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Título original:

Historia de la Filosofía
© do texto: Juan Manuel Cordón e Tomas Calvo Martínez, 1995
Tradução da antologia de textos: Alberto Gomes; do restante: Departamento Editorial de Edições 70
Revisão: Marcelina Amaral
Capa: FBA

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

História da filosofia / Juan Manuel Cordon, Tomas Calvo Martinez. – (Extra-colecção)

ISBN 978-972-44-1837-7

I – CALVO MARTÍNEZ, Tomas, 1942-

CDU 1

Setembro de 2014
Direitos reservados para todos os países de Língua Portuguesa por Edições 70

EDIÇÕES 70, uma chancela de Edições Almedina, S.A.


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ÍNDICE

PRÓLOGO

PRIMEIRA PARTE

DOS PRÉ-SOCRÁTICOS À IDADE MÉDIA

QUADRO SINCRÓNICO

1. AS ORIGENS DA FILOSOFIA. OS PRÉ-SOCRÁTICOS


INTRODUÇÃO

1. O Aparecimento da Filosofia e o Problema da Natureza


2. Os Pré-Socráticos, Modelos de Explicação da Natureza

2. OS SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO


INTRODUÇÃO

1. Os Sofistas
2. Sócrates
3. Platão

3. ARISTÓTELES. A FILOSOFIA DO PERÍODO HELENÍSTICO


INTRODUÇÃO
1. Aristóteles
2. A Filosofia do Período Helenístico

4. CRISTIANISMO E FILOSOFIA. SANTO AGOSTINHO


INTRODUÇÃO

1. A confrontação do Cristianismo com a Filosofia


2. O apogeu do Platonismo Cristão. Santo Agostinho
3. Augustinismo e Platonismo Medievais

5. SÃO TOMÁS DE AQUINO E O APOGEU DA ESCOLÁSTICA


INTRODUÇÃO

1. O Aristotelismo e a Luta pela Autonomia da Razão


2. Síntese de Aristotelismo e Platonismo em Tomás de Aquino

6. GUILHERME DE OCKHAM E A CRISE ESCOLÁSTICA


INTRODUÇÃO

1. Os Limites da Razão e a Primazia da Vontade


2. Guilherme de Ockham e a crise da tradição filosófica
3. As Contribuições Físicas dos Cientistas do Século XIV

SEGUNDA PARTE

DO RENASCIMENTO À IDADE MODERNA

QUADRO SINCRÓNICO

7. O RENASCIMENTO E A ORIGEM DA IDADE MODERNA


INTRODUÇÃO
1. O Renascimento e a Transformação da Sociedade Europeia
2. A Tradição Grega e o Novo Antropocentrismo Naturalista
3. O Problema da Infinitude: Cusa e Giordano Bruno
4. Francis Bacon e o seu Conceito da Ciência

8. KEPLER E GALILEU: A LUTA PELO MÉTODO EXPERIMENTAL


INTRODUÇÃO

1. A Astronomia Pré-Copernicana
2. Realismo e Matemática: Copérnico
3. Kepler: procura da Pura Racionalidade
4. Galileu e o Método Experimental
5. Método Resolutivo-Compositivo

9. O RACIONALISMO
INTRODUÇÃO

1. A Auto-Suficiência da Razão como Fonte de Conhecimento


2. Descartes e a Construção do Universo
3. Espinosa e Leibniz
4. A Matemática como Modelo de Saber
5. Razão e Liberdade

10. O EMPIRISMO
INTRODUÇÃO

1. O Empirismo e os Limites do Conhecimento


2. Moral e Política

11. O ILUMINISMO
INTRODUÇÃO
1. Enquadramento Histórico e Sociopolítico do Iluminismo
3. Newton e o Problema da Natureza
4. Homem e Deus: o Deísmo e a Religião Natural
5. Homem e Sociedade (Rousseau)

12. O IDEALISMO TRANSCENDENTAL DE KANT


INTRODUÇÃO

1. Sentido de uma Crítica da Razão. A Ideia de Filosofia


2. A Natureza e a Razão Teórica
3. A Liberdade e a Tarefa da Razão Prática
4. História e Religião

13. HEGEL E A DIALÉCTICA


INTRODUÇÃO

1. Enquadramento Histórico-Social e Filosófico da Obra de Hegel


2. Sentido e Estrutura da Dialéctica
3. O Conceito de Espírito e suas Formas
4. A Esquerda Hegeliana. Feuerbach

TERCEIRA PARTE

A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

QUADRO SINCRÓNICO

14. O POSITIVISMO DE COMTE


INTRODUÇÃO

1. A Sociedade Industrial e o Espírito Positivista


2. Natureza do Saber e Sistema das Ciências
3. A Sociologia e a Positivizacao da Razão

15. O MARXISMO
INTRODUÇÃO

1. A Crítica de Marx à Consciência Filosófica


2. As Formas de Alienação e o Humanismo Marxista
3. Materialismo, Dialéctica e História

16. HISTORICISMO E VITALISMO


INTRODUÇÃO

1. O Historicismo de Dilthey
2. O Vitalismo de Nietzshe
3. O Raciovitalismo de Ortega y Gasset
4. Vida, Tragédia e Heroísmo: Miguel de Unamuno

17. FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO


INTRODUÇÃO

1. A Fenomenologia e a Crise das Ciências


2. O Existencialismo: Existência e Liberdade

18. O PERSONALISMO CRISTÃO


INTRODUÇÃO

1. Correntes Personalistas Contemporâneas


2. Contributos Históricos para Orientação Personalista
3. O Personalismo de Mounier

19. O NEOPOSITIVISMO E A FILOSOFIA ANALÍTICA


INTRODUÇÃO
1. O Atomismo Lógico: Russell
2. O Neopositivismo Lógico
3. A Filosofia Analítica

20. NATUREZA E CIÊNCIA NO PENSAMENTO ACTUAL


INTRODUÇÃO

1. A Física Moderna: Novo Conceito de Natureza


2. Os Desenvolvimentos Actuais na Filosofia da Ciência

21. A CRISE DA CONSCIÊNCIA: NOVO CONCEITO DE RAZÃO


INTRODUÇÃO

1. Freud e a Interpretação da Cultura


2. O Estruturalismo e a Crise do Humanismo
3. Razão e Sociedade na Escola de Frankfurt
4. Hermenêutica e Crítica das Ideologias

BIBLIOGRAFIA
PRÓLOGO

A História da Filosofia que apresentamos foi pensada e realizada de


acordo com os seguintes critérios:

1. Procurou-se a harmonia entre o rigor, a profundidade e a extensão no


tratamento das questões com a máxima clareza na exposição. A
consecução deste duplo objectivo só é possível actuando
selectivamente. Por isso, neste livro não se inclui indiscriminadamente
tudo o que os filósofos disseram, mas tão-somente os problemas, e as
respectivas respostas, que são relevantes no desenvolvimento histórico
do pensamento ocidental.
2. Em consonância com o ponto anterior, a História da Filosofia é
concebida mais como história dos problemas filosóficos do que como
história dos filósofos. A exposição organiza-se em torno de três núcleos
temáticos fundamentais: problemas relativos à natureza, problemas
sociais e problemas antropológicos.
3. Partiu-se do princípio de que a filosofia e os problemas de que ela se
ocupa estão sempre inseridos em determinadas coordenadas socio-
políticas e culturais. Atende-se, pois, de modo explícito, às
circunstâncias históricas a partir das quais a filosofia se apresenta, em
cada caso, como consciência de uma época.
4. Em quarto lugar, pretende pôr-se continuamente em evidência a
coerência interna que preside ao desenrolar da história do pensamento.
Assim, em cada período histórico, em cada tema, procuram fazer-se
referências claras e essenciais à forma como o problema da teoria em
questão surge ou aparece, de novo, noutros momentos históricos.
5. Por último, e de acordo com as orientações anteriores, pretendemos
evitar uma História da Filosofia como crónica das opiniões dos
filósofos, expressas em frases estereotipadas, muitas vezes, quando
apresentadas isoladas do contexto filosófico em que se encontram
inseridas.

Somos de opinião de que uma História da Filosofia, pensada de acordo


com estes critérios, pode constituir uma adequada realização dos objectivos
que lhe cabe cumprir. Possibilitará, assim, assimilar o passado como raiz do
nosso presente, para se situar neste de uma forma crítica e reflectida.
Do ponto de vista da sua estrutura formal, a obra apresenta as seguintes
características:

1. É composta por três partes que correspondem, respectivamente, ao


pensamento grego e medieval (1.ª), ao pensamento da Idade Moderna
até Hegel (2.ª), e ao pensamento contemporâneo (3.ª). Cada um destes
ciclos é precedido de uma introdução geral, bem como de um quadro
cronológico no qual se registam, panoramicamente, junto com a
cronologia dos filósofos e escolas, as datas dos acontecimentos políticos
e culturais mais importantes da época.
2. Cada tema está dividido em alíneas e é precedido de uma introdução
que fornece orientações sobre o seu sentido e forma de
desenvolvimento.
3. Dado que a exposição se centra nos problemas filosóficos, não cabem
nela notas biográficas nem referências às obras dos autores abordados.
Estas informações são fornecidas em segmentos do texto separados.
4. Os textos que ilustram as teorias abordadas são também apresentados
em segmentos textuais separados e com um tipo de letra diferente.
5. No final do livro inclui-se uma secção de bibliografia fundamental
para a ampliação e aprofundamento dos temas tratados, separada por
cada parte.
PRIMEIRA PARTE
DOS PRÉ-SOCRÁTICOS À IDADE
MÉDIA

A Filosofia surge na Grécia, aproximadamente nos começos do século


VI a.C. Como as restantes culturas antigas, a cultura grega fundava-se no
Mito, transmitido e ensinado pelos poetas, educadores do povo,
especialmente Homero e Hesíodo. Através de complexas narrações e
doutrinas sobre os deuses e os homens, sobre as forças que intervêm
activamente nos acontecimentos cósmicos e humanos, o mito oferecia
respostas orientadoras acerca da natureza e destino do ser humano, acerca
da origem e das normas da sociedade em que o indivíduo se encontrava
inserido e acerca do aparecimento e estrutura do Cosmos. No dealbar do
século VI a.C, e em consonância com as profundas transformações de
carácter cultural e social, as inteligências mais despertas sentiram a
necessidade de substituir as explicações míticas por outro tipo de
explicação justificada de um modo racional. Surgiu, assim, a Filosofia
como propósito de racionalizar a interpretação do homem e do Universo,
das relações dos homens entre si e destes com a natureza. Se o Mito se
caracterizava por dar resposta a todos os enigmas fundamentais susceptíveis
de inquietar o homem, a Filosofia caracterizou-se, também, pela
radicalidade das suas propostas. A atitude filosófica e radical num duplo
sentido: na medida em que as suas questões abarcam a totalidade do real e
na medida em que pretende atingir os princípios explicativos últimos do
real. Desde o seu nascimento, a Filosofia, enquanto atitude crítica e
racionalizadora, constituiu um elemento essencial – se não mesmo o
elemento essencial – dinamizador da nossa cultura.
Nesta primeira parte ocupar-nos-emos da história da filosofia desde as
suas origens até ao final da idade Média. Trata-se de um amplo período
histórico de vinte séculos, no qual deveríamos distinguir, por sua vez, dois
ciclos ou períodos distintos: o correspondente à Idade Antiga e o
correspondente à Idade Média. Esta divisão é, sem dúvida, legítima. No
entanto, existem razões de carácter histórico e cultural que nos autorizam a
considerar ambos os períodos como pertencendo a um único ciclo
filosófico. Em primeiro lugar, consideram-se as relações entre o
cristianismo e a filosofia. Por outro lado, a assimilação da filosofia grega
pelo cristianismo realiza-se na Idade Antiga: quando o Império Romano é
definitivamente derrubado, o pensamento cristão, de orientação grega,
platónica, conseguira já uma implantação definitiva que culmina na obra de
Santo Agostinho. Por outro lado, a Idade Média prolonga e incrementa esta
atitude assimiladora da filosofia grega por parte dos pensadores cristãos:
como teremos ocasião de comprovar, o pensamento medieval exprime-se
através de esquemas e conceitos gregos.
Em segundo lugar, deverá ter-se em conta o carácter específico do
pensamento do século XIV, ou seja, do final da Idade Média: a crítica
desenvolvida, no século XIV, contra os sistemas filosóficos medievais é, na
realidade, uma crítica dirigida contra os esquemas e conceitos gregos
assimilados pelo pensamento cristão e nele incorporados desde a Idade
Antiga e durante toda a Idade Média. O século XIV marca uma reacção
radical contra as bases gregas do pensamento. É certo que o Renascimento
verá um ressurgir dos sistemas filosóficos gregos, mas este ressurgir – aliás
conjuntural – arrastará consigo uma interpretação da filosofia grega, de
sinal muito diferente da interpretação medieval da mesma.
As forças que mais radicalmente influenciam a nossa cultura são a
Filosofia Grega e o Cristianismo. Hoje, poderemos ser gregos ou
antigregos, cristãos ou anticristãos, mas de maneira alguma bárbaros ou
pagãos. O estudo da História do pensamento ocidental mostrar-nos-á a
profunda verdade desta afirmação.
QUADRO SINCRÓNICO
1. AS ORIGENS DA FILOSOFIA. OS PRÉ-
SOCRÁTICOS

INTRODUÇÃO

Costuma dizer-se, com razão, que a filosofia e a ciência surgem quando


se abandona o mito, substituindo-o pela explicação racional. Utilizamos a
expressão «explicação racional» para traduzir o termo grego «logos». A
filosofia surge, pois, quando o logos substitui o mito na função de
explicar a realidade em toda a sua complexidade: o universo físico, a
natureza individual humana, a convivência social com as suas implicações
de carácter político e moral.
Este acontecimento – abandono do mito, aparecimento da explicação
racional ou logos – ocorreu, na cultura grega, por volta do século VI a.
C. Duas questões se nos apresentam imediatamente: em primeiro lugar, por
que é que este facto transcendental teve lugar na cultura grega e não noutras
culturas antigas e porquê precisamente nesta data? Em segundo lugar em
que consistem o pensar racional (explicação racional logos) que se lhe
opõe? Só uma compreensão adequada deste último, ou seja, do sentido e
implicações do pensar racional permitirá compreender a originalidade e
vigor com que os filósofos gregos investigaram os problemas do universo
físico, do homem e da sociedade.
Este capítulo é dedicado às origens da filosofia e aos primeiros filósofos
gregos, correntemente denominados pré-socráticos.
Na primeira parte abordaremos o aparecimento da explicação racional
(logos) em oposição ao mito. Na segunda apresentaremos as ideias
fundamentais dos filósofos pré-socráticos mais importantes.

A estrutura deste capítulo, dividido em duas partes, é a seguinte:


1. O aparecimento da filosofia e o problema da natureza.
2. Os pré-socráticos. Modelos de explicação da natureza.
1. O APARECIMENTO DA FILOSOFIA E O
PROBLEMA DA NATUREZA

1.1. Características gerais da cultura grega

A primeira das perguntas que anteriormente formulávamos (porque


surge a filosofia na Grécia e não noutra cultura?) não pode obter uma
resposta taxativa. É, no entanto, possível salientar algumas circunstâncias
que, certamente, influenciaram esse facto. Pretendeu-se, frequentemente,
explicar a origem da filosofia pelo recurso à genialidade dos Gregos. Pondo
de parte o génio grego (cuja originalidade é tão difícil de negar como difícil
é explicar em que consiste), deverão ser tomadas em consideração certas
condições socioculturais que tornaram possível o aparecimento da filosofia
na Grécia.

1.1.1. Etapa pré-filosófica

A Grécia anterior ao aparecimento da filosofia caracteriza-se pelas


seguintes circunstâncias:

a) Em primeiro lugar, trata-se de uma sociedade aristocrática, agrícola


e guerreira (cada reino deve defender a sua riqueza dos seus vizinhos). Isso
implica uma determinada estrutura social e determinados ideais morais.
A estrutura social é a de uma colectividade dividida em duas classes: a
nobreza, que vive despreocupadamente em tempo de paz e que conduz o
povo em tempo de guerra, e o povo, fundamentalmente dedicado à
agricultura e à criação de gado. No que diz respeito aos ideais morais, os
nobres são os depositários únicos da virtude, sendo os valores supremos
a linhagem (bom é o de linhagem nobre, mau e vulgar o de linhagem
plebeia), o êxito (fracassar é vergonhoso; é-se castigado não por ter agido
mal no sentido actual do termo, mas por se ter fracassado) e a fama. É
facilmente compreensível que, numa sociedade assim estruturada, não haja
lugar para as ideias de justiça e direito, que implicam uma certa igualdade.

b) Uma segunda característica própria da cultura grega é que carece de


livros sagrados e de um sistema educativo organizado. Esta
circunstância é extremamente importante, já que caberá aos poetas e aedos
o papel educativo (e, de modo muito particular, a Homero).
Homero era para os Gregos algo de muito diferente do que é, hoje, para
nós. Para nós, não passa de um poeta que nos brinda com narrativas
extremamente belas, imaginativas e ilustrativas. Os Gregos aprendiam em
Homero. A sua obra era como que o livro de leitura em que sucessivas
gerações aprendiam:

1. a moral e o conjunto dos valores acima descritos;


2. a teologia. A organização social dos deuses – com Zeus como rei
supremo – e as suas formas de comportamento descritas por Homero
correspondem totalmente à organização social e ao código moral da
sociedade grega que anteriormente descrevemos. A conduta dos deuses
(roubos, adultérios, dolos etc.), que mais tarde viria a ser considerada
imoral pelos filósofos, está de acordo com a moral aristocrática a que já
nos referimos;
3. além da moral e da teologia, os Gregos aprendiam de Homero tudo o
que, na realidade, sabiam (ou julgavam saber) sobre história, geografia,
navegação, arte militar, cosmologia, etc.
Sabe-se que é escassa ou nula a possibilidade de criticar as doutrinas e
os dogmas nas sociedades onde existem livros sagrados. Neste aspecto,
porém, o carácter peculiar da cultura grega, que carecia de livros sagrados e
de uma organização sacerdotal que velasse pela ortodoxia, facilitou a crítica
ao conjunto dos ensinamentos homéricos. É esta crítica que constitui o
ponto de partida da filosofia.

1.1.2. Etapa filosófica

A partir do século VII a. C., operou-se uma profunda transformação na


sociedade grega: o comércio assume uma importância definitiva; aparece a
moeda, as viagens proporcionam novos conhecimentos técnicos e
geográficos, o contacto com outras civilizações e formas de vida e novos
conhecimentos de etnologia.
A sabedoria popular, representada pelos ensinamentos rotineiros dos
poetas antigos, começa a ser encarada como inadequada pelas mentes mais
despertas: no que diz respeito à moral, os valores bélicos e aristocráticos
encontram-se desfasados, já que as relações comerciais exigem novas
normas de justiça e de direito como base para as trocas; no que respeita à
teologia homérica, o conhecimento de outros povos origina a convicção de
que cada povo e cada raça representam os deuses de maneira diferente; em
suma, abre-se caminho à convicção de que a interpretação do Universo e da
convivência humana deve assentar em bases inteligíveis e racionais.
O que atrás fica dito permite-nos compreender dois factos fundamentais:
em primeiro lugar, que a filosofia surge na Grécia como uma crítica da
sabedoria popular e rotineira, que pretende suplantar; em segundo lugar,
que a crítica ao mito se efectua em todas as frentes (moral, sociologia,
teologia, astronomia, cosmologia). Trata-se de uma nova visão da realidade
em toda a sua complexidade, uma visão que se esforça por eliminar os
pressupostos irracionais do mito.
1.2. Mito e explicação racional (logos)

1.2.1. O mito

No parágrafo anterior, utilizámos a palavra «mito» ao referirmo-nos à


filosofia como crítica do mito. Em geral, deve entender-se por mito o
conjunto de narrativas e doutrinas tradicionais dos poetas (especialmente
Homero e Hesíodo) acerca do mundo, do homem e dos deuses. Como
conjunto destas narrativas e doutrinas, o mito caracteriza-se por oferecer
uma explicação total, que forneça respostas para os problemas e enigmas
mais prementes e fundamentais acerca da origem e natureza do Universo,
do homem, da civilização e da técnica, da organização social, etc. Ao opor-
se às explicações de carácter mítico, a filosofia não renunciará a esta
dimensão de resposta última acerca da totalidade do real; pelo contrário, tal
dimensão constituirá um dos traços essenciais do pensamento filosófico.
Por mito deve entender-se, ainda, não só o conjunto de narrativas
tradicionais dos poetas, mas também uma atitude intelectual, algo como
uma espécie de esquema mental subjacente a tais explicações. São várias as
características específicas do mito assim entendido, isto é, enquanto atitude
intelectual perante a realidade. Importa-nos considerar fundamentalmente
duas. Em primeiro lugar, as forças naturais (o fogo, o vento, etc.) são
personificadas e divinizadas no mito: trata-se de deuses pessoais cuja
presença e actuação como tais se faz continuamente sentir no decurso dos
acontecimentos. Em segundo lugar e em consonância com o anterior, os
fenómenos e acontecimentos do Universo dependem da vontade de um deus
(dos deuses em geral). As consequências daí decorrentes são facilmente
compreensíveis: os fenómenos naturais – e bem assim a conduta humana,
individual e colectiva – são em grande medida imprevisíveis, acontecem de
modo arbitrário, no seu decurso dependem da vontade caprichosa da
divindade.
É óbvio que, dentro destas coordenadas, é impossível haver ciência. A
ciência só é possível enquanto procura das leis e das regularidades que
regem a natureza; ora, se por princípio se nega a própria existência de leis
que regem o Universo, como proceder então para as descobrir?
Convém assinalar, por outro lado, que o quadro do pensamento mítico,
que estamos a traçar, é em certa medida esquemático. A arbitrariedade no
curso dos acontecimentos (sejam humanos ou cósmicos) tem certas
limitações mesmo no pensamento mítico. A própria actuação dos deuses
está submetida a certas forças de carácter cósmico, como o destino. Estas
forças são entidades mais ou menos imprecisas que, ao contrário dos deuses
a que anteriormente nos referimos, não são pessoais, mas abstractas. Contra
o destino nada podem os homens, nada podem os deuses. Deste modo, o
destino acaba por estabelecer uma certa necessidade no acontecer universal.
A filosofia por um lado criticará a arbitrariedade das intervenções divinas
a que acima nos referimos e, por outro, conservará esta ideia de
necessidade, despojando-a do seu carácter ilógico e inescrutável e
afirmando-a como uma exigência da racionalidade do real.

1.2.2. A explicação racional (logos)

Convém acentuar que a explicação racional ( logos) começa quando a


ideia de arbitrariedade é definitivamente suplantada pela ideia de
necessidade, ou seja, quando se impõe a convicção de que as coisas
acontecem quando e como têm de acontecer. Esta convicção pode hoje
parecer-nos elementar, mas constitui certamente uma das mais importantes
conquistas da cultura ocidental.
Esta ideia de necessidade está associada a um conjunto de ideias que
constituem o que podemos denominar coordenadas ou esquema intelectual
dentro do qual tem lugar a explicação racional na filosofia grega.

a) A ideia de que as coisas acontecem como têm de acontecer está


relacionada com a ideia de permanência ou constância. Tomemos um
exemplo muito simples: a água comporta-se de maneira constante (por
exemplo, ferve e solidifica sempre a determinadas temperaturas); possui,
pois, propriedades constantes e, por conseguinte, uma maneira de ser
constante ou permanente. Esta maneira de ser constante ou permanente foi
denominada pelos Gregos essência (eidos). A essência é o que uma coisa é
apesar das suas possíveis mudanças de aparência ou estado. A água do
nosso exemplo poderá apresentar-se em estado sólido ou líquido, etc., mas é
sempre água. Ou seja, o homem apresentar-se-á sob diversas aparências,
idades, raças, culturas, etc., mas em todos estes casos trata-se sempre de
homens.
Desta forma, o pensamento grego conseguiu estabelecer uma série de
conceitos opostos dois a dois, cuja trama constitui o sistema de coordenadas
da sua explicação da realidade. Por um lado, temos o que há de
permanente nas coisas face ao que nelas há de mutável, face aos seus
diferentes estados ou aparências; o permanente constitui, por seu turno, a
essência (o que as coisas verdadeiramente são) face às suas aparências (o
que as coisas parecem ser); por último, esta maneira de ser constante é o
que existe de comum ou idêntico entre seres que apresentam aparências
diversas: homens de raças e culturas diferentes etc., têm em comum
precisamente o facto de serem homens. A essência é, portanto, o
fundamento da unidade das coisas face à multiplicidade dos seus estados e
aparências, bem como face à multiplicidade de indivíduos que dela
compartilham.
Conhecer as coisas será, então, conhecer o que elas verdadeiramente
são, o que têm de comum e permanente. Os Gregos estavam firmemente
convencidos de que, por muito útil que o conhecimento sensível possa ser,
os sentidos não bastam para nos proporcionar esse conhecimento. Pelo
contrário, os sentidos mostram-nos uma multiplicidade de indivíduos, de
aparências e de estados mutáveis e acidentais. É necessário um esforço
intelectual, racional, para atingir o ser das coisas. Deste modo, e em
correspondência com a dualidade anteriormente estabelecida (unidade e
permanência face à pluralidade e mudança), os Gregos estabeleceram ainda
uma dualidade no campo do conhecimento: a razão face aos sentidos. A
heterogeneidade do conhecimento racional relativamente ao conhecimento
sensível revelou-se aos gregos fundamentalmente no domínio das
matemáticas, na descoberta da estrutura matemática subjacente ao real e na
especificidade do raciocínio matemático. A distinção entre os dois tipos de
conhecimento e a presença de ambos no homem teria, por seu turno,
importantes repercussões nas suas ideias antropológicas. O que foi dito
pode representar-se por meio deste gráfico:

O MITO DE PROMETEU
Quando os deuses e os homens se separaram em Mecona, Prometeu
ofereceu um boi enorme que dividiu com ânimo resoluto, pensando
enganar a inteligência de Zeus. De um lado, pôs a carne, as miudezas, a
gordura, ocultando-as no ventre do boi; do outro lado, com astúcia falaz,
juntou os ossos descarnados do boi e dissimulou-os, cobrindo-os com
gordura luzidia.
Então o pai dos homens e dos deuses dirigiu-se a ele: «Filho de
Jápeto, o mais ilustre de todos os deuses, amigo meu, repartiste os lotes
tão parcialmente!».
Assim falou Zeus, conhecedor dos desígnios imortais, em tom de
brincadeira. O astuto Prometeu respondeu-lhe com um leve sorriso e não
ocultou a sua falaz astúcia:
«Zeus, o mais ilustre e poderoso dos deuses sempiternos! Escolhe o
lote que o coração no teu peito te dita».
Falou certamente com pensamentos falsos. E Zeus, sabedor dos
desígnios imortais, reconheceu o logro; mas o seu coração estava já a
preparar desgraças para os homens mortais e ia dar-lhes cumprimento.
Com ambas as mãos recolheu a gordura branca. As suas entranhas
irritaram-se e a cólera atingiu-lhe o coração quando viu os descarnados
do boi e a falaz astúcia. Foi a partir daí que sobre a terra as tribos de
homens queimam os ossos descarnados para os imortais quando fazem
sacrifícios nos altares. E Zeus, pastor das nuvens, terrivelmente
indignado, disse a Prometeu:
«Filho de Jápeto, conhecedor dos desígnios de todas as coisas, amigo
meu, certamente não te esqueceste já da tua falaz astúcia!».
Assim falou Zeus colericamente, conhecedor dos desígnios imortais. E
desde então lembrou-se sempre deste logro e não deu a infatigável chama
de fogo aos fresnos [os homens mortais que habitam sobre a terra].
Mas o sagaz filho de Jápeto ludibriou-o, escondendo numa oca o
brilho intenso do incansável fogo.
Quando Zeus altissonante viu que os homens possuíam o brilho
intenso do fogo, a sua alma feriu-se de novo e o seu coração irritou-se. E
imediatamente, como contrapartida para o fogo, preparou uma desgraça
para os homens.
Por vontade do Crónida, o ilustre Patizambo modelou então em terra
uma imagem com aparência de donzela casta. A deusa Atena de olhos
glaucos deu-lhe uma faixa e adornou-a com um vestido resplandecente de
brancura; cobriu-lhe a cabeça com um magnífico velo bordado pelas suas
próprias mãos; e rodeou os seus seios com deliciosas coroas de erva
fresca trançada com flores...
Logo que preparou o belo mal, em troca de um bem, levou-a para
onde estavam os outros deuses e os homens, engalanada com os atavios
da deusa de olhos glaucos, filha do poderoso pai; e um espanto enorme se
apoderou então dos deuses imortais e dos homens mortais quando viram
o espinhoso engano, irresistível para os homens. É desta donzela que
descende a estirpe das mulheres feminis [...]. Foi uma grande calamidade
para os mortais, dado que a vida dos varões não se conforma com a
penúria funesta mas sim com a saciedade.
Tal como nas colmeias abobadadas as abelhas alimentam os zangãos
sempre ocupados com tarefas mesquinhas (durante todo o dia até ao pôr-
do-sol elas afadigam-se diariamente e fazem brancos favos de mel, ao
passo que eles aguardam nos favos recobertos e recolhem no seu ventre o
esforço alheio), assim também Zeus altissonante fez com que as
mulheres, sempre ocupadas com tarefas perniciosas, fossem uma
desgraça para os homens mortais.
Hesíodo, Teogonia

b) Há, pois, essências ou maneiras de ser que são comuns a uma


multiplicidade de indivíduos. Nesta ideia se baseia a actividade intelectual
que consiste em classificar. Suponhamos agora que, baseando-nos nesta
ideia, classificamos globalmente os seres do Universo agrupando-os em
minerais, plantas, animais e homens. Deter-se-á aqui o entendimento
humano? Decerto que não. O entendimento voltará a fazer a si próprio a
mesma pergunta sobre os indivíduos pertencentes a estes grupos. Talvez –
pensará – minerais, plantas, animais e homens não sejam senão variedades
ou estados distintos de uma única substância, ou então o resultado de
combinações várias de umas tantas – poucas – substâncias primeiras e
elementares.
A busca do permanente e comum está associada a uma segunda
convicção fundamental: que todo o Universo se reduz, em última análise,
a um ou a poucos elementos. Esta convicção constitui outro dos pilares
sobre os quais assenta a investigação racional acerca do Universo. Sem esta
convicção, a ciência é igualmente impossível.
É esta perspectiva que permite compreender a originalidade e a
transcendência histórica da interrogação dos filósofos gregos acerca da
arché ou princípio último real. Com efeito, a partir desta perspectiva é
possível compreender que a própria interrogação da arché ou princípio é
muito mais importante do que as variadas respostas que os filósofos gregos
foram sucessivamente tentando. Há pessoas de escassa sensibilidade
histórica que se limitam a sublinhar a ingenuidade de Tales de Mileto
quando este afirmava que a água é o princípio último de tudo o que é real.
A resposta de Tales não é realmente importante. O que é notável e genial é
que este filósofo foi o primeiro a formular tal pergunta em toda a sua
amplitude e radicalidade.

1.3. A natureza (physis)

Nos parágrafos anteriores, procurámos evitar a utilização do termo


«natureza». Vamos agora tentar tornar claro o significado e importância
desta ideia no pensamento grego, bem como a sua relação com o conjunto
de conceitos já expostos que servem de coordenadas à explicação racional
ou logos.
Comecemos por observar que de um modo geral «natureza» ou «physis»
possui para os Gregos, e para nós, dois grandes usos ou acepções. Fala-se
frequentemente da natureza como o conjunto de seres que povoam o
Universo, excluindo deste conjunto as coisas produzidas pelo homem (mais
adiante veremos a importância desta excepção): assim, fala-se actualmente
da degradação da natureza provocada pela actividade industrial humana e
da necessidade de protegê-la; na linguagem religiosa, diz-se que «a natureza
inteira louva o seu Criador», etc. Nesta acepção, a natureza coincide com a
totalidade do Universo.
É também com frequência que o termo natureza adquire um segundo
significado quando o utilizamos para referir classes ou conjuntos de coisas;
é o que acontece quando nos interrogamos acerca da natureza humana.
Neste caso, natureza quer dizer o que as coisas são, aquilo que (no
parágrafo anterior) denominávamos por essência, o modo de ser
permanente ou constante.

1.3.1. A natureza segundo os Gregos

Estabelecido este duplo uso do termo (como universo na sua totalidade e


como ser intrínseco permanente das coisas), salientaremos em seguida os
aspectos que caracterizam a natureza) segundo a filosofia grega.

a) Em primeiro lugar, o conceito de natureza – e isto é válido para a


dupla acepção referida – está indissoluvelmente ligado ao conceito de
necessidade a que anteriormente nos referimos. No tocante ao Universo
como totalidade, a necessidade traduz-se no facto de aquele ser um todo
ordenado, um Cosmos e não um Caos. Ora o Universo só poderia ser um
todo ordenado se os diferentes seres que o integram (os astros, a Terra, os
elementos, os seres vivos) estivessem no seu lugar e se comportassem da
forma que lhes compete; é precisamente a natureza dos diferentes seres
(entendida agora no seu sentido próprio e intrínseco) que determina o seu
lugar no Universo e a sua maneira de comportar-se.

b) A natureza não é algo estático e inerte. O Universo como totalidade


revela uma ordem dinâmica na qual os movimentos dos astros, as estações,
as gerações dos seres vivos, etc., se sucedem ordenadamente. A natureza é,
pois, dinâmica. Negar a mudança e o movimento é negar a natureza. Por
isso, Aristóteles chamará aphysikós a Parménides, isto é, negador da
natureza, pois Parménides, como mais adiante veremos, negava a
possibilidade do movimento.

c) A natureza implica, pois, movimento e actividade, mas movimento


e actividade intrínsecos e próprios do ser natural. Este terceiro e
importantíssimo aspecto marca a separação radical entre os seres naturais e
os seres artificiais ou artefactos, isto é, as coisas que são produto do
trabalho e da indústria humanos. Uma cadeira, enquanto cadeira, não possui
propriedades diferentes das que lhe cabem por força dos materiais naturais
de que é feita. Parafraseando Aristóteles, suponhamos que semeamos
cadeiras de pinho. Nada crescerá, com certeza. Mas supondo que algo
crescesse, não cresceriam cadeiras (felizmente para os carpinteiros) mas
pinheiros: estes têm uma actividade intrínseca e própria que uma cadeira –
ente artificial – não possui.
É precisamente por causa desta actividade intrínseca e própria que
caracteriza a natureza que o Universo não pode ser concebido, em geral,
pelos Gregos segundo o modelo de uma máquina (o modelo da máquina
presidirá à concepção do Universo na modernidade); terá de conceber-se
segundo o modelo de um organismo vivo.

