o n d em três línguas:
uma para os atos m udos e religiosos (língua m ental); outra para as ar­
mas (língu a de vozes de m an d o ); u m a terceira para falar (língua para
se en ten d er). Essas idéias de V ico esb o çam um a teoria das funções da
linguagem .
D ep o is de um povo p erco rrer as três fases, o ciclo recom eça: é o
ricorso. Não é um a d ecad ência, m as um a rebarbarização. Essas idéias
en co n tram eco na teoria co m tian a dos três estados; m as nesta o esta­
do p ositivo é o d efin itiv o, d ife re n te m e n te do que o co rre co m a idade
h u m an a n o esq u em a de V ico.

4 . Os iluministas espanhóis

Na Espanha, o Ilum inism o teve características próprias: seu p rin ­


cipal traço foi a reincorp oração da E spanha ao nível da ép oca e à c iê n ­
cia e à filosofia que vinham send o elaboradas desde o século XVII: a
eu ro p eiz a çã o (em lula com o atrativo do popularism o castiço). Os ilu­
m inistas esp an hóis não foram irreligiosos, mas h om ens desejosos de
superar os abu sos da Igreja ou a falta cle liberdade, perm an ecen d o fiéis
a sua lé. Partidários das reform as p olíticas e sociais, m as não revolu­
cion ários; em sua grande m aioria, d esolados ante as violências e a fal-

294
O I l u m in is m o

i.i ili liberdade durante a R evolução Francesa. O reinado tlc Fernando


M i 1 Z 46-59) e o de Carlos 111 ( 1 7 5 9 -8 8 ) , sobretudo, representam uma
i i iii lijviu e transform ação da sociedade espanhola, que se viu com pro-
ii n nda durante o reinado de C arlos IV, quando se inicia uma fo n e iva-
i..iii. definitivam ente destruída pela invasão napoleôn ica e pelas lutas
piililicas, e pelo absolutism o de Fernando VII (1 8 1 4 -3 3 ) .
t ) Ilum inism o esp anhol é m ais receptivo que criativo, e filosofi-
i am ente m uito m od esto; sign ifico u apenas a incorp oração d o pensa-
...... no m od erno, num m o m en to em que a E scolástica atingira sua
m aior decadência. As figuras prin cip ais são o ben ed itin o B enito Je ró -
ininn Feijoo ( 1 6 7 6 - 1 7 6 4 ) , galego, professor em O viedo, au to r do
íi itlio í rítico universal (8 vols.) e das C artas e r u d ita s y curiosas (5 v o ls.),
gland e ensaísta de en orm e d ifusão, com p reensivo e tolerante, interes-
-..u lo no desarraigam ento das cren ças errôneas e das su p erstições; seu
a m ig o e colaborad or, o Pe. M artin Sarm ento ( 1 6 9 5 - 1 7 7 1 ) ; o filósofo e
m edico A ndrés Piquer ( 1 7 1 1 - 7 2 ) , autor de Lógica m o d ern a e F ilosofia
nu u a i p a r a la ju v en tu d espanola\ o doutor M artin M artínez (F iloso fia es-
■i'/)fiaO; A ntonio Xavier Pérez y López (Princípios dei orden esen cial de
hi n u tu ra lez a); os jesu ítas Ju a n A ndrés (O rigen, p r o g r e s o y esta d o actu al
i/i hida la literatu ra, 10 vols., qu e representa ad m iravelm ente o nível
da ep o ca ), E steban de Arteaga (L a b ellez a id ea l) e Lorenzo H ervãs y
1'anduro ( H istoria de la v id a dei hom bre, C atálog o d e las lenguas d e las
ihii iones con ocid as): a grande figura do sécu lo é G aspar M elch or de J o -
vellanos ( 1 7 4 4 - 1 8 1 1 ) , au tor de inúm eros estu d os e m onografias, cu ja
m entalid ad e se revela m elh o r que em qu alqu er outro lugar em seus
I >icírios1.

1 V er m eu s livros Los E spaholes ( 1 9 6 2 ) e La E spana posihle en eiem po d e C arlos III


(1 0 6 3 ).

295
I I I . A FORM AÇÃO DA ÉPO CA MODERNA

I A filosofia e a história

I 1 que prim eiro se pensa na filosofia acaba tend o con seqü ên cias
In .1 ■<i h .is As idéias vão se g en eralizan d o até tran sform ar-se p o u co
« puni d num a força atu an te, até m esm o nas m u ltid ões. Isso sem pre
>» i h h h mas m ais que nu n ca na ép oca em questão aqui. Todo o sécu -
I" -A lll, ludo o que cham am os de Ilum im sm o, foi o processo de aqui-
", 1,, ili- influência e ex istên cia social das idéias pensadas nos séculos
mh I m ies. E isso não foi por acaso. Todos os tem p o s vivem , em certa
11 n 11li la, de idéias; mas não é forçoso que estas idéias se m ostrem com o
Ih I nino teorias; costum am precisam ente en co n trar sua força no fato
=Ir -.i- ui ultarem sob outras form as; por exem p lo , form as tradicionais.
Uh M'i ulo X V III, em con trap artid a, as idéias im p o rtam ju stam en te
IXh M-iem idéias: trata-se de viver segundo essas idéias, segundo a
Mir,ii(i. 1’or isso não têm de se revestir de outra aparência, e adquirem
.in m axim a eficácia.
( um as idéias m etafísicas que tentei ex p o r n o s cap ítulos anterio-
ii--. - v co m algum as idéias religiosas e teológicas aparentadas com
I l.i-. ocorre o m esm o. Vão se expandindo para círcu lo s cada vez m ais
im plos, e sobre eles exercem sua influência. P ou co a pou co, a vida e
.r. I ii-ncias vão sendo inform ad as pelos resultados a que a filosofia
■li, >',ou antes. Dessa m aneira, o aspecto do m undo vai se transform an-
■I,, As raízes são anteriores e p erm anecem o cu ltas; o que se m anifes-
i.i r a alteração total da su p erfície. Mas essa variação só pode ser p le­
n am ente com p reend id a em sua unidade qu and o se co n h e cem os m o ­

297
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

v im entos su bterrâneos em ação. Tem os de en ten d er co m o essa época


européia está cond icion ad a pela filosofia, e ao m esm o tem p o co m o , a
partir d ela, a filosofia fica situada h istoricam ente e determ inada por
sua própria situação.

2 . O Esladv racionalista

A ép oca posterior ao R en ascim en to está co n stitu íd a pela d esco ­


berta da razão m atem ática - o racionalism o. D urante os sécu lo s XVI e
XVII co n stro em -se os grandes sistem as racionalistas na física e na filo­
sofia: G alileu, N ew ton, D escartes, Espinosa, Leibniz. Esse racionalis-
m o tem claras con seqü ências históricas.
O a b s o lu tis m o • Nos prim ó rd io s do Estado m o d ern o , do Es
do a b so lu to , se com eça a falar de razão, da razão de Estado: a ragione
di S lato de M aquiavel. Tem os, pois, um Estado com um a personalida­
de, e este Estado tem suas razões; age, portanto, co m o uma m ente.
Trata-se de um a personificação racionalista do Estado, que aparece
ju n to co m as nacionalidades m od ern as.
D escartes fala in cid entalm en te de política; diz que as coisas são
m ais b em feitas quando feitas segund o a razão, e por um só, não por
vários. Esta é a ju stificação racional da m onarquia absolu ta, e desse
m esm o p rin cíp io tam bém brotará, m ais tarde, o esp írito revolucioná­
rio. O s E stad os que sc co n stitu em no R enascim ento se transform am
em fortes u nid ad es de pod er absolu to.
A d ip lo m a c ia • Nesse m o m en to surge m an ifestam ente a d iplo­
m acia, co m um novo sentido. É apenas a su bstitu ição da relação d ire­
ta de Estados entre si por um a relação pessoal abstrata; essa d iplom a­
cia resulta da unidade alcançada pelas nações; antes, ela só existira
nos E stad o s italian o s m ed ievais, qu e foram ju sta m e n te os qu e m ais
se p areceram co m um a nação em sen tid o m o d ern o ; p o r isso , talvez,
a Itália n ão ten h a consegu id o esta b e le c e r um E stad o u n itário . G ra­
ças a essa d ip lo m acia, co n se q ü ê n cia da u nid ad e, essa u nidade se
acentua. C o m eça a existir a F rança co m o tal, França para os franceses
e para os que não o são, quando é vista representada e personalizada,
relacion and o-se com outras nações. Basta ver a diferença de co n sciên -

298
A F O R M A Ç Ã O DA ÉPO C A M ODF.RNA

■i.i de espanholidade de um súdito dos Reis C atólicos e de um sudilo


de belipe II, por exem plo. M orta Isabel, Fern and o dc Aiagao anula
pode “voltar para seus E stad o s”; em tem pos de Felipe isso nao scu a
mais possível. A n ação está personificada no rei absolu to; as relações
■•Mire as nações se resum em e p ersonificam na conversação d e a lg u n s

poucos hom ens. Os E stados co m eçam a ocu par um lugar na m e n te

ilc cada indivíduo.

.3. A R eform a

A Reform a tem um a dim ensão estritam ente religiosa, co m um a


jHMicse fácil de traçar ao longo da Idade M édia até ch egar a Lutero.
Mas não vam os con sid erar esse aspecto, e sim o vital e h istórico, a si-
i nação espiritual que a to rn o u possível e a nova situação que ela de-
iiTininou.
O liv re e x a m e • O m ais im portante da Reform a é o livre exam e,
su p õ e qu e, em vez de haver um a autoridade da Igreja que interp reie
os lexLos sagrados, cabe a cada indivíduo in terp retá-los. Isso é racio-
ualism o puro; p ressente-se aqui aquilo que D escartes dizia: “o bom
si-nso é o que há de m ais b em distribuíd o no m u n d o ”. M as Lutero é o
hom em m enos racionalista do m u ndo, inim igo da razão e da filosofia.
Q ue significa isso? É m ais um a prova de que o hom em que nasce num a
i-poca está inserido nas cren ças dela, a despeito de suas idéias p articu ­
lares, e de que o que atua nele são sobretud o os p ressup ostos vigentes
tio lem p o (O rtega).
C on seqü ência necessária desse espírito de livre exam e é a des-
iruição da Igreja. Já que se diz “o hom em e Deus a só s”, a Igreja é um a
ingerência que se in terp õe entre o hom em e Deus. A Igreja sem pre
c onsid erou com extrem a cautela as posições m ísticas porque beiravam
esie perigo. É con hecida a terrível frase de um m ístico católico: “D eus
e cu , m undo não m ais.” O h o m em fica a sós com Deus. D á-se o fracio-
n am en to do protestantism o; a pluralidade faz parte da essência do
protesiantism o. E xam inarem os dois tipos de Igreja reform ada - a Igre­
ja ‘nacional”, por exem plo a anglicana, e a Confissão de Augsburgo - ,
para ver co m o trazem em si o germe de sua própria dissolução.

299
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A Igreja nacional se form a em torn o da pessoa do rei. O rei da


Inglaterra, ou um príncipe alem ão, é a cabeça da Igreja, e esta é n acio ­
nal, política. O corre uma vinculação radical entre religião e política,
entre Igreja e Estado. O Estado se transform a em Estado religioso, de
m odo bem distinto do que acontecia na Idade M édia, em qu e o Esta­
do supõe e aceita os princípios religiosos. O que agora ocorre é antes
0 con trário, é a religião que está afetada pelo princípio n acio n al; ch e­
ga-se à n orm a cujus regio, ejus religio. N os países cató lico s este esgírito
tam bém p enetra em certa m edida, e neles se fala de “alian ça do trono
com o altar”, esquecendo o claríssim o texto evangélico: Meu reino não
1 deste mundo. As diversas inquisições m odernas - tão d istintas da m e­
dieval - são, em suma, antes instru m entos estatais que organism os re­
ligiosos. Esta estatização da Igreja conduz à perda de seu con teú do reli­
gioso e à sua absorção pelos interesses tem porais. Essa ép o ca assiste
não ao desaparecim ento do protestantism o, mas a freqü en tes falên­
cias das “igrejas nacionais”.
A C onlissão de Augsburgo, por exem plo, supõe um a c o rd o sobre
m atérias de fé. Pertence-se a ela por estar cm conform id ad e com seu
con teú do dogm ático. É uma associação de indivíduos isolad os, que
constituem u m a Igreja, que não estão n ela com o no cato licism o ; a dis­
tinção é bem clara. Mas essa com unidad e baseada na op in ião co n co r­
dante está su jeita a variações. A op inião, regida pelo livre ex am e, evo­
lui em m u itos sentidos e se divide; à C onfissão ú nica segu em -se vá­
rias seitas, estas se atomizam ainda m ais, e assim ch egam os ao credo
individual. O cham ado “protestantism o liberal” con sistiu n a supres­
são de quase tod o o conteú do d ogm ático, a ponto de o n o m e cristia­
nism o ser nele quase um sim ples resíduo injustificado.
O p ro b lem a da R eform a • Nos países católicos ocorre a Contra
Reforma, isto é, uma Reforma ao inverso. O corre, portanto, um a cisão
entre os países protestantes e os cató lico s, e a Europa que nos fora
dada co m o u m a unidade aparece desgarrada em duas. D iante dessas
duas m etades em que a Europa se dividiu, podem os pensar qu e quem
m antém a unidade é o catolicism o, e a Reforma é puro erro passagei­
ro, ou que o d estin o da Europa é o protestantism o, e as n açõ es cató li­
cas são retrógradas. (Para esta solu ção apontam Hegel e G uizot, e é a

300
A FO R M A Ç Ã O DA ÉPO C A M O D FRN A

I■rança qu e contradiz essa interpretação h istó rica.) Ou podem os pen


..ir na su bsistên cia de am bos, e que a unidade da Europa e uma um
dade dialética, um a unidade dinâm ica, tensa, dessas d u a s m e i a i l e s
N ote-se que isso nem roça a questão da verdade integral do c a i u l u is
mo; o fato com que a m ente cristã depara é o de que Deus perm itiu ii
R eform a, co m o perm itiu, por outro lado, a convivência de um a plura­
lidade de religiões. Não se pode prescindir do fato da Reform a, o que
a Igreja não fez; reparem que a Igreja católica não adota a m esm a p o ­
sição ante o Cism a do O riente e ante o m ovim en to protestante; no
prim eiro caso perde a obed iência de todos os países orientais e per­
m anece inalterada; no segundo, f a z um a C o n tra -R efo r m a : a substanti-
vidade desta exige a da R eform a - não sim ples cism a - que a provoca.
Mas esta posição co lo ca um novo problem a: de que tipo é essa
in teração entre o m u ndo cató lico e o protestante?, de que tipo é a
unidade que os co n stitu i?, e, por últim o: qual será a sín tese que re­
solverá essa antinom ia? Poderíam os pensar - e essa idéia, agradável
para um a m ente cató lica, não se vê d esm entid a p elo s in d ícios da
ep oca - qu e essa síntese seja a reabsorção final no cato licism o , d e­
pois de esgotado o cam in h o errôneo, até ch egar a su as últim as c o n ­
seqüên cias. Talvez o protestantism o se refute historicam en te a si m es­
mo e seja superado na verdade. E essa unid ade restaurada da Igreja
cató lica n ão seria de m odo algum igual à an terio r à R eform a, co m o
se esta n ão tivesse existido , m as ficaria con servad a na form a co n c re ­
ta de sua superação.

4. A sociedade m oderna

V im os o papel de dois elem entos fundam entais da Idade M oder­


na: o racionalism o e a Reform a. Veremos agora qual sua influência na
estru tu ra social da ép oca; co m o , em virtude da filosofia e da teologia,
toda a vida m oderna, do intelectu al ao social e p o lítico, adquire um ar
novo, que cu lm ina, no século XV II, com os dois grandes fatos do Ilu-
n iin ism o e da Revolução Francesa.

301
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

a) A vida intelectual

O tip o de in te le c tu a l • Q ue tipos de intelectuais produzem e


ses séculos? Q ue é um hom em intelectual nessa ép oca, e co m o en ten ­
de seu trabalho? Q ual a diferença de ser intelectual no sécu lo XVII e
sê-lo na Idade M édia, no R enascim ento ou no século X V III?
Na Idade M édia o verdadeiro intelectual é o clérig o, esp ecial­
m ente o frade. O trabalho da E scolástica, com seu senso de escola, de
colaboração, é com u m dentro da O rdem ou da U niversidade. O filó­
sofo é nessa ép oca hom em de m on astério, de com u n id ad e,-ou então
professor. É o hom em escolar - scholasticus - , que coop era na grande
obra coletiva,
No R enascim ento, o intelectu al é um hum anista. É um hom em
do m undo, secular, que cultiva sua pessoa, principalm ente nas d im en ­
sões da arte e da literatura, im pregnadas de essências clássicas. Tinha
um ar m atinal em seu novo m odo de assom ar à natureza e ao m undo.
É o tipo de Bem bo - apesar de seu capelo - , de Thom as M ore, de Eras­
m o, de Budé ou Vives.
Tom em os agora um tipo d iferente de intelectual: G alileu, D es­
cartes, Espinosa. O intelectual dessa época é o hom em do m étodo
(O rtega). Não faz outra coisa senão bu scar m étod os, abrir novos ca­
m inhos que perm itam chegar às coisas, a coisas novas, a novas re­
giões. É o hom em que, com um im perativo essencial de racion alid a­
de, vai co n stitu in d o sua ciência. O hom em do século XVII tem uma
consciência efetiva e precisa de m odernidade. O renascentista era o
hom em que tinha sintom as, in d ícios de m odernidade, que ia en co n ­
trando coisas velhas, que de tão velhas já pareciam novas. A exam inar
m inu ciosam ente o R enascim ento, com provar-se-ia que era em grande
parte negativo. As coisas que a Idade M oderna fará estão ancoradas
antes na Idade M édia - O ckham , E ck h art, a escola de Paris - que no
R enascim ento. Este é brilhante, m as de pouca solidez. O s ren ascen ­
tistas voltam -se contra a klade M édia - Vives, Ramus - , e isso é algo
que irá perdurar: um século depois, qu and o se está vivendo de raízes
m edievais, co n tin u a-se consid erand o a Idade Média e a Escolástica
um puro erro. O prim eiro hom em com senso histórico que, ju n to com
o valor da nova ciência, verá o valor da Escolástica será Leibniz.

302
A fo rm a çã o da épo c a m o d ern a

( ) le m a da n a tu rez a • A Reform a cindira a Europa em duas ine-


i li les, e não uma reform ada e outra não, mas as duas reform adas, cni-
lioi.i com sentido distinto. Há um a exceção, a França, que não é Re-
Im m a nem talvez C ontra-R eform a. A França com bate os calvinistas,
ii K luindo o episódio da noite de Sâo Bartolom eu, mas faz tam bém uma
I >id ii íca contrária à dos Áustrias e ao desm em bram ento da religião na
i iiieira dos Trinta Anos; prom ulga o Edito de N antes e gera a Igreja
i i.ilicana, católica, subm etida ao Papa religiosam ente, mas matizada
do ponto de vista nacional. Talvez por isso Leibniz, ao tentar a união
d,r. Igrejas, não se dirija aos hierarcas da Igreja espanhola, salvo ao
Im po R ojas Spínola, nem d iretam ente a Rom a, m as sobretudo a Bos-
-.ui-i , o porta-voz da Igreja G alicana.
Entre a Europa da C ontra-R eform a e o resto dela en con tram os
ui na diferença m uito séria: os países co n lra-reio rm ad o s não fazem
,ipenas ciên cia natural, salvo os físicos italianos, co m G alileu, que e n ­
tra em con flito com as autoridades eclesiásticas. O s países da C ontra-
lúTorm a fazem outra co isa im p o rtan te: o ju s n atu ra e. Ante a física,
\,ii-se fazer o direito natural, um a ciência hum ana ju ríd ica . Mas por
i ias das diferenças existe com unidade: é um direito n atural, reaparece
.k|ui o tem a da natureza. Esse direito, nas m ãos dos teólogos esp a­
nhóis, ainda vai estar fundado em Deus; m as nas m ãos dos h o lan d e­
ses e dos ingleses - Hugo G rócio, Shaftesbury, H u tcheson - se trans-
lorm a n u m direito estritam ente natural, um direito da natureza hum a­
na. Falar-se-á de religião natural ou deísm o, de um Deus natural. É
lod o um m ovim ento naturalista, que culm ina em Rousseau.
A C ontra-R eform a teve um a sorte estranha: ficou in telectu alm en ­
te fechada em si m esm a, isolada, sem se pôr em co n tato com a nova
hlosofia e a nova ciência. D escartes e Leibniz co n h eciam os teólogos
i-spanhóis; mas estes não se relacionam com os filósofos m od ern os, se
i-sgotam em si m esm os. Ficam fora da nova com u n id ad e intelectual
européia, e isso faz co m que o esplêndido florescim en to espanhol
logo se extinga e não tenha fecundas co n seqü ên cias diretas. Porque é
preciso n otar que a obra dos pensadores espanhóis, de V itoria a Suá-
icz, não foi estéril; mas sua eficácia só veio a se revelar m uito mais
tarde, d epois de sua aparente continuação.

303
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A u n id a d e in te le c tu a l da E u ro p a • No século XV II existe uma


com u nid ad e esp iritu al na Europa, dirigida pela filosofia e pela ciência
natural, e tam bém pela teologia. U m de seus elem en tos está desapare­
cido nesse m o m en to , mas provavelm ente voltará a surgir co m essas
gerações, depois desses anos de crise: os intelectuais, no sécu lo XVII,
escreviam longas cartas uns aos outros. Nas obras de G alileu, de D es­
cartes, de E spinosa, de Leibniz, de A rnauld, de C larke, de todos os
hom ens representativos da ép oca, um a parte considerável está co m ­
posta por sua corresp on d ên cia cien tífica. Isso significa que uns estão
atentos ao trabalho dos outros e além disso se corrigem , fazem o b je-
ções que dão um a enorm e p recisão às obras desse tem po. É a época
em que são p u blicad o s aqueles brevíssim os folhetos que transfofm am
a filosofia co m cin q ü en ta claras páginas, cham ados D iscours d e la m é­
thode, D iscours de m étaphysiqu e, M onadologie.

b) A transform ação social

As n o v as c la s s e s • A profissão de intelectual ainda não existia


com o tal no século XVII. D escartes, m uito a contragosto de sua famí­
lia, não escolhe profissão - as arm as, a ju stiça ou a Igreja: gens de robe
et. gens d ’ép ée - e se dedica a trabalhar e estudar. É um h om em inde­
pendente e de boa posição, um h om m e d e bonne com p ag n ie, e se declica
à atividade intelectual sem ser clérigo ou professor. Ao longo do século
XVII esse tipo inaugurado por D escartes com eça a se generalizar.
Por um lado, o intelectu al vai abrin d o cam in h o , por outro a n o ­
breza vai se tornan d o palatina. N o final do século XV III a classe in te­
lectual ainda não se consolidou por com p leto. Sten d h al cita a frase de
um n obre a propósito de Rousseau: C ela veut raison n er d e tout et n ’a
pas q u a ran te-m ille livres d e rente. M as ao m esm o tem po está se form an ­
do uma burguesia, tingida de intelectu alism o, porque sua cam ada su ­
perior é form ada pelos h om ens de ciência.
O s vestígios do feudalism o se extinguem , e term ina a in d ep en ­
dência da nobreza. Os últim os atos residuais do feudalismo são a F ro n ­
da na Fran ça de M azarino, e, na Espanha, o levante de A ndaluzia com
o duque de M edina Sidonia, em tem pos de Felipe IV A nobreza é o b ri­
gada a se vincular às outras duas forças: o terceiro estado e a m onar-

304
A F O R M A Ç Ã O DA É P O C A M O DF.RN A

quia. Torna-se palatina, por um lado, e por outro se põe em u n iu iio


com a burguesia. Apóia-se nas duas e fica em situação muito dilicil d e ­
pois da R evolução Francesa. Em contrapartid a, p ou co a pouco vai sc
co n stitu in d o um a forte burguesia.
A m onarquia chegou à sua plenitude absolu ta - regalism o - e
consegu iu um a organização com pleta do Estado. Este com eça a ser
um a m áquina perfeita. A u tom aticam ente, um a série de coisas que pa­
reciam particulares e privadas vão passando a ser da alçada do E sta­
do. Cada vez presta m ais serviços, se encarrega de mais problem as,
tam bém se faz sen tir m ais pesadam ente. É o que se cham a de in ter­
ven cio n ism o do Estado; u m processo que vai au m en tan d o in cessan ­
tem ente e no qual nos en co n tram o s totalm ente im ersos hoje.
N a tu re z a e g raça • V im os que o pen sam ento reform ista e o ra-
cio n alism o d esem bocam n u m interesse pela natureza, separada de
D eus. Na Idade Média os co n ceito s de natureza e de graça se co n tra ­
pu n h am , e no R enascim ento o hom em se lança à procura da n atu re­
za, separado da graça e esqu ecend o o velho princíp io cristão: g ra tia
n atu ram non tollit, sed p erficif, o século XIX terá esq u ecid o tão co m p le­
tam en te que a graça foi a com p anh eira da natureza, que, nele, à natu-
ra só se opõe cultura, e isso transform a con cretam ente a idéia de n atu ­
reza. H oje se prefere falar de espírito - uma palavra cheia de sen tid o,
m as tam bém de eq u ívocos - e, de outro p onto de vista, de história.
C om o R enascim ento triunfa o m odo de pensar natural. O m un­
do deixa de ser cristão, em bora os indivíduos o sejam , o que é m uito
diferente. O h o m em fica send o um mero ente natural. Por outro lado,
o pro testantism o surgira com um a co n cep ção com p letam en te pessi­
m ista do hom em : consid era que está caído, que sua natureza está es­
sen cialm ente corrom pid a pelo pecado original, e a ju stificação só pode
se realizar p ela f é , pela aplicação dos m éritos de C risto; as obras são
in op eran tes: o h om em é im potente para realizar m éritos que o sal­
vem . D iante disso, a C ontra-R eform a, em Trento, proclam ará co m o
lem a a f é e as obras.
N o R enascim ento o h om em vai perd end o D eus em co n se q ü ê n ­
cia de sua irracionalid ad e. Para o protestante, suas obras não têm a
ver co m a graça e são m eras obras naturais, que d om inam o m undo

305
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

m ediante a tísica; assim o h o m em vai se afastando de D eu s e da gra­


ça. C on seqü ên cia: só no m u n d o , co m o qual faz grandes coisas, e sem
se p reocu par co m o problem a da graça, o hom em j á n ão se con sid era
mau. O p essim ism o se fundava no p onto de vista da graça, m as com o
ente n atu ral, em pleno êxito da razão física, por quê? O pessim ism o
protestante, reduzindo-se à m era natureza, transform a-se no o tim is­
m o de R ousseau. O hom em se esq u ece do pecado original e se sente
n atu ralm en te bom .
A R e v o lu çã o F ra n c e sa • Q ue co n seq ü ên cias terá essa situação
no sécu lo XV11I? O século XV III é a ép oca de aproveitam en to do sé­
culo X V II; existem épocas de ten são, criativas, e outras de utilização
do anterior, sem grandes problem as originais, só com qu estões de ap li­
cação e generalização do já d esco b erto. Todas as coisas se d iluem um
pouco. Assim , do intelectual do sécu lo XV II se passa ao en ciclo p e d is­
ta, que tem afinidades essenciais com o jo rn a lism o , m as aind a co n ser­
va viva a ciên cia, em bora, em geral, a já elaborada. Esses h o m en s d i­
fundem o pensam ento do sécu lo XV II, do qual vive a cen tú ria segu in­
te. Para viver de um a idéia é preciso qu e haja passado tem po, que as
massas a ten h am recebido, não co m o uma co n vicção individual, mas
co m o um a cren ça em que se está im erso; e isso é lento. C om o indica
O rtega, o tem po da vida coletiva é m uito mais pausado qu e o da ind i­
vidual. A ssim , no século X V I11 as dam as de Versalles falam dos tem as
que no sécu lo XV II eram privativos dos mais agudos pen sadores: a fí­
sica de N ew ton e os torvelinhos de m o n sieu r D escartes, qu e Voltaire
tornou acessíveis para a corte.
Tudo isso levará à Revolução Francesa. O R en ascim en to nos
trouxe duas coisas: o racionalism o e a R eform a; estas têm duas co n se­
qüências: o naturalism o e o o tim ism o. V im os que o racion alism o pro­
duz niuito diretam ente a m onarqu ia absolu ta; m as esta é um a fase de
transição desde a Idade M édia. A ép oca m edieval criara u m espírito
m ilitar: a cavalaria; e o m onarca é um governante fortem ente m ilitari­
zado. Ao longo de todo o século XV II trava-se uma luta en tre duas
forças: a m ilitar e a intelectual. A idéia do m ando m ilitar vai se to r­
nando civil, vai se intelectualizando. E co m o a razão é essen cia lm en ­
te um a e m esm a, e o que dispõe é o que dev e ser, portan to é p a r a sem ­
pre, cria-se um estado de espírito revolucionário.

306
A F O R M A Ç À O DA ÉP O C A M O D ER N A

O s hom ens racion ais e n atu ralm en te bons estão num a sociedade
co n stitu íd a h istoricam ente, p ou co a pou co, de um m odo im perfeito,
íunclada num a idéia da m onarqu ia que já não está viva, e num a i ra<li
çao religiosa que perdeu vigência social. Esses h o m en s decidem d er­
rubar tudo para fazer m elhor, racion alm ente, p erfeitam ente, de uma
vez por todas e para todos: “direitos do hom em e do cid ad ão”, assim ,
sem m ais con cessõ es à história. Estam os na R evolução Francesa. O
m undo se organizará de um m odo definitivo, g eom etricam en te. É a
raison que vai m andar a p artir de agora.

5. A perda de Deus

Não quero dizer que a evolução do problem a de D eus, que estu ­


dei m inu cio sam en te nas páginas anteriores, seja a ú nica causa intelec-
lual de toda a variação da Europa nesse tem po. Isso seria um exagero;
mas o que é certo é que um im portantíssim o grupo dessas variações
co n siste na passagem de um a situação fundada no cristian ism o, com
a idéia de D eus na base de todas as ciências, com um direito divino e
um a m oral religiosa, fundada nos dogm as e na teologia, para outra si-
i n ação totalm ente distinta, em que Deus é su bstitu íd o pela razão h u ­
m ana e pela natureza.
Há, além disso, um fator que acelera o triunfo e a difusão dessas
idéias que p rescind em de D eus e o vão desalojand o das ciên cias e dos
princípios. É a prim azia conced id a ao negativo na m odernidade. C om
efeito , n o s séculos m o d ern o s parte-se do p ressup osto de que é p reci­
so ju stificar o positivo, e qu e o negativo é válido por si só. P ortan to, é
preciso esforçar-se para d em onstrar a liberdade an te o d eterm in ism o,
a ex istên cia do m u ndo exterior, a possibilidade do co n h ecim en to .
Não co n sid ero que não seja efetivam ente n ecessário provar essas c o i­
sas, m as refiro-m e à ten d ên cia, à exatidão de que se parte. Há um as
palavras de F onten elle esp ecialm ente expressivas: “O testem u n h o dos
que crêem num a coisa estabelecid a não tem força para su sten tá-la;
mas o testem u n h o dos que não crêem nela tem força para destruí-la.
Fois os qu e crêem podem não estar instruídos das razões para não

307
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

crer, mas não é possível que os que não crêem não estejam instruídos
das razões para crer...”
A ssim , m ediante essa prim azia do negativo a progressiva secula-
rização das crenças vai ad qu irind o vigência. E isso exp lica por que,
assim co m o antes não havia razões particulares em cada um a para
justificar o fato de que tivessem seu fu nd am ento na D ivind ad e, tam ­
pou co agora existem provas su ficien tes para exp licar a exclu são de
D eus das d isciplinas intelectuais. N osso tem po, com o im perativo de
não partir de n en h u m a das duas atitu d es, e de ju stifica r as coisas, te­
ria de falhar n o que diz respeito a qu estão tão grave.
Tentei m ostrar a que céus descon h ecid os e im pen etráv eis, co m o diz
Paul ITazard, D eus fora relegado. M as tam bém vim os qu e, ape*sar de
tudo, D eus perm anecia seguro e firm e na filosofia do sécu lo XVII.
Com o é possível esq u ecer essa d im en são e só prestar aten ção à outra,
que nos afasta da Divindade?
Disse antes que D eus deixa cle ser o horizonte da m ente para to r­
nar-se seu so lo . Com efeito, o divino n ão é mais o b jeto da co n sid era­
ção e da ciên cia, é apenas seu p ressup osto. O h om em nào vai a Deus
porque lhe interesse, o que lhe im porta é o m undo. D eus é tão -so m en ­
te a co n d ição necessária para reco n q u istá-lo . U m a vez segu ro, Deus
não im porta m ais. O hom em , do que m enos se ocu pa é do so lo ; pre­
cisam ente por ser firm e e seguro, p rescind e dele para prestar atenção
a outras coisas; assim , o hom em m o d ern o , esquecido de D eus, volta-
se para a natureza. Na passagem da Idade M édia para a Idade M oder­
na vem os um exem plo m áxim o dessa d inâm ica h istórica qu e às vezes
transform a em pressuposto, com função tão diferente, o qu e antes era
h orizonte para o hom em .
Mas há, so bretu d o , outra razão m uito mais decisiva. O processo
a que assistim os brevem ente não term in a aqui. A m etafísica de D es­
cartes a Leibniz é só um a prim eira etapa. Veremos co m o o idealism o
alem ão, em K an:, acaba perdendo totalm ente Deus na razão esp ecu ­
lativa, ao declarar im possível a prova ontológica. P ortan to, desde O c-
kham até o idealism o alem ão avança-se nesse afastam ento de Deus,
que se perde para a razão teórica. Em L eibniz se está apenas na m eta­
de do cam in h o . O que então é ascen d en te, o que tem m ais p u jan ça, o

308
A F O R M A Ç Ã O DA É P O C A M O D ERN A

i|iii .1 r .1.1 liu cn d o , é afastar D eus; a p on te o n to ló g ica que ainda nos


uni ,i I li c som ente um reslo qu e d efine um a etapa. É o que confere
.......... .lc- fu n dam en tal aos anos de m udanças que consid eram os e
.................. . apesar de sua extrem a com p lexid ad e, co n stitu am uma
1 1>. i i !<-(iva da história.

309
O idealismo alemão

I. K a n t

Já v im os o que acontece nos séculos XVII e XV III, a situação fun­


dam ental a que se chega depois do racionalism o. Esses esclarecim en-
ios tinham um duplo objetivo: em prim eiro lugar, eram um a tentativa
cie exp licar a realidade histórica desses dois séculos; e, em segundo lu ­
gar, p rocuram os estabelecer co m certa precisão o am bien te em que
irão se m ovim en tar Kant e os dem ais idealistas alem ães. C onvém des-
lacar dois m om entos im portantes do pensam ento desses dois séculos:
um é a im agem física do m u ndo, fornecida pela física m oderna, m ais
con cretam en te por Newton; ou tro, a crítica subjetiva e psicologista fei­
ta por L ocke, Berkeley e H um e, sobretud o por este últim o. C om esses
elem en tos à vista, é possível abord ar um a explicação do kantism o, que
e uma das coisas mais difíceis de fazer. Será necessário realizar um a pri­
m eira exposição breve e sim ples do con teú do dessa filosofia, para d e­
pois ten tar entrar na significação do problem a kantiano.

A) A D O U T R IN A KA N TIA N A

V id a e e s c r ito s de K a n t • Im m anuel Kant nasceu em K önigs­


berg em 1 7 2 4 e m orreu na m esm a cidade em 1 8 0 4 , depois de ter pas­
sado toda sua longa vida nela. Im m anu el Kanl foi sem pre uni sed cn-
lário, n u n ca saiu dos lim ites da Prússia oriental, e p o u co de Königs­
berg. Era de fam ília hum ilde, filho de um ariesão que trabalhava com
co u ro , criad o num am biente cle honrad o trabalho arlesanal e de pro-
Ilinda religiosidade pietista. E stu d ou na universidade de sua cidade
naial, foi p riv a td o zen t e depois p an icip o u de atividades universitárias;

311
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

no en tan to , só em 1 7 7 0 foi designado professor ordinário de Lógica e


M etafísica. Perm aneceu em sua cáted ra até 1 7 9 7 , sete anos antes de
morrer, aband onan d o-a por m otivos de idade e debilidade física. Kant
sem pre teve a saúde m uito delicada e apesar disso levou uma vida de
oitenta an os de extraordinário esforço. Era pontual, m etó d ico, tran­
qüilo e extrem am en te bondoso. Toda a sua vida foi um a silenciosa
paixão pela verdade.
Em sua obra - e em sua filosofia - d istinguem -se duas épocas: o
denom inado período pré-crítico - an terio r à pu blicação da C rítica da
ra z ã o p u ra - e a ép oca crítica posterior. As obras m ais im p ortan tes da
prim eira etapa são: A llgem eine N atu rgeschichte und T h eorie des H im ­
m els (H istória natural universal e teoria do céu ), D er ein zig m ögliche
Bew eisgrund zu ein er D em onstration des D aseins G ottes (O ú n ico argu­
m ento possível para um a dem onstração da existência de Deus) (1 7 6 3 ).
Em 1 7 7 0 p u blica sua dissertação latina D e m undi sensibilis atq u e intel-
ligibilis cau sa et prin cipiis, que m arca a transição para a crítica. Depois
veio o grande silêncio de dez anos, ao final do qual aparece a prim ei­
ra edição da K ritik d e r reinen Vernunft (C rítica da razão p u ra), em
1 7 8 1 . D epois, em 1 7 8 3 , publica P rolegom en a zu ein er je d e n künftigen
M etaphysik, die als W issenschaft w ird auftreten könn en (Prolegôm en os a
toda m etafísica futura que queira se apresentar com o ciên cia ); em
1 7 8 5 , a G rundlegung zu r M etaphysik d er Sitten (Fu ndam entação da m e­
tafísica dos co stu m es) e, em 1 7 8 8 , a obra que com p leta sua ética: a
Kritik d er p ra ktisch en Vernunft (C rítica da razão prática). P or últim o,
em 1 7 9 0 , p u blica a terceira crítica, a K ritik d er U rteilskraft (C rítica da
faculdade de ju lg a r). Num espaço de dez anos se agrupam as obras
mais im portantes de Kant. Tam bém têm grande im portância D ie M e­
taphysik d er Sitten ( 1 7 9 7 ), Die Religion in n erhalb d er G ren zen d er blos­
sen Vernunft (A religião dentro dos lim ites da m era razão), A n th rop olo­
gie in p ra g m atisch er Hinsicht e as L ições d e Lógica, editadas por Jä sch e
em 1 8 0 0 . A obra kantiana co m p reend e tam bém grande núm ero de
escritos m ais ou m enos breves, de extraordinário interesse, e outros
publicados depois de sua m orte (ver K ants Opus postu m u m , editado
por Adickes e depois por B u ch en au ), essenciais para a interpretação
de seu p ensam ento.

312
Kant

I. Idealismo transcendental

As Ib n te s de K an t • A princip al origem do kam ism u 01, 1 n.i h


Ii-.olia cartesiana e, co n seq ü en tem en te, no racionalism o. air I ■il>i11.
i Wolíf. Por outro lado, cliz Kant que a critica de I lume o d csp n io u
Ili si-ii sono dogm ático. (Já verem os o que qu er dizer esse ad|i-nvn.)
I ui D escartes, a res cogitans e a res exten sa têm algo em com um : o \ci
i Diuo vim os, esse ser fundado em Deus é quem faz com que haja um
' i.t( li- entre as duas res, e que seja possível o co n h ecim en to .
lun Parm êm des, que é o co m eço da m etafísica, o ser é uma qu a­
lidade real das coisas, algo que está nelas, co m o pode estar uma cor,
i 111 hora de m odo prévio a toda possível qualidade. As coisas de Par-
iin-11icles são, definitivam ente, reais. No idealism o o caso é diferente.
( i ser não é real, mas sim tran scen den tal. Im anente é o que perm anece
cm , im m an et, m anet in. Transcendente é o que exced e ou transcende a
algo, Transcendental não é nem transcend ente nem im anente. A mesa
in n a qualidade de ser, mas todas suas demais qualidades tam bém são;
ii s e r penetra e envolve todas e não se confunde co m n en h u m a. Todas
as coisas estão n o ser, e por isso ele serve de ponte entre elas. Isto é o
ser tran scen den tal.
O co n h e c im e n to tr a n sc e n d e n ta l • C ontudo, para Kant isso não
t- suficiente. Não se pode exp licar o co n h ecim en to só pela interpreta-
çao do ser co m o tran scend ental; é necessário fazer um a teo n a trans­
cend ental do co n h ecim en to , e esse co n h ecim en to será a ponte entre o
cu e as coisas. Num esquem a realista, o co n h ecim en to é o co n h eci­
m ento das coisas, e as coisas são transcendentes a m im . N um esquem a
idealista, em que eu diga que nada mais há exceto m inhas idéias (Ber­
keley), as coisas são algo im anente, e meu co n h ecim en to é de m inhas
próprias idéias. Mas se creio que m inhas idéias são das coisas, a situa­
ção é m uito diferente. Não é que as coisas se dão a m im com o algo in ­
d ep end ente de m im ; as coisas dão-se a mim em m in has id éias; co n tu ­
do, essas idéias não são só m inhas, são idéias das coisas. São coisas que
aparecem para m im , fenôm enos em seu sentido literal.
Se o co n h ecim en to fosse transcend ente, co n h eceria coisas ex ter­
nas. Se fosse im anen te, só co n h eceria idéias, o que há em m im . Entre-

313
I llS T Ô R IA DA F IL O S O F IA

lan io, é transcend en tal: co n h ece os fenôm en os, ou seja , as coisas em


mim (su blin h an d o os dois term os desta expressão). Aqui surge a dis­
tinção kantiana entre o fenóm eno e a coisa em si.
As coisas em si são inacessíveis; não posso co n h ecê-las, porque
na m edida em que as con h eço já estão em m im , afetadas pela m inha
subjetividade; as coisas em si (nú m en os) não são espaciais nem tem ­
porais, e nada pode dar-se a m im fora do espaço e do tem po. As co i­
sas, tal co m o se m anifestam para m im , com o aparecem para m im , são
os fen ôm enos.
Kant distingue dois elem entos no con hecer: o dado e o posto. Há
algo que se dá a m im (um caos de sensações) e algo que eu ponho (a
esp aço-tem p oralidad e, as categorias), e da união desses dois e le m e n -'
tos surge a coisa con hecida ou fen ôm en o . Portanto, o pensam ento, ao or­
denar o cao s de sensações, fa z as coisas; por isso Kant dizia que não
era o pensam ento que se adaptava às coisas, mas sim o contrário, e que
sua filosofia significava uma “revolução co p ern ican a”. C on tud o, não é
o pensam ento sozin ho que faz as coisas, ele as faz com o m aterial dado.
Por consegu in te, a coisa, diferente da “coisa em si” m cognoscível, sur­
ge no ato do con h ecim en to transcendental.
A ra z ã o p u ra • Kant distingue três m odos de saber: a sen sib ili­
dade (Sinnlichkeit), o entendim ento discursivo ( Verstand) e a razão (Ver­
nunft). À razão, Kant agrega o adjetivo pura. Razão pura é a que traba­
lha com p rin cíp io s a priori, ind epend entem ente da experiência. Puro,
em Kant, quer dizer a priori. E ntretan to, isso não basta: a ra z ã o pura
não é a razão de nenhum hom em , nem sequer a razão h um ana, mas a
de um s er racion a!, sim plesm ente. A razão pura equivale às condições
racionais d e um s er racional em geral.
C ontu d o, os títulos de Kant podem induzir a erro. Kant intitula
um cle seus livros C rítica d a r a z ã o p u ra , e o outro, C rítica d a ra z ã o p r á ­
tica. Parece que p rática se opõe a p u ra; não é assim. A razão prática
tam bém é pura e se opõe à razão especulativa ou teórica. A expressão
com pleta seria, portanto, razão pura especu lativa (ou teórica) e razão
pura prática. Entretanto, com o Kant estuda na prim eira Crítica as co n ­
dições gerais da razão pura, e na segunda a dim ensão prática da m es­
ma razão, escreve abreviadam ente os títulos.

314
Kant

A razão especulativa se refere a uma teoria, a um puro saber so-


Inr as coisas; a razão prática, em contrapartida, se refere à ação, a uni
l.i.-rr, num sentido próxim o da práxis grega, e é o centro da moral
kantiana.

2. A “Crítica da razão pura”

Kant escreve sua C ritica com o uma proped êu tica ou preparação


para a m etafísica, entendida co m o con h ecim en to filosófico a priori.
Ir ui de determ inar as possibilidades do co n h ecim en to e o fundam en-
in de su a validade. Esse é o problem a geral. A C ritica foi publicada em
I 7 8 1 , e Kant a m odificou notavelm ente na segunda edição de 1 7 8 7 ;
as duas são de especial interesse para a história da filosofia. Indicam os
o esquem a em que se articula a C rítica da ra z ã o pura.

Introdu ção (form ulação do problem a e teoria dos juízos).

1. Teoria transcendental dos elem entos.


1. Estética tran scen den tal (teoria do espaço e do tem po).
2. L ógica tran scen d en tal
a) A nalítica tran scen den tal (possibilidade da física pura).
b) D ialética transcendental (problem a da possibilidade da m e­
tafísica).

II.Metodologia transcendental.
1. A disciplina da r a z ã o pura.
2. O cân on e da ra z ã o pu ra.
3. A arquitetônica d a ra z ã o pura.
4. A história da ra z ã o pu ra.

a) Os juízos

O co n h ecim en to pode ser a priori ou a posteriori. O prim eiro é


aquele que não funda sua validade na experiência; o segundo é aqu e­
le qu e deriva dela. Este ú ltim o não pode ser universal nem n ecessá­
rio; p o rtan to , a ciência exige um saber a priori, que não esteja lim ita-

315
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

do pelas co n tin g ên cias da exp eriên cia aqui e agora. Kant en co n tra vá­
rios tipos de co n h ecim en to a p r io r i: a m atem ática, a física, a m etafísi­
ca tradicional, que pretende co n h e ce r seus três o b jeto s, o h o m em , o
m undo e Deus. Esses o b jeto s estão fora da exp eriên cia, porqu e são
“sínteses in finitas”. Por exem plo, não posso ter um a in tu ição do m u n ­
do porque estou nele, ele não sc dá a num com o um a coisa. Mas Kant
se pergunta se a m etafísica é possível; constata que as outras ciên cias
(m atem ática e física) vão por seu ca m in h o seguro; parece que a m etafí­
sica não. E se co lo ca seus três problem as centrais: C om o é possível a
m atem ática? (Estética tran scen d en tal.) C om o é possível a física pura?
(Analítica tran scen d ental.) É possível a m etafísica? (D ialética tran s­
cen d ental.) R eparem na form a diferente da pergunta, que no terceiro
caso não supõe a possibilidade. (Estética não se refere aqui ao belo, mas
à sensibilid ade, em seu sentid o grego de aísthesis.)
Portanto, a verdade e o conhecim ento se dão nos juízos. Uma ciê n ­
cia é um co m p lexo sistem ático de ju íz o s. Antes de tu d o, Kant tem de
fazer uma teoria lógica do ju íz o .
Ju íz o s a n a lític o s e ju íz o s sin té tic o s • São ju ízo s analíticos aqueles
cujo predicado está contido no co n ceito do sujeito. Sintéticos, em co n ­
trapartida, aqueles cu jo predicado não está incluído no co n ceito do su­
jeito , mas que se une ou agrega a ele. Por exem plo: os corpos são ex ten ­
sos, a esfera é redonda; contudo, a m esa é de madeira, o ch u m b o é pe­
sado. A extensão está incluída no conceito de corp o, e a redondeza no
de esfera; m as a m adeira não está incluída no conceito de m esa, nem o
peso no de chu m bo. (Deve-se observar que para Leibniz todos os ju ízos
seriam analíticos, já que todas as determ inações de uma coisa estão in ­
cluídas em sua noção com pleta; esta noção, porém , só D eus a possui.)
O s ju íz o s analíticos explicitam o co n ceito do su jeito ; os sintéticos
o am pliam . Estes, portanto, au m entam meu saber e são os que têm va­
lor para a ciência.
Ju íz o s “a p r io r i” e “a p o s te r io r i” • Entretanto, há um a nova d is­
tinção, já m encionad a, conform e se trate de ju ízo s a priori ou de juízos
de experiên cia. À prim eira vista, parece que os juízos an alíticos são a
p rio ri, obtid os por pura análise do co n ceito , e os sintéticos, a p o s ter io ­
ri. A prim eira afirm ação é verdadeira, e os ju íz o s a p osteriori são, via
de regra, sin tético s; mas a recíproca não é verdadeira; existem ju íz o s

316
Kant

míIf(7ií os a priori, em bora pareça um a co n trad ição, e são estes que in-
h icssam à ciên cia, porque p reen ch em as duas co n d içõ es exigidas:
■■.ui. por um lado, a p rio ri, ou seja, universais e n ecessário s; e, por ou-
in), sintéticos, isto é, au m entam efetivam ente m eu saber. 2 + 2 = 4 , a
■■'ima dos três ângulos de um triângulo é igual a dois retos são ju íz o s
■mieticos a priori; seus pred icados não estão co n tid o s nos sujeitos;
■u iiilido, o sju iz o s não se fundam na experiência. Tam bém fora da ma-
h m.itica, na física e na m etafísica, encontram os ju íz o s sintéticos a prio-
11 lodo fenôm eno tem sua causa, o hom em é livre, D eus existe. O pro­
blema da possibilidade dessas ciên cias se reduz a este outro: com o são
I ii) .síveis - se o são - os juízos sintéticos a p riori em cada um a delas?

b) O espaço e o tempo

In tu iç õ e s p u ras • O que co n h eço está com p osto de dois elem en-


II is. o dado e o que eu ponho. O dado é um cao s de sensações; mas o
i aos é ju stam ente o co n trário do saber. Faço algo co m esse caos de
.'■Msações. Q ue faço? O rden o-o, em prim eiro lugar, no espaço e no tem ­
po; depois - j á verem os isso - , de acordo com as categorias. Então, com
11 caos de sensações, fiz coisas; não são coisas em si, m as fen ô m en o s,
.ii jeitos ao espaço e ao tem po. Pois bem : o esp aço e o tem po, são eles
roisas em si? N ão, não são coisas. Q ue são, então?
Kant diz que são intuições pu ras. São as fo r m a s a p riori d a sen sibi­
lidade. A sensibilidade não é som en te algo recep tivo; é ativa, im prim e
na m arca em tudo o que apreend e; tem suas form as a priori. Essas
lorm as que a sensibilidade dá às coisas que lhe vêm de fora são o es­
paço e o tem p o ; são as co n d içõ es necessárias para que eu perceba, e
csias, sou eu que as ponho. São algo a priori, que não co n h eço pela e x ­
periência, ao contrário: são as cond ições indispensáveis para que eu te­
nha experiência. São as form as em que alojo m inha percepção. Portan-
io, são algo an terio r às coisas, p ertencen tes à su bjetivid ad e pura.
A m a te m á tic a • C on h eço o esp aço e o tem po de m odo absolu-
lam ente ap riorístico. Por co n segu in te, o s ju iz o s que se referem às for­
mas da sen sibilid ad e são a p riori, em bora sejam sintéticos. Logo, são
possíveis na m atem ática, que se funda num a co n stru ção d e conceitos. A
validade da m atem ática se funda na intuição a p rio ri das relações das
figuras esp aciais e dos núm eros, fundados na sucessão tem p oral de u n i­

317
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

dades. Portanto, o espaço e o tem po são o fundam ento lógico - não p si­
co ló gico - da m atem ática, e nela são p ossíveis os ju ízo s sin tético s a
priori. A estética tran scen d en tal resolve a prim eira parte do problem a.

c) As categorias

O esp aço e o tem po nos sep aram da realidade das co isa s em si


sen sib ilid ad e só apresenta fen ô m en o s ao en ten d im en to , as coisas já
“d efo rm ad as” ou elaboradas p o r ela. Pensar, co m o b em m ostrou O r-
tega, é essen cialm en te transform ar. M as o en ten d im en to , co m o a sen si­
bilidade, tem tam bém suas form as a p r io ri, co m as quais apreende e e n ­
tende as co isas; essas form as são as categ orias.
Em A ristóteles, as categorias eram m o d o s ou flexões do ser, às
quais a m ente se adaptava. Em Kant, inversam ente, a m ente já traz co n ­
sigo suas categorias, e são as coisas que se conform am a ela; é essa a re­
volução co pern ican a. As categorias estão no enten d im en to, e não im edia­
tam ente n o ser. O que nos separa da realidade em si não é m ais só o es­
paço e o tem po, agora vem a segunda deform ação, a das categorias.
Os juízos e as categorias • Kant parte da classificação lógica dos
ju ízo s, m odificada por ele de acordo co m quatro pontos de vista: qu an ­
tidade, qu alid ad e, relação e m odalid ade.

1.
Q u an tid ad e:
U niversais.
Particulares.
Singulares.
2. 3.
Q u alid ad e: R elação:
A firm ativos. C ategóricos.
N egativos. H ipotéticos.
Infinitos. D isjun tivos.
4.
M od alid ad e:
P ro blem ático s
A ssertóricos.
A pod ícticos.

318
Kant

Desses ju íz o s, que são vários m odos de sín tese, derivam as eaie-


!'i ii ias C om o a divisão dos ju íz o s é co m p letam en te a p iio n , as e.iie^o
11,i•. derivadas são m od os de síntese pura a priori, as modalidades do

■■>iii n i o de o b jeto em geral. D essa m aneira, ch egam os a seguinte ia


In la de con ceitos puros do en ten d im en to ou ca teg o ria s :

1.
Q u an tidade:
U nidade.
Pluralidade.
Totalidade.
2. 3.
Q u alidade: R elaçã o:
Realidade. S u bstân cia.
N egação. C ausalidade.
L im itação. C om u n id ad e ou
ação recíproca.
4.
M o d alid ad e:
P ossibilidad e.
E xistência.
N ecessidade.

V ê-se claram ente a estreita relação que os tipos de ju íz o s m antêm


■>mi as categorias. As categorias são relações dos o b je to s, corresp on -
i lentes às d os ju ízo s.
A fís ic a p u ra • C om o esp aço e o tem p o e as categorias, o en ten ­
d im en to elabora os o b jeto s da física pu ra; a categ oria de su b stân cia
aplicada ao esp aço n o s dá o co n c e ito de m atéria; a categ oria de causa-
I idade co m a form a tem poral n o s dá o co n ceito físico de causa e efei­
to etc, C om o con tin u am os a nos m over absolu tam ente n o a p riori, sem
intervenção da experiência, a validade da física pura n ão depende dela,
e d en tro de sua esfera são possíveis os ju íz o s sin tético s a p riori. Esse é
o resultad o da A nalítica transcend ental.

319
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

d) A crítica da metafísica tradicional

A m etafísica trad icio n al, seg u nd o as form as m edievais e, p rin ci­


palm ente, n o s m old es em que fora generalizada por W olff n o sécu lo
XV III, co m p u n h a-se de duas partes: um a m eta p h y s ic a g en er a lis ou o n ­
tologia e um a m etap h y sica sp ec ia lis, que estudava as três g ran des re­
giões do ser: o h o m em , o m u n d o e D eus. P ortanto, tem o s três d isci­
plinas: p sico lo g ia, cosm ologia e teolog ia racionais. Kant en co n tra es­
sas ciên cias co m seus rep ertórios de qu estões (im ortalid ad e da alm a,
lib erd ad e, fin itu d e ou in fin itu d e do m u n d o , ex istê n cia de D eu s e tc.)
e aborda na D ialética transcend ental o p roblem a de se é possível essa
m etafísica, qu e parece não ter e n co n trad o o segu ro ca m in h o d a ciên cia.
A m e ta fís ic a • Para Kant, m etafísica é igual a co n h ecim en to pu ro, ’
a priori. No en tan to , o co n h e cim en to real só é possível q u a n d o , aos
princípios form ais, acrescenta-se a sensação ou a experiência. Pois bem ,
os p rin cíp ios qu e o btivem os são form ais e ap rio rístico s; para ter um
co n h ecim en to da realidade, seria n ecessário co m p letá -lo s co m ele­
m entos a p osteriori, co m um a ex p eriên cia. A m etafísica esp eculativa
tradicional é a tentativa de obter, ap rio risticam en te, u m co n h e cim e n ­
to real de o b jeto s - a alm a, o m u ndo, D eus - que estão além de toda e x ­
periên cia possível. P ortanto, é u m a tentativa frustrada. Esses três o b ­
je to s são “sín teses in finitas”, e eu não posso pôr as co n d içõ es n ecessá ­
rias para ter u m a in tu ição deles; p o rtan to , não posso ter essa ciên cia.
Kant exam ina su cessivam en te os p aralogism os co n tid o s nas d em o n s­
trações da p sicolog ia racional, nas an tin o m ias da co sm o log ia racion al
e nos argum en tos da teologia racio n al (prova o n to ló g ica, prova cos-
m ológica e prova físico-teológica da existência de D eus) e co n clu i por
sua invalidade. N ão podem os en trar n o s porm en ores dessa crítica,
que nos levariam longe dem ais. In teressa-n o s apenas in d icar o fun d a­
m ento da crítica kantiana do arg u m ento o n to ló g ico , p o rqu e é a chave
de toda a sua filosofia.
O a rg u m e n to o n to ló g ic o • Kant m ostra que o arg u m en to p r
ced en te de San to A nselm o baseava-se num a idéia do ser que ele re je i­
ta: a idéia do ser co m o p red icad o real. Isso é m ais verdadeiro em rela­
ção à form a cartesiana da prova, qu e é a estudada por K ant. E n ten d e-

320
Kant

m t|iu- a existên cia seja um a p e r fe iç ã o que não pode faltar ao ente per-
li ui'.Mino. O u seja, interp reta-se a existên cia co m o algo que está na
i ihmi Mas K ant afirm a que o ser não é um pred icado real: Sein ist kein
a tilrs 1'rádikat. A coisa existen te co n tém tão -so m en te a coisa pensada:
■ n.io fosse assim , esse co n c e ito não seria dela. C em escud os reais -
ili ■ Kant no seu fam oso ex em p lo - não têm nada qu e cem escud os
im v.ivcis não co n ten h am . N o en tan to , co n tin u a ele, para mim não dá
H.i m esm a ter cem escud os possíveis ou cem escu d o s reais; em que
i iMisiste a diferença? O s escu d o s efetivos estão em co n exã o com a sen-
•açao; estão aqu i, co m as o u tras coisas, na totalidad e da experiência.
i >u seja, a ex istên cia n ão é u m a propried ad e das coisas, c a relação
i li las co m as dem ais, a p o siçã o positiva do o b jeto . O ser não é um pre­
dicado real, m as tran scen den tal. Para a m etafísica do sécu lo XVII ele
i ia real, e por isso adm itia a prova on tológica; esse é o sentid o do
qualificativo que lhe aplica K ant: d ogm atism o, ig n o rân cia do ser com o
iia n scen d en tal.
As id é ia s • As três d iscip lin as da m etafísica trad icion al não são
validas. A m etafísica não é possível co m o ciên cia especu lativ a. Seus te­
mas não en tram na ciên cia, m as ficam abertos - sem possível refuta-
i.ao - para a fé: “Tive de su p rim ir o saber - diz Kant - para dar lugar
a cre n ça .”
C o n tu d o , a m etafísica existe sem pre co m o ten d ên cia n atu ral do
h om em para o absolu to. E os o b jeto s da m etafísica são os que Kant
i hama de I d é ia s; são co m o as novas categorias su p erio res co rresp o n ­
dentes às sín teses de ju íz o s que são os racio cín ios. Essas idéias, por
não serem su scetíveis de in tu ição , só pod em ter u m u so regulativo. O
h om em deve agir co m o se a alm a fosse im ortal, co m o se fosse livre,
t o m o se D eus existisse, em bora a razão teórica não possa d em on strá-
lo. E n tretan to , este não é o ú n ico papel das Idéias. As Idéias tra n scen ­
d en tais u n em a essa validade h ip otética na razão esp eculativa outra
ab so lu ta, in co n d icio n al, de tipo d iferente; reap arecem no estrato m ais
profundo do kantísm o co m o postu lad os d a ra z ã o p rá tica .

321
H i s t O r ia d a f i l o s o f ia

.3. A ra z ã o prática

N a tu re z a e lib e r d a d e • K ant d istin g u e dois m u n d o s: o m u n d o


da n atu reza e o m u n d o da liberd ad e. O prim eiro está d eterm in ad o
pela cau salid ad e n atu ral; m as, ju n to co m ela, Kant ad m ite um a c a u ­
sa lid a d e p o r lib erd a d e, que rege na o u tra esfera. P or u m lad o , o h o ­
m em é u m su je ito p sico físico , su b m etid o às leis n atu rais físicas e p sí­
qu icas; é o qu e ch am a de eu e m p íiico . A ssim co m o o co rp o o b ed e ce à
lei da gravid ad e, a vontad e é d eterm in ad a pelos estím u lo s, e nesse
sen tid o e m p írico não é livre. M as K an t co n trap õ e ao eu e m p írico um
eu p u ro, qu e n ão está d eterm in ad o n atu ralm en te, m as so m en te pelas
leis da liberd ad e. O h o m em , co m o p esso a ra cio n a l, p e rte n ce a e ss e *
m u n d o da liberdade. N o en tan to , já vim os que a razão teó rica não
chega até aq u i; d en tro de seu cam p o n ão pode c o n h e c e r a liberdade.
O n d e a en co n tra m o s? E x clu siv am en te n o j a t o d a m oralid ad e', aqui
aparece a r a z ã o p r á tic a , qu e n ão se refere ao ser, m as ao d e v e r ser; não
se trata aqui do co n h e cim e n to e sp ecu la tiv o , m as do c o n h e cim e n to
m oral. E assim co m o Kant estudava as p o ssibilid ad es d o p rim eiro na
C rítica d a r a z ã o p u ra (teó rica ), terá agora de escrev er u m a C rítica d a
r a z ã o p rá tica .
O “fa c tu m ” da m o ra lid a d e • Na razão prática, K ant aceita p o
tulados que não são d em onstráveis na razão teórica m as têm um a evi­
dência im ed iata e absoluta para o su jeito . P or isso são po stu lad o s, e
sua adm issão é exigid a, im posta de m o d o in co n d icio n a l, em b o ra não
esp ecu lativ am en te. Kant depara c o m u m fato, u m fa c t u m q u e é o
ponto cle partida de sua ética: a m o ralid ad e, a co n sciê n cia do dever.
O h o m em se sen te responsável, sen te o dever. Isso é u m fato p u ro, in ­
d iscutível e evid ente. Pois bem : o dever, a co n sciê n cia de resp o n sa b i­
lidade su p õ em que o hom em seja livre. N o en tan to , a liberd ad e não é
d em on strável teo ricam en te; do p o n to de vista esp ecu lativ o , n ão pas­
sa de um a Id éia regu ladora: devo agir co m o se fosse livre. Agora, em c o n ­
trapartida, a liberdad e aparece co m o algo abso lu tam en te ce rto , exigi­
do pela co n sciên cia do dever, em bora não saibam os teoricam en te co m o
é possível. O h o m em , en q u an to p e s s o a m o ra l, é livre, e sua liberdade
é um p ostu lad o da razão prática.

322
Kant

l )s o b je to s da m e ta fís ic a • De m od o análogo, a im ortalidade da


ilni.i c ,i ex istên cia de D eus, im p ossíveis de provar na C rítica d a ra z ã o
/'mu. in ip are ce m co m o p o stu lad o s na outra C rítica. O s o b jeto s da
iiii i.ilisica tradicional têm validade n u m sen tid o d u p lo: co m o Idéias
ii c.uladoras, teoricam ente, e co m o postulad os de validade absokua na
i.i .ui prática. Este será o fu n d am en to da ética kantiana.
O im p e ra tiv o c a te g ó ric o • Kant form ula o p ro b lem a da élica na
I u iu h im en tação d a m etafísica dos costu m es co m o a qu estão do b em su-
l'ii nui ü s b en s pod em ser b o n s para outra coisa ou b o n s em si m es-
iiiiis I' Kant diz que a ú n ica co isa qu e é boa em si m esm a, sem restri-
...iii. c um a b o a vontade. P o rtan to , o problem a m oral é transladado,
ii.ui para as ações, m as para a vontad e que as m ove.
Kant q u er fazer um a ética do d ev e r ser. E um a ética im perativa,
■|iir obrig u e. P rocura, p o rtan to , um im perativo. C o n tu d o , a m aioria
ilns im perativos não serve para fund am en tar a ética p o rqu e são hipo-
irluDS, ou seja , depend em de um a co n d ição . Q u an d o digo: alim en ta -
h . su p õ e-se um a co n d ição : se q u eres viver; no en tan to , o im perativo
n.io lem validade para um h o m em que queira m orrer. K ant n ecessita
ilr um im perativo categ órico, qu e m ande sem n en h u m a co n d içã o , a b ­
solu tam en te. A obrigatoried ad e do im perativo categ ó rico terá de ser
i m o n trad a nele m esm o. C om o o b em suprem o é a boa vontade, a qua-
lilicação m oral de um a ação recai so bre a vontad e co m que foi feita,
n.io so b re a p rópria ação. E a boa vontad e é a que q u er o qu e q u er p o r
puro resp eito a o dever. Se faço u m a bo a ação p o rqu e g osto , ou p or um
M -m im ento, ou por tem or etc., ela n ão tem v a lo r m oral. (A qui Kant se
I I iloca a d ifícil questão de saber se o respeito ao dever não é um se n ti­
m en to .) O im perativo categ ó rico se expressa de diversas form as; seu
M-ntido fun d am ental é o seguinte: A ge d e tal m od o q u e p ossas q u erer que
d qu e f a ç a s seja lei u niversal d a n atu reza.
C om efeito: qu em faz m al algum a coisa, o faz co m o u m a fa lt a ,
ru m o u m a ex c e ç ã o , e está afirm an d o a lei m o ral u niv ersal ao m esm o
u-mpo em qu e a infringe. Se m in to , não posso qu erer qu e m en tir seja
uma lei u niversal, já que isso d estruiria o sen tid o do dizer e tornaria
im possível até m esm o o efeito da própria m entira. O m e n tir supõe,
ju sta m en te, que a lei universal seja dizer a verdade. E assim n o s d e­
mais casos.

323
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A p e s s o a m o ra l • A ética kaniiana é a u tôn om a e n ão h eterô n o m a;


ou seja, a lei é ditada pela própria co n sciên cia m oral, não por uma
instância alheia ao eu. Este é co -leg isla d o r no reino dos fin s, no m u ndo
da liberdad e m oral. Por outro lado, essa ética é fo r m a l e não m aterial,
porqu e não prescreve nada co n cre to , n enhu m a açâo d eterm in ad a em
term os de co n teú d o , m as a f o r m a da ação: agir p or respeito do dever,
o que q u er que se faça.
A rigor, a expressão é correta: deve-se fazer o que se q u eira; não o
que se d ese je, apeteça ou co n v en h a, m as o que possa q u erer a vo n ta­
de racional. Kant pede ao h o m em qu e seja livre, qu e seja au tôn om o,
que não se deixe d eterm inar p o r n en h u m m otivo alh eio à sua vonta­
de, que dá as leis a si m esm a.
D esse m o d o , a ética k antiana cu lm in a no c o n c e ito de p esso a m o­
ral. U m a ética é sem pre um a o n to lo g ia do h om em . K ant pede ao h o ­
m em qu e realize sua essência, qu e seja o que na verdade é, um ser r a ­
cional. Porque a ética k antiana n ão se refere ao eu em p írico , nem se­
qu er às co n d içõ es da esp écie hu m ana, m as sim a um eu puro, a um
ser racion al puro. Por um lado, o h o m em co m o eu em p írico está su ­
je ito à cau salid ad e natural; m as, por outro, p erten ce ao rein o dos fins.
Kant diz que todos os h om en s sã o fin s em si m esm os. A im oralidade
con siste em tom ar o hom em - o próprio eu ou o p ró x im o - com o m eio
para algo, qu an d o é um fim em si.
As leis m orais - o im perativo categórico - proced em da legislação
da própria vontade. Por isso o im perativo e a m oralid ad e n o s in teres­
sam , p o rqu e são coisa nossa.
O p rim a d o da razão p r á tic a • A razão p rática, d iferen tem e
da teó rica, só tem validade im ed iata para o eu e co n siste em d eterm i­
nar-se a si m esm o. No en tan to , K ant afirm a o prim ado da razão práti­
ca sobre a especulativa; ou seja, diz que é anterior e superior. O prim á­
rio n o h o m em não é a teoria, m as a p rá x is, um fa z er. A filosofia k an ­
tiana cu lm ina no conceito de pessoa m oral, entendida co m o liberdade.
Kant não pôde realizar sua m etafísica, que ficou apenas esboçada, porque
toda a sua vida esteve ocu pada pela tarefa crítica prévia. C on tu d o, é
só a partir desse prim ado da razão prática e dessas idéias de lib erd a d e
e de fazer qu e se pode en ten d er a filosofia do id ealism o alem ão, que
nasce em Kant para term inar em Hegel.

324
Kant

li Iro lo g ia e e s lé t ic a • P od em os p rescin d ir aqui da exposição


do i o m eiu lo da C rílica d a fa c u ld a d e de ju lg a r, que se relcre aos proble
..... <11 > hm no organism o b io ló g ico e no cam p o da eslética
I co n h ecid a a d efin ição do belo com o um a fin a lid a d e sem fim, ou
i |.i i om o algo que en cerra em si uma finalidade, mas que nao se su
1111111111.1 a nenhu m fim alheio ao gozo estético. Kant tam bém disim
i<ui . ui iv o belo, que produz um sen tim en to prazeroso acom p anhad o
11.1 i o n sciên cia da lim itação, e o su blim e, que p rovoca um prazer mis
11ii ulo de horror e ad m iração, co m o um a tem pestad e, um a grande
uioiii.m ha ou uma tragédia, porqu e vem aco m p an h ad o da im pressão
ili ■u iIm ito ou ilim itado. Essas idéias k antian as tiveram profundas re-
i n u te s õ e s no pensam ento do sécu lo XIX.

B) O P R O B L E M A D O K A N T IS M O

l. A s in t e r p r e t a ç õ e s da filosofia kan tian a

A m e ta fís ic a • Kant é u m filósofo estran h o , porqu e representa


uma virada essen cial no p en sam en to filosó fico . E le m esm o apresen -
1.1 'ma filosofia com um a m etáfora expressiva: diz qu e equivale a u m a
iev olu ção copern ican a. Portanto, algo essencialm ente novo, que abre n o ­
vos cam in h o s. Isso bastaria para ju stifica r a d ificuld ad e de Kant. M as,
.ilem disso, Kant não ch ega a co n stitu ir um sistem a, a p ossu ir p len a­
m ente seu sistem a; prova disso são os títulos de suas obras fundam en-
iais: são C ríticas, algo m ediante o qual põe certo s lim ites à razão e d e­
lim ita seu s o b jeto s; co n tu d o , pareceria que p or trás d essas críticas d e­
veria vir sua doutrina positiva, e esta não chega. N essa d ireção, há
.1 penas fragm entos. Isso é verdade, m as só u m a m eia verdade. Não se ­
ria lícito afirm ar ro tu nd am en te que Kant não faz sua m etafísica, p o r­
qu e em suas C ríticas, in clu sive - e m uito p articu larm en te - na da ra­
zão pu ra, está co n tid a um a m etafísica. E aqui co m e ça a dificuldade,
porqu e co m o essa m etafísica não está feita co m o tal - está antes n eg a­
da presta-se a não ser vista ou a ser mal en ten d id a.
O caso de Kant é parecid o co m o de Platão, co m o bem observou
O rtega. O s problem as que as coisas co lo cavam para Platão levaram -

325
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

no a d esco b rir as idéias; m as ter d escoberto a idéia já é bastante para


um hom em . Platão fica nas idéias, nas dificuldades qu e estas lhe c o ­
locam , e não lhe sobra m ais tem po para voltar às coisas. Na sua velhi­
ce, seu afã é resolver essas dificuldades - com o no P arm ên id es - e vol­
tar às coisas, fazer sua m etafísica.
C om Kant ocorre algo sem elhante. É um hom em len to, nada pre­
co ce - co m o quase ninguém em filosofia e ao ch egar à v elh ice, res­
ta por fazer a parte construtiva; co n tu d o , sua m etafísica, no que tem
de essen cial, já está feita: a C rítica d a ra z ã o p u ra já é m etafísica (ver
O rtega: F ilosofia p u ra , e, p or outro lado, Heidegger: K an t und d as Pro-
b lem d e r M etap h y sík). E ntretanto, isso já é um a in terp retação: em par­
te algum a é ch am ad a de m etafísica; diz, na verdade, que a m etafísica
não é possível. Por isso, afirm ar que é ontologia exige u m a ju stific a ­
ção. N em sem pre se disse isso. Podem os consid erar três m om en tos
fundam entais do que Kant foi para a filosofia p osterior: o idealism o
alem ão, o n eo k an tism o e o m om en to presente.
O p a s s a d o filo s ó fic o • Antes de tudo, um a p eq u en a ad vert
cia. Poder-se-ia pensar que não im porta o que se tenha pensado que
Kant é, m as só o que Kant é de verdade. Mas seria um erro; quando
falo do que Kant é, pretendo falar de algo que tem realidade. Uma
coisa é real qu an d o age, qu and o tenho de con tar co m ela. Q uando
falo do kantism o, falo de algo que é real: uso esse se r n o presente do
indicativo; ser real é sê-lo agora. C on to co m o passado en q u an to e na
m edida em qu e estou , por exem plo, lem brand o, ou seja, n u m p resen ­
te. A lem bran ça é a presen ça de um passado en q u an to passado. Da
m esm a m aneira, a esperança de um futuro é a p resença do futuro en ­
quanto futuro. P ortanto, vem os que é o presente que co n fere realida­
de ao passado e ao futuro. Se prescind o do presente, o passado já não
é, e o futuro não é ainda. A lém do m ais, dizer que o passad o foi sig­
nifica que foi presente; e o futuro será, entend a-se, presente. Q ue quer
dizer isso? Q u e o passado co m o passado só existe num presente que
o atualiza e em relação ao qual é passado.
Esclarecidas estas idéias voltem os ao caso do kantism o. O kantis­
m o tem um a realidade que, pensada co m o o foi lá pelo sécu lo X V III,
é coisa passada. Portanto, recebe sua realidade tão-som ente de um pre­
sen te; por ex em p lo , quando eu o penso agora.

326
Kant

1’orian to tem os: I o, que o que é presente h o je não o era faz trin-
i .i .m os; co n seqü en tem en te, a realidade do kantism o é dada por ca d a
i 'M i i ue em que se atualiza, e vem os que, longe de n o s ser indiferen-
ii d que nos interessa é o que o kantism o foi em cada m om ento. No
liniilo, a evocação do kantism o enq u anto tal, isolado do que foi para
• '.ticessores, é falsa, já que se funda num a pura m iragem que é a se-
iMimic: quando pretendo voltar a esse kantism o em si, o que faço é
.iiii.ilizá-lo m ais um a vez num presente m eu, não no de Kant. Atualizo-o
mim presente, e além disso to m o -o pelo de Kant; aqui está o erro.
O k antism o é aquele que esteve atuando nas diversas filosofias -
i ii.io ou tro; aquele - e não outro - que en co n tro em m im co m o pas-
, ii lo. O que não qu er dizer que eu não possa d esco b rir nele dim en-
,i li", novas e que estas não tivessem atuado; quer dizer apenas que es-
..r. d im en sões não teriam realidade atual até agora.
frata-se de algo que se pode aplicar a toda a h istória da filosofia.
i i que ju stific a dizê-lo a propósito de Kant é que o kantism o foi um
i.mio oscilante e teve interp retações m uito diversas; h ouve vários kan-
lisinos d iferentes, mais ou m eno s autênticos. Vam os ver os três prin-
•ipais m o m en to s da interp retação de Kant:
a ) O id e a lism o a le m ã o • Kant aparece co m o gerad or de um es­
plendido m ovim ento filosófico: o idealism o alem ão. Tanto é assim que
os idealistas co m eçam apresentando suas filosofias co m o in terp reta­
ções de Kant. F ich te chega a dizer: “Kant não foi b em en ten d id o; eu o
1'iiten d i, talvez m elhor que o p róprio K an t.” Adota u m p on to de vista
111ferente do de Kant para ex p licá-lo , e em seguida F ich te e os dem ais
idealistas fazem suas respectivas filosofias. P ortanto, o que fazem com
Kant é: fazer sua própria filosofia pelos cam in hos k antian o s e, partin ­
do de K ant, dar continuid ad e ao que Kant não fez. E m sum a, os três
grandes idealistas - F ich te, Sch ellin g e H egel - p reten d em fazer a m e­
ia física qu e Kant não chegou a fazer. Já verem os até qu e p o n to isso é
verdadeiro.
b ) O n e o k a n tism o • Vejamos o segundo m om ento. Convém pres-
lar aten ção a seu nom e: n eokan tism o. Um a expressa atu alização de um
passado, já que não são k antianos, m as neo-kantianos, isto é, algo que
não é atu al, m as que precisa ser renovado, atualizado. O s exegetas do

327
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

k antism o serão p rincip alm en te H erm an n C ohen e Paul N atorp. Não


pretendem ap resen tar Kant, e sim um neo-Kant. Sua situ ação ante os
idealistas alem ães é: Kani não era isso, era outra co isa , qu e so m o s nós
qu em v am o s dizer.
Corno esse n eo k an tism o não é sim p lesm ente k a n tism o , deve ter
havido algo n o m eio que ju stifiq u e a partícula. O q u ê? O positivism o
(dos anos 1 8 3 5 - 4 0 a 1 8 8 0 , aproxim adam ente). P ortanto, os neokan tia-
n o s são positivistas, vêm do positivism o e deixam de sê -lo ; é isso que
d eterm ina a ín d o le da filosofia n eok antiana.
O p o sitivism o tinha as segu in tes características: I o, n egação d
qu alqu er possível m etafísica; 2.°, forte tendência a se to rn a r teoria do
co n h e cim e n to ; 3 o, grande interesse pelas ciên cias p o s itiv a s, e 4 o, p r o -'
pensão a en ten d er a filosofia co m o um a teoria d essas ciên cias. Pois
bem , a C rítica d a ra z ã o pu ra p reten d e: I o, determ in ar as possibilid a­
des do co n h e cim e n to ; 2 o, fazer um a teoria filosófica da ciên cia do seu
tem po - m atem ática e física n ew ton ian a e 3 o, irá re je ita r a m etafísi­
ca trad icio n al p o r co n sid erá-la im possível. Isso de fato caracteriza a
C rítica d a r a z ã o p u r a , e é isso o que vêem em Kant esses h o m en s p o ­
sitivistas; ela se caracteriza, p o rém , p o r m uito m ais e p o r aspectos
m ais im p o rtan tes. O n eo k an tism o está tingido de p o sitiv ism o e tende
a se tran sfo rm ar num a teoria da ciên cia , num a reflexão filosófica so ­
bre o co n h e cim e n to e sobre as ciên cias positivas. P orta n to , algo bem
diferente do id ealism o alem ão.
c) A filo s o fia a tu a l • C hegam os ao m om en to p resen te. O qu
Kant possa ser para nós é m uito d iferen te, porque entre os neokan tia-
nos e nós aco n teceram coisas m u ito im p ortantes: I o, a elab oração de
um a filosofia da vida, co m características m etafísicas, p o r K ierk e­
gaard, N ietzsch e, D ilthey e Bergson; 2 o, a co n stitu ição da fen om en o-
logia de H u sserl, preparada por B ren tan o , e 3 o, ch e g o u -se finalm ente
a fazer um a m etafísica da vida h u m ana ou , m elhor, da razão vital -
O rtega ou u m a ontologia da e x istê n cia - Heidegger. P o rtan to , v ol­
tam os à m etafísica. V oltou-se a ver co m clareza que a filosofia é m eta­
física e não o u tra coisa, que a teoria do co n h ecim en to é m etafísica e
não pode ser u m a disciplina au tô n o m a e a n te rio r P o rta n to , a in ter­
pretação n eo k an tian a de Kant n o s parece parcial - ou seja , falsa - ,

328
Kant

I" In laio de destacar só o m en o s im portante. Para nós, Kant é an ies


il n ulo um m etafísico, q u e não pôde elaborar sistem aticam en te sua
lilir.olia, mas que a d eixou - nas páginas que os n eo k an tian os m enos
i x.m im aram . E sua m etafísica tem de ser tal qu e to rn e patente co m o
pnilt-m provir dela as ou tras m etafísicas do idealism o alem ão. (So b re
hui.is essas questões, ver o citad o ensaio de O rtega: F ilo s o fia p u r a .)

2. O c o n h e c im e n t o

Vamos abordar o p roblem a de Kant num a dupla dim ensão, co m -


|ilii ,tda de m odo m uito rigoroso: a doutrina do ser e a doutrina do co-
n lu vim ento. Pelo duplo cam in h o de am bas chegam os ao conceito fun ­
il,mii-ntal de Kant: a pessoa m oral e a razão p rática; e co m isso atin gi­
mos um a altura da filosofia kantiana desde a qual pod em os ver a filo-
■1'lin posterior. As duas d im ensões do problem a são inseparáveis.
Kant m odifica de m o d o m u ito fundam ental o p o n to de vista do
i n iih ecim en io . É o d en o m in ad o criticism o, e era o qu e interessava aos
n eokan tian os. Vamos d estacar aqui um a outra d im en são , que d esco -
IMira para n ó s a icléia do ser que Kant tinha. T en ham os em m en te a
d ou trin a kantiana do fen ô m en o e da coisa em si. O qu e aqui n o s m -
ii i rssa dela é o seguinte: C o n h ecer é um a função ativa do su jeito; não
i receber algo que está aí, m as fazer algo que se co n h e ce ; em term os
I am ian o s, p ô r algo. K anl diz que co n h ecem o s das co isas o que p u se­
mos; portan to , para K ant, as coisas não estão aí, sou eu que as faço ao
i u n h ecê-las. Isso deve ser tom ad o co m todo rigor, p o rq u e se pod eria
I ii-nsar que o ú nico que é p o r si só sou eu, que a ú n ica c o isa em si sou
eu, e as dem ais coisas são em m im . Mas não é isso; eu não sou um a c o i­
sa cm si por m im m esm o , p o rqu e só me co n stitu o co m o coisa à m e ­
dida qu e m e co n h eço .
V am os destacar outra d im en são , que é a oposta: a d im ensão o b -
jt-i iva. É preciso co n testar um a possível in terp retação su b jetivista do
k antism o. Não creio n em inven to essas coisas, há algo que me é ciado
essen cialm en te, e nisso p o n h o as form as a priori da sen sib ilid ad e e as
i ategorias. Só depois de tê-las aplicado, faz sen tid o falar de co isas c o ­
n h ecid as ou do ser das co isas. C ontu d o, não é que p o r um lado este-

329
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ja o d ado, que Kant cham ará de cao s de sen saçõ es, e p o r outro, eu,
co m m inh as d eterm inações subjetivas. Isso significaria qu e eram duas
coisas em si, e que o co n h e cim en to surgia de sua u nião ou co n tato ; a
verdade é que o caos de sen saçõ es só pode dar-se na m in h a su b jetiv i­
dade, porqu e para que exista tem de dar-se n o esp aço e no tem po,
portan to em m im ; e, in versam en te, eu só existo ante o dado. Assim ,
longe de o co n h ecim en to resultar do contato ou u nião do dado com o
posto, o que possa ser d ito do dado e do posto fund a-se n o fato su p e­
rior do co n h ecim en to .