1.3.2. Natureza, essência, origem, causa

Passemos agora à segunda questão: a relação que esta ideia de natureza


mantém com o conjunto de conceitos que anteriormente considerámos
como a trama da explicação racional ou logos. Tudo o que até agora
expusemos permite-nos compreender esta relação de acordo com as
observações seguintes.
Enquanto modo de ser próprio e permanente das coisas, a natureza
identifica-se realmente com aquilo que denominávamos essência. Existe, no
entanto, uma importante diferença de matiz resultante do carácter dinâmico
da natureza que assinalámos: a essência é a maneira de ser permanente das
coisas por oposição aos seus aspectos variáveis e mutáveis; a natureza é
esse mesmo modo de ser permanente, mas só enquanto determina um certo
tipo de actividades ou operações próprias.
Aplicando esta diferença ao quadro de oposições exposto na secção
1.2.2., diremos que, enquanto a essência prescinde dos aspectos mutáveis e
variáveis das coisas, a natureza explica precisamente essas variações e
mudanças. O conceito de natureza estabelece, portanto, uma ponte entre os
membros das diferentes oposições do gráfico a que nos referimos: é o
permanente, mas enquanto explica as mudanças; é o que as coisas
realmente são, mas enquanto fundamento do que parecem ser; é o princípio
de unidade capaz de gerar a pluralidade. Assim interrogar-se acerca da
natureza é interrogar-se sobre o que as coisas são para, a partir daí,
explicar os seus movimentos e processos.
A pergunta dos filósofos gregos é desde o primeiro momento (desde
Tales de Mileto) uma pergunta pela natureza, pela physis. O princípio ou
princípios últimos (a água, o ar, etc.) são a natureza das coisas, porque:

– são aquilo a partir do qual se geram os seres do Universo. O princípio


assim concebido é a origem;
– são aquilo em que consistem os seres do Universo (na hipótese de
Tales, as coisas não só procedem da água como são, em última análise,
água). O princípio assim concebido é o permanente, o substrato último;
– são aquilo que é capaz de explicar as diferentes transformações do
Universo. O princípio assim concebido é a causa.

A interrogação dos filósofos gregos acerca do princípio ou princípios da


totalidade do real apresenta, pois, uma dupla característica: a sua
radicalidade, na medida em que pretende alcançar o princípio ou princípios
últimos e originários; e a sua universalidade, na medida em que aspira a
atingir o princípio ou princípios de todo o real. Trata-se, portanto, de uma
interrogação filosófica ou, mais exactamente, da interrogação que dá início
à filosofia.
O SUBSTRACTO MATERIAL COMO ARCHÉ
A maioria dos primeiros filósofos pensou que os únicos princípios de
todas as coisas eram de natureza material: todos o seres eram assim
constituídos, formando-se primeiro a partir disso e nisso se decompondo
por último, permanecendo no entanto a entidade por mais que as suas
qualidades mudem. Esse era o elemento e o princípio que constituía os
seres, e por isso pensaram que nada se gerava nem se destruía porque
essa natureza se mantinha sempre a mesma. Do mesmo modo não
dizemos que Sócrates é uma entidade total quando se torna belo ou
músico, ou que se destrói quando perde tais disposições (já que o sujeito,
o próprio Sócrates, permanece); o mesmo acontece relativamente a todas
as outras coisas.
Por conseguinte, deve haver alguma natureza, seja uma ou mais de
uma, a partir da qual tudo é gerado mas conservando-se essa natureza.
Aristóteles, Metafísica 1, 3, 993b 6-20.
2. OS PRÉ-SOCRÁTICOS, MODELOS DE
EXPLICAÇÃO DA NATUREZA

O tema fundamental de que os primeiros filósofos, os pré-socráticos, se


ocupam é a natureza ou physis. Daí também serem frequentemente
denominados cosmólogos ou físicos (Aristóteles chamava-lhes physikoi, ou
seja, físicos, ou, se preferir, filósofos da natureza). A sua actividade
desenvolve-se durante o século VI e a primeira metade do século V a.C.
(ver quadro cronológico seguinte).
Nem todos os filósofos pré-socráticos propuseram o mesmo modelo de
explicação racional da natureza.
Exporemos de seguida os diversos modelos a que recorreram.
2.1. Natureza e substrato. A escola de Mileto

Embora a ideia de natureza ( physis) remeta para o princípio (arché) e


este abarque as ideias de origem, substrato e causa, não podemos deixar de
levantar uma séria questão: será possível que uma única realidade ou
substância seja capaz de exercer sozinha todas estas funções?
Os filósofos de Mileto – Tales, Anaximandro e Anaxímenes –
consideraram que era possível, estabelecer um único princípio ou natureza.
Tales de Mileto sustentou que esse princípio é a água; Anaximandro
considerou que tal princípio não pode ser nenhuma das substâncias
concretas que povoam o Universo, já que todas elas procedem desse
princípio; por isso chamou ápeiron (o indeterminado, o indefinido) ao
princípio; Anaxímenes, finalmente, à semelhança de Tales, recorreu a uma
substância determinada e afirmou que o princípio é o ar, do qual todos os
seres derivam, através de processos de rarefacção e de condensação.
Não se encontram quaisquer escritos de Tales ou de Anaxímenes.
Contudo e felizmente, um comentarista de Aristóteles, Simplício (séc, VI d.
C.), transmitiu-nos as seguintes e preciosas linhas de Anaximandro: «A
geração dos seres existentes tem lugar a partir daquilo que conduz à sua
destruição, como é justo e necessário. E indemnizam-se e pagam o seu
castigo uns aos outros pelas suas ofensas (ou injustiça: adikía) segundo a
ordem do tempo». Nestas linhas, surge poeticamente expressa a ideia de
que o Universo constitui um processo em que a destruição de uns seres dá
lugar ao surgir de outros seres opostos e vice-versa, bem como a afirmação
de que este processo é necessário, alheio a qualquer arbitrariedade, e
regular, «segundo a ordem do tempo».

2.2. Natureza e matemáticas. A escola pitagórica

Os pitagóricos foram sobretudo matemáticos («os primeiros que fizeram


progredir as matemáticas», como diz Aristóteles) e a sua dedicação às
matemáticas exerceu influência definitiva na sua explicação acerca da
origem da natureza (origem, substrato e causa) do real. Observaram, com
efeito, como múltiplas propriedades e comportamentos dos seres reais
podem ser formulados matematicamente e partiram da hipótese de que
todos os seres do Universo – o que são e a sua forma de comportar-se – são
formuláveis matematicamente. A partir de então, a ciência beneficiou
continuamente desta hipótese, confirmando-a sempre.

Tales de Mileto
Nascido na segunda metade do século VII a. C., desenvolveu a sua actividade intelectual na
primeira metade do século seguinte. Astrónomo (predisse o eclipse do Sol ocorrido no ano de
585 a. C.), engenheiro e matemático (formulou o teorema que tem o seu nome), Tales é
considerado o primeiro filósofo grego ao introduzir a investigação racional acerca do princípio
ou arché do real.

Compatrício, discípulo e sucessor de Tales foi Anaximandro nascido


talvez nos últimos anos do século VII a. C. e que morreu em meados do
século VI. Foi também astrónomo, geómetra e geógrafo (desenhou um
mapa do mundo) e escreveu uma obra que – como muitas outras dos
filósofos pré-socráticos – foi posteriormente intitulada Acerca da Natureza.
De Mileto foi também Anaxímenes, um pouco mais jovem do que
Anaximandro. Sabemos muito pouco a seu respeito, salvo que escreveu
também uma obra acerca da natureza na qual expunha as suas teorias.

Pitágoras
A sua maturidade situa-se por volta do ano 530 a. C. Nasceu em Samos, mas emigrou para a
Grande Grécia, estabelecendo-se em Crotona onde fundou a sua escola. A sua figura depressa se
converteu em lenda. Atribui-se-lhe a invenção da tábua de multiplicação e do teorema que tem o
seu nome. Visto que nada escreveu, torna-se impossível distinguir as suas próprias contribuições
das da sua escola. A escola pitagórica foi uma comunidade singular de carácter científico,
religioso e político. No campo científico, cultivaram especialmente a matemática, a música e a
astronomia. No âmbito religioso, afirmavam a imortalidade da alma e a sua transmigração,
atribuindo uma importância fundamental à sua purificação através do conhecimento e de um
sistema de vida rigidamente regulado por proibições. No campo político, apoiavam o partido
dórico e exerceram o poder durante muito tempo, até que, a meio do século V a. C., se verificou
uma rebelião em que morreu a maior parte dos membros da escola. Alguns, como Filolau,
fugiram e estabeleceram-se em Tebas. Outros continuaram ainda por meio século na Grande
Grécia, até à sua dispersão definitiva.

Também a partir de então, esta dócil submissão do Universo às


matemáticas constituiu motivo de reflexão. Porque é que os seres do
Universo se acomodam às matemáticas? Os pitagóricos consideraram
como única explicação possível que os princípios das matemáticas são
também os princípios dos seres reais, e como os princípios das matemáticas
são os números, afirmaram que os números constituem a natureza do
Universo. A partir desta afirmação, dedicaram-se a uma dupla tarefa: por
um lado, atribuir (por meio de procedimentos em grande medida arbitrários)
um número a cada coisa; por outro, e visto que os números são muitos,
perguntaram-se de que são constituídos e donde procedem os mesmos
números (o que equivalia a perguntar, como vimos, de onde procedem, em
última análise, os seres reais).
Os números – afirmavam – procedem de dois elementos, o par e o
ímpar. Os pitagóricos adoptavam assim não uma explicação monista mas
dualista da natureza e conseguiram estabelecer uma série de oposições entre
dois termos (par-ímpar, limitado-ilimitado, bom-mau, luz-obscuridade,
etc.), as quais mais não são do que aspectos ou concreções dos princípios
originais propostos. Talvez – não sabemos – os pitagóricos antigos se
tivessem perguntado se seria possível reduzir estes opostos a um único
princípio original do qual ambos procederiam.

2.3. Natureza e logos. Heraclito e Parménides

2.3.1. Heraclito

Heraclito é tradicionalmente considerado como o filósofo que afirmou


radicalmente que tudo muda e nada permanece, que o Universo, não é mais
do que contínuo devir no qual a lei da identidade – a identidade de cada
coisa consigo mesma – carece de vigência, pois todas as coisas estão
submetidas a uma contínua transformação. Postas as coisas assim tão
simplesmente, Heraclito teria negado os próprios pressupostos da
explicação do real (o permanente face ao mutável, a unidade face à
pluralidade, o que é face ao que parece ser), estabelecendo a absoluta
irracionalidade do real. Esta interpretação da filosofia de Heraclito não é
falsa, mas é sem dúvida unilateral. Tudo muda, com efeito, mas o devir não
é irracional, caótico, já que se realiza de acordo com certas leis e
proporções. A lei ou logos interno do devir universal constitui o verdadeiro
princípio explicativo do Universo.
O Universo é fogo («este Cosmos, o mesmo de todos, não o fez
nenhum deus nem nenhum homem, mas sempre foi, é e será fogo
eterno que se acende segundo a medida e conforme a medida se
extingue», fg. 30); a lei que rege o Universo é a luta dos contrários («a
guerra é o pai de todas as coisas e rei de todas as coisas, a uns fez
deuses e a outros fez homens», fg. 53); os contrários constituem, em
última análise, uma unidade profunda («Deus é dia-noite, Inverno-Verão,
guerra-paz, fartura-fome», fg. 67); a harmonia que caracteriza o Universo
(«harmonia oculta», fg. 54), não é afinal uma harmonia estática, mas o
equilíbrio dinâmico das tensões entre os contrários, uma harmonia tensa
«como acontece com o arco e com a lira» (fg. 51).
Ao procurar a ordem e inteligibilidade do real, não em seus aspectos
estáticos mas no seu dinamismo, não na identidade mas na contradição, na
luta dos contrários, Heraclito chamou pela primeira vez a atenção para a
dialéctica.

2.3.2. Parménides

Parménides representa um marco decisivo na evolução da filosofia


grega. De facto, como consequência da sua doutrina, a filosofia da natureza
tomará um rumo e princípios totalmente diferentes. Parménides escreveu
um Poema que consta de uma introdução ou proémio e de duas partes
perfeitamente distintas. Na primeira – usualmente intitulada Via da Verdade
– Parménides expõe a sua concepção da realidade; na segunda – intitulada
Via da Opinião – expõe a origem e a configuração do Universo.

a) Via da Verdade
A doutrina de Parménides sobre a realidade, sobre o que há ou existe,
pode ser resumida em duas afirmações:

1. A partir de uma única realidade é impossível que surja a


pluralidade, contra o que afirmavam os milésios (e que talvez os
pictagóricos do seu tempo discutissem, como insinuámos). Efectivamente,
suponhamos que originalmente existia apenas água: porque não continua a
existir somente água? Se existia apenas água, esta não pôde gerar-se a partir
de outra substância (que, por hipótese, não existia) e muito menos
transformar-se noutra coisa ou desaparecer (o que poderia fazê-la
desaparecer ou transformar-se, se além dela nada mais existe?). O que
desde sempre não existe nem existia, não pode originar-se; o que existe
desde sempre não pode ser destruído. O que existe, o que é (o ente), é,
segundo Parménides, não-engendrado, indestrutível, imutável, finito,
compacto, homogéneo, indivisível e esférico.

Parménides
Nasceu nos finais do século VI a. C. e a sua importância filosófica é enorme, uma vez que a
sua obra divide a filosofia pré-socrática da natureza em dois períodos bem definidos: o dos
sistemas monistas anteriores a ele e o dos sistemas pluralistas, que lhe são posteriores. Talvez
tivesse sido pitagórico na sua juventude. Escreveu um Poema em verso que – além do proémio,
de carácter alegórico-religioso – compreendia duas partes claramente distintas: na primeira – via
da verdade – expõe a sua doutrina da realidade, do ente único e imóvel: na segunda, apresenta
uma cosmologia de tipo tradicional, narrando a origem e criação do Universo.
O nome de Parménides está associado ao do poeta Xenófanes. Teofrasto diz que Xenófanes
– que nas suas obras critica energicamente a teologia mítica de Homero – foi o mestre de
Parménides. Foram seus continuadores Melisso e Zenão de Eleia, tendo este último proposto
argumentos engenhosos para demonstrar a impossibilidade do movimento.

2. Juntamente com estas características ou propriedades, Parménides


deduz também que o que existe deverá ser único, isto é, uma única
realidade.
As consequências destas duas afirmações são peremptórias e iniludíveis:
se, por um lado, de uma única realidade não pode surgir a pluralidade e se,
por outro, a razão nos força a aceitar a existência de uma só realidade, não
haverá outro remédio senão declarar que o movimento e a pluralidade são
irracionais e ininteligíveis. Dentro das coordenadas da explicação racional
expostas no capítulo anterior, Parménides elimina a mudança ao afirmar o
permanente; elimina o que as coisas parecem ser (múltiplas e mutáveis) ao
afirmar o que são (uma única realidade); elimina a pluralidade ao
estabelecer a unidade; elimina, finalmente, o conhecimento sensível,
sacrificando-o no altar da razão.
Esta visão monista da realidade é, no entender de Parménides, uma
exigência necessária da razão, do logos. O raciocínio de Parménides recai
sobre a noção abstracta de o que existe, o ente, e desenvolve-se em dois
momentos sucessivos. Em primeiro lugar, a razão enfrenta-se com a
disjunção: «existe ou não existe (o que existe)?» fg. VIII, 15-16; face a esta
disjunção, terá necessariamente de afirmar-se que o que existe, existe, que o
ente é. Em segundo lugar, a razão enfrenta uma nova disjunção: «o que
existe, o ente, existe ou será que existiu ou existirá, mas não existe?» (fg.
VIII, 20), a razão volta a afirmar necessariamente o primeiro e exclui desse
modo toda a existência passada ou futura, mas não actual. Desta maneira,
chega-se às características da realidade que acima assinalámos. No
raciocínio de Parménides, o logos recai sobre uma noção formal e abstracta
de ente, de realidade: formal, porque se atende exclusivamente ao jogo
lógico desta noção; abstracta, porque nela se prescinde de todos os
aspectos diferenciadores dos entes reais.

b) Via da Opinião
Esta doutrina de Parménides sobre a realidade (única, permanente,
inalterável) mostra a impossibilidade de qualquer mudança e, portanto, de
qualquer processo de criação do Universo. Não obstante, na segunda parte
do Poema, Parménides expõe uma cosmogonia segundo a qual o Universo
teve origem em dois princípios: a claridade e a escuridão. A existência
desta segunda parte no Poema provocou um grave problema de
interpretação: de facto se a razão exige que a realidade seja uma e imutável
porque é que Parménides recorrendo à mudança e introduzindo a
pluralidade, se dá ao trabalho de nos relatar como o Universo foi criado?
Até mesmo os filósofos gregos – profundamente impressionados pelo rigor
e pelo radicalismo da doutrina de Parménides – formularam esta
interrogação. Desde então e até aos nossos dias têm surgido respostas muito
diferentes a esta questão. A diferença que Parménides estabeleceu entre as
duas vias (a da verdade e a da opinião) teve grande influência no campo da
teoria do conhecimento. A razão, como referimos, exige que a realidade
seja única e imutável; contudo, os nossos sentidos, percepções e
experiências mostram-nos a pluralidade e o movimento. A partir de
Parménides configura-se, já de um modo definitivo, a oposição entre a
razão e os sentidos, entre o conhecimento intelectual e o conhecimento do
visível. Apesar de o próprio Parménides não ter enunciado explícita e
literalmente esta oposição, a sua obra contribuiu sem dúvida para a
estabelecer.

2.4. O mecanismo. Anaxágoras e Demócrito

Depois de Parménides já não era possível regressar a uma


explicação monista da natureza, já que aceitar uma única realidade como
origem, substrato e causa era condenar-se a não poder explicar nem a
pluralidade nem o movimento. Por isso surgiram as filosofias pluralistas de
Empédocles, Anaxágoras e Demócrito.

Demócrito
Nasceu em Abdera (Trácia) no ano 460 a. C., sendo portanto contemporâneo de Sócrates. O
seu mestre foi Leucipo e os nomes de ambos aparecem associados na criação do atomismo
mecanicista. Demócrito foi um escritor enciclopédico. Diógenes Laércio reproduz uma lista dos
seus escritos em que se recolhem mais de sessenta obras dedicadas a temas éticos, físicos,
matemáticos, musicais e técnicos. Desta imensa obra sobreviveram apenas curtos fragmentos.
As suas teorias chegaram até nós mentalmente através da exposição que delas fazem outros
autores, sobretudo Aristóteles.

2.4.1. Anaxágoras

Anaxágoras, como todos os pluralistas, aceita como evidente o


raciocínio parmenídeo segundo o qual nenhuma realidade nova pode
originar-se. Aceitando-se este princípio, não resta outra alternativa senão
afirmar que tudo existe desde sempre. Partículas diminutas de todas as
substâncias existiam e existem sempre (nos homens predominam as
partículas de homem, mas na realidade do homem – como aliás nos
restantes seres – há partículas ou homeomerias de todas as substâncias do
Universo: «tudo participa de tudo», diz Anaxágoras) Estas inumeráveis
partículas encontravam-se originalmente misturadas numa massa compacta
e maciça, sem interstícios nem separação alguma. Torna-se assim possível
explicar a pluralidade, mas como se explica o movimento? Como começou
a mover-se esta massa compacta originária, de tal modo que as partículas se
foram separando e unindo para dar lugar aos diferentes seres? Anaxágoras
recorre a uma causa exterior, o entendimento, o nous, que imprimiu a esta
massa inerte um movimento de redemoinho.
O recurso de Anaxágoras ao entendimento abre perspectivas novas que
mais tarde serão aproveitadas por Platão e Aristóteles. Com Anaxágoras
aparece pela primeira vez de modo explícito a ideia de Deus como princípio
que rege o Universo. Isso parecia conduzir a uma concepção da Ordem do
Universo como o resultado de uma Inteligência que actua de acordo com
fins, de maneira tal que o resultado dos processos naturais seria sempre a
consecução do melhor, da máxima perfeição e beleza. O entusiasmo com
que Sócrates acolheu a leitura da obra de Anaxágoras é-nos descrito num
diálogo de Platão, o Fédon, em que Sócrates recorda: «Pois bem, em certa
ocasião ouvi a leitura de um livro de Anaxágoras em que se dizia que o
Entendimento é o ordenador e causa de tudo. Tal causa encheu-me de
alegria e pareceu-me muito certo que o Entendimento fosse a causa de tudo.
E pensei que, a ser assim, o Entendimento Ordenador ordenaria todas as
coisas e disporia cada uma de forma a alcançar o estado mais perfeito»
(Fédon, 97b). No entanto, Anaxágoras só de passagem aborda este aspecto
implícito na sua cosmologia, atribuindo de facto o papel fundamental na
construção do Universo ao redemoinho e, por conseguinte, a forças de
carácter mecânico. No mesmo diálogo platónico, Sócrates exprime mais
adiante a desilusão que Anaxágoras lhe produziu: «Mas, amigo, tive de
abandonar a minha maravilhosa esperança quando, avançando em sua
leitura, observei que este homem (isto é, Anaxágoras) não se servia do
Entendimento, mas recorria a causas como o ar, o éter e muitas outras
coisas estranhas.» (98b).
A filosofia de Anaxágoras situa-se, pois, entre o finalismo e o
mecanicismo.

2.4.2. Demócrito

Demócrito juntamente com o seu mestre, Leucipo – ofereceu uma


resposta mais audaz e mais radical do que a de Parménides. Aceita também
como indiscutível a afirmação de Parménides segundo a qual a pluralidade
não se pode originar de uma única realidade. Mais ainda, aceita que o real
deve possuir as características estabelecidas pelo raciocínio de Parménides:
inengendrado, indestrutível, imutável, finito, compacto, homogéneo e
indivisível. Aceita todas as características excepto duas: a esfericidade (há
átomos esféricos, mas também os há de outras formas e figuras) e a
unicidade. Segundo Parménides, não pode haver mais do que uma única
realidade. Porquê? Suponhamos que existem duas ou mais realidades, dois
ou mais entes: deverá forçosamente haver alguma separação real entre eles,
pois, caso contrário, não seriam duas mas uma única realidade contínua.
Pois bem, argumentava Parménides, se entre eles há realmente separação, o
que se interpõe entre eles? Não é possível contestar que se interpõe algo
real, pois voltaríamos à situação anteriormente descrita: não duas mas
apenas uma única realidade contínua. Interpor-se-á entre eles algo de não-
real? Mas como pode interpor-se algo que não seja real? Algo não real é
algo que não é, e portanto não pode dividir-se nem interpor-se.
É perante este dilema que a audácia intelectual dos atomistas se
manifesta. Entre a multidão de realidades (átomos), cuja existência
pretendem estabelecer, interpõe-se certamente algo, o vazio. Os atomistas
concedem de boa vontade a Parménides que o vazio que separa os átomos
não é real, se por real se entende a matéria existente: somente os átomos são
reais neste sentido e o vazio pode muito bem ser caracterizado como não-
ente por Parménides; com efeito o vazio é algo real, se por real se entende o
que efectivamente existe.
Juntamente com os átomos, o vazio faz parte da natureza do Universo. O
papel desempenhado pelo vazio é decisivo. Não só torna possível a
pluralidade como também o movimento. Como vimos, Anaxágoras
admitira uma pluralidade de partículas originalmente misturadas numa
massa compacta. Não admitindo o vazio, estas partículas ficavam
«aprisionadas» na massa originária compacta e inerte. Admitindo o vazio,
os átomos podem mover-se livremente nele. A pergunta «porquê e como se
iniciou o movimento?» tem sentido no caso de Anaxágoras (iniciou-o o
nous ou entendimento), mas não tem qualquer sentido no atomismo: o
movimento não se iniciou em nenhum movimento, os átomos movem-se
eternamente no vazio.
O atomismo de Leucipo e Demócrito estabeleceu definitivamente uma
concepção, um modelo mecanicista da natureza levado até às últimas
consequências: o Universo não é presidido por plano algum traçado por
uma Inteligência transcendente, e também não existe finalidade imanente
que forneça inteligibilidade aos processos naturais. O Universo é o
resultado de uma necessidade cega e opaca que para o homem acaba por
confundir-se com o acaso. O modelo mecanicista permanecerá como
modelo sempre disponível após um longo período de obscurecimento
voltando a ressurgir com veemência a partir da Modernidade.
O sistema atomista constituiu a última resposta do pensamento pré-
socrático à doutrina de Parménides. No que se refere à teoria do
conhecimento, Demócrito radicalizou a oposição entre a razão e os
sentidos, entre o conhecimento intelectual e o conhecimento sensível, uma
oposição que – como indicámos – surgia já no Poema de Parménides. Só a
razão nos garante o conhecimento e nos revela os verdadeiros princípios das
coisas, a verdadeira realidade dos átomos e do vazio. Por sua vez, as
qualidades que apercebemos por via dos sentidos (cores, odores, calor e
frio, etc.) não são reais, não são propriedades reais dos átomos; são apenas
impressões resultantes da interacção dos átomos do nosso corpo com os
átomos do exterior.
2. OS SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO

INTRODUÇÃO

A actividade intelectual dos últimos filósofos pré-socráticos prolonga-se


bastante pela segunda metade do século V a.C. É o caso de Demócrito e
Anaxágoras (este último amigo íntimo e mentor intelectual de Péricles). No
entanto, na segunda metade do século V a. C. ocorre uma notável
mudança de interesses intelectuais no mundo grego. Os temas relativos à
filosofia da natureza, à cosmologia, passam para segundo plano e os
pensadores da época ocupam-se principalmente de questões relacionadas
com o ser humano, com a educação, a moral e a política. Para caracterizar
esta mudança de interesses utiliza-se frequentemente a expressão «mudança
antropológica».
Esta orientação da filosofia para os assuntos humanos foi levada a cabo
por um conjunto de intelectuais habitualmente designados sofistas. Os
primeiros sofistas e os mais importantes, como Protágoras e Górgias, não
eram atenienses, embora tenha sido em Atenas que angariaram a sua
influência e reputação. A primeira parte capítulo é dedicada a eles.
A segunda parte é dedicada a Sócrates. Tal como os sofistas, Sócrates
interessou-se pelos temas relacionados com o homem, particularmente
pelos temas morais. Não escreveu nada, os seus ensinamentos eram sempre
transmitidos oralmente, por meio do diálogo directo com os seus
concidadãos. Por essa razão, o conhecimento que temos dele provém das
obras de alguns contemporâneos, sobretudo dos seus discípulos, e
especialmente de Platão. Os contemporâneos de Sócrates, os concidadãos
que o condenaram à morte, certamente consideravam-no como mais um
sofista. Platão, todavia, transmitiu-nos a imagem de um Sócrates que se
opunha radicalmente às doutrinas dos sofistas.
A última parte deste capítulo é dedicada a Platão, sem dúvida o mais
genial dos seguidores e discípulos de Sócrates, detentor de um génio
filosófico brilhante e complexo. O ser humano, os temas políticos e morais
continuam a ser prioritários para Platão, mas encontramos nele um sistema
filosófico completo que também aborda questões da filosofia da natureza e
da teoria do conhecimento.

O capítulo está organizado do seguinte modo:


1. Os Sofistas.
2. Sócrates.
3. Platão.
1. OS SOFISTAS

1.1. Características gerais da sofística

Designa-se por «sofistas» um conjunto de pensadores gregos que


florescem na segunda metade do século V a. C. e que têm em comum, pelo
menos, dois aspectos relevantes: nos seus ensinamentos, incluem um
conjunto de disciplinas humanistas (retórica, política, direito, moral, etc.) e
são os primeiros profissionais do ensino (organizam cursos completos e por
ensinar cobram somas consideráveis). Ambos os aspectos – carácter
humanístico dos seus ensinamentos e institucionalização do próprio ensino
– mostram claramente que os sofistas tinham um projecto bem definido
de educação, que rompia com o ensino tradicional mas que se mostrava já
inadequado para as exigências da época. As circunstâncias que rodeiam o
aparecimento do movimento sofista são particularmente duas, uma
filosófica outra político-social: a primeira tem a ver com o desenvolvimento
das teorias físicas anteriores e a segunda com o sistema democrático
estabelecido em Atenas. Analisemo-las.

1.1.1. Os sofistas e a filosofia anterior

O desenvolvimento das teorias gregas acerca do Universo até meados do


século V a. C. (desenvolvimento que abrange os filósofos estudados no
capítulo anterior, desde Tales até Demócrito) oferece-nos um espectáculo
fascinante, sem dúvida, mas também desencorajador. Antes de mais,
desanima e escandaliza a diversidade de teorias opostas e incompatíveis que
se opõem entre si: para uns, o princípio ou arché é único (milésios), para
outros, é múltiplo (pluralistas); para Parménides, o movimento é
impossível, ao passo que para Heraclito o Universo é movimento e devir
incessante; este defenderá que o Universo é produto de uma Inteligência
(Anaxágoras), aquele afirmará que é o resultado de uma necessidade cega e
ocasional (Demócrito), etc. Não é de estranhar que este espectáculo criasse
uma atitude céptica perante a filosofia da natureza, a qual se mostrara
incapaz de produzir um sistema aceitável para todos. Mas há mais.
Tal atitude relativista e céptica não era apenas a posição que um
espectador da filosofia da natureza podia adoptar perante ela ao contemplá-
la a partir do exterior; era também a atitude onde o próprio
desenvolvimento da filosofia desembocara a partir de dentro. Já
assinalámos no capítulo anterior como o atomismo conduzia à negação da
possibilidade do conhecimento da natureza: como conhecer ou calcular as
infinitas combinações e ligações possíveis de infinitos átomos movendo-se
no vazio? O próprio Demócrito chegara a uma posição resignadamente
céptica: «a verdade está no profundo». E visto que a verdade não é
acessível ao homem, só nos restam as aparências. Era este o clima
intelectual no círculo de Demócrito. E temos de anotar como pormenor
extremamente significativo que Protágoras, o grande sofista, era
conterrâneo de Demócrito e conhecia bem a filosofia deste. Assim o
relativismo (não há verdade absoluta) e o cepticismo (se há verdade
absoluta, é impossível conhecê-la) divulgam-se e generalizam-se como
atitude intelectual. Uma célebre e feliz expressão do relativismo é a frase de
Protágoras «o homem é a medida de todas as coisas»; uma expressão
desconcertante e crua do cepticismo são as três afirmações escalonadas de
Górgias: «não há ser; se houvesse, não poderia ser conhecido; se fosse
conhecido, o seu conhecimento não poderia ser comunicado por meio da
linguagem».
O texto de Górgias que acabámos de citar revela uma ruptura radical
com a filosofia grega anterior, e posteriormente, para Platão e Aristóteles, a
realidade é racional; por isso, o pensamento e a linguagem acomodam-se a
ela e são capazes de expressá-la adequadamente. A desvinculação da
linguagem relativamente à realidade constitui um pilar importante da sua
interpretação do homem e da realidade. Com efeito, se se renunciar à
linguagem como expressão manifestadora do real, a linguagem acaba por
converter-se num instrumento de manipulação, numa arma para
convencer e impressionar as massas, num meio eficaz para impor-se aos
outros, se se dominar as técnicas apropriadas. «A palavra é um poderoso
tirano, capaz – escreve Górgias – de realizar as obras mais divinas, apesar
de ser o mais pequeno e invisível dos corpos. Com efeito, é capaz de
apaziguar o medo e eliminar a dor, de produzir a alegria e excitar a
compaixão.» (Elogio de Helena, 8).

1.1.2. Circunstâncias políticas e filosofia

Para o abandono da filosofia da natureza não contribuíram só a


circunstância filosófica assinalada no parágrafo anterior, mas também as
necessidades criadas pela prática democrática da sociedade ateniense. O
advento da democracia trouxera consigo uma notável mudança na natureza
da liderança: já não bastava a linhagem, a própria liderança política passava
pela aceitação popular. Numa sociedade em que as decisões são tomadas
pela assembleia do povo e cuja máxima aspiração é o triunfo e o poder
político, depressa se fez sentir a necessidade de estar preparado para isso.
Qual era a preparação idónea para o ateniense que pretendia triunfar na
política? Um político necessitava indubitavelmente de ser um bom orador
para manipular as massas. Necessitava, ainda, de possuir algumas ideias
acerca da lei, acerca do que é justo e conveniente, acerca da administração e
do Estado. Este era precisamente o tipo de treino que os ensinamentos dos
sofistas proporcionavam.

OS SOFISTAS E A EDUCAÇÃO
Quando nos sentámos, Protágoras disse:
– Agora que todos estão presentes, Sócrates, podes retomar o que
estavas a dizer há pouco acerca do rapaz.
Respondi então:
– Começarei, Protágoras, tal como há um bocado, com o porquê do
meu pedido. Hipócrates, aqui presente, desejara muito a tua companhia e
saber o que lhe aproveitaria a convivência contigo. É esse o nosso pedido.
Protágoras tomou a palavra:
– Se me acompanhares, jovem, cada dia comigo fará de ti uma pessoa
melhor. E cada dia te levará a um progresso contínuo até à perfeição.
Depois de o ouvir, disse-lhe:
– O que dizes, Protágoras, não é nada estranho mas natural, dado que
até tu (apesar da tua idade avançada e da tua sabedoria) te aperfeiçoarias
se alguém te ensinasse algo que não soubesses. Mas suponhamos que
Hipócrates mudava repentinamente de disposição e desejava a companhia
desse outro jovem que acaba de chegar, Zeuxipo de Heraclea e, do
mesmo modo que recorreu a ti agora, escutasse dele a mesma resposta
que tu lhe deste: que cada dia se aperfeiçoaria mais e progrediria na
companhia dele. E se alguém lhe perguntasse: «Aperfeiçoar-se e
progredir em relação a quê?», Zeuxipo replicava que seria na pintura. E,
tratando com Ortágoras, o tebano, se lhe ouvisse as mesmas coisas que tu
disseste e lhe perguntasse em que é que seria melhor cada dia estando na
sua companhia, ele responderia que seria na arte de tocar flauta. Assim,
deste modo responde-nos tu, a mim e ao rapaz, quando perguntamos:
– Hipócrates anda com Protágoras e cada dia em que convive com ele
torna-se melhor e progride... em relação a quê, Protágoras?
Depois de me ouvir, Protágoras disse:
– Boa pergunta, Sócrates. Agrada-me responder aos que sabem fazer
perguntas. Recorrendo a mim, Hipócrates não terá de suportar o que
sofreria no trato com qualquer outro sofista, porque os outros oprimem os
jovens. Com efeito, estes jovens fogem das especializações técnicas mas
eles reconduzem-nos de novo contra a sua vontade e iniciam-nos nas
ciências técnicas, ensinando-lhes o cálculo, a astronomia, a geometria e a
música – e ao dizer isto dirigiu o olhar a Hípias. Comigo, pelo contrário,
aprenderá apenas aquilo que quiser. O meu ensino consiste na boa
administração dos bens domésticos para se poder optimizar a direcção da
casa, e nos assuntos políticos, para se ser o mais capaz da cidade, tanto
nas obras como nas palavras.
– Então, digo eu, e segundo a tua exposição, parece-me que falas da
ciência da política e pretendes tornar os homens em bons cidadãos?
– Esse é o programa que eu professo, Sócrates.
Platão, Protágoras, 318A-19A.

1.2. As instituições políticas e a moral

Entre as doutrinas político-morais dos sofistas, a sua afirmação mais


característica e importante é a de que tanto as instituições políticas como
as normas e ideias morais vigentes são convencionais.

1.2.1. Sentido do convencionalismo

Na sua acepção mais geral, o termo grego nomos significa a lei, o


conjunto de normas políticas e institucionais estabelecidas que uma
comunidade humana acata e pelas quais se rege. Toda a comunidade
humana possui leis e instituições e é perfeitamente compreensível que se
interroguem acerca de sua origem e natureza.
A primeira resposta a esta questão fora dada pelo pensamento mítico-
religioso ao afirmar que as leis e instituições procedem dos deuses. Em
consonância com a sua função racionalizadora, a filosofia depressa
abandonou esta explicação mítica sobre a origem do nomos. Assim,
Heraclito já não vincula o nomos à intervenção particular de qualquer
divindade que fundara a cidade em questão num passado remoto, mas
vincula-o à ordem do Universo: a ordem do Estado é parte de uma ordem
mais ampla, a ordem do Universo, e tanto aquele como este se regem, em
última análise, por uma única lei ou logos.
O terceiro grande momento do pensamento político-moral na Grécia
(depois do mito e depois da racionalização heraclitiana) é constituído pela
sofística. A filosofia está sempre radicada num marco social, num conjunto
de experiências de carácter sócio-político. No tempo dos sofistas, a
experiência sócio-política dos Gregos havia-se ampliado definitivamente,
graças a três factores de considerável importância: em primeiro lugar, o
contacto contínuo com outros povos e culturas, o que permitiu verificar que
as leis e costumes são muito distintos nas diversas comunidades humanas;
em segundo lugar, a fundação de colónias por todo o Mediterrâneo, pois
cada nova cidade possibilitava a redacção de uma nova constituição; por
último, a sua própria experiência de mudanças sucessivas de constituição.
Estas experiências levaram os sofistas a abandonar a teoria heraclitiana
do nomos vinculado à ordem do Universo, fortalecendo neles a convicção
de que as leis e as instituições são o resultado de um acordo ou decisão
humana: são assim, mas nada impede que sejam ou possam vir a ser de
outra maneira. É isto precisamente o que significa o termo «convencional»:
algo estabelecido por um acordo e que, por conseguinte, nada impede que
possa ser de outra maneira, se se julgar conveniente. O termo grego nomos
passou, assim a significar o conjunto de leis e normas convencionais, por
oposição ao termo physis que exprime o natural, as leis e normas alheias a
qualquer acordo ou convenção, e cuja origem é a própria natureza
humana.

1.2.2. Carácter convencional da moral

Os sofistas defendiam o carácter convencional não só das instituições


políticas mas também das normas morais: o que se considera bom e mau,
justo e injusto, louvável e repreensível, não é fixo, absoluto, universalmente
válido e imutável. Para chegar a tal conclusão, os sofistas contavam com
um duplo argumento: por um lado, a falta de unanimidade acerca do que
seja o bom, o justo, etc. (falta de unanimidade que salta à vista, não só
comparando uns povos com os outros, mas comparando os critérios morais
de indivíduos e grupos diferentes dentro de uma mesma sociedade); por
outro, os sofistas costumavam estabelecer uma comparação entre as leis e
normas morais vigentes e a natureza humana.
A comparação entre as normas de conduta vigentes e a natureza humana
tem sido de uma transcendência capital na nossa cultura. O que é
verdadeiramente absoluto, imutável (isto é, comum a todos os homens), é a
natureza humana. Já vimos no capítulo anterior que estas são
precisamente as características da natureza entendida como aquilo que as
coisas verdadeiramente são. E visto que a natureza é dinâmica, isto é,
princípio das actividades e operações próprias de um ser, só será possível
conhecer a natureza humana observando qual o modo próprio e intrínseco
de os homens se comportarem.
A procura do modo próprio – natural – de os homens se comportarem
não é nada fácil, já que o nosso comportamento está condicionado pela
aprendizagem, pelas normas e hábitos que nos foram inculcados ao longo
da nossa vida. O que é, então, o natural do homem?
De um modo geral, poderia responder-se que é o que ficaria se
eliminássemos tudo o que adquirimos através dos ensinamentos que nos
foram inculcados. Os sofistas, especialmente os da segunda geração, como
Calicles e Trasímaco, utilizaram a criança e o animal como exemplos do
que é a natureza humana, prescindindo dos elementos culturais adquiridos.
A partir destes dois modelos deduzem que só há duas normas naturais de
comportamento: a procura do prazer (a criança chora quando sente dor e
sorri feliz quando experimenta prazer) e o domínio do mais forte (entre os
animais, o macho mais forte domina os outros). Quando vai contra as duas
normas, a moral vigente é antinatural. Não só é convencional (na
realidade, estaria correcto que a moral fosse convencional, mas não
antinatural se por exemplo as normas não fossem um mero acordo mas um
acordo conforme às exigências da natureza; foi esta a posição dos primeiros
sofistas, como Protágoras), mas, além disso, é contrária à natureza,
segundo os últimos e mais radicais sofistas.
É fácil compreender a transcendência destas reflexões da sofística. Com
elas inaugura-se o eterno debate acerca das normas morais, acerca da lei
natural (physis) e da lei positiva (nomos).

CONVENCIONALIDADE DAS NORMAS MORAIS


É por isso que a lei considera injusto e vergonhoso o desejo de ser
superior à maioria, e é a isto que chamam injustiça. Mas a própria
natureza, em minha opinião, demonstra que é justo que o melhor esteja
acima do pior e o mais forte acima do mais fraco. Em muitos domínios,
não só entre os animais como entre as cidades e as raças dos homens, é
evidente que é assim, que, na ordem da justiça, o mais poderoso deve
dominar o mais fraco e gozar as da sua superioridade. Que outro direito
tinha Xerxes para vir fazer guerra à Grécia, ou o seu pai aos Citas? E,
como estes, podia referir um sem número de exemplos. É que estas
pessoas, a meu ver, agem segundo a natureza da justiça, e, por Zeus,
segundo a lei da natureza, que não é, certamente, àquela que nós criámos.
Os melhores e os mais fortes de nós tomámo-los em pequenos, como aos
leões, para os domar, e escravizámo-los à custa de sortilégios e
encantamentos, dizendo-lhes que a igualdade é que é bom e que consiste
o belo e o justo. Mas se aparece um homem suficientemente dotado para
sacudir e quebrar estas cadeias e se libertar da sua prisão, sei que, depois
de pisar a pés os nossos escritos, as nossas magias e os nossos encantos e
leis antinaturais, se há-de erguer, na sua revolta, de escravo a senhor
nosso, e então brilhará em todo o seu esplendor o direito da natureza.
Platão, Górgias, 483c-84a
2. SÓCRATES

Sócrates pertenceu ao ambiente filosófico e cultural dos sofistas mas


combateu-os energicamente. Compartilha com eles o interesse pelo homem,
pelas questões políticas e morais e pela vinculação destas aos problemas da
linguagem. Distingue-se deles fundamentalmente em três aspectos:

a) não se faz pagar pelo seu ensino;


b) adopta um método totalmente oposto. Os sofistas preferiam
pronunciar longos discursos e comentar textos de poetas e autores
antigos. Sócrates recusa ambos os métodos: os longos discursos, porque
impedem a discussão passo a passo das afirmações do orador, e os
textos antigos porque não é possível interrogar os seus autores para
fornecerem esclarecimentos sobre o que escreveram. Perante estas
objecções, é claro que o único método válido para Sócrates será o
diálogo directo, no qual cada interlocutor pode replicar ao outro e
argumentar em defesa das próprias posições;
c) traz aos temas político-morais soluções radicalmente novas.

2.1. Sócrates contra o relativismo moral

Quando analisámos anteriormente a teoria convencionalista dos sofistas,


sublinhámos como estes filósofos insistiam na falta de unanimidade dos
homens a respeito do que é justo e injusto, bom e mau, louvável e
censurável. O relativismo, atitude geral dos sofistas, ficava assim
consagrado a respeito dos conceitos morais.
Sócrates não concordava com este relativismo pois pensava que se cada
um entende por justo e por bom uma coisa diferente (quer se trate do prazer,
do domínio do mais forte ou o que está de acordo com a tradição, etc.), se,
para cada um, os termos morais (bom e mau, justo e injusto) significam
coisas diferentes, a comunicação e a possibilidade de entendimento entre
os homens torna-se impossível: como decidir se uma lei é justa ou não
quando cada qual entende uma coisa diferente por «justo»? A tarefa mais
urgente é restaurar o valor da linguagem como veículo de significações
objectivas e válidas para toda a comunidade humana. Em seu entender,
torna-se necessário procurar definir com rigor os conceitos morais (justiça,
etc.).
Nos diálogos de Platão, vemos Sócrates a colocar perguntas do género:
que é a justiça? Que é a piedade? Que é a moderação? etc. Normalmente
nestes diálogos não se chega a uma definição geral da virtude ou do
conceito em questão; todavia a discussão serve para evidenciar que os
interlocutores de Sócrates carecem, de uma noção, de um conhecimento
coerente em assuntos de tão vital importância.

2.2. Virtude e saber. O intelectualismo moral

É, pois, necessário definir com precisão as virtudes e os conceitos, para


restabelecer a comunicação e tornar possível o diálogo sobre temas morais e
políticos. É necessário defini-los com exactidão, além disso, por uma
segunda razão: para Sócrates só se pode ser justo quando se sabe o que é a
justiça e só se pode agir bem quando se sabe o que é bom. A isto chama-se
intelectualismo moral, que pode definir-se como a doutrina que identifica
a virtude com o saber.

Sócrates
Filho de um escultor e de uma parteira, Sócrates nasceu em Atenas no ano 470 a. C. Não
escreveu nenhuma obra, talvez porque considerava que o diálogo, a comunicação directa e
interpessoal, é o único método válido para a filosofia. São características da sua forma de
entender e praticar o diálogo a ironia e a maiêutica. A sua ironia exprime-se frequentemente na
atitude modesta do «só sei que nada sei»; a maiêutica (arte que dizia ter herdado de sua mãe)
consistia em fazer perguntas de maneira a que o interlocutor acabasse por extrair de si mesmo as
formulações correctas sobre o tema em questão. Cidadão exemplar, foi acusado de impiedade e
condenado à morte no ano 399 a. C. Poderia ter fugido, mas preferiu obedecer às leis da cidade
e morrer. Bebeu a cicuta depois de conversar longa e tranquilamente com os seus amigos sobre
a imortalidade da alma.

Este modo de conceber a moral será chocante e rejeitável para muitos:


estamos habituados a ver pessoas ignorantes que, no entanto, são boas e
agem com rectidão, mesmo se não sabem definir o que é bom e o que é a
rectidão; estamos igualmente habituados a ver pessoas instruídas mas com
uma conduta reprovável. O intelectualismo moral é certamente chocante
(Sócrates, como veremos, tinha consciência disso, e merece a pena analisá-
lo com mais profundidade.
Comecemos por assinalar que os Gregos costumavam distinguir dois
âmbitos gerais no saber: o saber teórico ou teorético (theoria, é em grego
contemplação, conhecimento meramente contemplativo) e o saber de tipo
prático (orientados para a acção). Dentro deste último distinguiam, por seu
turno, os saberes ou conhecimentos técnicos orientados para a produção de
objectos (poíesis) e o saber orientado para a regulação da conduta (praxis)
individual e social (conhecimento político-moral). A relação entre estes
dois tipos de saber foi analisada de modo muito diferente pelos diversos
filósofos gregos. Sócrates, por sua vez, tomou sempre o saber técnico
como modelo para a sua teoria do saber moral.
Tomemos como ponto de partida as actividades de tipo técnico.
Qualquer saber técnico (engenharia, arquitectura, etc.) poderia servir de
exemplo, mas utilizaremos para isso um ofício, uma profissão simples que
Sócrates refere frequentemente. Um sapateiro é aquele que faz sapatos. (Fá-
los bem, entenda-se; qualquer um pode tentar fazê-los, mas com certeza os
fará mal. Sapateiro é aquele que os faz bem e quanto melhor os fizer,
melhor sapateiro será.) Pois bem, é evidente que só é capaz de fazer sapatos
aquele que sabe o que é um sapato, quais os materiais a utilizar e qual a
forma de os reunir.
Passemos agora ao âmbito da moral. Um homem justo, diremos, é
aquele que realiza acções justas, dá conselhos justos, dita leis justas.
Analogamente, segundo Sócrates, teremos de dizer que só é capaz de fazer
leis, acções e conselhos justos aquele que sabe o que é a justiça. Por
suposição, poderá haver alguém que actue justamente sem saber o que é a
justiça, mas em tal suposição tratar-se-á de uma atitude puramente casual.
Também no caso das actividades técnicas pode acontecer acertar-se
ocasionalmente. E assim como aquele que acerta ocasionalmente com um
remédio para uma doença não pode ser considerado médico, visto que
desconhece o ofício, também não se pode dizer que é justo quem realize
acções justas sem saber o que é a justiça.
O intelectualismo moral conduz ao seguinte paradoxo. Um bom
arquitecto, é aquele que sabe fazer bons edifícios. Portanto, aquele que,
sabendo fazer bem um edifício e o faz mal intencionalmente, é melhor
arquitecto do que aquele que o faz mal porque não o sabe fazer bem. Não
teremos de concluir, analogamente, que aquele que age injustamente
sabendo-o é mais justo do que aquele que o faz por ignorância? O senso
comum e a sensibilidade moral rebelam-se contra esta conclusão inevitável.
Sócrates propõe este paradoxo num diálogo platónico, o Hípias Menor,
com toda a crueza, mas também com ironia. A conclusão é correcta (quem
sabe que comete uma injustiça é mais justo – visto que o sabe – do que
quem a comete sem o saber); mas, precisamente porque o é, apresenta um
caso teoricamente impossível: ninguém age mal sabendo que age mal, já
que o conhecimento (da virtude) é condição não só necessária, mas
também suficiente para uma conduta virtuosa. Portanto face ao caso
hipotético apresentado, Sócrates afirmaria, uma e mil vezes, que o referido
sujeito não sabia realmente que agia mal, embora pensasse que sabia: se
verdadeiramente o soubesse, não poderia ter agido mal.
Portanto, ninguém age mal voluntariamente. O que age mal fá-lo sem
querer. No intelectualismo socrático não há lugar para as ideias de
pecado e culpa. Aquele que age mal não é verdadeiramente culpado mas
ignorante. Um intelectualismo moral levado até às últimas consequências
arrastaria consigo a exigência de suprimir as prisões: sendo efectivamente
ignorantes, os criminosos deveriam ser enviados para a escola e não para o
cárcere. No complexo e actual debate em torno desta questão, um
intelectualismo radical conduziria a tomar partido por esta última posição.

INJUSTIÇA VOLUNTÁRIA
Sócrates. Então não se viu há pouco que os mentem voluntariamente
são superiores aos que o fazem sem querer?
Hípias: Ora, Sócrates! Então aqueles que ofendem voluntariamente a
justiça, que voluntariamente premeditam e cometem malfeitorias, hão-de
ser melhores que os que assim procedem sem querer? Estes últimos têm
ainda uma atenuante de peso, se é por ignorância que vão contra a justiça
mentem ou fazem qualquer coisa de mal... Até as leis, como se sabe, são
muito mais severas para os crimes e mentiras quando houve intenção de
os cometer do que quando não houve.
Sócrates: Estás a ver, Hípias, como tenho razão ao dizer que sou
miudinho nas perguntas que faço aos homens sábios? Talvez seja mesmo
este o único bem que possuo e o resto não valha um chavo... Quando me
confronto com a realidade dos factos, aí estou eu na berlinda, sem saber
como avaliá-los! Queres uma prova evidente? Sempre que converso com
algum de vocês, homens prestigiados pelo saber, cuja sabedoria são os
Helenos em peso a testemunhar, toda a minha ignorância vem ao de
cima... É que nunca tenho, por assim dizer, a mesma opinião que vocês
sobre os mesmos assuntos... Ora, há maior prova de ignorância do que
estar em desacordo com homens que são sábios?
Voltando à nossa conversa, não concordo cora as tuas afirmações,
contesto-as mesmo com todas as forças. Eu bem sei que isto acontece por
culpa minha, por ser exactamente aquilo que sou – e mais não digo! O
facto, Hípias, é que vejo as coisas totalmente ao contrário do que dizes:
os que prejudicam os outros de propósito, que vão contra a justiça,
mentem, enganam e ocorrem voluntariamente em falta – esses, e não os
que assim procedem sem querer, é que são os melhores. Por vezes,
contudo, até eu sou da opinião contrária a esta e por aí ando às voltas com
a questão – evidentemente, devido à minha ignorância! Neste preciso
momento, mesmo como se me viesse um acesso de febre e fico em crer
que que incorrem voluntariamente em falta (em qualquer tipo de falta!)
são superiores aos que o fazem sem querer.
Platão, Hípias Menor, 371E-72E.

2.3. Virtude e felicidade

Sócrates exorta os atenienses à virtude, pois acredita que é o bem


supremo para o ser humano, superior até à própria vida. Na Apologia de
Platão, Sócrates pronuncia as seguintes palavras: «Equivocas-te, amigo, se
crês que qualquer homem, por pouco que valha, se dá ao trabalho de
considerar o risco de viver ou a morte, pois quando age, apenas toma em
consideração se a sua acção é justa ou injusta, se é a acção de um homem
bom ou mau». Nada é superior à virtude, em nenhum caso, nem a vida, nem
o próprio corpo, nem os bens materiais.
A consideração da virtude como bem máximo, como critério supremo
para os nossos actos, não é em Sócrates nenhuma forma de rigor ascético
que desvaloriza a felicidade, já que associa a virtude à felicidade. Na
Apologia de Platão, Sócrates também diz que a virtude não provém das
riquezas; bem pelo contrário: é a virtude que faz com que a riqueza, a saúde
e outras coisas se tornem autênticos bens para o ser humano. A última
mensagem de Sócrates aos seus concidadãos é que não há felicidade sem
virtude, ao passo que com virtude pode haver e há felicidade.

Nesta exposição destacámos duas doutrinas morais de Sócrates: o


intelectualismo moral, e as suas implicações de que «ninguém pratica o
mal voluntariamente»; e a tese de que a virtude é a condição necessária e
suficiente para a felicidade.
A estas duas teses poderíamos acrescentar o princípio socrático de que
nunca se deve praticar injustiças, nunca se deve agir injustamente
contra os outros, nem sequer quando nos tratam injustamente. Por via
deste princípio Sócrates opunha-se expressamente à tradicional lei do
talião «olho por olho, dente por dente», à institucionalização da vingança
e da represália: nunca devemos retribuir o mal com o mal, nem a
injustiça com a injustiça.
3. PLATÃO

3.1. A constituição do Universo

No pensamento de Platão confluem e conjugam-se o interesse


tradicional dos pré-socráticos pela natureza (physis) e as questões
antropológicas, éticas e políticas, suscitadas pelo sofismo, em especial por
Sócrates, seu mestre. Começaremos pela explicação platónica do Universo,
assinalando a sua ligação com as doutrinas pré-socráticas expostas no
capítulo anterior.

3.1.1. As causas do Universo

No final do capítulo anterior assinalámos que o último grande sistema


cosmológico do período pré-socrático foi o atomismo mecanicista proposto
por Leucipo e Demócrito.
Apesar do seu indiscutível brilhantismo, o atomismo teve pouco sucesso
no pensamento grego subsequente. É certo que Epicuro o adoptou mais
tarde, no período helenístico (como veremos mais no próximo capítulo),
mas os grandes filósofos gregos – Platão e Aristóteles – rejeitaram-no
energicamente.
Esta recusa obedeceu sem dúvida aos dois tipos de consequências que
acarretava: a) por um lado, o conhecimento da natureza tornava-se
impossível (como conhecer ou calcular as infinitas e possíveis trajectórias,
combinações e colisões de infinitos átomos movendo-se no vazio?; b) por
outro, visto que o Universo não é mais do que um produto imprevisto e
imprevisível destas colisões e combinações, resulta que o cosmos, a ordem,
provém da desordem.

Platão
Platão, o mais genial dos discípulos de Sócrates e ateniense como ele, nasceu no ano 427 a.
C. Fortemente vocacionado para a política, depressa se desenganou das práticas políticas
atenienses da sua época, especialmente depois da condenação de Sócrates. A partir de então,
dedicou o seu esforço intelectual a construir e fundamentar teoricamente um modelo ideal de
sociedade. Fez duas viagens à Sicília com a pretensão de levar à prática o seu modelo de
sociedade, fazendo com que os governantes se tornassem filósofos, já que não com que os
filósofos governassem. Fracassou em ambas as ocasiões: a primeira vez com Dionísio I, quando
Platão tinha quarenta anos de idade; a segunda vez, com Dionísio II, tendo já mais de sessenta
anos. Entre as duas viagens, fundou em Atenas a sua Academia, onde juntamente com a
filosofia, se dedicava especial atenção às matemáticas e à astronomia, de acordo com um plano
de educação progressiva. Platão escreveu numerosas obras, a maioria delas em forma de
diálogo. Entre elas destacam-se o Banquete, o Fédon, A República, o Parménides, o Teeteto e o
Timeu. Na maior parte dos seus diálogos, o interlocutor principal é Sócrates, o que torna difícil
distinguir, entre as doutrinas de Sócrates e as de origem estritamente platónica. Morreu aos
oitenta anos em 347 a. C.

1. A explicação platónica da natureza recusa este último ponto de forma


radical: a ordem não pode ser o resultado casual da desordem. A ordem
só pode provir de uma inteligência ordenadora. Platão regressa, pois, em
grande medida a Anaxágoras, retendo a sua ideia de que há uma
inteligência ordenadora e à qual Platão chama demiurgo.

2. A Inteligência ordenadora ou demiurgo actua sobre uma matéria


eterna, caótica, que Platão denomina de muitas maneiras utilizando
diversas metáforas; por exemplo, chama-lhe ‘espaço’ (chora) que neste
caso é obviamente o espaço geométrico vazio, mas substrato material
informe. Este substrato não é estático nem inerte, mas dotado de
movimentos caóticos e irregulares. Neste ponto, Platão afasta-se de
Anaxágoras e aproxima-se do atomismo, ao admitir uma matéria eterna e
eternamente agitada de movimentos desordenados. Platão jamais cita,
nominalmente, Demócrito ou Leucipo, apesar de (ou precisamente porque)
os ter constantemente presentes na sua explicação do Universo. É
Aristóteles quem sublinha expressamente a vinculação de Platão aos
atomistas neste ponto: «Há alguns como Leucipo e Platão, que afirmam que
a actividade existe desde sempre, já que desde sempre há movimento.»,
(Metafísica, XII, 6, 1071b31.)

3. Além destes dois princípios – inteligência ordenadora e matéria eterna


e eternamente em movimento – Platão estabelece um terceiro princípio: as
ideias, que se tornam necessárias a partir do momento em que se introduz
uma inteligência ordenadora. Com efeito, todo o ser inteligente que realiza
ou constrói algo – e o demiurgo é o construtor do Universo – realiza-o de
acordo com um plano ou modelo.
A função do demiurgo consiste em modelar as essências ou ideias na
matéria o mais perfeitamente possível. Se o Universo não é totalmente
perfeito é porque a matéria introduz sempre um factor de desordem e de
indeterminação (Cf. Timeu, 50b-51b, 52a-53b).

A teoria das ideias


A doutrina central da filosofia platónica é a teoria das ideias. De um
modo breve e categórico, esta doutrina consiste na afirmação de que
existem entidades imateriais, absolutas, imutáveis e universais
independentes do mundo físico: por exemplo, a justiça em si, a bondade
em si, o homem em si, as entidades e proporções matemáticas em si
mesmas; delas derivam tudo o que é justo e bom, todos os homens, tudo o
que é harmónico e proporcionado existente no mundo físico. O termo
«ideia» não deve induzir em erro o leitor moderno. Não se trata de
conceitos, de construções mentais, de objectos sem existência fora da
mente que os concebe. Trata-se de realidades, mais ainda, das únicas
realidades em sentido pleno, já que o que há de realidade no mundo
físico deriva precisamente delas.
A constituição do Universo físico é narrada por Platão no Timeu em
forma de mito. O carácter mítico deste relato torna difícil precisar o
significado de muitos aspectos da narração.
Um desses aspectos controversos é o da natureza do demiurgo. É difícil
decidir se se trata de um deus que realmente actua sobre a matéria tomando
como modelo as ideias, ou se a sua actuação deverá ser interpretada
alegoricamente, ou se se trata de uma forma mítica de expressar a acção
das ideias sobre a matéria.
De facto, são as ideias que impõem à matéria uma estrutura inteligível,
uma consistência e estabilidade que a matéria não contém em si própria.
Assim, para citar apenas o início da constituição do Universo, os quatro
corpos elementares – fogo, ar, água, terra – adquirem a sua consistência e
especificidade quando a matéria se estrutura geometricamente em forma de
sólidos regulares: tetraedro (fogo), cubo (terra), octaedro (ar), e icosaedro
(água). O espírito do pitagorismo é assim integrado por Platão. (Timeu, a
personagem em cuja boca Platão coloca a narração cosmológica, é
apresentada como um sábio pictagórico.)

3.1.2. Platão e a explicação racional

Quando anteriormente nos referíamos à escola de Mileto (Capítulo 2.1)


perguntávamo-nos se as três características que correspondem à physis
como princípio – origem, substrato permanente e causa – podiam ser
atribuídas a uma única substância ou realidade. A doutrina platónica atinge
neste ponto uma complexidade maior.

a) Para os milésios, o substrato permanente (água, etc.) era


simultaneamente o material de que as coisas são constituídas e o que as
coisas verdadeiramente são, ou seja, a sua essência (as coisas não são mais
do que diferentes estados ou modificações do substrato originário, seja este
a água, ou o indeterminado ou o ar).
A doutrina platónica separa nitidamente os dois aspectos: por um lado, o
material ou substracto a partir do qual se constituem as coisas é a matéria
informe e caótica nos seus movimentos; por outro, o que as coisas
verdadeiramente são, a sua essência, é a ideia ou forma da qual participam.

b) A causalidade aparece igualmente desdobrada: o demiurgo é causa


produtora (causa eficiente ou agente, dirá o aristotelismo), mas as ideias são
também causa, causa não apenas formal mas também exemplar dos seres
naturais. Evidentemente, uma interpretação alegórica do demiurgo levaria –
não sem razão – a atribuir às ideias os dois tipos de causalidade.

c) Se tentarmos agora situar a doutrina platónica dentro das coordenadas


ou conceitos básicos da explicação racional (logos) de acordo com o
exposto no capítulo anterior (ver gráfico da pág. 29), facilmente
verificaremos o seguinte:

1. Em primeiro lugar, Platão afirma radicalmente a heterogeneidade do


conhecimento intelectual e do conhecimento sensível.
No capítulo anterior vimos que esta distinção se institui a partir da
doutrina de Parménides, sendo recolhida e formulada por Demócrito. Platão
insiste em que apenas a razão (o conhecimento intelectual), e não os
sentidos é capaz de captar as estruturas matemáticas, as essências
inteligíveis, em suma, as ideias.
A cada uma destas formas de conhecimento corresponde um tipo de
realidade: ao conhecimento intelectual correspondem as ideias, realidades
eternas e imutáveis; ao conhecimento sensível correspondem as realidades
do mundo físico afectadas pela mudança e pela inconsistência.

2. Em segundo lugar, e de acordo com o que acabámos de referir, o


mundo das ideias e o mundo físico, sensível, repartem entre si
respectivamente as funções que assinalávamos no referido gráfico da pág.
29. Assim, a) as ideias são realidades permanentes e imutáveis, enquanto
os seres do mundo físico se caracterizam pela sua mutabilidade e
corruptibilidade; b) as ideias são o que têm de comum seres de aparências
distintas mas da mesma essência: homens de raças distintas, de culturas
diversas, etc., têm em comum o facto de todos participarem da essência, da
ideia de «homem»; c) as ideias são, portanto, princípio de unidade ante a
pluralidade e dispersão do mundo físico.

3.2. O papel das ideias

Afirmámos acima que a doutrina central da filosofia platónica é a teoria


das ideias. Salientaremos agora alguns aspectos e dimensões fundamentais
desta teoria complexa.

AS IDEIAS E O DEMIURGO
Com efeito, tudo se transforma necessariamente pela acção de uma
causa, pois nada pode assumir o devir separado de uma causa. Ora, toda a
obra é necessariamente bela se o demiurgo reteve aquilo que se manteve
sempre idêntico e se serve de um tal objecto como modelo para
reproduzir as suas essências e as propriedades. Pelo contrário, a obra não
será bela quando o seu criador se regulou pelo que se altera, pois serviu-
se de um modelo sujeito ao devir (...).
E, tratando-se do Universo, qual dos modelos terá utilizado o seu
arquitecto para o realizar? Fê-lo de acordo com o que se mantém idêntico
e uniforme, ou segundo o modelo daquilo que se altera? Pois; bem, se o
Universo é belo e o seu demiurgo é bom, é evidente que visou o modelo
eterno; se fosse o contrário (coisa que nem saberíamos enunciar), teria
visado o modelo do que se altera. Assim, é bastante claro que se serviu do
modelo eterno: na verdade, este mundo é a mais bela das coisas criadas e
o seu demiurgo é a causa mais benéfica que existe. Por conseguinte, um
tal Universo foi criado de acordo com o que a razão e a reflexão
apercebem como mantendo-se idêntico a si.
Platão, Timeu 270-291.

3.2.1. Origem da teoria das ideias

A pergunta sobre a origem da teoria platónica das ideias não pode ser
respondida de um modo definitivo e satisfatório. Na filosofia pré-socrática
encontramos já elementos que Platão incorporaria na sua teoria e que talvez
tenham influenciado a sua formulação. É o caso das doutrinas dos
pitagóricos e de Parménides: os primeiros insistiram nas estruturas e
relações matemáticas como princípio de inteligibilidade do Universo, e na
doutrina platónica os entes matemáticos são certamente ideias. Quanto a
Parménides, a sua distinção entre o que existe verdadeiramente (a
realidade imutável, não engendrada e imperecível de que se ocupa a Via da
Verdade) e o Universo mutável (cuja génese é narrada na Via da Opinião)
encontra-se também no pensamento platónico: as ideias são o que existe de
verdade e possuem as mesmas características da realidade propagada por
Parménides.
Também não podemos esquecer Sócrates. Como assinalámos na alínea
2.1. deste capítulo, nos seus diálogos Platão apresenta Sócrates sempre a
colocar questões sobre uma virtude ou um conceito moral: o que é a
justiça?, o que é o valor?, o que é a moderação?, etc. Quem formula uma
pergunta deste tipo pressupõe que há alguma característica ou conjunto de
características comuns e particulares a todas as acções, instituições, etc., às
quais se aplica o predicado universal «justo» ou «válido» ou «moderado»,
etc.
Para Platão, essa característica (ou conjunto de características) que é
comum e que não se identifica com nenhuma acção justa particular será a
ideia de justiça. Aristóteles, discípulo de Platão, salienta o facto de estas
indagações socráticas contribuírem para a origem da teoria das ideias,
insistindo sobretudo no facto de que «Sócrates não separava os universais»
(ou seja, não considerava os conceitos universais como realidades que
existiam por si), e que «foi Platão quem os separou denominando-os ideias»
(Metafísica XIII, 4, 1078b30).

O CONHECIMENTO INTELECTUAL E AS MATEMÁTICAS


– Então quando é que a mente (a alma) alcança a verdade? – diz
Sócrates. – Dado que se serve dos sentidos do corpo para examinar as
coisas, é claramente enganada por eles.
– É verdade!
– Por isso, não será sobretudo através do raciocínio matemático que a
alma alcança uma visão clara de uma realidade?
– Sim.
– Por outro lado, o raciocínio matemático é mais perfeito quando a
mente não é perturbada pelo que ouve e vê, nem pela dor ou pelo prazer;
pelo contrário, deve procurar sempre isolar-se e desprender-se do corpo; e
só assim, sem qualquer contacto com o corpo, é que ela consegue
alcançar a realidade.
– Exacto!
– Não será nessa altura, quando procura o isolamento, que a mente do
filósofo revela ao mais alto grau que ignora e escapa ao corpo em
absoluto?
– Com certeza!
– A maneira mais pura para o conhecimento não aproximar-se dos
objectos somente através do pensamento, na medida do possível, não
recorrendo ao uso subsidiário da razão nem a qualquer outra sensação,
servindo-se apenas do pensamento puro para tentar captar cada realidade?
Essa maneira não será separar-se o mais possível dos olhos e dos ouvidos
e, a bem dizer, de todo o corpo, já que este perturba a mente e a impede
de alcançar a verdade e a sabedoria? Não achas, Símias, que um tal
homem é o único que consegue alcançar a verdade, se é que alguém o
consegue?
– O que tu dizes, Sócrates, é incrivelmente verdadeiro!
Platão, Fédon, 65B-66A.

3.2.2. Imitação e participação das ideias

Portanto, Platão «separou» as ideias. Qual é o sentido desta separação e


que relação existe entre as ideias e as realidades individuais do mundo
físico?
Em Fedro, um dos diálogos mais belos e complexos de Platão, aparece
uma vasta referência às ideias, inseridas numa narração mítica que relata o
destino das almas. Neste mito, cada uma das almas é representada como
uma carruagem dirigida por um cocheiro e puxada por dois cavalos, um
branco e outro negro. As almas vão em majestosa procissão, liderada pelos
deuses, e ascendem à superfície exterior do Universo, donde é possível
contemplar as ideias, situadas fora dele num lugar supraceleste.
Esta «localização» das ideias é obviamente mítica e não deve ser
interpretada literalmente. O que Platão pretende significar ao afirmar a sua
«separação» do mundo físico é que o ser das ideias, a sua verdade e a sua
permanência não dependem das coisas sensíveis: um triângulo (a ideia de
triângulo, o triângulo ideal) possui as propriedades que possui,
independentemente de essa essência se realizar ou não no mundo sensível,
físico.
Mas se o ser das ideias não depende dos seres físicos, estes já dependem
delas: uma figura é um triângulo na medida em que nela se realiza a ideia
de triângulo, uma acção é justa na medida em que nela acontece a ideia de
justiça, etc. Qual é, então, a relação dos seres sensíveis com as ideias? Nas
suas obras Platão recorreu a dois termos para caracterizar esta relação:
«imitação» (os seres sensíveis particulares imitam as ideias) e
«participação» (os seres sensíveis particulares participam das ideias
correspondentes).
A imitação salienta que as ideias são modelos, são paradigmas que as
coisas pretendem imitar, mas sem nunca os igualar plenamente: nenhuma
esfera física, de bronze ou madeira, é plena e perfeitamente esférica; só a
esfera ideal o é. Deste modo, as ideias são ideais que não chegam a
cumprir-se perfeitamente no âmbito do sensível. Além disso, Platão
reconheceu a dificuldade de explicar de maneira adequada a separação das
ideias e a sua relação com os seres sensíveis.

3.2.3. O mundo das ideias

O mundo ideal (a palavra «mundo» é obviamente metafórica) alberga


ideias ou formas dos seres físicos e também ideias matemáticas (todo o
Universo matemático é ideal). A esse mundo pertence também o conjunto
dos ideais morais e políticos (bondade, justiça, etc.) aos quais a conduta
individual e a organização da convivência social se devem acomodar.
Para Platão as ideias não são um aglomerado desconexo de essências
que constituem um sistema em que todas se ajustam e coordenam, numa
gradação hierárquica cuja cúspide é ocupada pela ideia de bem. O bem
como ideia primeira, como princípio supremo, é expressão da ordem, do
sentido e da inteligibilidade do real.
O conhecimento das ideias e das suas relações constitui o saber
autêntico. Na República, Platão insiste na dificuldade de se alcançar este
conhecimento e assinala os passos a dar para o atingir: primeiro o estudo
das matemáticas; depois, e a partir deste, já se pode iniciar o demorado
estudo do sistema total de ideias, ascendendo até à cúspide das mesmas, até
ao conhecimento do bem. A esta ascensão, por via da qual se alcançará um
saber pleno e absoluto, Platão dá o nome de dialéctica.