3. O s e r
*

V im os a m od ificação essen cial que Kant in trod u z co m sua idéia


do co n h e cim en to , que é um a “revolução co p e rn ica n a ” porque traz
con sigo um a nova idéia do ser. O rtega viu isso co m extrem a clareza.
O s e r e o e n te • E m to d o s os tem pos os h o m en s se pergu n t
ram o q u e é o s e r ; no en ta n to , essa pergunta tem um dup lo sen tid o . É
preciso disting u ir duas co isas essen cialm en te d iferen tes: o ser e o
ente. C ostu m am ser u tilizad as co m o sin ô n im o s, e algu m as línguas,
co m o o francês, só têm um a palavra para as duas: 1’être (o term o étan t
foi in tro d u zid o recen tem en te, para fazer essa d istin ção ao traduzir as
exp ressõ es alem ãs). Em latim , tem o s esse e en s; em grego eiv ca e Õv:
em in g lês, to b e e being\ em alem ão, das Sein e d as S eien d e. As palavras
não foram co n fu n d id as p o r acaso, já não se reparou que eram duas
coisas.
O s er é algo que tem ou que acontece com as coisas que são, e qu
perm ite dizer delas que são entes. A lém do problem a do que seja, ou
m elhor, de qu em seja o en te, de qu e coisas sejam , existe u m problem a
po sterior e m ais profundo: em que consiste o fato de que essas coisas
sejam . A ristóteles, que estud a em sua M etafísica o en te en qu an to ente,
pelo m en o s entreviu esse p ro blem a fundam ental.
Q u ase sem pre se falou do en te, en ten d en d o -o co m o su bstân cia,
co m o su b sistên cia; por isso, q u an d o D escartes afirm a sua tese idealis­
ta, o qu e faz é afirm ar-se n o eu , m as no eu co m o en te, co m o su b stân ­
cia prim eira: “ego sum res co g itan s”. Por isso, o p ro b lem a do que se

330
Kant

i Mi■ui Ir por su bstância, do que seja su bstância, e, portan to , o ser p er-


hi 11iiv r m iacto no idealism o. O id ealism o, na m edida em que n ada
mi ii'. .<'|;i salvo idealism o, não afeta o problem a fundam ental da filo-
'■ili.i. n;u> passa de um a qu estão de hierarquia de substâncias. A p ró te
■mi .iii vrm a ser o eu. O que o eu faz é cogitarei portan to , o que propria-
iiii n ir r e funda o ser das outras coisas é a cogitatio ou idéia. Por isso
i ii/i ii/ismr). Se n o realism o o que há p rin cip a lm e n te é res, no id ea lis-
iiH 11 id eia; no entanto a idéia tam bém é res, res cogitans.
l) co n ceito da su bstân cia cartesiana está fundado na n oção de
iiii li prudência, tradicional desde A ristóteles. Essa ind epend ência, esse
I i i i.ii se a si m esm o, essa su bsistên cia, é em si. L em brem o s a d iferen -
■,i i|iir há entre ser in se e ser a se. Ser in se é essa in d ep en d ência su b s-
i iin i.il; cj se só D eus é. U m ente pode ser in se ou in alio, e, por outro
I n In, a se ou a b alio. A in d ep end ência de um a cor, de um cavalo e de
I ''-i i -v por exem plo, são b em diferentes. U m a co r não pode seq u er ser
I ii'..ula por si só; p ertence a sua essência não ser independ ente, co m -
I 'In íir a exten são; é a b a lio, m as além disso in alio. U m cavalo, para ser
■.iv.ilo, não precisa de outra coisa; é em si in d ep en d en te; isto, qu an to
i na essên cia; m as e a existência? Para existir precisa estar em algum
liir.n , que é o sentido da palavra existir. M esm o p rescin d in d o da cria -
■.in, um cavalo, um a pedra ou qu alqu er ente finito não existe incle-
I Miu lcn tem en te, pela p ró p ria índ ole do verbo existir. E xistir é ex-sis-
/i / 1 . cm alem ão, da-sein. A parentem ente, am bas as palavras carregam
11iiia determ inação de lugar; ex, d a , estar aí, fora de algo. Na verdade,
li.in se trata de lugar. L em brem o -n o s de qu and o Kant fala da d iferença
■ i ii i c cem escud os possíveis e cem escud os ex isten tes; não há d iferen -
■.i no co n ceito , m as sim no fato de que os cem escu d os reais não só
■ m si cm no m eu p ensam ento - com o os p e n s a d o s -, mas tam bém fora,
■ m ie as coisas. Portanto, precisam de que outras coisas existam , qu e
■ Msia pelo m enos algo em que estejam . O qu e falta é u m m u ndo em
i|itr haja escu d os e cavalos e pedras. Assim , m esm o p rescin d in d o de
■•i'irm in d ep en d entes ou não de D eus, são d ep en d en tes do m u n d o . O
■.ivalo ou a pedra são ind ep en d entes qu anto à essên cia, m as d ep en -
■IniLcs qu an to à existên cia; são in se, m as ah alio. Som ente D eus, cu ja
■-.srncia envolve a existên cia, é um ens a se.

331
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

O s e r tr a n s c e n d e n ta l • A m etafísica de Kant eslá aqui. Dessa


tuição rad ical depende sua novidad e: o ser n ão é u m p red ica d o real.
U m pred icado real seria algo que as coisas tivessem em si m esm as; ou
seja, os cem escu d os teriam em si algo que os faria ser reais; Kant vê
que não têm nada em si que os d iferen cie de cem escu d o s possíveis.
A diferença está num a p o s iç ã o , no fato de que os escu d o s reais estejam
aí, estejam postos, co m as co isas, em co n exão co m a totalid ad e da ex ­
periência. (E m Kant essa co n exão co n tín u a co m a ex p eriên cia é tam ­
bém o signo da realidade em co n trap o sição ao s o n h o .) A característi­
ca do existen te não é um a característica in trínseca, é transcend ental:
consiste n u m es ta r em\ é algo que tran scen d e a cada co isa e se fund a­
m enta no fato de estar com as dem ais.
Tem os aqu i a interferência de um a distinção k a n tia n a m u ito im ­
portante, q u e é a distinção en tre o pensar e o co n h ecer. O c o n h e ci­
m ento é um co n h e cim en to de algo, um co n h e cim en to de co isas, por­
tanto algo q u e não se lim ita a id éias m in h as, m as q u e en volve um a
referência verdadeira às coisas. No en tan to , é p reciso d istin g u ir essa
idéia do c o n h e ce r da que teria u m realista. Este diria q u e m eu co n h e ­
cim en to co n h e ce coisas, m as co isas que estão aí, em si. Para Kant não
se trata disso; não é que haja duas co isas em si - o eu e a co isa co n h e ­
cida - e que d ep o is esse eu co n h e ça a coisa, m as q u e é ju sta m en te
nesse co n h e ce r que as coisas são coisas e eu sou eu. N ão é que as c o i­
sas sejam sim p lesm en te tran scen d en tes a m im , já q u e sem m im não
há coisas, m as sim que esse co n h e cim en to funda o se r das coisas c o ­
nhecidas e do eu que as co n h ece. O co n h ecim en to n ão é algo que se
in terp on ha en tre as coisas e m im , m as as coisas ta m p o u co são idéias
m inhas; o co n h e cim en to faz co m que as coisas sejam co isa s na m ed i­
da em que são co n h ecid as por m im , e que eu seja eu na m edid a em
que as co n h e ço . D esse m od o, o co n h e cim en to con fere tanto às coisas
co m o ao eu seu respectivo ser, sem confu nd ir-se co m n en h u m deles;
p orém isso nada m ais é senão o que cham am os de tran scen d en ta l, e
assim se ex p lica o fato de que sejam cham ad os de tran scen d en tais tan ­
to o co n h e cim e n to com o o ser.
D eu s • Isso explica a posição de Kant ante o arg u m en to o n to ló ­
gico. Essa prova su punha que o ser fosse um p red icad o real, e a exis-

332
Kant

h 'ih i.i, um a p erfeiçã o in trín seca, que D eus deve ter. No en tan to , se o
. 11 ■■ i ranscendental, n ão basta ter a idéia de D eu s para estar certo de
•11ii exista; a existência de D eu s só seria assegurada por sua pusição. E
i nino D eus, por sua p ró p ria índ ole de ente in fin ito , não é su scetível
ili n i pôr as co n d içõ es necessárias para que se dê num a in tu ição ,
I ii ns lica além de toda ex p eriên cia possível. E co m o ju sta m en te o que
d i'.lingue as coisas reais das possíveis é o dar-se a m im em co n exã o
■um ;i exp eriência, n ão é possível d em onstrar nem a ex istên cia de
I Vus nem tam pouco su a n ão -existên cia.
lissa refutação do arg u m en to o n to ló g ico m ostra que n ão é um
.ui1,um ento qualquer, qu e nào é um tipo de racio cín io em relação ao
|ii;il caiba verificar se pod e ou não ser d em o n strad o, m as que é um a
h r que traz consigo u m a idéia do ser e, p o rtan to , u m a m etafísica; só
.1 pode o b jeta r a ele a partir de um a idéia d iferente do ser. E as o b je -
i.iu-s que venham a ser feitas a essa crítica de K ant terão de ser esten ­
didas a toda a m etafísica kantiana.
Agora pod em os en ten d er em sua totalidade o problem a de D eus
iu lilosofia do idealism o. E m K ant, a razão esp eculativa tem de re ­
n u n ciar à posse in telectu al de D eus e não pod e m ais u tilizá-lo co m o
lim d am en to. C om isso a m etafísica se altera em sua raiz. A anterior, o
u n o n a lis m o do sécu lo X V II, estava fundada n u m p ressu p osto que
.ujnra é im possível. O ser é interp retad o n u m sen tid o d iferen te, e ante
n idealism o dogm ático de que Kant, segundo fam osa frase, d esp ertara,
p.issará a ser feito um id ealism o tran scen den tal.
C om isso a situ ação de D eus perante a m ente m u da, assim co m o
m uda tod o o problem a do ser e, co m ele, a filosofia. E essa m u d an ça
csiá igualm ente determ inada pelo argum ento o n to ló g ico , qu an d o este
deixa de ser consid erad o válido e dem onstrativo. A ssim se in icia a úl-
iima etapa do idealism o, co rtan d o a ponte que até esse m o m en to c o n ­
tinuava m an ten d o D eus u n id o à razão teórica, e se co n su m a o p ro ces­
so m etafísico iniciado no final da Escolástica m edieval. Nessa etapa,
I >eus vai reaparecer de m od o original na razão p rática, e de outra fo r­
ma em toda a m etafísica p ó s-kan tian a, esp ecialm en te em H egel. E
co m isso o argum ento o n to ló g ico ganha nova atu alid ad e filosófica.

333
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

4. A filosofia

A m etafísica kantiana atinge sua plenitude n o c o n c e ito de pessoa


moral e na razão prática. V im os que para Kant a m etafísica co m o ciên ­
cia era im p o ssível; m as Kant se vê diante de d ois fatos ind ubitáveis,
que se im p õ em : o fato da m etafísica co m o tendên cia n atu ral do hom em
e o fato da m oralidade.
Kant se perguntava se a m etafísica com o ciên cia é possível, mas
não se é possível a m etafísica co m o afã, co m o te n d ên cia natural, uma
vez que faz m u itos e m u itos sécu lo s que ela existe. É p reciso levar a
sério a exp ressão tendên cia n atu ral (N a tu ran la g e), algo qu e está na n a­
tureza. Q u er dizer que existe no h o m em , na sua p ró p ria natureza, a
ten d ên cia a fazer m etafísica.
C o n c e ito m u n d a n o d a filo s o fia • Kant forn ece certas razões
para ex p licar que o hom em filosofe; não se lim ita a d izer que é uma
ten d ên cia natu ral. A verdadeira filosofia não o é em sen tid o escolar
(S ch u lbegriff), m as sim em sen tid o m u nd an o ( W eltbegrifj). N esse se n ­
tido, a filosofia é o sistem a dos ú ltim o s fins da razão; pela filosofia o
h om em esc o lh e os ú ltim os fins.
As q u estõ es últim as da filosofia m undana são qu atro:

1) Q u e p o sso saber? (M etafísica.)


2 ) Q ue devo fazer? (M o ral.)
3 ) Q ue p o sso esperar? (R eligião.)
4 ) Q ue é o hom em ? (A ntrop olog ia.)

“M as n o fund o - diz K ant - tu do isso pod eria ser in clu íd o na


a n trop olo g ia, p o rq u e as três p rim eiras qu estões se referem à ú ltim a .”
A filosofia se tran sfo rm a em a n tro p o lo g ia . O fim ú ltim o da filosofia é
que o h o m em se co n h eça. O o b je to su p rem o da m e ta física é a pessoa
hum ana.
A co n tece que saber o qu e é um a pessoa hu m ana traz consigo
m uitas q u estõ es: Q ue é o m u n d o ond e essa pessoa está? Q ue é uma
pessoa? Q u e p od e esperar e, p o rtan to , que pode saber de D eus? Com
isso voltam os aos três tem as da m etafísica clássica. Q ue q u er dizer isso?
C om o pode K ant voltar a esses o b je to s inacessíveis?

334
K ant

l li - ii.to aparecem aq u i co m o o b jeto s da razão teórica, e sim da


.......... .. Não se chega a esses o b jeto s m ed ian te um saber espe-
i ui.uivii, o hom em apreend e a si m esm o co m o p esso a m oral, de m odo
li,w. ili m onsirável, mas co m im ediata evidência para o su jeito. E esse
I. .. tl.i m oralidade exige se r exp licad o. Q ue co isas tornam possível
I..... ii In m iem ser um a p essoa m oral? A liberdad e da vontade, a im or-
i iliiLuU- i- a existência de D eus. A razão prática nos põe em co n tato
iiiiiiiin, in con dicion al e ab so lu to co m estes seu s postulados. A razão
Iii.ki ii ,i consiste na d eterm in ação absoluta do su jeito m oral. E ste é o
i niiili) radical da r a z ã o p u ra kantiana.

335
II. F ic h t e

P erso n alid ad e e o b ra s • Jo h an n G ottlieb Fichte nasceu em Ram-


m rnau, em 1 7 6 2 . Era de origem h um ilde, filho de um tecelão. P or
1111111 co in cid ên cia, um sen h o r da região se deu conta da capacidade

i-xlraordinária de F ich te qu and o este ainda era quase criança e a ju -


ilnu-o em seus estudos. C om grandes d ificuld ad es eco n ôm icas cu r-
•mi teologia na U niversid ade de Iena e d epois se d ed icou a dar aulas
particulares. Em 1 7 9 1 co n h e ceu Kant, já id oso, e no ano seguinte,
por m ediação do grande filósofo, p u blicou sua K ritik a lle r O ffen ba-
ning (C rítica de toda rev elação), que foi editada sem seu nom e e atri-
Imida a Kant. Q uando se revelou o verdadeiro autor, a atenção desper-
lada pelo livro reverteu para F ich te e lhe p ro p o rcio n o u rapid am ente a
lama. De 1 7 9 4 a 1 7 9 9 foi p rofessor em Iena, ond e sua atividade co m o
rsi ritor tam bém foi intensa. Teve um atrito co m o governo por causa
cIr um artig o p u b lica d o em su a revista, sen d o acu sad o de a teísm o
rm b o ra o artigo não fosse de sua autoria. A altivez do filósofo fez com
11uc perdesse sua cátedra. M udou-se para B erlim e participou dos cír-

i iilos rom ânticos, ao m esm o tem po em que dava cursos particulares


i oin grande su cesso. C om a invasão francesa liderada por N apoleão,
particip ou ativam ente da cam panha destinada a levantar o espírito
a lrm ã o e p ro n u n cio u n o s anos de 1 8 0 7 e 1 8 0 8 seu s fam osos D iscur-
mis a n a çã o a le m ã (R eden an d ie deu tsche N ation ), que foram um a das
nulis decisivas co n trib u içõ es para a form ação da co n sciên cia n acio n al
a lu n ã . Em 1811 foi reito r da U niversidade de Berlim , fundada no ano
anterior. Em 1 8 1 3 p articip o u da cam panh a n ap o leô n ica co m o ora-
d o i, ao m esm o tem po em que sua m u lher trabalhava co m o en ferm ei­

337
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ra nos hospitais de Berlim . Ela contraiu um a infecção, e F ich te tam bém


se co n tag io u , o que causou sua m orte em janeiro de 1 8 1 4 .
A p ro d u ção de F ich te é exten sa. Suas p rin cip ais ob ras são várias
elab o raçõ es su cessivas, cada vez m ais m aduras, de um a ob ra funda­
m ental, in titu lad a W issen chaftslehre (D ou trina da ciên cia ). Além dis­
so , Die B estim m u n g des M en schen , D ie B estim m ung des G eleh rten (O
d estin o do h o m em e O d estin o do sá b io ), a P rim eira e a S egu n da intro­
d u ção à teo ria d a ciên cia - estes qu atro textos são apropriados para
um a in iciação na difícil filosofia de F ich te - , a Anweisung zu m seligen
L eben (A d vertência para a vida feliz) e, além dos já citad os D iscursos,
liçõ es de filosofia da história in titu lad as Die G run dzü ge des g eg en w ärti­
gen Z eitalters (As características da idade co n tem p o rân ea).
F ich te foi u m a p ersonalidad e ex cep cio n al. N ele há sem pre um a
p ropensão à ação p ú blica e à o rató ria, e sua significação para a form a­
ção da n acio n alid ad e alem ã foi m u ito grande. O estilo literário de
F ich te é en érg ico , b rioso e expressivo.

1. A m etafísica d e F ic h t e

K a n t e F ic h t e • Fich te p roced e de m odo direto de Kant. No c o ­


m eço apresenta sua filosofia co m o u m a exp o sição m adura e profunda
do kan tism o. C o n tu d o , fica d ifícil ver essa gênese filosófica se n o s ati-
verm os à im agem vulgar de Kant q u e nos transm itiu o sécu lo passa­
do. É n ecessário voltar ao p o n to em que Kant resum ia o sen tid o de
sua filosofia.
A cu lm in ação da m etafísica k antian a era a razão prática. Kant
term inava afirm an d o o prim ad o da razão prática sobre a teó rica, e a
pessoa m o ral, o eu p u ro de K ant, d eterm in ava a si m esm o p ra tica m en ­
te de m od o in co n d icio n al. A d eterm in ação do eu pela razão prática
vê-se co m tod a clareza na fórm ula qu e pod eria ser dada ao im p erati­
vo categ ó rico : f a z o qu e qu iseres, salien tan d o o quiseres; faz o que pos­
sas querer. Para F ich te, o im p erativo m oral co n siste em dizer: vem a
s er o q u e és (w erd e, d e r du hist), e n esse sen tid o não está longe do de
Kant, porqu e ao d izer “faz o que q u ise res” ou “sê liv re”, K ant pede ao
h o m em que aja de acord o co m o que em últim a in stân cia é, que de-

338
F ic h t e

ii i ii 11ui a si m esm o, co m liberdad e. D esse m od o, o eu r m p m ro , c|iic


■ .i,i ilrtci m inado p o r m uitas co isas, deve agir, segu ndo K ;m i. co m o se
i" livre, ou seja, o eu em p írico deve tend er a ser o eu puro t|iu- rs
ui i.ilm cnte é. Pois bem , F ich te diz ao h o m em ; “sê o que rs". irn d r
,i -.ri ii que és essencialm ente. A m oralidade em Fichte consiste - co m o
' ■■111)i-m em Kant - e m ajustar-se ao que verdadeiram ente se é, rm na»
.1 l.ilsrar.
Ambas as posições têm u m pressuposto com u m : que as coisas I iu
ui.mas podem ter diversos graus de realidade. D izer “vem a ser o que
i' • ' » in é m o grande p ressu p osto de que a m atéria hum ana adm ite
j ',1 .nr. ilc realidade, que se p od e ser h o m em em d iferen tes graus, mais
■ui 11u-nos d eficientes.
O eu • N ão é arbitrário co m e çar esta brevíssim a exp osição do
|n ir.am en to fichtean o co m a d o u trin a m oral. O p o n to de partida de
.....m etafísica - e ao m esm o tem p o o p onto de en tro n cam en to co m o
I m iism o - é essa d eterm in ação do eu. Ao m esm o tem p o , ev id en cia-
■ q iir a ética nada m ais é sen ão m etafísica, u m m o m en to fu n d am en -
i il di' toda m etafísica, e talvez até sua cu lm in ação .
0 eu é o fundam ento da filosofia de Fichte. Tem os que deter nossa
iii-nçrto p or um m o m en to nessa idéia, qu e en co n tra m o s de m o d o
■.ii |,i vez m ais freqü ente e cen tral.
O rtega co stu m a co n ta r a h istória m aravilhosa do eu. Na G récia,
" rii p raticam en te não existia no co m eço , ou era um a coisa secu n d á-
ii.i, para u m grego, o eu era um a coisa, co m certas p ecu liarid ad es,
ui.r., no fim das co n tas, um a coisa a m ais; e os g regos, h o m en s de â n i-
III» in q u ieto e arrevesado, que levavam a g alanteria até a m etafísica,
■111.indo tin h am de falar do eu falavam no p lural e diziam n ó s, r||M ç.
1depois da G récia, na Idade M édia cristã, o eu ad qu ire um a p o si­
ção nova e extraord inária: o eu é um a criatu ra, feita à im agem e sem e-
lli.m ça de D eu s, e su jeito de u m d estino, de um a m issão pessoal. M ais
la id r, d ep o is do R en ascim en to , n o sécu lo b arro co , o eu prosseguirá
■m sua carreira ascen d en te. “C om o nas fábulas do O rie n te , qu em era
m rn d ig o acord a p ríncip e. L eibn iz se atreve a ch a m a r o h om em de un
/■i Hl Dicu. Kant faz do eu o su m o legislad or da natu reza. F ich te, d es-
nn M irad o co m o sem p re, n ão se co n ten tará co m m e n o s do qu e dizer:
u i u r tu d o ” (O rtega: Las dos g ra n d es m etá fo ra s).

339
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

D eve-se acrescen tar qu e a idéia de h om em sofreu tran sfo rm açõ es


m uito essen ciais. Na A ntiguidade, o hom em é um ente pecu liar, tem
um a prop ried ad e estranha qu e é a de sab er o resto das co isas e, sendo
ele um a den tre elas, em certo sen tid o as envolve todas. N a Idade M é­
dia, o h o m em é um a criatu ra feita à im agem e sem elh an ça de Deus;
isso faz co m que Deus fique envolvido no problema do h o m em - o que,
diga-se cie p assagem , m ostra a im p o ssibilid ad e de en ten d er co m o h e-
terô n o m a a m oral cristã, já que D eus nu n ca é algo a lh eio ao h om em ,
pelo co n trá rio , é sua idéia ex em p lar; m as já na G récia a co n tecia algo
análogo, em b o ra m uito diferen te: o “algo d ivino” que o h o m em tem
em A ristóteles. Na Idade M oderna oco rre algo to talm en te novo. Até
en ião , falava-se do h o m em ; na ép o ca m od ern a parece q u e o próprio
hom em se escam o teia, d eixand o em seu lugar um p en h or. C om efeito,
vem os qu e se fala do eu, da v o n tad e, da razão, da luz n atu ral etc.,
m as não n o s falam do h om em . Q u an d o D escartes diz eg o sum res co-
g itan s, não diz o h om em é, m as sim eu; p o r isso não tem sen tid o fazer
o b jeçõ e s a D escartes a partir de A ristóteles, ou v ice-v ersa, porque
D escartes ou Kant falam do eu e A ristóteles do hom em . É claro que o
h om em tem um m om en to de eg o id a d e, m as o h o m em e o eu não se
iden tificam . E a vida hum ana tam p o u co se esgota no e u 1.
Esta digressão n o s perm ite en ten d er o fund am en to da filosofia
de F ich te. Diz F ich te qu e o eu se p õ e , e a o p ôr-se p õ e o n ão-eu . Q ue quer
d izer isso? Em prim eiro lugar, o n ã o -eu é sim p lesm en te tu d o o que
não é o eu , aq u ilo qu e o eu en co n tra. F ich te volta co m b rio ao c o n c e i­
to de p o s içã o k antian a. O eu se põe; isso qu er dizer qu e se põe com o
ex iste n te, qu e se afirm a co m o ex iste n te. O eu se põe n u m ato , e em
todo ato está im p lícita a posição do eu que o executa.
V ejam os a qu estão pelo outro lado. P osição em K ant era pôr-se
entre as coisas. Pois bem , em F ich te , o eu , ao pôr-se, p õ e o outro que
não é eu , an te o qual se põe. A p o sição do eu não pode dar-se so zi­
n ha; ela é p o sição com o outro.

1. V er m in h a A n to lo g ia filo só fica El tem a dei h om b re , e sp e c ia lm e n te a In tro d u çã o


(Revista de O ccid en te , M adri 1 9 4 3 ).

340
F ic h t e

\ l' iiim de B rentano, os ato s h um anos voltaram a ser clHm iilos


iim in .Uir. m lriicion ais, ou seja, u m ato está sem pre apo n tan d o para
imi in, o o b jeto desse alo. U m ato su põe: um su jeito qu e o execu -
............ i >|ii 10 alo e o o b jeto para o qual apon ia esse atio. Essa idéia da
um in i .n ulidad e radical do h o m em d elerm inou toda a filosofia atual.
I i m i . i i estran h o que essa filosofia tenha se voltad o para F ich ie na
i|ii'ilnl iili- de seu an teced en te clássico.
\ 11 a lid ad e • A posição do eu e do não-eu - ou seja, tudo - resul-
1.1 ' jMimlii l-ichte, nu m ato. A realidade é, pois, pura a tiv id ad e, agili-
il.i.li lu u su bstân cia ou co isa. Isso é d ecisivo e co n stitu i o que há de
m .ii p in lu n d o e original na m etafísica fiehleana. E co m o essa realida-
>l< ■! 11nula num ato do eu , a filosofia de F ich te é tam b ém idealism o.
I n i I ii liic, esse idealism o tran scen d en tal é a ú n ica filosofia própria
>1" lin m rin livre; ele diz, n u m a frase fam osa: “O tipo de filosofia que
< . •i illir d epend e do tipo de h o m em que se é .”

2 ( ) idealism o d e F ic h t e

la th a n d lu n g ” • V im o s qu e, para F ich te, a p o sição do eu e do


H.in rii se reduz a um puro fazer, a um a pura ativid ad e; a verdadeira
•<, 11ul.idc, longe de ser su b stân cia, é Tathandlung, qu e significa ativi-
•|.n li agilid ad e, façanha. A realidade perde seu caráter su b stan cial e
i ii.iu slo rm a em puro d in am ism o . Essa é a in tu ição profu n d a do
I'* 11■.,1111L*nto de F ich te, co m o observ ou O rtega.
In tu iç ã o e c o n c e ito • N o en tan to , um a coisa é a in tu ição e o u -
11.1 n co n ceito . Kant dizia qu e o p en sam ento sem in tu içã o é cego , m as
1111( a in tu ição sem o co n c e ito não é ciên cia. U m a in tu içã o lem de se
■ li '..ii a co n ceito s. E F ich te n ão é capaz de exp ressar co n ceitu a lm e n -
ii .ti.i in tu ição de form a ad equ ad a, porque está preso aos m old es do
l .iin r,m o qu e ele pretende contin u ar. Isso lhe produz ce rto m al-estar,
■ poi isso tod a a sua obra é u m a série de reelab oraçõ es do seu livro
■v .rn cia l. In tu ição vem de in tu eri, ver, e co n ceito , de co n cip ere, ca p ere
•um, pegar co m . Fich te não tem in stru m en to s m en tais para pegar o
'|iir viu e não chega a tom ar posse disso. P or esse m o tiv o co n tin u ará
iiii .im b ito da filosofia k an tian a, e sua m etafísica é idealista. Em que
i oiisiste o id ealism o de F ich te?

341
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Id e a lis m o • Para co m eçar, a realidade prim eira é o eu. N ão diz


que há u m a realidad e, da qu al um dos ingredientes é o eu , que está
n ecessariam en te ante um n ão -e u (isso seria a expressão de sua in tu i­
ção p ro fu n d a), m as diz que o eu se põe e, ao pôr-se, põe o n ão -eu ; ou
seja , o eu vem n ecessariam en te aco m p an h ad o do n ã o -eu , m as este
n ão -eu n ão é o riginário, só se põe en q u an to e na m edida em que o eu
o põe: p o rtan to , radica n o eu , é o eu que põe o não-eu.
O im p o rtan te e o p ositivo de F ich te é que essa p o sição n ão é se
cu n d ária: p a r a s e r eu, este tem de c o -p ô r ou co m p or o n ão -eu . N o en ­
tan to, o eu funda o n ão -eu , tem u m a priorid ad e radical. E isso já é
idealism o.
O q u e o n ão -eu faz é lim itar o eu, e, ao lim itá-lo, dar-lhe sua ve
dadeira realidade. U m eu puro e sim p les, só, seria in term in ad o e ir­
real. O eu se afirm a co m o tal ante o n ão -eu , num a posição que é pura
atividade, que co n siste em estar-se ja z e n d o . (Para esta ex p o siçã o do
problem a do id ealism o fich tean o segu i, em term os gerais, a in terp re­
tação de m eu m estre O rtega.)
O s a b e r • O eu se põe - sc afirm a co m o eu - co m o id ên tico a
m esm o. Sua posição é A = A, eu = eu. Isso não é um a pura tautologia,
m as exp ressa o caráter form al do eu: o eu se recon h ece a si m esm o. O
hom em pode en trar em si m esm o e se recon hece co m o não igual ao
não-eu. A síntese da tese “eu = e u ” e a antítese “não-eu ^ eu ” é a m ed i­
da. F ich te está aqui na mais clássica tradição, oriunda da G récia. A m e­
dida, o um, é o que faz com qu e as coisas sejam . O que faz a síntese do
eu e do n ão -eu é o saber. O sab er é a u n idade tran scen den tal d o eu e do
não-eu . E F ich te diz: “N ão so m o s n ó s que tem os o saber, é o saber que
nos te m .” Esse é o sentido rigoroso da expressão e s t a r n a v erd a d e.

342
I I I . SCHELLING

Vida e o b ra s • F rie d rich W ilh elm Jo se p h S ch ellin g nasceu em


W m iirm b e rg em 1 7 7 5 e m orreu em 1 8 5 4 . F o i de um a precocid ad e
i m i.in u lm äria, rara em filosofia. Estudou teologia em T ü b in g en , co m
IliiM i'ilin c H egel, que foram seus am igos. D ed ico u -se tam b ém a p r o -
lim ili r. csiu d o s filosó fico s, e aos vinte an os, em 1 7 9 5 , p u b lico u seu li-
\111 \ihn Ich als P rin zip d e r P hilosophie (D o eu co m o p rin cíp io da filo-
•i ili.i). de forte in flu ên cia fichteana. D ois an o s d ep ois escreve Ideen zu
• in. i P hilosophie d e r N a tu r (Id éias para um a filosofia da natureza), e
ii" •( i'in n te é n om ead o p ro fesso r em lena. Ali trava relações com os
■li, iilos rom ân tico s (T ie ck , o historiad or da literatura esp an h ola; N o-
■ ilr- ns irm ãos Sch leg el; d ep ois casou co m a m u lh er de August W i­
lli* Im 1.i lilegel, d ivorciada do seu prim eiro m arid o: C arolina Sch el-
I qiu- leve um a in teressan te personalidade d entro dos n ú cleos ro-
111.1111 ii ms). Sch ellin g escreveu em lena u m a de suas obras capitais,
Sr,/cm ilrs tran szen d en ta len Idealism u s (Sistem a do id ealism o trans-
I I in Ii i 11a I), B runo e D arstellu n g eines System s d e r P hilosop h ie (E x p o si-

i.im ili uni sistem a de filosofia). D epois se m u da para W ü rzb u rg e


M un ique, ingressando na A cadem ia de C iências em 1 8 0 6 . D e 1 8 2 0 a
IH.1/ li a professor de E rlan g en , e de 1 8 2 7 a 1 8 4 1 em M unique. A p ar­
iu ilr-.ia ultim a data, le cio n a na U niversidade de B erlim . A essas obras
ili vi m se acrescentar, en tre as m ais im p o rtan tes, suas investigações
I ’/’I i d .is W esen d er m en sch lich en F reiheit (S o b re a essên cia da liberda-
■l< h iiiii.iiia, 1 8 0 9 ). Na ú ltim a ép cca de sua vida escreveu p rin cip al-
111r 1111- ;i icsp e ilo da filosofia da religião: P h ilosop h ie d e r M ythologie und

■ 7|i nhiii itng (I'ilo so fia da m itologia e da revelação).

343
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

S ch ellin g é um a figura representativa da ép oca rom ân tica, com


u m sen so m u ito agudo da ciên cia da natureza e ao m esm o tem po da
beleza e da arte. Exerceu p rofund a in flu ên cia na estética. Tam bém d e­
dicou g ran d e atenção aos p ro blem as da religião e da h istória.

A s f a s e s da filosofia d e S c h e llin g

P e rs o n a lid a d e filo s ó fic a • Sch ellin g foi de genial precocid ad e;


é o caso m ais extrem o dos p o u q u íssim os qu e o co rrem na filosofia.
Aos v in te anos tinha um sistem a; m as, co m o viveu quase oitenta, fez
quatro sistem as diferentes. Na realidade, é a evolu ção in tern a de um
deles, qu e vai se desenvolvendo e am adurecend o co m o tem po; no e n ­
tanto, a diversid ad e de suas fases é tão consid erável, que autoriza a fa­
lar de q u atro sistem as d iferentes: o da filo s o fia d a n atu reza e d o esp iri­
to, o da id en tid a d e, o da lib erd a d e e o da filo s o fia religiosa positiva.
S ch ellin g provém filoso ficam en te de K anl e de F ich te, deste ú lti­
mo de m od o m u ito direto. H egel foi seu am igo e representa um m o­
m ento p o ste rio r na m etafísica, de plena m aturidade, em b ora S c h e l­
ling fosse um p o u co m ais jo v e m . E m H egel cu lm in a o id ealism o
alem ão, q u e alcan ça sua plen itud e com sua m orte. A longevidade de
S ch ellin g é , no fundo, apenas u m a sobrevivência.
N a tu re z a e e s p ír ito • V im os que Fich te partia da p o sição do eu,
que co lo cav a a radical dualidade do eu e do n ão-eu . Essa cisâo su sci­
ta no id ealism o alem ão o p ro blem a da d istin ção entre o rein o da n a­
tureza e o reino da liberdade. O s idealistas terão de relacionar esses dois
m u ndos tão diversos do ser: natureza e esp írito. Esse é o problem a de
Sch ellin g e cu lm in ará na filosofia hegeliana.
A p rim eira fase do pen sam en to de Sch ellin g reco lh e co n trib u i­
ções co n sid eráv eis da ciência n atu ral de seu tem p o , so b retu d o da q u í­
m ica e da b iolo g ia, que co m freq ü ên cia interp reta co m excessiva li­
berdade e fantasia. É o m o m en to em que acaba de ser d esco b erta a
eletricidade - é con hecid o o uso literário desm edido do adjetivo “elétri­
c o ” nesses a n o s - . e dessa m an eira se co m p leta a m ecân ica new tonia-
na. Por ou tro lado, as idéias evolutivas vão se im p o n d o na biologia. A
filosofia da natu reza de Sch ellin g , que às vezes se entrega a uma pura

344
SCHELLING

I . I n-t ulaçâo imaginativa, sem coniato com a realidade, influiu muito


ii i |r.in>logia da época e principalmente na medicina romântica. A
11.11111 c i é inteligência em “devir” - diz Schelling -, espírito que vem
i .1 i Na verdade, se dá como um lento despertar do espírito. Isso ex-
l'li .1 .i vinculação de natureza e espírito, que se manifesta especial-
11ii i iii no organismo vivo ou na obra de arte, cada um em sua respec-
iiva rslera. O absoluto que está na base de ambos se revela na histó-
iM it.i arte e na religião. Nessas idéias, encontram-se em germe os ele­
m e n to s que aparecerão com plenitude nos sistemas posteriores de
'.i helling.
A identidade • O segundo sistema, o da identidade, consiste em
i -ii-1iclcr uma ponte entre a natureza e o espírito mediante algo que
,i |.i espírito e natureza, um momento em que natureza e espírito se-
iiii idênticos. No sistema anterior, o último estágio da evolução da na-
iine.:,i é o espírito. Aqui há uma zona comum, idêntica, em que a na-
iiin a é espírito, e o espírito, natureza. Essa identidade - diz Schelling
nao pode ser expressa conceitualmente; só é conhecida por uma in-
iiilíiio intelectual (intellektuelle Anschauung). Hegel dizia que isso era
II >iiici um tiro de pistola” ; e a identidade - que, segundo Schelling, é
iiii h/crcnça - era como a noite, “em que todos os gatos são pardos” .
I isse sistema da identidade é panteísta, da mesma maneira como o
i .egundo Hegel, qualquer sistema que afirme que o ser é sempre ser
i i |ue o nada é sempre nada, porque nesse caso o princípio tx nihilo ni-
hil li! é interpretado de modo absoluto, e a criação é impossível. Nessa
l.e.e dc Schelling, o ser é idêntico a si mesmo, e o nada também.
A metafísica da liberdade • Em seu terceiro sistema, Schelling
ii iumeia à identidade. Explica a realidade como desdobramento, uma
■vnlução mediante a qual ela vai se desenvolvendo gradativamente e
manifesta a si mesma em etapas sucessivas. Passa de natureza inorgâ-
iiu a a natureza orgânica, e desta, a espírito. Isso está relacionado com
11 movimento das ciências naturais do começo do século X IX, especial-
m e ii k ' da biologia, num sentido evolucionista. A realidade, segundo
' 'i helling, vai evoluindo até chegar à forma suprema, a liberdade hu­
mana. A natureza desperta e vai se levantando gradativamente até che-
I'.ii a liberdade. Trata-se de algo de grande beleza e de poderoso efei­

34 5
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

to estético, tão do agrado do espírito romântico; no entanto, exaspe­


rava a mente rigorosamente lógica e metafísica de Hegel.
A religião positiva • A última fase do pensamento de Schelling
significa uma aproximação cla religião cristã positiva, embora sem
chegar à ortodoxia. Faz uma metafísica teísta, fundada na idéia da li­
berdade humana, e sua atividade se orienta sobretudo para a interpre­
tação teológica da religião. É o momento em que na Alemanha se cul­
tiva intensamente a teologia especulativa, tanto entre os hegelianos
como na direção apontada por Schleiermacher. Schelling dedicou aten­
ção especial ao estudo da mitologia. Em seus últimos anos foi chamado
a Berlim para combater “o panteísmo hegeliano” , embora, como vimos,
este nunca tenha sido tão pleno e efetivo como o de Schelling numa
época anterior. A filosofia de Schelling, nessa derradeira etapa, foi olha­
da com simpatia pelos protestantes ortodoxos e até mesmo, em certo
sentido, pelos católicos contemporâneos.

346
IV. H e g e l

Vida e obras • Georg W ilhelm Friedrich Hegel era suevo; nas-


ii M i in Stuttgart em 1770 e pertencia a uma família burguesa protes-
iiiiiii l:siudou intensamente no liceu de Stuttgart e depois teologia e
lilir.nl i.i em Tübingen. Lá foi amigo íntimo de Schellinge de Hölder­
lin ,i amizade com o segundo foi mais duradoura; com Schelling teve
,11111111 L -m decorrência da questão de maior importância para eles: a
lili i'.nlia. Depois, Hegel foi professor particular, de 1793 a 1800, e es-
ir\T i-ni Berna e em Frankfurt. Em 1801 foi pnvatdozent em Iena, sem
ii ui mi muitos ouvintes por causa dos seus escassos dotes de orador e
I.' 1111iculdade de seus cursos. Em 1807, já em plena maturidade, pu-
Mii ,i seu primeiro escrito considerável, que já é uma filosofia pessoal
■ ii.ii! um mero programa: a Phänomenologie des Geistes (Fenomenolo-
u.i.i do espírito). A situação da Alemanha afetada pela guerra obriga-o
ti u.ibalhar como redator de um jornal de Bamberg para poder viver;
m.is sente esse trabalho como algo provisório e penoso. Dois anos de­
in ir. e nomeado reitor do liceu de Nuremberg e ali permanece até
Ml<>, data em que consegue uma cátedra universitária em Heidel-
ling O período de Nuremberg foi muito frutífero e denso; lá se casou
■in 1811 e publicou, de 1812 a 1816, sua obra capital, Wissenschaft
<lci Logik (Ciência da Lógica). Em 1818 foi chamado para a Universi-
i l.iilt- de Berlim, da qual foi professor até o fim da vida e reitor nos úl-
ii mos anos. Ali publicou a E ncyclopádie der philosophischen Wissen-
- haften (Enciclopédia das ciências filosóficas) e deu cursos de enorme
'.i U L'sso, que o transformaram na principal figura da filosofia alemã e
i.imbém de toda a filosofia da época. Morreu de uma epidemia de có-
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

lera que castigou Berlim, no dia 14 de novembro de 1831. Nesse dia ter­
minava uma genial eiapa da filosofia, e talvez uma época da história.
Além das obras mencionadas, devem-se citar várias outras impor­
tantíssimas, publicadas como lições dos cursos de Hegel. Especialmen­
te a Filosofia do Direito, a Filosofia da históna universal (Vorlesungen über
die Philosophie der Weltgeschichte), a Filosofia da religião e a História da
Filosojia, primeira exposição da filosofia feita de um ponto de vista ri­
gorosamente filosófico.
Hegel foi essencialmente um filósofo. Toda a sua vida esteve de­
dicada a uma meditação que deixou uma profunda marca de desgas­
te em seu rosto. “Ele era o que era sua filosofia - escreve Zubiri. Sua
vida foi a história de sua filosofia; o resto, sua contra-vida. Para ele, só
teve valor pessoal aquilo que o adquiriu ao ser revivido filosoficamen­
te. A Fenomenologia foi e é o despertar para a filosofia. A própria filo­
sofia é a revivescência intelectual da sua existência como manifesta­
ção do que ele chamou espírito absoluto. O humano de Hegel, tão ca­
lado e tão alheio ao filosofar por um lado, adquire, por outro, status
filosófico ao se elevar para a suprema publicidade do concebido. E, re­
ciprocamente, seu pensar conceptivo apreende no indivíduo que foi
Hegel com a força que lhe confere a essência absoluta do espírito e o
sedimento intelectual da história inteira. Por isso Hegel é, em certo
sentido, a maturidade da Europa.”
O pensamento de Hegel é de uma dificuldade só comparável à
importância. É a culminação, em sua forma mais rigorosa e madura,
de todo o idealismo alemão. Meu mestre Zubiri, de quem acabo de ci­
tar algumas palavras, fez um dos mais fecundos esforços para com­
preender e interpretar a filosofia de Hegel. Nas palavras que seguem
se encontrará a marca dessa interpretação.

1. Esquema da filosofia hegeliana

Para Hegel, a filosofia é um problema, e por isso, segundo ele,


tem de se justificar a si mesma. Hegel estava envolto numa filosofia e
numa teologia que procuravam “não tanto evidência quanto edifica­
ção” . A filosofia fora se tingindo de vaga generalidade, de profundida-

348
H eg el

■li ui i .in-se transformar em mero entusiasmo e em m-bulosidadc- I'


iv.M ■|ii«- para Hegel parece intolerável. Não o falo dc lazeirm ii'.o dc
11ii 11 ,i.r.mo, de indeterminação, de um vago sentimento <
/<
■Deus, mas
•li i|nrii i i-iii transformar a lilosofia nisso, ou, como isso i k u i i i u I i i i ci i

ii m.in c possível, fazê-lo passar por filosofia. “A filosofia deve guai


il.n dc querer ser edificante.” Falando dos pensadores a que aludi-,
■li I Irgi-I que “acreditam ser aqueles eleitos a quem Deus infuiulc no
■hmi .1 sabedoria. Na verdade, o que no sono assim concebem c pro-
>hi im ii.io passa de sonhos” . Contudo, Hegel nào fica nas recrimina
i.i ii . A essas palavras seguem-se as centenas de páginas da F enomeno-
liu;hi <lo espírito. E Hegel explica seu propósito: “A verdadeira figura,
i ui 111ti- a verdade existe, só pode ser o seu sistema científico. Colabo-
i,ii p.ira que a filosofia se aproxime cla forma de ciência - para que
I ii i .-..I deixar de se chamar amor ao saber para ser saber efetivo é
mm D que me proponho.”
Na Fenomenologia do espírito, Hegel expõe as etapas que a mente
li. vi- percorrer para chegar ao saber absoluto, ao filosofar. É só a par­
iu dai que se pode fazer uma filosofia. E depois escreve a Ciência da
liVlui, e em seguida a Enciclopédia das ciências filosóficas, em que en-
...... amos este esquema: Lógica, Filosofia da natureza, Filosofia do es-
I in no. E esta última contém novamente em si a fenomenologia do
■ pirito, que vimos no começo. Qual o sentido disso? Trata-se de dois
pi 'iiins de vista muito diferentes: na Fenomenologia expõem-se as eta-
I i.i. sucessivas do espírito até chegar ao saber absoluto; entretanLo, uma
viv que se filosofou, esse saber absoluto abarca e compreende tudo,
i esse espírito humano, com todas as suas etapas, entra como um mo-
Miciiio dele. Aparece como um momento da filosofia.
Para Hegel, a realidade é o absoluto, que existe numa evolução
dialética de caráter lógico, racional. De acordo com sua famosa afir­
mação, todo o real é racional e todo o racional é real. Tudo o que exis-
ic c um momento desse absoluto, um estágio dessa evolução dialética,
que culmina na filosofia, em que o espírito absoluto possui a si mesmo
no saber.

349
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

2. A “ Fenomenologia do espírito”

O saber absoluto • Na Fenomenologia do espírito, Hegel most


dialética interna do espírito até chegar ao começo dó filosofar, passan­
do em revista os modos do saber. (Pensar é diferente de conhecer. Co­
nhecer é conhecer o que as coisas são; tem um momento essencial que
se refere às coisas; já vimos que era isso que Kant chamava de “conhe­
cimento transcendental” .) Hegel distingue a mera informação (histó­
ria) e o conhecimento conceituai, no qual tenho os conceitos das coi­
sas (nisso consistiriam as ciências, em que há um efetivo saber). Po­
rém, falia um saber absoluto.
O saber absoluto é um saber totalitário. Por ser absoluto não p
deixar nada fora de si, nem sequer o erro. Inclui o erro enquanto erro.
A história tem de ser isto: tem de incluir todos os momentos do espí­
rito humano, até os momentos do erro, que aparecem como tais vis­
tos desde a verdade.
Dialética • Em Hegel, essa dialética do espírito é lógica, é uma
dialética da razão pura. É o que hoje torna questionável a filosofia da
história de Hegel. O espírito atravessa uma série de estágios antes de
chegar ao saber absoluto. No começo do filosofar está o ser. Aqui co­
meça a filosofia. A filosofia começa, pois, com o ser.

3. A lógica

O sentido da lógica • O problema do que é a dialética é ant


e complexo; ocupa a filosofia desde Platão, e em Hegel chega à sua
máxima agudeza, porque constitui o eixo de seu sistema. A dialética
não é uma passagem da mente por vários estágios, mas um movimento
do ser. Passa-se necessariamente de um estágio para outro, e em cada
estágio está a verdade do anterior. (Recordemos o sentido grego da ver­
dade = alétheia = estar patente.) Em cada estágio se manifesta e se tor­
na patente o anterior, e isso é sua verdade. E cada estágio inclui o an­
terior, absorvido, isto é, ao mesmo tempo conservado e superado.
A Lógica de Hegel é, portanto, uma dialética do ser, um lógos do
ón, do ente; portanto, onto-logia. A lógica hegeliana é metafísica.

350
\
H kgel

I is i-siágios do pensamento hegeliano • Recapitulando o que


ill •.1 11it >
-. ;i respeito do saber em Hegel, constatamos que se ajusia ao
miiMiiiiic rsquema, com a ressalva de que não se trata de uma divisão,
in.* -.iMi, inais uma vez, do movimento do ser.

Í Fenomenologia do espírito (começo do filosofar).


■il» i ...... *1 f Ciência da lógica.
I Filosofia (Enciclopédia) i Filosofia do espírito.
[ Filosofia da natureza.

[ Doutrina do ser.
I ")■» ■
> ...... 1 Doutrina da ciência.
{ Doutrina do conceito.

No ser distinguimos os três momentos seguintes:

\ 10 Determinidade (qualidade).
11 \ 2 ° Quantidade.
I 3o Medida.

I k-ntro da qualidade - para acompanhar um exemplo da dialéti-


. i In u.cliana - distinguimos três estágios:

I o Ser (Sem).
2 ° Existência ( Dasein ).
. 3o Ser para si ( Fürsichsein).

No primeiro - esse ser sem qualidade - distinguimos:

[ I o Ser (Sein).
'" i -........... < 2o Nada (Nichts).
I 3o Devir ( Werden).

Indo isso, repito, não é uma divisão lógica, mas o movimento do


piopi io absoluto. A Lógica hegeliana terá de percorrer esses estágios
■ui '.rntido inverso, ou seja, começando pelo simples ser sem quali-
il.ulr para ir ascendendo a cada ponto de vista superior. Portanto, ve­

351
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

mos que a dialética de Hegel tem uma estrutura ternária, na qual à


tese se opõe a antítese, e as duas encontram sua unidade na síntese. E n ­
tretanto, não se trata de uma simples conciliação. A tese leva necessa­
riamente à antítese, e vice-versa, e esse movimento do ser conduz ine­
xoravelmente à síntese, na qual se encontram conservadas e superadas
- aujgehoben, isso é, absorvidas, segundo a tradução proposta por Or-
tega - a tese e a antítese. E cada estágio encontra sua verdade no seguin­
te. É essa a índole do processo dialético. Tentaremos expor as razões
dos primeiros momentos desse movimento dialético do ser.
A m archa da dialética • No final da Fenomenologia do espírito se
chega ao começo absoluto do filosofar: ao ser. Esse ser é o ser puro, o
ser absoluto. O ser é indefinível, porque o definido teria de entrar na
definição; contudo, podem-se dizer algumas coisas sobre ele. Segun­
do Hegel, o ser é o imediato indeterminado ( das unbestimmte Unmittel-
bare). Está livre de toda determinação no tocante à essência; simples­
mente é; não é isso ou aquilo.
Esse ser não tem nada que possa diferenciá-lo do que não seja
ele, já que não tem nenhuma determinação; é a pura indeterminação e
vacuidade. Se tentamos intuir ou pensar o ser, não intuímos nada; se
não fosse assim, intuiríamos algo (Etwas ) e não seria o ser puro. Quan­
do vou pensar o ser, o que penso é nada. Portanto, do ser se passa ao
nada. E o próprio ser que passa, não eu. O ser, o imediato indetermi­
nado, é de faio nada ; nada mais e nada menos que nada.
No ser, vimos essas duas características que Hegel nos clá no co­
meço: imediato e indeterminado. A característica da indeterminação é o
não ser nada', a da imediatez, ser o primeiro. Do ser fomos lançados ao
nada. Mas, que é o nada? Perfeita vacuidade, ausência de determina­
ção e conteúdo, incapacidade de ser separado de si mesmo. Pensar ou
intuir o nada é isto: intuir o nada; é o purc intuir, o puro pensar. Ve­
mos, pois, que intuir o nada e intuir o ser é a mesma coisa. O ser puro
e o nacla puro são uma única e mesma coisa. Em seu movimento inter­
no, o ser nos lançou ao nada, e o nada ao ser, e não podemos perma­
necer em nenhum dos dois. Que quer dizer isso?
Indagávamos sobre a verdade. Verdade é estar patente, estar des­
coberto, mostrar-se. Vimos que a maneira de ser do “ser" é a de deixar

352
H eg el

ih i ei c passar a ser “nada” ; e que o modo de ser do “nada” é.


............... poder permanecer em si e passar a ser ;‘ser” . A verdade é
i|i" m .ei passou ao nada e o nada passou ao ser. Isso é o devir ( wer-
,li M /h d, ytTEoOaO-
i Ic.sii dialética, repito, em cada estágio está a verdade do ante-
hhi ■ .1 Mia está no seguinte. Assim, a verdade do ser estava no nada,
■ i iln ii,ida, no devir. E a verdade do devir tampouco estará patente
tu I...... .1110, e assim prossegue, por sua inexorável necessidade onto-
I...... movimento do ser nos estágios ulteriores da dialética.
() problema do panteísmo • Hegel lembra três momentos ante-
...... tia história da filosofia: Parmênides, para quem o ser é o abso-
luiii. ,i unica verdade, diferentemente dos sistemas orientais (budis-
...... para os quais o nada era o princípio; Heráclito, que contrapõe a
i - i .ibsiraçâo o conceito total do devir, e o princípio da metafísica
iiii iIn-vai ex nihilo nihilfit. Hegel distingue dois sentidos nessa afirma-
i .ui um que é uma pura tautologia, e outro que supõe a identidade do
i 11 >iíí.igo mesmo e do nada consigo mesmo. Se o ser é sempre ser e
ii ii.n In ó sempre nada, não há devir; é o sistema da identidade (alusão
.1 '.(Iiclling). E essa identidade - diz Hegel - é a essência do panteísmo.
\i mos, pois, como Hegel se opõe a esse panteísmo pelo modo de en-
ii miei o movimento dialético do ser.
() ser tinha passado ao nada, e vice-versa. Com isso aparece o
1'ioMcma da contrariedade. Hegel fala de um certo desaparecer do ser
ui i nada e do nada no ser. Entretanto, como são dois contrários, o
Mii >(lo de ser que tem cada um é excluir o outro, suprimir o outro.
Limo a palavra alemã (aufheben) quanto a latma ( tollere) têm um sen-
iii lo de elevar; elevar-se como contrários num modo de ser superior.
' 'liando duas coisas são necessárias é porque se excluem; mas se ex-
' h ir in numa unidade, num gênero. A contrariedade transcorre numa
unidade, dizia Aristóteles. Esse modo que o ser e o nada têm de se ex-
■luir é o de se conservar na unidade superior que é o devir, em que
■visicm excluindo-se.
Por outro lado, embora Hegel rejeite o panteísmo da identidade
■ .11li me a passagem do nada ao ser, em outro sentido não está isento
(Ir panteísmo. Hegel não acredita que a realidade do mundo seja divi­

353
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

na, que pân seja theós; no entanto, de outro ponto de vista, nota-se
que o Deus de Hegel, o absoluto, só existe devindo; é, segundo sua
própria expressão, um Deus que se faz ( Gott im Werden ). A rigor, os
entes finitos não são diferentes de Deus, são momentos desse absoluto,
estágios de seu movimento dialético. E, por último, a criação hegeliana
não é tanto a posição na existência divina, como uma produção ne­
cessária na dialética do absoluto.
A ontologia hegeliana • Vemos, portanto, que a Lógica de Hegel,
que começa com o ser, isto é, com o começo absoluto do filosofar, é a
verdadeira ontologia. A Lógica deve ser entendida - diz Hegel - como
o sistema da razão pura, como o reino do puro pensamento. Esse rei­
no é a verdade. Portanto, conclui Hegel, pode-se dizer que o conteú­
do da Lógica é a exposição de Deus, tal como é em sua essência eterna, an­
tes da criação da natureza e de nenhum espírito finito. Depois desse pri­
meiro estágio virão, portanto, as outras duas partes da filosofia: a Fi­
losofia da natureza e a Filosofia do espírito.

4. A filosofia da natureza

A natureza • A filosofia grega entendeu por natureza a totalida­


de do que há, com um princípio ( arkhé) e um fim ( télos). Aristóteles
define a natureza como princípio do movimento. Logo, Physis é vir a
ser. Diz-se que algo é natural porque se move por si mesmo. Aristóte­
les diz que são naturais as coisas que têm em si mesmas o princípio
de seu movimento. Em contraposição a Platão, que afirmava que a na­
tureza é idéia, Aristóteles diz que a natureza de cada coisa é sua ousía,
sua arkhé, o princípio interno de suas transformações.
Em Hegel, a natureza terá um caráter muito determinado, como
um momento do absoluto. E esse momento do absoluto que é a natu­
reza vem caracterizado para nós como um ser para outro, um estar aí.
A natureza é o que é outro, o que não é si mesmo.
Os estágios • Essa natureza é um momento da Idéia, que tem
diferentes estágios:

354
W H egel

I I " ,\ m('(única. E nela três momentos:

' 1, e o tempo: o momento abstrato do estar fora.


Iii A imiti tia e o movimento: a mecânica finita.
i iA livre: a mecânica absoluta.

A /laica. E também três momentos:

\ i I i ,ii ;i da individualidade geral.


|u I i-.u ,i da individualidade particular.
i ' I i-.u ;i da individualidade total.

A física orgânica, com três momentos também:

•\i A naiureza geológica.


Mi A i i.itureza vegetal.
i ' i > organismo animal.

Acjui termina a evolução dos estágios da natureza.

,'j. A filosofia do espírito

C) espírito em Hegel • Vimos o sentido que tinha a physis na Gré-


i ui A filosofia grega se perguntava: Que é o que é? = que é a nature-
i ' Não pergunta sobre o espírito. Essa idéia surgirá de modo insisten-
ii embora extrafilosófico, em São Paulo (nveu|ioO e logo depois na fi-
li ivilia de Santo Agostinho: spüitus sive animus.
llspírito em Hegel é ser para mim, mesmidade. Há um momento
11.1 evolução do absoluto que é o espírito, e definimos esse espírito
■i 'iiio a entrada em si mesmo, a mesmidade, o ser para si. E Hegel elabo-
1.1 um novo esquema do espírito.
Os estágios do espírito • Vamos indicar a articulação dialética dos
i Mágios do espírito, para examinar depois brevemente os momentos
mais importantes:

355
H is t ó r ia da f il o s o f ia

I o Espirito subjetivo.

A) Antropologia: a alma.
B) Fenomenologia do espírito: a consciência.
C ) Psicologia: o espírito.

2? Espírito objetivo.

A) O direito.
15) A moralidade.
C) A eticidade.

3 ° Espírito absoluto.

A) A ane.
15) A religião revelada.
C) A lilosoíia.

a ) O espírito subjetivo

O espírito subjetivo parece ser algo bastante claro. É espirito e


subjetivo; portanto é sujeito, um sujeito que se sabe a si mesmo, que
é si mesmo, que tem interioridade e intimidade. Esse espírito subjetivo
pode ser considerado na medida em que esteja unido a um corpo
numa unidade vital, enquanto seja uma alma. Nesse momento o espí­
rito é alma, e seu estudo estará na antropologia. Contudo, esse espírito
não é só uma alma; ele se sabe, e no curso de todos os graus da cons­
ciência vai chegar ao saber absoluto; é o espírito enquanto se sabe. E
assim se desenvolve a fenomenologia do espírito, que vai estudar até o
momento de chegar ao ser, ao saber absoluto. Por último, não é só
consciência: sabe e quer. Hegel chama esse momento de espirito, e seu
estudo é a psicologia. Assim se delimita o quadro do que é o espírito
subjetivo.

356
H eg el

b) 0 espírito objetivo

O espírito objetivo nos coloca uma dificuldade nova e mai;, gia


vi', que nasce de seu próprio conceilo: espírito (ser para si, mesnmla
ili-). mas ao mesmo tempo objetivo, um espírito que está ai, que nao
ic in sujeito. Não é natureza, mas tem o caráter da natureza de “ estar
,u' O fato de não ter sujeito parece estar em contradição com seu
■nnceito de espírito.
O espírito objetivo compreende três formas, cada vez mais ele-
\,ulas: o direito, a moralidade e a eticidade (ética objetiva ou Sittlichkeit,
ilili-rente de Moralität).
O direito • O direito se funda na idéia de pessoa. Pessoa é um
i me racional, um ente com vontade livre. O direito é a forma mais
■Irmentar das relações entre pessoas. O que não é pessoa é proprieda-
i Ir da pessoa. É o que caracteriza o direito; eni seu conceito não entra
111'stado. O direito pode ser infringido e uma pessoa não ser tratada
i nino pessoa, mas como coisa. Foi o caso, por exemplo, da escravi­
dão. “Todos os homens são fins em si mesmos” , já dizia Kant. O ho-
nirin nunca pode ser meio para nada, coisa: é fim em si mesmo. Por
i'.so, para a transgressão da ordem jurídica Hegel propõe uma pena,
(|iu- nada mais é senão a volta a esse prévio estado de direito. O senti-
' In da pena em Hegel é voltar a tratar a pessoa como pessoa. Definiti­
vamente, quem tem direito à pena é o penado. O delinqüente tem di-
iciio a ser castigado, a ser colocado dentro do direito, a ser tratado,
portanto, como pessoa.
A moralidade • Há um segundo estágio, que é a moralidade. Em
I legel, a moralidade está fundada nos motivos. São os motivos que de­
in minam a moralidade de uma ação. Isso a subjetiva e faz com que não
irnha objetividade nenhuma, e é por isso que Hegel translada o desen­
volvimento da idéia de moralidade para a eiicidade ou ética objetiva.
Nrla se vê o desenvolvimento da idéia moral nas diferentes unidades
ilr convivência: a família, a sociedade e, sobretudo, o Estado.
A eticidade • A eticidade é a realização do espírito objetivo, a ver­
dade do espírito subjetivo e do espírito objetivo. Como espírito ime­
diato ou natural é a família; a totalidade relativa das relações dos indi-

357
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

vícluos como pessoas independentes é a sociedade, e o espírito desen­


volvido numa realidade orgânica é o Estado; este é o momento que
mais nos interessa.
O Estado • O Estado é a forma plena do espírito objetivo. Heg
talvez tenha sido o primeiro a elaborar uma ontologia do Estado. O
Estado é uma criação da razão, e é a lorma suprema em que se desen­
volve a idéia de moralidade. Hegel não o considera do modo um tan­
to vazio como o considera Rousseau. É uma realidade objetiva; é uma
consLrução e tem uma hierarquia ontológica superior. No entanto, ne­
nhum Estado concreto realiza plenamente a idéia do Estado. Esta só se
realiza no desenvolvimento total da história universal. A história uni­
versal é o desdobramento da dialética interna da idéia do Estado.
A hisiória universal • Algumas características de Hegel podem
ser mais bem percebidas em suas Lições sobre filosofia da história uni­
versal - um dos livros mais geniais que a Europa produziu - que em
qualquer outra de suas obras. O sistematismo de Hegel é rigoroso e
fechado. Sistema em Hegel é algo muito concreto; é a maneira como a
verdade existe, de modo tal que nenhuma seja independente, que nada
seja verdade por si só, mas que cada verdade esteja sustentada e fun­
dada por todas as demais. Nisso consiste a estrutura sistemática da fi­
losofia, diferentemente de uma estrutura que poderíamos chamar de
linear, por exemplo na matemática. Esse sistematismo leva Hegel a
deixar de lado algumas coisas e às vezes a deformar a realidade.
Hegel tenta explicar a evolução dialética da Humanidade. A his­
tória é a realização do plano divino, uma revelação de Deus. Weltges-
chichte, Weltgericht: a história universal é o juízo universal. Para Hegel
todo o real é racional e todo o racional é real. Por isso sua dialética é
lógica. A história humana é razão, e razão pura. Conseqüentemente, a
filosofia da história hegeliana será a tentativa de explicar toda a histó­
ria, como um saber absoluto que não deixa nada de fora, que inclui o
próprio erro enquanto erro.
Hegel distingue quatro momentos na evolução histórica dos po­
vos, que assimila às etapas da vida humana: Oriente (a infância), com
a forma da relação patriarcal; Grécia (a mocidade), ou seja, “a bela li­
berdade” ; Roma (a idade viril), na forma de universalidade que é o

358
I Ieg h

Império Romano; e os povos romano-germânicos (a ancianidadc),


■mu ,i contraposição de um império profano e um império espiritual.
I li-grl vê na história o progresso da liberdade: no Oriente há apenas
um homem livre, que é o déspota; na Grécia e em Roma, alguns (os ci-
d.idaos); no mundo moderno cristão, todos os homens.
Hegel fazia sínteses grandiosas da história universal: a índia ou o
■.unho, Grécia ou a graça, Roma ou o mando... A obra de Hegel é até
I ii ■
|f a tentativa fundamental de fazer uma filosofia da história. Depois
i li is ensaios de Santo Agostinho (De civitate Dei), de Bossuet (Discours
mm l’histoire universelle) e de Vico (La scienza nuova), o livro de Hegel
,il torcia com grandeza genial o tema da história. No entanto, nosso tem­
po terá de questionar seriamente dois pontos, problemáticos em He-
i;i'l. Um deles é a denominação de espírito objetivo, aplicado ao Estado,
.1 história etc. O espírito é a entrada em si mesmo, e depois aparece
um espírito sem sujeito. Ocorre algo semelhante com a vida social, que
imo é de ninguém, embora a vida se caracterize por ser minha vida, a
vida de alguém. Aqui se vislumbra uma contradição. E o segundo pon-
i<> inquietante é entender a evolução histórica da Humanidade como
nizão pura, como dialética lógica. Até que ponto é assim? (ver Ortega
y Gasset: La "Filosofia de la histona” de Hegel y la historiologia).

c) O espírito absoluto

O espírito absoluto é uma síntese do espírito subjetivo e do espí­


rito objetivo, e também da natureza e do espírito. Para Hegel, a iden­
tidade da natureza e do espírito não é, como para Schelling, uma va­
cuidade, uma indiferença, pois ambos necessitam de um fundamento
i omum. Esse fundamento é o fundamento de todo o resto, o absoluto,
que é em si e para si. E Hegel o chama de espírito absoluto.
Vimos que a questão é encontrar um fundamento comum que
laça com que algo seja natureza e com que algo seja espírito. Esse fun­
damento será a realidade radical. Contudo, não se entende bem por
que deve ser chamado de espírito, já que os espíritos eram tradicio­
nalmente os entes que entram em si mesmos. Esse absoluto é o pensar
sistemático em que cada coisa é verdade em função do sistema. Siste­

359
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ma é - agora é possível entender plenamente - a articulação que cada


coisa tem em seu ser com o espírito absoluto. Não se trata de uma coi­
sa absoluta, mas do absoluto, que é o que funda as outras coisas. O ab­
soluto não é um conjunto, do mesmo modo que o mundo não é o
conjunto das coisas, mas sim aquilo onde as coisas se encontram (um
onde que não é primariamente espacial).
O absoluto e o pensar • O absoluto é presente a si mesmo; e es
ser presente a si mesmo é o pensamento. O ser presente a si mesmo é
o ser patente, a alétheia. Não se trata de, partindo do pensamento, che­
gar a possuir esse absoluto, porque o absoluto é patente a si mesmo,
e essa imediatez do absoluto é o pensamento. Enquanto eu não pen­
so isto, não é um ser. O ser atual das coisas é o pensamento. Ser não é
ser latente, mas ser patente, alétheia, verdade.
Toda tentativa de definir o absoluto equivale a sair dele; é preci­
so encontrar-se imediatamente no absoluto; é o ser puro. Como já vi­
mos, o ser puro, quando eu o penso, é a absoluta negação. A tentativa
que o absoluto faz de evitar o nada para manter-se no ser é o devir. O
absoluto só pode existir devindo. Em seu devir, o espírito absoluto
vem a ser algo. É o que na Grécia se chamava o ser eni si.
Nada se basta a si mesmo, ser algo é vir a ser algo, e é supor que
houve um princípio disso. A verdade de algo é ser em si o que já era
em princípio absoluto. A isso se chamou essência. A essência é o que
torna possível que uma coisa seja. E apreender-se absoluto é ser abso­
luto, conceito. O absoluto, que é a fonte de todo fazer, devém por si;
por isso a Idéia é liberdade. E, por último, saber-se o absoluto é a filoso­
fia. A filosofia não é pensar sobre o absoluto, mas o absoluto enquanto
se sabe (cf. Zubiri: Hegely el problema metafísico).
Os estágios do espírito absoluto • Como vimos, os três está­
gios do espírito absoluto são a arte, a religião revelada e a filosofia. Na
arte, trata-se da manifestação sensível do absoluto; a idéia absoluta é in­
tuída. Na religião, em contrapartida, essa idéia é representada. A filoso­
fia da religião de Hegel, em cujos detalhes não podemos entrar aqui,
é extremamente importante. Hegel se opõe à religião do sentimento de
Schleiermacher; e dele surge uma importante corrente que dominou
a teologia e a história da religião no século XIX. Em Hegel, o argu-

360
H eg el

nn-iiio oncológico recebeu uma nova interpretação, qui' llic devolvi


•.ilor, depois da crítica kantiana. Basta indicar que distingiu- eniu n
|Miiiio de vista do entendimento - desde o qual aquele seria válido c
h ponto de vista da razão. A relação do pensamento com o absolnio
pnmite a Hegel dar um novo senlido à prova ontológica, que assim
i outinua desempenhando seu papel na história da filosofia.
O último estágio do espírito absoluto é a filosofia. Nela, a idéia já
não é intuída ou representada, mas sim concebida, elevada a conceito.
A lilosofia é o saber-se a si mesmo do absoluto; não é um pensar sobre
o absoluto, mas a forma explícita do próprio absoluto. É por isso que
,i história da filosofia pertence à filosofia por essência (Zubiri).
Hegel é o primeiro a fazer uma efetiva História da filosofia. Inter-
pivia-a de modo dialético, como uma série de momentos que se con-
iTvam e se superam. Hegel acredita que com ele a filosofia chega à
■.lia maturidade; que com ele alcança sua conclusão; é um final: Hegel
ii-in clara consciência de que com ele culmina e se fecha uma época,
,i Idade Moderna. Por isso, ao término de sua História da filosofia pode
lazer um balanço gigantesco e escrever um Resultado que tem uma in­
comparável grandeza. “A filosofia é a verdadeira teodicéia” , diz. E
agrega estas palavras, nas quais pulsa toda a augusta gravidade da his-
loria da filosofia, expressa como nunca o foi, nem antes nem depois
île Hegel: “Até aqui chegou o espírito universal. A última filosofia é o
resultado de todas as anteriores; nada se perdeu, todos os princípios
(oram conservados. Esta idéia concreta é o resultado dos esforços do
espírito por quase 2.500 anos (Tales nasceu em 640 antes de Cristo),
ile seu trabalho mais sério para se fazer objetivo a si mesmo, para se
conhecer:

‘Tantae molis erat, se ipsam cognoscere mentem.’”

361
V. O PENSAMENTO DA ÉPOCA ROMÂNTICA

Desde a época de Kant até a primeira metade do século X IX, há


inii.i intensa atividade intelectual na Alemanha, da qual estudamos o
i .11aio mais profundamente filosófico - Kant, Fichte, Schelling, He-
i I Ao mesmo tempo há outros filósofos de estatura um pouco me­
in H. que no entanto representam contribuições de sumo interesse à fi-
I. r.níia e a outras disciplinas, e uma série de pensadores que merecem
M-i registrados, ainda que brevemente.
Em primeiro lugar, no século X V III aparecem dois movimentos,
um sobretudo literário e outro religioso, que colocam em primeiro pla-
i ii M i sentimento e a vida afetiva: o chamado Sturm und Drang (tormen-
i,i i- impulso) e o pietismo. No final desse século e começo do X IX apa-
h tc outro movimento, que é o romantismo, procedente, sobretudo, do
I ii imeiro dos mencionados. Ao mesmo tempo se produz um extraordi­
nário florescimento dos estudos históricos, que leva à formação do nú-
i Iro conhecido como Escola Histórica. Por outro lado, a ciência natural
.ti aba de constituir-se com a eletricidade (Galvani, Volta, na Itália; Fa-
uday, na Inglaterra) e com a biologia na França (Buffon, Condillac,
I imarck). E por último, na filosofia, ao lado das grandes figuras já es-
mdadas, encontramos principalmente os nomes de Schleiermacher e
liopenhauer, e também os de Franz von Baader, Jacobi, Krause. Ten­
taremos caracterizar rapidamente essas correntes de pensamento.

1. Os movimentos literários

Como reação ao espírito racionalista e frio da Aufklärung pro­


duz-se na Alemanha uma nova literalura. Suas principais figuras não
H is t ó r ia da f il o s o f ia

estão isentas de idéias filosóficas e de um profundo interesse pelo


idealismo. Destaca-se Goethe, cuja longa vida (1749-1832) lhe permi­
tiu participar de todas as formas, do classicismo ao romantismo, e que
loi de uma genialidade literária incomparável, somada a uma fecundi­
dade notável para o pensamento científico e estético. Também Schiller,
Hõlderlin, Novalis, Herder, e os mais estritamente românticos, Tieck,
os dois irmãos Schlegel, os Humboldt, até Heine.
O romantismo significa, como vimos, uma estética do sentime
to. Além disso, há nele uma peculiar emoção do passado. Assim como
o Iluminismo ao pensar o passado se voltou para o mundo clássico,
para Grécia e Roma, os românticos têm uma manifesta preferência pela
Idade Média, com a conseqüente valorização - em primeiro lugar ar­
tística e histórica - do catolicismo, que os aproxima da Igreja romana.
Em muitos casos se produz também uma efetiva aproximação religio­
sa; mas sempre, pelo menos, uma admiração pelo culto católico, pela
continuidade do Pontificado, pela esplêndida realidade histórica que
é - embora só secundariamente - a Igreja. Esse interesse pelo passado
medieval os leva a cultivar também o estudo da história.

2. A escola histórica

Vimos que no século X V III francês (Voltaire, Montesquieu, depois


do antecedente de Bossuet) a história deu um passo decisivo. A isso
se soma a contribuição de alguns ingleses (Hume, Gibbon), e tudo
isso é recolhido pela Escola Histórica alemã. Distinguem natureza cle
espírito, e este último é interpretado historicamente. A história geral, a
do direito, a das religiões, a lingüística, a filologia clássica, românica
etc. são intensamente cultivadas por uma série de fecundos homens
de ciência. Savigny, Bopp, Niebuhr. Monimsen mais tarde, realizam um
importantíssimo e volumoso trabalho. A Escola Histórica cria a técni­
ca documental, o estudo das fontes, embora depois lhe falte a cons­
trução intelectual suficiente e tenda a ficar na acumulação de dados.
É particularmente claro o exemplo da filologia clássica, que reuniu
um imenso material erudito mas não soube dar-nos uma visão ade­
quada da Grécia. A isso reagiu energicamente Hegel, talvez pecando
por um excesso de construção lógica da história.

364
O PENSAMENTO DA ÉPOCA ROMÂNTICA

Schleiermacher e a filosofia da religião

Personalidade de Schleiermacher • Friedrich Daniel Schleier-


iii.ii her nasceu em 1768 e morreu em 1834. Formou-se nos estabele-
. um mos dos irmãos morávios, e sua principal atividade foi sempre a
l'ii e.ição e o estudo da teologia e da filosofia da religião. Foi durante
' mos anos pregador na Charité de Berlim, depois lecionou em Halle,
i pnsieriormente na Universidade berlmense, até sua morte. Suas
olmis mais importantes são Kritik der Sittenlehre (Crítica da moral),
I ililk, Der christliche Olaube (A fé cristã), Hermeneutik e os discursos
l 'hi-i die Religion (Sobre a religião). Também fez uma esplêndida tra-
ilii(,Ao de Platão.
A religião • Schleiermacher foi durante vários anos a figura mais
. h Macada da teologia protestante alemã. Hegel se opôs à interpretação
111ir Schleiermacher fazia da religião, e desde então a filosofia da reli-
i'i,io ficou fortemente marcada pelas concepções de ambos.
Schleiermacher não admite nem uma teologia racional, nem uma
irologia revelada, nem mesmo uma teologia moral como a kantiana,
hindada nos postulados da razão prática. O objeto da especulação de
vlileierm acher não é tanto Deus como a religião; mais que teologia,
l.i ■lilosofia da religião. Essa religião é interpretada por ele como um
•.<■11li mento. É a filosofia do sentimento religioso. Em que consiste esse
'.ciuimento? É o sentimento de absoluta dependência. O homem se sen-
ie necessitado, insuficiente, dependente. Dessa submissão procede a
■onsciência de criatura que o homem tem. Com isso, o conLeúdo dog-
inaiico fica, na verdade, desvirtuado e relegado a um segundo plano,
r a religião se torna puro assunto de sentimento. Schleiermacher es­
quece o sentido fundamental da religio como religatio e com isso alte-
■;i sua significação fundamental.
Teólogos posteriores • Ao longo do século X IX se produz na
Alemanha uma intensa atividade teológica, parcialmente influenciada
por Schleiermacher, mas que segue principalmente as pegadas de He-
>;cl, em particular a chamada escola de Tübingen. Um dos mais im-
I lortantes teólogos desse tempo é Christian Baur. David Strauss, ape­
sar de sua maior superficialidade, alcançou grande fama. A teologia

365
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

católica, por ouiro lado, conta na Alemanha com a grande figura de


Mathias Josef Scheeben, morto em 1888, cuja obra capital, Die Myste­
rien des Christentums, é uma extraordinária contribuição à teologia es­
peculativa.

4. Derivações do idealismo

No último terço do século X V II1e na primeira metade do X IX, flo­


rescem vários pensadores de interesse, ainda que um tanto obscureci­
dos pelos grandes filósofos do idealismo alemão, cuja influência rece­
bem em maior ou menor medida, e sobre os quais a exercem igualmen­
te. Alguns deles se apõem ao idealismo, mas todos se movimentam no
âmbito dos seus problemas e estão condicionados pela posição filosófi­
ca da época. Consideremos brevemente os de maior importância.
Herder • Johann Gottfried Herder (1744-1803), parcialmente
incluído no ambiente da Aufklärung, já em transição para o pensa­
mento romântico, é um dos pensadores que iniciam a compreensão
da realidade histórica no século X V III. Herder leva em consideração
as diferenças entre os povos e a influência dos fatores geográficos, mas
considera a humanidade uma totalidade submetida à evolução, e seu
desideratum era “uma história da alma humana, por épocas e por po­
vos” . Seus principais escritos são: Auch eine Philosophie der Geschichte
zur Bildung der Menschheit (Também uma filosofia da história para a
formação da humanidade), de 1774, e Ideen zur Philosophie der Ges­
chichte der Menschheit (Idéias para a filosofia da história da humanida­
de), de 1784-91.
Jaco b i • Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819), amigo de Goe­
the na juventude, representante do princípio do sentimento religioso,
se opõe ao racionalismo em matéria de religião (Mendelssohn) e ape­
la à fé, assimilada por ele à sociedade: numa e noutra nasceu o homem
e nelas tem de permanecer. Jacobi fez uma critica do kantismo e de
alguns pontos da filosofia de Schelling. Seus escritos mais importan­
tes são: David Hume über den Glauben, oder Idealismus und Realismus
(D.H. sobre a fé, ou idealismo e realismo), Von den göttlichen Dingen und
ihrer Offenbarung (Das coisas divinas e sua revelação).

366
}
r
O PENSAMENTO DA ÉPOCA ROMÂNTICA

llorbart • Johann Friedrich Herbari. (1776-1841), contemporâ-


ii. n d,is grandes figuras do idealismo alemão, permeado, a coniragos-
i" pui' seu espírito, opõe-se à tendência dominante em sua época e,
i|i. ii.ulo no pensamento do século X V III e, certamente, em Leibniz,
l.i sua filosofia pessoal, menos brilhante que a de seus coetâneos
I n liu-, Schelling ou Hegel, com uma pretensão de realismo. Herbart
■ icveu Lehrbuch zur Einleitung in die Philosophie (Manual de Introdu­
ziu ,i l ilosofia), Hauptpunkte der Logik (Pontos principais da lógica),
I hiu/rtpunkte der Metaphysik (Pontos principais da metafísica), Allge-
nii me Metaphysik (Metafísica geral), Theoriae de attractione elemento-
i um principia metaphysica, Lehrbuch zur Psychologie (Manual de psico-
li i)',ia), Psychologie als Wissenschaft (Psicologia como ciência), Allgemei­
ne praktische Philosophie (Filosofia prática geral), Allgemeine Pädagogik
UVdagogia geral).
Para Herbart, a filosofia é a elaboração dos conceitos e se exerce
Mibre um conhecimento primário que é a experiência; conseqüente-
II u nte, tem de partir do “dado” e do que se impõe a nós, seja matéria
nu forma. As matérias e as formas da experiência colocam problemas:
ii ilado é só um ponto de partida, necessário para que os problemas
sejam reais, e obriga a filosofar para tornar compreensível a experiên-
■i.i, que por si mesma não o é. Metaphysica est ars experientiam recte
intelligendi. Deve-se passar de um conceito-problema para um concei-
io-solução, e para isso intervêm certos modos contingentes de consi­
derar as coisas, que Herbart chama zufällige Ansichten ou modi res con-
siderandv, assim se chega ao método de “integração dos conceitos” .
Herbart distingue entre o que é e o ser ele mesmo, o quale que é
o ser. Este último é entendido como posição absoluta, independente
de nós; é o que Herbart chama de “Real” , ou seja, o ente, donde sua
tentativa de retorno ao realismo; a doutrina dos Reais se funda na
leoria leibniziana das mônadas. Do Real como absoluto só se pode
saber que é, que é simples, que não é quantidade e que é cabível a
multiplicidade do ser, embora não no ser, isto é, que pode haver um
ou muitos Reais. Contudo, considerado segundo nossos modos de
pensar, se transforma em imagem, com aspectos contingentes que não
contradigam essas características essenciais: o que o Real é para nós

367
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

- Herbart acaba caindo no idealismo. O eu é um dos Reais, e na se­


qüência dessa idéia Herbart desenvolve sua psicologia, que é, como
sua pedagogia, inielectualista: a única função originária da alma é re­
presentar. A ética, por último, é interpretada como uma Geschmacks-
lehre, uma doutrina do gosto ou ciência da sensibilidade estimativa;
o bem é a qualidade daquilo que nos força à aprovação, assim como
o mal, à desaprovação; Herbart está muito próximo da idéia de valor,
que amadureceria um século depois; o bem não se define nem se in­
venta: reconhetoe-se, se aceita, se estima ou aprova; a ética aparece
no interior de um âmbito estético, relativa a uma beleza moral dife­
rente da música ou da plástica; as idéias práticas são as relações fun­
damentais estimáveis, as valorizações exemplares; essas idéias são a
liberdade íntima, a idéia da perfeição, a idéia da benevolência, a idéia
do direito e a idéia da compensação ou eqüidade. (Cf. Ortega: O.C.,
V I, 265-291.)
Krause • Karl Chrisüan Friedrich Krause (1781-1832), perten­
ce ao grupo dos pensadores idealistas mais jovens. Com fortes raízes
religiosas e éticas, teve relativa originalidade e se esforçou por conci­
liar o teísmo com as tendências panteístas dominantes em sua época;
seu panenteísmo afirma que todas as coisas são em Deus. Krause insis­
te no destino e no valor da pessoa, entendida de modo moral, e desse
ponto de vista interpreta o direito e a sociedade; a humanidade é uma
federação de associações autônomas, de fim universal ou particular.
As principais obras de Krause são: Entw urJ des Systems der Philosophie
(Esboço do sistema da filosofia), Das Urbild der Menschheit (O ideal da
humanidade), System der Sittenlehre (Sistema de ética), Vorlesungen
über das System der Philosophie (Lições sobre o sistema da filosofia),
Vorlesungen über die Grur.dwahrheiten der Wissenschaften (Lições sobre
as verdades fundamentais das ciências). Krause deixou muitas obras
inéditas, que foram publicadas em parte. Apesar do estilo confuso e
algo nebuloso de seus escritos, exerceu uma influência considerável.
Seu sistema foi desenvolvido por alguns discípulos alemães, como
Roeder e Leonhardi; mas sobretudo na Bélgica, com Ahrens e Tiber-
ghien, e na Espanha, onde o krausismo teve uma vitalidade inespera­
da, que interessa registrar.