3.3. A doutrina platónica da alma


3.3.1. Ideias gregas sobre a alma

a) No pensamento grego, o tema da alma é tratado de uma forma muito


diferente da maneira como muitos certamente o fariam na actualidade. Esta
discrepância na forma de apresentar o problema torna-se evidente pela
simples observação de que nenhum filósofo grego negou a existência da
alma: mesmo os materialistas aceitam a sua existência, embora a
considerem composta de átomos, como o rosto do real. O problema
fundamental para os Gregos não é a existência da alma, mas a sua
natureza (material ou não, imortal ou perecedoira).
Na actualidade muitos não aceitariam, com toda a certeza, esta forma de
encarar o problema: em suma, hoje é inconcebível que um materialista
aceite a existência da alma. Para o pensamento moderno, o primeiro
problema e fundamental não é a discussão da natureza da alma, mas a
própria questão da sua existência.

A IDEIA DO BELO
O Belo não lhe surgirá aos olhos sob a forma de um rosto, de mãos, do
que quer que pertença a um corpo; tão pouco sob a forma de pensamento,
de conhecimento ou de qualquer coisa existente em algo diverso dele –
por exemplo, um ser vivo da terra, do céu ou de qualquer outro sítio. Pelo
contrário, surgir-lhe-á em si e por si, como forma única e eterna, da qual
participam todas as outras coisas belas por um processo tal, que a geração
e a destruição de outros seres em nada a aumentam ou diminuem, e em
nenhum aspecto a afectam.
Platão, Banquete, 211-A

b) A noção de alma, no pensamento grego, está associada a dois factos


distintos, embora em certa medida relacionados entre si: por um lado a vida
e por outro o conhecimento intelectual. O mesmo acontece na actualidade
com a noção de alma. Com efeito, se perguntássemos a pessoas simples e
não sofisticadas culturalmente o que entendem por alma, obteríamos
provavelmente dois tipos de respostas mais ou menos imprecisas:

1) Alguns dos interrogados aludiriam ao facto de estar vivos, ao facto da


vida: não é, no fim de tudo, a alma que abandona o corpo à morte? A alma
seria assim como que o princípio da vida, aquilo em virtude do qual um
ser está vivo.

2) Outros aludiriam a actividades psíquicas superiores, exclusivas do


homem: não é, ao fim e ao cabo, por ter uma alma que o homem se
distingue dos restantes animais? E como o homem se distingue do animal
pela capacidade de reflexão e por possuir entendimento, a alma deveria
entender-se como o princípio do conhecimento racional.

Não é difícil concluir da discrepância existente entre as consequências


que derivam de uma e outra concepção da alma. Em primeiro lugar, se se
aceitar a primeira das concepções (a alma como princípio da vida), terá de
admitir-se que todos os seres vivos possuem alma, não só os animais mas
também as plantas; se se adopta a segunda das concepções da alma (a alma
como princípio de conhecimento racional), parecerá razoável afirmar que só
o homem possui alma.
Em segundo lugar, e colocando a questão nos termos em que os
filósofos gregos a colocam (a concepção da alma como princípio de vida) é
fácil conceber que exista uma estreita ligação entre alma e corpo (como
pode a alma não estar unida ao corpo se é em virtude dela que o corpo
vive?), mas torna-se verdadeiramente difícil, se não impossível, encontrar
qualquer sentido para a imortalidade da alma (que sentido pode ter uma
alma separada do corpo se a sua única missão é fazer com que este viva?).
Ao contrário, a aceitação da segunda noção da alma – como princípio do
conhecimento racional – torna possível levantar a questão da imortalidade,
embora dificulte muito achar uma explicação satisfatória para a união da
alma com o corpo.
Estas duas concepções sobre a alma podem denominar-se,
respectivamente, aristotélica e platónica da alma. Para Aristóteles, como
veremos no próximo capítulo, a alma é fundamentalmente o princípio da
vida, enquanto que para Platão a alma é fundamentalmente o princípio do
conhecimento intelectual. É importante, no entanto, não esquecer que na
filosofia grega nunca se produziu a separação radical e total entre os dois
modos de considerar a alma. Nem Platão ignora a função vital da alma,
nem Aristóteles deixa de relacionar a actividade intelectual com o conceito
de alma.

A CONTEMPLAÇÃO DAS IDEIAS


Esse lugar supraceleste nenhum poeta daqui de baixo o cantou ainda
nem jamais o fará dignamente. Mas já que se deve ter a coragem de dizer
a verdade em quaisquer circunstâncias e especialmente quando se fala da
verdade – eis como ele é: o ser realmente existente, que não tem forma,
nem cor, nem se pode tocar, visível apenas ao piloto da alma, a
inteligência, aquele que é objecto do verdadeiro saber, é esse que habita
tal lugar. E então a mente do Ser divino, porque alimentada pela
inteligência e pelo saber sem mistura – bem como a de toda a alma que
cuide de receber o que lhe é conveniente –, vendo o ser em si, com o
tempo, ama-o e, ao contemplar a verdade nutre-se e regozija-se, até que
em seu giro a revolução a conduza ao mesmo ponto. No circuito,
contempla a própria justiça, contempla a sabedoria, contempla a ciência –
não a que está sujeita à génese, nem a que difere conforme se aplica a um
ou outro dos objectos que nós agora chamamos seres, mas à ciência que
se aplica ao ser que verdadeiramente existe. E, depois de haver de igual
modo contemplado os outros seres que são verdadeiras realidades e de se
haver saciado, desce novamente ao interior do céu e regressa a casa.
Platão, Fedro 247C-E
3.3.2. A alma no pensamento platónico

a) O dualismo alma/corpo
Como não podia deixar de ser, a concepção platónica da alma como
princípio do conhecimento racional está estritamente relacionada com a
teoria das ideias. Vimos antes que esta teoria introduz um dualismo, uma
radical separação entre o âmbito das ideias (o verdadeiro real) e o âmbito
dos seres físicos submetidos à mudança e à decomposição. Este dualismo
genérico está relacionado com o dualismo antropológico de Platão: a alma é
afim das ideias, pertence ao âmbito destas devido à sua própria natureza, ao
passo que o corpo pertence ao mundo dos seres físicos. É na contemplação
e no conhecimento das ideias que adequadamente se cumpre o destino das
nossas almas.
Este dualismo (alma/corpo) constitui a base fundamental da doutrina
platónica acerca da alma. Assim:

1) A alma, afim das ideias e como ela imaterial e simples, é por natureza
imortal;

2) A união da alma com o corpo não é um estado essencial da alma mas


um estado acidental e transitório. Além disso, não só é acidental como
pode ser considerada antinatural, já que o lugar próprio da alma é, como
dissemos, o mundo das ideias e a sua actividade a contemplação destas;

3) Enquanto permanece unida ao corpo, a tarefa fundamental da alma é


purificar-se e preparar-se para a contemplação das ideias. A noção de
purificação que tem origem e conotações de carácter religioso supõe que a
alma se encontra num estado de impureza. É legítimo então perguntar de
onde vêm estas impurezas. Nas obras platónicas mais radicalmente
dualistas (como o Fedon) afirma-se que as impurezas vêm precisamente
da influência do corpo, das suas exigências e necessidades que se impõem
tirânicamente à alma impossibilitando-lhe o exercício do conhecimento
intelectual. A alma, por isso, opor-se-á ao corpo e às suas solicitações, pois
é nisso que consiste a autêntica sabedoria.

b) As três partes da alma


O dualismo radical que descrevemos não reconhece à alma qualquer
outra função específica do conhecimento racional, nem qualquer outro
conflito que não seja o que enfrenta a alma com o corpo. As paixões, os
prazeres e os desejos, todos os apetites perturbadores e conflituosos são
atribuídos ao corpo. Trata-se indubitavelmente de uma concepção
excessivamente esquemática e redutora do psiquismo humano. Os desejos,
os apetites e as paixões são na verdade fenómenos psíquicos e não
meramente corporais. Os conflitos decorrem no interior do nosso
psiquismo.
Platão teve consciência deste facto e nas suas obras maduras (
República, Fedro) adoptou uma concepção mais complexa da alma,
distinguindo nela três partes (a sua terminologia é tão pouco rigorosa que
por vezes fala de três partes da alma e outras de três almas).
Estas três partes são a razão (alma racional), o ânimo (alma irascível,
como por vezes é referida) e o apetite (alma concupiscível, como
correntemente se traduz). No apetite residem os desejos irracionais e a
procura do prazer, que se opõem à razão. À razão cabe controlar e ordenar o
apetite. O ânimo é a coragem ou força, que por vezes cede às exigências do
apetite, apesar de poder – e dever – converter-se em aliado da razão na
tarefa de subjugar e controlar as exigências do apetite.
A esta tripartição corresponde a imagem da carruagem que Platão utiliza
no mito do Fedro (a que aludimos na alínea 3.2.2.): o cocheiro responsável
pela condução simboliza a razão, o cavalo negro e indisciplinado é o apetite
e o cavalo branco e nobre simboliza o ânimo ou coragem.

3.4. A ordem moral


Perante o relativismo moral dos sofistas, Sócrates estava convencido de
que os conceitos morais podem ser fixados racionalmente mediante as
definições rigorosas: ainda que por exemplo seja difícil de definir a justiça
esta pode ser definida; e a busca da sua definição constitui uma tarefa
indeclinável e urgente para todo o ser humano que não viva a sua vida
irreflectidamente e para toda a sociedade que pretende estruturar-se de
acordo com uma ordem racional.
Platão participa desta convicção socrática e, além disso, como indicámos
quando nos referimos à origem da Teoria das ideias (ver alínea 3.2.1.),
Platão atribuiu a estes conceitos ético-políticos o estatuto de ideias (a
justiça em si, a bondade em si, etc.) ideias (ou ideais) cuja realidade e
validade objectiva é independente das opiniões que cada um possa ter
acerca delas.
Partamos, pois, do facto de que é possível definir a justiça de um modo
absoluto, de acordo com a convicção socrática e platónica. Como defini-la?
Os sofistas tinham mostrado claramente o caminho: analisando a natureza
humana. Platão aceita a maneira como os sofistas põem o problema,
embora rejeite as conclusões das suas análises.
Segundo os sofistas, recorde-se, as únicas leis naturais são a procura do
prazer e o domínio do mais forte. Ora bem, no entender de Platão esta
doutrina moral baseia-se numa análise incorrecta da natureza humana: ao
tomarem os animais e as crianças como modelos de comportamento natural,
os sofistas prescindiam do aspecto mais característico do homem, a razão
que nem a criança nem o animal a possuem). Uma análise da natureza
humana que não tenha em devida conta a existência da razão no homem,
nem a sua qualidade de faculdade suprema, não pode servir para definir
correctamente a justiça.
Para definir a justiça, – e, além dela as restantes virtudes morais–, é
necessário analisar correctamente a natureza humana. Anteriormente
anotámos que a análise platónica do ser humano distingue na alma três
faculdades ou partes: A justiça consistirá na ordenação adequada destas
três partes da alma. Tal ordenação acontece quando cada parte da alma
exerce a função que lhe corresponde e possua a virtude que lhe é própria. A
prudência é a virtude própria da razão; a fortaleza ou valor é a virtude
própria do ânimo; a moderação ou temperança consiste em que o apetite e
o ânimo se submetam aos ditames da razão, reconhecendo a esta o papel
directivo que naturalmente lhe compete. Só quando as suas partes se
comportam deste modo é que a alma, no seu todo, é justa e ordenada.

3.5. A ordem política

Platão é antes de mais um pensador político. A sua obra mais importante


e mais conhecida, a República, debruça-se sobre o sistema político ideal.

3.5.1. A justiça no Estudo

A teoria política de Platão centra-se em dois princípios fundamentais


que apresentamos de seguida:

a) Correlação estrutural entre a alma e o Estado. Segundo Platão, o


Estado possui a mesma estrutura tripartida da alma humana individual.
Com efeito, são três os grupos ou classes sociais que compõem um Estado:
os produtores (dedicados à actividade económica, à produção de bens e ao
comércio); os guardiães auxiliares (dedicados à defesa e à preservação da
ordem, a tarefas militares e policiais); e os governantes ou guardiães
perfeitos. Estas três classes sociais correspondem às três partes da alma: os
produtores ao apetite; os guardiães auxiliares ao ânimo; e os governantes à
razão.

b) Princípio de especialização funcional. De acordo com este


princípio, cada indivíduo e cada grupo social deve dedicar-se à função
ou tarefa que lhe é própria. Platão justifica este princípio não só com
razões de carácter prático (os resultados são melhores quando cada um
realiza as tarefas em que se especializou), mas também com considerações
teóricas: em qualquer sistema complexo natural, seja este um organismo ou
um Estado, cada parte está naturalmente destinada a realizar uma função
específica.

Da conjunção destes dois princípios resulta a concepção platónica da


justiça, que é a mesma para o Estado e para a alma individual. De facto, a
justiça no Estado realiza-se quando cada um dos grupos sociais realiza a
função que lhe corresponde (especialização funcional) e a realiza de modo
adequado, pois possui a virtude que lhe é própria: prudência no caso dos
governantes, fortaleza ou valor nos guardiães auxiliares e moderação ou
temperança (aceitação da ordem social) por parte dos produtores e de todos
e de cada um dos grupos sociais.

3.5.2. O governo do sábio

De acordo com a filosofia platónica, à razão cabe por natureza


governar, tanto no indivíduo como no Estado. As outras partes (apetite e
ânimo na alma, produtores e guardiães auxiliares no Estado) devem
submeter-se aos seus ditames de acordo com as exigências da justiça.
Sob o ponto de vista político, isto configura um Estado ideal, utópico,
que pode ser definido como o governo dos sábios. Toda a teoria política de
Platão centra-se nesta convicção, expressando-a frequentemente nas suas
obras: «o género humano só se libertará dos seus males quando os que são
verdadeiramente filósofos ocuparem os cargos públicos, ou quando aqueles
que exercem o poder nos Estados se convertam, por especial favor divino,
em filósofos no verdadeiro sentido da palavra» (Carta VII).
Por conseguinte, o governo deve ser entregue aos que sabem, aos sábios,
aos filósofos. Este princípio platónico baseia-se numa identificação
discutível entre o saber teórico e o saber prático. Ao expormos a
hierarquização das ideias (ver a anterior alínea 3.2.3.), salientámos que na
cúspide de todas elas se encontrava a ideia de bem, expressão da ordem, do
sentido e da inteligibilidade de toda a realidade. O conhecimento do bem é
a culminação de todo o saber, quer teórico, quer prático: do saber
teórico porque o conhecimento do bem possibilita a captação da ordem e da
estrutura de toda a realidade; do saber prático porque o conhecimento do
bem proporciona as normas de toda a ordenação moral e política. O sábio
platónico é simultaneamente homem de ciência e homem de Estado, e sob o
seu governo não há necessidade de leis, já que o seu saber permite-lhe
adoptar as disposições mais adequadas para cada caso.

3.5.3. A educação

Platão pensa que a finalidade fundamental do Estado é de carácter


moral: promover a virtude e a justiça, tanto individual como socialmente.
Só deste modo será possível uma vida feliz (Platão comunga da convicção
socrática de que a felicidade depende essencialmente da virtude).
Partindo de uma concepção tão «moralizante» do Estado, não admira
que Platão conceda uma importância fundamental à educação, que será da
competência exclusiva do Estado. Dedicou muitas páginas à educação nas
suas obras políticas, e na República surge organizada em dois níveis:

a) No nível primário, comum a todos os cidadãos, a educação consiste


na ginástica e na música («música» em sentido lato, incluindo também a
arte e a poesia). Por meio de ambas as disciplinas pretende-se educar não só
o corpo mas também o carácter, inculcando nos cidadãos hábitos e opiniões
correctas.

b) O segundo nível, reservado aos futuros governantes, vai dos vinte aos
trinta e cinco anos. Numa primeira fase consiste num estudo pormenorizado
e progressivo dos vários ramos das matemáticas, de modo a que na sua
fase definitiva se possa abordar a dialéctica, que culminará no
conhecimento do bem.
3.5.4. Outras medidas políticas

A utopia platónica da República comporta ainda outras medidas radicais,


cuja finalidade é também de carácter moral. Assim, Platão proclama a
igualdade absoluta entre homens e mulheres: ambos terão a mesma
educação e as mesmas oportunidades de chegar a guardiães auxiliares e
governantes. Além disso, suprime a família e elimina a propriedade
privada para os guardiães auxiliares e para os governantes (mas não para o
grupo social dos produtores).
Estas duas últimas medidas não têm uma função económica (como em
certas utopias modernas e contemporâneas), mas uma função
exclusivamente moral: pretende-se evitar que o egoísmo se apodere dos
guardiães e dos governantes, promovendo assim um sentimento de
comunidade entre eles, evitando que «dilacerem a cidade chamando meu
não ao mesmo mas a cada coisa distinta», algo que poderia acontecer se
cada um possuísse «mulheres e filhos distintos» (República, 464 C-D).

São estas as linhas fundamentais da utopia platónica da República. Em


obras posteriores, em o Político e ainda mais em as Leis, Platão suavizou
as suas opiniões, dado que chegara à conclusão de que não é fácil
encontrar verdadeiros sábios governantes. O governo dos sábios foi
substituído pelo governo das leis, pela submissão rigorosa dos governos
ao ordenamento jurídico. No entanto, Platão nunca renunciou a
princípios importantes: que à razão cabe governar (as leis são a
expressão da razão e a sua incarnação é um conselho ou tribunal
supremo), que o fim próprio do Estado e do governo é tornar os seus
cidadãos melhores e, finalmente, que a justiça é a condição iniludível
para a felicidade.
3. ARISTÓTELES. A FILOSOFIA DO
PERÍODO HELENÍSTICO

INTRODUÇÃO

Aristóteles foi discípulo de Platão, em cuja Academia permaneceu


durante vinte anos, até à morte do seu mestre. Posteriormente fundaria a sua
própria escola, o Liceu.
Aristóteles foi um platónico dissidente que rejeitou importantes
elementos da filosofia do seu mestre. Rejeitou a teoria das ideias
subsistentes e rejeitou a distinção entre os saberes teórico e prático. No
capítulo anterior vimos que, segundo Platão, o sábio é aquele que atinge o
conhecimento adequado do bem, no qual culminará o saber teórico e no
qual o saber prático (ético-político) assenta: daí o ideal do sábio-
governante. Aristóteles manteve a distinção essencial entre ambas as formas
de saber.
As diferenças entre Aristóteles e Platão não são apenas doutrinais mas
também de forma e estilo. Platão não escreveu tratados mas diálogos que
apenas abordavam múltiplas questões. Aristóteles escreveu tratados em
que expôs sistematicamente cada um dos ramos do saber, e neste
sentido apresenta um aspecto mais rigoroso e mais escolar que Platão. No
entanto, os seus tratados carecem da paixão e da beleza literária que
caracterizam os diálogos platónicos. Na primeira parte deste capítulo
ocupar-nos-emos da filosofia de Aristóteles.
Na segunda parte do capítulo abordaremos a filosofia do período
helenístico, uma época que começa com a morte de Alexandre Magno (323)
e que se estende até aos inícios do Império Romano. Este período propiciou
o ressurgir da filosofia moral, assistindo-se ao nascimento e
desenvolvimento de duas novas escolas filosóficas: o epicurismo e o
estoicismo.

Este capítulo consta, portanto, de duas partes:


1. Aristóteles.
2. A filosofia do período helenístico.
1. ARISTÓTELES

Numa célebre passagem da Metafísica (VI, I, 1026a 13-26) Aristóteles


divide as ciências teóricas em física, matemática e teologia. A física,
explica ele, ocupa-se de seres que possuem existência real e que estão
dotados de movimento; as matemáticas, por seu lado, ocupam-se de
entidades que não estão submetidas ao movimento ou a qualquer mudança
mas que carecem de existência real; finalmente, a teologia ou filosofia
primeira ocupa-se daquela entidade ou entidades que possuem existência
real mas que não estão submetidas a movimentos ou mudanças.
No entanto, a contribuição de Aristóteles no campo das matemáticas foi
escassa, se exceptuarmos a sua crítica à concepção platónica dos objectos
matemáticos como ideias ou realidades subsistentes. A sua contribuição
noutros âmbitos do saber foi todavia brilhante e de grande influência
histórica. Ocupar-nos-emos deles mais à frente.

1.1. Física aristotélica

1.1.1. Natureza e teleologia

Ao estabelecer que o bem é a ideia primeira e o princípio supremo,


Platão dera impulso a um modelo teleológico de interpretação da natureza:
a ordem do Universo não é o resultado de forças cegas que actuam
mecanicamente, como defendia o mecanicismo de Demócrito; pelo
contrário, a racionalidade e a ordem do Universo provêm do facto de nele
se encontrar realizado o bem e do facto de tudo estar racionalmente
disposto de tal modo que cada coisa atinge «o estado mais perfeito», como
diz Sócrates no Fédon.

Aristóteles
Discípulo de Platão e mestre de Alexandre Magno, nasceu em Estagira (Trácia) no ano 384
a. C. Aos dezoito anos foi para Atenas, vindo a ingressar na Academia platónica e nela
permanecendo durante vinte anos, até à morte de Platão. Por causa desta, Aristóteles abandonou
Atenas, iniciando-se para ele um período de amadurecimento intelectual e de abandono
progressivo da filosofia platónica. No ano 335 a. C. regressa a Atenas e aí funda a sua própria
escola, o Liceu. Este segundo período de estada em Atenas, dedicado ao ensino e à investigação,
terminaria com a morte do seu antigo discípulo, Alexandre Magno. Um ano depois de
abandonar Atenas, morria na Ilha de Eubeia aos sessenta e dois anos de idade (ano 322 a. C.).
Conservam-se alguns fragmentos dos seus escritos de juventude (diálogos de conteúdo e
estilo platónico), bem como um número considerável de tratados completos cujo conjunto se
denomina corpus aristotelicum. Os tratados mais importantes são dedicados a questões de
lógica, de filosofia da natureza e biologia (os mais importantes deste grupo são a Física e
Acerca da Alma), de ética (Ética a Nicómaco) e de política (Política). Do máximo interesse é
também a sua Metafísica, obra dedicada a questões de Ontologia e Teologia.

Aristóteles, por seu turno, estava firmemente convencido de que todos


os seres naturais tendem a alcançar a perfeição que lhes é própria:
assim, por exemplo, um embrião realiza um processo complexo de
operações vitais (nutrição, crescimento, etc.) orientadas para a consecução
da forma e perfeição características do adulto de cada espécie.
Esta convicção fundamental de que os seres naturais tendem a alcançar o
seu próprio estado de perfeição foi elaborada por Aristóteles sob a
influência dos seus estudos biológicos.
Aristóteles dedicou-se longamente à biologia e não restam dúvidas de
que os processos biológicos são os mais difíceis de interpretar de um modo
puramente mecanicista. Os processos biológicos parecem presididos por
uma finalidade interna que os orienta e dirige. O modelo aristotélico da
natureza – baseado na biologia – é, pois, um modelo teleológico.
Aristóteles foi discípulo e colaborador de Platão durante vinte anos e
jamais abandonou o espírito do platonismo. Abandonou, isso sim, a teoria
das ideias quando atingiu a maturidade intelectual. Tendo negado a
existência das ideias, já não podia conceber o bem do mundo como uma
realidade transcendente, ou seja, existente em si (ideia do bem). Em
consequência, o bem passou a ser interpretado por Aristóteles como o
cumprimento da tendência que impele todos os seres para a sua
própria perfeição.
Deste modo na filosofia aristotélica a teleologia é imanente, isto é, o
bem/fim para que todos os seres naturais tendem é interior a si próprio, não
é mais do que a sua própria perfeição.

1.1.2. O movimento

a) Possibilidade e definição do movimento


Visto que a física se ocupa das substâncias dotadas de movimento, é
natural que Aristóteles comece a sua Física com uma crítica a Parménides e
com uma defesa da possibilidade do movimento.
Para Parménides, é impossível qualquer movimento ou mudança, porque
isso equivaleria à passagem do não-ser ao ser. Aristóteles introduz aqui uma
notável distinção. Tomemos aqui um exemplo simples. Uma pedra não é
uma árvore, nem uma semente é uma árvore, mas entre os dois casos existe
uma diferença notável: a pedra não é nem pode converter-se numa árvore,
a semente não o é, mas pode vir a sê-lo.
Há pois, duas maneiras de não-ser uma coisa: um não-ser absoluto (nem
é nem pode ser) e um não-ser relativo (não é, mas pode vir a ser). O
movimento é impossível no primeiro caso, mas não no segundo.

DEFINIÇÃO DE MOVIMENTO
Não há mudança fora das coisas. Na verdade, o que muda acontece
sempre de acordo com a substância, a qualidade, a quantidade ou o lugar.
Ora, para além destas coisas não há mais nada comum, algo que não seja
substância individual; quantidade, qualidade ou qualquer das restantes
categorias. Por conseguinte, nada se move ou muda fora das coisas
referidas, dado que não há nada fora delas. (...).
Depois de temos distinguido, dentro de género, o que é acto
(enteléquia) e o que é potência, o movimento é o acto (enteléquia) do que
está em potência como tal: por exemplo, a alteração é o acto do alterável
enquanto alterável, o crescimento e o decrescimento são o acto daquilo
que é capaz de crescer e decrescer (não há um termo comum para
designar ambos); o nascimento é o acto daquilo que é gerável e
corruptível; a locomoção do que é locomovível.
Que o movimento é isto, é evidenciado pelo seguinte: com efeito,
quando o edificável – como tal – se actualiza, vai-se edificando, e a
edificação consiste nisto. O mesmo acontece quando aprendemos,
curamos, giramos, saltamos, crescemos ou envelhecemos.
Aristóteles, Física III, 200b32-201 a 18.

E como, segundo a terminologia de Aristóteles, o que não é (mas pode


ser) se encontra em potência (a semente é árvore em potência) e o que
actualmente é está em acto (a árvore é árvore em acto, actualmente,
efectivamente), o movimento é assim explicado e definido como a
passagem ou trânsito da potência ao acto, como «acto do que está em
potência enquanto tal» (isto é, enquanto está em potência).

b) Classes de movimento
Uma vez garantida a possibilidade de movimento, da mudança em geral,
Aristóteles procede à classificação do mesmo, distinguindo: 1) a mudança
substancial, ou mudança cujo resultado é a destruição de uma substância já
existente; e 2) mudança acidental, na qual não se gera ou destroi
substâncias, embora estas sofram modificações em aspectos não essenciais
do seu ser, isto é sofrem modificações acidentais – porém, sem ficarem
afectadas na sua estrutura substancial.
Estritamente falando, nem toda a mudança é movimento: a mudança
substancial não o é. Apenas é movimento, em rigor, a mudança acidental,
que pode ser de três classes: quantitativa (aumento/diminuição no
tamanho), qualitativa (alteração) e local (deslocação, transferência).

c) Elementos que intervêm no movimento


Em qualquer mudança – seja ela substancial ou acidental – há sempre: 1)
algo que permanece através da mudança (precisamente aquilo que muda,
aquilo que fica afectado pela mudança); 2) algo que desaparece, e; 3) algo
que aparece em sua substituição. Suponhamos, por exemplo, o caso da
água que passa do estado líquido ao sólido ao descer de temperatura: o que
permanece ao longo deste processo, o sujeito ou substrato da mudança, será
a água; o que desaparece no processo é um estado da água, o seu estado
líquido; o que aparece em seu lugar é um novo estado, neste caso o sólido.
Tratando-se do movimento ou mudança acidental (como no exemplo
anterior), o que permanece através da mudança não levanta qualquer
problema: são as substâncias naturais que perdem certos caracteres
acidentais para adquirirem outros que não possuem. Mas o que é aquilo que
permanece (qual o substrato) nas mudanças substanciais? São as
substâncias, visto que a mudança substancial é a sua geração e destruição.

A MUDANÇA E A COMPOSIÇÃO MATÉRIA-FORMA


Se se observar com atenção, é evidente também que as substâncias – e
tudo aquilo que o é absolutamente – se gera a partir de algum sujeito. Por
conseguinte, há sempre algo que é o sujeito a partir do qual se gera o
que é gerável: por exemplo, da semente geram-se as plantas e os animais.
E em relação às coisas que se geram absolutamente, umas fazem-no por
transformação, como a estátua a partir do bronze, e outras por adição,
como as coisas que crescem: outras por subtracção, como a estátua de
Hermes a partir da pedra, outras ainda por composição, como a casa: e
outras, enfim, por alteração, como as coisas que se alteram na sua
matéria. É evidente que todas as coisas assim geradas o fazem a partir de
sujeitos.
Pelo que fica dito, é, pois, evidente que tudo o que é gerado é
composto: de um lado temos a coisa que se gera e do outro aquilo em que
a coisa se converte. Isto pode ser entendido de duas maneiras: como
sujeito e como oposto. Chamo sujeito ao homem que se torna sábio e que
é o oposto de quem é ignorante. O oposto é a falta de forma, de figura, a
falta de ordem, ao passo que o sujeito é o homem, a pedra ou o ouro.
Torna-se claro, portanto, que (...) tudo se gera a partir de um sujeito e
de uma forma. Com efeito, o homem adequado provém de certo modo de
«homem» e de «instruído»: o conceito daquele pode ser decomposto nos
conceitos destes.
Aristóteles, Física I, 7. 190b1-23.

CRÍTICA DAS IDEIAS PLATÓNICAS


Mas, acima de tudo, poderíamos perguntar-nos: qual é o contributo
das formas para as coisas sensíveis, quer para as que são eternas, quer
para as que se geram e corrompem? Desde logo, não são a causa do seu
movimento nem de qualquer mudança nessas coisas. Por outro lado, não
contribuem em nada para o conhecimento das outras coisas (com efeito,
nem sequer são a sua substância, pois então existiriam nelas), ou para o
seu ser, dado que não são imanentes nas coisas que delas participam (...).
Além disso, as outras coisas não podem derivar das formas, em
nenhum dos sentidos usuais da palavra «derivar». E dizer que são
modelos e que as outras coisas participam delas, é usar metáforas
poéticas e palavras vazias de significado.
Aristóteles, Metafísica I, 9, 991 a 8-22.

O que permanece é um substrato ou matéria última (Aristóteles chama-


lhe muitas vezes matéria primeira). Esta matéria não tem per si
determinação alguma, é indeterminada, não é nenhum ser em particular; e
precisamente porque não é (em acto) nenhum ser em particular, pode ser (é
em potência) qualquer ente ou substância natural.
A matéria é, pois, potência. Na mudança substancial, a matéria última
actualiza-se e adquire formas ou estruturas distintas; e segundo a estrutura
que adquire em cada caso geram-se diferentes espécies de substâncias.

A partir de Parménides e através de todos os esforços dos pluralistas para


explicar o movimento, tinha ficado perfeitamente claro que o movimento
só podia explicar-se admitindo algum tipo de realidade que permanecesse
ao longo de todo o movimento. Platão procurou esta realidade
permanente nas ideias. Aristóteles situou-a no substrato ou matéria
última.
Em estreita relação com a sua concepção teleológica da natureza e com a
sua teoria do movimento como passagem da potência ao acto, Aristóteles
impulsionou uma mecânica e uma concepção do Universo (esférico,
finito, geocêntrico) com grande influência histórica. Mais à frente, no
cap. 6, abordaremos de novo a mecânica aristotélica, quando nos
referirmos à física no século XIV.

1.1.3. As quatro causas

a) Por conseguinte, dado que na geração das substâncias naturais a


matéria última adquire uma forma determinada, aquelas são compostas de
matéria e forma.
A forma é a essência (o que cada substância é, o que faz com que a
matéria, que de per si é indeterminada, seja precisamente esta substância e
não qualquer outra) e é também a natureza das substâncias, isto é, aquilo
que determina as suas actividades específicas e próprias. É fácil reconhecer
nas formas aristotélicas uma herança das ideias de Platão que também
pretendiam saber a essência e natureza dos seres naturais. Mas Aristóteles
considera que as ideias platónicas são incapazes de desempenhar estas
funções. Como é que a ideia de «homem» pode ser a essência dos homens
se se encontra separada deles?
De acordo com a doutrina de Platão, não é possível afirmar que o fulano
é homem; no máximo, poderíamos afirmar que fulano participa da ideia de
«homem». Ora, se não podemos afirmar que fulano é homem, então
«homem» não é a essência de fulano, não é aquilo que fulano é. No
entender de Aristóteles, as ideias também não podem ser a natureza das
coisas, já que o princípio que determina as suas actividades próprias e
intrínsecas não pode estar fora delas. A essência, a natureza, tem de ser um
princípio intrínseco das substâncias, como acontece com as formas
aristotélicas, mas não com as ideias de Platão.
A teoria aristotélica segundo a qual as substâncias naturais são
compostas de matéria e forma costuma denominar-se hilemorfismo).
A matéria e a forma são causas das substâncias naturais, causas
intrínsecas. A elas Aristóteles acrescenta como causas extrínsecas, a causa
eficiente ou agente produtor de movimento e a causa final ou fim, para a
qual se orienta o movimento ou processo. São quatro, pois, as causas na
filosofia de Aristóteles.

Este esquema das quatro causas pode parecer estranho aos leitores
modernos, acostumados a chamar «causa» unicamente àquilo que
Aristóteles denomina «agente», a causa eficiente.
Para se compreender adequadamente o sentido da teoria aristotélica da
causalidade, é preciso ter em conta as duas observações seguintes. Em
primeiro lugar, Aristóteles considera como causas todos os factores que
são necessários para explicar um processo ou movimento, todos os
elementos que poderiam e deveriam unir-se para responder totalmente à
pergunta porquê? No seu entender, nenhum processo fica
satisfatoriamente explicado a não ser que se especifique o substrato ou
matéria afectada; a forma que esta adquire no processo; o agente que o
produz com a sua acção; e o fim a que tal processo se destina.

b) Nos processos naturais a causa eficiente, a forma e o fim


coincidem. Tomemos o caso típico da geração dos seres vivos. Os seres
vivos engendram outros e graças a isso a espécie perpetua-se (eternamente,
pensava Aristóteles). A actividade geradora é uma actividade vital, ou seja,
é própria e intrínseca aos seres vivos. Uma vez que a natureza é princípio e
causa das actividades intrínsecas do ser natural, temos de concluir que a
actividade reprodutiva tem por princípio, por causa, a natureza. A causa
eficiente ou agente da reprodução, é pois a natureza ou forma presente no
progenitor. O efeito, por seu turno, é também a forma actualizada no
vivente engendrado que pertence à mesma espécie do progenitor. A causa
final ou fim é a própria actualização da forma, de modo que a espécie se
perpetue.
Assim, o fim nos processos naturais não é mais do que a actualização
das formas nas substâncias: isto revela claramente como o modelo
aristotélico é teleológico e como esta teleologia é imanente, tal como o
afirmámos no início da nossa exposição sobre Aristóteles.