368
r O PENSAMENTO DA ÉPOCA ROMÂNTICA

*•>>■■ .li l Km • Don julián Sanz dei Rio (1814-69) loi o lunda
..........Ili.-,iii.1 principal da escola krausisia espanhola. Balnics c flr

i.i■ni|ii u.iMoos, embora Sanz dei Rio tenha vivido vinte e um anos
mu ii i ns dois nomes filosóficos mais importantes da Espanha no
• ui,, -.| 1in 1843 foi nomeado catedrático de História da Filoso-
11.1 l i i huwrsidade de Madri e enviado para realizar estudos na Ale-
iii mli i i ui I lcidelberg foi discípulo de Leonhardi e Roeder e morou
*. <■i ,i (11 Weber, seu professor de História, onde foi companheiro de
....I hi volta à Espanha, foi inspirador de um núcleo filosófico de

H. ui i vitalidade, que exerceu influência na vida intelectual e políti-
. .1 ■1111.iini- muito tempo, ao longo de quase todo o século. Apesar dis-
■ii valor filosófico é escasso; na hora de entrar em contato com a
iii ' nli.i alemã, os krausistas escolheram um pensador secundário,
i.<iiiii >iiu-nos fértil que as grandes figuras da época. Talvez nessa pre-
ilili i io de Sanz dei Rio tenha influído o caráter religioso e moral da
nfi "li.i de Krause. O melhor historiador do krausismo espanhol,
I n n r Jobit1, o interpreta como um movimento pré-modernista, pre-
■ui -ui no século X IX da corrente heterodoxa que surgiu em alguns
i'Mipos católicos por volta de 1900. Os escritos de Sanz dei Rio tive-
i 1111 rscassa difusão fora do núcleo de seus discípulos, em parte por
.... .. ilo obscuro e ingrato, mas também pelas dificuldades reais do
■ii pensamento, que significa um considerável esforço filosófico, de
■Irliva importância dentro das possibilidades espanholas de sua épo-
■a As principais obras de Sanz dei Rio, que seu autor apresentava
. nino exposições de Krause, são Ideal de la Humanidad para la vida;
I i-t i iones sobre el sistema de filosofia analítica de Krause; Sistema de la fí-
h^ofía: Metafísica: Primera parte, Análisis. - Segunda parle, Síntesis; Aná-
IIMS dei pensamiento racional; Filosofia de la muerte; El idealismo absoluto.
O socialismo •A influência dos idealistas alemães, sobretudo de
I li'gel, e também de Ludwig Feuerbach (1804-72), hegeliano, críLi-
i o da teologia no sentido de um aniropologismo ateu, e David Frie-

1. Les krausisles, par l’abbé Pierre Jobit (Paris-Bordeaux, 1936). Cf. meu ensaio El
prnsadorde lllescas, em Ensayos de teoria (Obras, IV). Veja-se também El krausismo e.spa-
rtoi, dejuan López-Morillas (México, 1950).

369
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

drich Strauss, somada à de Darwin, se exerce sobre os teóricos do so­


cialismo alemão - não esqueçamos as raízes diferentes do socialismo
francês, contemporâneo ou ligeiramente anterior. Os mais importan­
tes são Karl Marx (1818-83), Friedrich Engels (1820-95) e Ferdinand
Lassalle (1823-64). Os dois primeiros publicaram, em 1848, o Manifes­
to comunista e são os fundadores da Internacional. Marx se doutorou
com uma tese sobre Demócrito e Epicuro e publicou depois Thesen
über Feuerbach, Die heilige Familie (A Sagrada Família), Misere de la
philosophie (contra a Philosophie de la mis'ere de Proudhon), Zur Kritik
der politischen Oekonomie e, sobretudo, Das Kapital. Lassalle escreveu
Die Philosophie des Herakleitos des Dunklen von Ephesos (A filosofia de
Heráclito, o Obscuro de Êfeso) e System der erworbenen Rechte (Sistema
dos direitos adquiridos).
O ponto de partida desses pensadores é a idéia de dialética, t
mada de Hegel. Segundo Engels, essa dialética era “especulativa” ,
idealista; partia do puro pensar, mas, a seu ver, deveria partir dos
“mais tenazes fatos” (von den hartnäckigsten Tatsachen). Como diz iro­
nicamente Engels, citando a Lógica hegeliana, um método que “ia do
nada para o nada passando pelo nada” (von nichts durch nichts zu nichts
kam) não tinha lugar ali. Era necessário submeter essa dialética a uma
crítica penetrante, embora Marx e Engels reconhecessem “o enorme
sentido histórico” em que se fundava. Essa grandiosa concepção da
história, que fez época, “era o pressuposto teórico direto da nova in­
tuição materialista” .
Em suas mãos, a dialética idealista de Hegel se transforma numa
dialética material, que os leva ao que se costuma chamar - um tanto
impropriamente - de “interpretação materialista da história” e que é
antes uma interpretação econômica dela. A economia política se trans­
forma assim na disciplina fundamental - Engels, por sua vez, comen­
tou com muita agudeza o tratado de Marx Zur Kritik der politischen
Oekonomie. A economia política começa com a mercadoria (W are), com
o momento em que os produtos são mutuamente trocados. O produ­
to que aparece na troca é a mercadoria. E é mercadoria simplesmente
porque à coisa, ao produto, se enlaça uma relação entre duas pessoas
ou comunidades, entre o produtor e o consumidor, que já não estão
unidos na mesma pessoa.

370
O PENSAMENTO DA ÉPOCA ROMÂNTICA

1'Sle é o núcleo da concepção marxista: “A economia não i raia de


■i T .a s , mas de relações entre pessoas e em última instância cntiv c ia s

< porém essas relações estão sempre ligadas a coisas c apainrm


iiDiio coisas.” Nota-se aqui como se insinua, sem clara jusiilii açao, a
■ nisificação” de um pensamento que originariamente destacava ;\s re
I.i<lies pessoais. Marx insistiu, com acerto e indiscutível genialidade,
li.i importância do fator econômico na história, mas depois pretendeu
linida-la integralmente nele e considerar, mediante uma construção
.iihiirária e insustentável, todo o restante como uma superestrutura da
ri iinomia. A cultura, a religião, a filosofia e a vida inteira do homem se
i -1ilicariam pelo componente econômico dela, que, embora muito
irai, é apenas parcial, e, embora imprescindível, dentro de uma pers­
pectiva íntegra é secundário.
Por outro lado, a ideologia política ligada a essa doutrina filosófi-
. a levou a uma substantivaçâo da idéia de “classes” sociais, à fixação de
dois tipos, “burguês” e “proletário” , construções relativamente aceitá­
veis para explicar a situação social na Europa nos começos da era in­
dustrial, mas absolutamente insuficientes quando aplicadas a outras
i |K)cas ou a outros países, e que exercem uma violenta deformação da
realidade, que não se ajusta aos esquemas que lhe são impostos.
A importância de Marx como economista é muito grande, e ain­
da maior é sua significação política como fundador de um dos maio-
i es movimentos de massas da história; contudo essa importância não
e filosófica. O chamado “pensamento marxista” posterior esteve cir­
cunscrito a uma disciplina muito estreita, a ponto de constituir uma
lorma de escolástica em que as autoridades filosóficas mais constante­
mente citadas foram, além de Marx e - secundariamente - Engels, Le­
nin e Stalin (este último apagado subitamente depois de sua morte).
Atualmente, as figuras de maior interesse entre os pensadores marxis-
las são o húngaro Gyõrgy Lukács (n. em 1885), autor de Die Theorie
ilcs Romans, Geschichte und Klassenbewusstsein, Essays über den Realis­
mus, Die Zerstörung der Venunft, e o alemao Ernst Bloch, atualmente
professor na Alemanha ocidental: Das Prinzip Hoffnung, Naturrecht
und menschliche Würde.

371
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

O materialismo dogmático e o princípio do ateísmo professad


pelo marxismo deram a esse movimento um caráter sumamente rígi­
do e com traços quase religiosos, que não têm muito a ver com o nú­
cleo originário do pensamento de Marx, principalmente o de sua ju ­
ventude, estudado hoje com maior interesse e independência do que
as formas ditadas por uma rígida organização alheia à atitude de pere­
ne inquietude, busca e justificação, que é própria da filosofia.

5. Schopenhauer

Personalidade • Arthur Schopenhauer nasceu em Danzig em


1788 e morreu em Frankfurt em 1860. Era filho de um rico comer­
ciante e de uma mulher inteligente e culta, romancista. Depois de ini­
ciar-se no comércio, estudou filosofia em Gõttingen e Berlim. Sua lese
de doutorado foi seu livro Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zu-
rdchenden Crunde (Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão sufi­
ciente). Em 1818 lerminou sua principal obra, Die Well ais Wille und
Vorstellung (O mundo como vomade e representação), que teve mui-
lo pouco sucesso. A partir de 1820 foi privatdozent em Berlim e quase
não leve ouvintes para seu curso, que anunciou para a mesma hora
do de Hegel. Por ocasião da epidemia de cólera de 1831, Schopen­
hauer abandonou Berlim para fugir dela e se estabeleceu definitiva­
mente em Frankfurt; assim escapou da doença, enquanto Hegel mor­
ria. Posteriormente escreveu outros livros que obtiveram mais suces­
so: Über den Willen in der Natur (Sobre a vontade na natureza), Die
beíden Crundprobleme der Ethik (Os dois problemas fundamentais da
Ética), Aphorismen zur Lebensweisheit (Aforismos para a sabedoria da
vida), Parerga und Paralipomena.
Durante toda sua vida, Schopenhauer manteve uma áspera hos­
tilidade contra os filósofos idealistas pós-kantianos, especialmente
Hegel, a quem insulta, às vezes com engenho, e com freqüência com
trivialidade e falta de sentido. Sua falta de sucesso e de glória como pro­
fessor e como escritor acentuou nele um pessimismo mordaz e agres­
sivo, que caracteriza sua filosofia. Schopenhauer teve vivo interesse
pela arte, música e literatura. Admirou e traduziu Gracián, de cujo es-

372
O PENSAMENTO DA ÉPOCA ROMÂNTICA

ui" miencioso e aforístico gostava. Os teóricos que mais o influen-


■i li.mi loram Platão, Kant, os idealistas pós-kantianos - embora se
11|iiI'.i'ssc a eles - e, por outro lado, o pensamento hindu e o budismo.
' "in ,i velhice, e depois de sua morte, a influência de Schopenhauer
■-iiiuUui-se bastante, mas não se exerceu tanto pelas vias da filosofia
ii('niiisa como pelas da literatura, da teosofia etc.
O inundo como vontade e representação • O título da grande
uiii.i de Schopenhauer contém a tese central de sua filosofia. O mun-
. 111 <
■um “ fenômeno” , uma representação; Schopenhauer não distingue
ii iiiiiiK-no e aparência, pelo contrário, identifica-os; o mundo de nos-
• i n presentação é aparência ou engano. As formas deste mundo, que
■1ii.m.'.ionnam num mundo de objetos, são o espaço, o tempo e a cau-
ilid.uk', que ordenam e elaboram as sensações. As raízes kantianas
.li -.i.i leoria são visíveis.
No entanto, há um momento do mundo que não apreendemos
......o puro fenômeno, mas sim de modo mais profundo e imediato: o
■ii l’or um lado, o eu é perceptível como corpo; mas também como
ili'ii iiao-espacial, alheio ao tempo e livre, que chamamos vontade. _0
.......cm se apreende, em seu estrato mais profundo, como vontade de
\ ( ada coisa no mundo se mamfesia como afã ou vnniade de ser:
i.iiiiii no inorgânico e no orgânico como na esfera da consciência.
I'iui,into, a realidade é vontade. Como o querer supõe uma insatisfa-
i iiiI, ,i vontade é constante dor. O prazer, que é transitório, consiste
numa cessação da dor; a vida, no fundo, é dor. Isso faz com que a fi-
I" nlia de Schopenhauer seja de um rigoroso pessimismo. A vontade
.I, viver, sempre insaciada, é um mal; portanto, também o mundo e
in «v.a vida o são.
A élica de Schopenhauer deriva dessa idéia. O sentimento moral
■ .i i nmpaixão e a tendência a aliviar a dor dos demais seres. Para isso
ii ni leni também o saber e a arte, especialmente a música; no entanto,
.ii i remédios passageiros. A única salvação definitiva é a superação da
iivihtdc de viver. Se a vontade se anula, entramos no nirvana', isto, que
I '.m ve uma simples aniquilação, é na realidade o maior bem, a verda-
■li 11.1 salvação, o único que põe fim à dor e ao descontentamento do
i|iinei sempre insatisfeito.

373
H is t ó r ia da f il o s o f ia

A ética de Schopenhauer tinha também um caráter determinista,


no sentido de que o homem é bom ou mau essencialmente e para sem­
pre, sem que haja possibilidade de levá-lo, por exemplo, à bondade.
Em contraposição à doutrina socrática, Schopenhauer crê que a virtu­
de não pode ser ensinada, que se é bom ou mau a radia.
A filosofia de Schopenhauer é aguda e engenhosa, com freqüência
profunda, exposta com grandes dotes de escritor, e está animada por
uma forte e rica personalidade; entretanto, seus fundamentos metafísi­
cos são de pouca solidez, e sua influência levou muitos a se perderem
num trivial diletantismo, impregnado de teosofia, literatura e “filosofia”
hindu, na qual o que certamente se perde é o sentido da filosofia.
Vimos que, na verdade, o período idealista alemão termina em
1 legel; os outros pensadores são conseqüência desse idealismo: eles
se entregam a uma especulação que vai perdendo contato com os au­
tênticos problemas da metafísica. A vaguidade, a nebulosidade e as
construções fantásticas, que Hegel já identificava em seu tempo, res­
surgem com mais pujança depois de sua morte. Isso provocará um
movimento de reação, que irá submergir a filosofia numa de suas
mais profundas crises: é o que chamamos de positivismo.

374
f
A filosofia no século XIX

A história da filosofia contemporânea, elaborada a partir de mca


ili' .lo século XX, tem de situar os pensadores do século passado
1111M111 perspectiva pouco usual, que não coincide com o modo habi-
iii il ilc representação de suas figuras. Com efeito, temos de interpretar
i lili I'.olia do passado recente tendo como guias duas idéias norteado-
ii uma, a compreensão daquele tempo, diferente, embora próximo;
■nui.i. a necessidade de explicar a maneira como nossa filosofia pro-
' m u daquela, e como àquele tempo sucede o que nos foi dado viver.
I ',o impõe, em primeiro lugar, uma apreciação da significação dos fi­
lli-.iilos do século XIX, que não corresponde à que esteve vigente na
i |ii ii a Alguns pensadores, obscuros e mal-entendidos pelo seu meio,
ip.ui-cem hoje como o que houve de mais substantivo e eíicaz na filo-
I
■ i ,i do século passado. E, no interior da obra deles, com freqüência
I-. dimensões menos notórias e famosas em seu tempo se revelam de-
■iMvas, e também como antecipações das mais profundas descobertas
if nossos dias.
O século X IX é uma época de certa anormalidade filosófica; a ri-
i;i M, não começa antes da morte de Hegel, em 1831; seu primeiro ter-
i.o, junto com o último da centúria anterior, forma um período bem
lili-iente, dominado pelo idealismo alemão. Com a morte de Hegel,
iima etapa se esgota e a filosofia mergulha numa profunda crise, na
11na 1quase desaparece. Isso não é estranho, porque a história da filo-
■oha é descontínua, e as épocas de máxima tensão criadora são sempre
-i i'.uidas de longos anos de relaxamento, em que a mente parece não
poder suportar o esforço metafísico. No entanto, no século X IX a filo-

375
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

sofia é ademais formalmente negada, o que supõe um peculiar fastio


ao filosofar, provocado, ao menos parcialmente, pelo abuso dialético
em que cai o genial idealismo alemão. Surge então a necessidade pre­
mente de se ater às coisas, à realidade mesma, de se afastar das constru­
ções mentais para se ajustar ao real tal como ele é. E a mente européia
de 1830 encontra nas ciências particulares o modelo que irá transpor
para a filosofia. A física, a biologia, a história vão surgir como modos
exemplares de conhecimento. Dessa atitude nasce o positivismo.
O propósito inicial - ater-se à realidade mesma - é irrepreensíve
e constitui um imperativo filosófico permanente. Contudo, o proble­
ma começa justamente aqui: qual é a realidade? Como vemos, a filo­
sofia não pode ser delimitada nem definida extrinsecamente, sua de­
marcação supõe uma questão metafísica prévia. Com excessiva preci­
pitação, o século X IX acredita poder suprimi-la e afirma que a reali­
dade são os feitos sensíveis. É esse o erro que invalida o positivismo. E,
sem qualquer violência, a filosofia cle Comie até hoje poderia ser in­
terpretada como um esforço para restabelecer efetivamente esse pos­
tulado, para se tornar verdadeiramente positiva: em outros termos,
para descobrir qual é a realidade autêntica, sem construções mentais
c sem exclusões, a fim de se ater fielmente a ela.
Porque, é claro, a realidade é desvirtuada tanto mediante adições
como mediante supressões. Aquilo que meu pensamento superpõe às
coisas as altera e falseia; porém, não é menos falsa a parcialidade, to­
mar a parte pelo todo, crer que algo real é, sem mais nem menos, a
realidade. Foram muitas as vezes em que a filosofia identificou uma
porção ou elemento do que existe com a sua totalidade, e teve cons­
tantemente de se esforçar para corrigir esse erro e integrar a visão cla
realidade com os elementos que tinham sido deixados de fora e que
com sua ausência falseavam a perspectiva.
No entanto, o erro com que o século X IX começa é mais grave,
porque define o real, ou seja, formula uma tese metafísica, e ao mes­
mo tempo não se dá conta disso, a ponto de negar sua possibilidade,
o que quer dizer que não entende sua interpretação da realidade - os
fatos sensíveis - como aquilo que é, uma interpretação, mas sim como
a própria realidade; parte desse pressuposto sem sequer ter consciên-

376
A FILOSOFIA NO SÉCULO X IX

■111 li'k- l’or isso, o problema que se colocará para a filosofia depois do
I'h 111\ isino é duplo: primeiro, descobrir a realidade autêntica, o que
i h 11, us será chamado de realidade radical, e, em segundo lugar, reivin-
•th .11 a necessidade e a possibilidade da metafísica.
As duas empresas transcorrem simultânea e paralelamente. Nâo
.1 li.i lazer uma especulação sobre a própria filosofia, em virtude da
■|ii.tl ■ mostre a validade do conhecimento metafísico, para depois, já
■li posse desse instrumento, investigar a estrutura do real. Pelo con-
11 ii In, o esforço do próprio filosofar levará à evidência de que o posi-
ii i hui já estava fazendo metafísica, justamente quando pretendia eli-
.... . la. Fazia metafísica, mas sem sabê-lo, ou seja, de modo pouco
piw/ivo, e por isso errôneo e deficiente. E a tentativa de levar a filoso-
li.i |i;ira sua verdadeira positividade obrigará, por um lado, a reparar
un icalidades que tinham sido obstinadamente deixadas de lado -
"iK retamente a esfera dos objetos ideais e a realidade da vida huma-
fiii com seus peculiares modos de ser e todas as suas conseqüências
■minlógicas; e, por outro, para apreender essas realidades será neces-
..ii io usar instrumentos mentais novos, que darão uma nova imagem
do conhecimento e da própria filosofia.
Desse modo, nosso tempo se encontra na situação de criar uma
nova metafísica que, por sê-lo, está radicada em toda a tradição do
passado filosófico. Depois das antecipações de alguns poucos pensa-
i lcires gemais do século X IX , a fenomenologia, a filosofia existencial e
.1 da razão vital criaram um método de saber e voltaram a atenção
I i.ira o mundo ideal e para a realidade da vida. Agora, esta filosofia de
nosso tempo se vê obrigada a descer ao fundo das questões últimas, e
■mu isso adeuire seu máximo radicalismo.

377
I. A SUPERAÇÃO DO SENSUALISMO

Na primeira metade do século XIX, a intensidade da vida filosó-


lii a volta para França. Depois da época de plenitude do Iluminismo,
aparece uma série de pensadores franceses interessantes, afinados
i um os ideólogos do final do século X V III, e que se ocupam principal­
mente de questões relacionadas com a psicologia e com a origem das
ideias. Essa filosofia, que invoca como antecedente imediato o sen­
sualismo de Condillac, inicia um paulatino desvio desse ponto de vis-
la c termina por abordar as questões metafísicas; é uma fase concreta-
menie importante da pré-história da filosofia da vida.
Os dois filósofos mais consideráveis que representam essa ten­
dência são Laromiguière e Degérando, antecedentes do principal pen­
sador da época, Maine de Biran, de quem logo surge o grupo dos es­
piritualistas. Laromiguière (1756-1847) escreveu Leçons de. philoso­
phie, sensualista em linhas gerais, mas em que se distingue a recepção
da reação, se afirma a atividade do eu, manifestada na atenção, e se es­
boça uma tentativa de superação do puro sensualismo. Degérando
( 1772-1842), de uma geração posterior, sensualista também, filiado a
Bacon, Locke e Condillac, porém conhecedor do idealismo alemão,
que perturba sua posição filosófica, escreveu um extenso livro em qua­
tro volumes, intitulado Des signes et de l’art de penser considérés dans
leurs rapports mutuels, e depois Histoire comparée des systèmes de philo­
sophie, relativement aux principes des connaisances humaines, em três to­
mos. Degérando postula uma filosofia da experiência', afirma uma dua­
lidade de dois elementos, o eu e as existências contíguas, que se revelam
no fato da resistência. Ao mesmo tempo tenta unir o racionalismo e o
empirismo, numa atitude que antecipa a eclética.

379
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

1. Maine de Biran

Situação filosófica • O mais profundo e original dos filósofos


franceses de seu tempo é Maine de Biran (1766-1824). Sua principal
obra é o Essai sur les fondements de la psychologie et sur ses rapports avec
l ’étude de la nature (1812); entre seus escritos de maior interesse con-
tam-se também: Journal, Mémoire sur la décomposition de la pensée, In­
fluence de l ’habitude sur la faculté de penser. Maine de Biran, influencia­
do por Destutt de Tracy e Laromiguière, em polêmica com De Maistre
e De Bonald, representa uma posição que tem certa analogia com a de
Fichte na Alemanha. A partir de uma atitude inicial sensualista, de­
semboca na primeira compreensão relativamente madura da vida hu­
mana e termina num pensamento teísta e católico. Maine de Biran foi
mal entendido em seu tempo, em parte pela originalidade de seu pon­
to de vista, e em parte pela obscuridade de sua expressão vacilante,
embora os pensadores franceses posteriores o tenham invocado como
mestre. Sua filosofia ainda não foi suficientemente utilizada, apesar
dos esforços realizados neste século.
Metafísica • Maine de Biran, de acordo com os pressupostos
sensualistas, procura o fato primitivo em que deve fundar-se a ciência.
Este, contudo, não pode ser a sensação, porque esta não é sequer um
fato\ um fato, para sê-lo, deve ser conhecido, deve ser para alguém, e
exige a coincidência da impressão sensorial com o eu. A consciência
implica uma dualidade de termos, uma coexistência, e isto por sua
vez exige um âmbito prévio, em que eu me encontro com o conhecido.
O sabido é sempre consabido, porque saber é eu me saber com o obje­
to. Todo fato supõe uma dualidade de termos que não podem ser
concebidos separadamente, mas que são função um do outro: o eu só
existe ao se exercer ante uma resistência. Maine de Biran transforma
os conceitos objetivos em funcionais; a coexistência é uma realidade
dinâmica, um “fazer”: o esforço. O eu e o resistente são somente ingre­
dientes dessa realidade ativa1.

3. Cl. meu estudo El hombrey Di os en la filosofia de Maine de Biran, em San Ansel­


mo y el insensato (Obras, IV).

380
A SUPERAÇÃO DOSKSUAU5MO

A conseqüência disso é umtantoradical: eu não sou uma coisa\ o


I nmi H-m lorma uma antítese comowerso inteiro; nem o esforço é
Miis.i, nem tampouco seus termos.qui só se constituem como tais em
M.i interação. Maine de Biranenienofa vida como uma tensão ativa

m ie um eu e um mundo que sósãomomentos da realidade primá-
ii.i di) esforço. O eu vem a ser, seconstitui no esforço, e por isso o ho-
nii-m pode iniciar séries de atos livres e tem vida pessoal, humana.
I m Maine de Biran constitui-se obscuramente uma visão vacilante e
' niilusa, mal expressa, porém certeira,dessa realidade que chamamos
ytilu humana.

2. O espiritualismo

Os ecléticos • Inspirado emMaine de Biran, embora de modo


I muco profundo, que não retomava onais valioso de seu pensamento,

ipareceu o espiritualismo francês, quedominou a vida filosófica oficial
durante cinqüenta anos. Seu iniciador é Royer-Collard (1763-1843),
ligura relevante do doutrinarismopolítico, que recolheu os ensinamen-
los da escola escocesa de Thomas Rsd e Dugald Stewart. Théodore
louffroy (1796-1842) é um pensadorafinado com essa tendência. No
rntanto, o pensador mais importantedo grupo é Victor Cousin (1792-
IH67), fundador do ecletismo, filosofiaoficial da Universidade francesa
durante o reinado de Luís Felipe. Cousin é um filósofo pouco original,
que pretende harmonizar os diversossistemas e revela influências cam­
biantes, dos gregos aos idealistas alemães, sobretudo Schelling, e cer­
tamente os escoceses e Maine de Biran. Foi um eficaz propulsor dos
estudos de história da filosofia, eelemesmo os cultivou intensamente.
Publicou diversos Cours d’histoire à la philosophie. Fragments philoso­
phiques, Du vrai, du beau et du tien evárias obras históricas e biográfi­
cas, particularmente sobre o círculode Port-Royal.
Os tradicionalistas • Tambémcomo reação ao sensualismo, mas
com marcada orientação para os prcblemas da sociedade, da política
e da história, aparece um grupo depensadores católicos, fortemente
vinculados a Roma, fundadores datendência ultramontana, que en­
contra no Papado e na legitimidade o fundamento da ordem social.

381
H is t ó r ia da f il o s o f ia

Representam uma posição tradicionalista, que desconfia da razão e


faz residir as verdades fundamentais na “crença" de que a sociedade
é depositária; em política se opõem ao espírito e às doutrinas da Re­
volução Francesa. Os pensadores mais importantes desse núcleo são
o conde Joseph de Maistre (1753-1821), saboiano, que foi embaixa­
dor na Rússia (Du Pape, Soírées de Saint-Pétersbourg) e Louis de Bo-
nald (1754-1840), que tentou uma sistematização do tradicionalismo
(Législation primitive, Essai analytique sur les lois naturelles de Yordre so­
cial). Lamennais - que no final se separou da Igreja tem certas afi­
nidades com esse grupo; além dele, Lacordaire e Montalembert, em­
bora estes se orientem para uma atitude mais liberal.
A Revolução, que por um lado provocou essa reação tradiciona­
lista, despertou ao mesmo tempo um movimento de caráter social, di­
rigido por vários teóricos franceses, que imaginaram doutrinas sociais
utópicas, porém não isentas de idéias agudas sobre o problema da so­
ciedade. Destacam-se Saim-Simon, Fourier e Proudhon, que prepa­
ram ao mesmo tempo correntes políticas socialistas e a fundação da
ciência social.
Todos esses elementos são utilizados de diferentes maneiras
pelo positivismo, que é o que há de mais importante na filosofia do
século XIX.
Balmes • O sacerdote catalão Jaime Balmes, nascido em Vich em
1810 e morto em 1848, representa, com Sanz dei Rio, a principal con­
tribuição espanhola à filosofia do século X IX e tem certa afinidade com
os pensadores franceses mencionados. Em sua curta vida teve uma in­
tensa atividade política, jornalística e filosófica. Suas obras mais impor­
tantes são: El critério - uma lógica popular do bom senso -. El protestan­
tismo comparado con el catolicismo - réplica à Histoire de la civilisation en
Europe, de Guizot -, Filosofia elemental, Filosofia fundamental.
Balmes, familiarizado com a Escolástica por sua formação sacer­
dotal, soube renová-la num momento de grande decadência, com
contribuições da escola escocesa, por um lado, e dos sistemas de Des­
cartes e Leibniz por outro. Sua obra, mesmo dentro das limitações im­
postas pela circunstância histórica em que viveu e por sua prematura
morte, significou uma tentativa séria e valiosa de restaurar os estudos

382
A SUPERAÇÃO DO SENSUALISMO

11liisóficos na Espanha, e teria podido significar um efetivo ressurgi-


inrnlo. Sua visão da filosofia contemporânea, sobretudo do idealismo
.ilrmão, é superficial e pouco acenada; enfoca, no entanto, muitas ou-
ii.i'' questões com bom senso e perspicácia freqüente.
Fora do campo estrito da filosofia, e próximo dos tradicionalis-
i.i'. Iranceses, está Juan Donoso Cortés (1809-53), embaixador da Es-
p.iuha em Paris, onde entrou em contato com os católicos, pelos quais
liii muito estimado. Sua principal obra é o Ensayo sobre ei catolicismo,
11liberalismo y el socialismo.

383
II. O POSITIVISMO DE COMTE

Personalidade • Auguste Comte nasceu em 1798 e morreu em


1857. Pertencia a uma família católica, monárquica e conservadora,
mas logo adotou uma orientação inspirada pela Revolução Francesa.
( olaborou com Saint-Simon, de quem se separou depois, e se fami­
liarizou com os problemas sociais. Foi aluno da Escola Politécnica de
Paris, onde adquiriu uma sólida formação matemática e científica.
I ’osteriormente, foi repetidor na Escola, até que as inimizades fizeram
com que perdesse o cargo. Muito jovem, publicou uma série de Opús-
i aios muito interessantes sobre a sociedade, e depois empreendeu a
grande obra de seis grossos volumes que intitulou Cours de philosophíe
positive. Em seguida escreveu um breve compêndio, o Discours sur
1'csprit positif, Catéchisme positiviste e sua segunda obra fundamental,
Système de politique positive, ou Traité k mologie, instituant la religion
ilc l ’Humanité, em quatro tomos. 0 Cours foi publicado entre 1830 e
1842, e o Système, entre 1851 e 1854.
A vida de Comte foi difícil e desgraçada. Em sua vida privada foi
infeliz, e nunca conseguiu obter o menor desafogo econômico, apesar
ile sua indiscutível genialidade e do seu esforço. Em seus últimos anos
vivia sustentado por seus amigos e partidários, principalmente fran­
ceses e ingleses. Auguste Comte apresenta características de desequi-
I I brio mental, que em certo momento se acentuaram muito. No final
da vida teve um profundo amor por Clotilde de Vaux, que morreu
pouco depois; essa perda contribuiu para abatê-lo.

385
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

1. A história

A lei dos três estados • Segundo Comte, os conhecimentos pas­


sam por três estados teóricos diferentes, tanto no indivíduo como na
espécie humana. A lei dos três estados, fundamento da filosofia positiva,
é ao mesmo tempo uma teoria do conhecimento e uma filosofia da his­
tória. Estes três estados são chamados teológico, metafísico e positivo.
O estado teológico ou fictício é provisório e preparatório. Nel
mente procura as causas e princípios das coisas, o mais profundo, lon­
gínquo e inacessível. Nele há três fases distintas: o Jetichismo, em que
se personificam as coisas e se atribui a elas um poder mágico ou divi­
no; o politeísmo, em que a animação é retirada das coisas materiais para
ser transladada para uma série de divindades, cada uma das quais re­
presenta um grupo de poderes: as águas, os rios, os bosques etc.; e, por
último, o monoteísmo, a fase superior, em que todos esses poderes di­
vinos ficam reunidos e concentrados em um, chamado Deus. Como
se vê, a denominação de estado teológico não é apropriada; seria pre­
ferível dizer religioso ou talvez mítico. Neste estado predomina a ima­
ginação, e ele corresponde - diz Comte - à infância da Humanidade. É
também a disposição primária da mente, na qual se volta a cair em to­
das as épocas, e só uma lenta evolução pode fazer com que o espírito
humano se afaste dessa concepção para passar a outra. O papel histó­
rico do estado teológico é insubstituível.
O estado metafísico ou abstrato é essencialmente crítico e de tra
sição. É uma etapa intermediária entre o estado teológico e o positivo.
Nele continua-se a procurar os conhecimentos absolutos. A metafísica
tenta explicar a natureza dos seres, sua essência, suas causas. Para isso,
porém, não recorre a agentes sobrenaturais, e sim a entidades abstratas
que lhe conferem seu nome de ontologia. As idéias de princípio, cau­
sa, substância, essência designam algo diferente das coisas, embora
inerente a elas, mais próximo delas: a mente, que se lançava na busca do
longínquo, vai se aproximando das coisas passo a passo, e assim como
no estado anterior os poderes se resumiam no conceito de Deus, aqui
é a Natureza a grande entidade geral que o substitui. No entanto, essa
unidade é mais frágil, tanto mental como socialmente, e o caráter do

386
O POSITIVISMO DE COMTE

••i i>I ' mciaíísico é sobretudo crítico e negativo, de preparação da pas-


••i|'i ui para o estado positivo: uma espécie de crise da puberdade no
• |-ii iii>Immano, antes de chegar à idade viril.
i i i-siado positivo ou real é o definitivo. Nele, a imaginação íica su-
I ii >nl m,ida à observação. A mente humana se atém às coisas. O positi-
vi .... procura exclusivamente fatos e suas leis. Não busca causas nem
l>i nu ipios das essências ou substâncias. Tudo isso é inacessível. O po-
•ii i' imho se atém ao positivo, ao que está posto ou dado: é a filosofia dos
,/iiiln'. A mente, num longo retrocesso, se detém finalmente ante as
. i■
! .is Renuncia àquilo que é inútil tentar conhecer e procura apenas
,i L r. ilos fenômenos.
Rc-lativismo • O espírito positivo é relativo. O estudo dos fenô-
.......... nunca é absoluto, mas relativo à nossa organização e à nossa
■li u.ii.ao. A perda ou aquisição de um sentido - diz Comte - alteraria
niiv.i) mundo completamente e também nosso saber sobre ele. Nos-
.1 . ideias são fenômenos não só individuais, como também sociais e
II >
11"11vos, e dependem das condições de nossa existência, individual e
MMi.il, e portanto da história. O saber tem de se aproximar incessante -
iii. 111c do limite ideal fixado por nossas necessidades. E o fim do sa­
iu i c a previsão racional: voir pour prévoit; prévoir pour pourvoir é um
dii'. lemas de Comte.

2. A sociedade

O caráter social do espírito positivo • Comte afirma que as


idi-ias governam o mundo; há uma correlação entre o mental e o so-
' i.d, e um depende do outro. O espírito positivo tem de fundar uma
ui ilem social, quebrantada pela metafísica crítica, e superar a crise
do Ocidente. Comte elabora uma aguda teoria a respeito do poder
■spiritual e temporal. A constituição de um saber positivo é a condi-
i.an para que haja uma autoridade social suficiente. E isso reforça o
i .irater histórico do positivismo; para Comte, o sistema que explicar o
passado será dono do porvir. Desse modo, em continuidade históri-
i .i e equilíbrio social, pode realizar-se o lema político cle Comte: or-
ilrc et progrès', ordem e progresso. E o imperativo da moral comtista -

387
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

que é uma moral essencialmente social - é viver para o próximo: vi


vre pour autrui.
A sociologia • Comie é o fundador da ciência da sociedade, que
chamou primeiro de física social e depois de sociologia. Comte tenta
levar o esludo da I lumanidade coletiva ao esiado positivo, isto é, trans-
lormá-lo em ciência positiva. E essa sociologia é, antes de tudo, uma
interpretação da realidade histórica. Na sociedade rege também e
principalmente a lei dos três estados, com outras tantas etapas: numa
predomina o m ilitar , que chega até o século X II; Comte valoriza mui­
to a função de organização da Igreja Católica. Na época metafísica, a
influência social cabe aos legistas', é a época da irrupção das classes
médias, a passagem da sociedade militar à sociedade econômica; é
um período de transição, crítico e dissolvente, revolucionário; o pro­
testantismo contribui para essa dissolução. Por último, a época indus­
trial, regida pelos interesses econômicos, corresponde ao estado posi­
tivo, e nela deverá ser restabelecida a ordem social, que deverá se fun­
dar num poder mental e social. O grande protagonista da história é a
Humanidade, que a sociologia de Comte chega quase a divinizar
translormando-a em religião.
A religião da hum anidade • Em seus últimos anos, Comte che­
gou a idéias que, embora extravagantes, emergem do mais profun­
do do seu pensamento: é o caso da idéia cla “ religião da Hum anida­
de” . A Humanidade em seu conjunto é o Crand-Être, o fim de nossas
vidas pessoais; por isso a moral é altruísmo, viver para os demais, para
a Humanidade. Esse Grande Ser deve ser objeto de culto, primeiro
um culto privado, no qual o homem se sente solidário com seus ante­
passados e descendentes, e depois também um culto público. Comte
chegou a imaginar a organização de uma Igreja completa, com “sacra­
mentos” , sacerdotes, um calendário com festas dedicadas às gran­
des figuras da Humanidade etc. Nessa Igreja falta apenas Deus e, na­
turalmente, é isso que faz com que não Lenha sentido religioso. Com
essa idéia estranha, que evidentemente tinha uma boa medida de des­
vario, Comte expressa de modo claríssimo o papel que concede ao
poder espiritual na organização da vida social, e procura seu modelo
no poder espiritual por excelência, a Igreja católica, em cuja hierar-

388
O p o s it iv is m o d e C omte

(|iii'.......... ii|o culto se inspira para sua “religião” . E assim chega o fi-
Iiu 'h I, i 11. i-.ii ivisia a resumir seu pensamento num último lema: Lamour
...... .. hii i/ir; l'ordre pour base, et le progrès pour but*. Agora vemos o sen-
iiiI" pli no do lítulo completo da Sociologia de Comte: a política, a so-
i iiil»n'i.1 e ,i religião da Humanidade estão inseparavelmente ligadas.

I A ciência

\ enciclopédia das ciências • Comte fez uma classificação das


■I'-mi i.i. que teve grande influência num momento posterior, e que
ii'< mieressa particularmente porque destaca algumas características
•li i ii pensamento. As ciências estão numa ordem hierárquica deter-

•■■11,i■l.i que é a seguinte:

iii.iiemática-astronomia - física-química - biologia-sociologia.

( omte diz que essa hierarquia tem um sentido histórico e dogmá-


II-" i icntífico e lógico. Em primeiro lugar, é a ordem em que as ciên-
■i.i loram aparecendo e, principalmente, a ordem em que foram atin-
l'iiulo seu estado positivo. Em segundo lugar, as ciências estão orde-
M, I,is segundo sua extensão decrescente e sua complexidade crescen-
ii

ii !'in terceiro lugar, segundo sua independência; cada uma necessi-


i i d.is anteriores e é necessária para as seguintes. Por último, apare-
' ' i i i agrupadas em três grupos de dois, com afinidades especiais entre
i As ciências da vida - biologia e sociologia - são as últimas a sair do

".lado teológico-metafísico. A sociologia, em particular, é transforma-
il.i cm ciência efetiva pela obra de Comte. Dessa maneira, não só se
iompleta a hierarquia das ciências, como também se passa a possuir a
disciplina mais importante dentro do esquema comtiano da filosofia,
definida por seu caráter histórico e social.
Observam-se algumas estranhas omissões na enciclopédia de
i .omte. Para começar, falta nela a metafísica, que o positivismo consi-

* O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. |N. da T.]
H is t ó r ia d a f i l o s o f i a

dera impossível, embora, como vimos, a produza, uma vez que Coniii
elabora uma concreta teoria da realidade. Também falta, naturalmen­
te, a teologia; é algo que dispensa explicação. Também não encontra­
mos a psicologia; que fica dissolvida entre a biologia e a sociologia,
Comte considera impossível a introspecção, e só considera possívd
a psicologia experimenLal, que se inclui na esfera de uma ou outra
das duas ciências vitais, segundo se trate do indivíduo ou do ho­
mem em sua dimensão social. A história e as ciências do espírito de
modo geral não aparecem autonomamente na lista de Comte, por­
que ele estava preso à idéia da unidade do método e insiste em apli­
car sempre o das ciências naturais, apesar de sua genial visão do
papel da história.
A filosofia • Portanto, o que é a filosofia para o positivismo? Apa­
rentemente, uma reflexão sobre a ciência. Depois de esgotada esta,
não sobra um objeto independente para a filosofia que não seja aque­
la reflexão; a filosofia se transforma em teoria da ciência. Assim, a ciên­
cia positiva adquire unidade e consciência de si própria. Mas a filoso­
fia, é claro, desaparece; e é isso o que ocorre no movimento positivo
do século X IX , que tem muito pouco a ver com a filosofia.
Contudo, no próprio Comte não é isso o que acontece. Além do
que acredita fazer, existe o que efetivamente faz. E vimos que, em pri­
meiro lugar, é uma filosofia da história (a lei dos três estados); em se­
gundo lugar, uma teoria metafísica da realidade, histórica e relativa,
entendida com características tão originais e tão novas como o ser so­
cial; em terceiro lugar, uma disciplina filosófica completa, a ciência da
sociedade, a ponto de a sociologia, nas mãos dos sociólogos posterio­
res, nunca ter atingido a profundidade de visão que alcançou com seu
fundador. Este é, definitivamente, o aspecto mais verdadeiro e interes­
sante do positivismo, o que faz com que seja realmente filosofia, a des­
peito das aparências e de todos os positivistas.

4. O sentido do positivismo

O que mais chama a atenção em Comte é a importância que at


bui a si mesmo. Tem consciência de sua enorme e definitiva importân-

390
O p o s it iv is m o d e C omte

ytfl )i.ii.i o mundo e sempre começa seus livros com um ar vitorioso,


Mltiiii> I* >il< i',iavtclade Inaugural. Por que Comte tem tanta importãn-
Mn' ........ . que traz com tanta gravidade entre as mãos? E note-se que
^■n pi iinuio gesto solene, quase hierático, se enlaça mentalmente com
H«t 11111ii mia-» finais da religião da Humanidade. É necessário procurar
H |h •1111<' vai de uma coisa à outra.
Aiuuisie Comte tem certeza de que não fala em nome próprio;
ttUi . 11/ i ian é só sua: é a voz concreta, individualizada, da história; por
(«nu mm <oin tanta majestade. Comte não tem dúvida de estar no nível
ifr m*i »1». E isso é o que importa. Estar no nível de seu século quer
ill >n i Mai instalado na filosofia positiva; e esta não é nada menos que
0 f.i.iilo definitivo da mente humana. Estar no nível cle seu século sig-
llllii .i |a ler chegado e não estar na metade do caminho. Essa ciência
|ti> .11iva 0 uma disciplina de modéstia; e essa é sua virtude. O saber
jiiiviiivo se atém humildemente às coisas; fica diante delas, sem inter-
vii ■.cm pular por cima para lançar-se em falaciosos jogos de idéias;
uai i pede mais causas, tão-somente leis. E, graças a essa austeridade,
......cgiie obter essas leis e as possui com precisão e certeza. A ques-
.... no entanto, é que essa situação não é primária: pelo contrário, é
.' M’m i Itado dos esforços milenares para reter a mente, que escapava
1-,ii .i iodas as lonjuras, e forçá-la a cingir-se docilmente às coisas. Es-
i esforços são a história inteira; e Comte terá de dar conta de toda
<la para poder entender o positivismo como aquilo que é, fielmente,
i in lalseá-lo, de modo positivo. E não é mais que um resultado. Ve-
.... s. pois, que o próprio imperativo de positividade postula também
uma filosofia da história; o que corresponde ao primeiro elemento de
.eu sistema: a lei dos três estados. A filosofia positiva é, ab initio, algo
histórico.
Comte volta inúmeras vezes e de maneira totalmente explícita ao
problema da história, reivindicando-a como domínio próprio da filo-
■.ofia positiva. Tout est relatif; voilà le seul príncipe absolu - já escrevia
ele em 1817, ainda moço. E nessa relatividade encontra, quase trinta
anos depois, a razão do caráter histórico da filosofia positiva, que pode
explicar todo o passado. Isto não é um luxo da filosofia, algo que lhe é
agregado, mas sim, como soube ver e mostrar Ortega, o principal de

391
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

sua metafísica. Comte talvez não lenha se dado conta disso porque não
tinha a intenção de fazer metafísica; mas a importância central desse
relativismo não lhe escapa. Nele se funda a capacidade cle progresso cla
filosofia positiva; e com isso, a possibilidade de alterar e melhorar não
só a condição do homem, mas especialmente sua natureza. Nada mais
grave poderia ser dito e, por isso mesmo, nada mais quero fazer a não
ser registrá-lo; um comentário suficiente levaria a problemas que não
podemos nem mesmo formular aqui.
Contudo, não quero deixar de citar umas palavras de ComLe, cla­
ríssimas e aluais, que evidenciam bem seu pensamento: Hoje è possí­
vel assegurar- escreve - que a doutrina que explicar suficientemente o con­
junto do passado obterá inexoravelmente, em conseqüência dessa única
prova, a presidência mental do porvir.
Vemos, pois, que por trás de seu naturalismo científico há em
Comlc, de maneira essencial, um pensamento histórico. E isso é o
que dá à sua filosofia sua maior atualidade e fecundidade. Toda ela
está permeada pelo problema que tentei precisar, no qual se manifes-
la sua unidade mais profunda. E essa unidade é, justamente, o espíri­
to positivo.

392
III. A FILOSOFIA DE INSPIRAÇÃO POSITIVISTA

1. Os pensadores franceses

Quase toda a filosofia do século X IX está dominada, essencial­


mente, pelo positivismo, e toda ela revela, de um modo ou outro, sua
influência. Na França, essa presença é mais viva e constante do que
cm qualquer outro lugar. Na Espanha, o positivismo teve um repre­
sentante que poderíamos chamar de “oficial” em Littré (1801-81), que
cm sua exposição da obra de Comte não destacou o mais fecundo e
original dele. Num âmbito filosófico análogo se encontra Hippolyte
laine (1828-93), autor de um livro engenhoso e superficial sobre a fi­
losofia francesa contemporânea (Les philosophes classiques du X IX e siè­
cle en France), de um livro extenso sobre Uintelligence e de numerosos
estudos de história e arte. Também Ernest Renan (1823-92), orienta-
lista e cultivador da filologia semítica e da história das religiões. Uma
nia do positivismo francês se dedicou particularmente à sociologia, se­
guindo o caminho iniciado por Comte, embora com menor clarivi­
dência. Entre esses sociólogos encontram-se Durkheim (1858-1917),
cujos principais livros são De la division du travail social e Les règles de
la méthode sociologique; Gabriel Tarde (1843-1904), autor de Les lois
de l’imitation, La logique sociale, Les lois sociales-, Lévy-Bruhl (1857-1939),
dedicado aos estudos de etnografia e sociologia dos povos primitivos,
cuja principal obra é La mentalité primitive. Também tem vínculos es-
ireitos com o positivismo o médico Claude Bernard (1813-78), autor
da Introduction à l’étude de la médecine expérimentale, que em seus últi­
mos anos começou a se aproximar da metalísica.

393
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Embora a rigor extrapolem o positivismo e representem parcial­


mente uma reação a ele, deve-se citar aqui uma série de pensadores
franceses do século passado que tiveram grande influência no seu tem­
po e alguns dos quais prepararam a renovação da filosofia realizada
por Bergson. É o caso de Alfred Fouillée (1838-1912), autor de Levo-
lutionisme des idée-forces\ Guyau (1854-88), que tem certas afinidades
com Nietzsche (La monde d ’Epicure, Lirreligion de l ’avenir, Esquisse
d’une morale sans obligation ni sanction, La morale anglaise contemporai­
ne, Lart au point de vue sociologique), cheio de visões aguclas, embora
não sistemáticas; Cournot (1801-87), pensador profundo e original,
ainda não bem estudado (Traité de l ’enchaînement des idées fondamen­
tales dans les sciences et dans l ’histoire, Essai sur les fondements de nos
connaissances et sur les caracteres de la critique philosophique, M atéria­
lisme, vitalisme, rationalisme, Considérations sur la marche des idées et
des événements dans les temps modernes); Ravaisson (1813-1900), con-
tinuador do espiritualismo, um dos renovadores do aristotelismo no
século X IX (Essai sur la Métaphysique d ’Aristote, La philosophie en Fra n ­
ce au X I X e siècle, Testament philosophique); Renouvier (1815-1903),
pensador criticista de grande fecundidade intelectual (Philosophie an­
cienne, Philosophie moderne, Introduction à la philosophie analytique de
l ’histoire, Uchronie).

2. A filosofia inglesa

“ O utilitarismo” • O positivismo inglês estuda, sobretudo, os pro­


blemas éticos, e também questões lógicas. Para a moral utilitária, de­
senvolvida primeiro por Jeremy Bentham (1748-1832) e depois, princi­
palmente, por John Stuart M ill (1806-73), o fim de nossas aspirações
é o prazer, e é bom o que é útil e nos proporciona prazer. Não é uma
ética egoísta, mas de caráter social: o que procura é a maior felicidade
do maior número (Utilitarianism, On Liberty). A época burguesa, capi­
talista e industrial de meados do século X IX encontra uma expressão
claríssima na moral utilitária. Stuart Mill publicou também uma im­
portante obra de lógica: A System of Logic, Ratiocinative and Inductive
(Sistema cle lógica dedutiva e indutiva).

394
A FILOSOFIA DE INSPIRAÇÃO POSITIVISTA

O evolucionismo • Os pensadores ingleses que desenvolvem a


ii leia de evolução, de origem francesa - Turgot, Condorcet, Lamarck
mas filosoficamente cunhada por Hegel, também estão vinculados ao
positivismo e ao utilitarismo. Embora não fosse filósofo, o biólogo Char­
les Darwin (1809-82) teve grande influência. Seu principal livro, On
lhe Origin oj Species, publicado em 1859-60, cujas idéias datavam de
IH 37, de sua famosa viagem a bordo do Beagle, continha uma teoria
biológica da evolução fundada nos princípios de luta pela vida e adap­
tação ao meio, com a conseqüente seleção natural dos mais aptos. Essa
doutrina influiu em todos os aspectos da vida intelectual do século
XIX, e nela Marx encontrou um fundamento para a sua doutrina.
Herbert Spencer (1820-1903), engenheiro dedicado à filosofia,
i ornou de forma diferente a idéia de evolução e teve extraordinária
importância, perdida logo depois, na segunda metade do século. Sua
obra, de enorme extensão, foi publicada em sua maior parte com o tí-
i ulo geral de A Sistem oj Synthetic Philosophy (Sistema de filosofia sin-
teiica). Suas diversas partes são: First Principies (estes “primeiros prin­
cípios” são o incognoscível e o cognoscível), Principies oj Biology, Prin-
i iples ojPsychology, Principies ojSociology, Principies oj Ethics. Escreveu
também, entre outras obras, The Study oj Sociology e The Man versus
lhe State (O indivíduo contra o Estado), expressão do individualismo
político liberal.
Segundo Spencer, no universo ocorre uma redistribuição inces­
sante da matéria e do movimento, que é evolução quando predomina
a integração de matéria e a dissipação de movimento, e dissolução
quando o processo ocorre de forma inversa. Essa transformação vem
acompanhada por uma secundária, a do homogêneo em heterogêneo,
e se dá na totalidade do universo e em todos seus domínios, desde as
nebulosas até a vida espiritual e social. A causa principal da evolução
é a instabilidade do homogêneo, e o que permanece invariável quantita­
tivamente, como substrato de todos os processos evolutivos, é uma
potência sem limites, denominada por Spencer de incognoscível. Essa
doutrina, mais interessante por seus detalhes - por exemplo as obser­
vações sociológicas, freqüentemente agudas - que pela sua débil me­
tafísica, dominou o pensamento europeu durante vários decênios e
exerceu profunda influência, até mesmo sobre Bergson.

395
H is t ö r ia d a f il o s o f ia

3. A época positivista na Alemanha

O materialismo • Como foi apontado antes, o positivismo alemã


costuma derivar para o materialismo e para o naturalismo, destituídos
de qualquer interesse filosófico. Büchner, Vogt, Moleschott, Haeckel,
Ostwald são, em geral, cultivadores das ciências da natureza, com in-
lundadas pretensões íilosólicas, de um ateísmo e um materialismo su­
perficiais e, definitivamente, sem verdadeiro espírito científico.
As tentativas de superação • Outros pensadores, de maior in­
dependência, que inserem as idéias positivistas da época na tradição
lilosõfica alemã anterior ou se esforçam por superá-las, têm maior in­
teresse. Entre eles estão Pechncr ( J 801 -87), fundador, com Weber, da
psicofísica; W Wundt (1832-1920), de enorme saber e laboriosidacle,
que foi o mais importante cultivador da psicologia experimental e da
chamada psicologia dos povos (Völkerpsychologie). Hermann Lotze
(1817-81), influenciado por Leibniz e pelos idealistas, antecessor de
Dilthcy na cátedra de Berlim, iniciou uma reação contra o naturalis­
mo e trabalhou com os problemas da história e da eslélica (Mikrokos­
mos, System der Philosophie). Friedrich Adolf Trendclenburg (1802-72),
mestre de Dilthey, foi - com Ravaisson, Gratry e Brentano - o introdu­
tor do aristotelismo em sua época ( Elementu logices Aristoteleae, Logis­
che Untersuchungen). Gustav Teichmüller (1832-88), que foi professor
em Dorpat e exerceu inlluência :ia Rússia, foi um pensador perspicaz e
de grande saber, auLor de estudos importantes sobre filosofia grega (Aris­
totelische Forschungen, Studien zur Geschichte der Begriffe, Neue Studien zur
Geschichte der Begriffe) e de um importante livro de metafísica, em que
usa amplamente o conceito de “perspectiva” : Die wirkliche und die schein­
bare Welt. Neue Grundlegung der Metaphysik. Dele parte a interpretação
da verdade no sentido daâÀ.fj0eia grega.
Alguns filósofos, cuja obra perdeu rapidamente importância, ti­
veram especial influência em seu tempo: Eduard von Hartmann (1842-
1906), inspirado ao mesmo tempo no idealismo alemão e nas ciên­
cias biológicas, cuja principal obra é a Philosophie des Unbewussten (F i­
losofia do inconsciente). Hans Vaihinger (Die Philosophie des Als ob),
próximo do pragmatismo, que formula uma filosofia do “como se”

396
A FILOSOFIA DE INSPIRAÇÃO POSITIVISTA

uliisão às Idéias regulativas kantianas). Por último, os chamados em-


I >ii»»-criticistas: Richard Avenarius: Kritik der reinen Erfahrung (Crítica
■l.i experiência pura) e Ernst Mach: Analyse der Empfindungen (Análise
■Lis sensações), de títulos tão claramente significativos.
ü neokantismo • Na segunda metade do século, produz-se na
Alemanha um movimento filosófico que tenta superar o positivismo,
i inbora esteja de fato condicionado pelo seu espírito. Esses pensado-
ies viam a salvação da filosofia na volta a Kant e iniciam uma restau-
i ,k ;i o do kantismo. Já vimos, ao estudar esse filósofo, o ponto de vis-
i ,i a partir do qual os neokantianos o consideram.
O primeiro impulso nesse sentido foi a obra de Otto Liebmann
miitulada Kant und die Epigonen (1865), que terminava cada capítulo
■um a conclusão: “Portanto, é preciso voltar a Kant.” Também sinali-
.1 um passo na mesma direção E A. Lange (1828-75), autor de uma
l.imosa História do materialismo. Entretanto, os principais represen-
i.mics cio movimento neokantiano são os pensadores da escola de
Mtirhurgo: Hermann Cohen (1842-1918), o mais importante de todos
i lês, que foi professor cie Ortega nos anos de juventude deste (System
i/n Philosophie: Logik der reinen Erkenntnis, Ethik des reinen Willens,
Ai'sthetik des reinen Gefühls), Paul Natorp (1854-1924), que fez uma
interpretação neokantiana do platonismo e estudou especialmente os
problemas psicológicos e pedagógicos (Platos Ideenlehre, Kant und die
Marburger Schule)', e, recentemente, Ernst Cassirer (1874-1945), pro-
lessor nos Estados Unidos durante seus últimos anos, que estudou o
problema do conhecimento (Das Erkenntnisproblem, Substanzbegriff und
I anktionsbegiiff, Philosophie der symbolischen Formen, Phänomenologie
der Erkenntnis, Descartes, Leibniz’ System). Também escreveu uma Filo­
sofia do Iluminismo e uma Antropologia filosófica.
Outro importante grupo neokantiano é a chamada escola de Ba­
den, cujos membros de maior significação são W ilhelm Windelband
( 1848-1915),. grande historiador da filosofia (Einleitung in die Philoso­
phie Lehrbuch der Geschichte der Philosophie, Präludien), e Heinrich Ric-
kcrt (1863-1936), dedicado aos estudos metodológicos e epistemoló-
gicos (Die Grenzen der naturwissenschaftlichen, Begriffsbildung, Kultur­
wissenschaft und Naturwissenschaft, Philosophie des Lebens).

397
IV. A DESCOBERTA DA VIDA

Entramos agora no estudo dos pensadores do último terço do


scculo XIX. Aqui o sentido da história da filosofia talvez se mostre de
um modo mais claro que em qualquer outro período.
Vou falar de filósofos que, em geral, estiveram um pouco à margem
da correr.te central do seu tempo. Vimos as vias descarriladas em que o
positivismo lançou os pensadores depois de Comte. Só encontraremos
lilosofia autêntica nas mentalidades discrepantes, nas que saem do qua­
dro da filosofia acadêmica e vigente, a ponto de não parecerem filósofos
ou serem mal entendidos. Contudo, é necessário acrescentar algo: só
c possível ter esta visão do pensamento do final do século X IX a partir
do século XX. A rigor, aquele pensamento resultou ser uma autêntica e
lecunda filosofia porque serviu de estímulo e de antecedente à metafísica
atual e só adquire seu valor à luz dela. Devemos recolher os momentos
mais desdenháveis para o século passado, e que só ganham sua plena
atualidade fora dele, isto é, na filosofia dos últimos anos. Portanto, esses
filósofos não são sistemáticos. Em geral, há neles intuições geniais, lam­
pejos, vislumbres; mas tudo isso, embora não seja pouca coisa, ainda
não é filosofia em sentido rigoroso: esta requer, sem dúvida, conceitos,
mas também sistema. Essa filosofia fragmentária encontra sua realidade
- Hegel diria sua verdade - na etapa posterior, e nela se constitui como
um primeiro passo de uma autêntica metafísica.

1. Kierkegaard

Sòren Kierkegaard (1813-55) é um pensador dinamarquês cuja


influência na filosofia, embora pouco visível, foi eficaz e prolongada.

399
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Viveu em Copenhague, atormentado por seus problemas religiosos e


filosóficos, e influenciado, embora na forma negativa de aberia oposi-
ção a ele, pelo idealismo alemão. E ntre as obras de Kierkegaard temos
0 conceito de angústia , A alternativa (Enten-Eller ), Migalhas filosóficas
e o Post-scriptum definitivo e não cientifico às migalhas filosóficas, um de
seus escritos mais importantes.
Kierkegaard, como outros pensadores de seu tempo, apelou ao
cristianismo - no seu caso através da teologia protestante - para com­
preender o ser do homem. Insiste especialmente no conceito da an-
gústia, que relaciona com o pecado original e na qual o homem se sen­
te só. Isso o leva a fazer uma antropologia, determinada pela idéia de
existência, de sumo interesse e de não escassa fecundidade filosófica,
apesar de seu caráter assistemático e de um perigoso irracionalismo
que deixou marcas em alguns de seus seguidores.
Kierkegaard rejeita a “eternização” que o hegelianismo introduz
na filosofia, porque esse pensamento abstrato e sub specie aeterni dei­
xa de fora a existência, isto é, o próprio modo de ser do homem, de
todo homem, inclusive o próprio pensador abstrato. O homem é
algo concreto, temporal, em devir, situado nesse modo de ser que
chamamos existência por um cruzamento do temporal e do eterno,
submerso na angústia. Para a existência é essencial o movimento, que
o pensar sub specie aeterni anula. Kierkegaard, partindo de pressupos­
tos religiosos, aborda a realidade hum ana em seu núcleo rigorosa­
mente individual e pessoal, sem substituí-la por uma abstração como
o homem em geral. A existência de que fala é a minha, em sua concre­
ta e insubstituível mesmidade. No entanto, essa dimensão positiva de
seu pensamento é obscurecida pelo seu irracionalismo. Kierkegaard
considera que a existência e o movimento não podem ser pensados,
porque caso o fossem ficariam imobilizados, eternizados e, portanto,
abolidos. Pois bem, como quem pensa existe, a existência é posta ju n ­
to com o pensamento, e esta é a grave questão da filosofia.
Kierkegaard exerceu considerável influência sobre Unamuno, e
Heidegger recolheu de seu pensamento ensinamentos de grande va­
lor. Portanto, o núcleo mais vivo da metafísica de Kierkegaard apare­
ce elevado a sistema e a uma maturidade superior no próprio seio da
filosofia atual.

400
A DESCOBERTA DA VIDA

2. Nietzsche

Personalidade • Friedrich Nietzsche nasceu em 1844. Estudou


filologia clássica em Bonn e em Leipzig, e em 1869, aos vinte e cinco
anos, foi nomeado professor dessa disciplina na Basiléia. Em 1879, a
doença o obrigou a abandonar seu cargo, e viveu independentemente
como escritor. Em 1889 perdeu a razão, e morreu alienado em 1900,
ao terminar o século XIX.
Nietzsche é uma mentalidade muito complexa; tinha grandes do-
les artísticos, e é um dos melhores escritores alemães modernos. Seu
csiilo, tanto em prosa como em poesia, é apaixonado, ardente e de
grande beleza literária. O conhecimento e o interesse pela cultura gre­
ga cumpriram um grande papel em sua filosofia. Mas o tema central
do seu pensamento é o homem, a vida humana, e todo ele está carre­
gado de preocupação histórica e ética. Sofreu grande influência de
Schopenhauer e de Wagner; e talvez isso tenha acentuado sua signifi­
cação literária e artística e ampliado sua influência, que foi muito am­
pla, porém em prejuízo de sua filosofia e de sua justa valorização pos-
lerior. Porque em Nietzsche há, sem dúvida, muito mais do que cos-
i Lim ou mostrar o diletantismo que se apoderou de sua obra e de sua fi­
gura no fmal do século passado e no começo deste. Uma das missões
tia filosofia atual consistirá em lançar luz sobre o conteúdo metafísico
do pensamento de Friedrich Nietzsche.
Suas principais obras são: Die Geburt der Tragödie (O nascimen-
io da tragédia), Unzeitgemässe Betrachtungen (Considerações extem­
porâneas), Menschliches, Allzumenschliches (Hum ano, demasiado hu­
mano), Morgenröte (Aurora), Also sprach Zarathustra (Assim falou Za-
ratrustra), Jenseits von Gut and Böse (Além do bem e do mal), Zur Ge­
nealogie der M oral (Genealogia da moral), D er W ille zur Macht (A
vontade de poder). Esta última obra foi publicada depois de sua
morte, com esse título, que não é de seu autor, e em forma que des­
virtua seu sentido. Os recentes trabalhos de Schlechta mostraram as
manipulações a que foram submetidos os escritos de Nietzsche para
dar-lhes uma significação racista e favorável ao “ totalitarismo” de nos­
so século.

401
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

O dionisíaco e o apolíneo • Nietzsche realiza uma interpretação


da Grécia de grande alcance para sua filosofia. Distingue dois princí­
pios, o apolíneo e o dionisíaco, isto é, o que corresponde aos dois deu­
ses gregos Apoio e Dioniso. O primeiro é o símbolo da serenidade, da
clareza, da medida, do racionalismo; é a imagem clássica da Grécia.
No dionisíaco, em contrapartida, Nietzsche cepara com o impulsivo,
o excessivo e transbordante, a afirmação da vida, o erotismo, a orgia
como culminação desse afã de viver, de dizer sim! à vida, apesar de to­
das as suas dores. A influência de Schopenhauer muda de sentido, e,
em vez da negação da vontade de viver, Nietzsche põe essa vontade no
centro de seu pensamento.
O eterno retorno • Nietzsche depende em certa medida do po­
sitivismo da época; nega a possibilidade da metafísica; além disso,
parte da perda da fé em Deus e na imortalidade da alma. Contudo,
essa vida que se afirma, que pede sempre para ser mais, que pede
eternidade no prazer, voltará inúmeras vezes Nietzsche utiliza uma
idéia procedente de Heráclito, a do “eterno retomo” ( ewige Wiederkunft)
das coisas. Uma vez realizadas todas as combinações possíveis dos ele­
mentos do mundo, restará ainda um tempo indefinido pela frente, e
então recomeçará o ciclo, e assim indefinidamente. Tudo o que acon­
tece no mundo se repetirá igualmente inúmeras vezes. Tudo voltará
eternamente, e com isso todo o mau, o miserável, o vil. No entanto, o
homem pode ir transformando o mundo e a si mesmo mediante uma
transmutação de todos os valores ( Umwertung aller Werte), e encami­
nhar-se para o super-homem. Desse modo, a afirmação vital não se limi­
ta a aceitar e querer a vida uma só vez, e sim infinitas vezes.
O super-homem • Nietzsche se opõe a todas as correntes iguali­
tárias, humanitárias, democráticas da época. É um afirmante da indi­
vidualidade poderosa. O bem máximo é a própria vida, que culmina
na vontade de. poder O homem deve superar-se, terminar em algo que
esteja acima dele, como o homem está acima do macaco; isto é o su­
per-homem. Nietzsche toma seus modelos dos personagens renas­
centistas, sem escrúpulos e sem moral, porém com magníficas condi­
ções vitais de força, de impulsos e de energia. E isso o leva a uma nova
idéia da moral.

402
A DESCOBERTA DA VIDA

A moral dos senhores e a moral dos escravos • Nietzsche lem


especial aversão à ética kantiana do dever, como também à ética utili­
tária, e também à moral cristã. Nietzsche valoriza exclusivamente a
vida, forte, sadia, impulsiva, com vontade de domínio. Isso é o bom, e
lodo o fraco, enfermiço ou fracassado é mau. Por isso, a compaixão é
o mal supremo. Assim, distingue dois tipos de moral. A moral dos se­
nhores é a das individualidades poderosas, de superior vitalidade, de
rigor consigo mesmas; é a moral da exigência e da afirmação dos im­
pulsos vitais. A moral dos escravos, em contrapartida, é a dos fracos e
miseráveis, a dos degenerados; está regida pela falta de confiança na
vida, pela valorização da compaixão, da humildade, da paciência etc.
I: uma moral, diz Nietzsche, de ressentidos, que se opõem a tudo o
que é superior e por isso afirmam todos os igualitarismos. Nietzsche
atribui à moral cristã esse caráter de ressentimento; mas isto é uma in­
teligência absolutamente equivocada, oriunda da falta de visão de
Nietzsche para o sentido do cristianismo. Scheler mostrou de forma
brilhante a absoluta distância existente entre o cristianismo e todo tipo
de ressentimento (ver Max Scheler: O ressentimento na moral). Nietzs­
che, com sua valorização do esforço e do poder, é um dos pensadores
que mais exaltaram o valor da guerra; para ele, a guerra é ocasião para
a produção de uma série de valores superiores, o espíriio de sacrifí­
cio, a valentia, a generosidade etc. Ante o homem industrial e utilitá­
rio da burguesia do século X IX , Nietzsche afirma a idéia do cavalhei­
ro, do homem corajoso e pujante, que entende a vida generosamente.
Embora Nietzsche não tenha conseguido vê-lo, essas idéias têm um
ponto de contato com o cristianismo.
O mais importante da filosofia nietzschiana é sua idéia da vida e
sua consciência de que existem valores especificamente vitais. Nessa
expressão valores vitais estão contidas duas das idéias que irão domi­
nar a filosofia posterior. Nietzsche é uma das origens da filosofia dos va­
lores e da filosofia da vida.

403
V. A VOLTA À TRADIÇÃO METAFÍSICA

Ao mesmo tempo em que na filosofia do século X IX aparece o


lema da vida, e até mesmo alguns anos antes, ocorre uma transforma-
i.ao do conteúdo da filosofia que a aproxima novamente da tradição
metafísica anterior, interrompida, pelo menos na aparência, pelo po-
■nivismo. E não só da imediata tradição realista alemã, mas sobretudo
da tradição do racionalismo, da escolástica e, em suma, da grega,
txnn isso a filosofia readquire sua plena dignidade, possibilitando o
começo de uma nova etapa de fecundidade filosófica, que é a que se
inicia, justamente, com nosso século.
Não é uma coincidência que os pensadores dessa orieniação te­
nham sido católicos, geralmente sacerdotes. A Igreja, por razões so­
bretudo teológicas, se manteve na proximidade dos grandes sistemas
metafísicos. Durante muito tempo, poderíamos dizer desde Suárez, a
Escolástica foi algo bastante morto. Sempre que se ocupou de ques­
tões filosóficas, o fez com um espírito de escola no sentido estreito da
palavra, como simples exegese do pensamento medieval e “refutação
dos erros modernos” . Desse modo, com demasiada freqüência deixou
de lado toda a história da filosofia moderna, como se ela não tivesse
existido, como se tivesse sido um puro erro e desvario que, incom­
preensivelmente, arrebatara o vigor da única filosofia verdadeira, ou
seja, a medieval e, mais concretamente, o tomismo. Essa concepção é
a tal ponto inadmissível, que foi totalmente superada sempre que al­
guém, dentro do pensamento escolástico, soube algo da filosofia mo­
derna e da própria escolástica medieval. Nessas ocasiões, percebeu-se
que a continuação viva e filosófica da Escolástica não está tanto nos

405
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

supostos neo-escolasticismos mas na filosofia moderna. Descartes e


Leibniz inserem-se na linhagem de Santo Agostinho, Santo Anselmo,
Santo Tomás, Escoto, Ockham e Eckharl, como bem sabe mesmo quem
só os conhece medianamente; como sabia, por exemplo, melhor que
ninguém, o Pe. Gratry.
Portanto, os filósofos católicos não tinham perdido contato com
a metafísica. Ao longo do século X IX há uma série de tentativas de de­
volver a plenitude à filosofia, que culminarão em Brentano. Nesse mo­
mento, a filosofia de nossa época se coloca em movimento.

I . As primeiras tentativas

Bolzano • Na primeira metade do século X IX viveu o filósofo


austríaco Bernhard Bolzano (1781-1848), sacerdote católico, profes­
sor de Filosofia da Religião em Praga de 1805 a 1820, data em que foi
obrigado a abandonar sua cátedra. Em 1837, publicou sua obra capi­
tal, Wissenschaftslehre (Teoria cla ciência), que no tocante à “ parte ele­
mentar” da lógica “deixa muito para trás tudo o que a literatura uni­
versal oferece em matéria de ensaios sistemáticos de lógica” , segundo
a opinião de Husserl, que considera Bolzano “um dos maiores lógicos
de todos os tempos” . Bolzano está muito mais próximo de Leibniz
que de seus contemporâneos idealistas alemães e leva o espírito ma­
temático ao estudo da lógica e do problema do conhecimento. Em
muitos aspectos, Bolzano antecipou idéias que se revelaram impor­
tantes para a lógica simbólica e matemática. Sua teoria, que afirma o
caráter do ser - independente da consciência - dos conteúdos ideais
espirituais, exerceu profunda influência na fenomenologia de Hus­
serl, que, em uma de suas dimensões decisivas, é uma reivindicação
dos objetos ideais. Bolzano escreveu também Paradoxien des Unendlichen
(Paradoxos do infinito).
Rosm ini e Gioberti • Os dois filósofos italianos Antonio Rosmi-
ni-Serbati (1796-1855) e Vincenzo Gioberti (1801-52) também con­
tribuíram, com posições muito próximas, para a restauração da meta­
física em meados do século X IX . Os dois eram sacerdotes católicos
e intervieram ativamente na vida pública e na política da unidade ita­

406
A VOLTA A TRADIÇÃO METAFÍSICA

liana. Rosmini foi embaixador da Sardenha junto ao Papa; Gioberti,


ministro. Rosmini escreveu: Nuovo saggio sulV origine clelle idee, Princi-
/>ii delia scienza morale, Teosofia, Saggio storico-critico sulle calegorie. e. a
ilialettica. As principais obras de Gioberti são: Introduzione alio studio
delia filosofia, Degli errori filosofichi di Rosmini, Prolologia, Del buono, dei
bello, Teórica dei sovranaturale.
Rosmini procura a intuição de um “primeiro verdadeiro” que
seja norma das demais verdades; um inteligível de cuja união com a
inteligência resulte a própria inteligência; e isso é o ser como tal, ob­
jeto primeiro da inteligência. A conexão com Malebranche e, por con­
seguinte, com a idéia da visão das coisas em Deus, é muito estreita.
De maneira análoga, em Gioberti se dá um apriorismo do ser, em
virtude do qual o intelecto humano tem essencialmente um conheci­
mento imediato de Deus, sem o qual não pode conhecer nada. Nas
coisas criadas, aparece imediatamente para a mente algo divino; por
isso a prova da existência de Deus é desnecessária. “ O grande concei­
to da Divindade - diz Gioberti - teve até agora um lugar mais ou me­
nos secundário nas doutrinas filosóficas, mesmo nas que, na aparên­
cia ou no efeito, se mostram mais religiosas.” “Até agora as ciências
especulativas participaram mais ou menos do ateísmo.” Diante disso,
a fórm ula ideal de Gioberti afirma que o princípio ontológico (Deus) é
ao mesmo tempo o princípio lógico e ontológico. “Do Ente depende
toda existência, e de sua intuição, todo conhecimento,” “ O concei­
to do Ente está presente em todo nosso pensamento.” Não se pode
começar pelo homem, só por Deus, que se põe por si mesmo, e o ho­
mem pode reconhecê-lo, mas não demonstrá-lo, porque as chama­
das provas da existência de Deus pressupõem “uma intuição anterior
e primigênia” .
Violentando a realidade, esses pensadores italianos prescindem
do fato de que Deus não é imediatamente manifesto, mas está oculto
e habita uma luz inacessível; por isso cabe seu desconhecimento, e é
preciso um esforço para mostrar sua existência, que só pode ser co­
nhecida intelectualmente pelas coisas criadas, per ea quae facta sunt,
como diz São Paulo. “Ninguém nunca viu Deus.” O erro ontologista
foi condenado pela Igreja em 1861 e 1887, e foi em ceria medida uti­

407
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

lizado pelo complexo movimento heterodoxo conhecido pelo nome


de modernismo, definido e condenado pela Igreja nos primeiros anos
de nosso século.

2. G ratry

Maior interesse e alcance tem o pe. Gratry. Auguste Joseph A l­


phonse Gratry nasceu em Lille (França) em 1805 e morreu em 1872,
Estudou na Escola Politécnica, ordenou-se sacerdote, foi professor
em Estrasburgo e em Paris, e em 1852 fundou a Congregação do Ora­
tório da Imaculada Conceição, renovação do Oratório de Jesus a que
pertenceu Malebranche. A partir de 1863 foi professor de Teologia
moral na Sorbonne. As obras mais importantes de Gratry são: La con­
naissance de l’âme, Logique, La morale et la loi de l’histoiie e, principal­
mente, La connaissance de Dieu, o melhor livro filosófico sobre Deus
escrito no último século.
Gratry é pouco conhecido e permaneceu quase no esquecimen­
to, sobretudo enquanto filósofo, durante muitos anos. Sua obra, es­
sencialmente metafísica e centrada no tema de Deus, não pôde a rigor
ser entendida na circunstância positivista de seu tempo; as principais
causas de seu desconhecimento foram suas próprias qualidades. Ju s­
tamente por isso adquire hoje para nós o rnaioi iiiLeresse. Gratry tem
clara consciência de que a história da filosofia é uma só, começando
na Grécia até chegar ao nosso tempo; assim, para expor sua filosofia pes­
soal, começa mostrando a evolução interna dos problemas, desde Pla­
tão até o racionalismo. Em segundo lugar, interpreta a metafísica como
o essencial da filosofia, contrariando a opinião de sua época, e dá um
passo decisivo na direção de sua restauração. E, principalmente, con­
sidera que o problema metafísico se coloca na esteira de duas magnas
questões, que são as que hoje a filosofia é forçada a abordar: a da pes­
soa e a de Deus. Por último, em sua Lógica, expõe uma profunda teo­
ria da indução ou dialética, como principal procedimento da razão,
que tem profunda afinidade com as doutrinas fenomenológicas da in­
tuição e do conhecimento das essências. Esses são os temas centrais do
pensamento de Gratry.

408
A VOLTA À TRADIÇÃO METAFÍSICA

Se há um conhecimento de Deus, ele se funda numa dimensão


i-ssencial do homem, assim como o conhecimento das coisas se funda
no fato de que o homem está em contato com elas, com sua realidade.
() conhecimento de Deus, como todo conhecimento, é algo derivado de
outra dimensão ontológica primária em que se funda sua possibilida­
de. O problema de Deus implica o homem; e como este está essencial­
mente dotado de um corpo e existe num mundo, a ontologia do ho­
mem remete por sua vez à do mundo em que se encontra. Portanto,
ioda a metafísica se resume no problema de Deus.
O homem, segundo Gratry, tem três faculdades: uma primária, o
sentido, e duas derivadas, a inteligência e a vontade. O sentido é o fun­
do da pessoa. Esse sentido é triplo: externo, mediante o qual sinto a
realidade de meu corpo e do mundo; íntimo, com o qual sinto a mim
mesmo e a meus próximos, e divino, pelo qual encontro Deus no fun­
do da alma, que é sua imagem. Esse sentido divino define a relação pri­
mária do homem com Deus, anterior a todo conhecimento ou visão; re­
lação radical porque o ente humano tem seu fundamento e sua raiz
em Deus. A alma encontra em seu fundo um contato divino, e ali re­
side sua força, que a fa z ser.
Deus é a raiz do homem, e este pende dele. Deus faz viver o ho­
mem, sustentando-o. Portanto, é o fundamento da vida humana; o ho­
mem ê e vive desde sua tai^, apoiando-sc cm Deus. Esse é o pressu­
posto necessário de todo conhecimento da Divindade, e desse ponto
de vista Gratry interpreta o ateísmo. O ateu é o homem que está pri­
vado do sentido divino; conseqüentemente é um in-sensato, um de­
mente. As causas desse afastamento de Deus são a sensualidade e a so-
berbia. Pela sensualidade, o homem põe o centro nas coisas e se afas­
ta de Deus; a soberbia faz com que o fundamento seja posto no próprio
homem, extinguindo-se assim o sentido divino e obscurecendo-se o
coração, ao mesmo tempo em que a mente se torna vã, como diz São
Paulo. A alma, por ter uma raiz em Deus, pode desarraigar-se, e se es­
vazia, ficando sem substância nem consistência nenhuma.
Portanto, o ponto de partida do conhecimento de Deus é o sen­
tido divino, o contato misterioso e obscuro com Deus no fundo da
pessoa, que não é conhecimento, mas apenas condição prévia de sua

409
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

possibilidade. O hom em , superando a sensualidade e a soberbia, re­


conhece sua insuficiência e pode elevar-se a Deus, por sem elh a n ç a e,
sobretudo, por con traste. Gratry distingue dois procedim entos da ra­
zão: um, fundado na identidade, que é o silogism o ou dedução, e ou­
tro, fundado no princípio de transcendência, que é a indução ou dia­
lética. Essa é a via intelectual para chegar a Deus. O resultado da indu­
ção não está contido no ponto de partida, excede-o; o dado presente
nos remete a outro, que não está incluído no ponto de apoio. Para
elevar-se a ele, é necessário um im pulso ( é la n ) inventivo, que nem to­
dos possuem . As coisas nos induzem a nos elevarm os a Deus; esse é o
sentido radical e prim ário da ind u ção, que é um m ovim ento total
da alma.
O Pe. Gratry tem a intuição, por um lado, de que o m undo ext
rior fica envolto na realidade profunda do hom em , e por outro, de
que o hom em , que não se basta a si m esm o, é r a d ic a lm e n te insuficien­
te, m esm o com o m undo, já que ainda lhe falta s e u fu n d a m e n to em
Deus. Ao entrar em seu próprio fundo, o hom em encontra, ju n to com
a contingência, o ponto de apoio que o faz ser e viver, s u ste n ta n d o -o , e
esse fundam ento não é o m u n d o , que nos toca pela su p erfíc ie , mas sim
Deus, em quem se apóia nossa raiz.
Isto mostra a grande significação de Gratry para a filosofia atual,
já que sua m etafísica nos leva às últim as questões que nos colocam os
e nos sinaliza um cam inho seguro para abordá-las1.

1. U m e s tu d o cleia lh a d o de s e u p e n s a m e n to e de seu lu g a r n a h is tó ria d a filo s o ­


fia p o d e s e r e n c o n tr a d o n o m e u liv ro La filo s o fia dei padre G ratry ( O b ra s , IV ).

410
A filosofia de nosso tem po

I. B r e n t a n o

I. O lugar de B rentano na história da filosofia

P erso n alid ad e • Franz Brentano é um pensador austríaco de ex-


11aordinária im portância. Nasceu em M aremberg, em 18 3 8 , e m orreu
rm Zurique em 1 9 1 7 . Foi sacerdote católico e professor em Viena,
mas posteriorm ente se separou da Igreja - sem no entanto abandonar
iiias convicções profundam ente católicas - e deixou tam bém sua cá ­
tedra. Brentano escreveu pouco e não publicou a maioria de seus es-
i i itos, que foram editados depois de sua m orte. C ontudo, encontrou
discípulos de excepcional eficácia, e sua influência tem sido im ensa,
em bora silenciosa e pouco visível. A filosofia do presente nasce com
i'le, se não exclusivam ente, pelo m enos no que tem de decisivo. Bren-
liino escrevia livros breves, quase folhetos, de uma densidade e preci-
s.io incom paráveis; e cada um deles determ inou a transform ação radi-
i .il de um a disciplina filosófica. É, com Dilthey, a figura m áxim a da fi­
losofia de sua época; os dois constituem o antecedente mais eficaz e
im ediato da filosofia atual. Em muitos sentidos, Brentano e Dilthey se
opõem ; o prim eiro é con ciso, expressivo, claríssim o, enquanto o se ­
gundo é difuso e seu pensam ento mostra uma estranha vagueza. Bren-
lan o tom a com o m odelo as ciências da natureza, enquanto D ilthey
transform a tudo em história. Enquanto Dilthey lem seus an teceden­
tes intelectuais mais indiretos no idealismo alem ão, Brentano o c o n ­
dena e, em contrapartida, invoca a tradição de Descartes e Leibniz, cie
Santo Tomás e, principalm ente, de Aristóteles. De qualquer m aneira,
I )ilthey e Brentano essencialm ente se com pletam , e não é difícil ver
que a filosofia de nossa época procede de sua dupla influência.

411
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

As m ais im portantes obras de Brentano são: Vom U rsprun g sittli-


c h c r E rhen n tn is (A origem do conhecim ento m oral), um breve folheto
que transform ou a ética e deu origem à teoria dos valores; D ie L eh rc
Jesu uncl ihrc b leib en d e B ed eu tu n g (A doutrina de Jesu s e sua significa­
ção perm anente); P sychologie vom em p irisch en S tan d p u n kt (Psicologia
do ponto de vista em pírico), sua obra capital, da qual procede direta­
m ente a fenom enologia e, portanto, a filosofia atual em sua orienta­
ção m ais rigorosa; estudos sobre Aristóteles, que renovaram com ple­
tam ente o aristoielism o; vários escritos breves sobre a filosofia e sua
história, especialm ente os intitulados D ie v ier P h asen d e r P h ilosop h ie
(As quatro fases da filosofia) e Ü b er d ie Z ukunjt d e r P h ilo sop h ie (Sobre
o porvir da filosofia); K a te g o rie n le h re (Teoria das categorias), W a h rh eií
und E v id en z (Verdade e evidência); por últim o, um extenso estudo
póstum o: Vom D asein G ottes (Sobre a existência de Deus).
A situ a ç ã o filo só fic a de B ren ta n o • Com o todos os filósofos,
aparece encravado num a tradição filosófica, e de m odo ainda mais
explícito que a maioria. Portanto, é necessário determ inar sua situa­
ção m inuciosam ente. Por sua data de nascim ento, seria um pós-hege-
liano, im erso num am biente positivista; mas, com o sacerdote católico,
encontra-se arraigado num a tradição escolástica e, portanto, aristoté-
lica. Brentano tem uma m anifesta co n g en ia lid a d e com Aristóteles e
com Santo Tomás - mais com A ristóteles - , com o a que teve o filóso­
fo medieval com o grego. D epois de Trendelenburg, Brentano renova
o aristotelism o num a época em que este estava abandonado; não es­
queçam os que a filosofia m oderna surgiu com o uma tentativa de obli­
terar Aristóteles. Esse aristotelism o dá uma excepcional fecundidade
ao pensam ento de Brentano. Sem pre que a filosofia retom ou um con ­
tato v er d a d eiro com o pensam ento de Aristóteles, a conseqüência foi
um im ediato increm ento de seu rigor e de sua seriedade. Brentano é
um exem plo disso, da mesm a form a que a Escolástica do século XIII,
e depois Leibniz, e mais ainda Hegel; e em nossos dias, uma das c o n ­
dições da indubitável profundidade da filosofia é a presença próxim a
de A ristóteles. Brentano con d en a a filosofia idealista de Kant a H e­
gel; considera-a um extravio. Em parte - só em parte - tem razão. Bren­
tano recolhe a atitude positivista de seu tem po, justificada na medida

4 1 2
B ren tan o

em que exige ater-se ao que enconiram os, sem lançar-se a con stru ­
ções m entais; o grave é que o positivismo não se atém ao que e n co n ­
tra, mas faz outras construções, não m enos infundadas. Brentano vol­
ta, portanto, a um ponto de vista de oposição ao idealism o; cham a-o
“ponto de vista em pírico”. Na verdade, Brentano é qualquer coisa m e­
nos em pirista; poderia sê-lo no sentido em que o foi Aristóteles, mas
não no de Locke. Em Aristóteles, era freqüente o recurso a uma visão
im ediata sem dedução racional; a isso se cham ou em pirism o; co n tu ­
do, não tem nada a ver com a ex p eriên c ia , no sentido da experiência
sensível. Aristóteles recorre ao noús, à visão noética, que nos dá im e­
diatam ente os princípios. Já verem os o sentido do “em pirism o” de
Brentano, que leva ju stam en te à superação de todo em pirism o sen-
sualista em suas últimas form as psicologistas.
Brentano estabelece a conexão da filosofia antiga, em sua raiz m ais
pura e autêntica, com a filosofia m oderna. Fundando-se nessa situa­
ção, transform a a filosofia de seu tem po, partindo de sua visão de duas
disciplinas: a psicologia e a ética. Vejamos a co n trib u ição de B ren ta­
no a am bas.

2. A psicologia

A psicologia do tem po de Brentano era uma tentativa de trans­


form á-la em ciência positiva experim ental; uma psicologia associacio-
nista, relacionada com a filosofia inglesa, que pretendia explicar tudo
m ediante associações de idéias e além disso in terv ir nas dem ais dis­
ciplinas, com o, por exem plo, na lógica, na ética, na estética, para tam ­
bém transform á-las em psicologia. A de Brentano terá um caráter
com pletam ente novo.
F e n ô m en o s físico s e p síq u ico s • O prim eiro problema essen­
cial que se coloca consiste em diferenciar nitidam ente os fenôm enos
físicos dos psíquicos. A Idade Média - sobretudo Avicena - co n h ece­
ra um caráter dos fenôm enos psíquicos que depois foi esquecido; era
o que cham avam de in ex istên cia in ten cion al (em que o in significa em e
não negação; ex istên cia e m ), ou sim plesm ente in ten cion alid a d e. Brenta­
no retom ou esse caráter, dando-lhe um alcance e uma precisão que
não teve na Escolástica.

4 M
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Intencion alidade; quer dizer referência a algo diferente; no caso


dos atos psíquicos, referência a um conteúdo, a um o b je to (o que não
quer dizer que o objeto seja real). Pensar é sempre pensar a lg o ; sentir
é sentir algo; querer é querer algo; amar ou odiar é amar ou odiar algo.
Portanto, todo ato psíquico aponta para um objeto; esse objeto pode
não existir, com o quando penso no centauro ou, ainda mais, no qua­
drado redondo ou no pentaedro regular; porém am bos existem com o
co rrela ta s do meu pensam ento, com o objeto para o qual aponta meu
ato de im aginar ou pensar. Se a Brentano forem m ostrados atos não
intencionais, dirá que não são atos psíquicos; por exem plo, a sensa­
ção de verde ou a dor de estôm ago. Segundo Brentano, as sensações
são sim ples elem entos não intencionais do ato psíquico (intencional)
que é m inha p e r c e p ç ã o de uma árvore verde, e o ato psíquico é o sen ­
tim en to de desagrado cujo objeto intencional é a dor de estômago.
Essa idéia da intencionalidade tem amplas conseqüências. Irá le­
var, em primeiro lugar, ao ressurgim ento dos objetos ideais, entre os
quais aqueles que Husserl cham ará de significações. Além disso, levará à
idéia de que o pensam ento é algo que não se esgota em si m esm o, que
está apontando essencialm ente para algo diferente dele. Dará lugar,
por últim o, à consideração de que o hom em é algo intencional, ex­
cêntrico, e que assinala algo diferente dele. A idéia do hom em com o
um ente “aberto para as coisas” radica nessa idéia de Brentano.
O m étod o de B ren tan o • Qual é o método de Brentano, esse m é
todo que ele chama de “em pírico”? Para um inglês, para um psicólogo
associacionista, empirismo queria dizer o b sen /a çã o de fa to s . O empirista
observa um fato, e depois outro, e em seguida abstrai e generaliza os as­
pectos com uns. O método de Brentano é um empirismo de outro tipo.
Suponham os que quero observar um fenômeno: tomo um único caso e
vejo o que é o essencial nele, aquilo em que consiste, sem o qual não é;
assim obtenho a essên cia do fenôm eno; e posso dizer, por exem plo, não
que os atos psíquicos são g era lm en te intencionais, mas que o são essen ­
cialm en te. Brentano intui a essência de um fenômeno. Esse método, de­
purado e aperfeiçoado por Husserl, é a fenomenologia.
C la ssifica çã o dos fen ô m en o s p síq u ico s • Depois de diferenciar
os fenôm enos psíquicos, Brentano tem de classificá-los. Já que o es-

414
Bren tan o

M-ncial deles é a intencionalidade, classifica-os baseando-se nela, se-


C.imdo os diversos modos de referência intencional. E distingue três
iipos de atos:

rep resen ta ções (conhecidas com o “assunções”)


/\fos psíquicos
em oções (ou fenôm enos de interesse, amor ou volição)

A palavra rep resen ta çã o é usada por Brentano num sentido muito


iimplo: um pensam ento, uma idéia ou uma imagem. Chama tudo o
(|ue está p resen te à co n sciên cia de representação. E Brentano formula
um antigo princípio escolástico, que ainda encontram os em Espinosa
por exem plo, e que se con h ece com o nom e de p rin cíp io d e B ren tan o:
Todo ato psíquico, ou é um a representação ou está fundado numa
representação.” Se me alegro com uma coisa, m eu alegrar-me supõe
uma representação daquilo com que me alegro; se quero algo, da co i­
sa querida etc. Portanto, há um primeiro grau de intencionalidade,
que é a referência simples ao objeto representado, e um segundo grau,
no qual, s o b re a b a se de uma representação, tom o posição num segun­
do ato intencional. O ju íz o consiste em adm itir ou rejeitar alg o com o
v erd a d eiro . A em oção, o interesse, a vontade ou o am or consistem em
um m o v er-se p a r a alg o, ou seja, apreciá-lo ou valorizá-lo, estim á-lo. Há
tam bém uma tomada de posição, um aprovar ou rejeitar, mas de ín ­
dole diferente. Daqui parte a ética de Brentano, e depois a filosofia
dos valores.
A p ercep ção • Brentano, em sua P sicologia, faz tam bém uma teo­
ria da percepção. E en con tra dois m odos fundam entais: percepção
in tern a (percepção dos fenôm enos psíquicos) e percepção ex ter n a
(percepção dos fenôm enos físicos). A percepção interna é im ediata,
evidente e infalível ( a d e q u a d a )' a externa, por sua vez, é m ediata, não
c evidente e está sujeita a erro ( in a d eq u a d a ). Portanto, a percepção in­
tern a é critério seguro de certeza. Esta idéia foi retom ada e corrigida
por H usserl, que considera que toda percepção externa, mas tam bém
parte da interna (a em p írica), é inadequada, e só é adequada a fe n o -
m en o ló g ic a . Em sum a, trata-se de não elaborar posições de existência;

415
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

deve-se descrever, sim plesm ente, as vivências, sem tom ar posição


perante a existência de nada extern o a elas, com o, por exem plo, ob­
jeto s reais.

3. A ética

A ética de Brentano está traçada em A origem d o co n h ecim en to m o ­


ral, que é o texto de uma conferência que pronunciou em Viena em
18 8 9 , com o título: “Da sanção natural do ju sto e do m oral”. Brenta­
no irá aplicar à ética um ponto de vista análogo ao de sua psicologia,
que ele cham a de em pírico no sentido que vimos.
A san ção • Brentano com eça se perguntando sobre a sanção na­
tural do ju sto e do moral. Q uando digo sobre algo que é bom ou mau,
tem de haver um fundam ento, alguma sanção, algo que justifique o
que seja bom ou mau. Brentano rejeita várias soluções de filósofos an­
teriores: o hedonism o, o eudem onism o, a moral kantiana etc.
Brentano guia-se por um ponto de vista diretor: faz correspon­
der ao bom o verdadeiro, e à ética, a lógica. O m andato ético, diz ele,
é muito sem elhante ao mandato lógico. O verdadeiro é admitido como
verdadeiro num ju íz o : o bom é ad m itido com o tal n u m a t o d e am or.
O verdadeiro é a c red ita d o , afirm ado; o bom é a m a d o . E, inversam en­
te, o fa ls o é n eg a d o , e o mau, od ia d o .
O c rité rio m oral • O que me diz que uma coisa é boa ou má? O
fato de que eu a ame ou a odeie? Não. Em lógica, a verdade tam pou­
co depende de que eu a afirme ou a negue: posso me enganar. Não é
porque eu amo uma coisa que ela é boa; ao contrário: porque é boa,
amo-a. Mas posso me enganar: não se deve limitar o erro ao cam po do
ju ízo ; o erro, um erro de outro tipo, é cabível na estim ação.
De repente, Brentano nos trasladou para a esfera da objetividade.
O bom é o objeto; minha referência pode ser errônea; m inha atitude
anLe as coisas recebe sua sanção das próprias coisas, não de mim.
Ev id ên cia • Percebo a m im m esm o amando ou odiando algo.
Posso me enganar. A quem vou acudir para ver se é bom ou mau?
Brentano recorre ao paralelismo com a lógica: que é o que nela me dá
o critério para saber se erro ou não? Brentano distingue os ju íz o s cegos

416
B ren tan o

i los ju ízos evidentes. Há m uitas coisas que nego e outras que afirmo e
li,is quais creio firm emente, em bora o faça por um juízo mais ou m e­
nos obscuro, fundado na fé, na autoridade, no costum e ele. Posso
1 io iô com absoluta firmeza, m as esses ju ízo s não têm em si mesmos
o lundam ento de sua verdade: ou não o têm , ou o têm fora deles. Não
u m em si mesm os a justificação de sua verdade, e Brentano os chama
de cegos.
Diferentem ente destes, há outro tipo de ju ízo s que Brentano ch a­
ma de eviden tes. Trazem em si m esm os algo com o uma luz, que os íaz
.iparecer com o ju ízos verdadeiros. São ju ízos em que não só se acre­
dita e que se afirmam, mas que se vê que são verdadeiros, e se vê com
plenitude intelectiva que não podem ser de outra maneira. Creio que
2 mais 2 são 4 , não porque me disseram, mas porque vejo que é assim
i- não pode ser de outro m odo. Portanto, os ju ízos evidentes são os que
trazem em si a razão de sua verdade ou de sua falsidade.
O am o r ju s t o • Voltem os ao problema ético, em que se trata do
bom e do mau. Brentano diz que o fato de eu ter am or ou ódio por
uma coisa não prova sem mais n em m enos que seja boa ou má. É n e­
cessário que esse am or ou esse ódio sejam justos. O am or pode ser ju s ­
to ou injusto, adequado ou inadequado. Pode haver, por outro lado,
um am or que traga em si a ju stificação de si m esm o. Quando amo
uma coisa porque indubitavelm ente é boa, trata-se de um amor justo.
Se am o um a coisa im pulsivam ente, sem clareza, o am or pode ser ju s ­
to ou injusto. Quando se vê que a coisa é boa, e pelo fato de ser boa,
o am or é evidentemente ju sto. A atitude adequada diante de uma co i­
sa boa é am á-la, e ante um a coisa má, odiá-la. E quando uma coisa é
apreendida com o boa ou com o m á, ela é fo r ç o s a m e n t e amada ou odia­
da. A conduta a ser seguida é ou tra questão. Brentano lembra o verso
clássico: V ideo m elio ra p ro b o q u e, d e te r io r a sequor. A m oral, portanto,
está fundada ob jetiv a m en te. E a es tim a ç ã o , longe de depender do arbí­
trio subjetivo, tem de se ajustar à bondade ou maldade d as coisas,
com o a crença na verdade delas. Dessa ética de Brentano nasceu a teo­
ria dos valores, que contém grandes dificuldades internas, mas que
foi uma contribuição central para a ordenação objetiva e hierárquica
do valor e, portanto, para a fundam entação da m oral e das demais
d iscip lin as estim ativas.

4 1 7
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

4. A existência d e D eus

No livro póstumo de Rrentano, Vom D asein G ottes, incluem-se di­


versas lições sobre a existência de Deus, pronunciadas em W ürzburg
e em Viena, de 1868 a 1 8 9 1 , e um breve tratado de 1 9 1 5 , intitulado
G ed a n k e n g a n g b eim B ew eis f ü r d a s D asein G ottes. Na primeira época,
Brentano rejeita a prova ontológica e afirma quatro provas a p o ster io ­
ri: a teleológica, a do m ovim ento, a prova pela contingência e a prova
psicológica pela natureza da alma humana. Brentano prefere as duas
prim eiras, sobretudo a teleológica, à qual dá um a precisão científica
até então desconhecida. C ontudo, no escrito de 1 9 1 5 se serve do ar­
gum ento pela contingência, de caráter puram ente m etafísico.
Brentano prova prim eiro a necessidade do ente, que não pode
ser absolutam ente contingente. Um a vez dem onstrada a existência de
um ente necessário, afirma que nada do que cai sob nossa experiên­
cia, nem físico nem psíquico, é im e d ia ta m en te n e c e s s á r io ; portanto,
tem de haver um ente tra n scen d en te im ediatam ente necessário1.
A sig n ifica çã o de B ren ta n o • O centro do pensam ento de Bren­
tano é a idéia de evidên cia. Esse é o sentido de seu “em pirism o”: a vi­
são evidente das essências das coisas. Essa volta à essência é a volta ao
rigor da metafísica; em Brentano, a filosofia é, mais uma vez, conquis­
ta de essências, saber m etafísico estrito, o que ela sempre foi quando
foi autêntica. Por outro lado, Brentano nos fornece os elem entos fun­
dam entais da filosofia presente: a incorporação de toda a tradição fi­
losófica, a intencionalidade, a intuição essencial, a idéia de valor. Dil-
they, por sua vez, nos dará a historicidade. C om esses elem entos se
põe em m archa a filosofia de n osso século.

1. S o b r e os p ro b le m a s d essa p ro v a , v e r m eu e stu d o El p ro b le m a de Di os en la f il o ­
so fia d e nuestro tiem po, em San A n se lm o y el insensato (O bras, IV ).

418
II. A IDÉIA DA VIDA

1. Dilthey

P erso n alid ad e e e s c r ito s • W ilhelm Dilthey nasceu em 1 8 3 3 e


morreu em 1 9 1 1 . A partir de 1 8 8 2 foi professor na Universidade de
Berlim, com o sucessor de Lotze. Nos últim os anos de sua vida apo­
sentou-se da Universidade e reunia em sua casa um grupo de discípu­
los íntim os. A influência de Dilthey foi de fato enorm e, porém tardia,
pouco visível e estranha. Dilthey se dedicou particularm ente aos estu­
dos históricos, sobretudo de história da literatura e das demais ciên ­
cias do espírito; e tam bém cultivou intensam ente a psicologia. Tinha
uma form ação de suma am plitude, inspirada de m odo imediato nos
idealistas alemães, concretam ente em Schleierm acher, e que se esten­
dia aos grandes racionalistas, aos medievais - inclusive árabes - e aos
gregos; sua In trod u ção às ciên cias do esp írito revela o vastíssimo m ate­
rial histórico e filosófico que Dilthey manejava.
Aparentemente, a obra de Dilthey era pouco mais que isso: psico­
logia e história do espírito. Quando tentou formular sua filosofia, m o­
vido por exigências editoriais concretas, só chegou a oferecer esboços
insuficientes. Contudo, a obra de Dilthey trazia dentro de si a intuição
vacilante, de expressão sempre frustrada, de uma nova idéia: a id éia d a
vida. Um a das duas raízes fundamentais da filosofia atual se encontra
em Dilthey - e a outra, em Brentano; no entanto, a filosofia diltheyana
só pode ser entendida com o tal, em sua verdade, d esd e a filosofia de
hoje, já amadurecida. Essa é a razão da essencial vaguidade do pensa­
m ento e do estilo de Dilthey, e de sua influência difusa e pouco visível.

419
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A maioria das obras de Dilthey são ensaios ou anotações, que fo­


ram publicados parcialmente depois de sua morte. Seu principal e
quase único livro é a E inlcitung in d ie G eistesw issen schaften (Introdução
às ciências do espírito), do qual só escreveu o primeiro tomo. Tam­
bém escreveu uma série de estudos agrupados sob o título: W eltans-
chuung und A n alyse des M en schen seit R enaissance und R eform ation
(Concepção do m undo e análise do hom em desde o Renascim ento e
a Reforma); outra série intitulada: D ie geistige W elt: E inleitung in die
P hilosophie d es L eben s (O m undo espiritual: introdução à filosofia da
vida), em que se encontram as Id een ü b er ein e b esch reib en d e und zer-
g lied ern d c P sychologie (Idéias sobre uma psicologia descritiva e analíti­
ca) e D as W esen d er P hilosophie (A essência da filosofia). Entre os escri­
tos de sua última época se encontra W eltanschau un sgslehre (Teoria das
concepções do m undo). Também escreveu o livro intitulado D as Er-
lebnís und d ie D ichtung (Vivência e poesia).
O pon to de vista de D ilth ey • Taine, Renan, W undt, Lange,
Spencer pertencem à geração anterior a Dilthey; no entanto, temos a
impressão de que são ainda mais antigos. É a turma positivista que co­
meça a se sentir incomodada e reage contra o positivismo; contudo, a
rigor, só Dilthey o consegue - e não totalmente. Auguste Comte (nas­
cido em 17 9 8 ) era de três gerações anteriores: Dilthey - da geração de
Brentano, Nietzsche e W illiam Jam es - já não recolheu sua influência
direta, mas apenas sua vigência. A dependência polêmica em relação ao
positivismo condiciona a obra de Dilthey e a dos neokantianos.
Dilthey recebe da filosofia de Comte duas idéias muito im por­
tantes, que deverá reelaborar de m odo original e diferente; a primeira
é de que toda a filosofia anterior foi p a r c ia l, não tom ou a realidade in­
tegralmente tal com o é; a outra, de que a metafísica é impossível, e só
resta lugar para as ciências positivas. Dilthey tentará fundar a filosofia
“na experiência total, plena, sem m utilações, portanto, na realidade
inteira e com pleta”; e, por outro lado, superar a m etafísica conforme
a entende, ou seja, com o “absolutism o do intelecto”: este é o tributo
que paga à sua época.
A rigor, Dilthey não fez um sistem a, nem uma teoria da vida,
nem sequer uma doutrina histórica; fez m enos e mais: tom ar contato

420
A ID É IA DA VID A

imediato com a realidade da vida e, conseqüentem ente, da história.


“Todos os hom ens - escrevi ern outro lugar1 a propósito de Dilthey -
vivem na história, porém m uitos não o sabem. O utros sabem que seu
tempo s e r á h istórico, mas não o vivem com o tal. Dilthey nos trouxe o
h istoricism o , que é certam ente uma doutrina, mas antes um modo de
ser: a co n sc iên cia h istó rica , procurando retirar do term o co n sciên cia
seu matiz intelectualista e doutrinal. Hoje, totalm ente mergulhados
nesse historicism o, temos de nos esforçar para perceber a novidade
dessa descoberta. Temos consciência de estar num tempo determina­
do, destinado a passar com o os demais, a ser superado por outro. Te­
mos capacidade de transmigrar para outras épocas, e vivemos num
mundo constituído d ireta m en te pela temporalidade. Diante de qual­
quer coisa, necessitam os de sua data, de sua inserção na história, e
sem ela não a entendemos. Tudo se dá a nós num a circunstância his­
tórica; nossa visão de uma cidade, por exem plo, não é a imediata do
p resen te, mas aparece para nós com o uma acum ulação de estratos
temporais, com o um ‘resultado’ histórico, em que o passado sobrevi­
ve e está, por sua vez, carregado de futuro. Para Dilthey, isso está es­
treitamente relacionado com o ceticism o, provocado pelo antagonis­
mo das idéias e dos sistemas. A atitude de espírito em que vivemos ex­
clui o d efin itiv o’, não acreditam os resolver para sempre nenhuma
questão, tão-som ente dizer dela a palavra que nos corresponde em
nosso tem po, e que está destinada a ser superada ou corrigida pelo
icm po futuro. A visão da história em Dilthey é ‘um im enso cam po de
m inas’. Lem brem os que nem sempre foi assim. Houve longas épocas
rin que o hom em contem plava muitas coisas independentes do tem ­
po, com o se fossem dotadas de certa validade intem poral: é o caso de
iodos os classicism os. C ontudo, nas idades m enos serenas e seguras,
r principalm ente nas que significaram uma ruptura com as normas
.interiores, se afirmava o presente com o o n ovo e ao mesmo tempo
i nino o válido, sem mais restrições. Diante da história com o repertório
ilr erros aparecia o presente com o sua retificação e elim inação. Agora

1. B iog rafia d e la filo so fia , V I, 3 7 . IO bras, I I .1

421
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

se senie a caducidade peculiar do histórico, mas ao m esm o tempo a


inclusão nessa história do m om ento em que se vive. A cada nom e hu­
m ano tem os de agregar, para entend ê-lo, as duas datas que limitam
sua vida, e já antecipam os em nós m esm os a segunda, ainda incerta,
substituída por um ponto de interrogação. O hom em nunca viveu
com o agora sua vida com o a efetiva realidade dos d ia s con tad os. E isso
é a história... Em nosso tem po, isso adquire características de uma ra-
dicalidade desconhecida... porque nosso tem po descobre que o que
muda é o p ró p rio hom em . Não só o homem está na história, nem só Cem
história, mas é história; a historicidade afeta o próprio ser do hom em .”
Esse é o ponto de vista diltheyano.
A vida hum ana • Dilthey descobre a vida em sua dim ensão his­
tórica. Dos diferentes m odos com o o século X IX chegou a abordar
essa realidade que é o viver, o mais fecundo foi o diltheyano. A vida é
em sua própria substância histórica; a história é a própria vida, do
ponto de vista da totalidade da hum anidade. Essa realidade vital não
é um “m u n d o” de coisas e pessoas; é um com plexo (Z u sam m en h an g , a
palavra que Dilthey repete constantem ente) de rela çõ es vitais. Cada
“coisa” nada mais é senão um ingrediente de nossa vida, e nela adqui­
re seu sentido. “O amigo é para ele uma força que eleva sua própria
existência; cada m em bro da família tem um lugar determ inado em
sua vida, e tudo o que o rodeia é entendido por ele com o vida e espí­
rito que se objetivou ali. O banco diante cla porta, a casa e o jardim
têm nessa objetividade sua essência e seu sentido. Assim a vida cria a
partir cie cada indivíduo seu próprio m undo" (Teoria d a s co n cep çõ es do
m u ndo, p. 6 2 ).
O m undo é sempre correlato do m esm o, e este não existe sem
outro term o, sem o m undo. Pois bem , essa vida se apresenta com o um
enigma que pede c o m p reen sã o ; a m orte, sobretudo, coloca essa exi­
gência, porque é o in com preen sível. No pntanto, a vida só pode ser en­
tendida a p a r tir d ela m esm a; o conhecim ento não pode retroceder
para trás da vida. Por essa razão, diante da explicação causal, método
das ciências da natureza, Dilthey irá fazer da c o m p re en sã o d escritiv a o
m étodo das ciências do espírito, do conhecim ento da vida. E com o a
com preensão da vida alheia, principalm ente a pretérita, requer uma

4 2 2
A ID É IA DA V ID A

init'1 pretação, o método diltheyano é a h erm en êu tica. Por isso postula


.1 psicologia “descritiva e analítica”, por oposição à explicativa dos
I i .ii/ologos experim entais, que tratam a vida hum ana com o natureza.
A estrutura da vida hum ana é uma totalidade unitária, determ i-
ii.ida pela m esm id a d e d a p essoa. Todo estado psíquico é um processo,
m,is a própria vida não o é, ela é um a continuidade permanente den-
iin da qual se dão os processos que passam, “do m esm o modo - diz
I >i 11hey - que um viajante que avança agilm ente vê desaparecer atrás
■I' '.i objetos que um m om ento antes estavam diante dele e ju n to dele,
,in mesm o tem po em que se conserva a totalidade da paisagem”. Ou
.qa, a realidade primária é a unidade do viver, d en tro da qual se dão,
por um lado, as “coisas” e, por outro, os “processos” psíquicos. Essa
i nnexão fundam ental que é a vida tem um caráter fin alista.
A vida hum ana é um a unidade originária e transcendente: não é
um com posto de elem entos; a partir de sua realidade unitária se dife-
ii-nciam as funções psíquicas, que perm anecem unidas a ela em sua
i nnexão. Esse fato - diz Dilthey - , cuja expressão no grau mais eleva-
iln é a unidade da consciência e a unidade da pessoa, distingue total­
mente a vida psíquica do m undo corporal com o um todo. Portanto,
I )ilthey rejeita qualquer atom ism o psíquico. Por outro lado, essa u ni­
dade se dá dentro de um m eio. A unidade vital está em ação recípro­
ca com o m undo exterior.
A vida consiste no fato de a unidade vital reagir aos estím ulos,
m odificá-los ou se adaptar a suas condições, m ediante a atividade vo­
luntária. Por últim o, não se passa de uns elem entos a outros da vida
psíquica por mera causalidade no sentido da natureza externa; não há
razão suficiente para que as representações se transform em em pro­
cessos, nem para que estes se transform em em processos volitivos.
Poder-se-ia imaginar, diz Dilthey, um ente, mero sujeito de represen-
iações, que em meio ao tum ulto de uma batalha fosse espectador in ­
diferente e abúlico de sua própria destruição, ou que esse mesmo ente
acom panhasse a luta à sua volta com sentim entos de temor e con ster­
nação, sem que, apesar disso, desses sentim entos procedessem m ovi­
mentos de defesa. A conexão que se clá entre os elem entos da vida psí­
quica é de índole peculiar e superior, procedente dessa totalidade pri­
mária que é a vida hum ana.

423
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Em Dilthey, a análise da vida hum ana, insuficiente, porém de ex­


traordinária genialidade, é hoje ponto de partida da m etafísica, e é
forçoso recorrer sempre a ele.
A filo so fia • “O que é filosofia não é uma questão que possa ser
respondida segundo o gosto de cada um ; sua função tem de ser em pi­
ricam ente descoberta na história. Essa história, é claro, terá de ser en ­
tendida partindo da vitalidade espiritual de que n ós m esm os parti­
m os, e em que vivemos filosofia.” Essas são as duas idéias diretoras de
Dilthey: a essência da filosofia só pode ser descoberta na realidade his­
tórica do que efetivamente foi, e a história só é com preensível desde a
vida em que se está. Por isso, Dilthey tem de fazer um a interpretação
da história inteira, para determ inar o ser da filosofia. As duas caracte­
rísticas principais com uns a toda a filosofia são a u n iv ersa lid a d e e a a u ­
ton om ia ou pretensão de validade universal: todas as demais são pri­
vativas de algum a filosofia.
Dilthey retifica a idéia do pensar produtivo, tão do agrado dos
idealistas alem ães. A filosofia, diz Dilthey, analisa mas não produz;
não cria nacla; só pode m ostrar o que existe. Isto é, Dilthey renova de
forma mais verdadeira e radical a exigência positivista de ater-se às
coisas, cle não substituí-las por construções, atitude que será com par­
tilhada pela fenom enologia. A filosofia é a ciência do real, isto é, de
todo o real, sem mutilações.
C ontudo, Dilthey está m uito longe de um absolutism o intelec-
tL ia l. A inteligência não é algo isolado e independente, mas uma ju n ­
çã o vital, e só tem sentido dentro da totalidade que é a vida hum ana;
o saber tem de ser “derivado” da vida. Em segundo lugar, o saber não
esgota o real: “E m última instância, a própria realidade não pode ser
explicada logicam ente, apenas entendida. Em toda realidade que se
dá para nós com o tal, há, por sua natureza, algo inefável, incognoscí-
vel.” O que nos é proporcionado, agrega ele, é irracional.
A fundam entação da filosofia sistem ática é para Dilthey au tog n o-
se, au toconhecim ento (S elbstb esin n u n g ). A partir do au toconhecim en-
to progride-se para a h erm en êu tica , ou seja, o conhecim ento da vida
alheia, a interpretação com preensiva de outras vidas, e assim , da his­
tória. Por ú ltim o, dali se passa para o conhecim ento da n atu reza. A fi­
losofia vai do m ais próxim o - nós m esm os - para o mais distante.

4 2 4
A ID É IA DA VID A

limbora os sistemas absolutos não sejam possíveis - cada um tem sua


verdade parcial que, ao m enos em princípio, não exclui a dos demais,
parcial também - , o hom em os pensa, e eles ficam com o um fato cons-
mutivo da consciência humana. Todo homem tem uma W eltan schau u n g ,
uma idéia ou concepção do m undo, cuja última raiz não é intelectual,
mas sim a p ró p r ia vida. Essas idéias do m undo, que a filosofia com eça
por estudar historicam ente, podem ser reduzidas a tipos para conhe­
cer os m odos possíveis de representar o universo. Assim, Ortega (Guií-
Icrm o D ilth ey y la id ea d e la v id a ) resume deste m odo os quatro temas
da filosofia de Dilthey: 1 ° História da evolução filosófica com o prope­
dêutica. 2 o Teoria do saber. 3 o Enciclopédia das ciências. 4 o Teoria das
Idéias do m undo.
Dilthey postula uma C ritica d a ra z ã o histórica - é o que sua Intro­
d u ção às ciên cias do espírito pretende ser. Aspira a realizar pela “outra
metade do g lobu s in tellectu alis ” o que Kant fez pelo conhecim ento da
natureza. Essa é a grande idéia de Dilthey: diante do irracionalism o a
que chegam no século X IX os que têm consciência do fracasso da “ra­
zão pura” quando querem pensar a vida e a história, Dilthey reivindi­
ca uma nova forma de razão, mais am pla, que não exclui o histórico.
A rigor, contudo, só tenta a p lic a r a razão à história; a m esm a razão,
cntenda-se; por isso acaba considerando supra-históricas as idéias do
m undo, e nessa medida não sabe d a r r a z ã o delas. O term o r a z ã o his­
tórica não tem - nem pode ter - em Dilthey o alcance que, com o ve­
remos, atinge na filosofia de Ortega.
O se n tid o da filo so fia d ilth ey a n a • Vim os que no pensam ento
dc Dilthey aparecem indissoluvelmente ligadas duas disciplinas: a psi­
cologia e a história. Por um lado, a n á lise do h u m a n o , especialm ente
mediante a autognose: filosofia com o ciên cia d o espírito. Por outro, essa
realidade hum ana é história, é a v id a h u m a n a ; essa análise é filo s o fia d a
vida; e, portanto, na medida em que essa vida é alheia e pretérita, é in-
icrpretação histórica, h erm en êu tica. Seu modo de conhecim en to não é
a explicação causal, mas a com preensão (Verständnis), e sua teoria cons-
lituirá uma verdadeira crítica da razão histórica.
Aqui já tem os uma série dos ingredientes da filosofia de nosso
lem p o, que ainda terá de ser com pletada. Em p rim eiro lugar, com

425
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

uma nova iruerpreiação do tem p o v ita l, em Bergson; em segundo lu­


gar, depois de a filosofia européia voltar a se vincular com sua tradi­
ção metafísica e sistemática, a renovação, por obra de Breniano, da
idéia de in ten cion alid a d e determ inará o am adurecim ento em Husserl
de um m étodo novo: a fe n o m e n o lo g ia . Com isso já terem os os elem en­
tos de que partiu a filosofia que está sendo feita hoje: na Alem anha, a
filoso fia e x is ten c ia l , sobretudo de Heidegger; na Espanha, a m etafísica
d a r a z ã o vital de Ortega, de resto bem diferente em seu sentido e em
suas tendências mais profundas; e as doutrinas que procedem de uma,
de outra ou de ambas.

2. S im m el

Vida e e s c r ito s • Georg Sim m el, nascido em 1 8 5 8 e m orto em


19 1 8 , é quase exatam ente contem porâneo de Bergson e Husserl. Foi
professor das Universidades de Estrasburgo e Berlim e cultivou espe­
cialm ente os tem as que têm relação com a sociologia e a história.
Apesar de deficiências essenciais, a S ocio lo g ia de Sim m el é uma das
tentativas m ais agudas de fundam entação dessa disciplina. Sim mel -
uma das mais im portantes figuras da filosofia do com eço deste século
- procurou desenvolver em seus escritos uma tática de aproxim ação à
imediatez dos objetos e dos problem as; daí o principal atrativo de
suas obras e ao m esm o tempo sua fecundidade.
Seus escritos mais im portantes são: K an t (um curso de lições),
S c h o p e n h a u er u nd N ietzsche, P h ilo sop h ie d es G eld es (Filosofia do di­
nheiro), D ie P rob lem e d er G esch ich tsp h ilosop h ie (O s problem as da filo­
sofia da história), G ru n d p ro blem e d e r P h ilosop h ie (Problem as funda­
mentais da filosofia), L eben san schau u n g (Intuição da vida). Também seu
importante S oziolo g ie e grande núm ero de perspicazes ensaios sobre
C u ltura fem in in a , F ilosofia d a c o q u e t e n a , F ilosofia d a m o d a etc.
A vida com o tran scen d ên cia • O mais profundo do pensamento
de Simmel é sua concepção da vida, tal com o a expõe, sobretudo, no
primeiro capítulo de seu Lebensanschau un g. A posição do hom em no
mundo - diz Simmel - está definida, porque a todo instante se encon­
tra entre dois limites. Sempre, em todo lugar, tem os limites, e por isso

426
A ID É IA DA V ID A

somos também limites. Há sempre um mais e um m enos, um aquém e


um além de nosso aqui e agora e assim; nossa vida aparece definida por
i liiis valores que entram em freqüente conflito: riqueza e determinação.
Contudo, o interessante é que, em bora o lim ite geral seja neces-
'..ii io para nossa vida, todo limite particular determ inado pode ser
ii.m scendido e ultrapassado. Nossas ações se assem elham às do joga-
ilm de xadrez, que precisa saber com certa probabilidade as conse-
111it-ncias de sua jogada; no entanto, o jogo seria impossível se essa
I >it-visão se estendesse indefinidam ente. Os lim ites da vida humana
|>ndem ser deslocados; por isso Sim m el diz, em forma de paradoxo:
irm os em todos os sentidos um limite e não tem os em nenhum sen-
ndo um lim ite”. Cada ato vital im plica a lim itação e a superação do li­
mite. O espírito ultrapassa a si m esm o, transcende a si m esm o, e por
i-.so aparece com o o absolutamente vivente. Nesse sentido, pôde-se di-
. rr que o hom em é algo que deve ser superado; é o ente limitado que
nao tem nenhum limite.
O tem po • Para obter um conceito da vida, Sim m el parte de uma
rrilexão sobre o tempo. A atualidade é um momento inextenso; não é
tempo, com o o ponto não é espaço. Nada mais é senão a coincidência
do passado e do futuro que são, eles sim, m agnitudes temporais, isto
r, tempo. Entretanto, o passado já não é, o futuro não é ainda; a rea­
lidade só se dá no presente, e por isso a realidade não é algo tem po­
ral. “O tem po não existe na realidade, e a realidade não é tem po.” E,
apesar de tudo, a vida vivida subjetivam ente é sentida com o algo real
numa extensão temporal. O uso da linguagem não entende atualidade
ou presente com o um mero ponto, mas sim com o uma porção de pas­
sado e outra de futuro ju n tas, com limites que variam conform e se
íale do presente pessoal, político ou histórico.
A vida aparece referida ao futuro. Isso pode ser entendido num
sentido bastante banal: o hom em se propõe sem pre um fim futuro;
contudo, esse fim é um ponto imóvel, separado do presente, e o que
caracteriza a penetração vital (Hineinleben) da vontade atual no futuro
é que o presente da vida consiste em que esta transcende o presente. Não é
real um limiar entre o agora e o futuro. O futuro não é uma terra n u n ­
ca pisada, separada do presente por uma fronteira; vivemos num a c o ­

427
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

marca fronteiriça, que pertence lanto ao futuro com o ao presente. “A


vida é realm ente passado e fu tu ro.” “Só para a vida - agrega Simmel -
o tem po é real.” “O tem po é a form a de consciência daquilo que é a
própria vida em sua imediata concretude, que não se pode enunciar,
mas som ente viver; é a vida, prescindindo de seus con teú d o s.”
A e s s ê n c ia da vida • A vida atual transcende aquilo que não é
sua atualidade, mas de m odo tal que esse transcender constitui sua
atualidade. Essa é a essência da vida. Chamamos vicia um m odo de exis­
tência que não reduz sua realidade ao m om ento presente, que não re­
lega ao irreal o passado e o futuro, mas cuja continuidade peculiar se
m antém realm ente além dessa separação; ou seja, seu passado existe
realmente penetrando no presente, e o presente existe realm ente dila­
tando-se no futuro.
Pois bem , essa vida só se dá em indivíduos; e esse é um sério pro­
blema: a vida é ao mesmo tempo continuidade ilimitada e um eu deter­
minado por seus limites. A transcendência da vida é imanente a ela; o
ultrapassar-se a si mesmo é o fenôm eno primário da vida; nisso consis­
te, segundo a frase de Simmel, “o absoluto de nossa relatividade”. Por­
tanto, a antinom ia fundamental é a que existe entre a forma e a conti­
nuidade; a forma é a individualidade, e a vida é em todo lugar individual.
Sim m el relaciona seu con ceito da vida com a doutrina da vonta­
de de viver de Schopenhauer, e a da vcntade de poder de Nietzsche;
mas adverte que o decisivo é a unidade de am bos os m om entos. A
vida tem duas definições que se com pletam reciprocam ente: é mais
vida e é mais que vida. Esse mais não é um adendo acidental. Vida é
aquele m ovim ento que a todo instante arrasta para si ou atrai algo
para transform á-lo em sua vida. A vida só pode existir porque é mais
vida. A m orte, que segundo Sim m el reside de antem ão na vida, é tam ­
bém um transcender dela sobre si m esm a. A geração e a morte trans­
cendem a vida, para cima e para b aixo. A vida precisa da forma e, ao
mesmo tem po, precisa de mais que a forma.
Além disso, a vida transcende de seus próprios conteúdos, espe­
cialm ente na atitude criadora. Não só é mais vida; é mais que vida. A
vida só é o constante transcender do sujeito daquilo que lhe é alheio
ou a produção do que lhe é alheio. C om isso não se subjetiva esse ser

428
A ID É IA DA VID A

.illicio, que perm anece em sua independência, em seu “ser mais que
vida”; o caráter absoluto desse outro, desse mais, é a fórmula e a con-
ilicão da vida. O dualismo é a form a em que existe a unidade da vida.
1'or isso Sim m el pode dizer, num último e agudo paradoxo, que a vida
n icon tra sua essência e seu processo em ser mais vida e mais que vida ;
ii.io é, que seu positivo enquanto tal já é seu comparativo.
Essas idéias da m aturidade de Sim m el (seu Lebensanschauung é
i lo mesm o ano de sua m orte, 1 9 1 8 ) significam um passo genial no ca ­
minho da com preensão da realidade da vida hum ana.

3. B ergso n

P erso n a lid a d e • C om Bergson já saímos do século XIX para en-


i lar no XX. Suas raízes e a primeira etapa de sua formação estão na
m n ú ria passada; contudo, tanto sua vida com o o sentido último de
sua filosofia já pertencem a nossa época ou, m elhor dizendo, são um
li pico m om ento de transição, com o o resto da filosofia desse tempo:
um passo a mais no cam inho da superação do positivism o para voltar
a nova metafísica.
Henri Bergson nasceu em Paris em 1 8 5 9 e m orreu nos primeiros
dias do m ês de jan eiro de 1 9 4 1 . Foi professor de filosofia no Liceu de
Angers, no de C lerm ont-Ferrand, na Universidade dessa cidade, no
Collège Rollin e no Lycée Henri IV, de Paris, na Escola Normal Su pe­
rior e, a partir de 1 9 1 9 , foi professor no Collège de France, a mais
conceituada instituição francesa. Nos seus últim os anos, a idade o o b ri­
gou a um a vida retirada.
Suas obras m ais im p ortantes são: sua tese de doutorado Essai
sur les données immédiates de la conscience, Matière et mémoire, Le rire,
Durée et sim ultanéitê , Lévolution crêatrice; duas coleções de ensaios e
con ferên cias: Uénergie spirituelle e La pensée et le mouvant (onde se
en con tra a Introduction à la métaphysique), e seu últim o livro, Les deux
sources de la m orale et de la religion, onde se inicia sua já crescente apro­
xim ação ao catolicism o.
O esp a ço e o tem p o • É usual, com o vim os em Kant, pôr com o
term os com paráveis e paralelos o espaço e o tem po. Bergson reage

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H is t ó r ia d a f il o s o f ia

energicam ente contra isso e os opõe. O espaço é um con ju nto de pon­


tos, de qualquer dos quais se pode passar a outro qualquer; o tempo,
em contrapartida, é irreversível, tem uma direção, e cada m om ento
dele é insubstituível, uma verdadeira criação, que não pode ser repeti­
do e ao qual não se pode voltar. C ontudo, esse tem po bergsoniano não
é o do relógio, o tem po espacializado, que se pode con tar e que é re­
presentado num a longitude, m as sim o tempo vivo, tal com o se apre­
senta em sua realidade im ediata à consciência: a denom inada duração
real, la clurée réelle. O espaço e o tem po são entre si com o a matéria e
a m em ória, com o o corpo e a alm a, respondem a dois m odos m entais
do hom em , que são radicalmente diferentes, e até m esmo em certo sen ­
tido opostos: o pensam ento e a intuição.
A in te lig ê n c ia e a in tu iç ã o • O pensam ento conceitu ai, o que
se cham a em sentido estrito inteligência, é o m étodo do con h ecim en ­
to científico, que se m ovim enta entre coisas e tende à espacialização.
A ciência, em geral, procura a m edida; e a operação de m edir se faz
diretam ente pela com paração de longitudes (o m etro e o cam inho
que se m ede), ou mediante a tentativa de reduzir as outras m agnitu-
des à longitude ou a outra forma espacial, por exem plo angular, que
pode ser reduzida, por sua vez, à longitude (o relógio, o m anóm etro,
o dinam ôm etro, o term ôm etro, que m edem diversas magnitucles não
espaciais em si m esm as por com paração com o deslocam ento de uma
agulha ou a dilatação longitudinal de uma coluna de m ercúrio). O
pensam ento, dirigido para a ciên cia - ou para a vida prática, para o
m anejo das coisas procede por m eio da lógica, da observação e dos
conceitos. E tende a encontrar conceitos rígidos, que a inteligência m a­
neja facilm ente. Tende a solidificar tudo. Além do m ais, o pensam ento
procura as sem elhanças, o que há de com um em vários indivíduos; é
generalizador. A inteligência é a esfera do inerte, do quieto - e, portan­
to, descontínuo - , do material.
Essas con d ições são diferentes das exigidas para a apreensão da
realidade vivente. C oncretam ente, o tem po vivo, a duração, esse tem ­
po que tenho que esperar para que se dissolva o açúcar que coloquei
num copo, escapa ao pensam ento. O m ovim ento real, tal com o se vê
de dentro, quando m ovim ento o braço, é decom posto pela inteligên­

430
A ID É IA D A V ID A

cia num a série de repousos que não são o m ovim ento. M over um bra­
ço é algo uno, continuo, vivo. O pensam ento o esquem atiza, fixa-o em
conceito e o detém ; tira-lhe, ju stam en te, a m obilidade. Só a intuição é
capaz de apreender a duração real, o m ovim ento em sua verdadeira
im ediatez, a vida, em suma. A intuição é capaz de captar a m obilida­
de, de penetrar no processo m esm o do mover-se e no tem po vivo, an­
tes de petrificá-lo em conceitos. A inteligência tem sua aplicação na
matéria, e por isso na ciência; a intuição, em contrapartida, se adapta
à vida. Bergson relaciona essa faculdade com o instinto, essa m aravi­
lhosa adaptação não-conceitual do animal aos problem as vitais.
A ciên cia e a filosofia, que estão pensadas desde o espacial, não
con h eceram apenas - diz Bergson - a intuição; operaram sempre com
as categorias do pensam ento conceituai, que não serve p ara apreender
a vida e o tempo real. Por isso o hom em encontra grande dificuldade
para pensar essas realidades; faltam -lhe os instrum entos adequados, e
mais ainda o hábito de servir-se deles. A filosofia de H enri Bergson se
aproxim a da realidade da vida com uma atitude diferente da usual,
instalando-se na própria m obilidade, não no processo já realizado e
cum prido, mas no seu próprio realizar-se. A intuição tenta captar a
vida de dentro dela, sem a m atar previamente para reduzi-la a um es­
quem a conceituai espacializado.
O “e lã v ita l” • A realidade da vida é algo dinâm ico, um im pu
so vital ou elã vital. Esse im pulso determ ina um a evolução no tem po.
I: essa evolução é criadora, porque a realidade vai se fazendo numa
continuidade viva, não se com põe de elem entos dados, e só depois de
consum ada o pensam ento pode tentar com pô-la com elem entos im ó­
veis e dados, com o se se quisesse recom por um m ovim ento com uma
serie de estados de repouso. Isso põe Bergson em contato com a filo­
sofia da vida, que tem nele um dos seus mais claros e fecundos ante­
cedentes. Devem os observar, contud o, que Bergson entende a vida
mais n u m sentido biológico que num sentido biográfico e histórico, de
modo tal que não aborda a peculiaridade m ais essencial da vida hu­
mana. N esse sentido, o pensam ento de Bergson precisa ser com pleta­
do para alcançar plena eficácia. E, por outro lado, é tam bém preciso
•■iiperar o caráter de irracionalidade que am eaça toda intuição. A filo­

431
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

sofia é saber rigoroso e, portanto, con ceito e razão. Esta razão terá de
pensar o novo ob jeto que é a vida, em toda a sua fluidez e m obilida­
de; será diferente da razão científica e m atem ática; no enianto, sem ­
pre deverá ser razão. Isso foi visto co m toda clareza por Ortega, que
por isso tom a sem pre o cuidado de falar de uma razão vital.

4. Blondel

Maurice Blondel (1 8 6 1 - 1 9 4 9 ) é, depois de Bergson, a figura mais


original e interessante da filosofia francesa contem porânea. Blondel,
discípulo de O llé-Laprune, a quem dedicou um estudo, representa
dentro do pensam ento católico um a m odalidade denom inada “prag-
m atista” - em sentido bem diferente do pragm atism o inglês e am eri­
cano - ou “ativista”, ou m elhor, filosofia da ação. Sua principal obra é
um livro já antigo, de 18 9 3 : sua tese de doutorado, intitulada UAction.
Essai d ’une critique de la vie et d ’une science de la pratique. Depois de
longos anos em que sua atividade de escritor se resum iu a colabora­
ções em revistas filosóficas, Blondel publicou três obras de grande ex­
tensão: La pen sée , LÊtre et les êtres e um a reelaboração total, em dois
volum es, de sua antiga tese Lactioni além de alguns estudos sobre
apologética e sobre o espírito cristão em suas relações com a filosofia.
O ponto de partida de Blondel é a pergunta sobre se a vida hu
mana tem sentido e se o hom em tem um destino. Ajo sem saber o que
é a ação, sem ter desejado viver, sem saber quem sou nem se sou. E
não posso, a nenhum preço, segundo nos é dito, conquistar o n ada ;
estou condenado à vida, à m orte, à eternidade, sem tê-lo sabido nem
querido. Pois bem , esse problem a, inevitável, é inevitavelmente bem ou
mal resolvido pelo hom em com suas ações. A ação é a verdadeira so­
lução efetiva que o hom em dá ao problem a de sua vida; por isso seu
estudo se im põe antes de tudo.
A ação é o fato m ais geral e m ais constante de m inha vida: mais
que um falo, diz Blondel, é uma necessidade, já que até o suicídio é
um ato. Só se faz qualquer coisa fechando as dem ais vias e em pobre­
cendo-se de tudo o que se teria podido saber ou conseguir. Cada deter­
minação am puta uma infinidade de atos possíveis. E não cabe deter-

432
A ID É IA DA VID A

se e suspender a ação, nem esperar. Se não ajo, algo age em mim ou


fora de m im , quase sem pre contra mim . A paz - diz Blondel - é uma
derrota; a ação não tolera outra postergação senão a morte. Por isso
não posso me guiar pelas m inhas idéias, porque a análise com pleta
não é possível para uma inteligência finita, e a prática não lolera atra­
sos: não posso diferir a ação até chegar à evidência, e toda evidência é
parcial. Além do mais, m inhas decisões costum am ir além dos meus
pensam entos, e m eus atos além das m inhas intenções.
Portanto, é preciso con stitu ir uma ciência da ação, integral, por­
que todo m odo de pensar e viver im plica deliberadam ente uma solu­
ção com pleta do problem a da existência. Blondel, que se remete ce r­
tam ente ao problem a religioso, opõe-se ao intelectualism o e ao fideís-
m o, não em nom e do sentim ento, m as da ação. Daí sua critica ao es-
colasticism o. Os entes são principalm ente o que fazem . A filosofia
tem de “im pedir o pensam ento de se idolatrar, m ostrar a insuficiência
e a subordinação norm al da especulação, ilum inar as exigências e os
cam inhos da ação; preparar e ju stificar as vias da fé”. Não podem os
entrar aqui nos detalhes dessa filosofia, do profundo e difícil pensa­
m ento blondeliano; basta assinalar o ponto de vista a partir do qual
Blondel considera o problem a da vida.

5. U n a m u no

V id a e e s cr ito s • M iguel de U nam uno, nascido em Bilbao em


1864 e m orto em Salam anca em 1 9 3 6 , é um dos mais im portantes
pensadores espanhóis. Não se pode considerá-lo um filósofo em sen ­
tido estrito; no entanto, o interesse que tem pela filosofia é extrem o.
Sua obra e sua própria figura pessoal constituem , a rigor, um proble­
ma filosófico. Seus escritos são copiosos e de gêneros m uito diversos:
poesia, rom ance, teatro, ensaios ideológicos. Do pon to de vista da fi­
losofia, suas obras mais im portantes são: os sete volum es de seus En-
sayos. Vida de Don Quijote y Sancho, Del senLimiento trágico de la vida -
seu livro m ais considerável La agonia dei cristianismo e, principal­
m ente, alguns de seus rom ances: Paz en la g u erra, N iebla, Abel Sán-
chez, La tia Tuia, San Manuel Bueno, mártir, e seu relato poético Teresa

433
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

O p ro b lem a • Unam uno, que sente vivamente a problem átic


filosófica, centra toda a sua atividade intelectual e literária no que
cham a de “a única questão”: a im ortalidade pessoal do hom em co n cre­
to, que vive e m orre e não quer m orrer totalm ente. N um m om ento
histórico em que a ciência vigente nem sequer aborda essa questão,
Unam uno faz dela, desesperadam ente, o eixo de sua vida inteira. Sua
fé religiosa, deficiente e penetrada de dúvidas - “agônica”, segundo
sua expressão não o satisfaz. Portanto, vê-se obrigado a colocar o
problem a da im ortalidade, que suscita, por certo, o da morte e natu­
ralm ente rem ete ao da vida e da pessoa. C ontudo, U nam uno, em vez
de escrever, com o seria de se esperar, estudos filosóficos, com põe en ­
saios escassam ente científicos, poem as e, principalm ente, rom ances.
Qual a razão dessa estranha produção literária?
O m éto d o • Por razões históricas, por pertencer a um a determ i
nada geração, U nam uno está im erso no irracionalismo que já assinalei
reiteradam ente. C om o Kierkegaard, com o W illiam Jam es, com o Berg-
son, crê que a razão não serve para con h ecer a vida; que ao tentar
apreendê-la em conceitos fixos e rígidos, despoja-a de sua fluidez tem ­
poral, mata-a. Esses pensadores sem dúvida falam da razão pura, da
razão físico-m atem ática. Essa convicção faz com que U nam uno se de­
sentenda da razão para voltar-se para a imaginação que é, diz ele, a fa­
culdade mais substancial. Já que não se pode capturar racionalm ente
a realidade vital, vai tentá-lo por m eio da im aginação, vivendo-a e pré-
vivendo a m orte na narrativa. Ao se dar conta de que a vida hum ana é
algo temporal e que se faz, algo que se conta ou se narra, história, em
suma, Unam uno usa o romance - um a forma original de rom ance,
que poderia ser cham ado de existencial ou, m elhor ainda, pessoal -
com o método de conhecim ento. Esse rom ance constitui um ensaio
fecundíssim o de apreensão im ediata da realidade hum ana, insuficien­
te, por certo, m as sobre a qual poderia operar uma m etafísica rigoro­
sa, que não se encontra em Unam uno.
Apesar de sua dispersão, e de sua obra não alcançar plenitude fi­
losófica, U nam uno foi um genial adivinhador e antecipador de m ui­
tas descobertas im portantes a respeito dessa realidade que é a vida
humana, e seus achados com freqüência ultrapassam, em bora de for­

434
A ID É IA D A V ID A

ma im atura, o que a filosofia conseguiu investigar até hoje. U nam u­


no é um efetivo precursor, com personalidade própria, da m etafísica
da existência ou da vida. Isso ju stifica sua inclusão na história da fi­
losofia, condicionada em últim a instância pela fecundidade que pos­
sam conseguir suas adivinhações, em cu jos detalhes não podem os
entrar aqui2.

2. V er m e u liv ro M iguel cie U n am u n o ( 1 9 4 3 ) , e m q u e se e s tu d a e m su a in te g r id a ­


de o p ro b le m a filo só fic o q u e U n a m u n o c o lo c a e su a c o n tr ib u iç ã o à filo so fia atu al. V er
ta m b é m L a escu ela d e M adrid. (O bras, V ).

435
III. A FILO SO FIA DE LÍNGUA INGLESA

Com o em quase iodas as épocas, atualm ente a filosofia inglesa


ipicsenta características relativamente distintas da européia conti­
nental que, no entanto, não excluem um paralelism o e uma série de
ii illuências recíprocas. Nos últim os anos do século X IX irrom pe, ade-
iii.lis, um novo fator: os Estados Unidos. Em íntim a relação com a tra-
iliçilo britânica, mas com forte influência alemã e, em m enor grau,
li.mcesa, inicia-se uma especulação filosófica na América do Norte
ilricrm inada pela estrutura de uma sociedade bem diferente e por
Mma outra perspectiva dos problem as. Em nosso sécu lo, esse pensa­
mento am ericano influenciou por sua vez o britânico; muitos pensa-
ilores de am bos os países trabalharam, lecionaram e residiram dos
dois lados do Atlântico, e dessa forma criou-se um a forma de filosofia
rin língua inglesa que, com matizes variados, tem uma figura comum.
Nos últim os decênios, essa filosofia com eça a refluir sobre a da Euro­
pa continental, e é necessário levar em conta, m esm o de forma muito
i-(incisa, seu sentido geral e seus m om entos fundam entais, já que se
li ata h oje de um com ponente decisivo da filosofia ocidental.

1. O pragm atism o

O prim eiro m ovim ento importante e original do pensam ento


am ericano é o pragm atism o. Antes, os “transcendentalistas” - entre os
quais Ralph Waldo Emerson (1 8 0 3 -8 2 ) e Henry David Thoreau (1 8 1 7 -
(>2) - tinham iniciado na Nova Inglaterra, em torno de Boston e Cam-
liridge, sede da Universidade de Harvard e núcleo inicial da vida inte­

437
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

lectual am ericana, uma reação contra o m aterialism o e o predom ínio


do pensam ento positivista. Mas é só com os pragmatistas que se atin­
ge uma prim eira maturidade filosófica. O nom e pragm atism o liga-se
sobretudo ao de W illiam Jam es, que foi o prim eiro a utilizar por es­
crito esta denom inação, em 1 8 9 8 ; recebera-a, contudo, de Peirce, ini­
ciador da doutrina que expusera vinte anos antes. M uito se discutiu
sobre as relações entre Peirce e Jam es. Tendo perm anecido durante
m uitos anos na som bra, a figura do prim eiro suscitou recentem ente
vivo interesse, e ele passou a ser m uito mais valorizado que Jam es,
que gozara de enorm e prestígio e depois foi subm etido a dura crítica.
D iscutiu-se a relação entre as duas interpretações do pragm atism o, e
chegou-se a dizer que “o m ovim ento filosófico con h ecid o com o prag­
m atism o é em grande parte resultado de Jam es ter entendido Peirce
m al”. Sem dúvida há nisso um exagero, devido à “d esco berta” tardia
de Peirce e à reação contra a vinculação exclusiva do pragm atism o a
Jam es e seus continuadores im ediatos. Não podem os entrar aqui nas
num erosas im plicações do problem a; basta assinalar a form a originá­
ria em que a doutrina aparece em um e outro e na tradição posterior.
P eirce • Charles Sanders Peirce (1 8 3 9 - 1 9 1 4 ), coetâneo de Dil-
they, Brentano e N ietzsche, nasceu em Cam bridge (M assachusetts); le­
cionou ocasionalm ente alguns anos em Harvard e em Jo h n s H opkins
e publicou m uito pouco, artigos e resenhas de livros filosóficos, que
foram sendo reunidos em volum es depois de sua m orte: em 1 9 2 3 , o
volume Chance, Love and Logic, editado por M. R. C ohen; a partir de
1 9 3 1 , os oito tom os de The Collected Papers o j Charles Sanders Peirce,
editados por Ch. H artshorne, P Weiss e A. Burks; finalmente, outro vo­
lume antológico, The Philosophy o j Peirce, por J. Buchler. Entre os es­
critos de Peirce, um dos mais influentes foi o artigo How to M ake our
Ideas Clear, publicado em jan eiro de 1 8 7 8 , texto inicial e básico do
pragm atism o. Só chegou a term inar um livro, The Grand Logic, publi­
cado com o obra póstum a na coletânea de seus escritos.
As prim eiras leituras filosóficas de Peirce foram as Cartas sobre a
educação estética do homem, de Schiller; a Lógica, de W hately, e a Críti­
ca da razão pura, que ele sabia quase de cor; tam bém sofreu a influên­
cia de Duns Escoto e de sua própria formação m atem ática. Peirce

438
A F IL O S O F IA D E L ÍN G U A IN G L E S A

.ulota uma atitude prim ariam ente teórica: para ele a filosofia perten-
i r, com o uma “subclasse”, à ciência da descoberta, a qual, por sua vez,
r um ram o da ciência teórica. A função da filosofia é explicar e mos-
11 ar a unidade na variedade do universo, e ela tem um duplo ponio
ilf partida: a lógica, ou seja, as relações dos signos com seus objetos,
c a fenom enologia, isto é, a experiência bruta do m undo real objetivo.
As duas disciplinas convergem em três categorias m etafísicas funda­
m entais, de articulação m uito com plexa, que podem ser denom ina­
das qualidade, relação e m ediação. O pensam ento de Peirce, muito
liagm entário e pouco sistem ático, abordou num erosos problem as de
k-oria do conhecim ento, lógica e metafísica; mas, sobretudo, se propôs
i'stabelecer um m étod o , e este é ju stam en te o pragm atism o.
Trata-se de “um m étodo para averiguar a significação de palavras
difíceis e concepções abstratas”, ou tam bém “um m étodo para deter­
minar os sentidos de conceitos intelectuais, isto é, daqueles em torno
ilos quais pode girar o racio cín io”. Mais concretam ente, Peirce propu­
nha-se esclarecer as questões m etafísicas trad icionais e, em certas
ocasiões, elim iná-las com o contra-sensos. Isso m ostra que o pragma-
iism o de Peirce é, sobretudo, lógico, diferentem ente da imagem habi-
I uai, derivada de uma interpretação parcial e inexata da forma que
.idquiriu na obra de Jam es. Mas é preciso ressaltar que nem o aspecto
lógico” é alheio a Jam es, nem o “prático” a Peirce. Para este, a função
do pensam ento é produzir hábitos de ação; e por essa via chega, tra­
balhosam ente e em form ulações com freqüência obscuras e pouco fe-
li.:es, à idéia do pragm atism o.
A prim eira expressão (em H ow to M a ke o u r Id ea s C lea r) é esta:
“t .onsiderem -se os efeitos de alcance prático que possam pensar-se
i nmo produzidos pelo objeto de nossa concepção. Nossa concepção
desses efeitos é a totalidade de nossa concepção do o b je to .” Uma se-
LHinda form ulação, um pouco m enos profunda e m ais clara, diz: “Para
' leierm inar o sentido de uma concepção intelectual devem -se con sid e­
rar as conseqü ências práticas pensáveis com o resultantes necessaria­
m ente da verdade da con cep ção; e a soma dessas conseqü ências con s-
i ii uirá o sentido total da co n cep çã o .” Por últim o, um a terceira tese e s­
pecifica m ais o sentido do pragm atism o em Peirce: “O pragm atism o é

439
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

o princípio segundo o qual Lodo juízo teórico exprim ível num a frase
em m odo indicativo é uma lorm a confusa de pensam ento, cu jo único
sentido, se o tem , está em sua tolerância a reforçar um a m áxim a prá­
tica correspondente, exprim ível com o uma frase con d icion al cuja apó-
dose está no m odo im perativo.”
Ante o crescente uso da palavra pragmatismo num sentido diferen­
te do que ele pretendera dar ao term o, Peirce renunciou a ele e cunhou
para seu próprio pensam ento o nom e “pragm aticism o”, que julgava
“bastante feio para estar a salvo de raptores”. A obra de Peirce, ainda
não publicada na íntegra e só em parte estudada e con h ecid a, aparece
hoje com o m uito fecunda e valiosa.
J a m e s • W illiam Jam es ( 1 8 4 2 - 1 9 1 0 ) , da m esm a geração de Peir­
ce, nascido em Nova York, professor de Harvard a partir de 1872,
m édico, psicólogo e filósofo, é a figura de m aior destaque da filosofia
americana. Jam es, escritor e conferencista m uito vivo e sugestivo, cheio
de idéias, con trib u iu mais que ninguém para a aclim atação do pensa­
m ento filosófico nos Estados U nidos. O rientou-se inicialm ente para a
psicologia, d isciplina de que foi um dos m ais fecundos clássicos; seus
dois livros psicológicos são duas obras-prim as, em certos aspectos
ainda não superadas, que con tin u am vivas e férteis em várias de suas
facetas; sua atenção voltou-se depois para tem as m orais e religiosos e,
por últim o, para a m etafísica. Suas principais obras são: The Prmciples
o f Psychology, em dois volum es, e um tratado mais breve e denso, A
Textbook o f Psychology, The Will to Believe (A vontade de crer), The Va-
rieties oj Religious Experience (As variedades da experiência religiosa),
Pragmatism: a New N am e for Som e Old Ways o j Thinking (Pragm atism o:
um nom e novo para alguns m od os antigos de pensar), A Pluralistic
Universe (U m universo pluralista), The Meanmg o f Truth (O significado
da verdade), Some Problems ojPhilosophy (Alguns problem as de filoso­
fia), Essays in Radical Empiricism (E nsaios de em pirism o radical).
A filosofia de Jam es é uma das tentativas do final do século XIX
de pensar e en ten d er a vida hum ana. Sua psicologia representa uma
penetrante com preensão da efetividade da vida psíquica em sua dina-
micidade: a im agem do stream oj consciousness, a corrente ou fluxo de
con sciência, é reveladora. Mas esse interesse pela vida adota a forma,

440
A F I L O S O F IA D E L ÍN G U A IN G L E S A

habitual em seu tem po, de antiintelectualism o, m ais ainda, de irracio-


n;ilismo; de Kierkegaard a Spengler e U nam uno, passando por Nietz-
.1 lie e Bergson, este foi o risco que correram todas as tendências aná­
logas. E com essa atitude que Ja m es trata o terna do pragm atism o. En-
lendc que não pode h a v e r nenhum a diferença que não fa ç a alguma
ililerença; poderíam os dizer que nenhum a d iferença pode ser indife-
irn te. “A função da filosofia - diz - deveria ser d eterm inar que dife-
irn ça definida fará para você e para m im , em instantes deíinidos de
nossa vida, que esta ou aquela form ulação do m un d o seja a verdadei-
i.i.” Esse pragm atism o, na opinião de Jam es, não é novo: seus antece­
dentes são Sócrates e Aristóteles, Locke, Berkeley; é a atitude em piris-
1;i, mas em form a mais radical e m enos objetável; significa afastar-se
da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões a
p rio ri, dos princípios fixos, dos sistemas fechados, dos absolutos e ori­
gens supostos, e voltar-se para a concretude e a adequação, os fatos, a
.ição e o poder. Ante a con cepção da m etafísica com o um enigm a que
e resolve com um a palavra ou princípio, Ja m es pede a cada palavra
seu valor efetivo ( c a s h -v a lu e ); é m enos uma solução que um program a
de m ais trabalho e, sobretu d o, um a indicação de com o é possível m o ­
d ific a r as realidades existentes. “As teorias são portanto instrum entos e
não respostas a enigm as com as quais possam os descansar.” O prag­
matism o assim entendido não tem dogm as nem doutrinas; é um m é­
todo, com patível com doutrinas diversas; é “a atitude de se afastar de
primeiras coisas, princípios, categorias, supostas necessidades, e olhar
para as últim as coisas, frutos, conseqüências, fatos.”
Isso im plica uma idéia de verdade. Jam es renuncia à idéia de uma
concordância entre o pensam ento e as coisas, pois ela só poderia ser
julgada pelo pensam ento e só nele as coisas são acessíveis. As idéias,
que são parte de nossa experiência, são verdadeiras na m edida em que
nos ajudam a entrar em relação satisfatória com outras partes de nossa
experiência. Verdade é o que “funciona”, o que “dá certo ”, o que “seria
m elhor crer”, em outras palavras, o que “d ev ería m o s crer". As form ula­
ções dessa concepção de verdade são relativam ente vagas e oscilantes
em Jam es e em seus continuadores; o núcleo fecundo que essa idéia
encerra fica obscurecido pelo irracionalism o que a am eaça, pela pro­

441
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

pensão a uma interpretação estreita e utilitária desse “dar certo” ou ter


êxito, que am puta uma série decisiva de atos vitais, com o são os de es­
trita inielecção. Por isso, o pragm atism o é uma degradação da idéia de
verdade, até m esm o de seu próprio ponto de vista, ou seja, do que este
seria se se com prom etesse a levá-lo rigorosamente a sério.
O s c o n tin u a d o re s do p ra g m a tism o • Os m ais im portantes são
Dewey, Schiller e Ralph Barton Perry (1 8 7 7 -1 9 5 7 ). Jo h n Dewey (1 8 5 9 -
1 9 5 2 ), nascido no m esm o ano que Husserl e Bergson, professor na
C olum bia U niversity durante m uitos anos, foi, em sua longa vida, um
dos hom ens que m ais influenciaram a vida intelectual dos Estados
U nidos, sobretudo em educação. Seus livros mais im portantes são:
H ow W e T hin k, D e m o c r a c y a n d E d u cation , E ssays in E x p e r im e n ta l Logic,
R econ stru ction in P h ilo so p h y , E x p erie n c e an d N atu re, A C o m m o n F aith ,
Logic: the T h eory o jIn q u ir y , P rob lem s o fM e n . Dewey denom inou de ins-
tru m en ta lism o sua versão pessoal do pragmatismo.
E C. S. Sch iller ( 1 8 6 4 - 1 9 3 7 ) , nascido em A ltona, professor em
C ornell, O xford, e depois na C alifórnia, cujos principais livros são
H u m an ism e S tu dies in H u m an ism , tam bém se vincula à filosofia de Ja ­
mes e considera seu próprio pensam ento, o h u m a n ism o , um pragm a­
tism o m ais am plo, que se estende a todas as disciplinas filosóficas.
C om o o pragm atism o, Schiller afirm a que a verdade depende das co n ­
seqüências práticas; com o toda a vida m ental tem finalidade e esses
fins são os do ente que som os nós, todo conhecim ento fica subordina­
do à natureza hum ana e a suas necessidades fundam entais. “O hum a­
nismo - diz Schiller - é sim plesm ente a com preensão de que o proble­
ma filosófico con cern e a seres hum anos que tentam com p reen d er um
m undo de experiência hum ana com os recursos da m en te hum ana.”
Para ele, realm ente transform am os as realidades m ediante nossos es­
forços cognoscitivos, e, portanto, nossos desejos e nossas idéias são
forças reais na configu ração do m undo.

2. O p e rso n a lism o

Um a segunda ten d ên cia dom inante no pensam ento anglo-saxão


de nossa época é con h ecid a por p erso n a lis m o . N ote-se que essa deno­

442
A F IL O S O F IA D E L ÍN G U A IN G L E S A

minação é empregada em seniid o estrito para designar um grupo ou


escola coerente, sobretudo nos Estados U nidos, e tam bém num senti­
do mais am plo, que engloba diversos núcleos unidos por uma ten­
dência com um e uma afinidade espiritual. É nesse sentido lato que
rm prego aqui essa denom inação. O traço mais geral do personalism o
c sua insistência na realidade e no valor da pessoa e sua tentativa de
interpretar a realidade desse ponto de vista. Próxim o ao pragmatismo
no que se refere ao problem a da lógica, oposto em psicologia ao m e-
i anicism o e ao b eh a v io ris m o , hostil tam bém a um a interpretação natu­
ralista do real, afirma a liberdade hum ana e o fundam ento pessoal da
realidade, ou seja, a existência de um Deus pessoal. Algumas posições
idealistas, com o a de Josiah Royce (1 8 5 5 -1 9 1 6 ), são próxim as do per­
sonalism o. Royce, californiano, professor de Harvard, escreveu T h e
Spirit o f M o d e m P hilosop h y , S tu dies o f C o o d a n d Evil, T h e W orld a n d the
In d iv id u al, T h e C on ception o f Im m o rta lity , T he P h ilo sop h y o f Loyalty. Sua
»bra exerceu influência na Europa, em parte através de Gabriel M ar­
eei, que lhe dedicou um livro. Muito próxim o do personalism o está
tam bém o hum anism o de E C. S. Schiller, antes m encionado.
A form a clássica do personalism o am ericano está representada
por um grupo concentrado na Nova Inglaterra: Borclen Parker Bowne
[ 1 8 4 7 -1 9 1 0 ), professor em Boston ( M eta p h y sics , P h ilosop h y o f T h eism ,
I h e o iy o f T hou ght an d K n ow led g e, P erso n a lism ); Mary W h iton Calkins
(1 8 6 3 -1 9 3 0 ) , do W ellesley College (An Introduction to P sychology, T he
P ersisten t P roblem s o f P hilosop h y , T he G oo d M an a n d the G o o d ); Edgar
Sheffield Brightm an (1 8 8 4 - 1 9 5 2 ) , sucessor de Bowne em Boston ( T h e
P roblem o f G od , A P h ilosophy o f Religion, An Introduction to P h ilosop h y ).
Tam bém está ligado a esse grupo W E. H ocking (n. em 1 8 7 3 ), de H ar­
vard, cu jo principal livro é T he M ean in g o f G od in H u m a n E x p e r ie n c e .

3 . T endências atuais

S a n ta y a n a • Jorge Ruiz de Santayana ( 1 8 6 3 - 1 9 5 2 ) , que assina­


va suas obras com o nom e de George Santayana, nasceu em Madri,
passou a infância em Ávila, form ou-se em B oston, foi professor em
I larvard e m orreu em Roma. Brilhante escritor em língua inglesa, ro-

443
H is t ó r ia d a h l o s o p ia

m ancista e ensaísta, pouco sistem ático, cham ado às vezes de realista


ou naturalista - d enom inações dem asiado vagas - e tam bém de m ate­
rialista, deixou uma obra m uito extensa e variada, em parte autobio­
gráfica, que talvez culm ine em sua idéia da f é a n im a l com o m étodo de
acesso à realidade. Seus principais livros são: T he S en se o f B eau ty , T he
L ife o f R eason (cinco volum es), S cep ticism a n d A n im al F a it h , T he R ealm s
o f Being (com posto de quatro partes: T he R ealm o f E ssen ce, T he R ealm
of M a tter, T he R ealm of Truth, T he R ealm o f S p irit), sua autobiografia:
Persons a n d P laces, In the M iddle o f the R oad , o rom ance T h e L ast P u n -
tan-, por últim o, D om in ation s a n d Pow ers.
A lexan d er • Samuel Alexander (1 8 5 9 -1 9 3 8 ), nascido em Sidney,
A ustrália, professor em O xford e em M anchester, cu jo pensam ento
tam bém loi interpretado com o naturalista e realista, representa uma
das m aiores con stru ções m etafísicas na filosofia inglesa con tem porâ­
nea. Seu livro fundam ental é S p a c e , T im e a n d Deity.
W h iic h c a d • Alfred N orth W hitehead ( 1 8 6 1 -1 9 4 7 ) , o mais im ­
portante dos filósofos ingleses contem porâneos, lecionou na Inglater­
ra, sobretu d o m atem ática, e a partir de 1 9 2 4 , nos Estados U nidos, já
con cen trad o em filosofia, em Harvard e Wellesley. Sua obra m atem á­
tica e lógica é sum am ente im portante; sobretudo, suas P rin cipia M a-
th em a tic a (em colaboração com Bertrand Russell); tam bém dedicou
muita atenção aos problem as educativos, num a série de trabalhos ao
longo de quase toda a sua vida (T h e A im s o f E d u cation ); o problem a do
pensam ento e de suas form as é outro de seus tem as principais (T h e
Function o f R eason , A d v en tu res o f Id ea s, M odes o f T h ou g h t); seu livro
fundam ental é uma obra m etafísica apresentada com o “um ensaio de
cosm ologia”: P rocess a n d R eality (1 9 2 9 ); a influência de W hitehead é
hoje m u iio forte, talvez m ais nos Estados U nidos que na Inglaterra.
R u sse ll • Bertrand Russell (nascido em 1 8 7 2 ), que lecionou em
C am bridge, aparece associado a W hitehead na grande obra P rin cipia
M a th em a tic a e é autor, com o ele, de im portantíssim as contribuições à
teoria da m atem ática e à lógica sim bólica: T he P rin cip les o f M a th e m a ­
tics, In trodu ction to M a th e m a tic a l P h ilo so p h y , An In qu iry in to M ean in g
a n d Truth. É tam bém autor de um livro sobre Leibniz, T h e P hilosop h y
o f L eib n iz ; da H istory o f W estern P h ilosop h y ; de dois livros intitulados

444
A F IL O S O F IA D E L ÍN G U A IN G L E S A

irspectivam ente T he A n aly sis o f M ind e T h e A n aly sis o j M atter, tie um


n.ilado geral, An O u tline o j P h ilo sop h y ; um livro sobre o con h ecim en ­
to H u m an K n ow led g e, e num erosos ensaios e livros sobre educação,
•■oriologia e política. Recebeu o prêm io Nobel de Literatura (com o
mtes dele Eucken e Bergson).
O s m o v im en to s m a is re c e n te s • As influências desses pensa­
dores são decisivas na Inglaterra e nos Estados Unidos, em bora não se-
|.un as únicas e a penetração da filosofia européia continental seja cres-
i i-me, sobretudo na América. O inglês R. C. Collingwood (1 8 8 9 -1 9 4 3 )
|.i se inclui num a tradição ocidental sem restrições, com particular in-
lluência do idealism o italiano; seus dois livros póstum os, T h e Id ea o j
N atu re e T h e Id ea o j H istory , m ostram -no claram ente. De forma m enos
.icentuada ocorre o m esm o com G. E. Moore (1 8 7 3 - 1 9 5 9 ) , autor de
1‘rin cip ia E thica, E thics, P h ilo sop h ical S tu dies, que abre bastante espaço
i-m suas obras para a análise de que logo falarem os; e tam bém C. D.
Mmad (n. em 1 8 8 7 ), que escreveu T he M ind a n d its P la ce in N a tu re, F ive
ly p es o j E th ical T h e o iy , E thics a n d the H istory o j P h ilo sop h y , am bos pro-
lessores de Cam bridge.
Um a enérgica presença do pensam ento europeu se encontra tam-
hcm em pensadores am ericanos com o George Boas (n. em 1 8 9 1 ) e so ­
bretudo Arthur Lovejoy (1 8 7 3 - 1 9 6 2 ) , cu jo livro m ais im portante é
I h e G rea t C hain o j B ein g; com o Charles W H endel, que estudou Rous-
'■rau e os filósofos ingleses, e Brand Blanshard ( T he N atu re o j T hou ght
etc.), am bos de Yale, ou Philip W heelw right (T h e B urnin g F ou n tain ,
I Icraclitu s, M e ta p h o r a n d R eality ).
Mas a tendência que atualm ente tem m ais seguidores na Ingla-
irrra é a que podem os denom inar, com certa inexatidão, “análise lin ­
guística”, a que perten cem , ainda que em diferentes graus, quase to­
dos os pensadores b ritân icos atuais. Suas origens são em parte ingle­
sas e em parte continentais, sobretudo procedentes do Círculo de Vie­
na (M oritz Sch lick, Hans R eichenbach, O tto N eurath, Rudolf C am ap,
este últim o professor faz m uitos anos nos Estados U nidos). A influên-
i ia principal foi sem dúvida a de Ludwig W ittgenstein (1 8 8 9 - 1 9 5 I),
austríaco, mas professor em Cam bridge durante m uitos anos, que p u ­
blicou em 1921 seu fam oso Tractatus lo g ico -p h ilo so p h icu s, reeditado

445
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

no ano seguinte em seu original alem ão e tradução inglesa, com uma


introdução de Bertrand Russell; posteriorm ente, W ittgenstein m odifi­
cou consideravelm ente seus pontos de vista em diversos artigos, reco­
pilados depois de sua m orte em P h ilo sop h isch e U n tersu ch u n g en e ou­
tros volum es. Entre os filósofos britânicos mais interessantes cla atua­
lidade estão Gilbert Ryle (T h e C o n cep t o f M ind), Jo h n W isdom ( O th er
M inds, P h ilo sop h y a n d P sy ch o an aly sis), C . K. O dgen e I. A. Richards
( T he M ean in g o f M ean in g ), J . L. Austin (1 9 1 1 -6 0 ) (S en se a n d S en sibilia,
P h ilo sop h ical P a p e r s ), A. J. Ayer (L a n g u ag e, Truth a n d L ogic, T h e P ro­
b lem o f K n o w led g e).
Apesar de grandes diferenças, esses núcleos filosóficos têm al­
guns traços em com um . O C írculo de Viena cultivou a lógica sim bó­
lica ou m atem ática, tanto na Áustria com o na Inglaterra e nos Estados
Unidos, assim com o os lógicos poloneses do cham ado C írculo de
Varsóvia; provavelm ente seja isto o que há de mais valioso nessas ten­
dências, dentro de um cam po lim itado mas de considerável interesse;
a obra de Lukasiew icz, Tarski, C arnap, Gõdel e do próprio W ittgen ­
stein vincula-se à dos lógicos am ericanos C. 1. Lewis (M in d a n d the
W o rld -O rd er), Alonzo C hurch, Susanne K. Langer (autora tam bém do
in teressan te P h ilo s o p h y in a N ew K e y ), W. V. Q uine (M a th e m a t ic a l
L o g ic , M eth o d s o f L og ic, F ro m a L o g ica l P oint o f V iew ), C harles M orris
(Signs, L an g u a g e a n d B eh a v io r) etc. Afora isso, esses grupos aclotam
posições filosóficas que podem ser caracterizadas sum ariam ente - e
prescindindo de m uitos matizes - assim : sua tendência geral é anti-
m etafísica - alguns consideram que a metafísica é im possível, outros
opinam que não tem nenhum sentid o, que seus enunciados são tau­
tológicos ou puram ente “em otivos” ou sem significação controlável.
São “em piristas” num novo sentido - esses m ovim entos são às vezes
cham ados de “em pirism o lóg ico”, ou “positivism o lógico”, ou “n eo­
positivism o”, às vezes “cien tificism o” ou “fisicalism o”, e inclinam -se
para a m atem atização do pensam ento. Na Inglaterra acabou predom i­
nando a crença de que a m aioria dos problem as filosóficos e até m es­
mo os enunciad os ou statem en ts não têm sentido e decorrem sim ples­
mente clas im perfeições da linguagem , m otivo pelo qual se deve pro­
ceder a um a clarificação das questões m ediante a “análise lingüística”;

446
A F IL O S O F IA D E L ÍN G U A IN G L E S A

<■claro que essa clarificação foi feila pela filosofia em todos os tempos,
mas o pensam ento inglês atual, sobretudo em O xford, afirma que a fi­
losofia se redu z a isso. Muitos desses pensadores consideram que todo
enunciado científico pode sem p re ser reduzido a um enunciado físico,
ou seja, um enunciado que diga que tal evento se produziu em tal lu-
l,,u e em tal m om ento; isto é, a um puro enunciado de/ato; isso os
leva ao b e h a v io ris m o ou descrição da cond uta, e em sociologia, a um
hchaviorism o social.
Essas posições baseiam -se num a idéia bastante arbitrária da m e­
la física, identificada com algum as form as muito particulares dela ou,
m elhor dizendo, com a con cep ção que esses pensadores forjam dela;
por outro lado, m uitas de suas afirm ações são tudo m enos em píricas
e não se ju stificam a partir de seus próprios pressupostos. Em geral, a
análise dos “enunciados” deixa de lado aquilo que faz deles enu ncia­
dos filosóficos, e o pensam ento dessa orientação tende m ais a fazer
objeções à filosofia que a fazer filosofia. De resto, m uitos de seus tra­
balhos são contribuições interessantes para o esclarecim ento de algu­
mas questões.
As relações entre a Europa e os Estados U nidos intensificaram -se
enorm em ente nos últim os vinte anos e se aceleram cada vez mais. A
lenom enologia, a obra de Heidegger - secundariam ente a dos exis­
tencialistas a de Ortega através de num erosas traduções, a presen ­
ça de G ilson e Maritain, tudo isso contribui para restabelecer nos E s­
tados U nidos a com plexidade da filosofia e para superar a unilaterali-
dade da influência inglesa, que dom inou durante alguns decênios.
Por outro lado, o pensam ento am ericano é cada vez mais conhecido
na Europa. É de esperar que nos próxim os anos se intensifique a c o ­
m unicação entre as duas seções da filosofia ocidental, cindida desde o
R enascim ento e que desde então só se encontrou em alguns pontos
d escontínuos. Som ente assim será possível apropriar-se plenam ente
da tradição filosófica do O cidente.