1.2. As substâncias viventes. A alma

No capítulo anterior, referente a Platão, ao introduzir o tema da alma


(3.3.1.) distinguimos dois modos gerais de conceber a alma – como
princípio da vida e como princípio do conhecimento intelectual – e
indicámos que Aristóteles assume a primeira destas concepções. É lógico
que assim seja, dada a sua dedicação à biologia. Para Aristóteles, a alma é o
princípio vital, é o princípio da vida.

a) Utilizando os conceitos básicos da sua filosofia Aristóteles define a


alma como forma e como acto. A alma é a forma do corpo (que é matéria)
e acto é a actualização de um organismo: um organismo possui
potencialmente vida, é vivente em potência; a alma actualiza esta
potencialidade fazendo que o organismo viva, que seja de facto vivente. A
alma, diz Aristóteles, é «acto primeiro de um corpo natural organizado»
(Acerca da Alma, II, l, 4l2b5).

b) Na medida em que a alma é forma e acto de um corpo potencialmente


vivo, a união da alma e do corpo explica-se sem dificuldades especiais: não
se trata, como afirma Platão, de uma união acidental ou antinatural, mas de
uma união perfeitamente natural e essencial, já que a alma e o corpo
(forma e matéria) constituem uma só substância: o ser vivo. A
contrapartida desta interpretação hilemórfica da união da alma e do corpo é
a negação da imortalidade da alma individual.

O CONCEITO DE ALMA
O que a opinião geral entende como substâncias são sobretudo os
corpos, mais especificamente os corpos naturais, pois estes são os
princípios de todos os outros. Mas há corpos naturais que têm vida e
outros que não a têm: e por «vida» entendemos o facto de se
alimentarem, crescerem e envelhecerem por si mesmos. Por conseguinte,
todo o corpo natural que participa da vida é substância, no sentido de
substância composta. E dado que se trata de um corpo com certas
qualidades – isto é, que tem vida – o corpo não pode ser a alma, pois o
corpo animado não é um atributo do sujeito mas, pelo contrário, é em si
substrato e matéria. Assim, a alma é necessariamente substância, pois é a
forma de um corpo natural que possui a vida em potência. Mas a
substância formal é enteléquia, e por isso a alma é a enteléquia de um tal
corpo.
Aristóteles. Acerca da Alma II. 1, 412 a 1-22.

c) Além da alma corruptível, que é forma e acto do corpo, Aristóteles


admite a presença no homem de um entendimento incorruptível e
imortal. A este entendimento chama por vezes, «alma» embora se preocupe
em assinalar que se trata de «outro tipo de alma» já que é incorruptível e,
portanto, não pode ser forma e acto de um corpo. Este entendimento não é
pessoal, dado que é o mesmo para todos os homens. Acaso é Deus?
Como está presente no homem? Os escritos de Aristóteles não nos
permitem uma resposta definitiva a estas perguntas.

1.3. Da física à metafísica

1.3.1. A entidade primeira. A teologia

Aristóteles estabelece, pois, a primazia da forma sobre a matéria e


também que, acima das formas realizadas na matéria, existem formas
imateriais cuja instância suprema é Deus. Estabelece igualmente a
primazia do acto sobre a potência, chegando também por esta via à
afirmação da existência de uma realidade que é acto pleno sem potência e,
portanto, alheio a qualquer tipo de mudança ou movimento, já que este
apenas se pode produzir onde haja potência. É Deus, motor imóvel do
Universo, princípio de todo o movimento que, por seu lado, não está
submetido a movimento algum.
Com isto se atingem os limites da física que estuda as realidades dotadas
de movimento) para entrarmos nos domínios da metafísica (ciência que
estuda entidades reais imóveis) e da teologia (ciência que estuda a suprema
realidade de todas elas: Deus). Assim como para Platão, o conhecimento da
realidade culmina na contemplação da ideia primeira, do bem, para
Aristóteles, o conhecimento teórico culmina na contemplação da entidade
ou forma primeira: Deus, princípio do movimento e da ordem do Universo.

1.3.2. A ontologia

No âmbito do conhecimento teórico, Aristóteles atribui um valor


fundamental a uma disciplina de carácter geral cujo objecto de estudo é
o real enquanto tal, «o ente enquanto ente e as propriedades que por si lhe
pertencem» (Metafísica, IV, l, 1003 a 21-22). Não se trata de uma ciência
particular que se ocupe de uma parcela da realidade, mas de uma disciplina
que estuda «o que é» o ente de um modo universal.
Apesar de ser o primeiro a ocupar-se explicitamente dela Aristóteles não
atribui um nome preciso a esta disciplina fundamental (a partir de
modernidade receberá a denominação de ontologia). É certo que esta
ciência geral não aparece expressamente citada na classificação aristotélica
das ciências teóricas (física, matemáticas, teologia). No entanto, ocupa-se
dela e das suas relações com a teologia nos seus livros metafísicos.
A esta ciência corresponde o estudo das propriedades e dos princípios
mais gerais que regem o real, dos quais o mais importante é o princípio de
não-contradição (uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e no
mesmo sentido), a cuja explicação e defesa Aristóteles dedica mais páginas
do que qualquer outro filósofo.
Ao estudar o real na sua totalidade, Aristóteles mostra como a realidade
básica é a substância individual já que os acidentes pertencem às
substâncias e não existem separadas delas. Por seu turno, e já no âmbito das
substâncias, a ontologia aristotélica descobre uma gradação de formas que
culmina na forma primeira e imaterial. Deste modo, a ontologia aristotélica
converge com a teologia.

1.4. Ética: felicidade e virtude

1.4.1. A conduta humana e a felicidade

Na sua ética, Aristóteles parte do princípio de que o fim último, a meta


última de todos os seres humanos é a felicidade. Com esta afirmação todos
os homens estarão certamente de acordo, seja qual for o seu credo ou
convicção. O desacordo começa ao concretizar em que consiste a
felicidade. Trata-se de uma dificuldade séria para qualquer teoria moral:
como determinar em que consiste a felicidade?
a) Perante esta pergunta há basicamente duas atitudes. A primeira
consiste em deixar que cada qual decida individualmente e a seu talante o
que o pode fazer feliz: tal atitude renuncia à teoria moral, isto é, renuncia a
encontrar um modelo generalizável de felicidade, desinteressando-se da
pergunta e sem tentar sequer responder-lhe.
Se, ao contrário, se adopta uma atitude teórica, como faz Aristóteles, a
pergunta só pode ser respondida analisando a natureza humana. Como
os sofistas, como Platão, como todos os filósofos gregos, Aristóteles volta-
se para o estudo da natureza humana, estabelecendo um segundo princípio:
cada ser é feliz realizando a actividade que lhe é própria e natural.
Este princípio, segundo o qual a felicidade consiste no exercício da
actividade própria de cada ser, é uma consequência que deriva da
concepção teleológica da natureza em Aristóteles. Com efeito se todo o
ser natural tende a realizar determinadas actividades, o seu exercício
arrastará consigo a satisfação das tendências e, com isso, a perfeição e a
felicidade. Pois bem, a actividade mais própria e natural do homem, aquela
que corresponde mais adequadamente à sua natureza, é a actividade
intelectual. A forma mais perfeita de felicidade seria portanto a
actividade contemplativa

b) Mas Aristóteles sabe (Platão já o havia sublinhado) que o homem não


é só razão e entendimento. Uma vida dedicada à contemplação só seria
possível se o homem não tivesse necessidades corporais, problemas
económicos, interferências sociais, etc. Este ideal de felicidade e perfeição
é, pois, uma aspiração praticamente irrealizável para a imensa maioria dos
homens, e mesmo aqueles que podem dedicar-se à contemplação, somente
o podem fazer durante escassos períodos da sua vida. O homem não pode,
pois, alcançar esta felicidade absoluta própria de Deus, mas terá de
contentar-se com uma felicidade limitada.

A FELICIDADE: O FIM ÚLTIMO


Chamamos mais perfeito ao bem que perseguimos por si mesmo do
que ao que se persegue por outra razão: e ao que nunca é escolhido em
vez de outra coisa, mais do que aos que são escolhidos simultaneamente
por si mesmos e por outro fim. De um modo geral, consideramos perfeito
o que é escolhido por si mesmo e nunca por outra razão.
Assim acontece com a felicidade, pois escolhemo-la sempre por ela
mesma e nunca por outra razão: pelo contrário, desejamos as honras, o
prazer, o raciocínio e todas as virtudes por si mesmos (e ainda que delas
nada resultasse desejá-las-íamos sempre): e também as desejamos para
atingir a felicidade, pois acreditamos que elas nos tornarão felizes. Pelo
contrário, ninguém procura a felicidade por estas razões, nem geralmente
por nenhuma outra.
Aristóteles. Ética a Nicómaco I, 7, 1097 a 15-b7.

A consecução desta forma atenuada de felicidade exige a posse de


certos bens corporais (saúde, etc.) e exteriores (meios económicos, etc.).
Sobretudo e em especial exige a posse das virtudes morais.

1.4.2. As virtudes morais

Na sua reflexão sobre a virtude, Aristóteles distingue dois tipos de


virtude no ser humano: as virtudes intelectuais, que aperfeiçoam o
conhecimento, e as virtudes morais, que aperfeiçoam o carácter, o modo de
ser e de se comportar.

A expressão «virtude intelectual» pode parecer estranha aos leitores


modernos de Aristóteles, já que estamos habituados a falar de virtudes
apenas no âmbito da moral. Para se entender o sentido de tal expressão
devemos ter em conta que a palavra grega que se traduz por «virtude»
(areté) significa excelência: as virtudes intelectuais são excelências e
tornam o nosso conhecimento excelente, e as morais tornam o nosso
carácter igualmente excelente.

Entre as virtudes ou excelências intelectuais Aristóteles inclui uma de


enorme importância para a vida prática: a prudência (que também poderia
ser denominada «bom julgamento», ou até «sabedoria prática»). Como
vimos, Platão concedia à prudência um lugar proeminente na sua doutrina
das virtudes, considerando-a a virtude própria da razão ou entendimento, ou
seja, da parte superior da alma. Em Aristóteles também ocupa um lugar
destacado, já que lhe cabe determinar ajuizadamente o que é correcto e
adequado no âmbito prático da conduta.

a) O meio-termo justo
Aristóteles define a virtude em geral como «um hábito de escolher o
meio-termo relativo a nós próprios», um meio-termo que é «estabelecido
racionalmente, ou seja, como seria estabelecido por um homem prudente»
(Ética a Nicómaco II, 6, 1106b35-1107 a 2).
De acordo com esta definição, as virtudes ou excelências morais são: 1.
disposições estáveis (e por isso são denominadas «hábitos»); 2. que nos
facilitam a escolha mais correcta e conveniente para cada caso; 3. assim, o
correcto e conveniente consiste sempre num meio-termo entre acções ou
atitudes extremas; 4. finalmente, este meio-termo deve ser estabelecido
racionalmente. Daí a importância da prudência, a que nos referimos no
parágrafo anterior: é a prudência, a sabedoria prática, que determina onde
se encontra o meio-termo razoável para cada tipo de acção e para cada caso
particular.
As várias virtudes consistem portanto num meio-termo justo entre duas
posições extremas, em que uma é excessiva e a outra peca por defeito: por
conseguinte, o valor é algo de intermédio entre a temeridade cega e a
cobardia; a moderação constitui o meio-termo entre o excesso e um rigor
demasiado repressivo, etc.
b) A justiça
Aristóteles concede um lugar de destaque à justiça, colocando-a ao lado
da prudência (da qual depende toda a actividade prático-moral).
Quando nos ocupámos da moral platónica vimos que para Platão a
justiça não era uma virtude particular ou uma parte da alma (ao contrário da
prudência ou do valor), mas a ordem geral que reina na alma quando cada
parte realiza adequadamente a função que lhe cabe. Em Aristóteles
encontramos uma noção semelhante: neste sentido, a justiça não é uma
virtude particular mas geral, a virtude integral do homem que possui todas
as virtudes. Esta justiça geral, a que Aristóteles chama a justiça legal,
consiste no cumprimento das leis. Com efeito, o conjunto das leis determina
prudentemente os modos virtuosos de nos comportarmos.
Além desta noção geral, Aristóteles refere-se à justiça como uma
virtude particular, específica, que regula as relações interpessoais e que
impõe um tratamento equitativo, de modo que cada um receba o que lhe
cabe. O tratamento equitativo pode revestir-se de duas formas, que
Aristóteles interpreta, respectivamente, como igualdade aritmética e
proporção geométrica. A justiça aritmética exige que quem está em causa
receba exactamente o mesmo: é a justiça contratual que rege as trocas. A
justiça geométrica exige que os implicados recebam proporcionalmente
aos seus méritos, regendo a distribuição social de honras e prémios.

1.5. Política. O cidadão e o Estado

1.5.1. A sociabilidade. O Estado

A grande contribuição de Aristóteles para o pensamento político


consistiu precisamente na sua insistência em que a natureza humana é
essencialmente social. Perante certas teorias de origem sofística, que
consideravam a sociedade como um produto da convenção, Aristóteles
afirma que a sociabilidade é um traço ou dimensão essencial da natureza
humana: «o Estado é algo produzido pela natureza, e o homem é por
natureza um animal político», escreve Aristóteles na sua Política (I, 2). Na
avaliação aristotélica da condição humana ressoam os ecos platónicos da
concepção do homem como realidade intermédia entre os animais e Deus.
A vida em sociedade é impossível para os animais e é desnecessária para
Deus, que é auto-suficiente: «aquele que não pode viver em sociedade ou
não tem necessidade disso, porque é auto-suficiente, tem de ser um animal
ou um deus» (Política, I, 2). Uma vez mais se manifesta a concepção
teleológica da natureza que preside ao pensamento aristotélico. De facto
afirmar que o homem é naturalmente social equivale à afirmação de que o
homem tende por natureza à vida em comunidade.
A vida comunitária, por seu lado, ocorre em níveis distintos: na família,
na aldeia e, por fim, no Estado. O Estado (a polis) é a forma mais perfeita
de comunidade e só nele o homem pode alcançar a sua perfeição e viver
numa vida plenamente humana.

1.5.2. Os regimes políticos

A finalidade do Estado é facilitar aos cidadãos, aos membros da


comunidade política, o desenvolvimento de uma vida excelente e virtuosa,
além da possibilidade de uma vida digna e feliz. Estas condições são
especificadas nas leis, particularmente no regime político assumido
constitucionalmente.
A ideia desenvolvida pelos sofistas de que os regimes políticos, as
constituições, são convencionais, não sofreu posteriormente qualquer
questionação radical. Também Aristóteles admite o seu carácter
convencional. Com efeito, há um limite «natural» – e portanto de carácter
moral – para a convencionalidade e para as mudanças constitucionais:
qualquer regime político deve orientar-se para a realização da justiça e
não para o benefício particular, injusto, dos que exercem o poder.
O HOMEM, ANIMAL SOCIAL
A cidade é a comunidade perfeita de várias aldeias que, por assim
dizer, têm como objectivo a suficiência e que derivou das necessidades da
vida mas que agora existe para viver bem. Assim, as primeiras
comunidades são cidade por natureza; porque a cidade é o fim delas, e a
natureza é fim. Com efeito, chamamos natureza de cada coisa ao que
cada uma é depois de ter nascido, quer falemos do homem, do cavalo ou
da casa. Além disso, o melhor é aquilo em função do qual existe algo e
um fim, e a suficiência é o melhor fim.
Torna-se pois evidente que a cidade é uma das coisas naturais e que o
homem é por natureza um animal social, e quem é associal por natureza e
não por acaso, ou é um homem mau ou mais que homem, como aquele
que Homero repreende: «sem tribo, sem lei, sem lar», porque quem é
assim por natureza é também adepto da guerra, como uma peça isolada
nos jogos.
Aristóteles, Política I, 2,: 1252b-27-53 a 7.

Aristóteles distingue três tipos de constituição, três classes de regimes


políticos tendo em conta o número de cidadãos que governam: a
monarquia (quando só um governa), a aristocracia (o governo dos
melhores) e a democracia (o governo de todos os cidadãos). Em princípio,
qualquer uma destas formas pode ser considerada correcta quando o
poder é exercido justamente. A democracia correcta aproxima-se do ideal
da justiça aritmética, ao passo que a aristocracia e a monarquia pendem
mais para a justiça geométrica, pois trata-se do governo do melhor ou
melhores de entre os cidadãos.
Além disso, as três formas de governo podem perverter-se e isso
acontece quando o poder não se orienta para a realização da justiça mas sim
para o proveito de quem governa. Estas três formas injustas de governo são,
respectivamente, a tirania, a oligarquia e a democracia degenerada, à qual
se pode chamar demagogia.
2. A FILOSOFIA DO PERÍODO HELENÍSTICO

Como acentuámos no início do segundo capítulo, a partir dos finais do


século IV a. C. produz-se no pensamento grego uma nova viragem
antropológica, sendo o homem – e muito particularmente o tema moral – o
objecto central da reflexão filosófica. Destaque-se a propósito a criação em
Atenas de duas novas escolas que vêm juntar-se à Academia platónica e ao
Liceu aristotélico: o Jardim, fundado por Epicuro, e a Stoa (de onde o termo
«estoicismo») fundada por Zenão de Cítio.
Para se compreender bem o pensamento do período helenístico,
devemos estudar três pontos fundamentais: em primeiro lugar, as
circunstâncias que acompanham e condicionam este novo deslocamento da
filosofia para questões morais; em segundo lugar, a significação que nestas
escolas adquire o ideal de sábio; por último, as doutrinas fundamentais do
epicurismo e do estoicismo.

2.1. Novas circunstâncias sociopolíticas

As circunstâncias que deram origem ao período helenístico – período de


características muito peculiares em todos os âmbitos da cultura – são por
certo conhecidas. O vastíssimo império que Alexandre forjou e as
monarquias imediatamente nascidas da sua fragmentação ocasionaram,
entre outras, duas notáveis consequências: abriram grandes áreas
geográficas à cultura helenística e acabaram com a estrutura política
dos estados gregos.
A primeira das consequências apontadas tornou possível a extensão da
cultura grega até outras áreas geográficas em que floresceria com pujança.
Alexandria e Rodes depressa superaram Atenas em todos os ramos da
cultura e do saber, excepto no ensino da retórica e da filosofia. Atenas
continuou a ser a sede central da filosofia, não só porque aí continuavam
abertas as escolas fundadas por Platão (a Academia) e por Aristóteles (o
Liceu), mas porque ali se fundaram mais duas escolas, o Jardim de Epicuro
e a Stoa de Zenão.
A orientação do pensamento filosófico foi poderosamente influenciada
pela segunda das consequências que a nova situação política acarretou,
como acima assinalámos: o ocaso político dos estados gregos. As pequenas
cidades-Estado (polis) haviam constituído a comunidade política
fundamental, o único âmbito em que a vida política e a integração cívica
eram possíveis e racionais para um Grego. (Nas suas teorias e elucubrações,
Platão e Aristóteles nunca aceitaram outro tipo de organização política mais
ampla.)
Para os gregos a participação activa na organização e destino da sua
própria polis era uma dimensão essencial da vida, e quando a marcha
implacável da história acabou com a independência das cidades e a
organização e o destino das mesmas deixou de estar em suas mãos, muitos
Gregos devem ter compreendido que o sentido da sua vida estava
definitivamente mutilado e que não tinham outro remédio senão procurar
um novo sentido de vida e novos ideais.
Tanto o epicurismo como o estoicismo pretendem responder a esta
necessidade. A liberdade social, política e cívica irremediavelmente
perdida será substituída pela liberdade individual, da pessoa que se
basta a si própria.
Neste sentido Epicuro é radical: o homem sábio não intervém na
política, desinteressa-se dela, refugia-se na sua vida privada em companhia
dos amigos (no epicurismo a comunidade de amigos substitui a comunidade
política e Epicuro tributou um verdadeiro culto à amizade e dedicou-lhe as
suas mais apaixonadas e líricas palavras: «através do mundo vão bailando
suas danças os coros da amizade, que a todos convida a levantar e a
proclamá-la três vezes bem-aventurada»).
Neste aspecto o sábio epicurista diferencia-se do sábio estóico: segundo
o estoicismo, o sábio intervém de facto na política, mesmo quando a sua
autêntica liberdade seja pessoal e interior. Epicuro preparava os seus
discípulos para viverem em comunidades apolíticas de amigos; o estoicismo
preparava-os para se converterem em políticos austeros e rígidos
funcionários.

Epicuro
Nasceu em Samos no ano 341 a. C. Aos dezassete anos foi para Atenas cumprir o serviço
militar. Mais tarde e após dez anos dedicados ao estudo da filosofia, começou a ensinar, em
Mitilene, de onde provavelmente foi expulso (310 a. C.) e, depois em Lâmpsaco. No ano 306 a.
C. regressou a Atenas, onde fundou a sua escola, denominada Jardim. Era simultaneamente uma
escola filosófica, uma comunidade de amigos e uma verdadeira seita entre cujos membros se
contavam homens e mulheres, livres e escravos. Morreu em Atenas, aos setenta anos de idade.
De seus escritos conservam-se várias cartas (a mais importante é a Carta a Meneceu),
máximas morais e outros fragmentos. Epicuro encontraria um continuador notável no poeta e
filósofo latino Lucrécio.

2.2. O ideal do sábio

No parágrafo anterior referimo-nos à atitude que o homem sábio


adoptaria perante certas circunstâncias, segundo o epicurismo e o
estoicismo. Vamos agora tentar esclarecer o significado que o ideal do
sábio adquire neste período.

2.2.1. O ideal do sábio e a moral paradigmática

Ao longo da história da ética, podemos distinguir duas maneiras de


propor as doutrinas morais, a que podemos chamar teórica e paradigmática.
Pode dizer-se que a moral teórica é a que expõe as suas normas e as
deduz a partir de certos princípios. Este tipo de moral encontra-se, como
vimos, nos sofistas, em Sócrates, Platão e Aristóteles, que se esforçaram por
deduzir certas normas a partir do estudo da natureza humana. Mas a moral é
um assunto fundamentalmente prático e assim muitas vezes a teoria não
chega para levar o ser humano a comportar-se de determinada maneira
(costuma-se dizer que um exemplo move mais do que cem conselhos).
Surge por isso a moral a que chamamos paradigmática, que consiste
em propor modelos ou exemplos a seguir.
A importância psicológica de tais modelos foi sempre bem
compreendida pelos movimentos religiosos e políticos que pretenderam
atrair os homens. A igreja católica, por exemplo, canoniza santos como
modelos a imitar.
Estas duas formas de moral não se excluem, antes se complementam.
Sócrates constituiu um modelo vivo de virtude para muitos Gregos da
geração seguinte (Platão apresenta-o como paradigma de homem e cidadão)
e Aristóteles – sem se referir a nenhuma personagem real e concreta – alude
em muitas ocasiões, à conveniência de agir como o faria «um homem
honesto» em tal circunstância. Quando não se tem um modelo histórico real
a que deitar mão, o mais lógico é criar o protótipo, imaginar um modelo
ideal. Foi o que epicuristas e estóicos fizeram.
Estóicos e epicuristas deixaram-nos brilhantes retratos do sábio ideal e
da atitude e comportamento de um homem verdadeiramente sábio. Os
retratos das duas escolas apresentam certos traços genéricos comuns: só o
sábio é feliz, o sábio caracteriza-se pelo seu autodomínio, constância e
simplicidade, etc.
Existem no entanto traços notoriamente opostos em ambos os ideais, por
exemplo, o alheamento epicurista em relação à política («o sábio não se
esforçará por dominar a arte da retórica e não intervirá em política, nem
desejará ser rei») e a sua atitude face à clemência: o estóico é
intransigente até ao extremo («o sábio – diz um texto estóico – não
concederá perdão a ninguém, pois quem perdoa sugere que aquele que
cometeu a falta não é responsável por ela (...) também não terá clemência,
pois a clemência implica o perdão do castigo justo e a ideia de que os
castigos previstos na lei são excessivamente duros, etc.». (Pelos vistos, os
estóicos não eram partidários da amnistia nem do indulto). O epicurista, ao
contrário, mostra-se sempre inclinado à clemência («o sábio – diz um texto
epicurista – castigará por vezes os seus servos, mas estará sempre disposto a
sentir compaixão e a perdoar»).

2.2.2. O ideal do sábio e o intelectualismo moral

Ao propor os paradigmas de virtude, a igreja católica fala do santo, ao


passo que as escolas helenísticas falam do sábio. Esta diferença não é
meramente terminológica, mas o reflexo de duas formas diferentes de
conceber a virtude. A moral cristã não é uma moral intelectualista: a virtude
não é uma questão de saber ou de ignorância. Ao contrário, o epicurismo e
o estoicismo continuam a tradição intelectualista socrática: a virtude
identifica-se com o saber. Daí a importância atribuída à sabedoria e que o
ideal humano seja precisamente o sábio.

2.3. Principais doutrinas

O objectivo fundamental das duas escolas – como já assinalámos – é a


moral, isto é, a ordenação da conduta humana de tal modo que seja possível
alcançar uma vida feliz.
Segundo Epicuro, a felicidade consiste na consecução do prazer
sabiamente administrado bem como o afastamento da dor. Para o
estoicismo, por sua vez, a autêntica felicidade só pode consistir na virtude,
no autodomínio e fortaleza de ânimo, que tornam o sábio imperturbável
face à desgraça e ao destino.
Ambas as doutrinas pretendem fundamentar-se num conhecimento da
natureza, tanto da natureza entendida como a totalidade do Universo, como
da natureza humana.

a) O epicurismo adopta a interpretação hedonista que já


encontráramos cruamente formulada em certos sofistas: a lei fundamental
da natureza humana é a procura do prazer.
O estoicismo, ao contrário, interpreta a natureza humana
fundamentalmente como razão: viver de acordo com a natureza é viver de
acordo com os ditames da razão.

Séneca
Nascido em Córdova no começo da nossa era, Lúcio Ânio Séneca foi educado em Roma,
onde viveu a maior parte da sua existência. A sua vida política conheceu flutuações notáveis,
sofrendo primeiro uma condenação sob Calígula e depois um prolongado desterro sob Cláudio.
Depois de ser tutor e conselheiro de Nero, foi acusado, no ano 65, de conspirar contra ele.
Suicidou-se, então, por mandado do Imperador. Embora o seu pensamento filosófico denote um
certo ecletismo (comum, aliás, nos filósofos desta época), Séneca defendeu em suas linhas
mestras as doutrinas do estoicismo antigo. A sua atenção deteve-se essencialmente em questões
de tipo prático, desinteressando-se em grande medida das doutrinas lógicas e físicas da Stoa.
Aliada a este moralismo puro, é de destacar a sua tendência para se afastar do panteísmo e se
aproximar de uma concepção personalista de Deus. Esta característica fez aparecer a lenda de
um Séneca cristão, que teria mantido correspondência com São Paulo. As suas principais obras
são os Ensaios Morais e as Cartas Morais.

b) Quanto à natureza entendida como a totalidade do Universo, Epicuro


adopta o atomísmo de Demócrito, mas com uma notável diferença: o
movimento natural dos átomos é a queda em vertical, e todos os átomos
caem à mesma velocidade. Como é possível então que os átomos choquem
e se combinem?
Epicuro afirma que em certos átomos por vezes se produz um
movimento anómalo de desvio imprevisível e casual.
Esta engenhosa teoria era muito útil a Epicuro, dado que lhe permitia
explicar três aspectos fundamentais do seu sistema:

1. a possibilidade de que os átomos choquem e se combinem para


formar mundos;
2. a liberdade humana (movimentos imprevisíveis dos átomos que
compõem a alma humana);
3. a ausência de determinismo no Universo (o destino não existe, já que
os acontecimentos dependem desses movimentos casuais e
imprevisíveis).

Como filósofo da natureza, Epicuro é certamente medíocre e carece da


vocação e do gosto científico de Demócrito. O conhecimento da natureza
interessa-o apenas na medida em que pode contribuir para a felicidade do
homem, libertando-o dos três grandes temores que frequentemente o
impedem de gozar a vida: o temor do destino (já assinalámos que ele não
existe), da morte (porquê temê-la, se a alma – composta de átomos – é
mortal e com ela tudo acaba para o homem?) e dos deuses (estes não se
ocupam dos homens nem interferem minimamente nos assuntos humanos).
O estoicismo voltou-se em grande medida para a filosofia de
Heraclito e pregou o mais rigoroso determinismo. Tudo está
determinado e nada pode fazer-se para mudar o rumo dos acontecimentos.
Tal como aquele que, nadando contra a corrente, só consegue cansar-se e
acaba sendo arrastado por ela, também o néscio que se rebela contra o
destino só encontra desespero e sofrimento. A verdadeira sabedoria consiste
em aceitar o destino serenamente e sem espavento, sabendo que é o melhor
para o homem, já que o Universo é regido por Deus e o destino é
providência. Este é o preceito fundamental da razão para o estóico,
imperturbável e impiedoso como o próprio destino.

COSMOLOGIA ESTÓICA
Tal como Heraclito, Zenão diz que o fogo é o elemento de todas as
coisas e que os seus princípios são a matéria e Deus. Este último aspecto
aproxima-o de Platão. Na verdade, Zenão afirma que ambos os princípios
(o activo e o passivo) são corpóreos, ao passo que Platão afirma que a
causa produtiva primeira é incorpórea. Afirma também que após certos
períodos de tempo o cosmos é fatalmente destruído na sua totalidade pelo
fogo para depois se formar de novo. O fogo original é como uma semente
que comporta em si as razões e as causas de todas as coisas que se
produzirão, que se produzem e que se produziram. A concatenação e
sucessão destas coisas constituem o destino, a ciência, a verdade e a lei
fatal e inevitável. Deste modo, todas as coisas encontram-se
absolutamente bem ordenadas no cosmos, tal como numa cidade bem
governada.
Eusébio (VSF I, 98)
4. CRISTIANISMO E FILOSOFIA. SANTO
AGOSTINHO

INTRODUÇÃO

O encontro entre cristianismo e filosofia pode considerar-se de duas


maneiras distintas. Em primeiro lugar pode ser encarado como
confrontação entre duas atitudes possíveis perante os problemas
suscitados pelo ser do homem e do mundo: a atitude que se baseia na fé e a
atitude que se baseia nos equívocos da razão. Considerado desta forma, o
encontro entre cristianismo e filosofia, entre as exigências da fé e as
imposições da razão, é inevitável e perene na nossa cultura, não terminou
nem nunca terminará enquanto um e outra existirem. A filosofia interpelará
sempre o cristianismo e este será obrigado a definir-se ao responder à
filosofia. Na época contemporânea, esta contínua interpelação atingirá
momentos de máxima radicalidade no pensamento de autores como Marx,
Nietzshe e Freud. Mas o encontro entre cristianismo e filosofia pode, em
segundo lugar, analisar-se como um acontecimento concreto de primeira
grandeza que teve lugar durante o período histórico correspondente ao
Império Romano. Naquele tempo, o cristianismo defrontou-se com a
filosofia grega. O triunfo do cristianismo é habitualmente explicado como o
resultado de certas condições económicas, políticas, etc., do mundo antigo.
Estes condicionamentos são reais e é muito razoável tomá-los em
consideração. Mas o triunfo do cristianismo deve-se também, em grande
medida, ao facto de uma minoria de cristãos cultos ter aceitado o repto dos
filósofos e ter tentado estar à sua altura. É difícil imaginar se o cristianismo,
religião de gentes humildes e das camadas sociais mais baixas, teria
triunfado se não fosse o esforço intelectual deste punhado de cristãos cultos.
A primeira parte da nossa exposição é dedicada à apresentação das
características e dos resultados desta confrontação histórica entre o
cristianismo e a filosofia grega. Na segunda parte ocupar-nos-emos de
Santo Agostinho, pensador cuja obra constitui o culminar da filosofia cristã
de inspiração platónica.

Este capítulo consta das seguintes partes:


1. A confrontação do cristianismo com a filosofia.
2. O apogeu do platonismo cristão: Santo Agostinho.
3. Augustinismo e platonismo medievais.
NOTA: Setas simples: correntes que influenciaram outras; setas a tracejado:
obras polémicas contra o cristianismo.
1. A CONFRONTAÇÃO DO CRISTIANISMO
COM A FILOSOFIA

1.1. O cristianismo face à filosofia grega

1.1.1. A fé cristã e a história

O cristianismo trouxe consigo doutrinas radicalmente novas, alheias a


tudo quanto os filósofos gregos haviam afirmado. Uma delas é a doutrina da
criação, a que mais adiante nos referiremos. Outras das características que
distinguem radicalmente o cristianismo de todos os sistemas filosóficos
gregos é a referência essencial da sua doutrina à história. O cristianismo
põe Deus em relação com a história.
A filosofia grega havia posto Deus em relação com o cosmos, com o
Universo, seja como inteligência ordenadora (Anaxágoras, Platão), seja
como motor e fim (Aristóteles), ou como razão cósmica (estoicismo). Se o
cristianismo se tivesse limitado a propor uma teoria na qual Deus fosse
simplesmente a origem do Universo, certamente se teria esfumado e
fundido com outras correntes do pensamento antigo. O cristianismo põe
Deus em relação com a história num duplo sentido:

a) Em primeiro lugar, na medida em que Deus é previdente e se ocupa


directamente dos assuntos humanos e da marcha da história. Esta doutrina
não é, no entanto, a mais definidora nem talvez exclusiva do cristianismo.
Também os estóicos afirmavam que Deus é previdente, mesmo quando
identificavam a providência com o destino (como acentuámos no capítulo
anterior, o estoicismo é rigidamente determinista) e mesmo que Deus não
fosse para os estóicos um ser pessoal mas a razão do Universo.

b) Mas o cristianismo anunciava algo ainda de mais surpreendente. Não


somente que Deus se ocupa previdentemente da história humana, mas que
Deus tinha entrado nela. Deus tinha-se feito homem num lugar e num
momento bem determinados e precisos. Este facto histórico constitui o
centro da história: toda a história – desde a criação do mundo até ao juízo
final – adquire significação e sentido à luz deste facto.

A notícia de que Deus se tinha feito homem e havia morrido crucificado


pelos Romanos nunca foi nem podia ser assimilada pela filosofia grega, que
a criticou insistentemente como absurda e ridícula. Tal anúncio era
incompatível com a imutabilidade divina, com a sua impassibilidade e
perfeição (como pode Deus ser afectado por sofrimentos e dores?) e com a
sua dignidade (como pode Deus encarnar precisamente numa personagem
insignificante e obscura?), além de que supunha em Deus uma predilecção
inexplicável por uma raça, um lugar do mundo habitado e um momento da
história humana (porquê precisamente judeu e porquê neste momento da
história?).
Tão-pouco as doutrinas religiosas conhecidas ofereciam um precedente
equiparável. É certo que entre as crenças religiosas populares existiam
histórias de deuses que haviam sido esquartejados e mortos, mas a diferença
com o cristianismo era excessiva: em primeiro lugar, tratava-se sempre de
atentados sofridos por esses deuses, sem que eles próprios os desejassem,
enquanto no cristianismo é Deus quem decide e aceita o seu próprio
sacrifício; em segundo lugar, o cristianismo indicava um momento histórico
preciso, ao passo que as histórias e crenças não-cristãs situavam tais factos
num tempo mítico e não num momento histórico datável com precisão.

OS ESTÓICOS E A PROVIDÊNCIA
Segundo a opinião de alguns, é uma mera presunção estabelecer
qualquer diferença ente a providência e o destino, dado que na realidade
são a mesma coisa. A providência seria a vontade de Deus e, por sua vez,
esta vontade é a série das causas. Por ser vontade, é providência: por sua
vez, chama-se destino à própria série de causas. Assim, também provém
da providência aquilo que é conforme ao destino; do mesmo modo, as
coisas conformes à providência provêm do destino, como afirma Crisipo.
Outros, pelo contrário, como Cleantes, afirmam que também as coisas
que provêm do poder da providência se sucedem fatalmente: mas o facto
de acontecerem fatalmente não quer dizer que provenham da providência.
Calcídio. Comentário ao Timeu. 144.