447
IV A F E N O M E N O L O G IA DE H U S S E R L

H u sserl e sua esco la • Edm undo Husserl nasceu em 1859 - as-


.iin com o Bergson - e m orreu em 1 9 3 8 . É o mais im portante e origi­
nal dos discípulos de Brentano; professor em G öttingen e depois em
I l iburgo, dedicou-se ao estudo da matem ática e tardiam ente ao da fi­
losofia; em 1 9 0 0 publicou a prim eira edição de suas L ogische U ntersu-
I h an g en (Investigações lógicas), que renovaram e transform aram a fi­
losofia; em 1 9 1 3 , o tom o I - único publicado em vida - de suas Id een
li e in e r rein en P h ä n o m en o lo g ie u nd p h ä n o m en o lo g isc h en P h ilo so p h ie
( Idéias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenom enológica).
I''litre suas principais obras tam bém encontram os P h ilo sop h ie als stren-
flc W issen sch a ft (Filosofia com o ciência rigorosa, 1 9 1 1 ), F o r m a le und
iia s z e n d e n t a le L ogik (Lógica form al e transcendental, 1 9 2 9 ) e M éd ita ­
tions ca r té s ie n n e s (1 9 3 1 ). Seu discípulo Heidegger publicou as V orle­
gungen z u r P h ä n o m en o lo g ie d es in n eren Z eitbew u sstsein s (Lições para
I mia fenom enologia da consciência interna do tem po). Depois de sua
morte foram publicados vários ensaios e o livro intitulado E rfah ru n g
an d U rteil (Experiência e ju íz o , 1939). Grande parte da obra de Hus-
mt! con tin u a inédita ou está em vias de publicação, o que impede a
exposição de suas últim as doutrinas, sobretudo no tocante à genealo­
gia da lógica. O s Arquivos-H usserl, depositados na Universidade de
I ouvain, con têm aproxim adam ente 4 5 .0 0 0 páginas de inéditos, em
grande parte em escritura taquigráfica. Acabam de aparecer o texto
original cias C a rtesia n isch e M ed itation en , D ie Id ee d e r P h ä n o m en o lo g ie,
ili1 1907, um a reedição am pliada do livro I das Ideen e os livros 11 e
III, o im portante livro D ie K risis d e r eu rop äisch en W issen sch aften und

449
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

d ie tra n sz e n d en ta le P h ä n o m en o lo g ie (A crise das ciências européias e a


fenom enologia transcend ental), dois volum es do E rste P h ilo sop h ie (F i­
losofia prim eira) e, recentem ente, o volume IX da série “H u sserliaria”:
P h ä n o m en o lo g isch e P sy ch olog ie (Psicologia fenom enológica).
Husserl procede essencialm ente de Brentano, de quem herda,
portanto, a tradição filosófica: católica, escolástica e, em sum a, grega.
Som a-se a isso a influência de Bolzano, a de Leibniz m uito expressa­
m ente e a dos ingleses, sobretudo Hum e; e, sem dúvida, o kantism o.
Tem vínculos tam bém com os outros discípulos de Brentano, sobre­
tudo Marty e M einong. Em torno de Husserl constitu iu-se a escola fe­
nom enológica, notável por seu rigor, precisão e fecundidade, que teve
com o órgão de difusão, desde 1 9 1 3 , o Ja h r b u c h f ü r P h ilo sop h ie a n d
p h ä n o m en o lo g isc h e F orsch u n g (Anuário de filosofia e investigação feno­
m enológica). Entre os fenom enólogos estão os m ais im portantes filó­
sofos da A lem anha, sobretudo Sch eler e Heidegger, que representam
uma posição original dentro da fenom enologia.

1. Os objetos ideais

O p sico lo g ism o • O surgim ento da fenom enologia coincide com


o com eço do século XX. Em 1 9 0 0 , com o já dissem os, são publicadas
as In v estigações lógicas de Husserl, que tratam - diz seu autor - de “psi­
cologia descritiva”; o term o je n o m e n o lo g ia ainda não aparece. É um
passo decisivo para a restauração da autêntica filosofia.
Para en ten d er a fenom enologia é preciso se situar no contexto
histórico em que aparece. Em 1 9 0 0 não havia filosofia vigente. A tra­
dição idealista estava perdida desde os anos do positivism o; imperava
uma anarquia filosófica; havia apenas algumas tendências contrárias à
m etafísica, considerada algo execrável; predom inava a psicologia as-
sociacion isia de tipo inglês. Esta psicologia exercera influência sobre
as doutrinas filosóficas, contam inand o-as de p sicolog ism o. Psicologis­
mo é a atitude pela qual um a disciplina filosófica se reduz a psicolo­
gia. Por exem plo, os psicologistas entendiam a lógica com o uma dis­
ciplina n o rm a tiv a dos atos psíqu icos do pensar. O conteúdo da lógica
seriam as regras para pensar bem .

450
A F E N O M E N O L O G IA D E H U S S E R L

É contra esse psicologism o que Husserl se coloca, e dedica o pri­


meiro tom o de suas In v estig a ções a seu com bale e superação. Se não se
rom pesse com o psicologism o, era im possível fazer lilosofia. Fakava
uma polêm ica m inuciosa, nos detalhes da qual não entrarem os por­
que o psicologism o não é mais um problem a.
O m étodo de Husserl, nisso com o em tudo, consiste em fazer des­
crições. Husserl reconhece que a lógica fala de idéias, conceitos, ju í­
zos etc., mas para ele não fala de nada psicológico, e sim sempre de
algo id eal. Husserl toma um caso e nele procura seu sentido. Por exem ­
plo, o princípio de contradição. Segundo os psicologistas, ele signifi­
caria que o hom em não pode p e n s a r que A é A e não-A. Ilu sserl se
opõe a isso e diz que o sentido do princípio é que, se A é A, n ão p o d e
s e r não-A. O princípio de contrad ição não se refere à possibilidade do
pensar, mas à verdade do pensado, ao com portam ento dos objetos. O
princípio de contradição, assim com o os dem ais princípios lógicos,
tem validade objetiva.
Por um lado, o psicologism o pode ser ceticism o, por outro, ten­
de ao relativismo. O ceticism o nega que seja possível con h ecer a ver­
dade, o relativism o adm ite que tudo pode ser verdade, mas que esta é
relativ a: há um relativism o individual e outro específico; a verdade - e
a validade dos princípios - estaria restrita à espécie hum ana, que não
poderia pensar que A é A e não-A. Husserl refuta o relativism o, não
só o individual, mas tam bém o específico; diz que se os anjos en ten ­
dem por A, por s er e por v e r d a d e o m esm o que nós entendem os, têm
de dizer que A não pode ser A e não-A ao m esm o tem po. Trata-se de
uma validade a p rio ri e absoluta, independente das condições psico­
lógicas do pensam ento. Portanto, Husserl postula, contra a lógica psi-
cologista, uma lógica p u r a dos o b jeto s ideais, isto é, dos princípios lógi­
cos, das leis lógicas puras e das significações.
A fen o m en o lo g ia • A fenom enologia é um a ciência de ob jetos
ideais. É portanto uma ciência a priori; além disso, é uma ciência u ni­
v ersa l, porque é ciência das essên cia s das vivên cias. Vivência ( E rleh n is )
é qualquer ato psíquico; na m edida em que a fenom enologia abarca o
estudo de todas as vivências, tem de abarcar o dos objetos das vivên­
cias, porque as vivências são in ten cion ais, e é essencial nelas a referên­

451
H is t ó r ia da f il o s o f ia

cia a um ob jeio. Portanio, a fenom enologia, que com preende o estu­


do das vivências com seus o b jeto s intencionais, é a p rio ri e universal.
O s e r id eal • Os o b jeto s ideais se distinguem dos reais por u
aspecto essencial. O ser ideal é in te m p o r a l , e o ser real está sujeito ao
tem po, é h ic et nunc, aqui e agora. Esta mesa em que escrevo está aqui
na sala, e, sobretu d o, neste m om en to; o 3 , o círculo ou o princípio de
contradição lêm uma validade independente do tem po: Por essa ra­
zão, os ob jetos ideais são espécies; não lêm o princípio de individua­
ção que é o aqui e agora. Id é ia em grego é o que se vê; sp ec ies em latim
significa o m esm o. O s ob jetos ideais são, portanto, espécies ou, com
outro n om e, essên cias.
P ro b lem as do se r ideal • O s objetos ideais são para Husserl eter­
nos, ou m elhor, intem porais. Poder-se-ia, no entanto, perguntar onde
estão. Para Husserl esta pergunta não tem sentido. Poder-se-iam acei­
tar três h ip ó sta ses que ele rejeita:
I a A hipóstase p sic o ló g ica , que consistiria em fazer os objetos
ideais residir na m ente; sua existência seria m ental, existiriam em meu
p en sa m en to .
2 a A hipóstase m e t a fís ic a , por exem plo a do platonism o, em que
as idéias são entes que estão num lugar imaterial.
3 a A hipóstase agostiniana ou teo ló g ica , em que as idéias estão na
m ente de D eus, que as está pensand o eternam ente.
H usserl, com o m edo à m etafísica que herdou de sua época, evi­
ta tudo o que seja m etafísico e diz que os ob jetos ideais têm m era­
m ente v a lid a d e . Este foi um pon to de polêm ica entre H usserl e Hei-
degger, a propósito da verdade. Para H usserl, a fórm ula de N ewton,
por exem p lo, seria verdade m esm o se ninguém a pensasse. Heideg-
ger diz que isso não tem senticlo, que sua verdade não existiria se
não houvesse um a existência que a pensasse; se não houvesse n e­
nhum a m ente - nem hum ana nem não hum ana - que a pensasse,
haveria astros, haveria m ovim en to, se quiserem , m as não haveria
v e r d a d e da fórm ula de N ew ton, nem nenhum a outra. A verdade pre­
cisa cle alguém que a pense, que a d escubra ( a lê t h e ia ), seja hom em ,
an jo ou Deus.

452
A F E N O M E N O L O G IA D E HUSSERL

2. As significações

Palavra, sig n ifica çã o e o b je to • Vimos que a fcnom enologia ira-


la das sig n ificações. Vejam os qual o sentido disso.
Suponham os uma palavra, por exem plo, m esa. Temos aqui uma
porção de coisas. Prim eiro, um fenôm eno físico, acústico, o som da
palavra; mas só isso não é um a palavra; um fenôm eno físico pode ser
um signo. Por exem plo, um pano verm elho é signo de perigo; mas
lam pouco basta isso; uma palavra não se esgota em ser signo, porque
.is expressões podem ser usadas com duas íunções; um a, c o m u n ica ti­
v a , na qual cabe o signo, e outra, que é a “vida solitária da alm a”; e eu
não faço signos para entend er o que estou pensando.
O que faz com que um a palavra seja palavra é a sig n ificação (Aris-
lóteles jã definia a palavra com o p h o n é sem a n tik é). Q ue é a significa­
ção? Está na palavra? Evidentem ente não. Diferentes palavras podem
icr um a significação ú nica (por exem plo, em diversas línguas). Pare-
i cria então que a significação é o o b je to ; mas não é isso, porque às ve­
zes o o b jeto n ão e x is te , e portanto não pode ser a significação; por
fxem p lo , quando digo círcu lo q u a d ra d o .
As sign ificações são o b je to s id ea is. Q uem aponta para o o b jeto é
a sig n ificaçã o . Entre a palavra e o o b jeto se in terp õ e a sign ificação.
As significações consistem em apontar para os ob jetos intencionais,
não forçosam en te reais, n em tam pou co ideais, m as que podem ser
inexistentes; por exem plo, se digo “poliedro regular de cin co faces”,
esse o b jeto não existe, não é real nem tam pouco ideal, mas im p ossív el;
r, no entanto, a expressão tem uma significação que aponta para um
objeto intencional; que o objeto exista ou não, é outra questão, que não
interessa aqui.
In te n ç ã o e p re e n ch im e n to • Q uando ouço ou leio um a expres­
são, entenclo-a; mas existem duas m aneiras m uito distintas de en ten ­
der. U m a é o sim ples en te n d e r a expressão; outra é re p re s en ta r intuiti­
vam ente as significações. Husserl cham a o mero en ten der uma signi-
licação de p en sa m en to sim b ó lic o ou in ten ção d e sig n ificação. Cham a a
representação intuitiva das significações de p e n s a m e n to intuitivo ou
p reen ch im en to [Erfüllung] d e sign ificação. No primeiro caso há uma m e n ­

453
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ç ã o , uma mera alusão, e no segundo uma in tu içã o ; trata-se de uma in ­


tuição das essências. A (enom enologia, que é um a ciência descritiva,
descreve essên cia s, mas nunca objetos.
Para expressar algo, portanto, é preciso uma significação; ao fe­
nôm eno da expressão superpõe-se uma significação; e quando essa
significação se en ch e de co n teú d o na in tu ição, tem os a apreensão da
essên cia.

3. O analítico e o sintético

Todo e parte • A terceira investigação de Husserl é um estudo so­


bre os todos e as partes, de extraordinária importância para a com preen­
são da lenom enologia. A palavra tod o supõe algo com posto de partes.
Inversam ente, p a r te supõe um com ponente de um todo.
I lusserl distingue entre partes in d ep en d en tes (que podem exi
por si, com o a perna de um a m esa), e n ã o in d ep en d en tes (que não po­
dem existir isoladas, com o a cor ou a extensão da mesa). Chama as par­
tes independentes de p e d a ç o s , seç õ es; as não-independentes, de m o­
m en tos: extensão, cor, forma etc. Nos m o m en tos podem -se distinguir
dois lipos: l u, a cor, por exem plo, que está na m esa; 2 o, a igualdade
desta mesa com outra: a igualdade não está n a m esa; a cor é uma c a ­
ra cterística da coisa, a igualdade é uma relação.
Im p lica çã o e c o m p lica çã o • Deparam os agora com o problem a
do que é que une as partes. A corporeiclade não se dá sozinha, e sim
unida à cor, à extensão etc. Husserl fala de dois lipos fundam entais de
uniões:
Io Dizem os: todos os corp os são extensos. A corporeidade
extensão vêm juntas. O corpo im p lica a extensão; im plicar algo quer di­
zer in clu í-lo; a coisa im plicada é um a característica daquilo que a im ­
plica. Entre as características de c o r p o está o fato de ser ex ten so; o ser
diam ante im plica ser pedra. É o que Kant cham a de ju ízos a n a lítico s, e
hoje se prefere denom inar de im p lica ção .
2 ° O rtega denom ina cle c o m p lic a ç ã o a relação por m eio da qual
uma parte está u n id a a outra, mas sem estar contida nela. A cor, por
exem plo, c o m p lic a a extensão; uma cor inextensa não pode se dar.

454
A FEN O M EN O L O G 1A DE H U S S E R L

Mn cri cham a isso de fu n d a ç ã o ou fu n d a m e n ta ç ã o ( F u n dieru n g ). A


lim dam entação pode ser reversível ou irreversível. As características
A I- H podem se exigir m utuam ente, ou então a característica A exigir
.1 11, mas não o inverso. A característica co r com plica a característica
i Mrnsão, mas não o con trário; em contrapartida, não existe direita
m ui esquerda, e vice-versa; a com plicação é, portanto, unilateral ou
I)i l.ueral.
Ju ízo s a n a lític o s e s in té tic o s • Husserl fala de ju ízo s analíticos
i M iiléticos com m uito m aior precisão que Kant. São ju íz o s analíti-
i ii-, aqueles cu jo predicad o está im p licad o n o su jeito . Ju íz o s sin té-
i iros, aqueles em que não está im plicado, mas é acrescentado a ele.
Que os ju íz o s analíticos sejam a p rio ri é algo claro. Mas Kant fala de
111izos sintéticos a priori. Para Husserl esses ju íz o s são aqueles em que
ii sujeito co m p lic a o predicado, nos quais há um a relação de fu n d a ç ã o
n itre o sujeito e o predicado.

4. A consciência

A fenom enologia é ciên cia d escritiv a d a s essên cias d a con sciên cia
p u ra. Q ue é a consciência? Husserl distingue três sentidos desse termo:
I o O con ju n to de todas as vivên cias: a unidade da consciência.
2 o O sentido que se expressa ao dizer ter co n sc iên cia de um a coi-
sa, o d a r -s e con ta. Se vejo um a coisa, vê-la é um ato de m inha co n s­
ciência (no prim eiro sentid o); mas se m e dou con ta do ver, tenho
con sciência (no segundo sentido) de tê-la visto.
3? O sentido da con sciência com o v iv ên cia in ten cion al. Este é o
sentido principal.
V iv ên cia in te n c io n a l • É um ato psíquico que não se esgota em
seu ser ato e aponta para um objeto. Exista ou não o objeto, com o o b ­
jeto in ten cion al é algo distinto do ato psíquico.
Um a vivência intencional concreta tem dois grupos de elem en ­
tos: a essên cia in ten cion al e os co n teú d os n ã o -in te n c io n a is (sensações,
sentim en tos etc.); esses conteúd os individualizam as vivências, por
exem plo a percepção de uma casa a partir de diversos pontos. O que
difere é a essên cia in ten cio n a l , e esta se com põe de dois elem entos:

455
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

q u a lid a d e (o caráter do ato que faz com que a vivência seja d este objc
to e d e sta m a n eira ). Se eu digo “o vencedor de len a” e o “vencido dr
W aterloo”, tenho duas representações de um único ob jeto intencional
(N apoleão); mas a m a té r ia é distinta, pois num a apreendo Napoleão
com o venced or e na outra com o vencido. Resum am os essa explicação
sinopticam ente:

Vivência
intencional...'
conteúdos s e n s a ç õ e s ....
não-intencionais se n tim e n to s..
im pulsos

Husserl distingue entre a m atéria ou uA,r] sensual e a forma ou


(.107t(pf] intencional, e enire ato intencional ou nóesis e o conteúdo obje-
tivo a que o alo se refere ou n óem a .
A red u ção fen o m cn o ló g ica • Chegam os ao m om enio fundamen­
tal da íenom enologia, o que se cham a erco/n (ab sten ção ) fenom enoló-
gica. C onsiste em tom ar uma vivência e colocá-la “entre parênteses”
ou “entre aspas” ( E in k la m m er u n g ), ou “d esco n ectá-la” (A u ssch altu n g ).
A raiz disso está no id ealism o de 1 lussei 1. O idealism o tinha re­
duzido a realidade indubitável a processos de co n sciên cia. Brentano
dissera que a percepção in tern a era ev id en ie, adequada e infalível.
Husserl segue Brentano, m as com um a m od ificação. Temos uma p er­
cep ção ; para H usserl, o in d u biláv el é a p ercep ção com o tal; a per­
cep ção de um a m esa co n siste em que a apreendo co m o existente,
com o real. E nisso, na c r e n ç a que a acom p an h a, a p ercepção se dife­
rencia de outra vivência; por exem p lo, um a m era representação.
Mas para não sair do in d u bitáv el, em vez de dizer: “estou vendo
esta m esa que ex iste”, devo dizer: “eu ten ho um a vivência, e entre as
característica s dela está a de m inha cren ça na ex istên cia da m esa”;
mas a cren ça figura sem pre co m o característica da vivência. A isso,
a esse pôr en tre p arênteses, H usserl cham a de r e d u ç ã o fe n o m e n o ló g i-
ca ou e p o k h é .

456
A F E N O M E N O L O G IA D E H U S S E R L

Acontece que essas vivências são m inhas. H que sou eu? A redu-
•.In Iciiom enológica tam bém tem de se estender a meu eu, e o feno-
ii n ui >logo “sucum be” tam bém à e p o k h é com o sujeito psicofísico, com o
Iii ■•■li,no existencial; resta apenas o eu p u ro, que não é sujeito histórico,
ii|iu i- agora, mas o foco do feixe que são as vivências. Isso é a co n s-
i ii’iii in p u r a ou reduzida fenom enologicam ente. Portanto, tem os ago-
i.i .is vivências d a co n sc iên cia p u ra.
Mas não basta. É preciso dar mais um passo. O fenom enólogo faz
.1 irdução fenom enológica e, tendo ficado com as vivências, tem de se
i Irv.ir às essên cias (redução eidética).
As e ssên cia s • U m objeto qualquer não pode ser descrito porque
ii in infinitas características. Mas mediante a redução eidética, passa-
m 11;is vivências a suas essências. Que são as essências? Husserl dá uma
■li 1111ição rigorosa.
O con ju n to d e tod a s a s c a ra c terístic a s u n idas en tre si p o r fu n d a ç ã o
i mistitui a essê n cia d a vivên cia.
Suponham os um triângulo; tom o uma característica, a de ser
i ■|iülátero; esta característica está unida por com p licação ou fundação
i i lc ter os ângulos iguais, e assim por diante com m uitas outras ca-
■.ii leristicas; todas elas constitu em a essência do triângulo equilátero.
Husserl distingue entre m ultiplicidades d efin id a s e não-definidas',
M.is prim eiras, uma vez estabelecidos alguns elem en to s delas, dedu-
-rm -se rigorosam ente os dem ais. É o que ocorre com as essências
m atem áticas: se estabeleço as características “polígono de três lados”,
ilfd u z-se daí rigorosam ente toda a essência do triângulo. Nas outras
m ulliplicidades não se chega tão sim ples e exaustivam ente à essência.

5. A fe n o m e n o l o g i a com o método
e com o tese idealista

A d e fin içã o c o m p le ta • Ao reunirm os as características que fo­


mos descobrind o na fenom enologia, constatam os que é uma ciên cia
eid é tic a d esc ritiv a das essê n cia s d as vivên cias d a c o n sc iên c ia p u ra. Esta
■ibstrusa definição já tem para nós um sentido transparente. E agora
vem os por que a fenom enologia é ciência a p r io ii e u n iv ersal. É a p r io -
ii em seu sentido mais pleno, porque só descreve essê n cia s (ou seja,

457
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

objetos ideais e não em píricos) das vivências de uma con sciência que
tam pouco é em pírica, mas p u ra , e portanto, tam bém a p rio ri. E é uni­
v ersal porque se refere a todas as vivências, e com o estas apontam para
seus objetos, os objetos in ten cion ais ficam envoltos na consideração fe-
nom enológica; ou seja, tudo o q u e ex iste para o fenom enólogo.
O m éto d o • Esse m étodo que explicam os nos leva ao con h eci­
mento das essências, que, tradicionalm ente, é a meta da filosofia. É um
con h ecim en to ev id en te e fundado na in tu içã o ; não um a intuição sensí-
vel, mas sim e id é t ic a , ou seja, de essências (eid os). A partir da intuição
de um caso me elevo para a intuição da essência, m ediante a redução
fenom enológica. E o exem plo que me serve de base pode ser um ato
de percepção ou sim plesm ente de im aginação; a qualidade do ato não
im porta para a intuição eidética.
Esse m étodo fenom enológico é o m étod o d a filo s o fia atu al. Como
m étodo, a fenom enologia é um a descoberta genial, que abre um ca­
m inho livre para a filosofia. É o ponto de partida do qual é forçoso
com eçar. Mas isso não é tudo: há um a falsidade no próprio centro da
fenom enologia que é seu sentido m etafísico.
O id e a lism o fe n o m en o ló g ico • Husserl quer evitar a qualque
custo a m etafísica; trata-se cle um a tentativa inútil porque a filosofia é
m etafísica. E, com efeito, Husserl faz m etafísica ao afirm ar com o reali­
dade radical a consciência pura. Husserl é idealista, e co m ele o idea­
lismo atinge sua forma mais aguda e refinada. Mas essa posição é in­
sustentável; o idealism o, nessa sua etapa últim a e m ais perfeita, m os­
tra sua contrad ição interna. Se pensarm os a fundo a fenom enologia,
sairem os dela. Foi o que fez a m etafísica dos últim os anos. A fenom e­
nologia, ao se realizar, nos leva, para além do pensam ento de Husserl,
a outras form as nas quais a prim itiva ciência eidética e descritiva se
transform a em verdadeira filosofia em sua forma m ais plena e rigoro­
sa: num a m etafísica.

6. A filosofia fe n o m e n o ló g ic a

A filo so fia corno ciê n c ia rig o ro sa • No tocante ao con teúdo da


filosofia, Husserl retoma a velha exigência de Sócrates e Platão, de Des­
cartes e de Kant: a fundam entação da filosofia com o ciên cia definitiva

458
A F E N O M E N O L O G IA D E H U S S E R L

c estrita. Mais uma vez nega-se realidade última à filosofia existente:


não se trata - diz Husserl - de a filosofia ser um a ciência imperfeita,
mas de ainda não ser uma ciên cia. O s dois principais obstáculos com
que depara em seu m om ento histórico são o n a tu ra lism o - con se­
quência da descoberta da natureza que parte de pressupostos Léti-
i os, de “posições” existenciais, e o h istoricism o - conseqüência da des­
coberta da história que cond uz a uma atitude cética de forma rela-
livista; desse m odo, a filosofia se transform a em W eltan sch au u n g sp h i-
lo sop h ie, filosofia das visões de m undo, contra a qual Husserl postula
a filosofia com o ciência estrita.
O ponto de partida tem , naturalm ente, de ser a intencionalida­
de. Toda consciência é “con sciên cia de”, e o estudo da consciência in ­
clui, com o já vimos, o de suas significações e de seus objetos in ten ­
cionais. Q uando se elim m a qualquer posição existencial, mediante a
i-jco/n, tem -se um a fe n o m e n o lo g ia da consciência. Na esfera psíquica,
entendida nesse sentido, não existe distinção entre fenôm eno e ser, o
que lhe confere certa “absolutividade” que, evidentem ente, exclui
qualquer posição ou tese. A intuição fenom enológica conduz à c o n ­
tem plação das essên cias, e estas são algo absolutam ente dado, mas
com o ser essencial (W ese n sse in ), nunca com o existência ( D a sein ).
“Só um a fenom enologia realm ente radical e sistem ática - diz
Husserl - pode nos fornecer a com preensão do p síq u ico.” Por isso a
psicologia está num a relação m uito próxim a com a filosofia; e este era
o núcleo de verdade que pulsava na errônea posição psicologista: a
tendência a uma fundam entação fenom enológica da filosofia.
Id é ia do m un d o e c iê n c ia • As grandes filosofias do passado ti­
nham um a dupla referência: a ciência e a con cep ção do m undo. Mas
essa situação se alterou desde a constituição de um a "universitas su-
pratem poral de ciências rigorosas”; corno diz H usserl, tem os agora
uma aguda distinção entre con cepção do m undo e ciência. A “idéia”
da prim eira é distinta para cada época; a da segunda é supratem poral
e não está limitada por nenhum a relação com o espírito do tem po.
N ossos fins vitais são de dois tipos: uns para o tem po, outros para a
eternidade; a ciência se refere a valores absolutos, intem porais. Não
se pode abandonar a eternidade pelo tempo. E só a ciência pode su ­

459
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

perar definilivam ente a necessidade que surge da ciência. As con cep ­


ções do m undo podem brigar entre si; só a ciência pode decidir, e sua
decisão, cliz H usserl, traz o selo da eternidade. Essa ciência é um valor
entre outros igualm ente ju stificad os; é im pessoal, e sua qualidade tem
de ser a c la r e z a que corresponde à teoria, não a p r o fu n d id a d e própria
da sabedoria. Nosso tem po, diz H usserl, tem a vocação de ser uma
grande época; a única coisa que o afeta é o ceticism o negativo m asca­
rado de positivism o; é preciso superá-lo com um v e r d a d e ir o p ositiv is­
m o, que se atenha apenas a realidades, que não parta das filosofias, e
sim das coisas e dos problem as, para ser assim ciência dos verdadei­
ros princípios, das origens, dos piÇcò|aaxa rcávicov. Essa função só pode
ser realizada pela apreensão fenom enológica das essências.
F ilo so fia tra n scen d en ta l • A fenom enologia, na medida em que
é uma filosofia e não só um m étodo, se define com o um novo tipo de
filosofia transcendental, que quase poderia ser considerada um neo-
cartesianism o, radicalizando-o e evitando os desvios com que D escar­
tes alterou suas próprias descobertas. Husserl representa, com efeito,
a forma m ais sutil e refinada do idealism o que se inicia em Descartes.
Husserl pleiteia a ev id ên cia em que as coisas estão presentes “elas
m esm as”. Mas há, além disso, um tipo de perfeição da evidência que
é a a p o d ic tic id a d e , que confere a indubitabilidade absoluta, da mesma
ordem da que possuem os princípios. A evidência do m undo não é
apodíctica; em contrapartida, o eg o cogito é o dom ínio últim o e apo-
dicticam ente certo sobre o qual deve se fundar toda filosofia radical.
Daí a volta de Husserl ao ponto de vista cartesiano, ao princípio do
cogito; mas, diferentem ente de D escartes, é preciso evitar a confusão
entre o eg o, puro sujeito de co g ita tio n es, e uma su b sta n tia cog itan s sepa­
rada, ou seja, um a m en s sive an im u s hum ana. A vida psíquica se con ­
cebe no m u n d o; a e p o k h é fenom enológica elimina o valor existencial do
m undo, coloca-o entre parênteses, e se atém assim ao eu fu n d a m en ta l,
fenom enologicam ente reduzido.
A eg o lo g ia p u ra • A e p o k h é segrega uma esfera “nova e infinita”
de existência, acessível a uma nova forma de experiência, a experiên­
cia transcendental. A cada gênero cle experiência real - adverte Hus­
serl, e isso é m uito im portante - corresponde tam bém uma ficção

460
A F E N O M E N O L O G IA D E H U S S F R L

pura, uma q u a s e -e x p e r iê n c ia (E rja h ru n g ais o b ). Desse m odo se origina


uma ciência absolutam ente subjetiva, que com eça com o egologia pura,
lendente a um solipsism o transcendental, que logo terá de ser objeto
de indagação da fenom enologia. O eg o, graças a essa peculiar exp e­
riência transcendental, pode se explicitar indefinida e sistem aticam en­
te. Mas isso exige maiores explicações.
A diferença radical entre a posição de D escartes e a de Husserl é
a idéia de in ten cion alid a d e. Não se pode ficar no sim ples ego cogito car­
tesiano, de m odo tal que o eg o se transform e em res separada de qual­
quer outra realidade. Com o pensar é sempre pensar alguma coisa, a
fórmula exata é: ego cogito cogitatu m . A fenom enologia não leva a p er­
der o m undo: este perm anece enquanto co g ita tu m . A consciência do
universo está sem pre presente ( m itb ew u sst) , é a unidade da con sciên ­
cia. O eu da m editação fenom enológica pode ser espectador de si
m esm o, e este “si m esm o” com preende toda a objetividade que existe
para ele, tal com o existe para ele. A revelação do eu na análise feno­
m enológica com preende, portanto, todos os ob jetos intencionais cor-
relatos dos atos, uma vez elim inada, é claro, toda posição existencial.
Esses objetos só existem e são o que são com o objetos de uma
con sciência real ou possível; e, por sua vez, o ego tran scen d en ta l (ou,
psicologicam ente, a alma) só é o que é em relação aos objetos in ten ­
cionais. O eu se apreende a si m esm o com o idêntico. E a forma fun­
dam ental da síntese dos atos vividos - cada um com uma duração vi­
vida - é a consciência im anente do tem po. É característico da in ten ­
cionalidade que cada estado de consciência possua um “horizonte”
intencional, que rem ete a potencialidades da con sciência, num a p ro -
ten ç ã o contínua. Esse horizonte define um “h alo” de possibilidades
que p o d e r ía m o s realizar se dirigíssem os nossa percepção em outro sen ­
tido. Por isso, ao cog itatu m pertence uma indeterm inação essencial,
nunca está definitivam ente dado, e particularidades perm anecem em
indeterm inação.
Pois bem , esse eu não é um pólo vazio; em virtude das leis do
que H usserl cham a de g ên e s e tran scen d en ta l - idéia m uito im portante,
desenvolvida nos últim os tem pos de Husserl com Lodo ato de sen-
iido novo, o eu adquire um a propriedade perm anente nova. Se tom o

461
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

uma decisão, já sou um eu que decidiu de tal m odo: o ato passa, a de­
cisão fica. C orrelativam ente, transform o-m e a m im m esm o quando
renego m in h as decisões e meus atos. Isso remete à con stitu ição de um
eu, p e s s o a perm anente, que conserva um “estilo”, um caráter pessoal.
O eu se con stitu i para si m esm o na unidade de uma h istória. Os o b je­
tos e categorias que existem para o eu se constituem em virtude das
leis genéticas. Por isso a fenom enologia eidética, que para Husserl é
uma “filosofia prim eira”, tem duas fases: a prim eira, e s tá tic a , com des­
crições e sistem atizações análogas às da história natural; a segunda,
g en ética. Essa gênese se apresenta em duas formas: ativa, na qual o eu
intervém de m od o criador (razão prática), e passiva, cu jo princípio é
a associação. Em todas essas constituições, o fa to é irracional; mas Hus­
serl adverte que “o p ró p rio ja to , com su a ir r a c io n a lid a d e , é um con ceito
estru tu ral n o sis tem a d o 'a p r io r i’ con creto".
A in te rsu b jc tiv id a d c n io n a d o ló g ica • Husserl distingue o eu,
com o m ero pólo idêntico e substrato dos hahitu s, do eg o em sua ple­
nitude con creta, que designa com o Lermo leibniziano de m ô n a d a. O
ego m onãdico contém o con ju n to da vida consciente, real e potencial,
e sua explicação fenom enológica coincide com a fenom enologia em
geral. Mas esse solipsism o é corrigido pelo fato de que em mim, ego
transcendental, conslilu em -se transcendentalm ente outros eg os, e as­
sim um “m un d o objetivo" com um a todos. Nela aparece e se dá, por­
tanto, uma filosofia com um a “todos n ó s” que m editam os em com um ,
uma P h ilo so p h ia peren n is.
O eg o com preende meu ser próprio com o m ônada e a esfera for­
mada pela intencionalidade; nesta se constitui em seguida um ego
com o que refletid o em meu ego próprio, em minha m ônada; ou seja, co­
mo que um a lt e r eg o, que é um a n á lo g o n , mas ao m esm o tem po outro\
trata-se, por conseguinte, da con stitu ição na esfera de m inha própria
intencionalidade do outro com o estra n h o . Essa com unidade de m ôna-
das constitui, p or sua intencionalidade com um , um único e mesmo
m undo, que supõe uma “harm onia” das m ônadas.
E sp a ço e tem p o • Meu corpo, que está im ediatam ente presente
a todo instante, estabelece uma articulação em minha esfera: me é dado
no m odo do aqui, do hic; qualquer outro corpo - e tam bém o corpo

462
A F E N O M E N O L O G IA D E H U S S E R L

do próxim o no do a li, do illic. As possíveis m udanças de minha


orientação fazem com que se constitua uma natureza es p a c ia l, em re­
lação intencional com m eu corpo. Todo a li pode se transform ar em
aq u i, e posso perceber as “m esm as coisas” d es d e ali ( illin c ). O ou tro
aparece para m im com o se tivesse os fenôm enos que eu poderia ter se
fosse a li, e seu corpo dá-se a ele na forma de um aq u i absolu to.
Por outro lado, m inhas vivências passam; no en tanto, adquirem
para m im um valor de ser, de existência tem poral, porque mediante
re-(a)presentações volto ao original desaparecido; essas representa­
ções se unificam num a síntese acom panhada da con sciência evidente
do m esm o. No caso dos objetos ideais, Husserl explica sua supratem -
poralidade com o uma o n ite m p o r a lid a d e , correlativa à possibilidade de
serem produzidos e reproduzidos em qualquer m om ento do tempo.
E a c o ex istên cia de m eu eu com o eu do outro, de m inha vida intencio­
nal e a dele, de m inhas realidades e as dele, supõe a criação de uma
fo r m a te m p o r a l com u m .
Isso faz com que não possa com por outra coisa senão uma única
com unidade de m ônadas, todas coexistentes; um único m undo o b je­
tivo ou natureza. E esse m undo tem de existir se eu trago em mim es­
truturas que im plicam a coexistência cle outras mônadas.
O s problem as da filosofia fenom enológica • Husserl mdica duas
etapas nas investigações fenom enológicas: uma “estética transcenden­
tal”, em sentido mais am plo que o kantiano, referida a um a p riori noe-
m ático da intuição sensível, e uma teoria da experiência do outro (Ei n-
fü h lu n g ). Todas as ciências apriorísticas têm sua origem últim a na fe-
nom enologia apriorística transcendental. A fenom enologia transcen­
dental, diz H usserl, desenvolvida sistem ática e plenam ente, é uma
autêntica ontologia u niversal, concreta, que também cham a de lógica c o n ­
creta d o ser. Dentro dela haveria em prim eiro lugar uma egologia so-
lipsista, e em seguida uma fenom enologia intersubjetiva.
C om o vim os antes, H usserl, determ inado pelos pressupostos de
sua época, elim ina a m etafísica; mas esta elim inação tem um alcance
lim itado. A fenom enologia elim ina apenas a m etafísica in g ên u a, isto é,
a que opera nas “absurdas coisas em si”, mas não toda a m etafísica em
geral. No interior da esfera m onádica, e com o p o s s ib ilid a d e id e a l, rea­

463
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

parecem para HusserI os problem as da realidade contingenie, da m or­


te, do desiino, do “sentido” da história etc. Dentro do horizonte da
consciência reduzida dão-se os problem as centrais da filosofia. Assim
se constitui um sistem a de disciplinas fenom enológicas cuja base não
é o sim ples axiom a ego cogito, m as uma tomada de con sciência de si
m esm o, plena, íntegra e universal, prim eiro m onádica e depois inter-
m onádica. É preciso perder prim eiro o m undo pela é7toxri para re­
cupera-lo em seguida nessa tom ada de consciência. Este é o sentido
final que HusserI dá à lenom enologia, a qual retom a, a um só tem po,
o velho preceito délfico yvcoGi a e a m ó v e a frase de Santo Agostinho:
Noli fo ra s ire, in te rccli, in in teriore n om irie h ab itat veritas.

* * *

A filosofia de Edm und HusserI é um dos três ou quatro grandes


lalos intelectuais de nosso tem po. C ontudo, sua fecundidade e seu al­
cance só são visíveis de m odo ainda incom pleto, e isto por razões
nada acessórias, entre as quais se inclui o fato não-desdenhável de que
grande parte da obra de HusserI perm anece inédita, ainda que a salvo
dos azares do terrível decênio que se seguiu à m orte do autor, e con ­
servada na U niversidade de Louvain. Nas últimas obras publicadas de
HusserI têm início problem as novos e m uito im portantes, que põem
em questão a própria idéia da fenom enologia na m ente de seu autor e
mobilizam sua últim a etapa, hoje conhecid a apenas fragmentaria-
mente. É de esperar que nos próxim os anos venha à luz uma série de
volumes que nos darão uma nova im agem de HusserI e dos cam inhos
para os quais, para além da fenom enologia strícto sen su , o pensam en­
to filosófico de nosso tem po deve se orientar, sob o m agistério indis­
cutível - em bora mais ou m enos rem oto - de H usserI1.

I. S o b re isso v e r O n e g a : A puntes so bre el p a is a m ie n to : su teu rg ia y su d em iu rg ia (O .


C., V, pp. 5 1 7 - 9 e 5 4 0 - 2 ) . V er la m b é m m in h a Introducción a la filo so fia : s e ç õ e s " F e n o m e ­
n o lo g ia ” (c a p . IV ), “E l c o n c e p t o c o m o fu n c ió n s ig n ific a tiv a ” (c a p . V ) e “E l p ro b le m a de
la ló g ic a " (c a p . V II). [O bras, 11.|

464
V. A TEO R IA DOS VALORES

C onvém distinguir a teoria dos valores (W ertth eo rie) da “filosofia


do valor” (W ertp h ilo so p h ie), que procede de Lotze e está representada
principalm ente por W indelband e Rickert.
A estim ativa ou ciência dos valores surge por volta do princípio
tio século XX. Tem com o fontes próxim as a ética de Brentano e a fe-
nom enologia, que tam bém procede de Brentano. O s discípulos im e­
diatos deste, sobretudo M einong e Von Ehrenfels, foram os primeiros
.1 se ocupar filosoficam ente do problem a do valor. Depois, a teoria
tios valores desenvolveu-se de m odo extraordinário em dois grandes
pensadores alemães: Max Sch eler e N icolai H artm ann. Tem os de es-
i udar as características dos valores para lançar depois uma breve vis-
ia d ’olhos sobre a filosofia de Scheler e de H artmann.

1. O p ro b lem a do valor

O p on to de partida • Em Brentano, o a m o r ju sto era aquele am or


evidente que traz em si m esm o a razão de sua justeza. Era o amor por
um objeto que mostra evidentem ente que a atitude adequada de se re­
ferir a ele é am á-lo. Um objeto é a m á v e l com am or ju sto quando ob ri­
ga a recon h ecer essa autêntica qualidade sua de exigir ser amado. E s­
tamos a dois passos da teoria dos valores. Q uando prefiro uma coisa
e porque vejo que essa coisa tem v a lo r , é valiosa.
O s valores são, portanto, algo que as coisas têm e que exerce so ­
bre nós uma estranha pressão; não se lim itam a estar aí, a ser apreen­
didos, obrigam -nos, ademais, a estim á-los, a v a lo n z á -lo s. Posso ver uma

465
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

coisa boa e não ir atrás dela; mas o que não posso fazer é não estimá-la.
V ê-la c o m o b o a já é estim á -la. O s valores não nos obrigam a fazer nada,
exceto essa coisa m od esta, pequ ena e in terior que é es tim á -lo s . Va­
lor é, p ortan to, aquilo que as coisas têm que nos obriga a estim á -la s.
Mas isso não basta. Temos de nos indagar sobre um segundo pro­
blema. V im os que há algo que m erece e ao m esm o tem po exige o no­
me de v a lo r; mas ainda não sabem os nada sobre essa estranha realida­
de. E surge a questão fundam ental: que são os valores? A resposta a
esta pergunta foi com freqüência errônea; o valor foi confundido com
outras coisas, e só a inconsistência desses pontos de vista equivoca­
dos tornou visível a verdadeira índole do valor.
O b jetiv id a d e do v alor • Chegaram a pensar (M einong) que uma
coisa é valiosa quando nos agrada, e vice-versa. O valor seria algo
subjetivo, fundado no agrado que a coisa produz em mim. Mas acon ­
tece que as coisas nos agradam p o r q u e s ã o b oa s - ou assim nos pare­
cem porque encontram os nelas a bondade. A bondade apreendida
é a ca u sa de nosso agrado. C om prazer-se é com prazer-se em alg o, e
não é nossa com placência que dá o valor, mas ao contrário: o valor
provoca nossa com placência.
Por outro lado, se a teoria de M einong fosse correta, só seriam
valiosos os ob jetos que existem , os únicos que podem produzir agra­
do em nós; no entanto - com o percebeu Ehrenfels o que mais va­
lorizamos é o que não existe: a ju stiça perfeita, o saber pleno, a saúde
de que carecem os; em suma, os ideais. Isso obriga Von Ehrenfels a cor­
rigir a teoria de M einong: são valiosas não as coisas agradáveis, mas as
d esejáv eis. O valor é a sim ples projeção de nosso desejo. Em am bos os
casos o valor seria algo subjetivo; não algo pertencente ao objeto, mas
sim aos estados psíquicos do sujeiLo. Mas as duas teorias são falsas.
Em prim eiro lugar, existem coisas profundam ente desagradáveis que
nos parecem valiosas: cuidar de um pesteado, ser ferido ou m orrer
por uma causa nobre etc. Pode-se desejar mais vivam ente com er que
possuir uma obra de arte, ou ter riquezas que viver retam ente, e ao
m esm o tem po valorizar muito m ais a obra artística e a retidão que a
com ida e o dinheiro. A valoração é independente de nosso agrado e
de nosso desejo. Não é algo su bjetivo, mas objetivo e fundado na rea­
lidade das coisas.

466
A T E O R IA D O S V A L O R E S

As palavras a g r a d á v e l e d e s e já v e l têm , afora o sentido do que


agrada ou é desejado, outro m ais interessante aqui: o que m erece ser
desejado. Esse m erecim ento é algo que pertence à coisa, é uma digni­
dade que a coisa tem em si, independentem ente de minha valoração.
Valorizar não é d a r valor, mas rec o n h ecer o que a coisa tem.
V alo res e b en s • Mas é preciso distinguir agora entre o valor e a
coisa valiosa. As coisas têm valores de diversos tipos e em diversos
graus. O valor é uma q u a lid a d e das coisas, não a própria coisa. Um
quadro, um a passagem ou um a m ulher têm beleza; mas a beleza não
c nenhum a dessas coisas. C ham am -se as coisas valiosas de bens. O s
bens são, portanto, as coisas p o r ta d o r a s d e v a lo res, e os valores se apre­
sentam realizados ou encarnados nos bens.
Irrea lid a d e do v alor • Dizem os que os valores são qualidades.
Mas existem qualidades reais com o a cor, a form a, o tam anho, a m até­
ria etc. O valor não é uma qualidade real. Num quadro encontro a tela,
as cores, as formas desenhadas, que são elem entos seus; a beleza é algo
que o quadro tam bém tem , mas de outro m odo; é uma qualidade ir­
real; não é uma coisa, mas tam pouco um elem ento de um a coisa.
Existem , afora o valor, outras qualidades com esse caráter; por exem ­
plo, a igualdade. A igualdade de duas m oedas não é nada que as m oe­
das tenham realm ente; a tal ponto que u m a m oeda não tem igualda­
de. A igualdade não pode ser percebida sensivelm ente, ela se de­
preende de uma com paração executada pelo entendim ento; a igual­
dade se vê intelectualm ente, mas ela é perfeitam ente objetiva, porque
não posso dizer que uma m esa e um livro sejam iguais; a igualdade é
algo das coisas em relação, apreendida ou reconhecida pelo intelecto.
Algo sem elhante ocorre com o valor: a m ente apreende o valor com o
algo objetivo, que lhe é im posto, mas perfeitam ente irreal; o valor não
se p e r c e b e com os sentidos, n em tam pouco se c o m p r e e n d e ; s e estim a.
Apreender o valor é, ju stam en te, estim á-lo.
C a ra c te r ís tic a do v a lo r • O s valores apresentam certas caracte­
rísticas que esclarecem mais ainda seu sentido objetivo e de objetivi­
dade ideal. Em primeiro lugar, têm p o la r id a d e , isto é, são necessaria­
mente p ositiv os ou n egativos, diferentem ente das realidades, que têm
um caráter de positividacle (ou, no m áxim o, de p r iv a ç ã o ) . Ao bom se

4 6 7
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

opõe o m au; ao belo, o feio etc. O u seja, o valor “beleza” aparece pola­
rizado positiva ou negativam ente, e assim com todos os demais.
Em segundo lugar, o valor tem h ie r a r q u ia : existem valores supe­
riores e outros inferiores; a elegância é inferior à beleza, e esta à b on ­
dade, e esta, por sua vez, à santidade. Existe, pois, uma hierarquia ob ­
jetiva dos valores que aparecem num a escala rigorosa.
Em terceiro lugar, os valores têm m a té r ia , ou seja, um conteúdo
peculiar e privativo. Não existe sim plesm ente valor, este se apresenta
segundo con teúd os irredutíveis, que é preciso perceber diretam ente:
a elegância e a santidade são dois valores de m a té r ia diferente, e seria
inútil tentar reduzir um ao outro. E a reação de quem percebe os va­
lores é diferente segundo sua m atéria: a reação adequada ante o santo
é a v e n e r a ç ã o ; ante o bom , o r e s p e ito ; ante o belo, o a g r a d o etc.
Cabe, portanto, uma classificação dos valores, con form e sua m a­
téria e seguindo sua hierarquia; e, em todos os casos, na dupla forma
polar de positivo e negativo. A ssim , existem valores úteis (capaz-inca-
paz, abundante-escasso), vitais (sadio-doente, forte-lraco, selelo-vul-
gar), in telectu a is (verdade-erro, evidenie-provável), m o r a is (bom -m au,
ju sto -in ju sto ), estéticos (b elo-feio, elegante-deselegatile), religiosos
(santo-profano) etc.
P e rce p çã o e ceg u eira para o v a lo r • O s valores podem ser per­
cebidos ou não; cada época tem um a sensibilidade para certos v alores,
e a perde para outros ou carece dela; há ceg u eira para um valor, por
exem plo para o estético, ou para o valor religioso em alguns hom ens.
Os valores - realidades objetivas - são d esc o b erto s, com o se descobrem
os contin en tes e as ilhas; às vezes, em contrapartida, a vista se turva
para eles e o hom em deixa de sentir seu estranho im pério; deixa de
estim á-los, porque não os percebe (ver Ortega y Gasset: tQ u é son los
valores?, em O .C ., VI).
S e r e v a le r • A teoria dos valores insistiu - talvez de m odo ex­
cessivo - em distinguir o valor do ser. Diz-se que os valores não são,
mas que v a lem ; não são en tes, m as v alen tes. Mas isso é grave, porque a
pergunta “que são os valores?” tem sentido, e não escapam os do s e r
com o subterfúgio do v aler. D istingue-se cuidadosam ente o bem do
valor; mas convém não esquecer que a m etafísica grega dizia ser sem ­

468
A T E O R IA D O S V A L O R E S

pre que o ser, o bem e o uno se acom panham m utuam ente e se dizem
das m esm as m aneiras. São, com o já vim os, os tran scen d en ta is. O bem
de um a coisa é o que aquela coisa é. O ser, o bem e o uno não são c o i­
sa s, m as transcendentais, algo que im pregna e envolve todas as coisas
e as faz ser e, sendo, ser unas e b o a s. É cabível pensar, portanto, o gra­
ve problem a da relação entre o ser e o valor, que não pode ser dado
por resolvido de uma vez p or todas.
Talvez essa deficiência ontológica tenha im pedido a filosofia dos
valores de adquirir mais profundidade e im portância. Alguns anos
atrás parecia que a teoria dos valores viria a ser a filosofia. H oje sabe­
mos que não é assim. A teoria dos valores é um capítulo fechado que
necessita de uma últim a fundam entação. A filosofia de nosso tem po,
acim a da teoria do valor, em preendeu um cam inho mais fecundo ao
entrar resolutam ente pela via da metafísica.

2. Scheler

P erso n a lid a d e e e s c r ito s • M ax Scheler nasceu em 1 8 7 4 e m o r­


reu em 1 9 2 8 . Foi professor cla Universidade de C olônia, e é um dos
pensadores mais im portantes cle nossa época. Tem raízes intelectuais
em E u ck en , de quem foi discípulo, e em Bergson; m uito particular­
m ente na fenom enologia de Husserl, que m odifica num sentido pes­
soal. Sch eler ingressou na Igreja católica e foi num a etapa de sua vida
um verdadeiro apologista do catolicism o; nos ú ltim os anos, contudo,
desviou-se da ortodoxia num sentido panteísta.
Sch eler é um escritor de extraordinária fecundidade. Sua p rin ci­
pal obra é sua É tica, cu jo título com pleto é D e r fo r m a lis m u s in d e r
E thik u n d d ie m a te r ia le W erteth ík (O form alism o na ética e a ética m a­
terial dos valores), em que critica a m oral form alista de Kant e estabe­
lece as bases de uma ética do valor, com conteúd o; além disso, escre­
veu W esen und F orm en d e r S y m p a th ie (Essência e form as da sim patia),
edição revista de uma obra anterior; D as R essen tim en t im A u jbau d e r
M o ra len (O ressentim ento na m oral); D ie S tellu n g d es M en sch en im
K o sm o s ( ( ) lugar do hom em no cosm os); D ie W issen sfo rm en und d ie
( > esellschaft (As formas do saber e a sociedade), e a grande obra de sua

469
H is t ú r ia d a f il o s o f ia

época católica: Vom Ew igen im M en schen (Do eterno no h om em ). A


produção de Scheler foi copiosíssim a e continua em parle inédita. São
de especial interesse seus estudos de an trop o log ia filo só fica . Em seu li­
vro Vom Ew igen im M enschcn encontram -se dois de seus m elhores es­
critos: R eue uncl W ied erg eb u rl (Arrependim ento e Renascim ento) e Vom
W esen d e r P h ilo so p h ie (Sobre a essência da filosofia).
A filo so fia dc S c h e lc r • Não podem os entrar na exposição de­
talhada do pensam ento de Scheler. Por um lado, é com p lexo e abun ­
dante dem ais e nos levaria mais longe do que aqui seria cabível. O
pensam ento assistem ático de Sch eler não se deixa reduzir facilm ente
a um núcleo essencial do qual em ane a variedade de suas idéias. Por
outro lado, está próxim o dem ais para fazer dele h istória d a filo s o fia em
sentido rigoroso. Pode-se optar por expor e interpretar o conteúdo de
sua filosofia, ou então apenas situá-lo. Renuncio ao prim eiro para me
limitar ao segundo.
Sch eler é fenom enólogo. Desde o com eço, a fenom enologia foi
con h ecim en to intuitivo de essências. Scheler se lança na conquista
das essências, sobretudo nas esferas dc hom em e de sua vida, e na es­
fera do valor. É extraordinária a clareza e a fecundidade de Scheler
nesse con h ecim en to de essências. Mas só isso não basta. Kant já ad­
vertia que a intuição sem o con ceito não é ciência. E em bora a intui­
ção fenom enológica não seja sensível, a filosofia não pode se contentar
em ser uma ciência d esc ritiv a , nem sequer de essências, m as tem de
ser s is tem a , e seu fundam ento tem de ser metafísica. E esta é a grande
falha de Scheler. Seu pensam ento, tão agudo e claro, não é m etafísico
em sentido estrito. Ademais, a conseqüência disso é que carece de u ni­
dade sistem ática. Suas visões geniais ilum inam diferentes zonas da rea­
lidade, m as falta-lhe uma coerência superior, que o saber filosófico
exige. A verdade filosófica aparece na forma de sistem a, em que cada
uma das verdades está sendo sustentada pelas demais. E isso falta em
Scheler.
Disso decorre o caráter provisório, essencial a seu pensam ento.
Scheler é um viveiro de idéias geniais em desordem , carentes de uma
ra iz da qual em erjam e que lhes dê plenitude de sentido. D epois do uso
da fenom enologia com o con h ecim en to de essências, é preciso pô-la a

470
A T E O R IA D O S V A L O R E S

serviço de uma m etafísica sistem ática. Scheler não fez isso, mas pre­
parou o cam inho para a m etafísica atual. C oncentrou sua atenção nos
temas do hom em e de sua vida: sua filosofia estava orientada para uma
a n tro p o lo g ia filo s ó fic a que não chegou a am adurecer. Essa tendência,
ao adquirir um sistem atism o fundam ental e se transform ar em m eta­
física rigorosa, desem bocou na a n a l ít ic a e x is te n c ia l.

3. H a rtm a n n

N icolai H artm ann ( 1 8 8 2 - 1 9 5 0 ) , professor em Berlim e depois


em G öttingen, tam bém representa uma orientação fenom enológica
relacionada com a de Scheler por sua atenção aos problem as do valor.
Depois da grande obra ética de Sch eler (1 9 1 3 ), H artm ann publicou
em 1 9 2 6 sua E thik, uma im portante sistem atização da m oral dos va­
lores. Mas, além disso, N icolai H artm ann cultivou intensam ente os
problem as do conhecim ento e da ontologia. Por isso percebe-se em
sua filosofia um claro propósito de sistem atização e de transform ação
em m etafísica.
Suas obras mais im portantes, afora a É tica já m encionada, são:
P latos L og ik d es S eins (A lógica do ser em Platão), G ru n d zü g e e in e r M e­
ta p h y sik d e r E rken n tn is (Fundam entos de uma m etafísica do co n h eci­
m ento); D as P rob lem d es g eistigen S ein s (O problem a do ser espiritual);
D ie P h ilo so p h ie d es d eu tsch en Id ealism u s (A filosofia do idealism o ale­
m ão); Z u r G ru n dlegu n g d e r O n tologie (Fundam entação da ontologia);
M ög lich keit und W irklich keit (Possibilidade e realiclade); D er A u fbau d e r
rea len W elt (A estrutura do m undo real). Em 1 9 4 2 publicou N eu e
W ege d e r O n tolog ie (N ovos cam inhos da ontologia), num volum e cole­
tivo, dirigido pelo próprio H artm ann e intitulado S y stem a tisch e P h ilo ­
so p h ie. Por últim o, P h ilo sop h ie d e r N a tu r (Filosofia da natureza), em
1 9 5 0 , e dois volum es de escritos breves, K lein ere S ch riften .

471
V I . A FILO SO FIA E X IS T E N C IA L DE H E ID E G G E R

P erso n alid ad e e ob ras • M artin Heidegger ( 1 8 8 9 -1 9 7 6 ) foi pro-


Icssor da Universidade de Friburgo de Brisgóvia, com o sucessor de Hus-
serl, depois de Ler sido professor em Marburgo.
É o mais im portante dos filósofos alem ães da atualidade, e para
encontrar um a figura com parável a ele teríam os de recorrer aos gran­
des clássicos da filosofia alemã. Heidegger procede im ediatam ente da
Icnom enologia, e seu pensam ento se relaciona estreitam ente com o
de Husserl e Scheler; mas, por outro lado, vincula-se à mais rigorosa
tradição m etafísica e concretam ente a Aristóteles. Sua tese de douto­
rado foi um estudo sobre Duns Escoto. Dedicou todo um livro à in ­
terpretação de Kant com o m etafísico. Em suas obras nota-se a presen­
ça constante dos grandes filósofos do passado: os pré-socráticos, Pla-
láo, Santo Agostinho, Descartes, Hegel, Kierkegaard, Dilthey, Bergson,
além dos já citados.
O pensam ento de Heidegger é de grande profundidade e orig
nalidade. Suas dificuldades tam bém são grandes. Heidegger criou uma
icrm inologia filosófica que suscita graves problem as de com preensão,
mas m ais ainda de tradução. Ao tentar expressar idéias novas e d esco­
brir realidades antes desconsideradas, Heidegger não se esquiva de
uma reform a profunda do vocabulário filosófico, para m elhor expri­
mir a intuição daquilo que quer fazer ver. Por outro lado, a filosofia
ile Heidegger está essencialm ente incom pleta. De seu livro fundam en­
tal, só a prim eira metade foi publicada, seguida de um longo e quase
loial silêncio, de outros escritos m ais breves, de características e orien-
lação bastante variadas e da renúncia à publicação do segundo tom o.

473
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Isso aum enta as dificuldades de um a exposição, que h o je, a rigor, não


pode ser feita com precisão e sem precipitação. Terei de me limitar,
portanto, a indicar o ponto de vista em que Heidegger se situa e assi­
nalar alguns m om entos centrais de sua metafísica, que perm itam com ­
preender seu sentid o e ajudem a entender suas obras.
Estas não são m uito extensas. Além de uma dissertação sobre Die
L eh re vom U rteil im P sychologism u s (A teoria do ju ízo n o psicologis-
m o), da tese já m encionada, D ie K a teg o rien - und B ed eu tu n g sleh re des
Du ns Scotus (A doutrina das categorias e das significações de Duns Es-
coto) e de uma conferência sobre D er Z eitb eg rijf in d e r G esch ich tsw is­
sen sch aft (O con ceito de tem po na ciência histórica), seu livro capital
é o prim eiro e único tom o de Sein und Zeit (Ser e tem p o), publicado
em 1927. Em 1 9 2 9 publicou seu segundo livro: K an t u n d d a s P roblem
d e r M eta p h y sik (Kant e o problem a da m etafísica), um a interpretação
muito pessoal do kantism o na C rítica d a r a z ã o p u ra , entendida com o
uma fundam entação da metafísica. D epois, no m esm o an o, dois bre­
ves e densos folhetos: W as ist M e ta p h y s ik ? (O que é m etafísica?) e Vom
W esen d es G ru n d es (Sobre a essência do fundam ento), seguidos em
1933 de um discurso: D ie S elb stb eh a u p tu n g d er d eu tsch en U n iversität
(A auto-afirm ação da Universidade alem ã). Por ú ltim o, outros en­
saios: H ölderlin u nd d as W esen d e r D ichtu n g (H ölderlin e a essência da
poesia), incluído depois no volum e E rläu teru n gen zu H ö ld erlin s D ich ­
tung, e Vom W esen d e r W ahrheit (Sobre a essência da verdade). Em
1947 publicou um breve livro: P laton s L ehre von d e r W a h rh eit, m it e i­
nem B r ie f ü b e r d en “H u m an ism u s” (A doutrina da verdade em Platão,
com uma carta sobre o “hum anism o”), em que se opõe a certas in ter­
pretações de sua filosofia e a distingue do “existencialism o” de Sartre.
Em 1 9 5 0 apareceu um volume intitulado H olzw ege (C am inhos de b o s­
que), com posto de seis estudos escritos em diversas datas ( “D er U rs­
prung des K unstw erkes”, “Die Zeit des W eltbildes”, “H egels Begriff
der Erfahrung”, “N ietzsches W ort ‘Gott ist tot”’, “Wozu D ichter?”, “Der
Spruch des A naxim ander”). Em 1953, o livro E in fü h ru n g in d ie M e­
tap h y sik (Introd u ção à M etafísica), e depois vários folhetos e artigos:
G eorg Trakl, D e r F eld w eg , ...D ichterisch w ohn et d e r M en sch ..., A us d e r E r­
fa h r u n g d es D en k en s, Ü b er d ie S ein s fra g e , W as ist d a s -d ie P h ilosop h ie? ,

474
A F IL O S O F IA E X IS T E N C IA L D E H E ID E G G E R

I l i b d - d e r H a u sfreu n d , os recentes volum es de ensaios Was heisst D en ­


k e n ' (Q ue significa pensam ento?), V orträge und A u fsätze (C onferên-
t i.is e ensaios), que inclu i, entre outros, D ie F r a g e n ach d e r T echn ik,
I ihcrw indu ng d e r M eta p h y sik , L og os, M o ira , A leth eia e, finalm ente, D er
'■.!(;; vom G ru n d (O princípio de razão, 1 9 5 7 ) e um extenso N ietzsch e
( N 6 1 ) em dois volum es. Está anunciad a a p u blicação de suas obras
■Mi npl etas com inclusão de m uitos e exten sos cu rsos inéditos.

1 . O p ro b lem a do s e r

S e r e tem p o • O problem a que Heidegger aborda em sua inves-


ngação intitulada S ein und Z eit é o sen tid o do s er ( d ie F r a g e n ach d em
'íiim von S ein ). Não se trata dos en tes, mas do ser. Este e nenhum outro
(' o tema da investigação. E seu fim p relim in a r é a interpretação do
ti m p o com o h o riz o n te possível de qualquer intelecção do ser em geral.
I k-idegger insiste de modo particular - coisa que não deve ser esque-
i icla com o se faz com dem asiada freqüência - em que a questão fun­
dam ental é o sentido do ser. O resto é prelim inar e serve para chegar
,i essa questão.
S e r e en te • Heidegger parte da consideração do problem a na
metafísica anterior. O ser foi entendido desde A ristóteles com o tran s-
i rn d en ta l, “o m ais universal de tudo” ( M e ta físic a , livro III, 4 ); um a
universalidade que não é a do g ên ero , com o queria Platão, mas aquela
lundada na unidade da a n a lo g ia . Mas - diz Heidegger - esse con ceito
■le ser não é o m ais claro, m uito pelo contrário: é o m ais obscuro. Ser
(Sein) não é o m esm o que ente (S eien d es). O ser não pode ser defini­
do; mas é ju stam en te isso que coloca a questão de seu sentido.
O “ser” é o conceito m ais com preensível e evidente. Todo m u n ­
do com preende a frase “o céu é azul”, “eu sou alegre”. Mas o fato de que
com preendam os no uso cotid iano o ser e de que, ainda assim, seu
■•eiitido e sua relação com o ente sejam obscuros para nós, m ostra que
aqui há um en igm a. E é isso que obriga a colocar a questão do sentido
tio ser. Toda ontologia - diz Heidegger (S .u.Z ., p. 11) - é cega se não
explicar prim eiro su ficientem ente o sentido do s e r e com preender
esta explicação com o seu tem a fundamental.

475
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

O e x is iir e o se r • A ciên cia, com o com portam ento do hom em


tem o m odo de ser deste ente que é o hom em . H eidegger cham a esse
ente de D asein . (Traduzo D asein por existir, infinitivo substantivado,
assim corno é D a sein , para d istingui-lo do term o, de raiz latina, Exis-
len z, que Heidegger usa em outro sentido, e que verto pela m esm a pa­
lavra ex istên cia . Creio ser esta a m enos ruim das traduções possíveis,
a mais literal e ao m esm o tem po a m enos violenta em espanh ol.) Mas
Heidegger adverte que a ciência não é o único m odo de ser do existir,
nem sequ er o mais próxim o. O existir se entende em seu ser; a com ­
preensão do ser é uma determ inação do ser do existir. Por isso se pode
dizer que o existir é ontológico.
O ser do D a sein , do existir, é a E x islen z, a existência. Heidegg
cham a de ex isten cia l o que se refere à es'rutura da existência. A analí-
lica ontológica do ente que é o existir requer uma consideração prévia
da existencialidade, isto é, o m odo de ser do ente que existe. Mas aqui
já está a idéia do ser, e a analítica do existir supõe a questão prévia do
sen tid o d o s e r em g era l.
E x is tir e m un d o • Nas ciên cias, contudo, o existir trata com en ­
tes que não são forçosam ente ele m esm o. Pois bem , é essencialm ente
próprio do existir e s ta r num m u n do. A com preensão do ser do existir
supõe, portanto, de m odo ig u a lm en te orig in ário , a com preensão do
“m un do” e do ser do ente que se encontra dentro do m undo. As on ­
tologias dos entes que não são existir estão fundadas, por conseguin­
te, na estrutura ôntica do existir. Esta é a razão pela qual devem os bus­
car na a n a lític a ex isten cia l d o ex is tir (ex isten z ia le A n a ly tik d es D a sein s ) a
o n tolo g ia fu n d a m e n ta l, que é a ú nica da qual podem surgir todas as
demais.
O existir tem primazia sobre todos os dem ais entes. Em prim e
ro lugar, um a prim azia ôn tica: esse ente está determ inado em seu ser
pela existência. Em segundo lugar, on tológ ica: o existir é em si m esm o,
por sua determ inação com o e x is tên c ia , “o n to ló g ico ’’. E em terceiro lu­
gar, com o é próprio do existir uma com preensão do ser que não é
existir, tem uma prim azia ô n tico -o n to ló g ica : é condição de possibilida­
de de todas as ontologias. Por isso, nenhum m odo de ser específico
perm anece oculto ao existir.

476
A F IL O S O F IA E X IS T E N C IA L D E H E I D E G G E R

A a n a lítica do e x istir • A analítica do existir é algo não só in com ­


pleto com o prov isório. Seu único intuito é destacar o ser deste ente,
-.em interpretação de seu sentido. Deve apenas preparar a abertura do
horizonte necessário para a interpretação originária do ser; é essa a
sua missão. Pois bem : o sentido do ser do existir é a tem p o r a lid a d e.
Com isso tem os o solo para a com preensão do sentido do ser. Aquilo
a p a r tir do que o existir com preende e interpreta o ser é o tem p o. Esse
c o horizonte da com preensão do ser. A prim eira m issão da filosofia é,
portanto, u m a e x p lic a ç ã o o r ig in á r ia d o tem p o c o m o h o r iz o n te d a c o m ­
p ree n sã o d o s e r d esd e a te m p o r a lid a d e , co m o s er d o existir.
O m éto d o de H eid egger • O m étodo da pergunta fundam ental
sobre o senudo do ser é fe n o m e n o ló g ic o . Para Heidegger, isso não sig­
nifica filiar-se a nenhum “ponto de vista” ou “d ireção”, porque a feno-
menologia é um con ceito m etód ico. Não caracteriza o o q u e do objeto da
investigação filosófica, mas o c o m o desta. E entende a fenom enologia
com o o im perativo de ir às p r ó p r ia s coisas, contra todas as construções
im aginárias, as descobertas casuais e as questões aparentes.
A palavra fe n o m e n o lo g ia procede dos dois term os gregos (paivó-
Mt-:vov ( p h a in ó m e n o n ) e tóy oç ( ló g o s ). O p rim eiro deriva de p h a ín e s -
th ai, voz m édia de p h a ín o , pôr na luz, na claridade, da m esm a raiz de
<|x j ) ç (p h ó s ), luz. F en ô m en o é o que se m ostra, o que se põe na luz, e
não é, portanto, ap a rên cia . O lógos é dizer, m a n ife s ta r (8 t]\ oi)v ), e Aris-
lóteles o explica com o a p o p h a ín e s th a i, onde voltam os a encontrar a
raiz de fenôm eno, e este m ostrar ou m anifestar é d es c o b r ir , tornar pa-
k-nle, pôr na verdade ou áAiíBeia. A falsidade, por sua vez, consiste
num en cob rim en to. Este é o sentido da fenom enologia: um m o d o d e
ticesso ao tema da ontologia. A on tologia só é possível c o m o fen om en o log ia.
O sentid o da descrição fenom enológica do existir é a in terp reta -
(,<10. Por isso, a fenom enologia é h erm en êu tica.
A filo so fia • O ntologia e fenom enologia não são duas disciplinas
11losóficas entre outras. São dois títulos que caracterizam a filosofia por
seu o b je to e seu m étodo. A filosofia é on tolog ia fe n o m e n o ló g ic a u n iv ersal,
que parte da h erm en êu tica d o existir.
A elaboração da questão do ser com preende dois temas, e, por-
lanto, a investigação se divide em duas partes, das quais só foi pu bli­
cada a prim eira (e não com pleta). O esquem a é o seguinte:

477
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Primeira parte: A interpretação do existir pela temporalidade e a


explicação do tempo com o horizonte transcendental da questão do ser.
Segunda parte: Fundam entos de uma destruição fenomenológi-
ca da história da ontologia, seguindo o fio da problem ática da tem po­
ralidade.
Este é o sentido da filosofia de Heidegger, que em última instân­
cia é a velha pergunta sobre o ser, ainda sem resposta suficiente.

2. A análise do existir

A e s sê n c ia do e x is tir • O ente cuja análise Heidegger em preen­


de é cada um de nós m esm os. O ser desse ente é sem pre m eu (je m ei-
n es ). A essência desse ente (seu cjuicl, seu was) tem de ser com preendi­
da desde seu ser ou existência; mas é preciso interpretar essa existên­
cia num sentido privativo desse ente que som os nós, não no sentido
usual do que está presente ( V orhan den sein ). Por isso Heidegger pode
dizer: A “essência” d o ex istir con siste em sua ex istên cia ( D as “W esen ” des
D asein s liegt in sein er E xisten z). O existir im plica sem pre o pronome
pessoal: “eu sou ”, “tu cs”. O existir é essencialm ente sua p ossib ilid a d e,
por isso pode ser “escolhido”, “ganho” ou “perdido”. Por isso são pró­
prios dele dois modos de ser: autenticidade ou inautenticidade.
As características de ser, quando se referem ao D asein chamam-
se ex isten cia is, quando correspondem aos outros m odos de ente, c a te­
g orias. Por isso, o ente é um q u em (existência) ou um q u e (ser presen­
te no mais am plo sentido). Heidegger adverte que a analítica do exis­
tir é distinta de toda antropologia, psicologia e biologia, e anterior a
elas. Portanto, a filosofia de Heidegger não só não se pergunta funda­
m entalm ente pelo hom em , e sim pelo sentido do ser; com o tam pou­
co a indagação preliminar sobre o ser do existir pode ser tomada como
antropologia.
O “e s ta r no m u n d o” • As determ inações do ser do existir têm d
ser vistas e com preendidas com base no que se cham a o “estar no
m undo”, que é um fenôm eno u n itário e, portanto, não deve ser tom a­
do com o uma com posição dos conceitos m encionados em sua expres­
são. Esse “n o ” não tem aqui um sentido espacial; a espacialidade é

478
A F IL O S O F IA E X IS T E N C IA L D E H E ID E G G E R

.ilgo derivado do sentido prim ário do “em ” e se funda no “eslar no


m undo”, que é o modo fundam ental de ser do existir. Tampottco o c o ­
nhecer é prim ário, é um m odo de ser do “estar no m undo”. Um dos
modos possíveis de tratar as coisas é conhecê-las; mas todos supõem
i ssa prévia e radical situação do existir, constitutiva dele, que é sim ­
plesmente o estar em algo que se cham a prim ariam ente m undo.
O m und o • O “estar no m u n d o” (In -d er-W elt-sein ) s ó pode tor-
niir-se plenam ente com preensível em virtucle de uma consideração
Irnom enológica do m undo. Para com eçar, o m undo não são as co isa s
lcasas, árvores, hom ens, m ontanhas, astros) que existem dentro do
m undo, que são intram undanas ( in n e m e ltlic h ) . A n atu rez a tam pouco
c o m undo, mas um ente que encontram os dentro do mundo e que
pode ser descoberto em diversas formas e graus. N em sequer a in ter­
pretação ontológica do ser desses entes se refere ao fenôm eno “m u n ­
d o”, que já está pressu posto nessas vias de acesso ao ser objetivo.
M u n do é ontologicam ente um caráter do próprio existir. Heideg-
>’cr indica quatro sentidos em que se emprega o conceito m u n d o : 1. O
m undo com o a totalidade do ente que pode estar dentro do m undo.
2. O m undo com o termo ontológico: o ser desse ente de que falamos;
as vezes designa uma região que abarca uma m ultiplicidade de entes,
com o quando se fala do m undo do m atem ático. 3. O m undo com o
iiquilo “em que vive” um existir fáctico com o tal. 4. O mundo com o de­
nom inação ontológico-existencial da m u n d an id ad e.
O m undo em que o hom em se encontra não é primariamente p r e ­
mente ( v o r h a n d en ), mas à m ã o (z u h a n d e n ). Daí o caráter de in stru m en to
(Zeiig) que as coisas têm , do qual Heidegger faz uma penetrante aná­
lise. Desse ponto de partida, faz um a análise da m undanidade e uma
interpretação da ontologia cartesiana do mundo com o res ex ten sa, para
csLudar por últim o a e s p a c ia lid a d e da existência. Mas não podem os
entrar aqui nesses detalhes.
A co e x istê n c ia • Não existe nenhum sujeito sem um m undo, em
virtude da índole constitutiva do existir; tam pouco existe um eu iso­
lado dos demais. “Os outros co ex istem no ‘estar no m undo’. O m undo
do D a sein é um m u n do com u m ( M itw elt); o es ta r em é um e s ta r com ou-
iros, e o ser em si intram undano destes é co ex istên cia. O “qu em ” d es­

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H is t ô u ia d a f il o s o f ia

sa coexistência não é este nem aquele, não é ninguém determ inado,


nem a soma de todos: é o neutro, o “im pessoal” ( d a s M an ). Uma carac­
terística existencial do im p essoal é o de ser termo m édio (D u rchschn itt-
lich keit). O im p essoa l descarrega o existir em sua cotidianidade. “O im-
p essoal é um existencial e pertence com o fenômeno originário à consti­
tuição positiva do existir,” E o s e r m esm o autêntico é uma m odificação
existencial do im p essoal.
A e x istê n c ia co tid ia n a • Do existir é próprio, por um lado, a j a c -
ticid a d e, por outro, a a b e r tu r a ( E rsch lo ssen h eil ), o estar essencialm ente
aberto para as coisas. Mas Heidegger distingue dois m odos diferentes
de “estar no m u n d o”. Por um lado lem os o co tid ia n o (A lltäg lich keit),
que é a existência banal, in au tên tica. O sujeito dessa existência banal é
o M an, o “s e ”, o "a g e n te ” im p esso a l. A existência se banaliza - de um
modo indispensável e necessário - no “im pessoal”, no “qualquer”, e
isso é uma decadência ou q u ed a ( V erfallen ). O M an está caído e perdi­
do no m undo. O m odo constitutivo da existência é estar la n ç a d o (G e-
w orfen h eit).
A e x is tê n c ia a u tê n tica • Mas o existir pode superar essa banali­
dade cotidiana e encontrar-se a si m esm o; então se transform a em e i­
g en tlich e E x isten z ou existência autêntica. O m odo em que se encontra
é a angústia (Angst) - conceito de que já fez uso Kierkegaard. A angús­
tia não é por causa disso ou daquilo, mas p o r nachr, quem se angustia,
não tem angústia d e n ada. É, portanto, o n a d a que se revela na angús­
tia. E o existir aparece caracterizado com o S orge, c u ra , em seu sentido
originário de c u id a d o ou p r e o c u p a ç ã o . Heidegger interpreta uma fábu­
la latina de Higino, segundo a qual o Cuidado (C u ra ) formou o h o­
mem que a ele deve pertencer enquanto viver, segundo sem ença de
Saturno (o tem po).
A v erd ad e • A questão do sentido do ser só se torna possível se
existe uma com preensão do ser. (Esta pertence ao m odo de ser deste
ente que cham am os o existir.) O s e r rccebe o sentido de rea lid a d e. Nes­
te conceito se coloca a questão da existência do m undo exterior, deci­
siva nas disputas entre o realism o e o idealism o; mas Heidegger res­
salta que a questão de se existe m undo e de se é possível dem onstrar
seu ser, com o questão colocada pelo existir com o “estar no m undo”,

480
A F IL O S O F IA E X IS T E N C IA L D E H E I D E G G E R

ii In icin sentido. Heidegger distingue entre m u n do com o o on d e do “es-


i ii im " (In-Sein) e “mundo" com o ente íniram undano. Pois bem , o mun-
•l.i i Má essencialm ente a b e r t o ( ersch lo ssen ) com o ser do existir; e o
M u n id o " está tam bém já d escoberto com a a b e r t u r a do m undo.
Isso coincide em term os de resultado com a lese do realism o: o
mundo exterior existe realm ente. Mas Heidegger se distingue do rea-
li mo pelo fato de que não crê, com o aquele, que essa realidade ne-
.. ■iic de dem onstração ou seja dem onstrável. O id ea lism o , por sua
"i . ao afirm ar que o ser e a realidade só estão “na con sciência”, ex-
Iiirssa que o ser não pode ser explicado pelo ente; a realidade só é pos-
ivcl na com preensão do ser ( S ein sv erstàn d n is ); em outras palavras, o
■i i c para todo ente o “transcendental”; mas se o idealismo consiste em
i. iluzir todo ente a um su jeito ou con sciência, indeterm inados em
'.i u ser, então é tão ingênuo quanto o realismo.
A realidade foi definida nos antecedentes da filosofia atual (Mai-
iii de Biran, Dilthey) com o resistên cia. Mas H eidegger radicaliza mais
i questão. A experiência da resistência, a d escoberta m ediante o es-
li hco do resistente, só é possível ontologicam ente em virtude da aber-
inra do m undo. A resistência caracteriza o ser do ente iniram undano;
mas se funda previamente no “estar no m undo”, aberto para as coisas.
\ própria “consciência de realidade” é um moclo do “estar no m un-
■In . Se quiséssem os tom ar o cogito sum com o ponto de partida da
■m alítica existencial, seria preciso entender a prim eira afirm ação, su m ,
no sentido de eu estou no m u n do. Descartes, em contrapartida, ao afir­
mar a realidade presente das cog itation es, afirma com elas um ego com o
u-s co g itan s sem mundo.
Ou seja, em vez de entend er o hom em co m o uma realidade re-
i lusa em sua consciência, a analítica existencial o descobre com o um
n ite que está essen cia lm en te aberto para as coisas, definido por seu
'estar no m un d o”; com o um ente, portanto, que consiste em tra n scen ­
d e r de si próprio. Isso já estava preparado pela d escoberta da in ten ­
cionalidade com o característica dos atos psíqu icos, que em última
instância afeta o próprio ser do hom em . Este transcende de si, apon­
ta para as coisas, está aberto para elas. Com o vim os, isso coloca numa
perspectiva radicalm ente nova o problem a da realidade do m undo

481
H is t ó r ia d a h l o s o f ia

exterior, que não aparece com o algo “acrescentado” ao hom em , mas


com o já dado com ele.
Nisso se funda a v erd a d e. Heidegger retoma a velha definição tra­
dicional da verdade com o a d a e q u a tio intellectus et rei, para m ostrar sua
insuficiência. A verdade é prim ariam ente descoberta do ser em si
mesmo ( « À r | 0f A a ) . E esta d e s c o b e r ta só é possível se fundada no “estar
no m undo”. Esse fenôm eno, dim ensão fundamental e constitutiva do
existir, é o fundam ento ontológico da verdade, que aparece fundada,
portanto, na própria estrutura do D asein . Em seu escrito Vom W esen
d e r W a h rh eil, 1 9 4 3 , Heidegger coloca a essência da verdade na lib er­
d a d e; a liberdade se descobre com o o “deixar ser” ( S ein la sse n ) do ente;
não é que o homem “possua” a liberdade com o uma propriedade, mas
que a liberdade, a "existência” que descobre possui o hom em ; e Heideg­
ger relaciona isso com a historicidade do hom em , único ente histórico.
5c5 " h á ” v erd a d e en q u a n to e na m ed id a em q u e h o u v er ex istir - diz
Heidegger. O ente só está d escoberto e aberto enquanto e na medida
em que há existir. As leis de N ewton, o princípio de contradição, qual­
quer verdade, só são verdadeiros na medida em que h á existir. Antes
e depois não há verdade nem falsidade. As leis de N ewton, antes dele,
não eram nem verdadeiras nem falsas: isso não quer dizer que não
existisse antes o ente que descobrem , mas sim que as leis se mostra­
ram verdadeiras por m eio de N ew ton, com elas se tornou acessível ao
existir esse ente, e é isso precisam ente a verdade. Portanto, só se de­
m onstraria a existência cle “verdades eternas” se se provasse que hou­
ve e haverá ex istir em toda a eternidade. Toda verdade é, portanto, re­
lativa ao ser do existir, o que naturalm ente não significa nem psicolo-
gismo nem subjetivism o.
Mas, por outro lado, a verdade coincide com o ser. Só “há” s e r -
não en te - quando há v erd a d e. E só há verdade na m edida em que
haja existir. O ser e a verdade, conclui Heidegger, “são” igualmente
originários.
A m o rte • Na filosofia de Heidegger aparece com o um tema im ­
portante a questão da morte. O existir é sempre algo inacabado, por­
que sua conclusão supõe ao mesm o tem po deixar de ser. Cabe, em cer­
to sentido, uma experiência da m orte do próxim o. Nesse caso, a tota­

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A F IL O S O P IA E X IS T E N C IA L D E H E ID E G G E R

lidade que o próxim o alcança na m orte é um n ão ex istir m ais, no sen­


tido de “não estar mais no m un d o”. A morte faz aparecer o cadáver; o
fim do enie q u a existir é o co m eço desse ente q u a coisa presente; con tu ­
do, o cadáver é algo mais que um a coisa inanim ada, e só pode ser
compreendido desde a vida. A m orte é algo próprio de cada qual: “nin­
guém pode tirar seu m orrer de ou tro”, diz Heidegger.
A m orte é um caráter essencial do existir; mas não é um aconte­
cim ento intram undano; a m orte, para o D asein , é sempre um “ainda
não”. Trata-se de um “chegar a seu fim ”, e isso é o que Heidegger ch a­
ma literalm ente de esta r p a r a a m o r te 1 (Sein zu m T ode). Este esta r p a r a
a m orte é constitutivo do existir, e o m o rrer se funda, do ponto de vis­
ta de sua possibilidade ontológica, na S orge, na cu ra. A m orte é a pos­
sibilidade mais autêntica da existência. Mas o im p esso a l, o M an, em sua
existência banal e cotidiana, procura ocultar isso de si m esm o sempre
que possível; diz-se: a m orte com certeza chega, m as, por enquanto,
ainda não. Com este "m a s...” - diz Heidegger o im p esso a l nega sua
certeza para a morte. Desse m odo, o im pessoal encobre o peculiar da cer­
teza da m orte: que é possível a todo instante. Assim que um hom em
nasce, é velho o bastante para m orrer; inversam ente, ninguém é bas­
tante velho para que não tenha ainda um porvir aberto.
A m orte é a possibilidade m a is p r ó p r ia d o existir. Na existência
autêntica, as ilusões do M an são superadas, e o existir é livre para a m or-
lc O h u m o r (S tim m un g ) que perm ite essa aceitação da m orte com o a
mais própria possibilidade hum ana é a an gú stia. Não há apenas um
esta r p a r a a m o rte, mas uma lib e r d a d e p a r a a m o rte (F reih eit zu m Tode).
l-.ssa doutrina heideggeriana está atulhada de questões duvidosas e de
dificuldades internas, às quais não é possível nem m esm o aludir aqui.
A tem p o ra lid a d e • V im os o existir caracterizado com o S orge.
Qual é agora o sentido desta S o rg e, desta c u r a ? A angústia ante a m or­
te é sem pre um a in d a n ã o ; a preocupação se caracteriza por um ag u ar-
ila r ( e r w a r te n ); trata-se, portanto, prim ariam ente de algo fu tu ro . E a

1. So b re esta tradu ção, ver m eu artigo “Estar a la m u erte”, em Ensayos de con vi-
vriicia \Ohras, III].

483
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

decisão ( E n isch lo ssen h eil ) do existir é sempre num a a tu a lid a d e . Por úl­
tim o, na G ew o rfen h eit, n o “eslar lançado”, funciona sobretudo o p a s ­
sa d o com o tal. A tem p o r a lid a d e (Z e itlic h k eil ) se m anifesta com o o sen­
tido da autêntica cu ra, e o fenôm eno prim ário da tem poralidade ori­
ginária e autêntica é o futuro. Heidegger faz uma profunda e ampla
análise da tem poralidade e da historicidade fundada nela. Com isso,
o existir aparece essencialm ente ligado ao tem po, o que explica a co­
nexão entre os dois term os centrais cla ontologia de Heidegger, que
dão título a seu principal livro: s e r e. tem po.

* * *

Estas breves indicações não pretendem ser um a e x p o s iç ã o sufi­


ciente da filosofia de Heidegger, o que, além do mais, talvez ainda não
seja possível hoje. A obra desse filósofo não está con clu íd a; mais ain­
da: sua interpretação é problem ática, discutida. Faz quase quarenta
anos que foi publicado o tom o I de Sein und Z eit, e desde então as pu­
blicações de seu autor não reapresentam , pelo m enos de form a madu­
ra, nada que constitua um corpo de doutrina com parável ao desse li­
vro. Isso faz com que surja uma questão sobre o sentido da filosofia
heideggeriana. Em seus últim os trabalhos, Heidegger fez uma crítica
acurada das interpretações apressadas de seu pensam ento. O que
aqui interessa é m ostrar o sentido e o lugar dessa m etafísica - excep­
cionalm ente profunda, rica e sugestiva, e ao m esm o tem po transbor-
dante de problem as e riscos filosóficos, visíveis hoje nos que invocam,
de forma m ais ou m enos ju stificad a, seu magistério e influência - e
procurar ajuda para a tão difícil quanto urgente leitura - m enos fre­
qüente e detida do que seria de im aginar - da genial obra de Heideg­
ger. Por isso ju lg u ei preferível ater-m e principalm ente ao torso de Sein
und Z eit, em vez de entrar nos detalhes dos escritos posteriores, que
exigiriam , para alcançar algum a clareza, uma exposição sumamente
m inuciosa.
A F IL O S O F IA E X IS T E N C IA L D E H e ID E G G E R

.3. 0 “ ex ist encialismo”

Nos últim os decênios, e sobretudo desde o final da Segunda


i iiicrra M undial, desenvolveu-se am plam ente um m ovim ento filosó-
Iii t> muito com plexo, procedenle em suas idéias capitais da filosofia
il.i vida, que costum a ser englobado sob o nom e, bastante equívoco e
11u-xato, de “existencialism o”. Alguns de seus representantes são coe-
iilnros de Heidegger - com o Jaspers, Mareei, W ahl, pertencentes à
im-.ma geração que outros pensadores de orientações diversas, com o
1 'nega, H artm ann, Lavelle, Le Senne, Maritain, G ilson etc. iniciaram
■11;i filosofia independentem ente dele, em bora tenham experim entado
mu influência; outros são seus continuadores, desenvolvem -no e com
l i r q uê n c i a o desvirtuam. Todas essas tendências, de valor e fecundi-
il.ule muito desiguais, com divergências consideráveis, de significação
muito distinta, têm, contudo, alguns traços em com um . Houve um m o-
1111•111o em que pareciam d om inar o cenário filosófico, pelo m enos na
I iiiopa continental e na A m érica espanhola; sua influência e seu
I>u’.stígio reduziram -se nos últim os anos.
A expressão “existencialism o” é a mais difundida; contudo, mui-
II is desses filósofos a rejeitaram no que se refere a suas doutrinas. Para
ml m duzir um a classificação aproxim ada, poderíam os distinguir entre
lilusofia ex isten cia l (H eidegger), filosofia d a ex istên cia (Jaspers, M ar-
i rl) c ex is ten cia lism o (que deveria ser reservado para Sartre e seus con -
imuadores). Todas essas formas de pensamento foram inspiradas, m ais
nu m enos rem otam ente, por Kierkegaard, cuja som bra se projeta so-
luc elas. Este m ostrara sua aversão ao pensam ento abstrato ou su b
./ireie a e te r n i e reclam ara atenção para a existência: “O pensam ento
.ibsirato é su b sp ec ie a eter n i, faz abstração do con creto, do tem poral,
do processo da existência, da angústia do hom em , situado na existên-
i i.i por um a con ju nção do tem poral e do etern o.” “Todo pensam ento
lógico se dá na linguagem abstrata e su b sp ecie a e ter n i. Pensar assim a
i xisiência significa fazer abstração da dificuldade de pensar o eterno
mi i devir, algo a que se está obrigado, já que aquele que pensa se en-
■outra ele m esm o no devir. Disso decorre que pensar abstratam ente
M'|a m ais fácil que existir (com o um cham ado su je ito ).” “Deus não

485
H is t ó r ia d a f il o s o p ia

pensa, cria; Deus não existe, é eterno. O hom em pensa e existe, e a


existência separa o pensar do ser, os mantém distantes um do outro
na su cessão.” “A subjetividade é a verdade, a subjetividade é a realida­
d e.” Eslas idéias de Kierkegaard são o germe de boa parte dessas dou­
trinas, m ais diretam ente das de Jasp ers e Wahl.
Essas form as de pensam ento despertaram vivo interesse; a razão
mais profunda disso - por trás de m odas passageiras - é o fato de que
essas lilosofias estão no nível do tem po, form ularam os verdadeiros
problem as de nossa época - seja qual for a verdade de suas s o lu ç õ e s -,
responderam ao afã de concretude de todo o pensam ento atual e, so-
breludo, se concentraram no estudo dessa realidade que é, com um
nome ou outro, a vida hum ana. Tentarei caracterizar brevem ente os
pensadores mais im portantes desse grupo.
Ja s p e r s • Karl Jaspers, nascido em O ld en bu rgern 1 8 8 3 , profes­
sor em 1 leidelberg e depois na Basiléia, procede das ciên cias; a partir
da psiquiatria loi se aproxim ando da filosofia. Suas obras são muito
num erosas, e algumas enorm em ente extensas; as m ais im portantes
são: A llg em ein e P sy ch o p a th o lo g ie, P sychologie d e r W elta n sch au u n g en , Die
geistige S itu ation d e r Zeit, P h ilo so p h ie (1 9 3 2 , 3 volum es: “Philosophis­
che W eltorientierung", “E xistenzerhellung”, “M etaphysik"), Vernunft
und E x isten z, N ietz sch e, D esca rtes und die P h ilo sop h ie, E x isten z p h ilo so ­
p h ie, D er p h ilo so p h isch e G la u b e, E in fü hru n g in die P h ilo so p h ie, Vom U rs­
pru n g und Z iel d e r G esch ich te, R e ch en sch a ft und A u sb lick, V ernunft und
W id erv ern u n ft in u n serer Z eit, Von d e r W ahrheit (prim eiro tom o, exten-
sissim o, de um a P h ilosop h isch e L o g ik ), D ie grossen P h ilo sop h en . Jaspers
dem onstrou uma preocupação m oral constante, e se ocupou m inu­
ciosam ente da responsabilidade da Alem anha, da defesa da liberdade
e dos problem as históricos de nosso tempo.
Da psicologia das W eltan sch au u n g en ou “visões de m u n d o” Ja s ­
pers avançou para uma filosofia da ex:stência ( E x isten z p h ilo so p h ie );
sua filosofia foi qualificada por Gabriel Mareei de “uma orografia da
vida in terior”. Está construída a partir do ponto de vista do que cha­
ma de m ö g lich e E x isten z ou existência possível, ou seja, o inacabado; a
pergunta sobre o ser envolve e afeta quem pergunta; a busca do ser é
sempre irrealizada, mas essencial (ressonância da idéia da metafísica

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i iimo N a tu ra n la g e de Kant, cuja influência sobre Jasp ers é decisiva). A


i Msiência é para Jaspers o que nunca é objeto; tem de se virar consi-
l'.n m esm a e com sua transcendência. Jasp ers se interessa especial­
mente pelas “situações-lim ite” ou fronteiriças ( G ren z situ a tio n en ), que
ii.U) podem ser m odificadas, que pertencem à ExisLenz mas significam
,i passagem para a transcendência - determ inação histórica da exis-
u-ncia, m orte, sofrim ento, luta, culpa. Um con ceito fundam ental no
pensam ento de Jaspers é o que cham a de das U m g reifen d e (o abarca-
( 11>r, englobante ou envolvente); é o ser que não é só sujeito nem só
i 'bjelo: ou o ser em si que nos rodeia (m undo e transcendência) ou o
MT que som os (existência, con sciên cia, espírito). O que con h ecem os
e sia n o m und o, não é nunca o m undo; a transcendência, por sua vez,
imnca chega a ser m undo, mas “fala” através do ser no m undo. Se o
mundo for tudo, não há transcendência; se há transcendência, há no
M r m undano um possível indicador dela.
B u b er • Martin Buber (nascido em Viena em 1 8 7 8 , m orto em Je -
i usalém em 1 9 6 5 ) é um pensador ju d eu que tem afinidades com essa
maneira de pensar, com um a referência especial aos tem as religiosos e
.1 m ística ju d aica. Insistiu com particular energia nas relações sujeito-
nbjeto e su jeito -su jeito, sobretudo na relação eu -tu. O tem a do p ró xi­
mo recebeu de Buber uma contribuição considerável. Seus escritos
mais im portantes são: Ich und D u (Eu e tu), D ie ch a ssid is ch en B û c h e r ,
.'.w iesp rach e: ein T raktat vom d ia log isch en L eb e n , Q ué es el h om bre? , D er
K lcnsch u n d sein G ebild.
M a rcel • Na França, o prim eiro representante dessas doutrinas é
i i.ibriel M arcel ( 1 8 8 9 - 1 9 7 3 ) ; convertido ao catolicism o em 1 9 2 9 , fi­
losofo e autor dram ático, considera que seu teatro é parte essencial de
•■na própria indagação filosófica. Seus livros m ais im portantes são:
/nu m a l m é ta p h y s iq u e, E tre et a v o ir, D u refus à l'in vocation , H o m o v ia to r
e, sobretudo, L e m ystère de l ’être', entre suas obras teatrais: Le seu il in vi­
s ib le , L e q u a tu o r en f a d ièse, Un h o m m e de D ieu, L e m o n d e c a ssé, L e d ard ,
I r fa n a l, L a so if, L e signe d e la cro ix , llém issaire.
M arcel é pouco sistem ático; seu pensam ento, sin u oso, procura
■lubmeter-se à realidade, seguindo seus meandros, conservando a m aior
.m tenticidade possível e um a grande fidelidade às coisas. Sua delica-

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H is t ó r ia d a f il o s o f ia

deza inielectual, sua veracidade e sua falta de frivolidade são muito


notórias. Homem religioso, d om inado pelo respeito do real, laz um
uso digno e profundo de seus dotes intelectuais. Desde 1 9 1 4 falou de
“existência”, e seu pensam ento foi cham ado de “existencialism o cris­
tão", em bora ele tenha rejeitado esse nom e. “Existe um plano - escre­
ve Marcel - no qual não só o m undo não tem sentido, com o é contra­
ditório form ular a questão de saber se tem algum; é o plano da exis­
tência im ediata; é necessariam ente o do fortuito, é a ordem do acaso.”
Uma d istinção decisiva para Marcel é a que ele faz entre p r o b le ­
m a e m istério. O problem a é para ele algo que se en con tra, que fecha
o cam inho; está inteiro diante de m im ; o m istério, ao con trário, é algo
cm que me en con tro envolto ou com prom etido (en g a g é ), cuja essên­
cia consiste em não estar inteiro diante de mim; com o se nessa zona a
distinção entre o “cm m im ” e o “ante m im ” perdesse significação. Mar­
cel considera que os problem as filo só fico s não são propriam ente pro­
blem as, mas antes m istérios neste sentido. Marcel usa os con ceitos de
projeto, vocação, criação e transcendência. Criar significa criar num
nível acim a de nós m esm os; transcend er não quer dizer transcender a
experiência, porque além dela não há nada, mas ter experiência do
transcendente. Para ele existe um fu lcru m ex isten cia l, um ponto de
apoio ou ponto de vista, que é o hum ano. O problem a do corp o é for­
mulado corno a condição de “ser en carn ad o”; isso quer dizer aparecer
com o esse corp o , sem se identificar nem se distinguir. O corp o é ma­
nifestação do nexo que me une ao m undo, e posso dizer “eu sou meu
co rp o ”, ü existencial se reíere ao ser encarnado, ao fato de estar no
m undo; e isso é um c h e z soi', o sentir não é uma passividade, mas uma
participação. Marcel refletiu profundam ente sobre a situação, o sacri­
fício e o su icíd io, a paternidade e sua relação com o cuidado corporal
do filho - donde a possibilidade da paternidade adotiva; e, finalm en­
te, da “fidelidade criadora”. M arcel propõe uma “filosofia con creta”,
determ inada pela “m ordedura do real”, na qual são tem as a m orte, o
suicídio, a traição; a crença no tu é essencial dentro dela; o ser é o lu­
gar da fidelidade, que significa um com prom isso desm edido e a espe­
rança co m o créd ito infinito; essas idéias, e a fé na im ortalidade pes­
soal, estão intim am ente ligadas com o am or e se expressam admiravel-

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A F IL O S O F IA E X IS T E N C IA L D E H E I D E G G E R

mente na frase de uma personagem de Marcel: Toi q u e j ’a im e, (u ne


m ou rras p a s [Você, que am o, não m orrerá).
Ao m esm o nível cronológico pertence Jean W ahl (nascido em
IH88), professor da Sorbonne, autor de É tudes su r le P a rm é n id e d e P la ­
ton, Vers le co n cret, É tudes k ie r k e g a a r d ie n n e s , P etite h istoire d e l’ex isten ­
tialism e, T raité d e M éta p h y siq u e. Tam bém Louis Lavelle (1 8 8 3 -1 9 5 1 ),
i Lijas relações com o existencialism o são m uito m ais rem otas, autor
de D e VÊtre, T raité des v a leu rs, L a d ia lec tiq u e d e l ’é te r n e l p résen t etc., e
René Le Senne ( 1 8 8 3 - 1 9 5 4 ) , cu jo s principais livros são: In trod u ction à
ht p h ilo so p h ie, L e m en son g e et le c a r a c tè r e , O b stacle et v a leu r , Traité d e
m o rale g é n é r a le , Traité d e c a r a c téro lo g ie. À geração seguinte, igualm en-
if mais próxim o do personalism o e do espiritualism o que do pensa­
mento existencial, pertence Em m anuel M ounier ( 1 9 0 5 - 1 9 5 0 ) , funda­
dor da revista E sprit, autor de livros políticos e de um T raité du c a r a c ­
tere, In trod u ction aux e x isten tia lism es, L e p erso n n a lism e.
S a rtre • A figura mais notória da filosofia francesa dos anos pos-
leriores à G uerra Mundial é o representante do “existencialism o” em
•nítido estrito, Jean -P au l Sartre (nascido em 1 9 0 5 ). Professor de li-
i i'U, novelista e dram aturgo, escritor político, diretor de Les Tem ps
m o d ern es, estudou por algum tem po na Alem anha e recebeu forte in-
lluência do pensam ento fenom enológico de H usserl e tam bém de
Heidegger, dos quais procede grande parte de suas idéias. No entan-
m, H eidegger apontou a grande distância que o separa de Sartre; nos
iillim os anos, este se aproxim ou cada vez mais do m arxism o. Sua obra
r m uito am pla; seus principais escritos filosóficos são L im a g in a tio n ,
I s q u is s e d'u n e th éo rie des é m o tio n s, L im a g in a ire, H être et le n éan t (sua
obra fundam ental, 1 9 4 3 ); após um a longa interrupção, publicou em
19 6 0 outra obra m uito extensa, C ritiqu e d e la raison dialectique', devem -
se m encionar, adem ais, seus ensaios S itu ation s, B a u d ela ire , L ex isten tia -
lism e est un h u m a n ism e , S a in t-G en é t, co m éd ien et m a r ty r etc. A estas so-
m am -se seus rom ances “existen ciais” L a n a u sée ( 1 9 3 8 ), ILâge d e ra ison ,
I c su rsis, L a m ort d an s l ’â m e , seus relatos Le m u r, L es je u x sont fa its, E n ­
g ren a g es, seu teatro: H u is-clos, L es m o u ch es, M orts san s sép u ltu re, L a p u ­
tain resp ectu eu se, Les m ain s s a le s , L e d ia b le et le bon D ieu , N ek ra s so v , L es
sc q u e str é s d ’A lton a e um livro au tobiográfico, L es m ots.

489
H is t ú r ia da f il o s o f ia

Sartre partiu de um a psicologia fenom enológica e só de m odo


relativam ente tardio passou para a ontologia - o su btítulo de L’être et
/e n éan t é “Essai d’ontologie p hénom énologiqu e”; é um livro de 722
densas páginas, de difícil leitura, com um tecnicism o tradicional, em
geral transposto para outros sentid os, análises m inuciosas, descrições
fenom enológicas, fragm entos de grande talento literário e outros de
prosa abstrusa e pouco acessível. O sen tido prim ário do “existencia­
lism o” é a p rioridade da existência sobre a essência, o que equivale a
inverter os term os tradicionais, em bora aceitando o m esm o esquem a
da ontologia tradicional; em certo sentid o, poder-se-ia dizer que a fi­
losofia de Sartre é ontologia tradicional, escolástica ou fenom enológi-
ca, à reb o u rs, mas sem transcend er de suas form ulações e conceitos
fundam entais. Por isso, os que ele m aneja constantem ente são ser,
nada, em -si e para-si, para-si e para-outro etc. O ser do hom em é in ­
terpretado com o p ou r-soi ou con sciência, com o que recaím os em
Husserl. “A con sciência - escreve Sartre - é um ser para o qual, em
seu ser, está em questão o seu ser enquanto este ser im plica outro ser
que não ele m esm o .” “A con sciência é um ser para o qual é em seu ser
con sciência do nada de seu ser.” Sartre coloca o problem a em term os
de con sciência, o que o aproxim a m uito mais de Husserl que de Hei­
degger. Além disso, m uitas de suas idéias foram form uladas por esses
dois filósofos ou por Ortega: o p ro jeto, a escolha ou ch o ix , o “estar
condenad o a ser livre” (O rtega já ensinava vários d ecênios antes que
“o hom em é forçosam ente livre”, é livre para tudo m enos para deixar
de sê-lo: mas ao m esm o tempo constatou que, em bora o hom em sem ­
pre escolha, nem tudo em sua vida é objeto de escolha; nem a cir­
cunstância nem a vocação ou projeto originário).
Sartre professa o que cham a de “um ateísm o con seq ü en te”, que
funda em razões sum am ente débeis e pouco justificadas; para ele, o
hum or fundam ental ante a realidade é a evidência de que tudo está
“de m ais” (d e trop ) e portanto, a n á u sea . O hom em é um a paixão para
fundar o ser e con stitu ir o Em -si, o E ns ca u sa sui, ou seja, Deus. “Mas
a idéia de Deus - con clu i Sartre - é contraditória e nos perdem os em
vão; o hom em é um a paixão in ú til.” Na C ritiqu e dz la ra ison d ia le c ti­
q u e, Sartre diz que uma antropologia estrutural e histórica “trouve sa

490
A F IL O S O F IA E X IS T E N C IA L D E H E I D E G G E R

place à l’intérieur de la philosophie m arxiste parce que je considere le


m arxisme com m e l’indépassable philosophie de notre tem ps et parce
que je tiens l’idéologie de l'existence et sa m éthode ‘com préhensive’
pour une enclave dans le m arxism e lui-m êm e qui l’engendre et la re­
fuse tout à la fois”*. Para Sartre o m arxism o é a filosofia insuperável
de nosso tem po, e a razão disso é que apenas com eçou a se desenvol­
ver e as circunstâncias que o engendraram ainda não foram supera­
das: “loin d'être épuisé, le m arxism e est tout jeu n e encore, presque en
enfance: c'est à peine s’il a com m en cé de se développer. Il reste donc
la philosophie de notre tem ps: il est indépassable parce que les cir­
constances qui l’ont engendre ne sont pas encore dépassées”.
Transcrevo esta citação textual porque representa m uito bem o
modo habitual do raciocínio sartriano. Nos ú ltim os anos, foi alvo de
muitas críticas, e seu prestígio e influência d ecresceram m uito. Teve
grande influência sobre Sim one de Beauvoir, rom ancista e autora de
estudos filosóficos, e, originalm ente, esteve próxim o de seu pensam en­
to o grande escritor Albert C am us ( 1 9 1 3 -6 0 ), que depois se separou
totalm ente do m arxism o. M aurice M erleau-Ponty ( 1 9 0 8 -1 9 6 1 ) , muito
influenciado pelos filósofos alem ães con tem porân eos, sobretudo pe­
los fenom enólogos, é autor de L a stru ctu re du co m p o r te m en t, P h én o m é­
n olog ie d e la p erc ep tio n , L es a v en tu res d e la d ia lectiq u e , Signes. Em quase
todos os países europeus e na Am erica espanhola essas correntes tive­
ram ressonâncias e im itações, que com eçaram a se atenuar nos últi­
mos tem pos.

* “Tem lugar no interior da filosofia m arxista porque co n sid ero o m arxism o a fi­
losofia in su p eráv el de nosso tem p o e p o rq u e, a m eu ver, a id eo lo g ia da existên cia e seu
m étod o 'co m p reen siv o ' são um en clav e n o p ró p rio m arxism o, q u e a en gen d ra e a rejei-
la ao m esm o te m p o .” (N. da T.|

491
VII. O r t e g a e s u a f i l o s o f i a d a r a z ã o v it a l

1. A f i g u r a de Ortega

V ida • José Ortega y Gasset, o m áxim o filósofo espanhol, nasceu


cm Madri em 9 de maio de 1 8 8 3 e m orreu na m esm a cidade em 18 de
outubro de 19 5 5 . De 1 8 9 8 a 1902 cursou licenciatura em Filosofia e
I ctras na Universidade de Madri e se doutorou em 19 0 4 , com uma
lese sobre Os terrores do a n o mil ( C rítica de u m a len d a). Em 1905 foi
para a Alem anha e estudou nas Universidades de Leipzig, Berlim e
Marburgo; na últim a destas Universidades - filosoficam ente a mais
im portante da Alemanha naquela época - foi discípulo do grande neo-
kantiano H erm ann Cohen. A partir de 1 9 1 0 foi catedrático de Metafí­
sica da Universidade de Madri, onde m inistrou seus cursos até 1936.
Em 1 9 0 2 Ortega iniciou sua atividade de escritor; suas colabora­
ções em jo rn a is e revistas, seus livros, suas conferências e seu trabalho
editorial tiveram influência decisiva na vida espanhola e, faz alguns
decênios, essa influência se estendeu de m odo crescente para fora da
lispanha. Em 1 9 2 3 fundou a R evista de O cciden te (publicada até 1 9 3 6 )
que, com sua Biblioteca - de atividade não interrom pida manteve
os leitores de língua espanhola rigorosam ente inform ados sobre todas
as questões intelectuais. Ortega incorporou ao pensam ento espanhol,
m ediante traduções e edições, o m ais substantivo da ciência européia,
cm particular a alem ã, um repertório de obras clássicas, e conseguiu
que os estudiosos espanhóis tivessem condições de estar à altura dos
tem pos. A conseqüência disso e, sobretudo, de sua ação filosófica pes­
soal foi o florescim ento de uma escola filosófica, no sentido lato do

493
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

termo, que costum a ser cham ada de esc o la d e M a d n , e à qual estão vin­
culados, enlre outros, Manuel Garcia M orente, Fernando Vela, Xavier
Zubiri, Jo sé Gaos, Luis Recaséns Siches, Maria Zam brano, Antonio
Rodríguez Huéscar, Manuel G ranell, Jo sé Ferrater M ora, Jo sé A. Ma-
ravall, Luis Díez dei Corral, A lfonso G. Valdecasas, Salvador Lissarra-
gue, Paulino Garagorri, Pedro Laín Entralgo, José Luis Aranguren e o
autor deste livro.
A partir de 1 9 3 6 , Ortega residiu na França, H olanda, Argentina,
Portugal e Alem anha, com esladas na Espanha desde 1 9 4 5 . Foram
anos de m aturação de seu pensam ento e de com posição de suas prin­
cipais obras, durante os quais seus escritos se difundiram no exterior
e podem ser lidos num a dezena de línguas. Por meio dele, o pensa­
m ento espanhol enquanto tal - O rtega sempre dedicou seu esforço à
m editação sobre a Espanha, e toda a sua obra está condicionada por
sua circunstância espanhola - está presente no m undo. Em 1 9 4 8 fun­
dou em Madri, com Ju lián Marías, o instituto de H um anidades, onde
ministrou cursos e participou de colóq u ios sobre vários temas.
E stilo in tele c tu a l • Ortega é um grande escritor. Entre a meia
dúzia de adm iráveis prosistas espanhóis deste século, ocupa um lugar
insubstituível e, na verdade, n en h u m é superior a ele. Seus dotes lite­
rários possibilitaram que levasse a cabo uma transform ação na lin­
guagem e no m odo de escrever, cu ja marca é visível em boa parte dos
autores contem porâneos. Ortega crio u uma term inologia e um estilo
lilosófico em espanhol, que não existiam ; sua técnica - oposta à dc
Heidegger, por exem plo - consiste em evitar de m odo geral os neolo-
gismos e devolver às expressões usuais do idiom a, profundam ente vi­
vidas, até m esm o aos m odism os, seu sentido mais autêntico e originá­
rio, m uitas vezes carregado cle significação filosófica ou capaz de con ­
tê-la. O uso da m etáfora alcançou co m ele, além de seu valor de beleza,
outro estritam ente m etafísico. “A cortesia do filósofo é a clareza”, cos­
tumava dizer; e tanto por escrito co m o em sua incom parável oratória
docente, atingiu o m áxim o de diafaneidade de seu pensam ento; Orte­
ga extrem a o esforço para se tornar inteligível, a ponto de induzir o
leitor, com dem asiada freqüência, a crer que, por tê-lo entendido sem
muito trabalho, não tem de se em penh ar para entendê-lo por complc-

494
O r t e g a e s u a f i l o s o f i a d a r a z à o v it a l

in I in alguns de seus últim os escritos, Ortega chegou a um modo de


expressão totalm ente original, em que a fidelidade ao gênio da lingua
m une a procedim entos estilísticos absolutam ente novos, e que cor-
II -.ponde à forma de razão em que consiste seu m étodo filosófico; é o
que cham ei de o d iz e r d a r a z ã o vital'.
Ao m esm o tem po, O rtega realizou uma renovação de alguns gê-
iii io s literários. O fato de escrever sua obra tendo em vista as circuns-
■Du ias espanholas obrigou-o durante m uitos anos a exprim ir seu
pensamento em ariigos de jo rn a l ou em ensaios; foi fornecendo a por-
i , , h > de filosofia que os leitores podiam efetivam ente absorver em cada
linimento. “Era preciso seduzir para os problem as filosóficos com
meios líricos” - disse ele. Ortega escreveu, portanto, artigos e ensaios
ili peculiar índole, com os quais foram com postos alguns dos livros
ui.ms im portantes do século XX.
O interesse de Ortega não se lim itou às questões estritam ente fi­
ll p o lk as, mas levou seu ponto de vista filosófico a todos os temas vi-
\i is: a literatura, a arte, a política, a história, a sociologia, os tem as hu-
III.mos foram tratados por ele; e a respeito de uma im ensa quantidade
ili- questões pode-se en con trar alguma página de Ortega da qual se
i' i ebe uma ilum inação que com freqüência se espera em vão de gros­
a s volum es. Mas todos esses escritos, mesm o os de aparência mais
ii mota, estão vinculados a um propósito filosófico, e é só à luz de seu
.r.lem a que é possível entenclê-los em sua integralidade. Pelo fato de
' 'n eg a ter-se ocupado sobretudo de filosofia, h oje a Espanha volta a
i muar, depois de Suárez, com um autêntico m etafísico, original e ri-
!11>i oso. O rtega, com sua obra intelectual e com sua influência, tornou
possível e existente a filosofia na Espanha.
O b ra s • A produção literária de Ortega é m uito copiosa. Suas
( >i>ras co m p leta s, reunidas em seis volum es, com preendem escritos pu-
I iliLados de 1 9 0 2 a 1 9 4 3 ; três volum es recolhem as obras posteriores.
i >s mais im portantes deles são: M ed itacion es dei Q u ijote ( 1 9 1 4 ); El es-

1. A nalisei m in u cio sam en te esla q u estão em m eu estud o “V ida y razon en la filo-


.1il i.i de O rie g a ” (em L a escu ela d e M adrid. Estúdios de filo s o fia esp an ola. B u enos Aires,
11 [O bras, V|. Ver tam bém m in ha Introdu ction a la filo so fia , cap. V, 4 8 [O bras, II].

495
H is t ó r ia da f il o s o f ia

p ecta c lo r (oito volum es, 1 9 1 6 - 3 4 ) ; E s p a n a in v e r t e b r a d a (1 9 2 1 ) ; El


tem a d e n u esiro tiem p o ( 1 9 2 3 ); L as A tlá n tid a s (1 9 2 4 ); L a d e s h u m a n iz a -
ción d ei a r t e e id ea s so b re la n o v e la ( 1 9 2 5 ) ; K a n t ( 1 9 2 4 - 2 9 ) ; L a rebelíón
d e las m a s a s ( 1 9 3 0 ) ; M ision d e la U n iv ersid a d ( 1 9 3 0 ); G u ille r m o D ilthey
y la id ea d e la v id a (1 9 3 3 ); En to rn o a G a lile o ( 1 9 3 3 ); H isto ria c o m o sis­
tem a ( 1 9 3 5 ) ; E n s im is m a m e n to y a lte r a c ió n (1 9 3 9 ); M e d ita ció n d e la téc­
n ica (1 9 3 9 ) ; Id ea s y cre en cia s ( 1 9 4 0 ) ; A pu n tes so b r e el p e n sa m ien to : su
teu rgia y su d em iu rg ia (1 9 4 1 ); E stú d io s so b r e cl a m o r ( 1 9 4 1 ) , D el Im p é ­
rio ro m a n o ( 1 9 4 1 ) , e os prólogos a três livros: “H istoria de la F iloso­
fia", de B reh icr ( 1 9 4 2 ) ; “Veinte anos de caza m ayor”, do C onde de Ye-
bes ( 1 9 4 2 ) , e “Aventuras dei C apitán Alonso de C on treras” (1 9 4 3 ).
P osteriorm ente, P a p eies so b re V elá z q u ez y G o y a ( 1 9 5 0 ) ; prólogo a El
c o lla r d e la P a lo m a , de Ibn liazm ( 1 9 5 2 ) ; S tü cke au s e in e r “G eb u rt d e r
P h ilo s o p h ie ” (1 9 5 3 ) ; E u ro p ä isch e K u ltu r u nd eu r o p ä is c h e V ö lk er (1 9 5 4 );
V eláziju ez ( 1 9 5 4 ). A pu blicação de seus escritos inéditos com eçou em
1957 com seu livro sociológico El h o m b r e y la g en te, iQ u é es filo s o fia ?
(curso de 1 9 2 9 ), o im portantíssim o e extenso livro L a id e a d e p rin cip io
en L eib n iz y la ev olu ción de la t e o r ia d ed u ctiv a (provavelm ente o mais
im portante de toda a sua ob ra), I d e a d ei tea tro , M e d ita ció n d ei p u eb lo
jo v e n , além de um "Prólogo para alem anes” escrito em 1 9 3 4 e pu bli­
cado nesta língua, seu prim eiro cu rso do Instituto de H um anidades,
U na in terp reta ció n d e la H istoria u n iv er sa l, M ed itación d e E u r o p a , O rigen
y E pílogo d e la F ilo s o fia , V iv es-G o eth e e P a s a d o y p o r v e n ir p a r a el h o m b r e
a ctu al.
São de en orm e im portância seus cursos u niversitários, especial­
m ente os de 1 9 2 9 a 1 9 3 6 e os recen tes do Instituto de H um anidades,
indispensáveis para con h ecer com precisão o p ensam ento filosófico
orteguiano, e à luz dos quais - alguns já publicados nos ú ltim os anos
- se revela a con exão sistem ática e o alcance m etafísico íntegro de suas
outras obras im pressas. Nesses cu rsos tratou, sobretudo, do lem a do
idealism o e de sua crítica, da estru tura da vida h istórica e social e da
m etatísica da razão vital, prim eira versão do sistem a filosófico de O r-
tega, cuja exposição com pleta nunca foi publicada. Até que os escritos
póstum os de O rtega sejam com p letam en te utilizados, será im possível
escrever um livro suficienie sobre a filosofia de O rtega; e isso con d icio­

496
O r t e g a e s u a f i l o s o f ia d a r a z ã o v it a l

na a presente exposição que - apesar de m eu con h ecim en to dos cur-


'.ns e de parte da obra inédita de Ortega - tem caráter fragmentário e
provisório e só se destina a facilitar a introdução a seu esludo direto2.

2. A g ê n e s e da filo so fia o r teg u ia n a

a) A crítica do idealism o

R e a lis m o e id e a lism o • A prim eira form ação de Ortega foi neo-


kantiana; seus anos de M arburgo d eram -lhe um con h ecim en to m in u ­
cioso de Kant, um a d isciplina intelectu al rigorosa, a visão interna cle
uma últim a form a de “esco lasticism o ” e uma im ersão na atitude idea­
lista. M uito rapidam ente, con tu d o, com o se pode ver em seus p rim ei­
ros escritos, reagiu de m aneira pessoal; pouco tem po depois, Ortega
c hegava a posições próprias, determ inadas, com o verem os, pela su ­
peração de todo su bjetivism o e idealism o - sem recair na velha tese
realista pela exigência de sistem a e pelo predom ínio absoluto da
m etafísica. Essas idéias, n u m processo de m aturação ininterrupta, le ­
varam -no a seu sistem a de m e ta fís ic a seg u n d o a r a z ã o vital e, secu n d a­
riam ente, significaram um a crítica decisiva do idealism o.
O realism o, m ais que um a tese, é um a atitude. Nela se supõe qu
a verdadeira realidade são as coisas; e o ser real quer dizer ser por si,
indep endente de m im . Mas essa posição aparentem ente tão óbvia,
que d om inou o p ensam ento filosófico durante vi.nte e dois sécu los,
não está livre de crítica. De D escartes a H usserl, a filosofia defendeu
um a nova tese, que corrige e retifica a realista: é o que se cham a de
idealism o.

2. É p o ssív el e n co n tra r p re cisõ es e d esen v olv im en to s so b re m uitas das q u estõ e


c o n c re ta s em m eu e stu d o c ita d o na n o ta a n te rio r L a e s c u d a d e M ad rid e em O rteg a y
tres a n típ o d a s ( 1 9 5 0 ) ; v er - so b retu d o para a p rim eira etapa de seu p en sam en to - m eu
co m e n tá rio às M ed itacion es d ei Q u ijote (B ib lio teca de C u ltu ra B ásica da U niversid ad e de
P u erto R ico , 1 9 5 7 ). E m b ora não se trate de um a exp o sição da filosofia o rteg u ian a, re ­
m eto o le ito r tam b ém a m in h a In trodu cción a la filo so fia , q u e tem suas raizes m ais im e ­
d iatas n e la e em qu e faço um u so sistem ático do m éto d o da razão vital. A fora isso ,
p o d e-se e n co n tra r u m estud o p ro fu n d o d essa filosofia em m eu livro O rtega, c u jo vol. 1,
C ircu n stan cia y v o c a c ió n , foi p u b licad o em 1 9 6 0

497
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Descartes d escobre que as coisas não são seguras; que eu posso


estar num erro: que existem o sonh o e a alucinação, em que tom o por
verdadeiras realidades que não o são. O único certo e indubitável é o
eu . Por outro lado, nada sei do m undo das coisas exceto na medida
em que esteja presente, na m edida em que seja testem u n h a delas. Sei
da casa porque estou nela; se for em bora, continuará existindo? A ri­
gor, não posso sabê-lo. Só sei que existe enquanto estou nela, enquan­
to está com ig o. Portanto, as coisas sozinhas, independentes de mim,
me são alheias e d esconhecidas; nada sei delas, nem sequ er se exis­
tem. As coisas, portanto, são p a r a m im ou em m im , são id é ia s m inhas.
A mesa ou a parede são a lg o q u e eu p erc eb o . A realidade radical e pri­
mária é o eu; as coisas têm um ser derivado e dependente, fundado no
do eu. A su bstância fundam ental é o eu, Descartes diz que posso exis-
1ir sem m undo, sem coisas. Esta é a tese idealista, que culm in ou , em
sua forma mais perfeita, no idealism o da consciência pura de Husserl,
estudado antes. A isso Ortega vai se opor rigorosamente.
O eu e as c o is a s • O idealism o tem toda razão ao afirm ar qu
não posso saber das coisas a não ser na medida em que esteja presen­
te a elas. As coisas - pelo m enos enquanto as sei e tenha sentido falar
de sua realidade - não podem ser independentes de m im . Mas não
tem razão ao afirm ar a independência do sujeito. Não posso falar de
coisas sem eu; m as tam pouco de um eu sem coisas. N unca estou sozi­
nh o, e sim sem pre com as coisas, fazendo algo com elas; sou insepa­
rável das coisas, e se estas necessitam de m im , eu, por m inha vez, neces­
sito delas para ser. De m odo igualmente originário e prim itivo, en con -
tro-m e com m eu eu e com as coisas. A verdadeira realidade primária
- a rea lid a d e ra d ic a l - é a do eu com as coisas. Eu sou eu e m in h a cir­
cu n stân cia - já escrevia Ortega em seu primeiro livro, em 1 9 1 4 . E não
se trata de dois elem entos - eu e coisas - separáveis, pelo m enos em
principio, que se encontrem ju n to s por acaso, mas sim de que a reali­
dade radical é esse fazer do eu com as coisas, que cham am os vida. O
que o hom em faz com as coisas é viver. Esse fazer é a realidade com
que originariam ente nos encontram os, que agora não é nenhum a c o i­
s a - m aterial ou espiritual, porque tam bém o eg o cartesiano é um a res ,
ainda que c o g ita m mas atividade, algo que propriam ente não é, mas

498
O r t e g a e s u a f i l o s o f ia d a r a z à o v it a l

que se f a z . A r e a lid a d e ra d ica l é n o ssa vida. E a vida é o q u e ja z e m o s e o


qu e nos a c o n tec e. V iver é t r a ta r c o m o m undo, d irig ir-se a ele, ag ir nele,
iH upar-se d ele. Portanto, não há prioridade das coisas, coinu acredita­
va o realism o, nem tam pouco prioridade do eu sobre elas, com o opi­
nava o idealism o. A realidade prim ária e radical, da qual o eu e as co i­
sas são apenas m om entos abstratos, é o dinâm ico fazer que cham am os
nossci vida.
A c o n sc iê n c ia • Mas tem os de exam inar o m om ento culm inante
do idealism o, sua forma m ais depurada: a fenom enologia de Husserl.
I sta não é um idealism o subjetivo; não fala de idéias ou vivências de
um eu em pírico, m as das vivências da consciência pura. Para escapar
da m etafísica - fazendo m etafísica ao m esm o tem po - Husserl se en ­
cerra na co n sciên cia.
A contece, contudo, que o pensam ento - isso que se cham a co n s­
ciência - con siste em p r o p o r algo. Pensar é propor algo com o verda­
deiro, com o existente. Pois bem , a fenom enologia diz que sobre esse
ato propositivo vem um segundo ato que consiste em praticar a e p o -
k h é, em invalidar o prim eiro e colocá-lo entre parênteses. Mas isso
não é tão claro nem tão fácil.
Q uando vivo o ato, não há consciência. Ante m im nada mais há
senão o visto ou o p e n s a d o ; não m e encontro nem com o ver nem com
o p e n s a r , com o que se cham a co n sciên cia. O que há é: eu com a coisa.
Posso dizer que há con sciência quando me dou con ta que vi uma co i­
sa um m om en to atrás, m as não a vejo. Q uando tenho con sciência de
m inhas vivências, não as vivo, faço delas objeto de reflexão. Pratico a
“ab sten ção” sobre um objeto que é a le m b r a n ç a de m inha visão ante­
rior. E o que faço agora é viver o u tro ato: o de colocar entre parênteses
meu ato anterior. E neste segundo ato tam pouco pratico a “absten­
ção”, vivo-o; nele tam pouco há consciência, e é tam bém p rop ositiv o.
Portanto, só posso praticar a redução fenom enológica sobre lem bran­
ças de atos, não sobre os atos vividos. A con sciência pura, com todas
as suas vivências reduzidas, longe de ser a realidade, é sim plesm ente
o resultado de um a operação m ental que faço, ou seja, o contrário:
uma con stru ção intelectual, uma hipótese. E a redução fenom enológi­
ca, portanto, é im possível.

499
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

A to quer dizer a tu a lid a d e , ser agora; é a pura presencialidade. E


entre o ato e a redução fenom enológica desse ato se interpõe o tem po.
O tem po, que é justam ente a form a da vida humana.
Portanto, não me encontro com o eu puro, nem com a con sciên ­
cia, nem com as vivências reduzidas; tudo isso é o resultado de uma
m anipulação m ental m inha com atos m eus anteriores: ju stam en te o
contrário do que é a rea lid a d e. Da essência dos atos é próprio serem
sim plesm ente vividos, e não se poder exercer a reflexão sobre eles a
não ser desde outro ato; portanto, quando não são mais presentes e
vividos, salvo na lem brança. A fenom enologia traz em si uma inter­
pretação radicalm ente falsa da realidade primária.
A verdade é que eu vivo atos; e estes são in ten cion ais: vejo alg o,
penso a lg o , quero alg o, em sum a, me encontro com algo. E com esse
algo me en con tro de um m odo real e efetivo, sem “abstenção" nenhu­
ma: n a vida. A fenom enologia, quando a pensam os a fundo, nos des­
cobre sua últim a raiz errônea e n os deixa fora dela, além dela: instala­
dos, não na con sciên cia, porque a tíg o r e la n ão ex iste, m as na realida­
de radical que é a vida.
Esta é a crítica orteguiana do idealismo. Recolhe o que a tese idea­
lista tinha de ju stificad o , ao afirm ar a necessidade do eu com o ingre­
diente da realidade, mas corrige seu excesso ao tom ar esse eu com o a
realidade prim ária. Nem as coisas sozinhas, nem o eu sozinho, mas o
fazer do eu com as coisas, ou seja, a vida.

b) As etapas da descoberta

Interessa recolh er m uito brevem ente os m om entos pelos quais


passou o pensam ento de Ortega até chegar à forma m adura de sua fi­
losofia; isso ilum inará o sentido das fórm ulas em que se expressam as
teses fundam entais de sua m etafísica.
Eu e c irc u n s tâ n c ia • A prim eira m anifestação do ponto de vista
pessoal de O rtega se encontra em um ensaio publicado em 1 9 1 0 e in­
titulado A d án en e l P a ra íso (O .C ., I, pp. 4 6 9 -9 8 ). Ali se emprega pela
primeira vez o term o vida rigorosam ente, no sentido de vida hum ana,
de vida biográfica; em segundo lugar, insiste-se no que está em torno
do hom em , tudo o que o r o d e ia , não só o im ediato, m as tam bém o re-

500
O R T E G A E SUA F IL O SC F IA DA RAZÁO VITAL

moto; não só o físico, mas tam bém o histórico, o espiritual. O hom em ,


tliz O rtega, é o problema da vida, e entende por vida algo concreto,
incom parável, único: “a vida é o individual”. E define-a, com maior
rigor, com o co ex istên cia: “Vida é troca de substâncias; portanto, co m -
viver, c o e x istir“ (p. 4 8 8 ). “Adão no Paraíso - acrescenta. Quem é Adão?
Q ualquer um e ninguém particularm ente: a vida. O nde está o Paraí­
so? A paisagem do Norte ou do Meio-dia? Não importa: é o cenário u bí­
quo para a tragédia im ensa do viver” (p. 4 8 9 ). Adão no Paraíso signi-
lica: eu no m undo; e esse m undo não é propriam ente uma coisa ou
uma som a delas, mas um c e n á r io , porque a vida é tra g éd ia ou drama,
algo que o hom em faz e que acontece com ele com as coisas.
Em M ed itacion es d ei Q u ijote (1 9 1 4 ) aparece de forma con ceitu ai a
idéia que o título A d ã o no P a r a ís o expressa m etaforicam ente: eu sou eu
c m in h a circu n stân cia. A realidade circunstante “forma a outra metade
de m inha pessoa”. E “a reabsorção da circunstância é o destino co n ­
creto do h om em ”. Desse ponto de vista, Ortega faz uma interpretação
do que é um bosque, evitando tanto o pressuposto realista quanto o
idealista, ou seja, coloca em andam ento a com preensão de uma reali­
dade d e s d e a vida. E essa doutrina culm ina num a teoria da verdade
com o p a te n te a m e n to ou desvelam ento - a lé th e ia da cultura com o
certeza e da luz ou clarid ad e com o raiz da co n stitu ição do hom em
(O .C ., 1, pp. 3 2 2 -5 8 ).
P ersp e c tiv ism o • Na m esm a obra aparece tam bém a idéia de
que a perspectiva é um ingrediente constitutivo da realidade: “o ser
definitivo do m undo não é m atéria nem é alm a, não é coisa alguma
determ inada, mas uma perspectiva” (p. 3 2 1 ). Essa doutrina já se en ­
co n tra co n stitu íd a com o tal, m esm o com o n om e p e r s p e c tiv is m o -
que O rtega depois substituiu p or outros m enos intelectualistas em
1 9 1 6 (“Verdad y perspectiva”, El E sp ectad o r, I. - O.C., II, pp. 1 5 -2 0 ).
“O ponto de vista individual m e parece ser o único ponto de vista
desde o qual se possa olhar o m undo em sua verdade.” “A realidade,
precisam ente por sê-lo e achar-se fora de nossas m entes individuais,
só pode chegar a estas m ultiplicando-se em m il caras ou faces.” A rea­
lidade não pode ser olhar a não ser do ponto de vista que cada qual
inevitavelm ente ocupa no universo. Aquela e este são correlativos, e

501
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

assim com o não se pode inveniar a realidade, tam pouco se pode fin­
gir o ponto de vista.” “Cada hom em lem uma m issão de verdade.
O nde está m inha pupila não está outra: o que da realidade m inha pu­
pila vê não o vê a outra. Som os insubstituíveis, som os necessários.” E
em 1 9 2 3 agrega, de forma ainda m ais precisa e formal: “A p ersp ectiv a
é um d os co m p o n en tes d a rea lid a d e. Longe de ser sua deform ação, é sua
organização. Um a realidade que vista de qualquer ponto resultasse
sempre idêntica é um conceito absurdo.” “Essa m aneira de pensar leva
a uma reform a radical da filosofia e, o que mais im porta, de nossa sen­
sação có sm ica.” “C a d a v ida é um p o n to d e vista so b re o u niverso." (El
tem a d e n u estro tiem p o. - O .C ., 111, pp. 1 9 9 -2 0 0 ).
R azão e vid a • Nas m esm as M ed ita cio n es d ei Q u ijote - a data de
1 9 1 4 é decisiva para o pensam ento de Ortega - inaugura-se um ter­
ceiro lem a, intim am ente vinculado aos anteriores e que interferirá em
am bos ao atingir sua plenitude: o da relação entre a razão e a vida. “A
razão não pode, não tem de aspirar a substituir a vida. A própria opo­
sição entre razão e vida, tão usada h oje pelos que não querem traba­
lhar, já é suspeita. C om o se a razão não fosse um a função vital e es­
pontânea da m esm a linhagem que o ver ou o tocar!” “Ao destronar a
razão, cu id em o s de co lo cá -la em seu lugar” (O .C ., pp. 3 5 3 -4 ) . De
form a m uito mais precisa e rigorosa essa idéia reaparece em El tem a
d e n u estro tiem p o , convertida em doutrina da r a z ã o vital: “A r a z ã o é
tã o -so m e n te u m a f o r m a e u m a fu n ç ã o d a vida." “A r a z ã o p u r a tem d e c e ­
d e r seu im p é r io à r a z ã o vital" (O .C ., III, p. 178). E depois: “A r a z ã o
p u r a tem d e s e r su bstitu íd a p o r u m a r a z ã o vital, em q u e a q u e la se lo calize
e a d q u ir a m o b ilid a d e e f o r ç a d e tra n sfo rm a ç ã o ." A filosofia precisa des­
terrar seu caráter u tópico, “e v ita n d o q u e o q u e é h o r iz o n te fle x ív e l e d ila-
táv el se im o b iliz e em m u n d o ”. “Pois bem : a redução ou conversão do
m undo em horizonte não retira nada de realidade daquele; sim ples­
mente o refere ao sujeito vivente, cujo m undo é, dota-o de uma dim en­
são vital” (pp. 2 0 1 -2 ). O tem a de n osso tem po é, segundo O rtega, a
conversão da razão pura em razão vital: sua filosofia, desde então,
é a realização sistem ática dessa tarefa.

502
O r t e g a e s u a f i l o s o f ia d a r a z á o v it a l

3 . A razão vital

A realid ad e rad ical • O rtega diz várias vezes que a realidade ra­
dical é nossa vida. Mas é preciso entender rigorosam ente essa expres­
são. R a d ica l não quer dizer “ú nica”, nem “a mais im portante”; quer di-
::t:r sim plesm ente o que significa: realidade em que se ra d ic a m ou ar­
raigam todas as demais. A realidade das coisas ou a do eu se dá n a
vida, co m o um m om ento dela. “A vida hum ana - escreve Ortega (H is­
toria c o m o sistem a. O. C ., VI, p. 13) - é uma realidade estranha da qual
a prim eira coisa que convém dizer é que é a realidade radical, no sen-
lido de que a ela tem os de referir todas as dem ais, já que as demais
realidades, efetivas ou supostas, têm de um m odo ou outro que apa­
recer n ela.” A realidade com o tal - conform e escrevi em outro lugar3 - ,
a realidade enquanto realidade, se constitui em m in h a vida; s er real
significa, precisam ente, radicar em m inha vida, e a esta tem de se re-
lerir toda realidade, em bora o q u e é real possa transcender, de qual­
quer m odo, de m inha vida. Em outras palavras, m inha vida é o pres­
suposto da noção e o próprio sentido da realidade, e esta só se torna
inteligível a partir dela: isso quer dizer que só dentro de m inha vida
se pode com preender em sua radicalidade, em seu sentido últim o, o
term o real. Mas não esqueçam os que quando falam os de alg o real e
derivam os seu m om ento de “realidade” de m inha vida, perm anece a
questão da relação com ela desse “algo”; dito de outro m odo, dizer
que eu sou um ingrediente da realidade não significa de m odo n e­
nhum que eu seja parte ou com ponente das coisas ou entes reais, mas
que em seu “tê-los para m im ”, em seu “radicar em m inha vida” se
funda o caráter efetivo de sua “realidade”, entendida com o dim ensão
ou caráter disso que é real. M esm o no caso de o q u e é real ser anterior,
su perior e transcendente a m inha vida, independente dela e até o ri­
gem e fundam ento dela m esm a - com o no caso de D eus sua rea li­
d a d e co m o tal - se quiserm os dar algum sentido efetivo a esse term o e
não reduzi-lo a um nom e vão ou a um equívoco - é r a d ic a d a na reali­

3. In troducción a ia filo s o fia , V II, 6 6 . Cf. tam bém X I, 8 6 .

503
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

dade radical cle minha vida, à qual fica “referida” na m edida em que é
“encontrad a” nela.
R azão v ital e razão h is tó r ic a • Durante sécu los, desde a Grécia,
a razão foi entendida com o algo que capta o imutável, a essência “eter­
na” das coisas. Procurou-se consid erar as coisas su b s p e c ie aetern itatis,
à parte do tem po. Essa razão culm ina na razão m atem ática dos racio-
nalistas do século XVII, que produz as ciências físicas, e na “razão pura”
de Kant. Mas essa razão m atem ática, que tão bem serve para conhecer
a natureza, ou seja, as coisas que têm um ser fixo, um a realidade já fei­
ta, não funciona tanto nos assuntos hum anos. As ciências do humano
sociologia, política, história - revelam uma estranha im perfeição em
com paração com a maravilha das ciências da natureza e suas técnicas
correspondentes. A razão m atem ática não é capaz de pensar a realida­
de cam biante e tem p oral da vida hum ana. Aqui não podem os pensar
sub sp ec ie a e te r n i, mas sim no tem po.
Essa evidência, que foi se im pondo em m aior ou m enor medida
ao pensam ento filosófico desde o século XIX, foi a fonte dos irraciona-
lismos que irromperam na filosofia durante os últim os cem anos. Mas
Ortega, nada “racionalista”, se opõe a todo irracionalism o. “Para mim
- escreveu ele - , razão e teoria são sinônim os... M inha ideologia não
vai contra a razão, já que não adm ite outro m odo cle conhecim ento
teorético senão ela; vai apenas contra o racionalism o” (Ni vitalism o r.i
ra cio n a lism o . - O .C ., III, p. 2 3 7 ). O significado m ais au têntico e pri­
mário da razão é o de “dar razão de algo”; pois bem , o racionalism o
não se dá conta da irracionalidade dos materiais que a razão m aneja, e
crê que as coisas se com portam com o nossas idéias. Esse erro mutila
essencialm ente a razão e a reduz a algo parcial e secundário. “Todas as
definições da razão, que faziam con sistir o essencial desta em certos
m odos particulares cle operar com o intelecto, além de serem estrei­
tas, a esterilizaram , am putando ou em botando sua dim ensão decisiva
Para mim é razão, no verdadeiro e rigoroso sentido, toda ação intelec­
tual que nos põe em contato com a realidade, por m eio da qual topa­
mos com o transcendente” ( H isto ria c o m o sistem a. - O .C ., VI, p. 4 6 ).
E, com efeito, Ortega observa que a razão m atem ática, a razão
pura, nada mais é senão uma espécie ou forma particular da razão. En-

504
O R T E G A E SUA F1LO SO H A DA RAZÃO VITAL

tendê-la com o a razão é tom ar a parte pelo todo: uma falsidade. Ju n -


lo da razão matemática e “eterna”, e acima desta, está a r a z ã o vi tal. Esta
razão não é m enos razão que a outra, m uito pelo contrário. Ortega,
com o vim os, é qualquer coisa m enos um “vitalista” propenso ao irra-
cionalism o. Trata-se de um a razão rigorosa, capaz de apreender a rea­
lidade tem poral da vida. A razão vital é ratío, lógcs, rigoroso conceito.
Em que consiste propriam ente?
A razão vital “não se distingue do viver”; a própria vida é a razão
vital, porque “viver é não ter outro rem édio senão raciocinar ante a
inexorável circunstância” (En torn o a C alileo. - O.C., V, p. 67). Que sig­
nifica isso? Viver já é en ten d er; a form a prim ária e radical de inte-
lecção é o fazer vital hum ano. E ntender significa referir algo à totali­
dade de m inha vida em andam ento, ou seja, de m inha vida fazendo-
se, v iv en d o. É a própria vida que, ao pôr uma coisa em sua perspecti­
va, ao inseri-la em seu con texto e fa z ê - la fu n c io n a r nele, a torna in teli­
gível. A v id a é, p ortan to, o p r ó p r io ó r g ã o d a co m p reen sã o . Por isso se
pode dizer que a r a z ã o é a v id a h u m an a. Um a realidade hum ana só se
torna inteligível desde a vida, referida a essa totalidade em que está
radicada. Só quando a p r ó p r ia v id a fu n c io n a co m o r a z ã o conseguim os
entender algo hum ano. É isso, em sum a, que quer dizer r a z ã o vital.
Mas o horizonte da vida hum ana é h istóricc; o hom em está defi­
nido pelo nível histórico em que lhe coube viver; o que o hom em foi
é um com ponente essencial do que é; é hoje o que é ju stam ente por
ter sido antes outras coisas; o âm bito da vida hum ana inclui a histó-
r.a. A vida que funciona com o ra tio é em sua substância m esm a histó­
rica, e a história funciona em todo ato de m telecção real. A razão vital
é conslitutivam ente r a z ã o histórica'1.
“Trata-se - escreve O rtega - de encontrar na própria história sua
razão original e autóctone. Por isso deve-se entend er em todo o seu
rigor a expressão ‘razão h istórica’. Não uma razão extra-histórica que
parece se cum prir na história, mas literalm ente o q u e ac o n tec eu com o

4. Ver um a investigação m in u cio sa do problem a da razão no cap. V de m inha In-


troducción a la filosofia, so b reiu d o pp. 4 7 - 9 , de on d e foram .ornadas as fórm ulas a n te­
riores.

505
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

h om em , con stitu in do a su bstan tiv a r a z ã o , a revelação de uma realidade


transcendente às teorias do hom em e que é ele m esm o por trás de
suas teorias.” “A razão histórica não aceita nada com o mero fato, mas
fluidifica todo fato no/ieri de que provém : vê com o o fato se faz” (H is­
toria co m o sistem a. - O . C., VI, pp. 4 9 -5 0 ).
Isso supõe, é claro, a elaboração de uma série de categorias e for­
mas m entais que possam capturar a realidade histórica e vital; o hábi­
to da mente de pensar co isa s, substâncias em sentido “eleático”, com o
diz Ortega, torna sum am ente difícil chegar ao conceito suficiente do
que não é “coisa” mas fa z e r , vida tem poral. Ortega pede a superação
do substancialism o, do eleatism o em todas as suas form as, para ch e­
gar a pensar essa realidade que se faz a si mesma. “Para falar do ser-
hom em tem os de elaborar um con ceito não-eleático do ser, assim
com o se elaborou uma geom etria não-euclidiana. Chegou a hora de a
semente de H eráclito dar sua magna colh eita.” Com o o vital é sempre
singular e ú nico, determ inado por uma circunstância, os conceitos
que apreendam a vida têm de ser “ocasionais" - com o “eu ”, “tu”,
“isso”, aquilo", “aqui”, “agora” e, inclusive e sobretudo, “vida”, que é
sempre “a de cada qual”; ou seja, trata-se de conceitos que não signi­
ficam sempre o m esm o, mas cujo sentido depende, com todo rigor, da
circu n stân cia. A razão histórica e vital é, portanto, n a r r a tiv a ; mas su­
põe por sua vez uma a n a lític a ou teoria abstrata da vida hum ana, uni­
versal e válida para qualquer vida, que se enche de concretude cir­
cunstancial em cada caso.
A filo so fia • O hom em não consiste prim ariam ente em conhecer.
O conhecim ento é uma das coisas que o hom em faz; não se pode de­
finir o hom em - com o fazia o racionalism o - por sua dim ensão cog-
noscente. O conhecim ento se dá na vida e tem de ser derivado dela.
Não se pode partir do conhecim en to com o algo natural, é preciso ex­
plicar p o r q u e e p a r a qu e o hom em conhece. No hom em não há nada
hum ano que seja n atu ra l, tudo nele tem de ser derivado de sua vida.
Essa vida é algo que tem os de fazer. É, portanto, problem a, inse­
gurança, n a u frá g io , diz Ortega, com expressiva m etáfora. Nessa inse­
gurança, o hom em busca uma certeza; precisa s a b e r , no sentido pri­
m ário de s a b e r a q u e se ater. A vida se apóia sempre num sistem a de

506
O r t e g a e s u a f i l o s o f ia d a r a z à o v it a l

i ivnças em que “se está” e das quais é bem possível que nem sequer se
it-nha con sciência; quando estas falham , o hom em tem de fazer algo
para saber a que se ater, e isso que o hom em faz, s e ja o qu e f o r , é cha­
mado p en sa m en to . Então o hom em chega a ter id éia s sobre as coisas.
1’ois bem , nem todo pensam ento é co n h ecim en to em sentido estrito,
que consiste em averiguar o q u e as co isa s são, o que supõe a cren ça
p rév ia de que as coisas têm um ser e que este é cognoscível para o
homem (ver A pu n tes so b re el p e n s a m ie n to - um breve estudo decisivo,
que contém em germe uma transform ação da filosofia. - O .C ., V, pp.
5 1 3 -4 2 ).
O conhecim ento é, portanto, uma das form as essenciais de su ­
perar a incerteza e nos leva a possuir não as coisas - estas já as tenho
perante m im e por isso são questão para mim - , mas seu ser. O ser é
algo que eu f a ç o ; mas faço, entenda-se bem , com a s c o is a s -, é uma inter­
pretação cfa rea lid a d e, meu plano de atença a respeito delas. Esse ser -
c não as coisas - é o que passa para a minha m ente no conhecim ento:
o ser da m ontanha, e não a m ontanha em si m esm a. Portanto, o co ­
nhecim ento é uma m anipulação, ou m elhor, um a “m entefatura” da
realidade, que a deforma ou transform a; mas isso não é uma deficiên­
cia do conhecim en to, e sim sua essência, e é nisso precisam ente que
consiste seu interesse.
O hom em não está nunca em puro saber, mas tam pouco no puro
não saber. Seu estado é o de ignorância ou verdade insuficiente. O h o­
mem possui muitas certezas, destituídas no entanto de um fundam en­
to últim o e em colisão umas com as outras. Necessita de uma certeza
radical, um a instância suprema que dirima os antagonism os; esta cer­
teza é a filosofia. A filosofia é, portanto, a verdade radical, que não su­
ponha outras instâncias ou verdades; tem, além disso, de ser a instân­
cia superior para todas as outras verdades particulares. Tem de ser,
portanto, um a certeza a u tô n o m a e u n iv ersal , diferentem ente das ciên ­
cias, que são parciais e dependentes de suposições prévias. Mas a filo­
sofia é, ademais, p ro v a de si m es m a , é responsável e f e i t a p e lo h o m em , o
que a distingue da religião, que se funda na revelação e vem, portanto,
de Deus, e da poesia ou da experiência de vida, que são “irresponsá­
veis” e não consistem em prova, em bora tenham universalidade. A fi­

507
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

losofia é, portanto, o fazer do hom em que se encontra perdido, para al­


cançar um a certeza radical que lhe permita saber a que se ater em sua
vida. Esta é a razão de por que e para que o homem filosofa.

4. A vida hum ana

Eu e o m und o • A realidade radical, aquela com que me encon­


tro independentem ente de qualquer interpretação ou teoria, é minha
vicia. E a vida é o que fazemos e o que acontece conosco. Em outras
palavras, en con tro-m e com as coisas, num a circunstância determ ina­
da, tendo de fazer algo com elas para viver. E ncon tro-m e, pois, na
vida, que é anterior às coisas e a m im ; a vida me é dada, mas não me
é dada feita, e sim com o afazer. A vida, com efeito, diz Ortega, dá mui­
to que fazer.
A fórm ula mais sintética da filosofia de Ortega é a frase das M e-
clitaciones d ei Q u ijote, já citada: Eu sou eu e m in h a circu n stân cia. As coi­
sas aparecem interpretadas com o circu m sta n tia , com o o que está ao
red o r do eu, referidas, portanto, a ele. Trata-se, portanto, de um m un­
d o , que não é a som a das coisas, mas o h o riz o n te de totalidade sobre as
coisas e distinto delas; as coisas estão - com o eu - no m u n d o ; mas esse
m undo é meu m undo, ou seja, m inha circunstância.
Viver é estar no m undo, agir nele, estar fazendo algo com as coi­
sas. C ircunstância é, portanto, tu do o q u e n ão sou eu, tudo aquilo com
que me encon tro, in clu sive m eu c o r p o e m in ha psiqu e. Posso estar des­
contente com m inha aparência corporal ou igualm ente com meu hu­
mor, m inha inteligência ou m inha m em ória; portanto, são coisas re­
cebidas, com as quais me encontro assim com o me encontro com a
parede em frente; essas realidades são as mais próxim as de m im , mas
não são eu. A circunstância, que por um lado chega até meu corpo e
m inha psique, por outro com preende tam bém toda a sociedade, isto
é, os outros hom ens, os usos sociais, todo o repertório de crenças,
idéias e opiniões que encontro em m eu tem po; é, portanto, também a
circunstância histórica. E corno não tenho realidade pura e simples, e
m inha vida se faz essencialm ente com a circunstância, sou inseparável
dela, que com igo integra m inha vida. Por isso Ortega diz: eu sou eu e
m inha circunstância, e se não a salvo, não me salvo.

508
O r t e g a e s u a f i l o s o f i a d a r a z à o v it a l

I'sta profunda análise rem ete a um núcleo de im ponanies pro-


Nrmas: os que se referem ao quern que é cada qual, ao eu que faz sua
viil.i com sua circunstância ou m un d o; em sum a, à questão funda-
mriiial da pessoa.
O p ro je lo vital • Com o a vicia não está feita, mas tem de ser fei-
i.i. ii hom em tem de determ inar previam ente o q u e vai ser. A vida -
ill.’ I )nega - é faina poética, porque o hom em tem de inventar o que
v.ii ser. Eu sou um programa vital, um projeto ou esquem a que pre-
11 ndo realizar e que tive de im aginar em vista das circunstâncias. En-
i muro ante m im um repertório ou teclado de possibilidades e urgên-
i i.is, e só posso viver esc o lh en d o entre elas; essas possibilidades são fi-
imas, mas são sem pre várias, e aparecem com o tais quando projeto
meu esquem a ou programa vital sobre as puras facilidades e dificul-
11.ic1cs que com põem minha circunstância. Por isso o hom em n ão p o d e
vivit sem um projeto vital, original ou com um , valioso ou torpe: tem
ili- ',er bom ou mau, rom ancista de sua própria vida, tem de imaginar
mi inventar a personagem que pretende ser; e, por conseguinte, a
vida hum ana é antes de tudo p reten sã o .
“A vida hum ana - escreve Ortega - não é um a entidade que
muda acidentalm ente, mas, ao contrário, nela a ‘su bstância’ é precisa­
mente m udança, o que quer dizer que não pode ser pensada eleatica-
iiii-nte com o substância. C om o a vida é um ‘dram a’ que acontece e o
.ujeito’ a quem ela acontece não é uma ‘coisa’ à parte e prévia a seu
drama, mas função dele, quer dizer que a ‘substância’ seria seu argu­
mento. Mas se esta varia, quer dizer que a variação é ‘substancial’.”
As formas m ais díspares do ser passam pelo hom em . Para desespero
ilos intelectualístas, o ser é, no hom em , mero p a s s a r e p a s sa r-se com
rir". “O hom em ‘vai sendo’ e ‘d es-sen d o’ - vivendo. Vai acum ulando
m t - o passado: vai se fazendo u m ser na série dialética de suas expe-
i lencias.” “O hom em é o que se passou com ele, o que fez... Esse p e­
regrino do ser, esse substancial em igrante, é o h om em .” “Em sum a, o
h om em n ão tem n atu reza, tem ... h istória. Ou, o que dá na m esm a: o que
.1 natureza é para as coisas, a história - com o res g e s ta e - é para o ho­
m em ” ( H isto ria c o m o sistem a. - O .C ., VI, pp. 3 5 -4 1 ). Por outro lado,
contudo: “O ser do hom em é a um só tem po natural e exlranatural,

509
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

uma espécie de centauro on toló gico” (O .C ., V, p. 3 3 4 ); e tam bém : “A


realidade hum ana tem uma inexorável estrutura, nem m ais nem m e­
nos que a m atéria cósm ica” (O .C ., VI, p. 2 4 2 ).
A m oral • N em toda a tiv id a d e é um fazer. Há atividades, in clu si­
ve psíquicas, que são puros m ecanism os, e a rigor eu não as faço, mas
se fazem ou produzem em m im ; é o caso do imaginar, do recordar, do
pensar; o m áxim o que faço é m e p ô r a pensar ou imaginar, provocar
essa atividade, pelo resultado da qual não posso responder. Posso m e
p ô r a resolver um problem a ou escrever um soneto: não está nas m i­
nhas mãos achar a solução ou en con trar as consoantes e as metáforas
oportunas. F a z e r é a atividade que eu executo, p o r a lg o e p a r a a lg o , e
da qual sou, portanto, respon sável.
Pois bem , m inha vida é um fazer, isto é, sou eu que tenho de
fazê-la, tenho de decidir a cada instante o que vou fazer - e portanto
ser - no instante seguinte; tenho de escolher entre as possibilidades
com que me en con tro, e ninguém pode me exim ir dessa escolha e de­
cisão. Isso faz com que o problem a da lib erd a d e se coloque na filoso­
fia orteguiana de m odo com pletam ente novo. A liberdade consiste
nessa forçosa escolha entre possibilidades. “Ser livre quer dizer care­
cer de identidade constitutiva, não estar adscrito a um ser determ ina­
do, poder ser outro do que se era e não poder se instalar de um a vez
por todas em n en h um ser d eterm inad o.” O hom em é, portanto, co n s­
titutiva e necessariam ente livre - o que não quer dizer que seja total­
mente livre e para sem pre. Com o a vida não está feita, mas tem de ser
feita, não pode deixar de ser livre; o hom em é fo r ç o s a m e n t e livre: não
tem liberdade para renunciar a ela.
C om o tenho de decidir o que vou fazer a cada instante, preciso
ju stifica r p a r a m im m es m o por que faço um a coisa e não outra; a vida é
re s p o n s a b ilid a d e , é, em sua últim a substân cia, m oral. C om o toda reali­
dade hum ana, a vida admite g ra u s d o ser. As coisas são o que são: a pe­
dra é pedra, e o cavalo, cavalo; em contrapartida, faz todo sentido di­
zer de uma m ulher que é m uito m u lh e r , ou de um hom em que é m uito
hom em (ou p o u c o hom em ). C om o a vida não tem um ser já dado des­
de o princípio, pode se realizar em m odos p len os ou d eficien tes; pode
s e r fa ls e a d a . Q uand o a vida se faz desde o próprio eu, quando o ho-

510
O r t e g a e s u a f i l o s o f ia d a r a z ã o v it a l

m nn é fiel a essa voz que o cham a a ser uma cleierm inada coisa e que
pnr isso recebe o nom e de v o c a ç ã o , é vida autêntica', quando o homem
■ic abandona ao tópico c recebido, quando é infiel a sua íntima e ori­
ginal vocação, falseia sua vida e torna-a in au tên tica. A moralidade
i onsisie na autenticidade, em levar a seu m áxim o de realidade a vida;
viver é viver mais. A moral consiste em que o hom em realize seu des­
uno pessoal e insubstituível.

5. A vida histórica e social

A h isto ric id a d e da vida h u m an a • O hom em se encontra vi-


vi-ndo num a determ inada altura dos tem pos: em certo nível histórico,
‘•aia vida está feita de uma substância peculiar, que é “seu tem po”. En­
quanto o tigre é sempre um “prim eiro tigre” que estréia o ser tigre, o
lmmem é h er d e ir o de um passado, de uma série de experiências hu­
manas pretéritas, que cond icionam seu ser e suas possibilidades. O
hom em f o i certas coisas concretas, e p o r isso não pode mais sê-las e
ir m de ser determ inadas outras. A vida individual já é histórica; a his-
loricidade pertence essencialm ente à vida de cada um de nós. Por
isso, “para com preender algo hum ano, pessoal ou coletivo, é preciso
contar um a história. Este hom em , esta nação faz tal coisa e é assim
p o r q u e antes fez tal outra e foi de tal outro m odo. A vida só se torna
um pouco transparente - diz O rtega - ante a r a z ã o h is tó r ic a ”. “O indi­
víduo hum ano não estréia a hum anidade. Desde o com eço encontra
cm sua circu n stância outros hom en s e a sociedade que entre eles se
produz. É por isso que sua hum anidade, a que nele com eça a se de­
senvolver, parte de outra que já se desenvolveu e chegou a sua culm i­
nação; em sum a, acum ula à sua hum anidade um m odo de ser hom em
já forjado, que ele não tem de inventar, mas sim plesm ente instalar-se
nele, partir dele para seu desenvolvim ento individual” ( H istoria co m o
sistem a - O . C., VI, pp. 4 0 -3 ).
As g e ra ç õ e s • A história tem uma estrutura precisa, que é a das
g e ra ç õ e s . Cada hom em encontra um m undo determ inado por um re­
pertório de crenças, idéias, usos e problem as. Essa form a da vida tem
certa estabilidade, dura certo tem po, que para Ortega são quinze anos.

511
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

“Uma geração é uma zona de quinze anos durante a qual vigorou uma
certa form a de vida. A geração seria, pois, a unidade concreta da au
têntica cronologia histórica, ou, dito de outra form a, a história cam i­
nha e procede por gerações. E ntend e-se agora em que consiste a ali
nidade verdadeira entre os h om en s de um a geração. A afinidade não
procede tanto deles com o do falo de se verem obrigados a viver num
m undo que tem uma forma determ inada e ú nica” (O .C ., VI, p. 3 7 1 ).
Cada geração está determ inada por uma data central e constitu í­
da por uma “zona de datas” de quinze anos - sete antes e sete depois
do decisivo. Uni hom em pertence, pois, a uma geração que é comum
a iodos os que nasceram deniro dessa zona de datas. Entre os co n tem ­
p o r â n e o s - os hom ens que vivem no m esm o tem po O rtega distin­
gue os c o e t â n e o s , que são tis que têm a mesma idade, ou seja, que per-
lencem à m esm a geração. As gerações c/erisívas são aquelas em que a
variação histórica é m uilo m aior que de ordinário, e determ inam a ar-
liculação das épocas históricas. (0 m é to d o d a s g e r a ç õ e s transform a-se,
nas m ãos de O rtega, num in stru m en to dc exem plar precisão para
co m p re en d era realidade histórica5.
O h om em e a g cn tc • Na área de nossa vida en con tram os o s
cial, os fatos sociais - os usos, o direito, o Estado. Esses fatos sociais
estão adscritos u nicam ente aos hom ens; nos dem ais en tes não en con ­
tram os nada que m ereça ser cham ad o de so c ia l, pois as cham adas “so­
ciedades an im ais” têm um sentid o tolalm enie diferente. O social é,
portanto, um falo da vida hum ana. Mas isso coloca um grave proble­
ma, porque a vida hum ana é sem pre m in h a , a de cada qual, a de cada
um de nós. É vida individual ou pessoal e con siste em que o eu se
encontra num a circu n stân cia ou m undo, sem ter a certeza de existir
no instante im ediatam ente p osterior e tendo sem pre qu e estar fazen­
do algo para garantir essa existência. Portanto, h u m an o é propria­
m ente o que eu m esm o faço, o pessoal, o que tem para m im um sen­
tido e q u e, por isso, en ten d o. A ação hum ana su p õe en tão um su-

5. Ver J. Marías: El método histórico de las generaciones (1 9 4 9 ) e o capítulo “Din


mica de las generaciones” em La estruetura social (1 9 5 5 ) [Obras, VI].

5 1 2
O r t e g a e s u a f i l o s o f ia d a r a z ã o v it a l

|( ito responsável, e a vida é, por essência, s o lid ã o . Em contrapartida,


I' MK'ial não surge em m inha solidão, m as na co n v iv ên cia com os ou-
n os hom ens. Não é, portanto, vida em seu sentido prim ário.
Q uem executa os atos sociais? C um prim entam os porque é o que
■.< laz; o guarda detém o passo do pedestre porque m a n d a r a m qu e o f i -
(■'isc. Q uem é o sujeito no social? Todos e ninguém determ inado; a co-
lu ividade, a sociedade, em sum a, a g e n t e .
As ações sociais são, portanto, hum anas, e não outra coisa; mas
n.io se originam no indivíduo, não são desejadas por ele e m uitas ve-
,r s nem sequ er entendidas: não com preend em os o sentido de apertar
i sacudir a m ão para cum prim entar, para citar um exem plo trivial e
imediato.
O in te rin d iv id u a l e o so cia l • Mas a sociologia sem pre introdu ­
zi u uma confusão que im pediu a visão clara de seus problem as. Cos-
ii im a-se con trap or tradicionalm ente o individual ao social ou co leti­
vo. O indivíduo solitário, por um lado; por outro, a pluralidade de
h om ens, a convivência interpretada com o coletividade ou sociedade.
( irtega estabelece uma distinção essencial, que abre cam inho para uma
nova sociologia. Dentro cla convivência existem duas form as m uito
distintas. Um a delas é a in terin d iv id u a l, a relação cle dois ou m ais in d i­
víduos c o m o tais: o amor, a am izade etc. são fatos interindividuais,
convivência de indivíduos pessoais enquanto pessoas; no interindivi­
dual não se sai da vida individual, da vida sen su stricto. A outra form a,
em contrapartida, é a propriam ente so cia l, é im pessoal, não é espontâ­
nea n em responsável. O cum prim entar, a parada im posta pelo guarda
de trânsito, a relação do carteiro com o destinatário de uma carta não
são atos originais e voluntários de um indivíduo com o tal, que este
d e s e je e en ten d a . O hom em é m ero execu tor da ação social, de m odo
m ecânico.
O s u so s • Cham a-se u so ao que pensam os, dizem os ou fazemos
porque se pensa, diz ou faz. O s fatos sociais são prim ariam ente os usos.
Esses usos, que não em ergem originariam ente do indivíduo, são im ­
postos pela sociedade, pela g en te. Se não os seguim os, o en torn o tom a
represálias contra nós (o desprezo so cia l para quem não cu m p rim en ­
ta, a coação ju ríd ica ou es ta ta l para quem atravessa a rua indevida­

513
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

m ente). O s usos são irr a c io n a is e im p esso a is. São “vida social ou co le­
tiva”, algo m uito estranho, que é vida, mas sem algum as de suas ca­
racterísticas essenciais, algo interm ed iário entre a natureza e o h o­
mem , uma quase natureza. Não existe uma a lm a coletiv a. “A sociedade,
a coletividade, é a grande desalm ada, já que é o hum ano naturalizado,
m ecanizado e com o que m ineralizado.” Por isso faz sentido cham á-la
de “m u n d o” social. (L em brem os o problem a suscitado em Hegel pelo
“espírito o b jetiv o ”.)
Esses usos - diz Ortega - perm item prever a conduta dos indiví­
duos que não con h ecem os, perm item a quase-convivência com o es­
tranho. Além disso, dão-nos a herança do passado e nos põem à altu­
ra dos tem pos; por isso pode haver progresso e história: porque há
sociedade. Por últim o, os usos, ao fornecerem resolvidas e au tom ati­
zadas m uitas porções da vida, franqueiam para o hom em o m ais pes­
soal e perm item “criar o novo, racional e m ais perfeito”.
S o c ie d a d e e d is so c ia ç ã o • É preciso, no entanto, observar algo
sum am ente grave: se os hom ens são sociáveis, são tam bém in sociá­
veis. O u seja, a sociedade não existe nunca de forma estável, apenas
com o esforço para superar a d issociação e a insociabilidade, ela é
sem pre problem ática. Daí seu caráter terrível, suas co n ex õ es com o
m ando, a política e o Estado, que “são sem pre, em últim a instância,
violência, m en or nos períodos m elhores, terrível nas crises so ciais”.
Além da vida individual é preciso com preender a vida coletiva,
porque o coletivo i algo que se p a s s a com o hom em em sua vida indi­
vidual. A filosofia da razão vital perm ite abordar, depois do estudo da
vida hum ana em sua originalidade, dois dos grandes tem as da “vida”
coletiva: a socied ad e e a história.

* H< *

Esse breve esboço da filosofia de O rtega, que está longe de in ­


cluir sua últim a palavra sobre os tem as m ais im portantes, pretende
apenas assinalar sua extrem a originalidade e im portância e m ostrar que
cam inhos percorre. Ela está totalm ente arraigada no problem a de nos­
so tem po. Passo a passo, num avanço ch eio de sentido, a filosofia foi

514
O r t e g a e s u a f i l o s o f i a d a r a z Ao v it a l

nos levando à descoberta da realidade que é a vida hum ana. O desli-


no da época era chegar aqui. E m 1 9 2 3 Ortega cham ou a tarefa de re­
duzir a razão pura à razão vital de o tem a d e n osso tem p o. Ele não la 1-
lou ao cham am ento inexorável deste. Suas obras póstum as vão m os­
trando a m aturidade cle seu p ensam ento, as últim as posições a que
chegou. El h o m b r e y la g en te significa a autêntica fundam entação da
sociologia, entendida com o teoria da vida social, radicada, portanto,
na teoria da vida hum ana individual, ou seja, na m etafísica. Seu cu r­
so de 1 9 2 9 , {Q u é es filo s o fia ?, é a prim eira exposição que Ortega fez
das linhas essenciais de seu sistem a filosófico. Seu livro sobre L a id e a
d e p r in cip io en L e ib n iz y la ev o lu ción d e la teo ria d ed u etiv a penetra, com
radicalidade talvez desconhecid a até agora, na significação do pensa­
m ento ocidental em sua história: os gregos - em particular Platão,
A ristóteles, Euclides, os céticos, os estóicos - , os escolásticos, os m o­
dernos - filósofos, m atem áticos e físicos; os “existencialistas” con tem ­
porâneos. A crítica de O rtega m ostra “o nível de nosso radicalism o” e
o sentido m ais profundo da filosofia da razão vital. A exposição deta­
lhada dessas obras - provavelm ente as mais im portantes de seu autor
- terá de ser feita levando em conta outros escritos ainda inéditos, com
os quais com põem a últim a fase desse pensam ento. (Sobre tudo isso,
remeto a m eu livro O rtega, cu jo prim eiro volum e já foi publicado.)