1.1.2. Cristianismo e verdade

Deus falara aos homens, segundo a mensagem cristã. Primeiro, através


de certos homens no Antigo Testamento, e depois Ele mesmo, directamente
encarnado em Cristo. Esta circunstância fazia com que o cristianismo
apresentasse uma atitude perante a verdade muito diferente da atitude da
filosofia nessa época.

a) Em primeiro lugar, a filosofia grega caracteriza-se por insistir nos


limites do conhecimento humano. Raramente um filósofo pretendeu ter
alcançado a verdade absoluta e total. (O único caso talvez seja o de
Parménides. Mas Parménides é um dos primeiros filósofos e depois dele
surgiram múltiplas teorias que, ao contradizê-lo e ao contradizerem-se entre
si, puseram a claro a ingenuidade de Parménides ao crer que havia
alcançado a verdade absoluta e total). Esta convicção da impossibilidade de
um conhecimento absoluto e total da verdade estava muito espalhada entre
os filósofos nos tempos do Império Romano.
Ao proclamar que possuía a verdade revelada pelo próprio Deus o
cristianismo vinha chocar com a atitude moderada dos filósofos sobre o
assunto.

b) Além desta aceitação dos limites do conhecimento humano, a


filosofia grega da época caracteriza-se por se ter acostumado à pluralidade
de escolas filosóficas. No Império Romano coexistem o platonismo, o
aristotelismo, o estoicismo e o epicurismo. Entre os três primeiros houve
um diálogo constante e um notável processo de unificação. Ora, o diálogo
entre doutrinas diferentes só é possível quando se aceita um duplo
pressuposto: que nenhuma delas possui a verdade e que todas se encontram
num plano de igualdade no que respeita aos seus fundamentos e critérios de
justificação.
O cristianismo negava os dois pressupostos citados. Ao afirmar-se de
origem divina, a verdade cristã apresentava-se como a verdade e, por
conseguinte, situava o seu fundamento e critério de justificação num plano
distinto e superior ao das doutrinas filosóficas com que tinha de dialogar.
Esta atitude desagradava aos filósofos e parecia-lhes primitiva e insultuosa,
acostumados como estavam a considerar que uma teoria deve ser discutida
serenamente e não a ser defendida fanaticamente ao ponto de se morrer e
ser mártir por ela. Foi a conservação desta atitude que permitiu que o
cristianismo não se desmoronasse nem acabasse por se confundir com as
escolas filosóficas, num sistema sem contornos precisos e próprios.

1.1.3. Cristianismo e imagem de Deus

Embora o cristianismo não seja uma filosofia nem se proponha dialogar


em pé de igualdade com os sistemas filosóficos desse tempo, o conteúdo da
fé cristã incluía doutrinas que podiam apresentar-se como respostas aos
problemas tradicionalmente enfrentados pela filosofia (a origem do mundo,
a natureza do primeiro princípio do real, a essência e destino do homem, o
fundamento das normas político-morais, etc.). Desde as primeiras páginas
dos seus livros sagrados, desde o Génesis, fornece-se uma narração da
origem do mundo, uma imagem de Deus e uma descrição da natureza
humana susceptíveis de entrarem em choque com as teorias filosóficas
gregas.

a) Monoteísmo. A filosofia grega nunca atingira o monoteísmo em


sentido estrito. É certo que se aproximara de forma notável de posições
monoteístas com Platão, com Aristóteles e sobretudo com o neoplatonismo.
No entanto, nunca se pronunciara de modo definitivo e rotundo e, no
conjunto dos sistemas vigentes no Império Romano (aristotelismo,
platonismo, estoicismo), costumava haver sempre lugar para a pluralidade
dos deuses do culto, etc., abaixo do Deus supremo, o que era afirmado por
todas as escolas.
Face ao monoteísmo vacilante ou ao politeísmo manifesto dos filósofos,
os cristãos defenderam sempre e de forma radical a existência de um
único Deus. Nestas polémicas, as argumentações racionais a favor do
monoteísmo foram sempre mais vigorosas, o que permitiu que a teologia
cristã acabasse por impor a sua superioridade relativamente a este ponto.

b) Criacionismo. Segundo o cristianismo, Deus criou o mundo a


partir do nada. A ideia de criação é também uma ideia estranha à filosofia
grega. Desde Parménides que a impossibilidade de que algo pudesse surgir
do nada absoluto foi sempre considerada como um princípio racional
inquestionável.
A ideia de criação acentuava o poder limitado de Deus, ao mesmo tempo
que proporcionava novos caminhos à filosofia: assim, o desenvolvimento
do conceito de contingência, isto é, a afirmação de que todos os seres
excepto Deus são contingentes, que existem mas podem não existir, são por
si indiferentes à existência ou não-existência.

A IMUTABILIDADE DE DEUS
Acho que dei uma resposta adequada a essas objecções ao expor o
sentido em que se diz na Escritura que Deus «desce» aos assuntos
humanos. Para isso não é preciso que Deus sofra uma transformação,
como crê Celso, ou que mude de bem para mal, de virtude para vício, de
felicidade para miséria, de óptimo para péssimo. Contínua imutável na
sua essência e desce aos assuntos humanos através dos recursos da sua
providência. Por conseguinte, demonstrámos que as Sagradas Escrituras
representam Deus como imutável em expressões como «Tu és o mesmo»
e «Eu não mudo» (Ps. 101.27; Mal. 3. 6). Pelo contrário, os deuses de
Epicuro compõem-se de átomos e são susceptíveis de dissolução devido a
essa composição, e por isso esforçam-se por eliminar os átomos que
contêm gérmens de destruição. Quando se dá a conflagração do mundo,
até a essência do próprio deus dos estóicos (por ser corporal) é
inteiramente composta pelo princípio regulador; mas volta a ser
praticamente corporal quando se dá um novo reajustamento das coisas.
Com efeito, os próprios estóicos foram capazes de compreender a ideia
da natureza divina, que é ao mesmo tempo incorruptível simples, sem
composição e indivisível.
Orígenes (s. III), Contra Celso, 4, 14.

c) Omnipotência. A ideia de Deus omnipotente está vinculada ao


monoteísmo e ao criacionismo: Deus só pode ser criador se for
omnipotente e só pode ser omnipotente se for único (como poderiam ser
omnipotentes uma pluralidade de deuses?).
No cristianismo a ideia de omnipotência está também ligada à ideia de
milagres. Eis um ponto em que o cristianismo chocava fortemente com a
filosofia grega. Com efeito, e como vimos já ao tratar do conceito grego de
natureza, para os Gregos, a ordem do Universo caracteriza-se pela sua
necessidade: os acontecimentos no Universo acontecem como têm de
acontecer e é isso precisamente que faz com que o Universo não seja um
caos mas um cosmos. É certo que os filósofos gregos admitiram que o curso
natural dos acontecimentos se quebrava por vezes. Mas em tais casos era
sempre para mal, dando origem a monstros e a mal-formações. A
possibilidade de uma intervenção arbitrária e frequente de Deus no
Universo parecia-lhes atentar contra a ordem e a racionalidade. Os
pensadores cristãos tiveram de usar da máxima cautela no que se refere aos
milagres, procurando não cair nos excessos em que facilmente caía a
maioria dos crentes.

d) Paternidade divina. Deus – que segundo o cristianismo se havia


feito homem para salvar os homens – é pai, de acordo com a doutrina
cristã. A filosofia grega nunca ousara formular semelhante afirmação. O
único filósofo grego que remotamente se aproximou desta ideia foi Platão,
que em dado momento qualifica o demiurgo como «pai e feitor de tudo»
(Timeu, 28c). Esta expressão platónica está no entanto muito longe da
afirmação cristã: em primeiro lugar, não passa de uma expressão de
benevolência do demiurgo; em segundo lugar, não se aplica à relação
específica de Deus com o homem, mas à sua relação ou atitude genérica
com o Universo.

1.1.4. Cristianismo e concepção do homem

a) A concepção cristã do homem incluía três elementos fundamentais:


que o homem foi feito à imagem de Deus, que a alma é imortal e que, no
fim dos tempos, os corpos ressuscitarão.
Esta última afirmação revelava-se particularmente estranha para o
pensamento grego. Alguns Gregos haviam concebido o acontecer universal
como um processo cíclico. De acordo com esta ideia um período esgotava-
se e começava outro da mesma duração no qual os acontecimentos do
período anterior se repetem, e assim o que aconteceu ao longo de um
período volta a acontecer no seguinte: os homens voltam a viver a mesma
vida com o mesmo corpo e no mesmo sítio, uma e outra vez. Esta teoria não
tem, no entanto, nada a ver com a doutrina dos cristãos: para os Gregos, não
se trata da ressurreição dos mortos mas de voltarem a nascer e a viver a
mesma vida. Segundo a teoria grega dos ciclos, a história repete-se;
segundo o cristianismo, a história acaba quando se dá a ressurreição final.
Ao conceber a história como um processo que se repete ciclicamente, os
Gregos interpretavam-na como um processo fechado em si mesmo, no qual
não é possível a irrupção de nenhum facto extra-histórico que lhe dê
sentido. O cristianismo, porém, ao afirmar que Deus entrou na história
concebe a história como um processo linear aberto no qual Deus
irrompe, dotando-a de sentido.

b) A concepção cristã do homem comportava ainda uma importante


novidade no campo da teoria moral. Como já vimos, a filosofia grega é
basicamente intelectualista no que diz respeito à moral. A moral cristã não é
intelectualista. No intelectualismo, o pecado não é mais do que ignorância;
no cristianismo, o pecado não é ignorância mas o resultado de dois factores:
a maldade humana que inclina ao pecado e a liberdade do indivíduo que
cede a tal inclinação. Ganham assim sentido pleno e dramático as ideias de
culpa e arrependimento, de pecado e redenção.

1.2. As doutrinas filosóficas no Império Romano

1.2.1. As quatro escolas de filosofia grega

Referimos já que durante o Império Romano se mantêm em vigor as


quatro grandes escolas gregas de filosofia: platonismo, aristotelismo,
estoicismo e epicurismo. As três primeiras opõem-se radicalmente ao
epicurismo, pois consideram-no ateu e licencioso. (Em sentido estrito, o
epicurismo não é ateu, pois admite a existência de deuses, nem tão-pouco
licencioso, pois defende o prazer moderado e sensato; mas ao admitir
deuses que não têm relação alguma com o Universo e ao proclamar o
princípio de que o prazer é o fim último, o epicurismo perdeu qualidade em
muitos dos seus adeptos, e daí que viesse a converter-se no símbolo do
ateísmo e da libertinagem.) Para além da oposição comum ao epicurismo,
as outras três escolas sofreram um processo de aproximação mútua
claramente observável a partir do século I a.C. Filósofos influentes no
processo de aproximação entre as escolas foram o estóico Possidónio de
Apameia (séculos II-I a. C.) e o platónico Antíoco de Áscalon (século I a.
C.).
Neste processo de sincretismo, a corrente platónica conseguiu ser mais
forte, convertendo-se desse modo na principal corrente filosófica e
acolhendo em si elementos das outras duas escolas. A partir do século III d.
C., o neoplatonismo é a única doutrina vigorosa e com filósofos de
categoria. Na realidade, a história da filosofia grega desde o século III até
ao século VI mais não é do que a história do neoplatonismo. Daí que, com
razão, se tenha afirmado que o neoplatonismo foi o único interlocutor de
nível com que os pensadores cristãos tiveram de defrontar-se.

1.2.2. Platonismo e neoplatonismo

Em sentido estrito, denomina-se neoplatonismo a corrente filosófica de


carácter platónico que tem origem no século III com a obra de Plotino.
Plotino é, pois, o fundador do neoplatonismo. O neoplatonismo, por sua
vez, prolongar-se-ia em diferentes lugares, durante os séculos seguintes.
Neoplatónicos importantes são: em Roma, o discípulo e biógrafo de
Plotino, Porfírio; na Síria, Jâmblico; em Pérgamo, Edésio da Capadócia
(desta escola neoplatónica de Pérgamo depende Julião, o Apóstata, o
último polemista anticristão); em Atenas e já no século V, Proclo (a escola
de Atenas exercerá uma notável influência no platonismo cristão medieval).
Feitas estas precisões de carácter histórico, recordemos resumidamente
certos aspectos da filosofia de Platão, cuja discussão promoveria
importantes desenvolvimentos na corrente platónica e no neoplatonismo.
Platão distinguira dois mundos, o mundo inteligível, o mundo das ideias, e
o mundo sensível, construído à imitação daquelas. Acima das ideias, como
ideia suprema e princípio primeiro, Platão colocara a ideia de bem. Era
fácil identificar Deus com esta ideia de bem, princípio primeiro e realidade
suprema. Mas além dos dois mundos, sensível e inteligível, Platão
introduzira o demiurgo no seu sistema, o Deus que constrói o mundo
sensível tomando como modelo as ideias.

Plotino
Nasceu em Licópolis (Egipto) no ano de 204. Na sua juventude foi discípulo de Amónio
Sacas. Partiu para o Oriente com a expedição militar de Gordiano, a fim de tomar contacto com
a filosofia indiana e persa. No regresso estabeleceu-se em Roma, onde ensinaria filosofia
durante vinte e cinco anos. Foi grande a sua reputação e o respeito que inspirou aos seus
contemporâneos. A sua obra as Enéadas, é um conjunto de lições ditadas por Plotino e
organizadas pelo seu discípulo e biógrafo Porfírio. Filósofo e místico, Plotino faleceu aos
sessenta e cinco anos de idade, na Campânia. Com ele morreu o último dos grandes filósofos
gregos.

Nesta construção teórica havia aspectos que não estavam perfeitamente


claros (já aludimos a isso ao expor a teoria platónica da origem do
Universo); importava suscitar certas interrogações que não haviam ficado
suficientemente esclarecidas, como as seguintes:

1. Que relação existe entre o bem e o demiurgo? São duas realidades


distintas, ou temos antes de pensar que se trata de uma só e mesma
realidade, alegoricamente apresentada no Timeu através da figura do
demiurgo?
2. Onde se situa o mundo inteligível, o das ideias? Não será lógico
supor que as ideias, os arquétipos do real, estão presentes numa mente,
talvez a divina?
3. Como é que a partir de um princípio único, supremo (o bem, Deus),
se originou a pluralidade dos seres materiais e imateriais?

A corrente platónica defrontou-se com estas três questões. A atitude


perante a última delas – origem do resto dos seres a partir do princípio
supremo, Deus, o bem – será decisiva para a contestação das outras duas.
Com efeito, os platónicos e neoplatónicos insistiam na transcendência
do princípio supremo, situado para além de toda a realidade. O abismo
entre este princípio supremo – cuja transcendência Plotino sublinha,
denominando-o Uno, o Uno – e o mundo sensível pode ser transposto
estendendo-se uma ponte de realidades intermédias, cada vez mais
afastadas daquele princípio (mais imperfeitas, portanto) e cada vez mais
próximas do mundo sensível.
Na concepção neoplatónica da realidade cumpre-se o denominado
princípio de plenitude, segundo o qual a totalidade do real constitui uma
cadeia em que não falta nenhum elo, uma sucessão sem hiatos de realidades
cuja perfeição diminui à medida que o seu lugar na escala se afasta do
princípio primeiro. Entre Deus, o Uno, e o mundo sensível há, portanto,
realidades espirituais intermédias. Aparece deste modo um conjunto de
doutrinas que em alguns aspectos se tornou útil ao cristianismo para a
formulação das suas ideias teológicas, já que noutros aspectos o
cristianismo se opôs radicalmente a elas, como veremos.

a) Fílon de Alexandria (século I d.C.)


A obra do judeu platónico Fílon foi de enorme transcendência histórica.
A realidade suprema ou princípio primeiro é Deus, o Deus de Moisés, que
Fílon identifica com o bem platónico. O mundo sensível não procede
directamente de Deus, de acordo com o princípio das realidades intermédias
a que nos referíamos no parágrafo anterior. De Deus procede imediatamente
o logos (o termo grego «logos» pode traduzir-se por «razão», «pensamento»
ou «palavra»). No logos encontram-se as ideias ou arquétipos das coisas, e
por sua vez é ele que faz o mundo. Torna-se fácil compreender que o logos
de que Fílon fala é simultaneamente o demiurgo platónico e a mente em que
se encontram as ideias platónicas.
Não é muito importante saber como as restantes realidades imateriais e
materiais se originam a partir do logos no pensamento judaico-platónico de
Fílon. Mas é importante assinalar a notável semelhança entre o começo do
quarto Evangelho e o pensamento de Fílon: «No princípio» – diz o
Evangelho de São João – «era o logos [o termo grego foi traduzido por
‘verbo’ ou ‘palavra’]. Tudo foi feito por Ele e sem Ele nada se fez do que
foi feito.»
b) Plotino (século III d. C.)
Dois séculos mais tarde, o fundador do neoplatonismo propunha um
sistema filosófico-religioso que explica como todas as realidades procedem
sucessiva e descendentemente do Uno e como se produz o regresso até ele.
Tal como no sistema de Fílon de Alexandria, do princípio supremo ou Uno
procede imediatamente o pensamento (logos, nous); por sua vez, do
pensamento provém a alma universal e assim sucessivamente, num
processo de descida (e, portanto de degradação) que conduz até à matéria, o
último elo na cadeia do real.
Plotino é sumamente importante pelos múltiplos aspectos da sua
filosofia, alguns dos quais teremos ocasião de referir ao expor Santo
Agostinho. Por agora, limitar-nos-emos a sublinhar a importância da sua
doutrina da emanação.
O neoplatonismo encontrava-se perante o mesmo problema que o
cristianismo: como surgiu a pluralidade do real, se originariamente não
existe mais do que um princípio único, Deus, o Uno? Perante esta pergunta
só duas soluções são possíveis: ou os restantes seres provêm de Deus
(emanatismo) ou procedem do nada (criacionismo). A diferença entre as
duas respostas é subtil, mas de grande importância teológica e filosófica, já
que o criacionismo implica a afirmação da radical diferença entre Bens
e os demais seres, ao passo que o emanatismo implica uma concepção
panteísta do real. O criacionismo acentua a contingência do criado ao
estabelecer o nada como pólo oposto e ponto de referência do seu ser,
enquanto o emanatismo sublinha a necessidade do emanado a partir do
princípio primeiro.
Face ao neoplatonismo, o cristianismo não deixou nunca de afirmar a
teoria criacionista, interpretando a criação através do conceito platónico de
participação.

O UNO E A INTELIGÊNCIA
Como é que a inteligência contempla e, em suma, como é que subsiste
e como nasceu do Uno para o contemplar? A alma está convencida de
que é assim necessariamente, mas aspira a compreender este problema
(que o Uno é uma unidade) que os sábios discutem desde antigamente;
como é que qualquer tipo de pluralidade, díade ou número recebeu
existência e por que é que o Uno não permaneceu em si mesmo, tendo
antes originado esta multiplicidade que vemos na realidade e que
atribuímos a Ele?
Todos os seres criam quando atingem a sua perfeição. E assim, o que
é extremamente perfeito cria eternamente algo eterno: mas cria algo
inferior a si. O que podemos dizer então acerca do que é mais perfeito?
Que nada provém d’Ele a não ser aquilo que só Ele supera em perfeição.
Sendo assim, depois d’Ele e em segundo lugar temos a inteligência: a
inteligência contempla-o e só precisa d’Ele: mas Ele não precisa dela.
Assim, a inteligência é engendrada depois do que é mais perfeito que ela,
mas ela é o mais perfeito dos seres já que todos vêm depois dela. Assim,
por exemplo, a alma é palavra e acto da inteligência, do mesmo modo que
a inteligência é palavra e acto do Uno. Mas a palavra da alma é confusa e,
por conseguinte, na medida em que a alma é uma imagem da inteligência
a alma deve contemplá-la: do mesmo modo, a inteligência deve
contemplar o Uno a fim de ser inteligência. E contempla-o sem estar
separada d’Ele, já que vem imediatamente a seguir a Ele e não há nada
entre eles, assim como não há nada entre a inteligência e a alma. Tudo o
que é criado deseja e ama o seu progenitor, especialmente quando o
criado e o progenitor estão sós; e quando o progenitor é o mais perfeito, o
criado está necessariamente com ele, só estando separados na medida em
que são distintos.
Plotino, Enéada Quinta, 1,7.

1.3. Formulação de um platonismo cristão


O encontro do cristianismo com a filosofia grega permitiu-lhe formular
um corpo doutrinal cujos conceitos foram basicamente platónicos. Não
podia ser de outro modo, por duas razões fundamentais: em primeiro lugar,
porque a corrente platónica – definitivamente impulsionada pelo
neoplatonismo – era então a mais vigorosa e dominante; em segundo lugar,
porque era a que oferecia mais pontos de contacto com a doutrina cristã.
Destacaremos em seguida alguns destes pontos mais importantes.

1.3.1. Teologia

No que se refere à teologia, a filosofia platónica oferecia numerosas


possibilidades à formulação das ideias cristãs.

a) Importa notar, em primeiro lugar, a afirmação platónica da existência


de outro mundo além do mundo sensível: o mundo das ideias. Já vimos
como as ideias, na evolução posterior do platonismo, se situavam na mente
divina, o que facilitou ainda mais a assimilação cristã desta teoria.

b) Em segundo lugar, podemos apontar a afirmação platónica de que


este mundo, o mundo sensível, foi feito à imagem e semelhança das
ideias. O mundo como vestígio ou marca de Deus será uma expressão
permanente do cristianismo.

c) Anotemos, em terceiro lugar, a doutrina platónica da participação,


segundo a qual tudo o que há de real nos seres sensíveis em última análise
participa da autêntica realidade, as ideias. Ao formular o conceito de
criação, os filósofos cristãos servir-se-ão desta ideia de participação para
sublinharem a contingência do criado (o criado é, mas pode não ser: não
possui o ser por si mesmo, mas recebe-o e participa dele) e a sua
dependência do Criador.
d) Em quarto lugar, os cristãos acreditam ter encontrado a ideia de
criação prefigurada no demiurgo de Platão. É certo que o demiurgo
platónico não é criador em sentido estrito, mas apenas ordenador; e é certo
também que o neoplatonismo reinterpretaria a doutrina do demiurgo em
termos de emanação, mas o pensamento cristão podia também tomar a
liberdade de reinterpretá-lo, não em termos de emanação mas de criação.

e) Por último, tanto Platão (ao situar a ideia de bem acima e mais além
das outras ideias) como o neoplatonismo (ao insistir na transcendência do
bem, do Uno) ofereciam fórmulas vigorosas que o pensamento cristão
soube aproveitar para exprimir o monoteísmo.

Fora da corrente platónica, a teologia cristã recorreu por vezes à filosofia


estóica para a formulação da doutrina da providência, com as correcções
necessárias e que já anteriormente apontámos.

1.3.2. Antropologia

Também no campo da concepção do homem o platonismo era a filosofia


mais afim às doutrinas cristãs.

a) Em primeiro lugar, Platão havia defendido a imortalidade da alma


através de diversos argumentos na sua obra Fédon. Estes argumentos serão
recolhidos e utilizados de bom grado pelos filósofos cristãos. Existia porém
um ponto de discrepância. Para Platão, como para todos os filósofos gregos,
tudo o que é imortal (isto é, o que não tem fim) é também não-engendrado
(isto é, não tem começo). As almas existem desde sempre e para sempre,
sofrendo sucessivas reencarnações. O cristianismo aceita a imortalidade da
alma, mas nega a teoria da preexistência e das reencarnações. Quanto à
origem da alma, nos primeiros séculos a filosofia cristã mostrou-se muitas
vezes vacilante (Santo Agostinho defendeu o traducianismo, teoria segundo
a qual a alma dos filhos provém da dos pais), embora acabasse por se impor
a afirmação de que as almas são criadas directamente por Deus.

b) Além disso, Platão insistira em que o verdadeiro lugar e destino da


alma não se encontra neste mundo mas no mundo das ideias, ao qual
pertence pela sua própria natureza e para o qual se sente naturalmente
atraída: de acordo com as ideias expostas por Sócrates no Fédon, a vida não
é senão um período de purificação e preparação para a existência posterior
à morte. Esta concepção da alma era perfeitamente assimilável para o
pensamento cristão, tendo contribuído para configurar a tensão inerente ao
cristianismo entre duas atitudes: a atitude de fuga do mundo e a atitude de
compromisso com ele.

c) Por último, Platão expusera através de mitos que as almas são


julgadas depois da morte e premiadas e castigadas, de acordo com a
conduta observada ao longo da vida. É certo que o cristianismo comportava
uma ideia totalmente estranha ao platonismo: que além do juízo pessoal
depois da morte haverá um juízo universal no fim dos tempos, no ocaso da
história. Alguns pensadores cristãos pretenderam ver na doutrina estóica da
conflagração universal um antecedente da concepção cristã do fim do
mundo: segundo o estoicismo, o Universo termina violentamente pelo fogo
e então a razão dos sábios reunir-se-á e reintegrar-se-á na razão Universal.

A interpretação filosófica da alma por parte do pensamento cristão


revela-se assim fundamentalmente platónica. Existe no entanto um
aspecto da concepção platónica do homem que não parece facilmente
compatível com o cristianismo: a relação da alma com o corpo. A
incompatibilidade com o platonismo procede de dois elementos específicos
da doutrina cristã: em primeiro lugar, é o homem completo e não apenas a
alma que foi feito à imagem de Deus; em segundo lugar, a doutrina da
ressurreição dos corpos não permite afirmar que o estado natural e
definitivo da alma seja o de uma existência desencarnada. (Já assinalámos
no segundo capítulo que para Platão a união da alma com o corpo é um
estado não apenas acidental mas inclusivamente antinatural para aquela.)
Alguns pensadores cristãos parecem esquecer por vezes estas duas
peculiaridades da doutrina cristã e as expressões que utilizam dão
frequentemente a impressão de serem mais platónicas do que cristãs.

A ORIGEM DA ALMA
Um corpo pode provir de outros corpos dado que ambos contribuem
com algo, mas a alma não pode provir de outras almas, porque nada pode
provir de um ser subtil e inapreensível. Por conseguinte, a alma é obra de
Deus (…). Os seres mortais só podem engendrar uma natureza mortal.
Como é que podemos considerar pai a pessoa que não tem consciência de
que transmite ou insulta uma alma do seu próprio ser? Ou aqueles que,
disso estando conscientes, não aperceberam na sua inteligência o
momento ou a maneira de produzir isso? Assim, é evidente que não são
os pais que fornecem a alma mas o único e mesmo Deus, Pai de todas as
coisas. Só Ele possui o princípio e o modo do seu nascimento, Ele é o
único autor.
Lactâncio (s. III), De opif, 19 1ss.
2. O APOGEU DO PLATONISMO CRISTÃO.
SANTO AGOSTINHO

2.1. Fé e razão no pensamento augustiniano

Santo Agostinho conheceu o platonismo fundamentalmente através de


duas obras de Platão, o Fédon (dedicado ao tema da imortalidade e da sua
afinidade com as ideias) e o Timeu (dedicado à exposição da origem e
formação do Universo). Conheceu também (embora não saibamos se na sua
totalidade) as Enéadas de Plotino. O seu contacto com o platonismo deu-lhe
a firme convicção de que este é intimamente afim ao conteúdo da fé cristã:
«Donde se depreende que até mesmo os platónicos hão-de submeter as suas
piedosas cabeças a Cristo, rei único e invicto, bastando apenas que alterem
umas quantas coisas, de acordo com as exigências da fé cristã» (Epístola
56).

2.2.2. Fé e razão

O parágrafo anterior, no qual se afirma que seria lógico que os


platónicos aceitassem o cristianismo, é sumamente revelador da atitude
intelectual de Santo Agostinho. Ele não é um filósofo no sentido estrito, se
por filósofo entendermos um pensador que se limita ao âmbito do que pode
ser conhecido por meios exclusivamente racionais, sem apelar à fé no
decurso da sua argumentação racional. A atitude filosófica assim entendida
só é possível quando previamente se traçaram fronteiras precisas entre a
razão e a fé, atribuindo a cada uma o seu âmbito próprio de competências.
Santo Agostinho não se preocupou nunca em traçar fronteiras entre
fé e razão; contudo, considerou que ambas, conjunta e solidariamente, têm
como missão o esclarecimento da verdade e que esta verdade só poderia ser,
para o crente, a verdade cristã. Para Santo Agostinho, o objectivo é a
compreensão da verdade cristã e para esse objectivo colaboram a razão e a
fé, do seguinte modo: 1) num primeiro momento, a razão ajuda o homem a
alcançar a fé; 2) posteriormente, a fé orientará e iluminará a razão; 3) por
sua vez, a razão contribuirá em seguida para o esclarecimento dos
conteúdos da fé.
Esta atitude augustiniana (que não separa a fé da razão, que só filosofa
como cristão) pode ser não só unilateral mas também insatisfatória para o
leitor moderno, acostumado a duas ideias fortemente enraizadas no
pensamento contemporâneo: a ideia de que a razão é autónoma e a ideia de
que o conhecimento racional é limitado. A autonomia da razão exige que
esta funcione só por si, sem estar por princípio submetida a nenhuma
autoridade estranha a ela própria, como poderiam ser os artigos de uma fé
religiosa; por outro lado, a limitação da razão humana obsta à
racionalização dos conteúdos específicos, dos dogmas, da fé religiosa.

Santo Agostinho
Nasceu em Tagaste (Numídia) no ano 354. Filho de pai pagão e mãe cristã, foi por esta
educado no cristianismo, que abandonou na juventude. Estudou gramática e literatura latinas.
Dos vinte e um aos vinte e nove anos ensinou retórica em Cartago. Durante esta época professou
a filosofia maniqueia, contra a qual polemizaria mais tarde nas suas obras. Já em Milão, o
convívio com Santo Ambrósio levou-o a converter-se ao cristianismo (386). Nesta época, leu
Plotino, na versão latina de Mário Victorino. No ano 388 voltou a África, sendo sucessivamente
bispo auxiliar e titular de Hipona. Morreu no ano 430, enquanto os vândalos sitiavam Hipona,
quando o Império Romano, caída já Roma, se destruía definitivamente.
Deixou uma obra ingente na qual se destacam as suas obras polémicas contra o maniqueísmo
e o pelagianismo, os grandes tratados Contra Académicos, De Genesi ad Litteram e A Cidade de
Deus, bem como as suas célebres Confissões. O platonismo augustiniano dominará toda a
filosofia medieval até ao século XIII, quando surge o outro grande pensador da cristandade,
Tomás de Aquino.
Estas duas ideias – autonomia da razão, finitude ou limitação da razão
humana – são características da filosofia contemporânea. Como veremos
oportunamente, o conflito entre a fé e razão começará a partir do século
XIII. A modernidade proclamará de forma definitiva a autonomia da
razão. É de notar, além disso, que a afirmação da autonomia da razão não
implica necessariamente a afirmação da sua finitude nem da sua
infinitude: tanto Kant como Hegel defendem a autonomia da razão; no
entanto, como veremos a seu tempo, Kant afirma a finitude e limites da
razão humana, ao passo que Hegel proclama a sua infinitude.

2.1.2. Origem da atitude augustiniana

Santo Agostinho não traça portanto fronteiras precisas entre a fé e a


razão, entre os conteúdos da revelação cristã e as verdades acessíveis ao
conhecimento puramente racional. Por mais metodologicamente deficiente
que possa ser, temos de salientar que tal atitude não é arbitrária, mas tem
origem tanto em considerações de tipo teórico como em condicionamentos
de carácter histórico-cultural.

a) Do ponto de vista teórico, a atitude augustiniana acerca da fé e da


razão provém da sua convicção de que a verdade é única. Só há uma
verdade, a que se encontra no cristianismo, e interessa ao homem alcançá-la
e esclarecê-la por todos os meios possíveis. Consideremos um exemplo
tomado da antropologia. De acordo com a antropologia cristã o homem é
um ser caído e redimido, um ser que, de facto, se acha elevado a uma ordem
sobrenatural. Que interesse haverá em estabelecer uma distinção entre o
homem em estado natural e o homem elevado à ordem sobrenatural,
entregando aquele à filosofia e este à fé? Se efectivamente não existe um
homem puramente natural, que sentido tem filosofar sobre ele? A
verdadeira tarefa será então, no entender de Santo Agostinho, procurar
esclarecer e compreender o homem real, recorrendo para tal à força da fé e
ao esforço da razão.
b) Do ponto de vista histórico-cultural, são duas as circunstâncias que
certamente contribuíram para estruturar a filosofia augustiniana como um
todo em que não se distingue o que é dado pela fé e o que é deduzido pela
razão: por um lado, a forma como o cristianismo se defrontou com a
filosofia; por outro, o próprio carácter da filosofia neoplatónica, que
influenciou poderosamente Santo Agostinho.

1. No tocante à primeira das circunstâncias indicadas, já dissemos que o


cristianismo se apresentou como um sistema de doutrinas, como um
conjunto de afirmações acerca de Deus, do homem e do mundo, que em
alguns aspectos era equiparável a certas teorias dos filósofos e, noutros
aspectos, era incompatível com estas. Os polemistas anti-cristãos (Celso,
Porfírio, Julião) atacavam as diferentes afirmações do cristianismo sem se
preocuparem com distinguir quais eram artigos de fé e quais poderiam
considerar-se como pertencendo ao âmbito do que pode ser analisado
mediante a razão: tanto procuravam refutar o monoteísmo radical dos
cristãos como argumentar contra a divindade de Cristo. Os pensadores
cristãos, por seu turno, consideraram que a sua missão consistia em tornar
as afirmações cristãs racionais e inteligíveis, sem contudo se preocuparem
com estabelecer distinções que os seus opositores não estabeleciam. A
preocupação dos platónicos anti-cristãos em mostrar as irracionalidades do
cristianismo e o esforço dos cristãos em mostrar a aceitabilidade racional
deste, não deixaram margem para a distinção entre razão e fé.

2. Houve um segundo factor cultural que favoreceu de maneira decisiva


a atitude augustiniana de não estabelecer distinção entre razão e fé: a
própria natureza da filosofia neoplatónica. A filosofia neoplatónica
considerou sempre que o entendimento pode conhecer a realidade divina e
as demais realidades imateriais: não discutiam os filósofos neoplatónicos
acerca da natureza do Uno, acerca da procedência do nous ou logos a partir
do Uno, etc.?
A filosofia platónica processava-se de cima para baixo, a partir de um
reino de realidades imateriais, o que supõe que estas são objecto próprio e
adequado do conhecimento humano. Só será possível traçar limites à razão
(e deste modo delimitar a parte dos conteúdos da fé religiosa que lhe é
acessível) se se partir da convicção de que o edifício do conhecimento se
constrói de baixo para cima, isto é, a partir do conhecimento das realidades
sensíveis.
Será essa a tarefa que Tomás de Aquino empreenderá no século XIII. E
tal tarefa só poderá ser levada avante substituindo a teoria platónica do
conhecimento por uma teoria do conhecimento de orientação aristotélica,
como veremos no próximo capítulo.