6. A Escola de M a d ri

A influência estritam ente filosófica de O rtega foi tão profunda


que não há atualm ente n en h u m a form a de pensam ento em língua es­
panhola que não lhe deva alguma porção essencial; mas essa influência
foi m ais direta e positiva em seus discípulos no sentido m ais rigoroso
da palavra, especialm ente os que se formaram à sua volta na U niversi­
dade de M adri, ou os que, na ausência desta circu n stância, receberam
cle O rtega certos princípios e m étod os de pensam ento. No com eço
deste cap ítu lo foram citados os n om es de alguns pensadores que in te­
gram a ch am ad a E scola de M adri; vam os agora ex am in ar brevem en ­
te a o b ra de quatro deles, qu e rep resen tam c o n trib u iç õ e s de p arti­
cu lar im p o rtân cia para a filosofia de nosso tem p o, e c u ja person ali-

5 1 5
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

clade, assim com o a de ouiros m em bros do grupo, se desenvolveu de


formas muito diversas e independentes, o que corresponde tam bém à
exigência de circunstancialidade e autenticidade que caracteriza to­
dos os m atizes do pensam ento orteguiano.
M o ren te • Manuel Garcia M orente ( 1 8 8 6 - 1 9 4 2 ) nasceu em Ar-
jo n illa (ja é n ), estudou em Granada, depois em Bayona e Paris, onde
foi discípulo de Boutroux e recebeu as influências de Rauh e, sobretu­
do, de Bergson, que então com eçava a dom inar o pensam ento francês;
licenciado em Filosofia em Paris, com pletou seus estudos na Alema­
nha (Berlim , M unique e M arburgo) com C ohen, N atorp e Cassirer, os
três filósofos neokantianos m ais im portantes. A partir de 1 9 1 2 foi ca­
tedrático de Ética na Universidacie de Madri, e de 1931 a 1 9 3 6 , deca­
no da Faculdade de Filosofia e Letras. Ordenado sacerdote em 1 9 4 0 ,
voltou a sua cátedra e m orreu em Madri dois anos depois.
M orente teve uma cultura am plíssim a e foi adm irável professor e
tradutor. Seu pensam ento seguiu diversas orientações ao longo de sua
vida; atraído pelo kaniism o de seus mestres alemães, ele o expôs adm i­
ravelm ente em seu livro Lm filo s o fia d e K a n t , que tom ava o filósofo ale­
m ão com o ponto de partida no passado para um a especulação atual;
depois se interessou por Bergson, a quem dedicou um breve livro, L a
filo so fia d e H en ri B erg so n ; discípulo e amigo de O rtega, a parte mais
m adura de seu pensam ento é uma exposição pessoal da filosofia orte-
guiana, com con tribuições de vivo interesse, com o seus estudos sobre
o progresso e sobre a vida privada, incluídos no volum e En.sayos; sua
obra m ais im portante, que reúne sua visão da história da filosofia e
sua orientação pessoal, é a redação de um curso da Universidade de
Tucum án, L eccio n es p relim in a re s de F ilo s o fia 6. Depois da guerra civil e
de sua crise espiritual, que desem bocou em sua ordenação sacerdotal,
M orente publicou vários trabalhos, reunidos no volum e Iclea d e la His-
p a n id a d , assim com o alguns estudos sobre Santo Tomás, antecipações

6. Depois de sua morte publicou-se na Espanha uma nova edição deste livro, co
grandes supressões e alterações, sob o titulo Fundamentos de filo s o fia ; uma segunda par­
te deste volume foi escrita por Juan Zaragüeta (nascido em 1883, autor de uma obra
muito ampla, resumida em irês volumes de Filosofia y vida).

516
ORTEG A E SUA f-TLOSOHA DA RAZÀO VITAL.

ainda im aturas do que leria podido ser uma últim a íase dc seu pensa­
m ento interrom pido bruscam ente pela morte.
Z u b iri • Xavier Zubiri nasceu em San Sebastián em 1898. Fez
estudos de Filosofia e Teologia em Madri, Louvain e Roma; doutorou-
se na prim eira destas Faculdades em Madri, com uma tese sobre l:n-
sa y o d e u n a teo ria fe n o m e n o ló g ic a d ei ju ic io , e na segunda em Roma; fez
tam bém estudos científicos e filosóficos na Alem anha; em 1926 foi
catedrático de História da Filosofia na Universidade de Madri; au sen­
te da Espanha desde princípios de 1 9 3 6 até o com eço da Segunda
Guerra M undial, foi professor na Universidade de Barcelona de 1 9 4 0
a 1 9 4 2 . Desde então reside em M adri, afastado do ensino oficial, e
deu uma série de cursos privados, de grande repercussão, ou ciclos de
conferências, desde 1945.
A form ação especificam ente filosófica de Zubiri revela a influên­
cia de seus três m estres principais: Zaragüeta, Ortega e Heidegger.
Seus estudos teológicos e a orientação do prim eiro deles proporciona­
ram -lhe um a profunda fam iliaridade com a escolástica, cuja marca é
bem visível em seu pensam ento; Ortega foi decisivo para sua m atura­
ção e orientação: “Mais que discípulos - escreveu Zubiri - , fomos cria­
turas suas, no sentido de que ele nos fez pensar, ou pelo m enos nos
fez pensar em coisas e de um a forma que até então não tínham os pen ­
sado... E fom os criaturas suas, nós que nos preparávamos para ser en ­
quanto ele se estava fazendo. Recebem os então dele o que ninguém
m ais poderá receber: a irradiação intelectual de um pensador em for­
m ação .” Por últim o, Zubiri estudou com H eidegger em Fn bu rgo de
1 9 2 9 a 1 9 3 1 , pouco depois da publicação de S ein u n d Z eit, e a marca
desse m agistério enriqueceu igualm ente seu pensam ento. A isso se
devem agregar os am plíssim os e profundos con h ecim en tos científicos
de Zubiri, aos quais dedicou extraordinária atenção durante toda a
vida, desde a m atem ática até a neurologia, e seus estudos de línguas
clássicas e orientais, sobretudo com o instrum entos para a história das
religiões.
A obra escrita de Zubiri foi tardia e d escontín ua, e ainda é escas­
sa. Seus ensaios filosóficos - exceto “Sobre el problem a de la filosofia”
e “O rtega, m aestro de filosofia” - foram reunidos em 1 9 4 4 no volum e

517
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

N a tu ra lez a , H istoria, Dios; até 1 9 6 2 não voltou a publicar, e nesse ano


veio a lume seu extenso estudo S o b re la esc n cia ; em 1 9 6 3 , a redação
cie um ciclo de conferências, C in co leccio n es d e filoso fia .
O s esludos históricos de Zubiri com põem grande parte de sua
obra e são cle penetração e profundidade extraordinárias. Estão co n s­
truídos de m aneira sum am ente pessoal, com o uma tentativa de bus­
car as raízes da própria filosofia, e portanto com uma referência à si­
tuação atual do pensam ento, que lhes confere caráter estritam ente filo­
sófico. Isso é n otório nos prim eiros ensaios de N a tu r a le z a , H istoria,
D ios, “Nuestra situación intelectual”, “iQ u é es saber?” e “C iência y rea-
lidad”, que introduzem à consideração do passado; assim com o nos
estudos “El acon tecer hum ano: G recia y la pervivencia dei pasaclo fi­
losófico”, “La idea de filosofia en A ristóteles”, “Sócrates y la sabiduría
griega” ou “Hegel y el problem a m etafísico”. De uma perspectiva mais
propriam ente teológica, em bora com inconfundível presença da filo­
sofia atual, “El ser sobrenatural: Dios y la deificación en la teologia
paulina”, talvez o mais ilum inador e profundo de seus escritos. Seu
último livro estuda a idéia da filosofia num a série descontínua de pen­
sadores: A ristóteles, Kant, Com te, Bergson, Husserl, Dilthey e Heideg-
ger. A significação filosófica da física contem porânea foi estudada no
ensaio "La idea de la naturaleza: la nueva física”.
O mais com entad o e influente dos ensaios de Zubiri é “En tom
al problem a de D ios” (1 9 3 5 ), que busca a dim ensão hum ana desde a
qual esse problem a deve ser form ulado; o hom em está im p la n ta d o na
existência ou im plantado no ser; apóia-se a tergo em algo que nos/c?2
ser; isso leva à idéia de relig açã o: estam os ob rig a d o s a existir porque es­
tamos previam ente religados ao que nos faz existir. A existência está
não só la n ç a d a , com o relig ad a por sua raiz. Estar aberto para as coisas
mostra que ex is tem coisas; estar religado descobre que ex iste o que re-
liga e é raiz fundam ental da existência. É isso que Zubiri cham a de
d eid a d e: e a religação coloca o problem a intelectual de Deus com o ser
fundamental ou fundam entante. Daí surgem os problem as da religião
ou irreligião e inclusive o ateísm o, que aparecem form ulados nessa
dim ensão da religação.
O livro S o b re la esen cia foi longam ente preparado por m eio d
cursos em que Zubiri tratou de diversos problem as de m etafísica. É

518
O r t e g a e s u a f i l o s o f i a d a r a z à o v it a l

um livro sum am ente denso e técn ico, que investiga com minúcia c
profundidade uma questão cen tral da filosofia. Zubiri se propõe re­
tornar “à realidade por si m esm a e inquirir nela qual é esse seu m o­
m ento estrutural que cham am os de essência”. O con ceito de estrutu­
ra é utilizado de maneira tem ática, apoiando-se na filosofia de Aristó­
teles, de cuja idéia de substância, aliás, faz uma crítica que desem bo­
ca no con ceito de su b sta n tiv id a d e, com recurso freqüente a esquemas
escolásticos de pensam ento e um a presença constante da m entalidade
científica, física e, sobretudo, biológica. Uma parte considerável do
interesse desse estudo refere-se a suas possibilidades de com preensão
da realidade biológica, e con cretam en te da espécie. A essência, se­
gundo Zubiri, é um m om ento de uma coisa r e a l , e esse m om ento é
unidade prim ária de suas características; por outro lado, essa unidade
não é exterior, mas intrínseca à própria coisa, e um princípio em que
se fundam as outras características da coisa, sejam ou não necessárias;
a essência assim entendida - co n clu i - é, dentro da coisa, sua v e r d a ­
d e, a verdade da realidade. Longas análises determ inam o âm bito do
“essenciável”, a realidade “esenciad a” e a essência m esm a do real. Esse
livro com p lexo e difícil culm ina em sua exposição da idéia da ordem
transcend ental, em que Zubiri critica outras co n cep çõ es da transcen-
dentalidade e expõe a sua própria. Em tudo ele utiliza conceitos
avançados em seus cursos, co m o o de “inteligência sen tiente”, que
faz do hom em um “anim al de realidades”, definido por essa “habitu-
de” peculiar.
Apesar do tecnicism o de sua expressão, do uso constante de neo-
logism os e das referências freqüentes às ciências, os cursos e escritos
de Zubiri revelam inconfundível paixão intelectual e um dram atism o
que decorre dos esforços de um pensam ento excep cion alm en te pro­
fundo para abrir cam inho en tre suas intuições e desenvolvê-las dia-
leticam ente até chegar a fórm ulas próprias. O volum e S o b re la esen cia
é o prim eiro de uma an un ciad a série de “Estúdios filosóficos”, em
que deverá se expressar o en orm e saber e o profundo pensam ento de
seu autor.
G ao s • José Gaos (G ijón, 1 9 0 2 - México, 1 9 6 9 ) foi professor nas
Universidades de Zaragoza e Madri (desde 1936, reitor desta); a par­

519
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

tir de 1 9 3 9 residiu e lecionou no M éxico. Seus mestres foram Ortega,


Morente e Zubiri, com os quais colaborou estreitam ente na Faculda­
de de Filosofia e Letras de Madri nos anos im ediatam enie anteriores à
guerra civil. Dedicou muitos esforços à tradução de obras filosóficas,
sobretudo Husserl e Heidegger. Escreveu num erosos estudos sobre o
pensamento espanhol e hispano-am ericano, sobre questões de docên­
cia filosófica e sobre filosofia em sentido eslrito. Seus livros mais im ­
portantes são: P en sam ien to de len gua e s p a n o la , F ilosofia d e la filo so fia e
historia d e la filo s o fia , D os exclusivas dei h om bre: la m a n o y el tiem p o, Con-
fe s io n e s p rq fesio n a les , S obre O rtega y G asset, F ilosofia c o n tem p o râ n ea ,
D iscurso d e filo s o fia , O rigenes d e la filo so fia y d e su h istoria, D e filo s o fia .
Gaos sem pre foi um admirável professor; seus dotes pedagógicos
e com unicativos, com o os de Morente, sua clareza de exposição oral,
sua curiosidade intelectual, seu rigor e seu amplo saber, seu sentido
de hum or são qualidades que fizeram dele, tanto na Espanha com o
no M éxico, um m agnífico m otivador e estim ulador de vocações filo­
sóficas, e sua influência foi m uito grande. Seus dotes de escritor, tal­
vez pela quantidade de traduções realizadas, escondem o brilhantis­
mo e o atrativo de sua palavra oral, e por isso essas qualidades apare­
cem m elhor nos livros que são versões fiéis de cursos, com o D os e x ­
clusivas d ei h o m b r e, em que podem os encontrar a originalidade, a fres­
cura e inspiração do pensam ento de Gaos em liberdade.
A um dom ínio muito vasto e rigoroso do con ju nto do pensa­
m ento filosófico do passado une-se em Gaos uma tríplice influência
particularm ente enérgica: a de Ortega, que informou a própria raiz de
seu pensam ento, com o ocorre com todos os pensadores que experi­
mentaram sua influência im ediata; a de Husserl, cujas obras estudou
com excepcion al profundidade e lucidez, e a de Heidegger, talvez a
mais visível nos últim os anos. Gaos, que às vezes declara não ser mais
que um professor de filosofia - sê-lo de verdade só é possível filoso­
ficamente - e que não oculta certa lendência ao ceticism o, significa
um elem ento insubstituível na nascente filosofia espanhola co n tem ­
porânea.
F c r r a te r • José Ferrater Mora pertence à “Escola de M adri” ape­
nas de modo indirelo. Nasceu em Barcelona em 1 9 1 2 ; foi discípulo

520
O r t e g a e s u a f i l o s o f i a d a r a z Ao v it a l

ilnciü dos mestres dessa Universidade, sobretudo de Joaqu ín Xirau;


i \patriou-se em 1939, residiu em Cuba, Chile e finalmente nos Estados
l >mdos, onde é professor no Bryn Mavvr College. Mas suas relações fi-
lusóficas com aquela escola são m uito estreitas: Xirau era discípulo de
( )uega; em 1 9 3 5 , ao se referir a este, Ferrater falava da “atitude filial
di- quem bebeu nele, mais que idéias, estilo; mais que pensam entos,
maneiras”; a influência de M orente e Zubiri sobre ele tam bém foi con ­
siderável; e não se deve esqu ecer a exercida por U nam uno e Eugê­
nio d’Ors.
A obra de Ferrater é m uito am pla. O mais im portante dela é seu
D iccion ario d e F ilosofia, que foi crescendo e se aperfeiçoando em su­
cessivas edições, até se transform ar num esplêndido repertório de in­
formação filosófica, à altura do tem po, equilibrado, rigoroso e que
significa uma apresentação pessoal e estritam ente filosófica da reali­
dade da filosofia pretérita e atual. O utros livros de Ferrater são: C u a-
Iro visiones d e la historia u n iversal, U n am u n o: b o sq u ejo d e u n a filo s o fia ,
O rtega y G asset: eta p a s de u n a filo so fia , V ariaciones s o b re el espírítu,
C u estion es d isp u tad as, L a filoso f ia en el m u ndo de h oy , L óg ica m a tem á tica
(em colaboração com H. Leblanc), El h o m b re en la en c ru c ija d a e El ser
y la m u erte. Este livro é o que Ferrater considera mais representativo
cle seu pensam ento; é - conform e uma prática característica de seu au­
tor, que gosta de voltar a seus escritos e refazê-los - uma nova versão
de seu livro anterior El sen tido d e la muerte\ leva com o subtítulo “Bos­
quejo de una filosofia integracionista”. Por “integracionism o” Ferrater
entende “um tipo de filosofia que se propõe estender um a ponte so­
bre o abism o com demasiada freqüência aberto entre o pensam ento
que toma com o eixo a existência hum ana ou realidades descritas por
analogia com ela, e o pensam ento que toma com o eixo a Natureza”.
Não quer um mero “nivelam ento” das doutrinas, nem uma seleção
eclética de elem entos delas, nem um “com prom isso” entre seus extre­
mos; mas uma p on te pela qual seja preciso transitar em am bas as dire­
ções, conservando-as em sua respectiva insustentabilidade. Ferrater,
com o olhar atento a tudo o que faz a filosofia hoje, tanto na Europa
com o no m undo anglo-saxão e até no soviético, apresenta esse con ­
ju nto num a perspectiva relativam ente plana, pouco escorçada e que

521
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

não é primariamente a sua pessoal. Uma atitude análoga, fora da filo­


sofia, aparece em seu interessante livro C atalu n a, E sp an a, E u rop a, es­
crito com a serenidade, agudeza e ironia inteligente que caracterizam
toda a sua obra intelectual.

* * *

Acom panham os, século após século e etapa após etapa, toda a
história da filosofia ocidental, desde a Grécia até Ortega e o núcleo fi­
losófico a que deu origem. Deus quis que pudéssemos encerrar esta
história, justificadam ente, com nom es espanhóis. Ao chegar aqui, a fi­
losofia nos m ostra, apesar de todas as suas diferenças, a unidade pro­
funda de seu sentido. No final encontram os todo o passado, presente
em nós. Isso dá peso à história da filosofia, na qual gravita atu alm en te
todo o passado. Mas este final não é uma conclusão. A história da filo-
solia se encerra no presente, mas o presente, carregado de todo o pas­
sado, traz dentro de si o futuro, e sua missão consiste em colocá-lo em
marcha. Talvez no tempo vindouro não seja mais alheia a esse movi­
mento a Espanha, que em ürtega fez sua a filosofia.

522
Apêndice bibliográfico

C itam -se a seguir algu m as das obras que m ais eficazm en te podem ser­
vir para o estu d o da história da filosofia.

I. D ic io n á r io s e h is t ó r ia s g e r a is da f il o so f ia

R. Eisler: W örterbuch d er philosophischen Begriffe.


------- Philosophen-Lexihon.
Baldwin: D ictionary o f Philosophy an d Psychology.
A. Lalaiide: Vocabulairc technique et critique dc la philosophic.
Schmidt-Streller: Philosophisches Wörterbuch. [Trad. bras. Vocabulário técnico e
critico da filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 3? ed., 1 9 9 9 .]
D. D. Runes: Dictionary o f Philosophy.
J. Ferrater M ora: D iccionariode filosofia (5? edição, 1 9 6 5 ). [Trad. bras. Dicionário
de filosofia, São Paulo, M artins Fontes, 4 a ed., 2 0 0 1 .]
J. Z aragüeta: V ocabulario filosófico.
J. E. H rdm ann: Grundriss d er G eschickte d er Philosophie (2 vols, 1 8 6 6 ).
W in d elb an d -H eim soeth : L ehrbu ch d er G eschichte d er P hilosophie ( 1 9 3 5 ) .
--------A llgem eine Geschichte d er Philosophie (em Die Kultur d er G egenw art, 1 9 0 9 ).
--------Die Grunddisziplinen (em H andbuch d er Philosophie, de Bäum ler e Schröter.
Volume 1, 1 9 3 4 ).
Jan et-S éailles: Histoire de la philosophic.
A. M esser: H istoria de la filo so fia (5 vo ls.).
K. V orländer: H istoria de la filo s o ß a (2 vols, 1 9 2 1 ).
E. Bréhier: H istoria de la filo so fia (trad , esp ., 2 vols, 1 9 4 2 ).
B. Russell: A History o f W estern Philosophy (trad, esp ., 2 vols, 1 9 4 6 ) .
E C o p leston : A History o f Philosophy (p ub licad os vols. I-VI1).
A. Rivaud: Histoire de la philosophie.
J. M arias: La filo so fia en sus textos (an tolog ia) (2 vols, 1 9 5 0 ; 2 a ed. 3 volum es,
1 9 6 3 ).

523
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

II. S o b r e a e s s ê n c ia da f il o s o f ia

H. Bergson: introduction à la métaphysique.


W Dillhey: Das Wesen der Philosophie (trad. esp.).
E. Husserl: Philosophie als strenge Wissenschaft.
Max Scheler: Vom Wesen der Philosophie.
M. Heidegger: Was isl Metaphysik? (irad. esp. de Zubiri: “<>Qué es metafísi­
ca?”).
J. Ortega y Gasset: Prólogo a una historia de la filosofia (O. C., IV).
X. Zubiri: Sobre el problem a de la filosofia (Revista de Occidente, números 115 e
118).
). Marias: Introducción a Ia filosofia (1947).
------ Biografia de Ia filosofia (1954).
------ Idea de la metafísica (1954).

III. F il o s o f ia g r e c .a

1) Fontes:

H. Diels: Die Fragmente der Vorsokratiker.


Riuer-Preller: Historia philosophine graecae.
Arnim: Stoicorum velerum fragmenta.
W. Nestle: Die Vorsokratiker. Die Sokratiker. Die Nachsokratikei:
Capelle: Die Vorsokratiker.
K. Freeman: The Pre-Socratic Philosophers (1946).
-------Ancilla to The Pre-Socratic Philosophers (1948).
C. J. de Vogel: G reek Philosophy (1950).

2) O bras g era is:

Ed. Zeller: Die Philosophie der Griechen.


Th. Gomperz: Griechische Denker (1903-09).
J. Joel: Geschichte d er antiken Philosophie (1921).
R. Hönigswald: Die Philosophie des Altertums.
E. Cassirer-E. Hoffman: Geschichte der antiken Philosophie (1925).
II. Meyer: Geschichte der alten Philosophie (1925).
J. Stenzel: M etaphysik des Altertums (1934).
E. Howald: Ethik des Altertums (1934).
W. Jaeger: Paideia (trad. esp. de J. Xirau, 3 vols., 1942-45). [Trad. bras. Paidéia,
São Paulo, Martins Pontes, 4a ed., 2001.]

5 2 4
A p ê n d ic e b ib l io g r á f ic o

W. F. Stace: Critical History o j G reek Philosophy (1924).


J. Burnei: Early G reek Philosophy. G reek Philosophy: I: From Thales to Plato.
L. Robin: La pensée grecque.
J. Tannery: Pour l'histoire de la science hellène.
I’ M. Schuhl: Essai sur la form ation de la pensée grecque (1934).
Ch. Werner: La philosophie grecque (1938).
J. Marias: Biografia de la filosofia (1954).

3) M onografias:

a) Os pré-socrâticos:

O. C-igon: Der Ursprung der griechischen Philosophie (1945).


II. Diels: H erakleitos von Ephesos (2? ed., 1909).
E. Weeris: H eraklit und die H erakliteer (1926).
K. Reinhardt: Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie
(1916).
kiezler: Parmenides (1934).
X. Zuhiri: N aturaleza, Historia, Dios (1944), pp. 216-55.
E. Bignone: Empcdocle (1916).
W Jaeger: La Leologia de los prim eros filösofos griegos (trad, esp., 1952). R
Wheelwright: Heraclitus (1959).

h) A sofistica e Socrates:

li. Gomperz: Sophistik und Rethorik (1912).


M. Meunier: La legende de Socrate (1926).
H. Kuhn: Sokrates (1934).
VI. M. Dawson: Ethics o f Socrates (1925).
H. F Carrill: Socrates or the Emancipation oj Mankind (1927).
X. Zubiri: S ôcratesy la sabiduiia griega (em Naturaleza, Historia, Dios.)
A. Tovar: Vida de Socrates (1947).
O. Gigon: Sokrates.

c) Platäo:

G, Grote: Plato (4 vols).


C. Ritter: Platon (1910-23).
U. von Wilamowitz-Möllendorf: Platon (1919).
W. Pater: Platon and Platonism (1909).

525
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

P. Natorp: Platos Ideenlehre (1903). Platón (trad, esp., 1925).


R L. Landsberg: La academ ia platónica (trad, esp., 1926).
L. Robin: Platon (1938).
J. Moreau: La construction de l'idéalisme platonicien (1938).
J. Marias: Introduction a Platon (em Platón: Fedro, 1948).
I. M. Crombie: P lato’s Doctrines (1962).

d) Arisióielcs:

E Breniano: Aristóteles und seine Weltanschauung (1911);


Aristóteles (tradução espanhola).
A. E. Taylor: Aristotle.
O. Hamelin: Le système dA ristote (1920).
H. Siebeck: Aristóteles (trad, esp., 1930).
W D. Ross: Aristotle (1923).
W. Jaeger: Aristóteles (trad, esp., 1946).
W Brócker: Aristóteles (1935).
L. Robin: Aristote (1944).
J. Marias: Introduction a la Política de Aristóteles (1950). Introduction a la
ãtica a N icóm aco (1960).
D. J. Allan: The Philosophy o f Aristotle (1952).
). Moreau: Aristote et ses disciples (1962).

e) O ideal do sábio:

M. Guyau: La m orale d ’Epicure (1878).


E Bignone: Epicuro (1920).
P Barth: Los estoicos (trad, esp., 1930).
J. Marias: Introduction a la filosofia estoica (em Séneca: Sobre la felicidad, 1943).
Marco Aurélio o la exagération (em San Anselmo y el insensato, 1944).

/) O neoplatonismo:

J. Simon: Histoire de l'école d ’A lexandrie (2 vols., 1843-45).


E, Vacherot: Histoire critique de l ’ecole de A lexandrie (3 vols., 1946-51).
Th. Whittaker: The Neoplatonists (1901).
W R. Inge: The Philosophy o f Plotinus (1918).
E Heinemann: Plotin (1921).
E. Bréhier: La philosophie de Plotin (1922).
J. Mehlis: Plotino (trad, esp., 1931).

526
A p ê n d ic e b ib l io g r á f ic o

IV. O CR 1S T1 ANI SM O

1) F o n tes:

Migne: Patrologiae cursus completus: Series Latina (R L.), 221 vols. (1844-64).
Series Graeca (P. G.), 161 vols. (1857-86).
Rouet dejournel: Enchiridion Patristicum .

2) O b ra s g é r a is :

R de Labriolle: Histoire de la littérature latine chrétienne (1 9 2 0 ).


------ La réaction païenne (1934).
Batiffol: La littérature grecque chrétienne.
O. Bardenhewer: Geschichte der altchristlichen Utteratur.
A. Harnack; Geschichte der altchristlichen Litteratur. Lehrbuch der Dogmenges-
chichte.
J. Tixeront: Histoires des dogmes dans l'antiquité chrétienne.
A. Puech: Les apologistes grecs du Ier siècle de notre ère (1912). Corbière: Le
christianisme et la fin de la philosophie antique.
E. de Faye: Introduction a l ’histoire du gnosticisme (1903). Gnostiques et gnosti­
cisme (1913).
H. Newman: Essay on the Development o f Christian Doctrine (trad, esp., 1909).
A. C. MacGeffert: A History o f Christian Thought (1932-33).
J. Marin Sola: La evolution hom ogénea del dogma catôlico (1923).
A. Amor Ruibal: Los problem as fundam entales de la filo s o fia y del dogm a (10 vo­
lumes).
X. Zubiri: El ser sobrenatural: Dios y la deification en la teologia paulina (em N.,
H., D., 1944).

3) M o n o g ra fia s :

Prat: Origene (1907).


E. de Faye: Origène, sa vie, son oeuvre, sa pensée (1923). - Esquisse de la pensée
d ’Origène (1925).
R. Cadiou: Introduction au système d ’Origène (1932).
O. Karrer: Augustinus. Das religiöse Leben (1923).
E. Portaliès: Saint Augustin (em Diet, de Théol. Cath., t. L., Col. 2.268-2.474).
E. Gilson: Introduction à l’étude de Saint Augustin (1929).
E. -Troeltsch: Augustin, die christliche Antike und das M ittelalter (1915). H.
Eibl: Augustin und die Patristik (1923).

527
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

M. Schmaus: Die psychologische Trinitäslehre des hl. Augustinus (1927).


J. Mausbach: Die Ethik des hl. Augustinus (2 vols., 1909).
E. Przywara: Augustinus. Die Gestalt als Gefüge (1934).
J. Guitton: Le temps et l’eternité chez Plotin ei Saint Augustin (1933).
H. A. Wolison: The Philosophy o f the Church Fathers (1956).
------ Philo: Foundations oj Religious Philosophy in Judaism, Christianity, and Islam.

V. F il o s o f ia m e d ie v a l

1) O bras g era is:

). Huizinga: El otono de la Edad Media (trad, esp., 2:‘ ed., 1945).


H. O. Taylor: The M ediaeval Mind (2 vols., 1911).
M. Grabmann: Die Geschichte der scholastischen Methode (2 vols., 1911).
------ Mittelalterliches Geistesleben (2 vols., 1926-36).
-------Filosofia medieval (irad. esp., 1928).
------ Historia de la teologia católica (trad, esp., 1928).
------ M. de Wulí: Histoire de la philosophie médiévale.
E. Gilson: La philosophie au Moyen Âge (1944). [Trad. bras. A filosofia na
Idade M edia, São Paulo, Martins Fontes, 1995.1
Lesprit de la philosophie m édiévale (2 vols., 1932).
History o f Christian Philosophy in the Middle Ages.
A. Dempf: Die Ethik des Mittelalters. (1927).
Metaphysik des Mittelalters (1934).
S. Munk: Melanges de philosophie juive et arabe (1859).
Carra de Vaux: La doctrine de l’Islam (1909).
M. Horten: Die Philosophie des Islam in ihren Beziehungen zu den philosophischen
Weltanschauungen des westlichen Orients (1924).
D. Neumark: Geschichte d er jüdischen Philosophie des Mittelalters (1907-13).
M. Cruz Hernández: Filosofia hispano-musulmana.
------- La filosofia árab e (1963).

2) M on ografias:

M. del Pra: Scoto Eriugena ed il neoplatonismo medievale (1941).


Domet de Vorges: Saint Anselme (1901).
A. Koyré: Ilidée de Dieu dans la philosophie de Saint Anselme (1923).
K. Barth: Anselms Bewis der Existenz Gottes (1931).
J. Marias: San Anselmo y el insensato (1944).

528
A p ê n d ic e b ib l io g r á f ic o

C. Ottaviano: Riccanlo di S. Vit tore (1933).


Carra de Vaux: Avicenne (1900).
M. Cruz: La metafísica de Avicena (1949).
II. Renan: Averroès.
D. Saliba: Etude sur la métaphysique d ’Avicenne (1926).
M. Horten: Die Metaphysik des Avenues (1912).
M. Asin Palacios: El Islam enstianizado (1931).
Huellas del Islam (1944).
J. Ortega y Gasset: Abenjaldún nos revela el secreto (El Espectador , VIII).
lbn Khaldun: The Muqaddimah. An Introduction to History. Tr. e intr. de E
Rosenthal (3 vols., 1958).
J. Gaos: Maimónicles (Revista de Occidente, 1935).
E. Gilson: La philosophie de Saint Bonaventure (1924).
M. Baumgartner: Santo Tomás (trad. esp.).
M. Grabmann: Santo Tomás de Aquino (trad. esp.).
Sertillanges: Saint Thomas d ’Aquin (1910).
J. Maritain: Le docteur angélique (1930).
E. Gilson: Le thomisme (4? ed. 1942).
E. Meyer: Thomas von Aquin (1938).
G. M. Manser: La esencia del tomismo (trad, esp., 1947).
A. Aguirre: Rogerio Bacon (1935).
T. e J. Carreras Anau: Filosofia cristiana de los siglos Xll al XV (1939).
B. Landry: Duns Scot (1922).
E. Gilson: Jean Duns Scot (1952).
E. Longpré: La philosophie du b. Duns Scot (1924).
M. Heidegger: Die Kategorien und Bedeutungslehre des Duns Scotus (1916).
C. T. S. Harris: Duns Scot (1927).
N. Abbagnano: Guglielmo di Ockam (1931).
E. A. Moody: The Logic o f William o f Ockam (1935).
Karrer: Das system Meister Eckcharts (1923).
E. Seeberg: Meister Eckhart (1934).
B. J. Muller-Thym: University o f Being in M. Eckhart (1939).

V I. F il o s o f ia m o d ern a

O B R A S G E R A IS

J. E. Erdmann: Versuch einer wissenschaftlichen Darstellung der Geschichte der


neueren Philosophie (6 vols., 1834-35).
K. Fischer: Geschichte der neueren Philosophie (4? ed., 10 vols., 1897-1904).

529
H is t ú r ia d a f il o s o f ia

W. Windelband: Geschichte der neueren Philosophie (2 vols., 6 a ed., 1919).


R Falckenberg: Geschichte der neueren Philosophie (8 a ed., 1927).

H. Heimsoelh: La metafísica moderna (irad. esp., 1932).


T. Litt: La ética m oderna (trad, esp., 1933).
Lecky: History o j lhe Rise and Influence o j lhe Spirit o f Rationalism in Europe (2
vols., 6 a ed., 1873).
E. Cassirer: Das Erkenntnisproblem (3 vols., 2 a ed., 1911 ss.).

A) O Renascim ento:

1) Obras gerais:

W Dilthey: Wellauffassung und Analyse des Menschen seit Renaissance und Re­
formation (G. S., II).
J. Burkhardt: La cultura del Renacimiento en Italia (trad. esp.).
HL 1leimsoeth: Los seis grandes temas de la metafísica occidental (traducción esp.).
|. R. Charbonnel: La pensée italienne a XVI' siècle et le courant libertin (1917).
E. Cassirer: Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance (1927).
[Trad. bras. Indivíduo e cosmos na filosofia do Renascimento, São Paulo, Martins
Fontes, 2001.1

2) M onografias:

a) El humanismo:

R S. Allen: The age o f Erasmus (1914).


Margaret Mann: Erasme et les débuts de la Réforme française, 1517-1530 (1933).
J. Huizinga: Erasmo (trad, esp.)
M. Bataillon: Erasme en Espagne.
A. Bonilla y San Martin: Luis Vives y la filosofia del Renacimiento.
G. Maranón: Luis Vives (1942).
J. Ortega y Gasset: Vives (1942).
J. Estelrich: Vives (1942).

b) Nicolau de Cusa:

E. van Steenberghe: Le cardinal Nicolas de Cuse, l ’action, la pensée (1920).


R Roua: Il cardinale Nicolô de Cusa (1929).
J. Hommes: Die philosophischen Grundlehren des Nicolaus von Cues (1926).
F Morin: Nicolas de Cues (in Diet, de phil. et de théol. scol.).
M. de Gandillac: La philosophie de Nicolas de Cuse (1941).

530
A p ê n d ic e b ib l io g r á f ic o

c) Giordano Bruno:

D. Berii: Giordano Bruno, sua vita e sue dottrine (1890).


V. Spampanato: Vita de Giordano Bruno (1921).
G. Gentile: Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento (1920).
R. Hönigswald: Giordano Bruno (trad, esp., 1925).

d) A física moderna:

C. Prantl: Galilei und Kepler als Logiker (1875).


A. Gratry: Logique (1855).
A. J. Snow: M atter and Gravitation in Newton's Physical Philosophy (1926).
J. Onega y Cassei: La “Filosofia de la Historia" de Hegel y la historiologia (1928).
X. Zubiri: La nuevci física (en N., H., D.).
J. Marias: F ísicay metafísica en Newton (in San Anselmo y el insensato).

e) A escolástica espanhola:

M. Solana: Historia de la filosofia espahola, síglo XVI (3 vols., 1941).


L. G. A. Getino: El Mtro, Fr. Francisco de Vitoria y el renacimiento teológico del
sigloXVI (3 a ed., 1930).
L. Mahieu: François Suarez (2 vols., 1921).
R. de Scorraille: François Suarez (2 vols., 1911).
L. Recaséns Siches: La filosofia de! derecho de Francisco Suárez (1927).
R. E. Conze: Der Begriff der M etaphysik bei Franz Suarez (1929).
J. H. Fichter: Man o f Spain, Francis Suarez (1940).
J. Zaragüeta: La filosofia de S u árezy el pensamiento actual (1941).
E. Gómez Arboleya: Francisco Suárez, S. I. (1946).
J. Marias: Suárez en la perspectiva de la razón histórica (in Ensayos de teoria).

B) O id ealism o do século XVII:

a ) Descartes:

Bordas-Demoulin: Le Cartésianisme (1843).


J. Chevalier: Descartes (1921).
E. Gilson: Études sur le role de la pensée médiévale dans la form ation du système
cartésien (1930).
A. Koyré: Descartes und die Scholastik (1923). - L'idée de Dieu chez Descartes
(1922).
O. Hamelin: Le système de Descartes (1911).

531
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

H. Gouhier: Essais sur Descartes (1937).


-------Les premières pensées de Descartes (1958).
Éludes sur Descartes (publ. cia Rev. de Métaph. et de Mor., 1937).
K. Jaspers: Descartes und die Philosophie (1937).
J. Marias: Los dos cartesianismos (em Ensayos de teoiia).
H Alquié: La découverte métaphysique de l'homme chez Descartes (1950).
G. Rodis-Lewis: La m orale de Descaries.

h) O cartesianismo na França:

V. Delbos: La philosophie de M alebranche (1924).


H. Gouhier: La philosophie de M alebranche et son expérience religieuse (1926).
J. Stieler: M alebranche (trad, esp., 1931).
E. Boutroux: Pascal (1900).
E Strowski: Pascal et son temps (1907-09).
J, Chevalier: Pascal (1922).
E. Jovy: Études pascaliennes (1927-28).
J. Busson: La pensée religieuse française de Charron à Pascal (1933).
R. Guardini: Christliches Bewusstsein. Versuche über Pascal (1935).

c) Espinosa:

P. L. Couchoud: B. de Espinoza (1902).


V. Delbos: Le spinozisme (1916).
J. A. Gun: B. Espinoza (1924).
C. Baensch: Espinoza (trad, esp., 1925).
-------Septimana Spinozana (Haag, 1933).
H. Serouya: EsSpinoza, sa vie, sa philosophie (1933).
L. Dujovne: Espinoza. Su vida, su época, su obra, su influencia (1941-43).
I I. I lubbeling: Spinoza’s Methodology (1964).

d) Leibniz:

W. Dilthey: Leibniz und sein Zeitalter (G. S., III).


B. Russell: A Critical Exposition o f the Philosophy o f Leibniz (1900).
L. Couturat: La logique de Leibniz (1901).
E. Cassirer: Leibniz’s System in seinen wissenschaftichen Grundlagen (1902).
J. Baruzi: Leibniz et l’organisation religieuse de la Terre (1907).
II. I leimsoelh: Die Methode der Erkenntnis bei Descartes und Leibniz (1912 ss).
-------Leibniz's Weltanschauung (1917).
H. Schemalenbach: Leibniz (1921).
W. Kinkel: Leibniz (trad, esp., 1925).

532
A P Ê N D IC C G IR L IO G R Á F 1 C O

G. Stammler: Leibniz (1930).


Carr: The Monadology o f Leibniz (1930).
J. Marias: Edição comentada do Discurso de Metafísica (1942).
J. Moreau: Uunivers Icibnizien (1957).
J Ortega y Gasset: La idea de principio de Leibnizy Ia evolución de la teoria dedue
tiva (1958).
Y. Belaval: Leibniz critique de Descartes (1960).

C) O em pirism o:

a) A filosofia inglesa:

W R. Sorley: A Histoty o f English Philosophy (2 a ed., 1937).


Rémusat: Bacon, etc. (1875).
E. Wolff: Bacon und seine Quellen (2 vols., 1910-13).
J. Spedding: Account o f the Life and Times of Francis Bacon (2 vols., 1879).
V Brochard: La philosophic de Bacon (1912).
Ad. Levi: II pensiero di F. Bacone (1925).
H. Hoenigswald: Hobbes und die Staatsphilosophie (1924).
E. Meinecke: Die Idee der Staatsraison (1924).
E Tõnnies: Tomás Hobbes (trad, esp., 1923).
E Brand: Thomas H obbes’ M echanical Conception o f Nature (1928).
Th. Laird: Hobbes (1934).
R. Polin: Politique et philosophic chez Thomas Hobbes (1953).
Paul Hazard: La crisis de la conciencia europea (trad, esp., 1941).
S. Alexander: Locke (1908).
R. J. Aaron: John Locke (1937).
D. J. O Connor: John Locke.
A. Petzall: Ethics and Epistemology in Joh n Locke's "Essay Concerning Human Un­
derstanding” (1937).
A. C. Fraser: Berkeley (1881).
J. St. Mill: B erkeleys Life and Writings (1871).
E. Cassirer: Berkeley's System (1914).
A. A. Luce: Berkeley and M cdebranche (1934).
I. Hedenius: Sensationalism and Theology in B erkeley’s Philosophy (1936).
J. Wild: G eorge Berkeley (1936).
G. J. Warnak: Berkeley (1953).
A. Meinong: Hume-Studien (2 vols., 1877-82).
R. Metz: David Hume (1929).
Laing: David Hume (1932).

533
H is t ö r ia d a p il o s o f ia

J. Laird: Hume’s Philosophy o f Human Nature (1932).


I. Hedenius: Studies in Hume’s Ethics (1937).
Constance Maund: Hume's Theory o f Knowledge (1937).
O. McKendree Jones: Empirism and Intuitionism in Reid’s Commonsense Philo­
sophy (1927).

b) 0 lluminismo:

E. Cassirer: Filosofia de la ilustracion (trad, esp., 1943).


1? Hazard: El pensamiento europeo en el siglo XVIII (1946).
E Brunetière: Études sur le XVIIIe siècle (1911).
D. Mornet: Les origines intelectuelles de la Révolution Française (1933).
G. Desnoiresterres: Voltaire et la société au XVIII siècle (8 vols., 1867-76).
R. Lanson: Voltaire (1906).
R. Aldington: Voltaire (1925).
N. L. Torrey: Voltaire and the English Deists (1931).
Barckausen: Montesquieu, ses idées et ses oeuvres (1907).
H. Hôffding: Rousseau (trad, esp., 1931).
E. H. Wrighter: The Meaning o f Rousseau (1929).
Gérin: j.-J. Rousseau (1930).
Ch. W Hendel: J.-J. Rousseau, Moralist (2 vols., 1934).
E. Héligon: Condillac (1937).
M. Müller: Essai sur la philosophie de Jean d ’Alembert (1926).
J. Delvaille: Histoire de l’idée de progrès (1910).
J. B. Bury: The Idea o f Progress (1921).
H. Sée: Les idées politiques en France au XVIIIe (1920).
W Dilthey: Friedlich der Grosse und die deutsche Außlärung. Das achtzehnte
Jahrhundert und die geschichtliche Welt (G.S., 111).
B. Croce: La filosofia di Giambattista Vico (1911).
R. Peters: La estructura.de la histöria universal en Juan Bautista Vico (trad, esp.,
1930).
L. Giusso: Giambattista Vico.
R. Herr: The Eighteenth-CenLury Revolution in Spain (1958). (Tr. esp. 1964.)
J. Marias: Los Espanoles (1962).
-------La Espana posible en tiempo de Carlos Ul (1963).

c) A formaçào da época moderna:

P Hazard: La crisis de la conciencia europea (trad, esp., 1911).


W Sombari: Lujoy capilalismo (trad, esp., 1928).
-------Guerra y capitalismo (trad, esp., 1934).

5 3 4
A p ê n d ic e b ib l io g r á f ic o

R. H. Tavvney: La religion en el orto dei capitalismo (trad, esp., 1936).


W H. Dunning: A History of Political Theories from Luther to Montesquieu (1905).
Max Weber: Die protestantische Ethik und der Geist der Kapitalismus (1920).
J. Marias: La perdida de Dios (cm San Anselmo y el insensato, 1944).

D) O idealism o alem ão:

a) Kant:

H. Cohen: Kants Theorie der Erfahrung (1871).


Th. Ruyssen: Kant (1900)
E. Cassirer: Kants Leben und Lehre (1918).
M. G. Morente: La filosofia de Kant (1917).
M. Wundt: Kant als Metaphysiker (1924).
J. Ortega y Gasset: Kant (1924-29).
P Menzer: Kant (trad, esp., 1925).
O. Külpe: Kant (trad, esp., 1925).
M. Heidegger: Kant und das Problem der Metaphysik (1929).

b) Fichte:

E. Lask: Fichtes Idealismus und die Geschichte (1902).


X. León: La philosophie de Fichte (1902).
-------Fichte et son temps (3 vols., 1922-27).
F Medicus: Fichte (trad, esp., 1925).
-------Einleitung zu Fichtes Werke (1911).
N. Hartmann: Die Philosophie des deutschen Idealismus (1923).
H. Heimsoeth: Fichte (trad, esp., 1931).
M. Guéroult: Uévolution et la structure de la doctrine de la science chez Fichle
(1930).

c) Schelling:

K. Fischer: Schelling (1902).


E. Bréhier: Schelling (1912).
H. Knittermeyer: Schelling und die romantische Schule (1929)

d) Hegel:

W Dilthey: Die Jugendgeschichte Hegels (G.S., IV).


P Kroner: Von Kant bis Hegel (1921-24).
H. Falkenheim: Hegel (trad, esp., 1925).
W Moog: Hegely la escuela hegeliana (trad, esp., 1932).

5 3 5
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

B. Croce: Saggio sullo Hegel (1913).


G. Gentile: La liforma della dialettica hegeliana (2 a ed.. 1923).
------ Teoria generale dello spirUn came alto puro (4 a ed., 1924).
W Cunningham: Thought and Reality in Hegel's System (1928).
J. Ortega y Gasset: Hegel y America. La “Filosofia de la historia" de Hegel y la his-
toriologia (1928).
X. Zubiri: Hegel y el problema metafísico (em N., Fl., D.).
11. Glöckner: Hegel (1929).
N. Hartmann: Die Philosophie des deutschen Idealismus, II (1929).
Th. Steinbüchel: Das Crundproblem der hegelschen Philosophie (1933).

e) O pensamento da época romântica:

W. Dilthey: Leben Schleiermachers. Das Erlebnis und die Dichtung.


H. Mulert: Schleiermacher (1918),
G. Simmel: Schopenhauer y Nietzsche (trad. esp).
Th. Ruyssen: Schopenhauer (1911).
H. l laase: Schopenhauer (1926).
R Jobil: Les éducateurs de l’Espagne contemporaine: I. Les krausistes (1936).
J. López Morillas: El krausismo espaflol (1956).
V. Cacho: La Instilución Libre de Ensenanza (1962).
G. A. Wetter: El materialismo dialéctico (tr. esp. 1963).

E) A filosofia no século XIX:

a) A superação do sensualismo:

A. Nicolas: Études sur Maine de Biran (1858).


M. Couillac: Maine de Biran (1905).
G. Michelet: Maine de Biran (1906).
P Tisserand: Essai sur l’anthropologie de Maine de Biran (1909).
A. de la Vallete-Monbrun: Maine de Biran, essai de biographie (1914).
V. Delbos: Maine de Biran (1918).
H. Gouhier: Introdução a OEuvres choisies de M. de B. (1942), Edição do Jour­
nal (3 vols., 1954-57).
J. Marias: El hom brey Dios en la filosofia de Maine de Biran (em San Anselmoy
cl insensato, 1944).

b) O positivismo de Comte:

E. Littré: Augusle Comte et la philosophie positive (1863).


J. St. Mill: Comte and Positivism (1865).

536
A p ê n d ic e b ib l io g r á f ic o

I fvy-Bruhl: La philosophic d ’Auguste Comte (1900).


(i. Cantecor: Le positivisme (1904).
Marcuse; Die Geschichtsphilosophie Auguste Comte (1932).
11. Gouhier: La jeunesse d ’Auguste Comte et la formation du positivisme (.3 volu­
mes, 1933-41). - Vie d’Auguste Comte.

c) A filosofia de inspiração positivista:

11. Taine: Les philosophes classiques du XUC siècle en France (1857).


I: Ravaisson: La philosophie en France au XIX'' siècle (1867).
I . Ferraz: Histoire de la philosophie en France au XIX1 siècle (3 volumes,
1880-89).
|. Benrubi: Les sources et les courants de la philosophie contemporaine en France
(2 vols., 1939).
J. M. Guyau: La moral inglesa contemporânea (trad. esp.).
|. FI. Muirhead: Contemporary British Philosophy (3 séries, 1926-56).
S. Saenger: Stuart Mill (trad, esp., 1930).
Karl Britton: J. S. Mill (1953).

d) A descoberta da vida:

W Lowrie: Kierkegaard (1938).


11. Hôffding: Sören Kierkegaard (trad, esp., 1930).
K. Löwith: Kierkegaard und Nietzsche (1933).
E. Bertram: Nietzsche (1920).
A. Pfänder: Nietzsche (trad, esp., 1925).
A. Vetter: Nietzsche (1928).
K. Jaspers: Nietzsche (1936).
K. Schlechta: Der Fall Nietzsche (1958).

e) A volta à tradição metafísica:

Card. Perraud: Le P Gratry sa vie et ses oeuvres (1900).


L. L. Braun: Gratiys Theorie von der religiösen Erkenntnis (1914).
E. J. Scheller: Grundlagen der Erkenntnislehre bei Gratry (1929).
|. Marias: La filosofia del Padre Gratry. La restauración de la metafísica en ei pro­
blema de Dios y la persona (3 a ed., e n Obras, iV).

F) A filosofia de nosso tempo:

a) Brentano:

O. Kraus: Brentanos Stellung zur Phänomenologie und Gegenstandstheorie (1924).

537
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

E. Roggc: Das Kauscilpmblem bei Franz Brentano (1935).


M. Cruz Hernandez: Francisco Brentano (1954).

b) A idéia da vida:

G. Misch: Lebensphilosophie und Phänomenologie (1930).


------ Vorbericht ao lomo V de Dillheys Gesammelte Schriften (1923).
A. Degener: Dilthey und das Problem der Metaphysik (1933).
J. Ortega y Gasset: Guillermo Dilthey y la idea de la vida (1934).
J. Höfer: Vom Leben zur Wahrheit. Katholische Besinnung an der Lebensanschauung
Wilhelm Dillheys (1936).
C. F Bollnow: Dilthey: eine Einführung in seine Philosophie (1936).
P Lain: Dillhey y el metodo de la historia (1942).
F Pucciarelli: Introducción a la filosofia de la vida (na irad. esp. de “La esencia
de la filosofia”, 1944).
J. Marias: Introducción a la filosofia de la vida (na trad. esp. comentada de "Teo­
ria de las concepciones del mundo”, de Dillhey, 1944).
H. A. Hodges: Wilhelm Dilthey: an introduction (1944).
E Diaz cle Cerio: W. Dilthey y el problema del mundo histérico (1959).
M. G. Morente: La filosofia de Henri Bergson (1941).
J. Zaragüeta: La intuición en la filosofia de Henri Bergson (1941).
H. Höffding: La philosophie de Bergson (1916).
J. Chevalier: Bergson (1925).
Le Roy: Bergson (trad, esp., 1928).
J. Marias: Miguel de Unamuno (1943).
-------La escuela de Madrid (1959).
M. Oromi: El pensamiento filosófico de Miguel de Unamuno (1943).
J. Ferrater Mora: Unamuno: bosquejo de una filosofia (1944, 2? ed., 1957).
P L. Landsberg: Reflexiones sobre Unamuno (Cruzy Raya, n° 31).
S. Serrano Poncela: El pensamiento de Unamuno (1953).
Caria Calvetti: La fenomenologia della credenza in Miguel de Unamuno (1955).
F Meyer: Uontologie de Miguel de Unamuno (1955).

c) A filosofia em língua inglesa:

H. W Schneider: A History o f American Philosophy (1946).


A. W. Moore: Pragmatism and its Critics (1909).
J. B. Pratt: What is Pragmatism? (1909).
R. B. Perry: Present Philosophical Tendencies (1912).
F. Leroux: Le pragmatisme américain et anglais (1923).

538
f
A p ê n d ic e b ib l io g r á f ic o

Sydney Ilook: The Metaphysics o f Pragmatism (1927).


W B. Gallie: Peirce and Pragmatism (1927).
1' Boutroux: William James (1911).
M. Knight: William James (1952).
IX D. Runes (editor): Twentieth Century Philosophy (1947).
M. Farber (editor): llactiviLé philosophique contemporaine en France et aux États-
Unis (1950).
1! A. Schilpp (editor): The Philosophy o f John Dewey.
------ The Philosophy of George Santayana.
------ The Philosophy of Alfred North Whitehead.
------ The Philosophy o f Bertrand Russell.

cl) Husserl:

Th. Celms: El idealismo fenomenológico de Husserl (trad, esp., 1931).


J. Gaos: La crítica del psicologismo en Husserl (1933).
X. Zubiri: Ensayo de una idea fenomenológica delju iáo (1927).
L. Levinas: La théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl (1930).
J. Xirau: La filosofia de Husserl.
Marvin Farber: The Foundations o f Phenomenology (1943).
H. Spiegelberg: The Phenomenological Movement (1960).
Alois Roth; Edmund Husserls Ethische Untersuchungen (1960).

e) A teoria dos valores:

J. Ortega y Gasset: iQue son los valores? (1923).


Max Scheler (1928).
Gurwitsch: Las tendencias actuales de lafilosofia alemana (trad. esp.).
Johannes Hessen: Wertphilosophie (1937).
L. Lavelle: Traité des valeurs.

f ) Heidegger:

K. Jaspers: Existenzphilosophie (1938).


-------Vernunft und Existenz (1935).
H. Heyse: Idee und Existenz (1935).
O. F Bollnow: Existenzphilosophie (1942).
A. Delp: Existência trágica (trad, esp., 1942).
A. Wagner de Reyna: La ontologia fundamental de Heidegger.
A. de Waehlens: Lafilosofia de Martin Heidegger (1945).
J. D. Garcia Bacca: Nueve grandes filósofos contemporâneos y sus temas (1947).
J. Gaos: Introducciôn a “El sery el tiempo”, de M. Heidegger (1951).

539
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

g ) O rte g a y G asset:

M. G. Morente: Ensayos (1945).


C. Barja: O rtegay Gasset (em Librosy autores contemporâneos, 1935).
E. R. Curtius: Ortega y Gasset (ein Kritische Essays zur europäischen Literatur).
N. Loeser: Ortegay Gasset en de philosophie van het leven (1949).
J. Marias: La escuela de Madrid (1958).
-------Ortegay tres antípodas (1950).
-------Comentário a las Meditacioncs de! Quijote (1957, 2 a ed., 1965).
J. Ferraier Mora: Ortegay Gasset (1958).
P Garagorri: Ortega. Una reforma de la filosofia (1958).
J. Gaos: Sobre Ortegay Gasset (1957).
La Torre (Universidad de Puerto Rico): Iiomenaje a Ortega y Gasset (1956).
F Salmerón: Las mocedades de Ortegay Gasset (1959).
1: Niedermayer: Jost5 Ortegay Gasset (1959).
J: P Borcl: Raison et vie c/iez: O rtegay Gasset (1959).
B. Gräfin von Galen: Die Kultur- und Gesellschaftsethik José Ortega y Gasset
(1959).
C. Ceplccha, O.S.B.: The Historical Thought of José Ortega y Gasset (1958).
). 11. Walgrave: De wijsbcgeerte van Ortegay Gasset (1959).
J. Marias: Oriega. - I. Circunstancia y vocaciön (1960)
F Diaz de Cerio Ruiz, S. I.: José O rtegay Gasset y la conquista de la conciencia
histórica. Mocedad: 1902-1915 (1961).
A. Garcia Aslrada: El pensamiento de Ortegay Gasset (1961).
H. Larrain: La génesis del pensamiento de Ortega (1962).
A. Gaete: El sistema maduro de Ortega (1962).
J. Hierro S. Pescador: El derecho en Ortega (1965).
A. R. Huéscar: Con Ortega y otros escritos (1964).
-------Perspectiva y verdad: el problema de la verdad en Ortega (1966).

540
Epílogo de
José Ortega y Gasset
N o ta p r e l im in a r

Em 1943, durante seu p erío d o de residência em Lisboa, Ortega em ­


preendeu a com posição de um Epílogo ü História da filosofia de Julián
M arias, pu blicad a em 1941 e cuja segunda ed ição estava sendo preparada.
Entretanto, o tem a com eçou a tom ar vulto m a io r que o previsto, e em 10 de
ja n eiro de 1944 escreveu a M arias: “Essas gran des coisas sobre a etim olo­
gia e sobre muitos outros tem as densos você cis v erá em seu ‘E pílogo’. Estou
m etido nisso f a z meses. H oje tudo é tão p roblem ático, h á tantas interferên­
cias que interrom pem o trabalho, que não m e atrevo a im postar a voz com
grandes prom essas. Mas saiba que continuo m etido até o pescoço em seu
epílogo. G ostaria, no entanto, que você n ão dissesse nenhum a p alav ra a
ninguém sobre o assun to.” Uns m eses depois, em ju n h o, an u n ciava-lhe que
o epílogo ia se tran sform ar num volum e d e 4 0 0 págin as, o m ais im p or­
tante de seus livros, que, naturalm ente, seria pu blicado sep a rad a m en te da
História, m as com o título Epílogo à “História da filosofia” de Julián Ma-
rías, algo qu e lhe interessava m an ter em segredo até o m om ento de seu lan­
çam ento. N o fin a l do ano de 44 , O rtega com eçou a d a r um curso de filo s o ­
fia em Lisboa, e em 2 9 de d ezem bro escrevia m ais um a vez ci M arias: “N ele
sairá p a rte do j á fe ito p a r a seu Epílogo que, p o r sua vez, se ben eficiará do
curso e talvez logo estejam redigidas suas 700 páginas!”
No v erão de 1945, O rtega com unicou a M arias que p en sav a sep a ra r
uma p a rte do conteúdo projetad o p a r a o Epílogo com o título de A origem
da filosofia. E em 1946, em duas entrevistas a jorn ais, prim eiro em Lisboa
(O Sécu lo, 13 de abril) e depois em M adri (A B C, 2 6 d e abril), anuncia­
va entre seus trabalhos em curso d e e la b o ra çã o o “E p ílogo...” e “A origem
da filo s o fia ”. Sua vinda à E spanha, diversas tarefas, a fu n d a ç ã o do Institu-

54 3
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

to de H um anidades, longas viagens e novos trabalhos in terrom peram a re­


d ação desses escritos, aos quais sem pre p en sav a em voltar.
A totalid ad e dos m anuscritos existentes f o i pu blicada em 1960 com o
título editorial O rigen y Epílogo de la Filosofia (Fondo d e Cultura Eco­
nómica, M éxico) e depois no volum e IX das O bras com pletas. Im prim i
m os aqu i a p a r t e e s c r ita co m o E p ílo g o a o p resen te livro.

544
I. [ O PASSADO F IL O S Ó F IC O ]

Nihil invila Minerva


(Velho ditado latino, segundo Cícero)

E agora, que mais? Ju liá n Marías acabou de fazer passar diante


de nós o acidentado filme que é a história da filosofia. C um pnu sua
lurefa de m odo exem plar. D eu-nos duas lições de um a só vez: uma,
dc história da filosofia; outra, de sobriedade, de ascetism o, de escru­
pulosa subm issão à tarefa que se propusera realizar, inspirada numa
hnalidacle didática. Gostaria neste epílogo de aproveitar am bas as li­
ções, mas na segunda não posso m e ajustar totalm ente a seu exem plo.
Marías pôde ser tão sóbrio porque expunha doutrinas que já estavam
aí, desenvolvidas em textos aos quais se pode recorrer. Mas o epílogos
c o que vem quando se acabaram os lógoi, neste caso as doutrinas ou
“dizeres” filosóficos - portanto, o que se deve dizer sobre o que já foi
dito e isso é um dizer no futuro que, por isso m esm o, não está aí e
cm que dificilm ente podem os n os referir a textos preexistentes mais
amplos. F o i o próprio M arías que m e im pôs esta tarefa. Tam bém me
subm eto a ela e procurarei cum p ri-la com a dose de brevidade e, se
possível, de clareza que a in ten ção deste livro exige.
O dizer é um a espécie do fazer. Que é que se d eve f a z e r ao term i­
nar a leilura da história da filosofia? Trata-se de evitar o capricho. O
capricho é fazer qualquer coisa entre as m uitas que se podem fazer. A
ele opõe-se o ato e hábito de escolh er, entre as m uitas coisas que se
podem fazer, precisam ente aquela que exige ser feita. O s latinos cham a­
vam esse ato e hábito do reto escolher prim eiro de eligentia e depois
de elegantia. Talvez seja desse vocábulo que vem nossa palavra int-eli-
gentia. De qualquer m aneira, E legância deveria ser o nom e dado ao
que torpem ente cham am os de É tica, já que é esta a arte de escolher a

5 4 5
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

m elhor con d uta, a ciência do que-fazer. O faio de a voz elegân cia ser
uma das mais irritantes no planeta hoje é sua m elhor recom endação.
Elegante é o hom em que nem faz nem diz qualquer coisa, mas que
faz o que se deve fazer e diz o que se deve dizer.
Não há dúvida quanto ao que se deva fazer ao term inar a leitura
da história da filosofia. É algo que surge quase autom aticam ente. Pri­
m eiro, dirigir u m últim o olhar, com o que panorâm ico, à im ensa ave­
nida das doutrinas filosóficas. No postim eiro capitulo do texto de Ma­
rias term ina o passado e cabe a nós prosseguir, tanto o leitor com o eu.
Não ficamos nesse continente em cu ja costa ainda estam os. Ficar no
passado é estar m orto. Com um últim o olhar de viajantes que seguem
seu inexorável destino de transum ar, resum im os todo esse pretérito,
nós o avaliamos e nos despedim os dele. Para ir aonde? O passado con ­
fina com o futuro porque o presente que idealm ente os separa é uma
linha tão sutil que só serve para ju ntá-los e articulá-los. No hom em ,
pelo m enos, o presente é um vaso de parede finíssima ch eio até a b o r­
da de recordações e de expectativas. Q uase, seria quase possível dizer
que o presente é m ero pretexto para que haja passado e haja futuro, o
lugar onde am bos conseguem ser tais.
É esse ú ltim o olhar, em que colhem os o essencial do passado fi­
losófico, que n os faz ver que, ainda que assim quiséssem os, não po­
dem os ficar nele. Não existe nenhum “sistem a filosófico” entre os for­
mulados que n o s pareça suficientem ente verdade. A quele que presu­
me poder instalar-se num a doutrina antiga - e me refiro, é claro, ape­
nas a quem se dá conta do que faz - sofre de uma ilusão de ótica. Por­
que, no m elhor dos casos, quem adota uma filosofia pretérita não a
deixa intacta, pois para adotá-la teve de tirar dela e acrescentar-lhe
não poucos pedaços haja vista as filosofias subseqüentes.
Donde resulta que esse postim eiro olhar para trás provoca em
nós, irremediavelmente, outro olhar para a frente. Se não podem os nos
alojar nas filosofias pretéritas, não tem os outro remédio a não ser ten­
tar edificar outra. A história do passado filosófico é uma catapulta que
nos lança pelos espaços ainda vazios do futuro rumo a um a filosofia
por vir. Este epílogo não pode consistir em outra coisa senão em dar
expressão, ainda que elementar e insinuante, a algumas das muitas coi­

546
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a sset

sas que esses dois olhares vêem. Na presente conju ntu ra creio ser isso
o que se deve dizer.

Ao con clu ir a leitura de uma história da filosofia, m anifesia-se


ante o leitor, em panorâm ica presença, todo o passado filosófico. E
essa presença dispara no leitor, quem quer que ele seja - desde que
não se açore, que saiba dar-se conta, passo a passo, do que vai aconte­
cendo nele - , um a série dialética de pensam entos.
Os pensam entos podem estar ligados com evidência, um ao ou­
tro, de dois m odos. O prim eiro é este: um pensam ento aparece sur­
gindo de outro anterior porque não é mais que a explicação de algo
que já estava im plícito nele. Então dizem os que o prim eiro pensam en­
to im plica o segundo. Este é o pensar analítico, a série de pensam en­
tos que brotam dentro de um prim eiro pensam ento em virtude de
uma progressiva análise.
Mas há outro m odo de ligam e evidente entre os pensam entos.
Q uando querem os pensar o corpo Terra, pensam os um corpo quase
redondo de determ inado tam anho, um pouco a c h a ta d o n a região de
am bos os pólos e, segundo recentes averiguações, ligeiram ente acha­
tado tam bém na zona do Equador, em sum a, um esferóide. Só quería­
mos pensar esse pensam ento. A contece que não podem os pensá-lo
solitário, pois ao pensá-lo ju stapen sam os ou pensam os além disso o
espaço em volta desse esferóide, espaço que o lim ita ou lugar em que
está. Não tínham os previsto esse anexo, não estava em nosso pressu­
posto pensá-lo. M as ocorre que não tem os outro rem édio, se pensa­
mos o esferóide, senão pensar tam bém o espaço em volta. Pois bem,
é evidente que o con ceito desse “espaço em volta” não estava incluído
ou im plicado no con ceito “esferóide”. Contudo, esta idéia nos impõe
inevitavelm ente aquela, sob pena de ficar incom pleta, de que não
consigam os acabar de pensá-la. O con ceito “esferóide” não implica
mas, na verdade, com plica o pensam ento “espaço em volta”. Este é o
pensar sintético ou dialético'.

I C o m o não pudesse fazer de o u tra forma, a filosofia sem pre exerceu o pensar
sin télico , m as até Kant ninguém tinha rep arad o em sua peculiaridade. Kant o “d esco ­

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H is t ó r ia d a f il o s o f ia

Numa série dialética de pensam entos, cada um deles com plica c


im põe pensar o seguinte. O nexo entre eles é, portanto, m uito mai.s
forte que no pensar analítico. No exercício deste p o d em os pensar o
con ceito im plicado no antecedente e uma vez pensado, tem os de fato
de recon h ecer sua “identificação” com este, em bora não fosse forçoso
pensá-lo. O prim eiro con ceito não sente falta de nada, fica tranqüilo,
com o se se sentisse com pleto. Mas no pensar sintético não se trata de
poder, e sim de ter, velis nolis, de ju stap o r um novo con ceito. Diría­
m os que aqui a evidência do n exo entre dois conceitos é anterior a tei
pensado o segundo, já que é ela que nos leva im perativam ente a ele.
A dialética é a obrigação de continuar pensando, e isso não é uma
m aneira de dizer, mas uma realidade efetiva. É o próprio fato da con ­
dição hum ana, pois o hom em , com efeito, não tem outro rem édio se­
não “con tin uar pensando” porque sem pre depara com o fato de que
não pensou nada “por com p leto”, mas que precisa integrar o já pen­
sado, sob pena de perceber que é com o se não tivesse pensado nada
e, em conseqü ên cia, de se sentir perdido.
Este fato enorm e não entra em colisão com este outro menor:
que, de fa c t o , cada um de nós pára, se detém e deixa de pensar em de­
term inado ponto da série dialética. Alguns param antes, outros de­
pois. Mas isso não quer dizer que não tivéssemos de con tin u ar pensan­
do. M esm o que nos detenham os, a série dialética con tin u a, e sobre
nós fica gravitando a necessidade de prossegui-la. Mas outros afãs da
vida, doenças ou sim plesm ente a diferença na capacidade de percor­
rer sem se extraviar e sem vertigem uma longa cadeia de pensam entos
são causa de interrom perm os violentam ente a série dialética. Nós a co r­
tamos e ela continua dentro de nós sangrando. Porque o fato bruto de

bre” e o n om eia, m as dele só vê o caráter negativo, qual seja. que não é um pensar ana­
lítico, que nào é um a im plicação. E co m o na tradição filosófica - sob retud o na imedia­
tamente anterior, em Leibniz - só o n exo de im plicação entre dois pensam entos pare­
cia evidente, acredita que o pensar sintético não é evidem e. Seus su cessores - Fichte,
Schelling, Hegel - assum em sua evidência, m as ainda ignoram de onde esta vem e qual
é seu regime. Husserl. que p ou co fala do pensar sintético, foi quem m ais esclareceu sua
índole. Mas ainda estam os n o com eço da tarefa de tom ar posse dele e resta m uito por
fazer, co m o se verá neste epílogo, mais adiante.

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E p íl o g o de J o sé O rtega y G a ssei

Mispendê-la não significa deixar de ver com urgente clareza que lería­
mos de continuar pensando. O corre, pois, com o no xadrez: um joga­
dor é incapaz de antecipar sem se confundir o m esm o núm ero de jo-
j;.itlas possíveis que o outro, partindo am bos cle um a dada situação
das peças no tabuleiro. Ao renunciar a continuar antecipando mais
logadas não fica tranqüilo; ao contrário, pressente que é na jogada de­
pois das previstas que está am eaçado de xeque-m ate. Mas não lhe é
dado poder mais.
Tentem os, pois, p erco rrerem seus principais estágios a série dia-
li-iica de pensam entos que a presença panorâm ica do passado filosó-
lico autom aticam ente dispara em nós. O prim eiro aspecto que nosso
olhar oferece é o de ser uma m ultidão de opiniões sobre o m esm o
que, enquanto m ultidão, se contrapõem umas às outras e ao se contra­
porem se incrim inam reciprocam ente de erro. Portanto, o passado fi­
losófico é, a nossos olhos, o con ju nto dos erros. Q uando o hom em
grego deu uma prim eira parada em sua trajetória criadora de doutri­
nas e lançou o prim eiro olhar para trás em pura contem plação h istó­
rica2, foi essa a im pressão que teve, e o fato de ficar nela e não conti­
nuar pen san d o deixou nele, com o um precipitado, o ceticism o. É o fa­
moso tropo de Agripa ou argum ento contra a possibilidade de alcan­
çar a verdade: a “dissonância das opiniões” - d ia p h o n ia tôn doxôn. Os
sistem as aparecem com o tentativas de constru ir o edifício da verdade
que fracassaram e vieram abaixo. Vemos, p ortanto, o passado com o
erro. H egel, referindo-se, de form a mais geral, à vida hum ana toda,
diz que “quando voltam os a vista para o passado o prim eiro que ve­
mos são ruínas”. A ruína é, com efeito, a fisionom ia do passado.
N otem os, no entanto, que não fomos nós que descobrim os nas
doutrinas de antanho a quebradura do erro, mas que conform e líamos
a história íam os vendo que cada nova filosofia com eçava por d en u n ­
ciar o erro da antecedente e não só isso, mas que, de m odo form al,

2. Aristóteles sem pre retom a as doutrinas precedentes, não com olhar h istórico
e sim co m um interesse sistem ático, co m o se fossem opiniões con tem porân eas que d e­
vem ser levadas em con ta. Em Aristóteles só se anuncia a perspectiva histórica quando
ch am a ce rto s filósofos de “os antigos” - fioi p a la io í - e co m en ta que ainda são in exp er­
tos - a p e ir ía .

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H is t ó r ia d a f il o s o f ia

por ter reconhecido o erro desta era ela outra filosofia3. A história d;i
filosofia, ao m esm o tempo em que é exposição dos sistemas, acaba sen
do, sem que isso se proponha, a crítica deles. Esforça-se para erigir,
uma depois da outra, cada doutrina, mas uma vez que a erigiu, a dei­
xa desnucada por obra da subseqüente e semeia o tem po de cadávc
res. Não é, portanto, apenas o fato abstrato da “d issonância” que nos
apresenta o passado com o erro, mas é o próprio passado que, por as­
sim dizer, vai cotidianam ente se suicidando, desprestigiando e arrui­
nando. Nele não encontram os onde procurar guarida. Tal gigantesca
experiência do fracasso é a que exprim e este m agnífico parágrafo de
Bossuet, egrégio exem plo - diga-se de passagem - do b om estilo bar­
roco ou m odo em que se m anifestou o hom em ocidental em todas as
ordens da vida de 1 5 5 0 a 1 7 0 0 : “Q uando considero este m ar turbu­
lento, se assim é lícito cham ar a opinião e os raciocínios hum anos, im ­
possível me é em espaço tão dilatado achar asilo tão seguro nem reti­
ro tão sossegado que não tenha se tornado m em orável pelo naufrágio
de algum navegante fam oso.”4
Na série dialética este é, portanto, o prim eiro pen sam en to: a histó­
ria da filosofia nos descobre p rim a fa c ie o passado com o o mundo
m orto dos erros.

SEGUNDO PENSAMENTO

Mas não pensam os o prim eiro “com pleto”. Dizíamos que cada fi­
losofia com eça m ostrando o erro da ou das precedentes e que, graças
a isso, ela é outra filosofia. Mas isso não teria sentido se cada filosofia
não fosse form alm ente, por um a de suas dim ensões, o esforço para

3. U m fato que deveria nos su rp reen der m ais do que o faz é que, depois de ini­
ciada a atividade filosófica propriam ente dita, não parece ter havido n enh um a filosofia
que com eçasse de novo, mas todas brotaram partindo das anteriores e - a partir de cer­
to m om ento - cabe dizer que de todas as anteriores. Nada seria mais "natural" que o
aparecim ento, aqui e acolá - ao longo de toda a história filosófica - , de filosofias sem
precedentes em outras, espontâneas e a nihilo. Mas não foi assim, e o que ocorreu foi
antes em grande m edida o contrário. Im porta sublinhá-lo para que se perceba a força
da série dialética que agora desenvolvem os e de outras afirm ações m inhas posteriores,
entre elas as que se referem à filosofia co m o tradição.
4. Sermõn sobre la Ley de Dios, para el Domingo de Quincuagésima.

550
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a sset

i liminar os erros anteriores. Isso nos proporciona uma súbila ilumi-


ii.ii.ao que nos faz descobrir no passado um segundo aspecto. C on ti­
nuamos vendo-o com posto de erros, mas agora constatam os que es-
m -■ erros, apesar de o serem e precisam ente porque o são, iranslor-
iii.im-se em involuntários instrum entos da verdade. No prim eiro as-
|irclo, o erro era uma m agnitude puram ente negativa, mas, nesse se-
>■,11iido, os erros com o tais adquirem um matiz positivo. Cada filosofia
.tpmveita as falhas das anteriores e nasce, segura a lim ine de que, pelo
menos, nesses erros não cairá. E assim sucessivam ente. A história da
lilosofia m ostra-se agora com o a de um gato escaldado que vai fugin­
do dos fogos onde se queim ou. De m odo que ao cam inhar adiante no
u-inpo a filosofia vai recolhendo em seu alforje um cúm ulo de erros
reconhecidos que ipso fa c t o se transform am em auxiliares da verdade.
( )s naufrágios de que fala Bossuet se perpetuam na condição de bóias
c faróis que anunciam escolhos e baixios. Portanto, num segundo as­
pecto o passado nos aparece com o o arsenal e o tesouro dos erros.

TERCEIRO PENSAM ENTO

C ostum am os pensar hoje em dia que a verdade é coisa m uito di-


lícil. É um costum e razoável. Mas, ao m esm o tem po, costum am os
opinar que o erro é coisa fácil dem ais, e isso já é um uso m enos d is­
creto. Dá-se o paradoxo de que o hom em contem porâneo se com p o r­
ia frivolam ente ante o fato do erro. Que o erro exista lhe parece ser a
coisa m ais “natural” do m undo. Não se questiona sobre o fato do erro.
Aceita-o e pronto, a tal ponto que, ao ler a história da filosofia, uma
das coisas que mais lhe causam estranheza é presenciar os esforços te­
nazes dos gregos para explicar com o é possível o erro. Dirão que essa
habituação à existência do erro, com o se fosse um objeto doméstico, faz
parte do ceticism o congênito do hom em contem porâneo. Mas tem o
que dizer isso seja outra frivolidade e, por certo, reveladora de singular
m egalom ania. Cham am qualquer coisa de ceticism o! Com o se o ceti­
cism o pudesse ser um estado de espírito congênito, isto é, dado, com
que alguém depara sem esforço prévio de sua parte! A culpa é dessa
entidade, a um só tem po deliciosa e repugnante, soberana e envilece -
dora que cham am os linguagem . A vida da linguagem é, por um lado,

551
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

contínua degeneração das palavras. Essa degeneração, com o quase


tudo na linguagem , se produz m ecanicam ente, ou seja, estupidam en­
te. A linguagem é um uso. O uso é o falo social por excelên cia, e a so­
ciedade é, não por acidente, mas p or sua mais radical substância, es­
túpida. E o hum ano desum anizado, “desespiritualizado” e transfor­
m ado em m ero m ecanism o5. O vocábulo “cético ” é um term o técnico
cunhado na Grécia na m elhor época de sua inteligência. C om ele fo­
ram denom inados certos hom ens trem ebundos que negavam a possi­
bilidade da verdade, primordial e básica ilusão do hom em . Não se
trata, portanto, sim plesm ente de pessoas que “não acreditavam em
nada”. Sem pre e em todas as partes existiram m uitos hom ens que “não
acreditavam em nada”, precisam ente porque “não se indagavam ” so­
bre nada, e porque viver era para eles um sim ples se deixar ir de um
m inuto para o seguinte, em puro abandono, sem reação íntim a nem
tom ada de atitude ante nenhum dilem a. Acreditar num a coisa supõe
um ativo não acreditar em outras e isso, por sua vez, im plica ter-se
questionado sobre muitas coisas em com paração com as quais senti­
mos que outras são “inquestionáveis” - por isso acreditam os nelas.
Eis por que falo entre aspas desse tipo de h om em , que existe e sem ­
pre existiu, que “não acredita em n ad a”. Dou a entender com isso que
é inadequado qualificar assim seu estado de espírito, porque nele não
se dá um efetivo não-acreditar. Essa personagem nem acredita nem
deixa de acreditar. Acha-se a sotavento de tudo isso, não “engata”
com a realidade nem com o nada. Existe em vitalício coch ilo. Para ele
as coisas nem são nem deixam de ser, e por isso não sofre o baque de
acreditar ou não nelas6. Atualm ente esse hum or cle vital em botam en-

5. A prim eira vez que expus publicam ente essa idéia da sociedad e, base de uma
nova sociologia, foi num a conferência dada em Valladolid em 1 9 3 4 , co m o título “O
hom em e a gente”. Aventuras sem n úm ero me im pediram de publicar até hoje o livro
que, com a m esm a epígrafe, deve exp o r toda a m inha doutrina sobre o social [ver El
h o m b r e y la g en te. E m O bras co m p leta s, tom o V IIJ.
6 . É claro que o h om em está sem pre em inum eráveis cren ças elem entares, da
m aioria das quais não se dá conta. Ver sob retud o m eu estudo Id eas y creen cias ( O bras
com pletas, t. V). O tem a da não crença que o texto acim a aborda refere-se ao nível de as­
suntos hum anos patentes sobre os quais os hom ens falam e discutem .

5 5 2
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a sset

lo é cham ado “ceticism o” por um a degeneração da palavra. Um grego


nao conseguiria entender esse em prego do vocábulo porque o que cie
cham ava de “céticos” - sk e p tik o í- eram para ele hom ens terríveis. Ter­
ríveis não porque “não acreditassem em nada” - longe disso! mas
porque não deixavam você viver; porque vinham ao seu encontro e
extirpavam -lhe a crença nas coisas que pareciam m ais certas, m eten ­
do na sua cabeça, com o afiados aparelhos cirúrgicos, uma série de ar­
gum entos rigorosos, con cisos, de que não havia m aneira de se safar. E
isso im plicava que esses h om en s tivessem executado previamente em
si m esm os a própria operação, sem anestesia, em carne viva - tives­
sem se “desacreditado” conscienciosam ente. A lém disso e por fim, ti­
nham, antes m esm o disso, se em penhado tenazm ente em fabricar es-
^es utensílios cortantes, esses “argum entos contra a verdade” com que
praticavam sua tarefa de am putação. O nom e revela que os gregos
viam o cético com o a figura m ais oposta a esse hom em sonolento que
se abandona e se deixa ir pela vida. C ham avam -no de “o investiga­
dor”, e com o tam bém esse nosso vocábulo está com a fama em baixa,
direm os mais exatam ente que o cham avam de “o perscrutador". O fi­
lósofo, por sua vez, era um hom em de extraordinária atividade m en ­
tal e m oral. Mas o cético era-o m uito m ais, porque enquanto aquele
se extenuava para chegar à verdade, este não se contentava com isso
e continuava, continuava pensando, analisando essa verdade até m os­
trar que era vã. É por isso que além do sentido básico de “perscruta­
d or” ressoam na palavra grega conotações com o “hom em hiperativo”,
“h eró ico ”, mas com m uito de “herói sinistro”, “incansável” e, portan­
to, “fatigante”, com o qual “não há o que fazer”. Era a furadeira h u m a­
na. N ote-se que a voz “cético ” só posteriorm ente passou a denom inar
uma escola filosófica, um a doutrina - prim eira degeneração sem ânti­
ca do term o7. O riginariam ente significou a ocu pação vocacional e in-

7. Razão disso: aquele que é cético à m aneira de e p o r q u e pertence a uma escola,


já o é p o r recepção, não por p rópria criação e é, p ortan to, um m odo de ser cético “se­
cu n d á rio ”, habitualizado e, em con seqü ência, mais ou m enos deficicm e e inautêntico.
Paralelam ente e p or razões não iguais m as análogas, a palavra vai perdendo vigor signi-
ficante. A lingüística tradicional co n h ece o fenôm eno em sua m anifestação mais exter­
na e fala de vocábulos fo r te s e f r a c o s , ainda em relação a um vocábu lo, de seus sentidos

553
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

coercível de certos hom ens determ inados, ocupação inaudita, que


ninguém antes tinha exercido, que ainda não tem, por isso m esm o, n o­
me estabelecido e que é preciso cham ar pelo que os vem os fazer: “pers­
crutar” as verdades, ou seja, esquaclrinhá-las mais a fundo que os de­
mais, questionar as coisas ali onde o filósofo acredita ter chegado, com
seu esforço, a torná-las inquestionáveis.
C onste, portanto, que o verdadeiro cético não encontra seu ceti­
cism o no berço e doado, com o o hom em contem porâneo. Sua dúvida
não é um “estado de espírito”, m as uma aquisição, um resultado a
que se chega em virtude de um a constru ção tão laboriosa com o a
mais com pacta filosofia dogm ática.
Nas gerações anieriores à atual - não precisem os agora desde
quando nem por quê - padeceu-se um a depressão do que Platão ch a­
mava “ânsia pelo Ser”, ou seja, pela verdade. Houve, sim , enorm e e
fecunda “curiosidade” - daí a expansão e o extraordinário refinam en­
to nas ciências - , mas faltou o im petuoso afã de esclarecer os proble­
mas radicais. Um destes é o da verdade e seu correlato, o problem a da
autêntica Realidade. Aquelas gerações viveram recostadas na m aravi­
lha progressiva das ciências naturais que term inam em técnicas. Dei-
xaram -se levar de trem ou de carro. Mas note-se de passagem que
desde 1 8 8 0 acontece que o hom em ocidental não tem um a filosofia

mais ou m en os fortes, fracos, "vazios” (gram ática chinesa) etc. Mas é claro que se a lin­
guagem é p or um lado degeneração dos vocábulos, tem necessariam ente de ser, por
outro, p ortentosa geração. U m vocábulo qualquer carreg a-se subitam ente de um a sig­
nificação que ele nos d iz co m um a plasticidade, relevo, clareza, sugestividade, ou,
com o queiram cham á-la, superlativa. Sem esforço nosso para vitalizar seu sentido, d es­
carreg a sobre nós sua carg a sem ântica co m o um a faísca elétrica. É o que ch am o de “a
palavra em form a” que age com o um a incessante revelação. É perfeitam ente factível
p ercorrer o dicionário, tom ar o pulso de energia sem ântica de cada vocábu lo num a de­
term inada data. A clássica com p aração das palavras com as m oedas é verídica e fértil. A
causa de sua hom ologia é idêntica: o uso. Bem podiam os lingüistas realizar algumas
investigações sobre esse tem a. Não só en con trarão m uitos fatos interessantes - disso já
sabem . co m o tam bém novas categorias lingüísticas até agora despercebidas. Faz tem ­
po - m esm o se de lingüística sei quase nada - que procuro, ao acaso de m eus tem as, ir
sublinhando acertos e falhas da linguagem , porque, m esm o não sendo lingüista, talvez
tenha algum as coisas a dizer que não são totalm ente triviais.