2.2. Antropologia em Santo Agostinho

2.2.1. Autotranscendência e conhecimento

O pensamento augustiniano parte de um apelo à interiorização: «Não


saias fora, volta-te para ti mesmo; a verdade habita no homem interior» (Da
religião verdadeira, 39, 72). O ponto de partida para a busca da verdade
não se acha, pois, no exterior, no conhecimento sensível, mas na intimidade
da consciência, na experiência que o homem possui da sua própria vida
interior. A seguinte afirmação aponta para um sentido idêntico (Contra
Académicos, III, 14,31): «Se queres saber onde o sábio encontra a
sabedoria, responder-te-ei: em si mesmo.»

NEOPLATONISMO E INTERIORIZAÇÃO
O conselho mais verdadeiro que poderia ser-nos dado é fugir para a
pátria querida. Mas em que é que consiste esta fuga e como se realiza esta
ascensão? Tomemos o exemplo de Ulisses, que foge da encantadora
Circe e de Calipso e se nega a permanecer com elas apesar do prazer dos
seus olhos perante tanta beleza sensível. A nossa pátria está ali, dela
descendemos e nela está o nosso pai. Em que consiste então esta viagem
e esta fuga? Não se trata de levá-la a cabo com os pés, pois os pés apenas
nos levam de uma terra para outra. Também não se trata de preparar uma
carruagem ou uma embarcação; pelo contrário, trata-se de abandonar
todas estas coisas e afastar os olhos delas, como se fechássemos os olhos
e fizéssemos despertar aquela outra visão que todos temos mas que
poucos usam.
Em que é que consiste esta visão que contempla o interior? Quando
despertamos, não conseguimos olhar para os objectos luminosos. Do
mesmo modo, devemos acostumar a alma a contemplar em primeiro lugar
as actividades belas e depois as obras belas, aquelas que os homens bons
criam e não aquelas que as artes produzem. Em seguida devemos
contemplar a alma dos que fazem obras belas. Mas como é que se
contempla a beleza de uma alma? Volta-te para ti mesmo e contempla. E
se não vires a beleza em ti próprio, faz como o escultor com a estátua que
se tornará bela, tira aqui, lima ali, raspa deste lado, aliso do outro, até que
se comece a entrever uma bela figura. Do mesmo modo, liberta-te do
supérfluo, endireita o que está torto, purifica o que é tenebroso e torna-o
luminoso, e continua a esculpir a tua própria estátua até resplandecer o
esplendor divino da virtude, até que a moderação suba a um trono
sagrado. Só conseguirás ver isto quando fizeres esta transformação e
dentro de ti não restar nada que te impeça de alcançares esta unidade
contigo mesmo, quando não houver no teu interior mais nada estranho e
sejas unicamente uma luz verdadeira, não uma luz de tamanho ou forma
mensuráveis que cresçam e diminuam indefinidamente, mas uma luz
absolutamente incomensurável, maior que todas as medidas e superior a
todas as quantidades. Quando conseguires isto, transformas-te em visão,
confia na tua condição e já não necessitarás sequer de quem te guie nessa
ascensão, olha atentamente e vê: este é, com efeito, o único olho capaz de
contemplar a grande Beleza.
Plotino, Enéada Primeira, VI.
Esta exigência de interiorização possui sem dúvida ressonâncias
platónicas. Tanto no neoplatonismo como em Santo Agostinho, a
interiorização, o debruçar-se sobre si, é o ponto de partida de um
processo ascendente que leva o homem para além de si mesmo. «Se ao
voltares-te para ti mesmo» acrescenta Santo Agostinho, «verificas que a tua
natureza é mutável, transcende-te a ti mesmo; mas não esqueças que neste
transcender-se é a alma raciocinante quem te transcende; caminha, pois,
para onde se acende a própria luz da razão.» O processo que leva o homem
para além de si próprio é assim um processo de auto-transcendência.
Mas como é possível que o homem vá além de si mesmo e se
transcenda? O último texto que citamos indica claramente o modo como
esse processo ocorre. O primeiro passo consiste em o homem verificar que
a sua própria natureza é mutável e que, apesar disso, encontra verdades
imutáveis em si, verdades que, portanto, possuem caracteres superiores à
natureza da alma. Trata-se de ideias que o homem encontra em si e que lhe
são superiores.
Não é difícil reconhecer neste processo a influência da doutrina
platónica das ideias. Tal como Platão, Santo Agostinho reconhece que as
ideias, que são o autêntico objecto de conhecimento, são imutáveis e
necessárias. Como Platão, Santo Agostinho atribui um lugar neste reino
inteligível às ideias de ordem lógica e metafísica (verdade, falsidade,
semelhança, unidade, etc.), às ideias de ordem matemática (números,
figuras) e às ideias de ordem ética e estética (bondade, beleza, etc.). Como
Platão, Santo Agostinho reconhece que, dada a sua necessidade e
imutabilidade, as ideias não podem ter o seu fundamento na alma humana.
Seguindo as evoluções do platonismo a que anteriormente nos referimos,
Santo Agostinho situa o fundamento e lugar das ideias na mente divina, em
Deus, realidade imutável e verdade absoluta. Eis o segundo momento no
processo de autotranscendência, o que leva o homem até à verdade
absoluta, para além de si mesmo: «As ideias são formas arquetípicas ou
essências permanentes e imutáveis das coisas, que não foram formadas, mas
que, existindo eternamente e de maneira imutável, estão contidas na
inteligência divina» (Acerca das ideias, 2).
As ideias estão em Deus como arquétipos ou modelos das realidades
mutáveis. Como é que o homem conhece a alma humana, as ideias? Santo
Agostinho respondeu a esta pergunta por meio da sua teoria da iluminação
segundo a qual a alma conhece as verdades imutáveis por uma iluminação
divina.
A teoria originou as mais diversas interpretações. Alguns pretenderam
ver nela uma posição ontologista, segundo a qual o entendimento vê as
verdades em Deus. Esta interpretação não parece, no entanto, aceitável, já
que Santo Agostinho insiste em que a alma conhece as verdades em si
mesma. Esta teoria augustiniana deve certamente ser interpretada em
função da filosofia platónica. De facto, encontram-se nela três importantes
elementos da tradição platónica:

A INTERIORIZAÇÃO AUGUSTINIANA
Tudo lembra à alma a primeira beleza abandonada e até os seus
próprios vícios a impelem para ela. A sabedoria de Deus estende-se a
todos os confins e através dela o Supremo Artífice coordenou todas as
suas obras com vista à beleza. E por isso esta bondade não inveja
qualquer beleza, seja ela elevada ou a mais ínfima, pois provém
unicamente dela; e assim, mesmo quem se afasta da verdade é sempre
acolhido por alguma representação dela. Questiona o que é que aprisiona
no prazer corporal: só encontrarás inconveniência e uma contrariedade
que origina a dor, mas se fores congruente alcançarás o deleite.
Reconhece, pois, qual é a suprema congruência. Não te disperses e entra
dentro de ti, porque é no homem interior que reside a verdade; e se a tua
natureza for duvidosa, transcende-te, mas lembra-te de que a tua alma,
dotada de razão, te transcende. Por conseguinte, dirige os teus passos para
a luz: só o bom pensador pode alcançar a verdade; a verdade é a própria
meta da dialéctica racional e ninguém consegue chegar a ela através do
discurso. Contempla-a como a harmonia superior possível e vive em
conformidade com ela. Confessa que não és a verdade, pois ela não se
procura a si mesma; mas tu alcançaste-a pela investigação, sem percorrer
qualquer espaço e apenas munido do afecto espiritual, a fim de chegares à
identificação do homem interior com o seu hóspede, com elevado deleite
e não com a fruição carnal e baixa.
Santo Agostinho, Da Verdadeira Religião, 39, 72

1. A comparação utilizada por Platão na República (508 e ss.), segundo


a qual a ideia de bem é como o Sol do mundo inteligível. (Ao comparar a
ideia de bem com o Sol, Platão queria dizer que tal como o Sol torna as
coisas visíveis ao iluminá-las, isto é, faz com que as coisas possam ser
vistas, também o bem ilumina as ideias tornando-as inteligíveis, isto é,
fazendo com que possam ser entendidas.)
2. O neoplatonismo situou as ideias na mente divina; deste modo, a
função iluminadora corresponde a Deus, à mente ou verbo divino.
3. O neoplatonismo estabelecera um escalonamento do real desde Deus
até à matéria, em conformidade com o princípio da plenitude. Santo
Agostinho aceita este escalonamento como princípio de plenitude e de
acordo com ele insiste em que a parte superior da alma, o espírito, está
em contacto com Deus, embora a sua parte inferior esteja em contacto com
o corpo, com o mundo sensível: a alma é «vizinha de Deus». (Santo
Agostinho utiliza esta expressão, que aliás está em Plotino, o qual se refere
à «vizinhança da alma relativamente ao que é superior a ela», Enéadas V,
3.) Esta vizinhança explica que a iluminação é algo de perfeitamente natural
e de acordo com a natureza humana. Recorde-se o texto que propúnhamos
ao explicar a autotranscendência do homem: «Caminha para onde se acende
a própria luz da razão».

2.2.2. Autotranscendência e vontade


Segundo Santo Agostinho, o homem caracteriza-se por uma atitude de
procura constante que o leva a autotranscender-se, a procurar para além de
si próprio. Este impulso de autotranscendência não acontece apenas no
âmbito do conhecimento, pois também se realiza no âmbito da vontade. Na
realidade, para sermos precisos, deveríamos falar de um único movimento
de autotranscendência que se exerce, tanto no conhecer como no querer, na
procura da própria plenitude e felicidade.
O homem procura a felicidade. Alguns filósofos, como os epicuristas, ao
colocarem a felicidade no próprio corpo, «põem a esperança em si
mesmos». No entanto, pensa Santo Agostinho, «a criatura racional (...) foi
feita de tal modo que ela própria não pode ser o bem que a faça feliz». Por
isso mesmo, o ser humano vê-se obrigado a autotranscender-se, já que só
pode dar felicidade ao homem algo que lhe seja superior, e isso,
segundo Santo Agostinho, não é senão Deus. A felicidade encontra-se no
amor a Deus, no reino de Deus, prometido aos cristãos como prémio para a
tensão e para os esforços realizados durante a vida. Ao ocupar-se do tema
da felicidade e do amor, Santo Agostinho prescinde, como é habitual nele,
de qualquer distinção entre razão e fé, entre o natural e o sobrenatural,
relacionando a experiência humana da procura da felicidade com a
concepção cristã da mesma.

A VERDADE E DEUS
Por conseguinte, não negarás a existência da verdade incomutável,
que contém em si as que são incomutavelmente verdadeiras; também não
poderás dizer que ela é própria e exclusivamente tua, minha ou de
qualquer outro homem, dado que, por vias maravilhosas, como se fosse
ao mesmo tempo uma luz muito secreta mas visível, ela apresenta-se e
oferece-se em comum a todos aqueles que conseguem ver as verdades
incomutáveis. Deste modo, e sendo pertença comum de todos os seres
racionais e inteligentes, como poderá esta verdade pertencer, como coisa
própria, à natureza de qualquer deles? (…).
Todavia, também esta verdade seria mutável se fosse igual às nossas
inteligências mutáveis. A nossa razão revela-se mutável ao ver graus de
visibilidade nesta verdade; mas ela permanece sempre igual a si, não
aumentando nem diminuindo quando a distinguimos melhor ou pior; ela é
íntegra e inalterável, alegrando com a sua luz aqueles que se voltam para
ela e castigando com a cegueira aqueles que se afastam dela (…).
Tinhas dito que, se eu te demonstrasse que havia algo superior à nossa
inteligência, confessarias que esse algo era Deus, se não houvesse algo
mais superior. Aceitei a tua confissão e disse-te que, com efeito, bastava
demonstrar isso porque, se há algo supremo, será precisamente Deus; e se
não o houver, também esta verdade é Deus. Quer exista ou não algo
supremo, não poderás negar a existência de Deus, que é a questão que nos
propusemos abordar e discutir.
Santo Agostinho, Do Livre Arbítrio II, 12, 33-4 e 15, 39

2.3. Teologia e antropologia em Santo Agostinho

Na secção anterior expusemos as raízes antropológicas do pensamento


augustiniano, tomando como ponto de partida a interiorização e a
autotranscendência. Na realidade, no processo que indicámos já se
encontram inseridas tanto a teologia como a concepção augustiniana do
homem.

2.3.1. A existência de Deus

Dada a sua preferência pela via da interioridade, é lógico que Santo


Agostinho não se preocupe com formular argumentações tomadas da
realidade exterior, do Universo, para demonstrar a existência de Deus. Nas
suas obras há certamente referências à ordem do Universo como prova da
grandeza do seu Criador e também existem referências (cf. Da Doutrina
Cristã, l, 7, 7) ao argumento usualmente denominado de consenso, isto é,
ao facto de que a maioria dos homens coincide em aceitar a existência de
Deus. No entanto, Santo Agostinho não se preocupa com formular estas
provas de modo sistemático.
A autêntica prova augustiniana da existência de Deus parte das ideias,
dos seus caracteres de imutabilidade e necessidade, daquela verdade «que
não podes chamar tua, nem minha, nem de homem algum, visto que está
presente em todos e a todos se oferece por igual» (Do Livre Arbítrio, 2, 12,
33). A natureza das ideias, o seu carácter imutável, contrasta com a
mutabilidade da natureza humana e remete para uma verdade imutável, «A
verdade na qual pela qual e em virtude da qual é verdadeiro tudo quanto é
verdadeiro em qualquer sentido» (Solilóquios, l, l, 3). Daí que, ao tentar
definir o atributo fundamental de Deus, Santo Agostinho insista na
imutabilidade como seu atributo primeiro – seguindo nisso uma evidente
orientação platónica.

2.3.2. Antropologia

a) Natureza da alma
A antropologia augustiniana está fortemente impregnada de platonismo.
Existem no homem duas substâncias distintas: uma material e outra
espiritual. Propriamente falando, o homem não é o seu corpo nem tão pouco
o conjunto de corpo e alma, mas apenas a sua alma: «o homem é uma alma
racional que se serve de um corpo mortal e terrestre». Na alma, por sua vez,
Santo Agostinho distingue dois aspectos, a razão inferior e a razão superior.
A razão inferior tem como objecto a ciência, isto é, o conhecimento das
realidades mutáveis e sensíveis, o conhecimento do nosso ambiente físico,
de modo a podermos obviar às nossas necessidades. A razão superior tem
como objecto a sabedoria, o conhecimento do inteligível, das ideias, com
o fim de podermos elevar-nos até Deus. É nesta razão superior, próxima de
Deus, que tem lugar a iluminação.
Tudo isto é, basicamente, platonismo. Atento às exigências da fé cristã,
Santo Agostinho nega a preexistência e a reencarnação das almas. A
necessidade de tornar inteligível a doutrina cristã da transmissão da culpa
original levou Santo Agostinho a defender o traducianismo, argumentando
que as almas dos filhos provêm das dos pais. Não parece, contudo, que
Santo Agostinho chegasse a estar absolutamente convencido de qualquer
das teorias que os filósofos do seu tempo apresentavam sobre o tema.

b) A liberdade e o problema do mal


1. Enquanto religião de salvação, o cristianismo trouxera consigo uma
concepção do homem que nada tinha a ver com o platonismo nem com a
filosofia grega em geral. O cristianismo trouxera para o primeiro plano a
liberdade individual como possibilidade de escolha entre o bem e o mal.
Os filósofos gregos apenas haviam reflectido sobre a liberdade no contexto
moral, principalmente por causa do seu intelectualismo, o qual, como no
momento próprio analisámos, os levou a identificar o mal moral com a
ignorância: aquele que age mal não o faz porque escolhe livremente realizar
uma conduta reprovável, mas porque a sua ignorância o induz a crer que tal
conduta é melhor. Os Gregos não experimentaram o drama da liberdade
moral.

A afirmação da liberdade e a sua experiência é um elemento


fundamental da antropologia cristã. O homem é livre para aceitar ou não
aceitar a mensagem do cristianismo. O homem é livre de salvar-se ou
condenar-se. É certo que de acordo com a formulação de Santo Agostinho a
vontade tende necessariamente para a felicidade; e é certo também que o
único objecto adequado para a felicidade humana é Deus, de acordo com a
autotranscendência a que acima nos referimos. O homem carece, contudo,
de uma visão adequada de Deus, e daí que lhe seja possível dirigir-se a bens
mutáveis, em vez de tender para o bem imutável. Em tal caso, o homem
afasta-se do autêntico objecto da sua felicidade e é responsável por tal
alheamento, que é o resultado da sua própria decisão livre.

O MAL: PRIVAÇÃO
Mas já que podeis libertar-vos destes ardis, atentai na simplicidade e
clareza da doutrina católica. Esta distingue entre o bem em mais alto grau
e por si mesmo (ou seja, por essência e natureza) e o bem que o é por
participação, pois este recebe o bem do supremo bem, sem se alterar nem
perder nada. Este bem por participação é a criatura, que é apenas capaz de
imperfeições: estas imperfeições não são da autoria de Deus, pois Ele é o
autor da existência e, por assim dizer, da essência. Atente-se nesta
palavra, pois só ela nos fornece a chave do enigma do mal; com efeito, e
longe de ser uma essência, o mal é com toda a verdade uma privação,
implicando portanto uma natureza à qual possa causar dano. Mas
natureza (à qual se causa dano pela privação de algum bem) não é o mal
supremo, nem o supremo bem, dado que pode ser desapossada dele; e se
é boa, não o é por essência mas por participação. Não é boa natureza
porque, se é criada, a sua bondade vem de outra parte. Só Deus é o
supremo bem e tudo o que faz é bom, mas não igual a Ele. Haverá
alguém de tal modo insensato que sustente que as obras são iguais ao
artista e as criaturas ao Criador? Oh maniqueus!, não estareis a fazer
demasiadas exigências? ainda quereis algo mais claro e explícito?
Santo Agostinho, Dos Costumes dos Maniqueus, 11, 4, 6.

A experiência cristã da liberdade é, além disso, uma experiência


dramática, já que a liberdade se encontra duplamente ameaçada: pela
corrupção da natureza, que o inclina para o mal, e pela força da graça, que o
impele para o bem. Com efeito, a doutrina cristã do pecado original
transmitido a toda a humanidade parece levar à conclusão de que o homem
– dada a desordem da sua natureza caída – quase não é livre de fazer o bem.
A doutrina cristã da graça, ao contrário, parece levar à conclusão de que o
homem tocado pela graça quase não é livre de fazer o mal.
Perante este conflito da liberdade, o pelagianismo optara por minimizar
a inclinação do homem para o mal e por esse meio acabar por negar a
necessidade da graça, chegando a uma posição segundo a qual o homem é
capaz de fazer o bem por si próprio. Santo Agostinho opôs-se
energicamente ao Pelagianismo, sem por isso negar a liberdade radical do
homem.

2. Estreitamente relacionada com o tema da liberdade é a questão da


origem e natureza do mal. A existência do mal no mundo (males físicos e
mal moral ou maldade humana) é um dos temas que mais profundamente
tem preocupado o pensamento religioso de todos os tempos. Não é Deus,
em última análise, o responsável pela existência do mal?
Este problema também preocupou profundamente Santo Agostinho que
na juventude procurou encontrar uma solução aderindo ao maniqueísmo,
doutrina segundo a qual existem dois princípios, um do bem, outro do mal.
Posteriormente abandonou a explicação maniqueísta e abraçou a explicação
de Plotino, segundo a qual o mal não é algo positivo, não é uma realidade
positiva, mas uma privação, uma carência de bem. Não sendo algo de
positivo, algo de real, não pode ser atribuído a Deus, nem é sequer
necessário atribuí-lo, como os maniqueístas, a uma causa ou princípio do
mal. Esta doutrina (talvez insatisfatória, como qualquer outra que pretenda
conciliar racionalmente a existência do mal com a bondade divina) foi
unanimemente aceite pelos teólogos cristãos e é substancialmente idêntica à
que no século XVII o filósofo racionalista Leibniz apresentará.

2.4. O Estado e a história. A cidade de Deus

2.4.1. A história e a perspectiva cristã

Santo Agostinho pode ser considerado como o primeiro pensador que


analisou sistematicamente o sentido da história universal. Santo Agostinho
é, pois, um filósofo da história, na medida em que pretende ir além dos
puros factos para tentar interpretá-los e encontrar-lhes um sentido. Como no
resto do seu pensamento, as reflexões de Santo Agostinho não são
estritamente filosóficas neste caso: enfrenta a história e o seu sentido como
cristão e, portanto, a sua filosofia da história é teologia da história,
simultânea e indistintamente.
São duas pelo menos, as circunstâncias que motivaram as reflexões de
Santo Agostinho, acerca do sentido da história universal. Em primeiro
lugar, que o cristianismo, como já acentuáramos na secção anterior,
concebe a história como o cenário onde Deus se manifesta ao homem e
onde tem lugar o drama da salvação. Não é pois de estranhar que fosse um
pensador cristão o primeiro a considerar a história como um todo dotado de
um sentido unitário profundo. Mas além disso, e em segundo lugar, as
reflexões de Santo Agostinho foram motivadas imediatamente pela queda
do Império Romano que, desde Virgílio, havia sido considerado como
definitivo e eterno. Este facto histórico de primeira grandeza constituiu um
estímulo para a reflexão sobre a história e o Estado.

2.4.2. As duas cidades

A perspectiva adoptada por Santo Agostinho perante a história é


primordialmente moral. Visto que a autêntica felicidade do homem consiste
no amor a Deus e a maldade consiste em afastar-se d’Ele, para situar o
objecto da felicidade em bens mutáveis é preciso considerar dois grandes
grupos ou categorias de homens: aqueles que «se amam a si mesmos até ao
desprezo por Deus» e aqueles que «amam a Deus até ao desprezo por si
próprios». Os primeiros constituem a cidade terrena, os segundos a cidade
de Deus.
É fácil cair na tentação de identificar a cidade terrena com o Estado e a
cidade de Deus com a Igreja. No entanto, não parece ser este o sentido da
teoria augustiniana. Visto que os critérios utilizados são de carácter moral,
as duas cidades encontram-se misturadas em qualquer sociedade ao longo
da história e a separação dos cidadãos de uma e de outra terá lugar apenas
no fim dos tempos. No entanto, é certo que Santo Agostinho insiste na
impossibilidade de que o Estado, qualquer Estado, realize autenticamente a
justiça, a menos que a sua acção seja informada pelos princípios morais do
cristianismo. Segundo este ponto de vista, a teoria augustiniana do Estado
pode dar lugar a duas interpretações distintas:

a) A teoria pode interpretar-se, em primeiro lugar, como uma


fundamentação teórica da primazia da Igreja sobre o Estado. Visto que
a Igreja é depositária, na história, das verdades e princípios do cristianismo,
é a única sociedade perfeita e, portanto, superior ao Estado. A Igreja deve
dar, moralmente, forma ao Estado. Esta orientação presidirá às relações
Igreja-Estado durante a Idade Média.

b) A teoria augustiniana pode considerar-se, em segundo lugar, como


uma minimização do papel do Estado. Esta minimização do Estado
havia-se tornado necessária no tempo de Santo Agostinho. Com efeito, a
adopção do cristianismo como religião oficial pelo Império Romano,
juntamente com a crença na indestrutibilidade deste, levara muitos cristãos
à convicção de que o Estado era um instrumento essencial para os planos
divinos na história. É esta convicção que Santo Agostinho pretende destruir,
reduzindo o Estado ao seu papel de mero organizador da convivência, da
paz e do bem-estar temporais.
Assumida num primeiro momento pelos pensadores cristãos e tendo
culminado em Santo Agostinho a orientação platónica dominará
amplamente o panorama intelectual do Ocidente até ao século XIII. Nesta
secção daremos algumas indicações acerca desta corrente de carácter
platónico.

AS DUAS CIDADES
Dois amores fundaram então duas cidades: a terrena – o amor-próprio
e desprezo a Deus; e a celestial – o amor a Deus e desprezo por si [64]. A
primeira glorifica-se a si mesma e a segunda a Deus, porque aquela
procura a glória dos homens e esta guia-se por Deus, que é o testemunho
da sua consciência. A primeira compraz-se na sua glória e a segunda diz
ao seu Deus: Vós sois a minha glória. Senhor, e levantais-me a cabeça.
Na terrena, os príncipes e as nações avassaladas encontram-se sob o jugo
da concupiscência do poder [65], e na celestial impera a caridade mútua,
com os governantes aconselhando e os súbditos obedecendo. Aquela ama
a sua própria força e os seus potentados, e esta diz ao seu Deus: Amo-te a
Ti. Senhor, que és a minha fortaleza. Na cidade terrena os lábios do
homem só procuram os prazeres do corpo ou da alma, ou ambos, e assim
os que chegam a conhecer Deus não o honram nem lhe dão graças como
Deus, e por isso o seu pensamento desvanece-se e o seu coração
ignorante obscurece-se. Tomando-se por sábios, o que significa uma
sabedoria enganada pela soberba, tornaram-se ignorantes e
transformaram a glória incorruptível de Deus à semelhança da imagem
corruptível do homem, das aves, dos quadrúpedes e das serpentes.
Levaram os povos a adorar tal simulacro, indo à frente ou seguindo-os, e
prestaram culto à criatura e não ao Criador bendito para sempre. Pelo
contrário, na cidade celeste não há sabedoria humana mas a piedade que
origina o culto legítimo ao Deus verdadeiro, na expectativa de um prémio
na sociedade dos santos, dos homens e dos anjos, a fim de que Deus seja
inteiro em todas as coisas.
Santo Agostinho, A Cidade de Deus. XIV, 28.
3. AUGUSTINISMO E PLATONISMO
MEDIEVAIS

3.1. O augustinismo

A transmissão da filosofia de Santo Agostinho durante os séculos


seguintes originou um conjunto de teses ou afirmações fundamentais que
dão forma à corrente denominada augustinismo. Algumas dessas teses
estão explicitamente formuladas em Santo Agostinho, outras só de um
modo implícito, desenvolvidas em contacto com outros filósofos, como o
árabe Avicena (século XI), mas todas em conjunto constituem uma espécie
de marca de escola, presente na filosofia medieval. Nos dois últimos
séculos da dade Média, o augustinismo teve os seus principais defensores
nos filósofos da Ordem Franciscana. As teses principais do augustinismo
são as seguintes:

a) No tocante às relações entre Fé e Razão, o Augustinismo conservou a


posição augustiniana de que ambas colaboram solidária e conjuntamente
na explicação e esclarecimento da verdade cristã. Recordemos que Santo
Agostinho não estabeleceu fronteiras entre fé e razão, considerando que esta
serve aquela e aquela ilumina esta. A subordinação da razão à fé foi
lapidarmente expressa por Santo Anselmo (século XI), na famosa frase
«credo ut intelligam» («creio para entender»).

b) No âmbito da antropologia, o augustinismo conservou-se fiel ao


dualismo platónico de Santo Agostinho, estabelecendo que a alma e o
corpo são substâncias distintas e que o homem é «uma alma imortal que se
serve do corpo mortal e terreno». A alma possui um conhecimento directo
de si mesma, conhece-se a si própria melhor e mais adequadamente do que
conhece as realidades corpóreas exteriores. Esta afirmação está também
presente em Santo Agostinho, que como atrás expusemos, utiliza o caminho
da interiorização, o conhecimento de si mesmo pela alma, como ponto de
partida mais idóneo do que o conhecimento da realidade corpórea exterior.

c) No âmbito da ética, o augustinismo manteve a primazia da vontade


sobre o entendimento, do querer sobre o conhecer. Esta tese exercerá uma
notável influência em todas as discussões éticas medievais e o seu influxo
far-se-á notar amplamente no século XIV e nas doutrinas de Lutero e
Calvino.

d) No que se refere ao conhecimento, o augustinismo mantém a teoria


augustiniana da iluminação e a tese de que é mediante ela que a razão
humana conhece as verdades universais, imutáveis e eternas.

e) Por último, no campo da ontologia o augustinismo caracteriza-se por


uma dupla afirmação: o exemplarismo (as ideias como arquétipos ou
exemplares de tudo o que existe) e o hilemorfismo e a pluralidade de
formas, tese defendida posteriormente a Santo Agostinho.

TUDO O QUE É CRIADO SE COMPÕE DE MATÉRIA E DE


FORMA
A quinta divisão é simples e composta; mas também aqui existem
muitos erros, como dizer que qualquer criatura é simples; porque então
seria acto puro, o que só é próprio de Deus. E é perigoso atribuir à
criatura o que é de Deus (a simplicidade); porque esta atribuo-a ao anjo,
não lhe querendo atribuir o que é de Deus pela reverência que tenho por
Ele. Mas na verdade assim parece ser, porque Boécio diz que «a forma
não pode ser sujeito»; e assim nada acontecia ao anjo, nem tristeza nem
alegria.
São Boaventura, Colações sobre o Hexameron, 4.

Ao expor a filosofia aristotélica, dissemos que o hilemorfismo é a teoria


que explica a estrutura interna das substâncias sensíveis, recorrendo à
composição dos elementos ou princípios, matéria e forma. O augustinismo
distingue-se do aristotelismo em dois aspectos importantes da teoria. Em
primeiro lugar, segundo Aristóteles só as substâncias sensíveis são
compostas de matéria e forma, já que as substâncias imateriais são formas
puras; para o augustinismo, todas as substâncias, excepto Deus, são
compostas de matéria e forma: mesmo as substâncias espirituais (os
anjos, na religião cristã) são compostas de matéria e forma, embora se trate
de uma matéria espiritual. (Evidentemente, esta afirmação peregrina tem
uma função mais teológica do que filosófica. Pretende sublinhar-se a
diferença radical entre o ser divino e os restantes seres: visto que Deus se
caracteriza pela sua simplicidade mais absoluta, todos os restantes seres
terão de ser em alguma medida compostos. Existe além disso uma segunda
diferença entre o augustinismo e o aristotelismo: segundo Aristóteles, cada
substância possui unicamente uma forma; segundo o augustinismo, nas
substâncias há pluralidade de formas. Filósofos como São Boaventura
(século XIII), o catalão maiorquino Raimundo Lulio (séculos XIII-XIV) e
Duns Escoto (séculos XIII-XIV) defenderam o pluralismo das formas.

3.2. Santo Anselmo e o argumento ontológico

Santo Anselmo de Cantuária (século XI) é o mais importante dos


pensadores pertencentes à corrente augustiniana até ao século XIII e o autor
da frase «credo ut intelligam» a que já nos referimos atrás ao tratar das
relações entre fé e razão no augustinismo. Toda a sua obra é uma amostra
interessante da corrente augustiniana. No entanto, Santo Anselmo passou à
história da filosofia fundamentalmente por ter sido o primeiro a formular
uma prova da existência de Deus a partir da própria ideia de Deus.
Trata-se da argumentação habitualmente designada por «argumento
ontológico», o mais célebre, o mais controverso e o mais estimulante de
todos os argumentos que se propuseram para demonstrar a existência de
Deus.
Santo Anselmo formula-o no Proslogion do seguinte modo: todos os
homens (incluindo o néscio, que em seu coração afirma que Deus não
existe) têm uma ideia ou noção de Deus, entendem por «Deus» um ser tal
que é impossível pensar noutro maior do que ele; ora bem, um ser
semelhante tem de existir não só no nosso pensamento mas também na
realidade, já que no caso contrário seria possível pensar outro maior do que
ele (a saber, um que existisse realmente) e cairíamos portanto em
contradição; logo, Deus existe, não só em pensamento mas também na
realidade.
O argumento ontológico coloca-nos dois tipos de considerações. Em
primeiro lugar, não é fácil determinar o significado que Santo Anselmo
atribui a esta argumentação. Provavelmente não a considerava uma prova
de carácter estritamente lógico-racional, desligada da sua fé cristã. O
argumento deve certamente ser considerado sob o ponto de vista da relação
entre fé e razão que é característica do augustinismo.
Santo Anselmo parte da sua crença na existência necessária de Deus,
e a razão é utilizada neste argumento para tornar inteligível este carácter
necessário da existência divina.

IGNORÂNCIA E CONHECIMENTO DE DEUS


Temos de perguntar-nos também como chegamos ao conhecimento de
Deus, que não é inteligível nem sensível, nem é também nenhum dos
seres que existem: Se Deus é incognoscível e excede o pensamento e a
razão, não o conheceremos nós a partir da sua própria natureza, uma vez
que, de entre todos os seres, provimos d’Ele e contemos certas imagens e
semelhanças dos seus paradigmas divinos? E que assim, conforme a
nossa capacidade, vamos ascendendo por um caminho progressivo até
Ele, que está além de todos os seres, negando e excedendo todas as
propriedades reais, e indicando Deus como a causa de todas elas?
Por conseguinte, conhece-se Deus, em todas as coisas e em nenhuma
delas, conhecemo-Lo através do conhecimento e da ignorância. E sobre
Ele temos compreensão, discurso, ciência, tacto, opinião, imaginação,
nome e tudo o mais, quando Ele não é compreensível, expressável ou
mutável (…).
E Deus é tudo em todas as coisas e nada em nenhuma coisa. E
conhecemo-Lo a partir de tudo e de nada (…). O conhecimento mais
divino de Deus é o conhecimento por meio da ignorância, através de uma
união com Ele que está para além da razão: isto ocorre quando a razão se
afasta de todos os seres existentes e também de si própria e se une aos
raios esplendorosos, sendo então iluminada de todos os lados na
profundidade inescrutável da sabedoria.
Pseudo-Dionísio, Os Nomes Divinos.

Ora bem, mesmo que Santo Anselmo não o considere desligado da fé, o
argumento foi historicamente separado do seu contexto religioso a fim de
analisar o seu valor estritamente filosófico, o que nos leva a outro tipo de
considerações. Que valor probatório possui o argumento ontológico? Uma
série de filósofos (entre eles Tomás de Aquino e Kant) rejeitaram tal
argumento por considerarem que nele se dá um passo ilegítimo da ordem
do pensamento para a ordem da existência real. Em que consiste a
ilegitimidade de tal passo?
O argumento parte certamente da ideia de Deus. Para maior clareza,
reformulemos o argumento da seguinte maneira: Deus é por definição (ou
antes, a ideia de Deus é a ideia de) um ser que possui as perfeições em
sumo grau; pois bem, existir é uma perfeição e portanto a existência faz
parte das perfeições divinas; logo, Deus existe realmente.
O argumento é falaz, segundo Tomás de Aquino, porque se partimos da
essência pensada de Deus, só podemos concluir da sua existência
pensada, mas não da sua existência real, fora do pensamento. Segundo
Kant, a falácia do argumento reside (entre outros defeitos) em supor que a
existência torna mais perfeita uma coisa, que a existência é uma
perfeição. Segundo Kant, a existência não acrescenta qualquer perfeição a
uma coisa. A essência de uma coisa define-se por um conjunto de
propriedades ou características; suponhamos, por exemplo, que o homem se
define como um «vivente sensitivo racional»; suponhamos agora que a
espécie humana se extingue, que não existem homens: a definição de
homem continuará a ser a mesma, a existência ou não-existência de homens
não afecta em nada a definição da sua essência.
Segundo Kant, a existência não pertence à definição de nenhum ser, o
que vai contra a prova de Santo Anselmo.