5 5 4
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a sset

vigente. A última foi o positivism o. Desde então só esse ou aquele h o­


mem, esse ou aquele m ínim o grupo social têm filosofia. O certo é que
desde 1 8 0 0 a filosofia vai deixando progressivam ente de ser um co m ­
ponente da cultura geral e, portanto, um fator histórico presente. Pois
bem, isso nunca tinha acon tecid o desde que a Europa existe.
Só quem adota a atitude de questionar de forma precisa e pe­
rem ptória as coisas - se, em definitivo, são ou não são - pode viver
um gen u ín o acreditar e não-acreditar. Essa m esm a astenia no ataque
ao problem a da verdade nos im pede tam bém de ver no erro um se-
riíssim o problem a. Basta insinuar o im possível que é u m erro absolu­
to. E ste é tão incom preensível que nos faz cair redondo em outro ar­
repiante enigma: a insensatez. O problem a do erro e o da dem ência se
im plicam m utuam ente.
Tanto é assim que quando o passado filosófico, em seu segundo
aspecto, nos apareceu com o o arsenal e o tesouro dos erros, pensa­
m os apenas parcialm ente o con ceito do “erro p recioso”, do erro trans-
m utado em magnitude positiva e fecunda.
Um a filosofia não pode ser um erro absoluto porque este é im ­
possível. Aquele erro contém , portanto, algo de verdade. Mas, além
disso, m anifestava-se com o um erro que era preciso detectar, ou seja,
que à prim eira vista parecia uma verdade. O que evidencia que tinha
não pouco desta já que tão bem a suplantava. E se analisarm os m ais
de perto em que consiste a “refutação” - com o dizem nos sem inários
com um vocábulo horrendo - que uma filosofia execu ta sobre sua an­
tecessora, perceberem os que é obra nada parecida com uma eletrocu-
ção, em bora a fonética daquele vocábulo prom eta um espetáculo não
m en os aterrorizante. Ao fim, revela-se que não era erro por não ser
verdade, mas porque era um a verdade insuficiente. Aquele filósofo
an terior parou na série dialética de seus pensam entos antes do tem po:
não “continuou pensando”. O fato é que seu su cessor aproveita aque­
la doutrina, coloca-a em seu novo ideário e evita exclusivam ente o
erro de se deter. A coisa é clara: o anterior teve de se fatigar para ch e­
gar até um ponto - com o o aludido jog ad o r de xadrez; o sucessor,
sem fadiga, recebe esse trabalho já feito, apreende-o e, com novo vi­
gor, pode partir dali e chegar mais longe. A tese recebida não fica no

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H is t ó r ia da f il o s o f ia

novo sisiem a tal qual era no antigo, fica com pletada. Na verdade, tr;i-
ra-se de uma idéia nova e distinta daquela primeiro criticada e depois
inlegrada. Reconheçam os que aquela verdade m anca, comprovada
mente errada, d esap arece na nova con stru ção intelectual. Mas desapa­
rece porque é assimilada em outra m ais com pleta. Essa aventura das
idéias que m orrem não por aniquilam ento, sem deixar rastro, mas
porque são su peradas em outras m ais com plexas, é o que Hegel ch a­
mava de Aujhebung, termo que traduzo pelo de “absorção”. O absorvi­
do desaparece no absorvente e, por isso m esm o, ao m esm o tem po em
que é abolido, é conservado8.
Isso nos proporciona um terceiro aspecto do passado filosófico.
O aspecto de erro, com que p rim a fa c i e ele se apresentava para nós,
resulta ser uma m áscara. Agora a m áscara foi retirada e vem os os er­
ros com o verdades incom pletas, parciais ou, com o costum am os dizer,
“têm razão em p a r te .’’ portanto são p a rtes da razão. Poder-se-ia dizer
que a razão virou caco antes de o hom em com eçar a pensar e, por
isso, este tem de ir recolhendo os pedaços um a um e ju n tá-lo s. Sim-
mel fala de uma “sociedade do prato quebrado”, que existiu no final
do século passado na Alemanha. U ns am igos, em certa com em oração,
se juntaram para com er e na hora da sobrem esa decidiram quebrar
um prato e distribuir os pedaços entre si, cada um assum indo o com ­
promisso de ao m orrer entregar sua fração a outro dos amigos. Desse
m odo, os fragm entos foram chegando às m ãos do últim o sobreviven­
te, que pôde reconstruir o prato.
Essas verdades insuficientes ou parciais são experiências de
pensam ento que, em torno da Realidade, é preciso fazer. Cada uma
delas é uma “via” ou “cam inho” - m éthodos - pelo qual se percorre um
trecho da verdade e se contem pla um de seus lados. Mas chega um
ponto em que p or esse cam inho não se pode avançar mais. É forçoso
ensaiar um outro distinto. Para isso, para que seja distinto, tem de

8. A “ab sorção" é um fenômeno tão claro e reiterado que não oferece lugar a dú­
vida. Mas em Hegel é, além disso, um a tese ligada a todo seu sistema, e enquanto tal
não tem nada a ver co m o que foi dilo acim a, assim com o não se deve pensar na dialé­
tica hegeliana quando falei e venha a falar de “série dialética".

55f>
E p íl o g o d e J o sé O rtega y G a sset

k-var em con ta o prim eiro e, nesse senlido, é uma continuação da­


quele com m udança de direção. Se os filósofos antecessores já não ti­
vessem feito essas “experiências de pensam ento” o sucessor teria de
lazê-las e, portanto, ficar nelas e ser ele o antecessor. Dessa maneira,
,i série dos filósofos aparece com o um único filósofo que tivesse vivi­
do dois mil e quinhentos anos durante os quais teria “continuado a
pensar”. Nesse terceiro aspecto, o p assad o filosófico se revela para nós
com o a ingente m elodia de experiências intelectuais pelas quais o
homem foi passando.

QUARTO PENSAM ENTO

Esse filósofo que viveu dois mil e quinhentos anos pode-se dizer
que existe: é o filósofo atual. Em nosso presente com portam ento filo­
sófico e na doutrina que dele resulta, tem os em consideração e à vista
boa parte do que se pensou antes sobre os temas de nossa disciplina.
Isso equivale a dizer que as filosofias pretéritas colaboram com a n os­
sa, estão nelas atuais e vivazes.
Q uando pela prim eira vez entendem os uma filosofia ela nos sur­
preende pela verdade que contém e irradia - o que significa que por
ora, se não conhecêssem os outras, nos pareceria ser a própria verda­
de. Daí que o estudo de toda filosofia, mesmo para o m ais tarimbado
nesses encontros, é uma inesquecível ilum inação. C onsiderações u l­
teriores nos fazem retificar: aquela filosofia não é a verdade, e sim tal
outra. Mas isso não significa que fique anulada e invalidada aquela
prim eira impressão: a arcaica doutrina continua sendo “por ora” ver­
dade - entenda-se, um a verdade pela qual sempre se terã de passar no
itinerário m ental rumo a outra mais plena. E esta a que se chega é
mais plena porque inclui, absorve aquela.
Em cada filosofia estão todas as demais com o ingredientes, com o
passos que é preciso dar na série dialética. Essa presença será mais ou
m enos destacada e, talvez, todo um velho sistem a apareça no mais
m oderno apenas com o um vestígio ou um rudim ento. Isso é palmar e
formalmente assim se com pararm os uma filosofia posterior com as pre­
cedentes. Mas tam bém vice-versa: se tom arm os utna m ais antiga ve­
rem os, em filigrana, com o germ es, com o tênues perfis, ainda não en-

557
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

carnadas, m uitas das idéias posteriores - sempre que se leve em con


ta o grau de explicitação, de riqueza, de dimensões e distinções próprio
do tem po em que aquela filosofia m ais velha foi pensada. Não pode­
ria ser de outra forma. C om o os problem as da filosofia são os radicais,
não existe nenhum a em que já não estejam todos. O s problem as radi­
cais estão inexoravelm ente ligados uns aos outros, e puxando por
qualquer um saem os restantes. O filósofo sempre os vê, m esm o que
seja sem consciência clara e separada de cada um. Caso não se queira
cham ar isso de ver, digamos que, cego, apalpa-os. É por isso que - ao
contrário do que o leigo pensa - as filosofias se entendem m uito bem
entre si: são uma conversa de quase três m ilênios, um diálogo e uma
disputa con tín u os num a língua com um que é a própria atitude filosó­
fica e a presença dos m esm os problem as bifrontes.
C om isso vislum bram os um quarto aspecto do passado filosófi­
co. O anterior fazia com que o víssem os com o a m elodia de experiên­
cias intelectuais pelas quais, perante certos temas, o hom em tem de ir
passando. Dessa form a, o pretérito ficava afirm ado, ju stificad o. Mas
ficava ali - na região do sido. Em balsam ado m as, então, m orto. Era
uma visão arqueológica. Mas agora percebem os que essas experiên­
cias realizadas têm de ser realizadas sempre de novo, ainda que com a
benéfica facilidade de tê-las recebido já realizadas. Não ficam , portan­
to, atrás de nós, já que nossa filosofia atual é, em grande parte, a revi­
vescência no hoje de todo o ontem filosófico. Em nós, as velhas idéias
recobram eficácia sempre nova e assim subsistem . Em vez de repre­
sentarm os o passado filosófico com o L im a linha horizontalm ente es­
tendida no tem po, o novo aspecto nos obriga a figurá-lo em linha ver­
tical porque esse passado continua atuando, gravitando no presente
que som os. Nossa filosofia é tal com o é porque está m ontada sobre os
om bros das anteriores - com o o núm ero da “torre h um an a” que a fa­
mília de acrobatas faz no circo. Ou, se preferirem outra figura, pode-se
ver a hum anidade filosofando com o um longuíssim o cam in h o que é
forçoso percorrer século após sécu lo, mas um cam inho que, à medida
que vai se fazendo, vai se enrolando sobre si m esm o e, carregado no
dorso do cam inhante, de cam inho se transform a em equipagem .

558
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a sset

Isso que acontece com o passado filosófico não é senão um exem ­


plo do que acontece com todo pretérito hum ano.
O passado histórico não é passado sim plesm ente por não estar
mais no presente - isso seria uma d en om in ação extrínseca mas
porque se passou com outros hom ens dos quais tem os memória e, por
conseguinte, continua se p assan d o conosco que o estam os continuam en­
te repassando.
O hom em é o ú nico ente feito de passado, que consiste em p as­
sado, em bora não só em passad o. As outras coisas não o têm porque
são apenas con seqüência do passado: o efeito deixa para trás e de fora
a causa de que em erge, fica sem passado. Mas o hom em o conserva
em si, o acum ula, faz com que, dentro dele, isso que foi continue
sendo “na forma de tê-lo sid o”9. Esse ter o passado que é conservá-lo
(m otivo pelo qual o especificam ente hum ano não é o cham ado in te­
lecto, m as a “feliz m em ória”) 10 equivale a um ensaio, m odestíssim o
sem dúvida, mas, enfim , um ensaio de eternidade - porque com isso
nos assem elham os um p ou co a Deus, já que ter no presente o passa­
do é um a das características do eterno. Se, no m esm o sentido, tivés­
sem os tam bém o futuro nossa vida seria um cabal arrem edo da eter­
nidade - com o diz Platão do próprio tem po co m m uito m enos ra­
zão. Mas o futuro é precisam ente o p roblem ático, o incerto, o que
pode ser ou não ser: não o tem os exceto na m edida em que o prog­
n ostiqu em os. Daí a ânsia perm anente no hom em de adivinhação, de
profecia. Durante a época m oderna foi dado um grande passo na fa­
culdade de adivinhar: é a ciên cia natural que prediz com rigor m u i­
tos acon tecim en tos futuros. E é curioso nbtar que os gregos não ch a­
m avam de con h ecim en to sensu stricto um m étodo intelectual com o
nossa ciên cia física que, para eles, con ten ta-se com “salvar as aparên­
cias” - Tà%(paivó(.ieva açc^eiv m as acabaram por cham á-la 'd ivin a-
tio artificiosa”. Vejam n o tratado De divinatione de Cícero a definição

9. Sobre essa categoria da razão histórica que é o “ser n a forma de te-lo sid o ", ver
m eu estudo H istoria corno sistem a. IO bras com p letas, t. VI.]
10. Ver o P rólogo ao livro d o Conde de Yebes. [O bras com p letas, t. VI,]

559
1
: llST Ó R IA DA FILO SO FIA

desta provavelm ente tom ada de P ossidônio e digam se não é a deli-


nição da ciên cia física ".
O hom em pode adivinhar cada vez mais o futuro e, portanto,
“eternizar-se” mais nessa dim ensão. Por outro lado, pode ir se apro­
priando cada vez mais de seu passado. Quando findem as lutas pre­
sentes, é provável que o hom em , com fúria e ânsia até agora desconhe­
cidas, se ocupe de absorver passado em proporções e com vigor e exa­
tidão nunca vistos: é o que cham o e anuncio faz tantos anos com o au ­
rora da ra zão histórica.
O hom em acha-se, portanto, m uito próxim o da possibilidade d
aum entar gigantescam ente seus quilates de “eternidade”. Porque ser
eterno não é perdurar, não é ter estado no pretérito, estar no presente
ou continuar estando no futuro. Isso é apenas perpetuar-se, pereni-
zar-se - um a lida, afinal de contas, fadigosa, porque significa ter de
percorrer todo o tem po. Mas eternizar-se é o contrário: é não se m over
do presente e conseguir que passado e futuro se fadiguem eles m es­
mos em vir para o presente e preenchê-lo: é recordar e prever. É, por­
tanto, de certo m od o, fazer com o tem po o que Belm onte conseguiu
fazer com o touro; em vez de ele se azafamar em torno do touro co n ­
seguiu que o touro se azafamasse em torno dele. A pena é que o touro
do Tempo, no que nos cabe presum ir concretam ente, sem pre term i­
nará por escornar o H om em que se atarefa para eternizar-se.
A “eternidade” do H om em , m esm o essa efetivam ente possível, é
tão-som ente provável. Tem sem pre de dizer para si m esm o o que
aquele cavalheiro borguinhão do século XV escolheu com o divisa:
Rien ne m'est sûr qu e la chose incertaine: s ó tenho certeza da incerteza.
Ninguém nos garante que o espírito científico persistirá na h um an i­
dade, e a evolução da ciência está sem pre am eaçada de involução, de
retrocesso e até de desvanecim ento.
Nossa restrospecção tornou m anifesto que é indiferente qu alificar o
passado filosófico com o conjunto de erros ou com o conjunto de verdades por-

11. D c D ivinationes 1, XL1X (cito da edição Didot por não ter outra à m inha dispo­
sição). Parece-m e que o term o “divinatio artificiosa” não é encontrado antes do 1, LVI.

560
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a sslt

que, com efeito, tem tanto de um com o do outro. Qualquer dos dois
luízos é parcial e, em vez de brigar, mais vale, no fim das com as, se ju n -
larem e darem as mãos. A série dialética que percorrem os não e, cm
seus pontos temáticos, uma seqüência de pensamentos arbitrários ou
justificados apenas pessoalm ente, mas o itinerário mental que terá de
cum prir todo aquele que se ponha a pensar a realidade “passado da li-
losofia”. Não é arbitrário nem é nossa a responsabilidade de que, par­
tindo de sua totalidade, a primeira coisa que percebam os seja a m ulti­
dão de opiniões contraditórias e, portanto, errôneas, que em seguida
vejamos com o cada filosofia evita o erro do precursor e assim o apro­
veita, que mais tarde nos dem os conta de que isso seria impossível se
aquele erro não fosse em parte verdade e, por fim, com o essas partes da
verdade se integram ressuscitando na filosofia contem porânea. Assim
com o o experim ento corriqueiro graças ao qual o físico verifica qrie as
coisas ocorrem de um determ inado m odo, e que ao ser repetido em
qualquer laboratório idôneo dá o m esm o resultado, essa série de passos
m entais se impõe a qualquer um que medite. Fixar-se-á ou se deterá
mais ou m enos em cada articulação, mas todas são estações nas quais
seu intelecto p a ra rá um instante. Com o veremos, a função do intelecto
é parar e, ao fazê-lo, parar a realidade que o hom em tem diante de si.
Na operação de percorrer a série, tardará mais ou m enos, segundo seus
dotes, segundo sua disposição física, segundo o estado clim ático, se­
gundo goze de repouso ou tenha desgostos12. A m ente adestrada costu ­
ma percorrer em grande velocidade uma série dialética elementar com o
a exposta. Esse adestramento é a educação filosófica, nem mais nem

12. Aproveito esse caso para um a intervenção pedagógica dirigida a qualquer j o ­


vem inexperiente - ser jov em é ser profissionalm ente inexperiente - que me leia. É s u ­
m am ente provável que ante as últim as frases d o texto sua reação tenha sido a seguinte:
"Tudo isso é óbvio e trivial. Já sabem os que nào se está do m esm o jeito todos os dias!
P ortan to, o autor, ao dizê-lo e acu m u lar expressões para dizer o m esm o - o 'nào se sen ­
tir b em ’ - . se entrega à 'retórica'. De qualquer m odo, aí não há nada que seja um pro­
blem a filosófico." Lim ito-m e a responder que ao chegar à p. (a indicação tia página está
em b ran co no m anuscrito, e não parece encontrar-se entre as que o au tor chegou a es­
crever) lem bre-se dessa sua reação, porque é possível que então sinta um choque, m ui­
to útil para que aprenda a ler os textos filosóficos.

561
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

menos misteriosa que a ginástica ou que o “cultivo da m em ória”. Qual­


quer um pode ser filósofo, basta querer - entenda-se, querer exercitar-
se, seja rico ou pobre, já que a riqueza quase estorva mais que a pobre­
za13. Ao entenderm os que o passado da filosofia é, na realid ad e, indife­
rente a seu aspecto de erro e a seu aspecto de verdade, nossa conduta
deverá ser a de não aban d on ar nenhum e integrá-los.
Uma verdade, se não for com pleta, é algo em que não se pode fi­
car - em que não se pode “estar”. Lem brem -se do exem plo inicial do
esferóide e o espaço em torno dele. Basta insistir em pensar bem o es-
feróide que ele nos lança para fora e nos dirige para o “espaço em tor­
n o”. Por isso, faz m uito sentido o que nos diz por si m esm a, se souber­
m os ouvi-la, a expressão corrente do idiom a espanhol: “X está en un
error”. Porque ela subentende que o erro é precisam ente “aquilo em
que não se pode estar”H. Caso se pudesse estar no erro não teria sen­
tido o esforço de buscar a verdade. E, com efeito, o m esm o idiom a es­
panhol usa outra expressão conexa em que manifesta o que arqueia
estava subentendido: “X caiu no erro d e ...” O estar no erro é, portan­
to, um cair - o m ais oposto ao “estar”. O utras vezes se dá a essa pro­
blem ática “estância” no erro um viés tam bém negativo m as de caráter
m oral. Não só se cai com o “se com ete o erro ...”, responsabilizando o
caído por seu cair.
Com o as verdades pretéritas15 são incom pletas não se pode estar
nelas, e só p o r isso, são erros. A existência ou não de erros de outro tipo,

13, Ver em meu estudo En lorn o a G alileo co m o a riqueza, a superabundância de


m uitos bens é a causa das grandes e, às vezes, terríveis crises históricas. [O bras com p le­
tas, t. V]
14. A tftulo de esclarecim ento: essa exp ressão envolve uma intenção reprovató-
ria; X faz algo que, p o r u m a razâo ou outra, não se pode fazer - estar no erro. Pertence
a uin tipo de expressões com o: X é um traidor, Y m en te, Z confunde as coisas - que,
em bora sejam positivas gram aticalm ente, enunciam negatividades. O negativo aparece
n o predicado, positivo tam bém enquanto forma gram atical, mas que o en u n ciad o r su ­
põe e admite ser um a realidade negativa inquestionável.
1 5. Falar de “verdade pretérita” parece indicar que a verdade tem d ata, que é da­
tada, quando a verdade sem pre foi definida co m o algo alheio ao tem po. Discutiremos
isso mais adiante; p or ora gostaria apenas de observar que não se trata de um lapsus
verbal e que se é um crim e não é im prem editado.

562
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a sset

i .10 é, de erros que nada m ais são senão erros, cujo erro não consiste
meramente em seu caráter fragm entário, mas em sua matéria c su bs­
tância, não é uma questão que precisem os elucidar nesse m om ento.

Interrom pam os aqui esta série dialética não porque, a rigor, não
deveríamos continuá-la, mas porque no âm bito desie epílogo não
cabe dizer m ais e o que foi dito é o bastante. Mas o erro não é, confor­
me todo o acim a discutido, interrom per uma série dialética, não
"continuar pensando”? Seria se a déssem os por com pleta, mas o que
fazemos é sim plesm ente dá-la por bastante para o horizonte e o nível
de tem as que vamos abordar. É bem óbvio que nesta série, com o no
olhar que a iniciou, não se tentou outra coisa senão uma enorm e ma-
croscopia. Mas é claro que restam nessa mesm a direção do pensa­
m ento inum eráveis coisas por dizer. Mais ainda, o que foi enunciado
é apenas o prim ário, e o prim ário é sempre o mais tosco e grosseiro,
em bora seja forçoso dizê-lo e não seja lícito saltá-lo16.

16. N em o espaço em que devo me estender nem a finalidade didática do livro


perm item desenvolvim entos m ais am plos deste tema. Ao falar agora imagino leitores
ainda não m uito adestrados nos m odos da Filosofia. Para facilitai-lhes a tarefa dei a esta
prim eira série didática uma expressão e tam bém alguns destaques tipográficos que
acu sam enfaticam ente as articulações do pensam ento ao avançar em sua progressiva
com p licação ou síntese. No restante destas páginas abandono tal procedim ento a lim
de cam in har co m m ais pressa por pressupostos e deixando tácitos m uitos dos passos
interm ediários que o pensam ento dá e o leitor pode suprir.
M as, sem pre que possível, co n vém evitar para o leitor a incôm od a depressão re­
sultante de anunciar-lhe vagam ente que coisas mais interessantes, mais substanciosas
ficam tácitas sem perm itir que veja, fosse com o am ostra, algum perfil con creto do si­
lenciado. Mas co m o isso, por sua vez, seria impraticável na m aioria dos casos, sob pena
de expressar-se herm eticam ente m ultiplicando o laconism o pelo tecnicism o, apenas
cabe, aqui e acolá, por meio de exem p los, apresentar listas de tem as precisos que foram
deixados intactos. C om isso o leitor ganha confiança no autor, lhe dá crédito e se c o n ­
vence de que esses anúncios de profundidades taciturnas e de rigores postergados são
coisas efetivas. Em sum a, convém a am bos - leitor e au tor - que o calar deste não seja
m alignam ente entendido co m o vazio, m as que se transluza mais cheio que seu dizer.
Por isso agrego aqui alguns dos m uitíssim os tem as que a série apenas iniciada
neste capítulo encontraria mais adiante se prosseguisse. Escolh o-os entre os que p o­
dem ser enunciados em term os m uito breves, ser entendidos sem n enhum a preparação
especial, m as que, adem ais, são problem as abertos cuja solução exigiria longas investi­
gações, até m esm o de caráter em pírico, de fatos e “dados":

5 63
H is t ó r ia d a f i l o s o f ia

Em vez d.sso vam os agora - depois de uma breve reflexão sobre


o que acabam os de fazer, que nos renderá um im portante teorema
ontológico - inaugurar, partindo do m esm o assunto (o passado filo­
sófico), outra série dialética com um a rota m uito diferente.

I o O que havia, antes do início da filosofia, co m o ocupação hom óloga no h o­


m em ? P orian to, não seria a filosofia, p or sua vez, nada além de um passo dado pelo
pensam ento desde outro an terior que não seria filosofia? Isso significa que toda a filo­
sofia, desde sua origem até esta data, apareceria co m o mero m em bro de um a série “dia­
lética" enorm em ente m ais am pla que ela. Sobre esse tem a, que é indispensável, terei de
dizer algo mais adiante.
2 ? Por que a filosofia co m eço u , q uando e onde com eçou .
3 ? Se esse co m e ço , por suas con dições co n cretas, impós à filosofia lim itações m i­
lenares de que necessita se libertar.
4 ? Por que em cad a época a filosofia pára em determ inado ponto.
5 o Se na melodia de experiências intelectuais que é o passado filosófico não fal­
taram determ inadas experiências. Isso teria para m im a especial im portância de fazer o
leitor reparar que o dito no texto não d á p o r su posto que o processo histórico da filoso­
fia foi “co m o devia ser’’, que não haja nele im perfeições, buracos, falhas graves, im p or­
tantes ausências etc. Para Hegel, o processo h istórico - o hum ano geral e, em p articu ­
lar, o filosófico - foL perfeito, o que “tinha de ser", o que “devia ser”. A história, afirma
ele, é “racional”, m as, bem entendido, essa “racionalidade" que, segundo ele, a história
tem , é um a “razão” não histórica, e sim, co m ligeiras m odificações, a que desde Aristó­
teles se con hecia e desde então foi reconhecida co m o o oposto à historicidade: o inva­
riável, o “e te m o ”. Penso que é urgente inverter a fórm ula de Hegel e dizer que, m uito
longe de a história ser “racion al”, acontece que a razão ela m esm a, a autên tica, é histó­
rica. O conceito tradicional de razão é abstrato, im preciso, utópico e u crô n ico . Mas
co m o tudo que é tem de ser con creto se h á razão, esta terá de ser a “razão co n creta”.
(Ver do autor H istoria c o m o sistem a, 1 9 3 5 , e, co m o p ré-form ulação da idéia, El tem a de
nuestro tiem p o, de 1 9 2 3 . Algo sobre a historicidade da razão em E n sim ism am ien toy alte-
ración , 1 9 3 9 [Buenos A ires], e em Prólogo a Veinte an os d e c a z a m ay or do C ond e de Ye-
bes, 1 9 4 1 .) |O bras com p letas, tom os VI, III. V e VI. O trabalho E n sim ism a m ien to y alte-
ración é o capítulo I do livro El h o m b r e y la g en te, em O bras com pletas, tom o VII.|

564
II. OS A S PEC TO S E A COISA IN TEIRA

Se suspenderm os por uns m om entos nossa ocu pação com o pas­


sado filosófico e, em seu lugar, refletirm os sobre o que se passou co ­
n osco em relação a ele ao desenvolverm os a série dialética anterior,
poderem os obter um a generalização im portante. Esse passado nos foi
ap resen tad o sob d iferentes asp ectos, cada um d os quais ficou for­
m ulado por nós no que costum am os cham ar de “conceito, noção, idéia
de uma coisa”. Se fosse por gosto, teríam os nos contentad o com um,
com o prim eiro. Era o mais côm odo. Mas a realidade que tínham os na
nossa frente - o passado filosófico - não nos deixou e nos obrigou a
nos m obilizarm os, a transitar de um aspecto a outro e, paralelam en­
te, de um a “id éia” a outra. De quem é a culpa de que fosse inevitá­
vel nos darm os a todo esse trabalho: a realidade, a coisa ou nós, nossa
m ente? Vejamos.
Se o leitor olhar com os olhos de sua cara a superfície da mesa
ou a parede que talvez agora tenha diante de si e tam bém esta página
do livro e insistir por um tem pinho em sua inspeção ocular, notará
uma coisa tão banal quanto estranha. Notará que o que efetivamente
vê da parede num segundo m om ento não é totalm ente a m esm a coi­
sa que viu no prim eiro. E não é que a parede, em tão breve espaço de
tem po, tenha, por si, m udado. Mas pontos, form as, pequenas racha­
duras, m inúsculas m anchas, matizes de cor que prim eiro não se viam
se revelam no segundo m om ento - onde revelar pode ser entendido
com o em fotografia. Com efeito, surgem de repente e, no entanto, com
o caráter de já estarem ali antes, mas despercebidos. Se o leitor tivesse
se obrigado - o que é praticam ente impossível - a form ular em con­

565
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

ceitos e, portanto, em palavras o que viu em cada um desses dois m o­


mentos notaria que as duas fórm ulas ou conceitos da parede eram di­
ferentes. A cena se reproduziria indefinidam ente se continuasse inde­
finidamente olhando a parede: esta, com o um m anancial inesgotável
de realidade, iria “m anando” conteúdo sem pre im previsto que iria, a
cada m om ento, se revelando. A coisa, nesse exem plo, perm aneceu
quieta: é nosso olho que se m oveu dirigindo o eixo visual ora para
uma coisa, ora para outra. E a cada disparo de olhar que a pupila fa­
zia, a parede, ferida em suas entranhas, deixava escapar novos aspec­
tos de si mesma. Mas mesm o sem m over a pupila teria ocorrido o
mesmo, porque a p a red e tam bém fa z m over-se nossa atenção. No pri­
meiro instante, teríam os nos fix a d o em determ inados com ponentes,
no segundo, em outros, e a cada fix a çã o nossa a parede teria corres­
pondido com outra fisionomia. Trata-se de um fenôm eno de valor pa­
radigmático que, às vezes, é com ovedor. Se tomarmos qualquer folha
de uma árvore e a olharm os com insistência, veremos prim eiro ape­
nas sua forma geral e depois ela m esm a; a folha vai solicitando nosso
olhar, m ovendo-o, itinerando-o sobre sua superfície, guiando-o de
modo tal que se revela a nós a m aravilhosa estrutura de graça geom é­
trica, “construtiva”, arquitetônica, incrível que formam suas inum erá­
veis nervuras. Para m im , essa experiência impremeditada foi inesque­
cível - o que G cethe chamava um “protofenôm eno” - e a ela devo, li­
teralm ente, toda uma dimensão de m inha doutrina: que a coisa é o
mestre do h om em ; sentença de conteúdo m uito mais grave do que ago­
ra se possa su por1. Mas tenho de acrescentar isto: nunca acabei de ver
um a folha.
Quem sabe seja um exem plo mais claro proporm o-nos a ver uma
laranja. Primeiro vem os dela apenas uma fa c e , um hem isfério (aproxi­
m adam ente) e em seguida temos de nos m over e ir vendo hem isférios
sucessivos. A cada passo, o aspecto da laranja é outro - outro que se
articula com o anterior quando este já desap areceu , de m odo que n u n ­

1. Ver uma insinuação dela em meu ensaio La "Filosofia d e la historia" d e H egel y


la historiologia, 1 9 2 8 . [O bras com pletas, i. 1V.|

566
E p íl o g o d e J o sh O rtega y G a sset

ca vem os ju n ta toda a laranja e tem os de nos contentar com visões su ­


cessivas. Neste exem plo, a coisa exige ser vista com pleta com tal vee­
m ência que nos puxa e nos faz m aterialmente girar em torno dela.
Não há dúvida de que é a laranja, a realidade, que, por sua vez,
é causa de que passemos de um aspecto a outro, que nos obriga a nos
deslocarm os e cansarmos. Mas é claro que faz isso porque, a cada m o­
m ento, só podem os olhá-la de um ponto de vista. Se fôssemos ubí­
quos e, a um só tempo, pudéssem os vê-la de todos os pontos de vis­
ta, a laranja não teria para nós outros “aspectos diversos”. De chofre a
veríam os inteira. Também som os, pois, causadores de nosso próprio
trabalho.
Nosso m ovim ento de translação em torno da laranja para ir ven­
do-a, se não fosse mudo, seria um exem plo cabal de série dialética. A
condição de nosso pensar, devido à qual costum a ser cham ado de
“discursivo”2, ou seja, que corre a saltos descontínuos, faz com que
tenham os de percorrer, passo a passo, fazendo paradas, a realidade. A
cada passo captam os uma “vista” dela e essas vistas são, por um lado,
o sensu stricto intelectual, os “conceitos” ou “n o çõ es” ou “idéias”, por
outro, o intuitivo, os “aspectos” correlativos da coisa. Esse percorrer
supõe tem po e cada hom em dispõe de pouco e a humanidade não dis­
pôs até aqui de mais de, aproxim adam ente, um m ilhão de anos, m o ­
tivo pelo qual não são fabulosam ente muitas as “vistas” que até agora
foram captadas da Realidade. Haverá quem diga que se poderia ter
aproveitado m elhor o tem po porque é evidente que se perde m uito
tem po3. É verdade, mas para corrigir isso seria preciso, entre outras
coisas, averiguar primeiro por que a história perde tanto tem po, por
que não anda mais depressa, por que “os m oinhos dos Deuses m oem
tão devagar", com o já sabia H om ero-'. Em sum a, é preciso explicar
não só o tempo histórico, mas seu tem po diverso, seu ritardando e seu
accelera n d o , seu adagio e seu allegro cantabile etc. Do que resulta a ex ­

2. O term o é confuso porque no pensar há um lado intuitivo e ouiro “lógico" ou


conceituai. Mas não convém en trar aqui nesse assunto.
3. Ver nota ( 1 1 ), p. 5 6 0 .
4. Ilía d a, IV, 1 6 0 .

567
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

travagante mas evidente conseqüência de que, além de os hom ens le ­


rem perdido todo esse tem po, têm de gastar outro tanto se dedicando
“à la recherche du tem ps perdu”’.
A presente ocasião não é oportuna para tentá-lo. O problema
agora é que, a cada m om ento, tem os da realidade apenas um certo
núm ero de vistas que vão se acum ulando. Estas vistas são, por sua
vez, “aspectos da co isa ”.
O “aspecto” pertence à coisa, é - para dizê-lo cruam ente - um pe­
daço da coisa. Mas não é só d a coisa: não existe “aspecto” se alguém
não olha. É, portanto, resposta da coisa a um olhá-la. Colabora nela o
olhar porque é este que faz com que na coisa brotem “aspectos”, e
com o esse olhar tem em cada caso uma índole peculiar - olha em cada
caso de um ponto de vista determ in ado - , o “aspecto” da coisa é insepa­
rável do vidente. Mas, permitam que eu insista: com o, no final das
contas, é sempre a coisa que se m anifesta para um ponto de vista em
algum de seus aspectos, estes lhe pertencem e não são “subjetivos”.
Por outro lado, dado que são som ente resposta à pergunta que todo
olhar faz, a um a inspeção determ inada, não são a coisa m esm a, mas
apenas seus “aspectos”. Com um m odism o de sobra vernacular, diría­
mos que o “aspecto” é a “cara que [a realidade] tem". Ela tem mas tem
para nós6. Se coubesse integrar os incontáveis “aspectos” de uma coisa,
teríamos ela m esm a, porque a coisa é a “coisa inteira”. Com o isso é im ­
possível, tem os de n os contentar em ter dela apenas “aspectos” e não a
coisa mesma - com o acreditavam Aristóteles ou Santo Tomás.
O que por parte da coisa é “asp ecto”, por parte do hom em é a
“vista” captada da coisa. Costum a ser cham ada de “idéia” (conceito,

5. Tam bém aqui o leitor, que não costum a v er as coisas de que o au tor está falan­
d o, m as ficar de f o r a olh an do as palavras co m que fala, com o os sapatos de um a vitri­
ne, julgará com grande petulância que isso não passa de um jogo de palavras. C once-
do-lhe um prazo até a p róxim a publicação de u m livro m eu, onde en contrará um
exem plo concretíssim o e conciso de co m o o acim a dito é literalmente verdade e, em
certas ocasiões, não há o u tro remédio senão ocupar-se de “buscar o tem po perdido”
por si m esm o ou por o u tro , por urna nação ou pela hum anidade inteira.
6 . E, na verdade, poder-se-ia, em vez de “asp ecto ”, dotar co m toda form alidade o
vocábulo “ca ra ” de valor term inológico em ontologia.

568
E p íl o g o d e J o sé O rtega y G a sset

noção etc.). Mas este é um term o que hoje só tem significado psicoló­
gico, e o fenôm eno radical que agora nos ocupa não tem nada de psi­
cológico. É claro que para que a coisa nos ofereça seus “aspectos” e -
o que dá na m esm a, só que considerado desde o “su je ito ” que tem a
coisa diante de si - o hom em possa captar dela suas “vistas”, todos os
aparelhos corporais e psíquicos têm de iuncionar. A psicologia, a físi­
ca e a fisiologia estudam esses funcionam entos, m as isso quer dizer
que essas ciências com o que partem de algo prévio, que está aí antes
delas e que é causa de sua existência, do fenôm eno prim ário e radical
que é a presença da coisa ante o hom em na forma de “aspectos” ou
“vistas”. O funcionam ento desses aparelhos e m ecanism os não tem
qualquer interesse para a questão que nos ocupa. Tanto faz que fun­
cionem de um m odo ou de outro, pois o que im porta é o resultado:
que o hom em se encontra com o fato de que vê coisas.
Não se trata de psicologia nem com nada que se pareça7. Trata-se
de um fato m etafísico ou, com outro nom e, ontológico. E os fatos m e­
tafísicos - que não são m isteriosos ou ultracelestes, m as os mais sim ­
ples, os m ais triviais, lapalissadas - são os fatos mais verdadeiram en­
te “fatos” que existem , anteriores a todos os “fatos cien tíficos”, que su ­
põem aqueles e deles partem.
Por isso conviria desalojar da term inologia filosófica o vocábulo
“idéia”, palavra em últim o grau de degradação e envilecim ento, já que
nem m ais em psicologia significa algo preciso, au têntico, unívoco. Na
Grécia - pois se trata de uma palavra grega, não latina e m enos ainda
rom ânica - teve seu grande m om ento, sua vez de estar em forma. Com

7. Isso não quer dizer que a psicologia não seja um a disciplina fabulosamente i
teressan te, à qual as pessoas deveriam se afeiçoar mais porque é acessível, bastante ri­
gorosa e m uitíssim o divertida. C om prep aração bastante m od esta pode-se trabalhar
co m ela com resultados positivos e cle própria criação. Já faz dez an os que live o p ropó­
sito de iniciar na Espanha uma cam pan ha p ró Psicologia, aproveitando o entusiasm o e
os excep cio n ais dotes de organizador que o Dr. Germain possui. Náo sou psicólogo
n em teria podido me dedicar a sê-lo, m as fui um aficionado, e isso teria perm itido que
eu despertasse curiosidades, suscitasse vocações e prom ovesse g ru p o s de estudiosos e
cu riosos na m atéria em torno das pessoas que já de antem ão, denodadam ente e sem
ap oio, se ocu pavam dessa ciência, sob retud o em Barcelona e em Madri.

569
H ist ó r ia da f il o s o f ia

Díon, amigo e discípulo de Platão, chegou a reinar literalm ente em Si-


racusa, em bora apenas por uns dias, e em Atenas foi por algum tem ­
po quase a opinião "reinante”. Foi nada m enos que a Id éia , as Idéias pla­
tônicas. Platão cham ou o trato com elas de “dialética", da qual diz que
é a “arte real” - paciÀ,ucr| t é % v t |. Q uem diria, contem plando seu papel
atual viscoso, indistinto e nulo! D iable qu ’il a mal tourné ce m ot “idée"!
Pois bem , a versão mais exata do term o Idéia, quando Platão o
usava, seria “aspecto”. E ele não se ocupava de psicologia, mas de on­
tologia. Porque, com efeito, é próprio da Realidade ter “aspectos”,
“respeitos” e, em geral, “perspectiva”, já que é próprio da Realidade
que o hom em esteja diante dela e a veja8. São quase equivalentes os
term os persp ectiv a e conhecim ento. Mais ainda, o prim eiro tem a van­
tagem de avisar antecipadam ente que o conhecim ento não é apenas
um “modus cognoscentis”, mas uma positiva m odificação do con h e­
cido - coisa que Santo Tomás não aceitaria; que é a coisa transm uta-
da em meros “aspectos” e tão-som ente “aspectos”, para os quais é es­
sencial constituírem -se em uma perspectiva. O conhecim ento - e alu­
do a ele agora apenas de soslaio - é perspectiva, portanto, nem pro­
priam ente um ingresso da coisa na m ente com o acreditavam os anti­
gos, nem um estar a “própria coisa” na m ente p er m odum cognoscentis,
com o queria a escolástica, nem é um a cópia da coisa com o [falta o fi­
nal cla frase], nem um a construção da coisa com o supuseram Kant, os
positivistas e a escola de Marburgo - , mas uma “interpretação” da
própria coisa subm etendo-a a uma tradução, com o se faz de uma lin­
guagem para outra, diríam os da linguagem do ser, que é m udo, para
a linguagem que exprim e o conhecer. Essa linguagem para a qual é
traduzido o ser é, nem mais nem m enos, a linguagem, o logos. C onhe­

8. É o que verem os mais adiante. Neste capítulo, pretendem os apenas precisar


uma term in ologia e não fundam entar a verdade do que ela enuncia. P o r q u e falamos de
Realidade, p o r qu e ultim am ente asseguram os que tem “aspectos”, o que supõe que al­
guém o esteja sem pre vend o etc., são tem as radicais de que em breve nos o cu p are­
mos; contudo, os exem plos dados - parede, m esa, página de livro ou então a folha da
árvore - bastam por si m esm os para justificar p o r o r a , e nesses casos pelo m enos, a ter­
minologia, já que esta enuncia eficazmente o que, pelo m enos, nesses casos efetiva­
mente ocorre.

570
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a sset

cer, em sua derradeira e radical concretude, é dialética - ôiaÀÉYEiv


ir Ja la n d o precisam ente das coisas. A p alav ra enuncia as vistas em que são
patentes p a ra nós os aspectos d a R ealid ad e9.
Mas essa nova terminologia nos permite ver com clareza um equí­
voco muito prejudicial que se perpetua na antiga. Costum ou-se cha­
mar de “idéias verdadeiras” aquelas que representam ou a que corres­
pondem realidades. Mas essa denom inação, além de outras muitas
deficiências, é contraditória porque traz em si um em prego equívo­
co, dual do term o realidade. Por um lado, é um conceito epistem oló-
gico e, com o tal, nada mais significa a não ser que há efetivamente no
real aquilo m esm o que o pensam ento pensa ou, em outras palavras,
que a idéia efetivamente idéia o que há na realidade. Se digo que a
neve é branca, digo verdade porque efetivamente encontro na neve
isso que cham o “brancura”. Se digo que é preta, ocorre o contrário.
Nesse sentido alude-se, pois, à “realidade da idéia” e se desconsidera
a “realidade do real”. Este últim o é um conceito “ontológico” e signifi­
ca a coisa segundo é - e a coisa não é senão a “coisa inteira”, sua inte-

9. Sendo o conhecim ento um assunto que o hom em tem co m as coisas, será pre­
ciso referir-se a ele co n tem p lan d o -o algum as vezes desde o h om em e outras desde
as coisas. O assu nto, a realidade que se co n tem p la - o fenôm eno “co n h ecim en to ” -
é, em am b os os casos, o m esm o; o que variou foi nosso ponto de vista. P or isso co n ­
vém possuir um d obrete de term o, “vista” e “aspecto”. Afinal, am bas as denom inações
têm a vantagem de recordar constantem ente que pensar é em últim a instância “ver”, ter
presen te a coisa, ou seja, intuição. Tenham em conta que à linguagem, à palavra, ao
nom e, correspondem , afora outras que não im portam agora, duas funções; um a, per­
m itir manejar um a enorm e quantidade de conceitos, de idéias de forma “econôm ica”,
p ou pan do-nos de efetuar realm ente o ato de pensar que esses conceitos e idéias são.
Na maioria dos casos, o que descuidadam ente cham am os pensar não o é propriam en­
te, é apenas sua abreviatura. Nessa função, cada palavra é som ente um “vale” pela efe­
tiva execu ção de um pensam ento, e co m ela a linguagem nos perm ite “abrir um crédi­
to” intelectual co m que fundamos, co m o grandes indústrias, as ciências. Mas o negócio
bancário não pode consistir apenas em abrir créditos. Essa função é correlativa de ou­
tra e a exige: realizar os créditos adquiridos. Daí a ou tra função da linguagem que é a
decisiva: cada palavra é um convite para ver a coisa que ela denom ina, para executar o
pensam ento que ela enuncia. Porque pensam ento, repilo e repetirei sem cessar nestas
páginas, é em última e radical instância um “estar ven do algo e, disso que se está vendo,
fix a r c o m a atenção tal ou qual parte”. Diremos, pois, que pensar é “fixar-se em algo do
que se vê”.

571
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

griclade. Pois bem , a maioria de nossas “idéias verdadeiras” representa


tão-som ente um dos com ponentes da coisa que naquele m om ento n os­
sa m ente acha, vê e apreende - portanto, um mero “aspecto” parcial,
arrancado da coisa, abstrato, em bora “real” no primeiro sentido do ter­
m o. Esta é a causa mais freqüente de nossos erros, porque nos leva a
crer que assegurar-se de que uma idéia é verdade se reduz a confirm ar
esse único caráter “real” da icéia que é enunciar um “autêntico aspecto”
- a não buscar sua integração confrontando a idéia não só com o “as­
pecto” que ela enuncia, mas com o decisivo caráter da realidade que é
“ser inteira” e, por isso mesmo, ter sempre “mais aspectos”10.

10. Dado o forçoso paralelismo entre os problem as da Realidade e os problem as


da Verdade, era inevitável que se reproduzisse o m esm o equívoco ao usar o term o “ver­
dade". Esquece-se co m dem asiada freqüência que esta palavra, m esm o na linguagem
m ais vulgar, significa prim ariam ente “o que é com p letam ente verdade" e só secu nd aria­
m ente tem um segundo sentido mais m od esto, resignado e parcial; “aquilo que, m es­
m o não sendo tod a a verdade, o é em p a r te porque não é um erro". Que “a neve é bran­
ca” é, em parte, verdade porque na neve há b ran cura, m as, prim eiro, existem m uitas
coisas brancas cuja b ran cura é de diferente m atiz que a da neve - logo o predicado
“b ran cura” dito da neve só é verdade se o tom arm o s co m seu especial matiz que na
proposição não consta e que faz dela uma verdade incom pleta, parcial, com o risco de
ser falsa. Segundo, existem de fato neves que, m esm o recém -caídas, não são brancas.
Terceiro, a neve é inum eráveis outras coisas além de ser branca. O vocábulo “é ” na e x ­
pressão “a neve é ...” tem tam bém um sentido m áxim o que só seria preenchido se o pre­
dicado dissesse tudo o que a neve é. Mas, co m o “realidade" e “verdade”, o é possui sen ­
tidos secundários e deficientes

572
III. S é r ie d i a l é t i c a

0 exem p lo da laranja e, por outro lado, nossa própria conduta


ao percorrer os quatro aspectos prim eiros que nos apresenta o passa­
do filosófico são duas “séries d ialéticas”. A reflexão que acabam os de
fazer sobre o que nesses “d iscursos” ou desenvolvim entos m entais se
passou c o n o sco nos perm ite ter um a prim eira com p reen são do que
é uma “série d ialética”. Essa prim eira com preensão é suficiente para
que m anejem os e aproveitem os esse term o em tudo o que vem a se­
guir. Mais tarde, ao enuclear o tem a “pensar” terem os de entrar nos
interstícios da realidade que com esse nom e denunciam os.
Não vá o leitor ficar amarrado diante do term o “série dialética”,
achando que por trás dele há necessariam ente grande presa, devido à
sua teatral prestância que lem bra a ostentação term inológica dos anti­
gos sistem as rom ânticos alemães, próprios de um tem po em que os
filósofos eram soleníssim os e ante o público atuavam com o ventrílo­
quos do Absoluto. Trata-se de coisa muito pouco im portante e muito
caseira, m as que é côm oda.
0 termo limita-se a denominar o seguinte conjunto de fatos mentais
que se produzem ante qualquer tentativa de pensar a realidade:
Toda “coisa” se apresenta sob um primeiro aspecto que nos leva a
um segundo, este a outro e assim sucessivamente. Porque a “coisa” é “na
realidade" a som a ou integral de seus aspectos. Portanto, o que fize­
m os foi:
1 ° P a r a r ante cada aspecto e captar dele uma vista.
2 ° C ontinuar pensando ou passar para outro aspecto contíguo.
3 ° N ão a b a n d o n a r , ou con serv ar os aspectos já “v istos” m anten­
do-os presentes.

573
H is t ó r ia d a f i l o s o f ia

4 o Integrá-los num a vista suficientem ente “total" para o tem a que


em cada caso nos ocupa.
“Parar”, “con tin u ar”, “conservar” c “integrar” são, portanto, as
quatro ações que o pensar dialético executa. A cada um a dessas ações
corresponde um estado de nossa investigação ou processo de co m ­
preensão ou pensam ento. Podem os cham á-las as articu lações em que
vai se arm ando nosso con h ecim en to da coisa.
Pois bem , todo o quid está em que cada “vista” de um “aspecto”
exige que avancemos para ver outro. A coisa, como dissemos, nos puxa,
nos força a andar de novo depois de ter parado. Essa nova “vista” exigi­
da pela prim eira será a de outro “aspecto” da coisa - mas n ão um qu al­
q u er, e sim o aspecto que na coisa está contíguo ao primeiro. Em princí­
pio, o pensar dialético não pode p u lar nenhum aspecto, tem de percor­
rer todos e, além disso, um depois do outro. A contigüidade “lógica”
das “vistas” (vulgo, conceitos) provém da contigüidade por im plicação.
O conceito de 1 é contíguo ao conceito 2, porque está im ediatamente
implicado neste. A contigüidade dialética é com o a do conceito “espaço
em to m o ” exigido pelo conceito “terra”. É uma contigüidade de com ­
plicação. Com o Hegel cham ou ilustrem ente o pensar sintético ou com -
plicativo de “dialética”, busco com esse termo continuidade com a tra­
dição. Mas notem o pouco que tem a ver com a dialética de H egel1.
Mas o cam in h o que se faz de u m ponto ao ponto contíguo é o
que em geom etria constitui a linha reta. Temos, pois, que o pensar
dialético só an d a em Unha reta e vem a ser com o os/en shui, ou espíri­
tos perigosos que tanto preocupam os chineses. Porque o fato é que
essas entidades, fautiizes do bem e do mal para os hom ens, só podem
se deslocar retilineam ente. Por isso, a borda dos telhados chineses é
encurvada para cim a. Se assim não fosse, um fe n shui que se instalas­
se no telhado deslizaria em linha reta caindo sobre a horta ou jard im ,
proxim idade de grande perigo; no en tanto, ao encontrar eriçada para
o alto a borda do telhado não tem outro rem édio senão sair disparado
rumo ao firm am ento.

1, Deixo para outro trabalho um a exp osição que esclareça o que há em co m u m


(m uito p ou co) e o que há de divergente (to d o o resto) entre o uso desse term o na obra
de Hegel e nas páginas deste livro.

574
E p íl o g o de J o sé O rtega y G a ís e t

Essa contigüidade dos passos mentais faz com que o pensar consti­
tua uma série e do tipo mais simples. Conste, pois, que se falo de “série
dialética” é infelizmente apenas porque se trata de uma série qualquer e
vulgar, com o o é uma “série de núm eros”, uma “série de selos” ou uma
“série de desgostos”. Que nesse caso a série seja de pensamentos, de con ­
ceitos, idéias ou “vistas” não é m otivo para armar grande alvoroço.
Su ponham os que nos pom os a pensar sobre um tema qualquer,
grande ou pequeno, e que anotam os num papelzinho, um debaixo do
outro, os pensam entos a que vam os chegando guiados pela intuição
ou visão da coisa, até que considerem os oportuno parar. Isso será a
“série dialética X ”, onde X = sobre tal tema. Podem os pôr o título des­
se tem a encabeçando o papelzinho e arquivar este num fichário, para
tê-lo à mão quando seja preciso. Foi o que fiz enquanto escrevia estas
páginas a fim de não esquecer o que passava pela m inha cabeça.
Do que resulta que o trem endo term o, prom etedor de profundi­
dades, revela posteriorm ente sua hum ilíssim a condição de mero in s­
trum ento de catalogação para que o autor não se esqueça, e de guia
para que o leitor não se perca. Este livro é uma série de séries dialéti­
cas. Poderíam os ter cham ado a coisa de muitas outras m aneiras. Que
o leitor as procure e verá que a escolhida por mim , apesar de seu per­
fil grandiloqüente, é a mais sim ples e trivial.
Esse “troço” ou ferram enta que é a série dialética serve tam bém
para facilitar a tarefa perfurante do crítico, porque é possível atribuir
núm eros 1, 2, 3 ... ou letras A, B, C ... aos passos do pensar em que ela
consiste, o que perm ite assinalar com toda precisão e com odidade o
ponto que não se entende ou que parece errôneo ou necessitado de
alguma correção ou com p lem en to2.

2. Sem que eu possa me deter agora nisso, faço notar a graciosa coincidência qu
essa n u m eração das “idéias” na série teria com os famosos e en igm áticos “núm eros
ideais” de Platão. Porque também ali, ao lado da série dialética das Idéias, desde a pri­
meira e envolvente (a idéia do Bem ) até a últim a e concreta - a “espécie indivisível” ou
àto n o v eíÔoç - co loca-se paralelam ente a série dos núm eros, de m o d o que a cada Idéia
corresp on d a um n úm ero - porque am bas as séries são “isom orfas”, co m o boje dizem
os m atem áticos. Devem os a Stenzel ter co m eçad o a decifrar esse enigm a dos “núm eros
ideais" ou “Idéias-núm eros” em Platão, vinte e três séculos depois, em seu livro Z ahl
und G estalt b ei Pluton und A ristóteles, 1 9 2 4 .

575
IV A M ESMIDADE DA FILO SO FIA

Im aginem os uma pirâm ide e que nos instalem os num ponto


dela situado em uma de suas arestas. Logo dam os um passo, isto é,
passam os a um dos pontos contíguos à direita ou à esquerda da ares­
ta. C om esses dois pontos engendram os uma direção retilínea. C onti­
nuam os passando de ponto a ponto, de m odo tal que nosso andar d e­
senhe uma reta nessa face da pirâmide. De repente, por motivos
quaisquer de arbítrio, conveniência ou oportunidade, detem o-nos.
Em princípio poderíam os prosseguir muito mais adiante na mesma
direção. Essa reta é o sím bolo estrito de nossa prim eira série dialética
que cham arem os Série A.
Agora, sem abandonar a reta em que estávam os, retrocedem os e
nos rpinsralamos no ponto de partida na aresta. Um a vez ali, decidi­
m os prosseguir, sem pre em linha reta passando para o outro ponto
contíguo que, sendo nosso cam inho atual de retrocesso e, portanto,
com direção inversa, nos levará para além da prim eira reta. Mas eis
que achando-nos num ponto da aresta, o outro ponto contíguo, m es­
mo avançando na m esm a direção, não se acha m ais na mesm a face da
pirâm ide que os anteriores. Portanto, sem que nos propuséssem os
isso, ao andar para trás e retornar com itinerário inverso ao m esm o
ponto de partida passam os não só para outro ponto, mas para outra
face da pirâmide.
É o que faremos agora. Com estrita continuidade em nosso pen­
sar, ao voltar a ver, andando na direção oposta, o fato inicial - o pas­
sado filosófico - , vamos vê-lo por outra de suas faces e a série de as­
pectos que agora vão surgir ante nossos olhos será m uito distinta da

577
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

anterior. Parlindo, pois, outra vez do próprio panoram a que é a h istó­


ria da filosofia, vam os engendrar uma nova reta m ental, um a segunda
“série dialética”, que cham arem os série B.
Lem brem -se que conform e o “prim eiro aspecto”, o passado filo­
sófico apareceu para nós com o um a “m ultidão de opiniões sobre o
m esm o”. Era a prim eira vista que captávam os daquela realidade, e a
prim eira vista é norm alm ente tom ada de longe1. Só se vê confusão.
Veremos a seguir com o a “confusão” é um estágio inicial de todo co ­
n h ecim ento, sem o qual n ão se p od e ir sain d o p a r a a luz. O im portante
para quem queira pensar de verdade é não ter demasiada pressa e ser
fiel em cada passo de seu itinerário m ental ao aspecto da realidade
que no m om ento está vendo, evitando d esp rez a r os prim eiros, distantes
e conjusos aspectos por uma espécie de esn obe urgência que provoca
nele o desejo de chegar rápido aos m ais refinados.
Mas ante essa “m ultidão de op in iões sobre o m esm o”, o que nos
cham ou prim eiro a atenção foi o m om en to “m ultidão”. V im os o pas­
sado filosófico com o um a gota de água onde pululavam caoticam ente
os infusórios das doutrinas, sem ordem n em con certo, em franca di­
vergência e universal charivari, brigando uns com os outros. Era uma
paisagem de infinita inquietude m ental. A história da filosofia tem,
com efeito, e não há por que nem para que ocultá-lo, um divertido
aspecto de d oce m anicôm io. A filosofia que, se algo parece nos pro­
meter, é a m áxim a sensatez - “a verdade”, “a razão” - se m ostra, num
prim eiro m om ento e tomada em seu co n ju n to histórico, com traços
muito sim ilares à dem ência. Convém que o leitor vá se acostum ando
com essas m etam orfoses porque neste livro vai assistir a m uitas2.

1. Nos casos em que não é assim trata-se de u m en contro anorm al co m um a rea­


lidade que se apresenta a nós desde o co m eço c o m o imediata, clara, precisa. Isso pro­
duz no hom em um c h o q u e tão grande que p rovoca nele fenôm enos anôm alos - n o bom
e no mau sentido. U m deles é a estranha crise súbita que se cham a “co n versão ”, outro
é o “êxtase repentino”, o utro, o “deslum bram ento” etc.
2. A razão disso é m uito simples. Sendo p ró p rio da realidade ap resen tar aspectos
diversos dependendo de onde e com o seja olh ad a, cada um deles é um a “form a" ou fi­
gura, ou m orp h é que a realidade adota e, à m edida que as percebem os, p resenciam os
sua "tran sform ação”, “transfiguração” ou “m etam orfose”.

578
E p íl o g o d e J o sé O r t f x .a y G a sset

O bcecad os por esse caráler de multidão e divergência, só presta­


mos atenção a ele e ele nos levou inevitavelmente na direção da Série
A. Mas agora, habituados com a aparente pluralidade e discrepância
das filosofias já dom inadas intelectualm ente por nosso pensam ento e
convencidos de que no final das contas “não é assim ”, nos desinteres­
sam os, pelo m enos por certo tem po, desse m om ento e então salta a
nossa vista o outro, qual seja: que, em bora m uitas e discrepantes, são
opiniões sobre o mesmo. Isso nos convida a buscar, olhando contra a
luz a m ultidão das filosofias, a unidade, mais ainda, a unicidade da filo­
sofia; a descobrir através das diferentes doutrinas o que nelas há do
mesm o. De outro modo não teria sentido cham ar essas doutrinas, a
despeito de suas divergências, “filosofias” ou nom es afins. Isso implica
que, por baixo de suas caretas de antagonistas, todas são a m esm a filo­
sofia, ou seja, que as filosofias não são mera m ultidão, não são só esta
e aquela e outra acolá, mas que têm em última instância uma m esm ida-
de. Isto é, esperam os, suspeitam os, presum im os que a tenham.
Partim os, pois, jov ialm en te para a arriscada viagem em busca da
m esm idad e da filosofia. Im ediatam ente vam os notar que essa nova an­
dança n os leva para o interior das filosofias, nos leva para suas entra­
nhas, para um “dentro”, intim idade e recôndito, e em com paração
com o qual tudo o que foi visto na Série A era extrínseco, casca, pele
sobre osso.
Bem , e com o procederem os? Talvez o leitor pense que devamos
co m eç ar por tom ar uma a um a, em sua sucessão cronológica, cada fi­
losofia e olhar “o que tem d en tro ”. Em seguida com pararíam os as en ­
tranhas de cada uma e veríam os se coincidem ou não, se eram as m es­
m as entranhas que tinham servido a m uitos corpos distintos.
Mas, em prim eiro lugar, deixaria de ser um olhar panorâm ico de
resum o sobre o conjunto do passado filosófico que a este dirigim os ao
acabar a leitura do livro de M arías e que, com o dissem os, era com o
uma despedida desse con tin en te pretérito. Em segundo lugar, deter-
se a fundo em cada doutrina equivaleria a ser infiel para com a pri­
m eira vista, da qual agora exam inam os a m esm idade da lilosofia, na
qual oferece-se a nós um asp ecto m odestíssim o dela, mas que não
tem por que ser pulado. A ciên cia se formou e progrediu graças ao

579
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

fato de não pular os aspectos m odestos. A física existe porque existe a


astronom ia m atem ática e esta, por sua vez, porque Kepler viveu anos
respeitosam ente, religiosam ente detido am e uma ridícula diferença
de cinco m inutos de arco que havia entre os dados de observação so­
bre posição dos planetas registrados com m inúcia prodigiosa por
Tycho-Brahe e sua “prim eira solução" para o sistem a de seus m ovi­
m entos em torno do Sol. Nessa errônea solução, os planetas ainda
descreviam órbitas circulares. À m edida que Kepler, durante um apai­
xonado trabalho de anos, com prim ia essas circunferências sobre os
dados de Tycho que delas divergiam , as circunferências se abranda­
ram, se alargaram um pouco e se transform aram nas ilustres elipses
cle que a hum anidade viveu até Einstein. Essas elipses, com binadas
com as leis m ecânicas de Galileu, com certos m étodos gerais de Des­
cartes e algum as outras coisas posteriores, tornaram possível a idéia
de gravitação e com isso a “filosofia de N ew ton”, o prim eiro sistem a
autêntico, ou seja, bem -sucedido de pensam ento sobre algo real que o
hom em possuiu, isto é, a primeira ciência efetiva. Isso para não falar
da alenção às diferenças m ínim as - com paradas com as quais os “cin ­
co m inutos” de Kepler parecem gigantescos de cuja religiosa co n ­
tem plação, do respeito às quais surgiu a teoria da relatividade. O m es­
m o pode ser dito, se tom arm os a coisa por um outro lado, mais m o­
desto ainda, do fato de que a obra de Kepler, hom em genial, teria sido
impossível se antes Tycho-Brahe, u m hom em sem gênio - a não ser
que o gênio seja a paciência não tivesse dedicado a vida inteira à
modestíssim a tarefa de reunir as m edidas mais exatas possíveis na
época sobre os deslocam entos siderais, coisa que, por sua vez, não te­
ria sido possível, se numa nação de fabulosos im precisos com o é Por­
tugal, não tivesse nascido um hom em , mais m odesto ainda, um m a­
níaco da precisão, o bom Nunes que encasquetou inventar um apare­
lho para m edir décim os de m ilím etro, o engenhoso, famoso nonius que
conserva para sem pre, m um ificado em latim, o m odesto nom e de nos­
so vizinho N unes3.

3. E vice-versa - co m o verem os m ais adiante se Kepler tivesse d eparado com


d ados m étricos cu ja exatidão fosse m aior, m esm o sem chegar às p recisões quase fabu-

580
E p fL O G O de J o sé O rtega y G a sset

Prestem os, pois, a atenção devida, nem sequer ao mais essencial,


mas ao primeiro aspecto do passado filosófico que esse novo respeito
ou face - a “m esm idade” das filosofias - nos oferece4.
Das coisas definitivam ente passadas, a prim eira vista que obte­
m os não costum a ser de caráter visual; nem é visão ocular, nem a v i­
são m ental que mais adiante estudarem os sob o term o “intuição”. Vi­
são só se pode ter do que, de uma forma ou outra, de mais perto ou
de m ais longe, “está aí diante de nós em pessoa”. A visão é relação
imediata de nossa mente com a coisa, e desde que a avistamos distante
no final do horizonte até que a tenhamos quase tocando a pupila, a ú n i­
ca coisa que fazemos é passar por formas cada vez mais precisas e claras
de relação imediata com ela. Vias o passado radical é o que não “está
aí diante de n ós”. É o que se foi e, por excelência, o ausente. E a pri­
m eira e mais elem entar notícia que dele lem os não é um vê-lo, mas
um ouvir falar dele. Assim, da filosofia, a prim eira coisa com que io ­
dos os hoje vivos depararam , se com algo depararam, é com a série de
seus nom es e com os títulos de seus livros e com a denom inação dos
hom ens que anelavam às voltas com o filosofar. 0 passado nos chega
em nom es e dizeres que ouvim os dizer dele - tradição, fábula, lenda,
narrativa, história: dizer, m ero dizer. Da filosofia topam os prim eiro

losas que hoje a física alcança, ten a fracassado, e a física n ão teria se constituído porque
os m eios m atem áticos de então não bastavam para d om inar diferenças tão pequenas e
com p lexas. Isso m ostra até que p onto a ciência é um organism o delicadíssimo cujos
m em bros, de condição m uito diferente entre si, têm de avançar co m um a espécie de
“harm on ia preestabelecida".
4. N ada sena mais fácil que realizar co m todo rigor esse propósito. Seria sim ples­
m en te u m a questão de mais páginas. Mas a econom ia deste livro, onde há coisas d e­
m ais para dizer, m e obriga no que segue a m isturar coisas que a rigor pertencem a as­
p ecto s posteriores, mais p róxim os e que não se vêem num sobrevôo, que é o que c o r ­
responde estritam ente neste capítulo. Mas é preciso, p or razões puram ente didáticas,
antecipar algumas coisas. O im portante é não deixar de dizer o essencial desse asp ecto,
e não há qualquer prejuízo, tendo em conta essa advertência, em acrescentarm os coisas
inessenciais nele. Portanto - e esse alerta vale para todo este capítulo - , ante o estrito
fenôm eno "filosofia vista a d istância”, esses adendos de visão m ais próxim a, isto é, de
q uem já está dentro da filosofia e não tem dela apenas um a vaga e rem ota visão, nada
mais fazem senão dar caráter explícito ao que esse “ignorante”, sem conseguir precisá-
lo para si m esm o, vê, ouve e sente em sua vaga im agem do que é filosofia.

581
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

com o que dela “se d iz”. Os gregos cham aram “o que se diz” d e'“fama”
- no sentido de nossa frase vulgar “corre fama q u e...”.
Contudo, ante esse passado radical, ante o passado propriam en­
te “histórico”, feito de ausência e rem oto horizonte, há um passado
relativo, passado um tantinho presente - com o se disséssem os que
não acabou de ir em bora. Com esse passado tem os ainda certa relação
visual: em bora de m odo turvo, continuam os a vê-lo. Nas rugas da
cara do ancião vem os que é um passad o vivente, presente. Não precisa­
m os ouvir d izer que aquele hom em foi: seu ter sido antes é presente
para nós com energia. O m esm o acontece com a paisagem povoada
de ruínas, com a roupa desbotada e esfarrapada, com a velha m onta­
nha vulcânica de que resta apenas o esqueleto interior pétreo, com
nosso rio Tejo, prisioneiro em seu leito estreito e profundam ente ta­
lhado dentro da dureza das rochas. Vemos com os olhos da cara, se
form os um pouco fisionom istas, que o Tejo é um rio m uito velho, um
caudal senescente, cujo débil fluxo corre por um álveo caloso, córneo
- em suma, presenciam os um espetáculo de fluvial arteriosclerose.
(Q uem não se angustia ou, pelo m enos, se m elancoliza ao contem plar
em seu curso nas cercanias de Toledo esse rio decrépito, é porque é
cego de nascim ento e não m erece existir ou, em tendo de existir, que
olhe o m undo. É inútil: não vê nada.)
Mas, repito, do passado histórico a m ais norm al e íntim a n oticia5
é a que nos chega em nom es. A aventura não lhe é peculiar. O nome
é a forma da relação distante, radicalm ente distante entre nossa m en­
te e as coisas. Da m aioria destas, é a prim eira com unicação e, de m u i­
tíssimas, a única que nos chega com seus nom es, só seus nom es.
Aparecem subitam ente diante de n ós, deslizam em nosso ouvido
quando as coisas que eles denom inam ainda estão rem otíssim as de
nós - talvez para sem pre, invisíveis e além do horizonte. O s nom es

5. O nde, do passado, restam apenas resíduos materiais, coisas, utensílios, pedra


e não resíduos verbais, falta sem pre para nós a presença de sua intim idade. É p o r isso
que nos encontram os - sobretudo, graças aos recentes avanços da investigação - com
civilizações inteiras que são m udas e cujos restos estão ali com o um hieróglifo para o
qual tem os de en con trar um sentido É essa a diferença entre pré-história e arqueologia
por um lado e filologia por outro.

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E p íl o g o d e J o sé O rtega y G a sset

são, portanto, com o esses pássaros que em alto-m ar voam de repente


na direção do navegante e lhe anunciam ilhas. A palavra é, com efei­
to, anúncio e promessa de coisa, é já um pouco a coisa. Há muito m e­
nos extravagância do que parece na teoria dos esquim ós, segundo a
qual o H om em é um com posto de três elem entos: o corpo, o alma e...
o nom e. Os arcaicos egípcios pensavam o m esm o. E não esqueçam os
que: “O nde estão dois ou três reunidos em meu nom e, aí estou eu no
m eio deles” (Mt 1 8 ,2 0 )6.
O nom e ê só “referência à coisa”. Está por ela, 110 lugar dela. A
língua é, por isso, sím bolo. Um a coisa é sím bolo quando se apresenta
a nós com o representante de outra coisa que não está presente, que
não tem os diante de nós. A liquid stat pro aliquo - é a relação sim bóli­
ca. A palavra é, portanto, presença do ausente. Esta é sua graça - per­
m itir que uma realidade continue estando, de algum m odo, naquele
lugar de onde se foi ou onde nunca esteve. A palavra “H imalaia” co lo ­
ca, aqui em Estoril, onde só se vê a serrinha de m entirinha que é C in ­
tra - coloca “algo assim com o” o Himalaia, a vaga, tênue, espectral for­
ma de sua enorm e mole. E, ao f a l a r aqui com vocês do Himalaia, 0 te­
m os, um pouco, o passeam os, o tratamos - isto é, tratamos dele.
Mas a presença que a palavra dá ao ausente não é, certam ente,
nem com pacta nem genuína. O representante não é nunca 0 repre­
sentado. Por isso, quando o chefe de Estado chega a um país estran­
geiro, seu em baixador nesse país deixa de existir. Q ue fazer! Da coisa
que nom eia, 0 nome nos apresenta, no m elhor dos casos, tão-som en-
te um esquem a, uma abreviatura, um esqueLeto, um extrato: seu c o n ­
ceito. Isso se a entenderm os bem , que não é tarefa nada fácil!
Donde resulta que o m ágico poder da palavra, quando permite
que a coisa esteja sim ultaneam ente em dois rem otíssim os lugares - ali
onde efetivamente está e ali onde se fala dela deve ser atribuído com
m uita parcim ônia. Porque o que temos da coisa, ao ter seu nom e, é
um a caricatura: seu conceito. E, se não tivermos cuidado, se não des­

6. Ver mais adiante Lógica e on tologia m ágicas, onde falo de que o H om em viu o
p ensar = logos = palavra, com o vindo do ser e residente nele. [O titulo m encionado
não foi en co n trad o nem , ao que tudo indica, chegou a ser escrito.]

583
H is t ó r ia d a f il o s o f ia

confiarm os das palavras, procurando chegar, por trás delas, às coisas


m esm as, os nom es se convertem em m áscaras que, em vez de tornar,
de algum m odo, a coisa presente, a ocultam . Se aquilo era a graça da
palavra, seu dom m ágico, isto é sua desgraça, o que a linguagem sem ­
pre está a ponto de ser - ilusão, farsa e estardalhaço.
Mas, queiram os ou não, cada um de nós não tem da m aioria das
coisas nada exceto suas m ascarilhas nom inais - “palavras, palavras,
palavras” bafejos, brisas, sopros que nos vêm da atm osfera social
em que respiram os e que, ao inspirar, encontram os dentro de nós. E
achamos que por isso - porque tem os os nom es das coisas - podem os
fa la r delas e sobre elas. E logo aparecerá quem nos diga: “Vamos falar a
sério de tal coisa.” Com o se isso fosse possível! Com o se “falar” fosse
algo que se possa fazer com últim a e radical seriedade e não com a
consciência dolorida de que se está executando uma farsa - farsa, às
vezes, nobre, bem -intencionada, até m esm o “santa”, mas, no final das
contas, farsa! Caso se queira, de verdade, fazer algo a sério o prim eiro
a fazer é calar-se. O verdadeiro saber é, com o rigorosamente veremos,
mudez e taciturnidade. Não é, com o o falar, algo que se faz em socie­
dade. O saber é um m anancial que só pulsa na solidão.

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V [O N O M E A U T Ê N T IC O ]

O uçam os ou leiamos os nom es dessa ocupação a que os hom ens


se dedicam no Ocidente faz vinte e seis séculos, os títulos dos livros em
que essa ocupação se perpetua e as qualificações ou m otes que a lin ­
guagem dedicou aos hom ens que estiveram às voltas com isso.
A filosofia propriam ente dita com eça com Parm ênides e Herácli-
to. O que im ediatamente a precede - “fisiologia'’ jó n ica , pitagorism o,
orfism o, Hecateu - é prelúdio e nada mais, Vorspie! und Tanz.
Parm ênides e outros de seu tempo deram à exposição de sua
doutrina o nom e de “alétheia”. Este é o nome prim igênio do filosofar.
Pois bem , o instante em que um nom e nasce, em que pela prim eira
vez se ch a m a uma coisa com um vocábulo, é um instante de excep ­
cional pureza criadora. A coisa está ante o H om em ainda intacta de
qualificação, sem qualquer roupagem de denom inação; poderíamos di­
zer, exposta à intem périe ontológica. Entre ela e o Homem ainda não
existem idéias, interpretações, palavras, tópicos. É preciso encontrar
o m odo de enunciá-la, de dizê-la, de transpô-la para o elem ento e
“m un do” dos conceitos, lógoi ou palavras. Qual será a escolhida? N o­
temos desde já algo de que nos ocuparemos a fundo muito mais adian­
te. Trata-se de criar um a p alav ra. Pois bem , a língua é precisam ente o
que o indivíduo não cria, mas encontra estabelecido em seu entorno
social, em sua tribo, em sua pólis, urbe ou nação. O s vocábulos da
língua já têm sua significação im posta pelo uso coletivo. Falar é, por­
tanto, usar mais uma vez esse uso significativo, d izer o que j á se sabe, o
que todo o m undo sabe, o consabido. Mas agora se trata de uma c o i­
sa que é nova e que, por isso m esm o, não tem nome usual. Encontrar-
lhe um a denom inação não é “falar” porque ainda não existe palavra

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H is t ó r ia d a f il o s o f ia

para ela - é “falar consigo m esm o”. Só a própria pessoa tem diante
dos olhos a “nova coisa” e, ao escolher um vocábulo para nom eá-la,
só ela o entende. Assistim os, pois, a uma função da linguagem que é
o contrário da língua ou falar da gente ou dizer o con sab id o1. É n eces­
sário, contudo, que aquele que vê p ela p rim eira vez a coisa entenda a
si mesmo ao denom iná-la. Para isso buscará na língua, naquele vulgar
e cotidiano dizer, um vocábulo cuja significação tenha an alogia - já
que não pode ser m ais do que isso - com a “nova coisa”. Mas a analo­
gia é uma transposição de sentido, é um emprego m etafórico da pala­
vra, portanto, poético. Quando A ristóteles2 constata que tudo está
“feito de algo” com o cadeiras e mesas e portas estão feitas de m adeira,
cham ará isso de que (Ô é£ ot>) todas as coisas estão feitas de “m adeira”
—í5A.r| - , ou seja, a “madeira por excelência, a últim a e universal m a­
deira” ou “m atéria”. Nossa palavra m a téria nada mais é senão a m a­
deira metaforizada.
Disso resulta - quem diria! - que a descoberta de um term o téc­
nico para um novo conceito rigoroso, que a criação de uma term ino­
logia não é senão um a operação de poesia.
E vice-versa, se reavivarmos em nós o significado do term o téc­
nico já constituído, e nos esforçarm os por entendê-lo a fundo, ressus­
citarem os a situação vital em que se encontrava aquele pensador
quando pela prim eira vez viu ante si a “nova coisa”.
Essa situação, essa experiência viva do novo pensar grego que vi­
ria a ser o filosofar, foi m aravilhosam ente denom inada por Parm êni-
des e alguns grupos alertas de seu tem po com o nom e de “alétheia”3.
Com efeito, quando, ao pensar m editando sobre as idéias vulgares,
tópicas e recebidas em relação a uma realidade, constata que são fal­
sas e por trás delas lhe aparece a própria realidade, é com o se tivesse

1. Da linguagem me ocupo, sistem aticam ente, em m inha obra a ser publicada: o


lado social dela é estudado em minha doutrina sociológica El hom b re y la gen te. As de­
m ais categorias da linguagem são estudadas em m inha doutrina historiológica A u rora
d e la razón histórica. |Ver em El h o m b re y la g en te, capítulos XI e XII.]
2. A rigor, o term o surgiu antes dele.
3. Nas duas ou três gerações anteriores - os jón ico s a palavra ícrcopeiv exp res­
sa: o que eles faziam, e que em seguida, co m olhar retrospectivo e técnico, se cham ou
(pwioÀoyía.

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E p íl o g o de J o sh O rtega y G a sset

tirado de cim a desta uma crosta, um véu ou cobertura que a ocultava,


por trás dos quais se apresenta em pêlo, nua e patente a própria reali­
dade. O que sua mente fez ao pensar nada mais é, portanto, senão
algo assim com o um desnudar, des-cobrir, tirar um véu ou cobertura,
re-velar (= desvelar), des-cifrar um enigma ou hieróglifo'1. É isso lite­
ralm ente o que significava na língua vulgar o vocábulo a-léth eia - des­
cobrim en to, patentização, desnudam ento, revelação. Q uando, no sé­
culo 1 d .C ., veio uma nova descoberta radical, um a nova e grande re­
velação distinta da filosofia, a palavra aléth eia já gastara seu novo sen ­
tido m etafórico em sete séculos de filosofia e foi preciso buscar outro
term o para dizer “revelação”: este foi, com o correspondia aos tempos
já asiatizados, um vocábulo barroco: apo-kálypsis - que significa exa­
tam ente a mesm a coisa, só que de m odo mais carregado.
Enquanto aléth eia, a filosofia nos aparece, portanto, com o o que
é - com o uma tarefa de descoberta e decifram ento de enigmas que
nos põe em contato com a realidade ela mesm a e nua. A létheia signi­
fica verdade. Porque verdade deve ser entendido não com o coisa m or­
ta, conform e vinte e seis séculos de habituação, já inercial, nos levam
h oje a entender, mas com o um verbo - “verdade” com o algo vivente,
no m om en to de acontecer, de nascer; em sum a, com o ação. A létheia =
verdade é dito em termos vivazes de hoje: averiguação, descoberta da ver­
dade, ou seja, da realidade nua por trás das roupagens de falsidade que
a ocultavam . Por uma curiosa contam inação entre o descoberto = a
realidade e nossa ação de des-cobri-la ou desnudá-la, falamos com
freqüência da “verdade nua”, o que é uma redundância. O nu é a rea­
lidade e desnudá-la é a verdade, averiguação ou a létheia.
Este nom e prim igênio da filosofia é seu verdadeiro ou autêntico
n om e3 e, por isso m esm o, seu nom e poético. O nom e poético é aque­
le com que cham amos as coisas em nossa intim idade, (alando com
nós m esm os, em secreta en d ojasia ou falar interno. Mas em geral não
sabem os criar esses nom es secretos, íntim os, em que nos entendería-

4. Ver M editaciones dei Q uijote, 1 9 1 4 . [O bras com pletas, t. I.]


5. É incrível que a lingüística atual ainda ignore que as coisas têm, de fato, um
"nom e autêntico'1 e ache que isso é incom patível com o caráter essencialm ente rnuda-
diço e feito de quase puros acidentes que é a linguagem.

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m os a nós mesmos no tocanie às coisas, em que nos diríam os o que


auieniicam enie são p a ra nós. Padecem os de mudez no solilóquio.
O papel do poeta apóia-se no falo de ser capaz de criar para si
esse idiom a ínlim o, esse prodigioso jargão feilo exclusivam enie de
nom es autênticos. E ao lê-los notam os que em grande parte a in tim i­
dade do poeta, transm itida em suas poesias - sejam versos ou p ro ­
sas - , é idêntica à nossa. Por isso o entendem os: porque ele, p or fim,
dá uma língua à nossa intim idade e conseguim os nos entender a nós
m esm os. Daí o estupendo fato de que o prazer suscitado em nós pela
poesia e a admiração que o poeta nos suscita provém , p aradoxalm en­
te, de parecer que nos plagia. Tudo o que ele nos diz já tínham os “sen­
tido”, só que não sabíam os dizê-lo0. O poeta é o intérprete do H om em
consigo mesmo.
“Verdade”, “averiguação” deveria ter sido o nom e perdurável da fi­
losofia. No entanto, só teve esse nom e em seu primeiro instante, ou seja,
quando a “própria coisa” - neste caso, o filosofar - ainda era uma ocupa­
ção nova, que as pessoas até então não conheciam , que não tinha ainda
existência pública e não podia ser vista de fora. Era o nom e autêntico,
sincero que o filósofo primigênio dá em sua intimidade a isso que se pe­
gou fazendo e que para ele mesmo não existia antes. Ele está sozinho
com a realidade - “seu filosofar” - na frente dele, em estado de graça
diante dela, e lhe dá, sem precaução social n en hu m a, inocentem ente, seu
verdadeiro nome com o faria o poeta “terrível” que é uma criança.
Mas, da mesma maneira que o filosofar é um acon tecim en to que
se repete, é uma ocupação que com eça a ser habitual e a G ente co m e­
ça a vê-la de fora - que é como a gente sem pre vê tudo a situação
varia. O filósofo não está mais sozinho co m a coisa na intim idade de

6. Que aconteceria co m esse fenôm eno n orm al e fundamental da vida hum ana
num tempo em que os hom ens quaisquer, os h om ens massa, fossem sendo progressiva­
mente petulantes? Pois uma das coisas mais engraçadas que vi acontece co m intensida­
de e freqüência crescentes nas novas gerações, a p om o de ter me deixado m uitas vezes
atônito: que o jovem atual quando nos lê e conseguim os fazer com que entenda algo
acred ita logo em seguida que foi ele que teve a idéia. C o m o o escritor, se realm ente for um ,
parece “plagiar” o leitor; esse leitor petulante de hoje acredita seriam ente que é ele o ver­
dadeiro autor e que já sabia aquilo. O fato é estupefaciente e grotesco, m as inegável.

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seu filosofar; é além disso, com o tal filósofo, um a figura pública assim
com o o m agistrado, o sacerdote, o m édico, o m ercador, o soldado, o
jogral, o verdugo. A irresponsável e im pessoal personagem que é o
en torn o social, o m onstro de n+1 cabeças que é a gente, com eça a rea­
gir ante essa nova realidade: o “averiguador”, isto é, o filósofo. E
com o o ser deste - seu filosofar - é uma tarefa hum ana m uito mais ín­
tima que todos aqueles outros ofícios, o choque entre a publicidade
de sua figura social e a intim idade de sua con d ição é maior. Então,
com a palavra “alétheia”, “averiguação”, tão ingênua, tão exata, tão trê­
m ula e pequenina ainda de seu recente n ascim en to, com eçam a
“acon tecer coisas”. As palavras, em últim a instância m odos do viver
h um ano, têm elas tam bém seu “m odo de viver”. E com o todo viver é
“acon tecer coisas com alguém ”, um vocábulo, recém -n ascid o, entra
até seu desaparecim ento e m orte na mais arriscada série de aventuras,
algum as favoráveis e outras adversas7.
O n om e “aléth eia” in v en tad o para uso íntim o era u m nom e em
que não estavam previstos os ataques do pró xim o e, portanto, era
indefeso. M as n em bem a gente soube que havia filósofos, “averi-
guadores”, com eçou a atacá-los, a m al-entendê-los, a confundi-los com
ou tros ofício s eq u ív ocos, e eles tiveram de aband onar aquele n om e,
tão m arav ilh oso com o in g ên u o, e aceitar outro, de geração esp on tâ­
nea, in fin itam en te pior, m as... m ais “p rático”, isto é, m ais estú pido,
m ais vil, m ais cau teloso. N ão se tratava m ais de n om ear a realidade
nua de “filoso far”, na solid ão do pensador com ela. Entre ela e o
p en sad o r se in terp õ em os p ró xim os e a gente - personagens pavo­
rosas e o n om e tem de d efen d er duas frentes, olhar para dois la­
dos - a realidade e os ou tros h om en s n om ear a coisa não só para
si p ró p rio , m as tam bém para os d em ais. Mas olh ar para os dois lados
é envesgar. Vam os agora observar com o nasceu esse vesgo e ridículo
nom e de filosofia.

7. R ecordem os o breve exem p lo antes m encionado das aventuras sofridas pel


vocábulo “idéia”. C ad a palavra pede, em princípio, uma biografia, num sentido an álog o
ao que tem este term o quando referido a um homem. O que tem de an alogia provém do
fato de que as palavras pertencem , em última instância, à “vida coletiva", que só é vida em
sentido an álog o à “vida pessoal”, a única que é propriamente vida. [Ver F.I h o m b ic y la geníe.]

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