O argumento ontológico foi refutado na Idade Média por Tomás de


Aquino. Com certas variantes na formulação, foi aceite e defendido no
século XVII pelos filósofos racionalistas (Descartes, Espinosa, Leibniz).
Foi posteriormente rejeitado por Kant, depois novamente aceite e
defendido por Hegel. No nosso século, foi e é actualmente objecto de
controvérsia, especialmente entre os pensadores pertencentes à filosofia
analítica. O seu estudo contribuiu para a discussão do sentido e natureza
das proposições analíticas, bem como para a discussão dos diferentes
sentidos do predicado «é». Este argumento constitui, pois, um capítulo
fundamental da tradição filosófica.

3.3. Outras fontes do platonismo medieval

A filosofia de inspiração platónica expandiu-se na Idade Média


fundamentalmente devido à influência e autoridade de Santo Agostinho.
Existiram no entanto outras fontes de penetração platónica independentes
de Santo Agostinho. A mais importante de todas foi a obra de um filósofo
de identidade desconhecida, o Pseudo-Dionísio.
As obras deste platónico cristão (especialmente os seus tratados Os
Nomes Divinos e Teologia Mística) gozaram de grande autoridade durante a
Idade Média, pois pensava-se que o seu autor era Dionísio, o discípulo de
São Paulo. Tanto os teólogos orientais como os ocidentais apelaram para a
sua autoridade em apoio de determinadas doutrinas teológicas. No entanto,
o autor destas obras não é o discípulo de São Paulo mas um filósofo que as
compôs nos fins do século IV. Nelas se percebe a influência do
neoplatónico Proclo (século IV) e, por conseguinte da escola neoplatónica
de Atenas.
A contribuição mais importante da obra do Pseudo-Dionísio é a teoria
denominada teologia negativa. Deus está para além do ser e da realidade
(nisto segue a doutrina neoplatónica da transcendência do Uno, que
segundo Plotino «está para além da realidade») e assim não nos é possível
conhecer positivamente o que é, mas só negativamente o que não é.
As obras do Pseudo-Dionísio foram traduzidas para latim no século IX
por Escoto Erigena, outro dos grandes filósofos medievais.
5. SÃO TOMÁS DE AQUINO E O APOGEU DA
ESCOLÁSTICA

INTRODUÇÃO

Até ao século XIII, o pensamento no Ocidente caracteriza-se pelo


predomínio absoluto da filosofia de inspiração platónica. Para esse
predomínio contribuíram não apenas a obra de Santo Agostinho, continuada
no augustinismo, e a influência do Pseudo Dionísio Areopagita, mas
também o desconhecimento quase total da filosofia de Aristóteles durante
este longo período. Da obra aristotélica eram conhecidas apenas algumas
partes da lógica, graças às traduções e comentários realizados por Boécio
(séculos V-VI) denominado «o último dos filósofos romanos». Não se
conhecia a sua física e muito menos as suas teorias fundamentais acerca da
metafísica, da antropologia e da teologia.
Através de uma série de vicissitudes a que adiante nos referiremos, no
século XIII a Europa entrou em contacto com a filosofia aristotélica.
Traduz-se Aristóteles, lê-se Aristóteles com avidez e comenta-se. O século
XIII é o século do aristotelismo. Torna-se hoje difícil compreender a
perturbação que o aristotelismo produziu então no pensamento europeu,
mas essa perturbação foi realmente notável: o Papa preveniu energicamente
contra o aristotelismo, os augustinianos combateram-se ferozmente, o bispo
de Paris condenou-o vezes sem conta. Apesar de tudo, Tomás de Aquino
insistiu em assimilá-lo, construindo um sistema aristotélico cristão.
A propagação da concepção aristotélica veio remover a concepção
augustiniana tradicional das relações entre fé e razão, dando lugar a um
movimento, o averroísmo latino, que reclamou a autonomia da razão face
à fé. Na primeira parte deste capítulo ocupar-nos-emos da recepção do
aristotelismo no Ocidente. Na segunda parte exporemos as linhas
fundamentais do sistema de Tomás de Aquino.

Estas duas partes têm os títulos seguintes:


1. O aristotelismo e a luta pela autonomia da razão.
2. Síntese de aristotelismo e platonismo em Tomás de Aquino.
1. O ARISTOTELISMO E A LUTA PELA
AUTONOMIA DA RAZÃO

1.1. O aristotelismo no Ocidente

Arruinado o Império Romano e finalizada a Idade Antiga, o Ocidente


perdeu todo o contacto com a maioria das obras filosóficas gregas. Esta
perda de contacto e a consolidação do platonismo cristão (graças sobretudo
à monumental obra de Santo Agostinho) marcaram a evolução da filosofia
na Europa durante os oito séculos seguintes.
Entretanto tivera lugar um acontecimento de primeira grandeza: a
pregação de Maomé e a consequente expansão vertiginosa da conquista
árabe. Os árabes conquistam a Síria e entram aí em contacto com certos
redutos da cultura grega clássica. Um grupo de cristãos traduzira para sírio
alguns textos originais de filósofos gregos. Primeiro do sírio e depois
também directamente do grego, traduzem-se para o arábico as obras de
Aristóteles e os comentários feitos pelos grandes comentaristas gregos, na
sua maioria neoplatónicos. Cria-se assim uma filosofia árabe aristotélica.
Inicialmente, os árabes adoptam um aristotelismo muito platonizado. (O
que não é de estranhar: dissemos no capítulo anterior que o neoplatonismo
assimilara muitas teses do aristotelismo e acabamos de dizer que grandes
comentadores gregos de Aristóteles foram neoplatónicos; os árabes
estudaram Aristóteles através destes comentários.) O representante máximo
do aristotelismo árabe platonizado é Avicena (século X). Posteriormente
(século XI), Averróis escreve comentários às obras de Aristóteles,
eliminando todas as excrescências platónicas e dando-nos um aristotelismo
puro. Averróis foi o maior comentador de Aristóteles.
A penetração da filosofia grega através dos árabes constituiu um
estímulo para o Ocidente. No século XII inicia-se no Ocidente uma intensa
actividade de tradução. Traduzem-se directamente do grego para o latim as
obras de Aristóteles além das obras e comentários dos filósofos árabes.

1.2. O averroísmo latino

Paris, com a sua Universidade, era no século XIII a capital intelectual da


Europa. A Universidade foi perturbada com a chegada da obra aristotélica
em versão integral e com a chegada dos comentários de Averróis, que
ofereciam um aristotelismo puro. Gerou-se deste modo um movimento
aristotélico conhecido por averroísmo latino.
O averroísmo distinguiu-se por três afirmações ou teses, duas das
quais eram de origem aristotélica e contrárias à doutrina cristã.
Em primeiro lugar, a eternidade do mundo, que parecia atentar
abertamente contra a afirmação cristã de que o mundo foi criado por Deus.
Contrariamente à filosofia platónica, na filosofia de Aristóteles não há
nenhum demiurgo a que se pudesse deitar mão e interpretar em termos
criacionistas. Segundo Aristóteles, Deus é o motor imóvel que move
eternamente um mundo eternamente existente, mas que não o fez nem
sequer o conhece. (De acordo com Aristóteles, Deus não conhece o mundo.
Deus conhece-se a si mesmo e a sua actividade consiste exclusivamente
neste conhecer-se a si mesmo.)

Boécio
Mânlio Severino Boécio, o último dos filósofos romanos, nasceu no ano 470. Ocupou cargos
políticos importantes durante o reinado do ostrogodo Teodorico. Caído em desgraça, morreu
decapitado, após um longo período de cárcere em Pavia.
Boécio é uma figura de singular importância como transmissor da filosofia grega ao
Ocidente medieval. Nesta função transmissora destaca-se duplamente como tradutor e
comentarista das obras lógicas de Aristóteles e como criador de uma parte notável do
vocabulário filosófico latino. Termos como «acto», «potência», «princípio», «universal»,
«acidente», «contingente», «sujeito», etc., foram introduzidos por ele ao traduzir os termos
gregos correspondentes. Escreveu também uma obra intitulada Da consolação pela filosofia,
durante a sua longa estada na prisão.

Averróis
Nasceu em Córdova, na Espanha muçulmana, em 1126 e morreu em Marrocos em 1198.
Juntamente com Avicena, é o mais importante dos filósofos árabes. Contrariamente aos demais
filósofos árabes, que cultivaram uma filosofia platonizante ou um aristotelismo platonizado,
Averróis cultivou um aristotelismo puro, liberto de aderências platónicas. Escreveu três séries de
comentários a Aristóteles (menores, médios e maiores). Tanto a amplidão do seu labor de
comentador como a qualidade do mesmo valeram-lhe o sobrenome de «Comentador». A sua
influência no Ocidente no século XIII foi decisiva. Além dos comentários a Aristóteles,
escreveu outras obras que conseguiram notável difusão, como o seu escrito polémico Destruição
da Destruição (contra a obra de Algazel, Destruição dos Filósofos), e um livro sobre as
generalidades da medicina, conhecido na Idade Média sob o título latino de Colliget.

Também aristotélica, a segunda tese do averroísmo é que a alma


individual, a alma de cada homem não é imortal mas perecível e
corruptível. Só o intelecto está presente em todos os homens, mas é único e
o mesmo para toda a humanidade. (No capítulo acerca da alma em
Aristóteles, vimos como este admite – além da alma corruptível, que é acto
e forma do corpo – um entendimento que não é forma e acto do corpo, e
perguntávamos: acaso será Deus? Averróis interpreta que não é Deus mas o
entendimento que corresponde à esfera da Lua, a esfera celeste
imediatamente próxima da Terra.) É fácil observar até que ponto esta
negação da imortalidade da alma é contrária à doutrina cristã: negue-se a
imortalidade da alma e o drama cristão da salvação terá perdido todo o
sentido.
Estavam as coisas neste pé quando os averroístas lançaram a sua terceira
afirmação, a teoria da dupla verdade, a saber: que há duas verdades, uma
teológica ou da fé, e a outra filosófica ou da razão: as afirmações de que a
alma é imortal e de que o mundo é criado são verdadeiras de acordo com a
fé; as afirmações opostas de que a alma é corruptível e o mundo é eterno
são igualmente verdadeiras, mas de acordo com a razão e a filosofia.
A teoria da dupla verdade proposta pelos averroístas era uma tentativa
desesperada de defender a autonomia da razão perante a fé. Como
acentuámos no capítulo anterior, ao ocuparmo-nos do pensamento de Santo
Agostinho, a subordinação da razão tinha o seu principal ponto de apoio na
convicção de que a verdade é única; visto que a verdade é única e está
contida na doutrina cristã, à razão só resta o papel de esforçar-se por tornar
inteligível o que previamente se crê. Sob esta perspectiva, é fácil
compreender como a atitude dos averroístas constituía uma resposta frontal
à tese augustiniana.
Os averroístas foram condenados e o seu representante máximo –
Sigério de Brabante – foi expulso da Universidade de Paris e condenado a
prisão perpétua.

1.3. O aristotelismo de Aquino

Tomás de Aquino nunca aceitou estas teses averroístas:

a) Sobre a eternidade do mundo, teve muito cuidado em acentuar que,


em seu entender, nem o sistema aristotélico implicava necessariamente a
eternidade do mundo, nem o conceito cristão de criação exclui a
possibilidade de que o mundo seja eterno; segundo Aquino este pode ser
eterno e criado,

b) Quanto à imortalidade da alma, Aquino reinterpretou Aristóteles,


afirmando que o entendimento imortal de que aquele falava não é único
para todos os homens, mas sim a faculdade superior da alma, que é imortal.

c) A terceira afirmação averroísta, a dupla verdade, tornava-se


desnecessária neste caso concreto, uma vez negadas as outras duas.

Aquino combateu-a, não por considerá-la desnecessária mas por a


considerar inadmissível.
Aquino demarcou-se claramente dos averroístas nos pontos contrários à
fé cristã. A sua atitude perante a filosofia de Aristóteles foi no entanto
totalmente positiva. Estava convencido de que as linhas gerais do sistema
de Aristóteles eram compatíveis com a fé cristã e que, além disso,
proporcionavam uma interpretação valiosa e aceitável da realidade em si
mesma. É certo – teremos ocasião de comprová-lo mais adiante – que a
interpretação tomista da estrutura da realidade é de inspiração platónica e
não aristotélica. Isso não é, porém, obstáculo a que o seu sistema se articule
por meio de conceitos e esquemas aristotélicos, que Aquino aceita e
incorpora no seu pensamento.

1.3.1. Ontologia e cosmologia

Neste âmbito, Tomás de Aquino adopta as seguintes teses aristotélicas,


todas elas já expostas no capítulo anterior.

a) A teoria do movimento: definição do movimento em termos de


potência e acto, anterioridade deste relativamente àquela («nada passa da
potência ao acto a não ser sob a acção de algo que esteja já em acto), e
classificação do movimento em mudança substancial (geração e corrupção
das substâncias) e mudanças acidentais (quantitativa, qualitativa e local).

b) A composição hilemórfica das substâncias naturais, isto é, a teoria


de que as substâncias naturais são compostas de matéria e forma. Opondo-
se à corrente augustiniana, Tomás de Aquino é fiel ao aristotelismo,
afirmando que há só uma forma substancial e que as substâncias imateriais
são formas sem qualquer tipo de matéria.

c) A distinção entre substância e acidentes : as substâncias naturais –


compostas de matéria e forma – são por sua vez sujeitas de outras formas
acidentais.
d) A teoria das quatro causas (material, formal, eficiente e final), com
a consequente interpretação teleológica da natureza.

A CRÍTICA AUGUSTINIANA AO ARISTOTELISMO


Todos os doutores gregos, como Gregório de Nissa, Gregório de
Nazianzo, Damasceno, Basílio, e todos os comentadores árabes, afirmam
que Aristóteles parece ensinar erros sobre a eternidade do mundo, o que
dá origem a uma cegueira tripla e à obscuridade; e segundo eles, o
próprio Aristóteles sentiu isto nas palavras que proferia. Para Aristóteles
o mundo nunca teve começo, e nisso contradizia Platão, que parece ter
sido o único que ensinou ter havido um começo dos tempos. Ora, isso
repugna à luz da verdade.
Daqui resulta uma outra cegueira, a da unidade da razão, porque
postular que o mundo é eterno leva necessariamente ao seguinte: que as
almas são em número infinito, se os homens forem infinitos; que a alma é
corruptível ou que existe a transmigração para outro corpo; ou, enfim,
que o entendimento é o mesmo em todos, um erro que se atribui a
Aristóteles de acordo com o «Comentador».
De acordo com estes dois erros, não existe felicidade nem castigo
depois desta vida.
São Boaventura, Colações sobre Hexameron, 6.

1.3.2. Teologia

a) Tomás de Aquino aceita, em primeiro lugar, a demonstração


aristotélica da existência de Deus, baseada no movimento, entendido
este como passagem da potência ao acto. Esta demonstração aristotélica
constitui a primeira das cinco «vias» tomistas.
Sob a influência de Aristóteles, Tomás de Aquino demarca-se
notoriamente da corrente augustiniana no que se refere à prova da
existência de Deus. O augustinismo achava a via da interiorização mais
adequada; Tomás de Aquino considera mais adequado partir do
conhecimento que a experiência sensível acerca do Universo nos
proporcionou. O augustinismo partia da imutabilidade e necessidade das
ideias que o homem descobre dentro de sua alma mutável; Aquino parte da
mutabilidade e contingência dos seres do Universo.

b) Quanto à maneira de conceber Deus, Aquino aceita a teoria


aristotélica que o define como acto puro, sem qualquer tipo de potência ou
potencialidade. A sua actualidade é assim interpretada como a raiz da sua
imutabilidade (se o movimento é passagem da potência ao acto, Deus terá
de ser imutável, visto que é acto sem potência) e da sua perfeição (a
imperfeição implica potencialidade relativamente às perfeições que não se
possuem). Tomás de Aquino aceita igualmente a concepção aristotélica de
Deus como acto de pensamento, como pensamento cujo objecto é Ele
próprio, como pensamento autopensante.
Neste último ponto, porém, Tomás de Aquino introduz uma notável
correcção ao aristotelismo. Aristóteles explicara que Deus se conhece a si
próprio, que sua vida e felicidade consistem em conhecer-se a si mesmo e
que não conhece nada fora d’Ele, visto que é auto-suficiente. Deus, segundo
Aristóteles, não conhece o mundo. A diferença radical entre a teologia de
Aristóteles e a de Tomás de Aquino provém de que este aceita a criação do
mundo por Deus, e aquele não. Segundo Aristóteles (e este foi um dos
pontos de controvérsia averroísta), Deus não criou o mundo, o mundo é
eterno, Deus é somente o princípio do movimento do Universo e o fim para
que este se orienta. Segundo Tomás de Aquino e de acordo com o
cristianismo, Deus criou o mundo. Deus, então, conhece-o: conhece-o,
conhecendo-se a si mesmo, em si mesmo; e, assim, Tomás de Aquino pode
manter a doutrina aristotélica de que a actividade de Deus consiste em
conhecer-se a si mesmo.
DEUS, MOTOR IMÓVEL
A existência de Deus pode ser demonstrada de cinco maneiras. A
primeira e a mais evidente é a que se baseia no movimento. Os nossos
sentidos comprovam com clareza que no mundo há coisas que se movem.
Ora, tudo o que se move deve o seu movimento a outra coisa. Com efeito,
tudo quanto se move é potência relativamente ao agente do seu
movimento; por outro lado tudo o que se move é acto, pois mover é
passar da potência ao acto, e só chega ao acto o que é acto: por exemplo,
o fogo é um corpo quente em acto e faz com que a madeira passe a ser
quente em acto quando antes era apenas quente em potência, conferindo-
lhe assim movimento e alterando-a. Por conseguinte, não é possível que
numa mesma relação uma seja simultaneamente acto e potência, só o
podendo ser relativamente a uma sucessão de coisas. É impossível que
qualquer coisa possa mover-se por si mesma. Portanto, tudo o que se
move é movido por outra coisa. Mas se a coisa que se move é também ela
própria movida por outra coisa, e esta por outra coisa e assim
sucessivamente, não se pode continuar assim até ao infinito, pois nesse
caso nunca haveria um motor primeiro, pois os motores intermédios só se
movem por virtude do motor primeiro, como a vara só se move se
impulsionada pela mão. Deste modo, tem de haver um motor primeiro
que não seja movido por nenhum outro: um tal ser é o que todos
entendem por Deus.
São Tomás de Aquino, Suma Teológica I, q. 2, art. 3.

1.3.3. Antropologia

Tomás de Aquino aceita a definição aristotélica da alma como princípio


de vida, como forma e acto do corpo. Isso leva-o a admitir a concepção
hilemórfica do homem. Perante o platonismo augustiniano, segundo o qual
alma e corpo são duas substâncias distintas e acidentalmente unidas, e
portanto o homem é a alma, Aquino afirma que o homem constitui uma
única substância cujos princípios constitutivos são a alma e o corpo.
A antropologia aristotélica implicava a negação da imortalidade da alma
(ponto também de controvérsia averroísta). Tomás de Aquino demarca-se
de Aristóteles no tocante à imortalidade da alma. Neste domínio, volta-se
para Platão, tentando uma difícil síntese de platonismo e aristotelismo.

1.3.4. Ética

Aquino aceita o princípio aristotélico de que o fim último do homem é


a felicidade, bem como o princípio de que a felicidade perfeita consiste na
contemplação, na actividade do conhecimento. Esta aceitação do conceito
aristotélico da felicidade revela-nos outro ponto importante de afastamento
em relação ao augustinismo. Com efeito, a afirmação de que a felicidade
reside no conhecimento supõe a primazia da razão sobre a vontade, face ao
voluntarismo augustiniano que defendia a primazia da vontade sobre a
razão.
Juntamente com a doutrina do fim último, Tomás de Aquino aceita a
ideia de que as normas morais se baseiam na natureza humana e, portanto,
que o conhecimento desta, concebida teleologicamente, é o ponto de partida
para a formulação da lei moral natural.
2. SÍNTESE DE ARISTOTELISMO E
PLATONISMO EM TOMÁS DE AQUINO

2.1. Fé e razão

A chegada do aristotelismo ao Ocidente e a teoria averroísta da dupla


verdade haviam imposto aos pensadores cristãos a imperiosa necessidade de
repensar o problema das relações entre razão e fé em bases diferentes das
do augustinismo. Neste sentido, a tentativa protagonizada por Tomás de
Aquino é, sem sombra de dúvida, a mais notável de quantas o pensamento
cristão produziu.

2.1.1. Os limites da razão. A fé

A teoria aristotélica do conhecimento constituiu um ponto de partida e


um instrumento poderoso para reexaminar a questão das relações entre
razão e fé. Ao analisar os condicionamentos da atitude augustiniana sobre
este assunto, acentuámos no capítulo anterior que a concepção platónica e
neoplatónica do conhecimento se inclinava a afirmar que o objecto próprio
e adequado do nosso conhecimento são as realidades imateriais: a alma
conhece-se a si própria; o conhecimento que tem de si própria é melhor e
mais perfeito do que o que possui sobre as coisas sensíveis exteriores; e
através de um processo de elevação pode, a partir de si própria, aceder ao
conhecimento dos seres imateriais superiores. Esta concepção do
conhecimento implicava, como vimos, que os sistemas neoplatónicos se
processassem de cima para baixo, a partir do princípio supremo (Bem ou
Uno), percorrendo o caminho descendente do real, até aos últimos escalões.
A teoria aristotélica adoptada por Tomás de Aquino dá-nos uma
interpretação radicalmente distinta. Segundo Aristóteles o nosso
conhecimento parte dos sentidos, tem origem nos dados que a experiência
sensível nos fornece, e daí que o objecto proporcionado ao nosso
entendimento não sejam as realidades imateriais mas o ser das
realidades sensíveis e materiais. É certo que o intelecto, no entender de
Tomás de Aquino, é imaterial e, portanto, enquanto entendimento, tem por
objecto o real sem limitação alguma; mas enquanto entendimento humano,
isto é, enquanto intelecto ligado à experiência sensível, o seu objecto
adequado é precisamente a realidade sensível.
A concepção aristotélica do conhecimento implicava uma dupla
consequência: em primeiro lugar, que o edifício da filosofia se há-de
construir de baixo para cima, a partir do conhecimento das realidades
sensíveis; em segundo lugar, que a noção que seja possível obter acerca de
Deus terá por força de ser imperfeita e analógica, ou seja, baseada na
analogia que possa estabelecer entre as realidades limitadas e imperfeitas
que nos são conhecidas e a sua causa, infinita, cujo ser é em si mesmo
inacessível à razão humana.
O conhecimento natural acerca de Deus, do homem e do Universo tem,
pois, certos limites, dentro dos quais a razão pode mover-se com maior ou
menor acerto. A fé cristã, porém, proporciona noções, para além de tais
limites, acerca da natureza de Deus e acerca do destino do homem. Estas
noções reveladas ao homem são concebidas, assim, como algo de
gratuitamente acrescentado à razão humana, algo que a não vem suprimir
mas aperfeiçoá-la, do mesmo modo que, na expressão de Tomás de Aquino,
a ordem sobrenatural cristã não vem «eliminar a natureza, mas aperfeiçoá-
la». Trata-se, pois, de duas ordens que em princípio não têm motivo para
entrar em conflito.

2.1.2. Conteúdos da razão e da fé


A distinção entre conhecimento racional e noções da fé não deve no
entanto interpretar-se como se entre ambos não existisse qualquer elemento
em comum: existem conteúdos da razão que em definitivo não o são da fé e
existem conteúdos da fé que não o são de modo algum da razão, mas
existem também verdades que pertencem aos dois âmbitos. No que se
refere aos respectivos conteúdos, fé e razão delimitam dois conjuntos com
uma zona de intersecção. Para citar apenas dois exemplos, a esta zona de
intersecção pertencem, na opinião de Aquino, a afirmação de que o mundo
é criado e a afirmação de que a alma humana é imortal: o discurso racional
pode alcançar o conhecimento de ambas as verdades que são conhecidas
também pela fé cristã.
A existência de conteúdos comuns à fé e à razão suscita algumas
questões de grande interesse. Em primeiro lugar, que sentido tem a
existência de tais conteúdos comuns a ambas. Tomás de Aquino justifica a
sua existência aduzindo razões de carácter circunstancial e de carácter
estrutural: circunstancialmente, é conveniente que certas verdades
acessíveis à razão sejam também impostas pela autoridade da fé, já que
muitos homens carecem de tempo e preparação filosófica e, não sendo pela
fé, não lhes seria possível aceder ao conhecimento das mesmas; também é
conveniente, estruturalmente, dada a possibilidade de errar que ameaça de
forma constante a razão humana. Em segundo lugar, a existência de
verdades comuns à fé e à razão torna manifesto que a distinção entre estas é
uma distinção entre duas fontes de conhecimento. Isto é importante no
momento de distinguir a teologia da filosofia: uma e outra distinguem-se
primordialmente, não pelos seus conteúdos (dado que alguns são comuns a
ambas), mas pela forma de acesso aos mesmos. Com efeito, a teologia
recebe os seus conteúdos da fé, enquanto a razão os fornece à filosofia.

2.1.3. Colaboração da razão com a fé


A fé e a razão constituem assim duas fontes distintas de conhecimentos
que muitas vezes informam sobre parcelas diferentes da verdade e, às vezes,
informam sobre os mesmos conteúdos. Como fontes de informação, são
ambas autónomas e independentes. Na opinião de Tomás de Aquino,
porém, a razão pode prestar e presta uma apreciável ajuda à fé. Este
serviço ou ajuda torna-se patente na construção da teologia como ciência.
Com efeito, a teologia recebe da razão:

a) Em primeiro lugar, os seus procedimentos de ordenação científica,


de forma a que a teologia se possa constituir num sistema organizado de
proposições.

b) Em segundo lugar, as suas armas dialécticas para combater


adequadamente as afirmações dos filósofos que contradizem os artigos da
fé. Tomemos o exemplo da eternidade do mundo: a razão não pode
demonstrar que o mundo terá sido criado no tempo, mas pode ajudar a
teologia fazendo ver que, contrariamente ao que pensam alguns filósofos,
também não é possível demonstrar racionalmente o contrário, isto é, que o
mundo não terá sido criado no tempo.

Tomás de Aquino
Nascido de uma nobre família napolitana (1224), ingressou aos vinte anos na Ordem dos
Dominicanos. No ano seguinte transferiu-se para Paris, a fim de continuar os seus estudos.
Estudou em Colónia de 1248 a 1252 sendo discípulo de Alberto Magno. Após a graduação em
Paris (1256), a sua actividade docente e de investigação repartiu-se entre esta Universidade e
diversos locais de Itália. Desde 1269 até 1272 desenvolve intenso labor intelectual em Paris, em
contínua polémica com os averroístas e com os franciscanos augustinistas. Morreu em Março de
1274, quando ia a caminho de Lião para participar no Concílio.
Dentre as suas obras destacam-se uma multidão de comentários a obras de Aristóteles, de
Boécio e do Pseudo-Dionísio; opúsculos como o Do ente e da essência e, sobretudo, a Suma
Teológica e a Suma contra os Gentios. A sua filosofia presidiu e continua a presidir ao
pensamento católico.
c) Finalmente, muitos dados científicos ou contribuições da filosofia
podem ser úteis para o esclarecimento dos artigos da fé. A existência da
teologia é portanto a prova mais real da ajuda que a razão pode dar à fé.

2.1.4. Colaboração da fé com a razão

Mas não é só a razão que presta auxílio à fé, pois também esta, no
entender de Tomás de Aquino, presta os seus serviços àquela. Visto que não
há dupla verdade e que os artigos da fé cristã contêm afirmações de verdade
indubitável (como crente, Tomás de Aquino compartilha ambas as teses
com Santo Agostinho), a fé serve à razão de norma ou critério
extrínseco. Assim, no caso de a razão chegar a conclusões incompatíveis
com a fé, tais conclusões serão necessariamente falsas e o filósofo terá de
rever os seus raciocínios, as suas premissas e consistência lógica a fim de
lhes corrigir as deficiências. Deste modo, a fé é critério extrínseco e
negativo para a razão: extrínseco, porque se trata de uma fonte de
conhecimento diferente; negativo, porque o filósofo não pode apoiar-se
positivamente nos dados da revelação nem utilizá-los como ponto de
partida para as suas conclusões.
O compromisso elaborado por Tomás de Aquino entre a razão e a fé
revela uma atitude perante a razão que poderíamos qualificar de
moderadamente optimista. Afinal de contas, a autonomia concedida à razão
é limitada, e não poderia ser de outro modo, tratando-se de um cristão
profundamente crente.

VERDADES DE RAZÃO E DE FÉ
Há pois duas espécies de verdades divinas: uma pode ser alcançada
pelo exercício da razão e a outra ultrapassa as capacidades da razão
humana, mas ambas se apresentam ao homem como objecto de fé. Iremos
ocupar-nos primeiramente da verdade acessível pela razão, a fim de
responder àqueles que, sob o pretexto da força da razão, julgam ser inútil
a transmissão da verdade por inspiração sobrenatural.
Se esta verdade fosse deixada apenas ao exercício da razão, daí
resultariam três inconvenientes. O primeiro é que poucos homens teriam
conhecimento de Deus. A verdade é o fruto de uma investigação diligente
e isso não está ao alcance da maioria dos homens por três razões:
primeiro, alguns são desviados do saber pelas disposições do seu
temperamento, e assim nenhum deles atingiria esse auge da ciência
humana que é o conhecimento de Deus. As necessidades domésticas e
familiares são também um obstáculo para outros: certos homens estão
encarregados da administração dos bens temporais e não têm tempo para
se dedicarem ao conhecimento de Deus. Para outros, o obstáculo e a
preguiça; ora, é evidente que tudo o que a razão pode descobrir sobre
Deus exige previamente vários conhecimentos. Aliás, quase toda a
reflexão filosófica tende para o conhecimento de Deus, e é por isso que a
metafísica, que se ocupa do estudo das divinas, é estudada em último
lugar no ensino da filosofia. Só atingiremos esta verdade divina com
imenso esforço e aplicação, e certamente serão poucos os que querem
assumir esta tarefa por amor à ciência, se bem que Deus tenha colocado
na alma dos homens o desejo de alcançar esta verdade (…).
O terceiro inconveniente deve-se ao facto de que a investigação
humana cai muitas vezes em erro por debilidade de julgamento da nossa
inteligência e devido à confusão das imagens. Muitos ainda têm dúvidas
sobre aquilo que é demonstrado com absoluta verdade, porque
desconhecem o valor da demonstração e porque os pretensamente sábios
ensinam doutrinas diversas. Também, por vezes, entre muitas verdades
demonstradas se introduzem algumas falsas que não são demonstradas
mas que se aceitam por qualquer razão provável ou sofistica tida como
demonstração. Por isso foi necessário apresentar aos homens, pela via da
fé, o garante da certeza e uma verdade pura quanto às coisas de Deus.
A misericórdia divina foi saudavelmente providente ao impor como fé
aquilo que também é acessível pela razão, de modo a que, sem dúvidas e
sem erros, todos possam facilmente ter acesso ao conhecimento de Deus.
São Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, I, c. 4.

As bases da abordagem tomista das relações entre razão e fé são as que,


no fundamental, presidiram à atitude posterior do pensamento cristão e da
teologia: autonomia da razão como fonte de conhecimento e
impossibilidade de conflito real e definitivo entre as descobertas desta e
as exigências da fé cristã. Todo o conflito aparente entre ambas procederá
de erros da razão ou de uma deficiente interpretação dos conteúdos da fé
religiosa. Tomás de Aquino tomou em consideração apenas a primeira
possibilidade (a origem do conflito está nos erros da razão): é lógico que
assim fosse, dados os condicionamentos culturais da época. A partir da
Idade Moderna, porém, e uma vez constituído o método científico, os
teólogos optaram frequentemente pela segunda das possibilidades
propostas (a origem do conflito provém de uma deficiente interpretação
dos conteúdos da fé cristã): a interpretação da Bíblia foi obrigada a variar
substancialmente, em especial na teologia protestante.

2.1.5. Demonstração da existência de Deus

Como crente e como filósofo, Tomás de Aquino considera que uma das
tarefas fundamentais da razão consiste em demonstrar a existência de Deus.
E a esse respeito duas questões se colocam:

a) É necessário demonstrar a existência de Deus?


b) É possível demonstrar a existência de Deus?

a) A primeira questão pode parecer-nos actualmente ociosa: claro que é


necessário demonstrar a existência de Deus, dado que isso está longe de ser
evidente e incontroverso. Com efeito, para Aquino a pergunta não é ociosa
tendo em conta o contexto religioso e intelectual que enquadra o seu
pensamento: por um lado vive no seio de uma tradição em que a crença
religiosa vigora plenamente e que se expressa na convicção de que «o
conhecimento da existência de Deus encontra-se naturalmente imbuído em
todos os homens» (São João Damasceno); por outro lado, e tal como vimos
no capítulo anterior, a corrente augustiniana insistiu em que a alma humana
pode encontrar Deus em si mesma por meio de um processo de
interiorização que permite alcançar o conhecimento da sua existência a
partir da compreensão da ideia de Deus (argumento ontológico de Santo
Anselmo).

A TERCEIRA VIA
A terceira via considera o ser possível ou contingente e o ser
necessário, de acordo com a seguinte formulação; na natureza há coisas
que podem existir ou não existir, porque certos seres criam-se e outros
destroem-se, havendo pois a possibilidade de que existam ou não. No
entanto, revela-se impossível que tais seres tenham existido sempre, dado
que, se têm a possibilidade de não ser, não devem ter existido num certo
tempo. Ora, se todas as coisas têm a possibilidade de não serem, deve ter
havido um tempo em que nenhuma existia. Mas se isto é verdade,
também não deveria existir nada agora, pois o que existe só começa a
existir em virtude do que já existe: e assim, se nada existia, era
impossível que alguma coisa começasse a existir e, consequentemente,
agora não haveria nada, o que é evidentemente falso. Por conseguinte,
nem todos os seres são possíveis ou contingentes, e entre eles deve
forçosamente haver um que seja necessário. Mas o ser necessário ou
contém em si mesmo a razão da sua necessidade ou não a tem. Se a sua
necessidade depender de outro (como vimos em relação às causas
eficientes), não é possível aceitar uma série indefinida de coisas
necessárias; e por isso deve forçosamente existir algo que seja necessário
por si mesmo e que contenha em si a causa da sua necessidade, sendo
portanto a causa das necessidades de todos os outros – a esse ser
chamamos Deus.
Tomás de Aquino, Suma Teológica I, q. 2. art. 3.

Face à corrente augustiniana, Aquino distingue dois tipos de verdades:


as que são evidentes em si mesmas e para nós, e as que, sendo evidentes
em si mesmas, não o são para nós. Ao primeiro grupo pertencem as
proposições cuja verdade se torna patente mediante a simples análise dos
conceitos: assim, a proposição «o todo é maior do que qualquer uma das
suas partes» é evidente para nós pois para captar a sua verdade basta-nos
compreender os conceitos de «todo» e de «parte». Já a proposição «Deus
existe» pertence ao segundo grupo: é evidente em si mesma, mas não para
nós, pois carecemos de uma compreensão adequada da natureza divina. Daí
que seja necessário demonstrar a existência de Deus.

b) Quanto à segunda questão, Aquino responde que é possível


demonstrar a existência de Deus desde que procedamos adequadamente, ou
seja, desde que se parta dos seres do mundo, considerados como efeitos, até
chegar a Deus como a sua causa. Este tipo de demonstração, que vai do
efeito à causa, chama-se a posteriori (isto é, «a partir do que é posterior»,
pois qualquer efeito é posterior à sua causa. A demonstração inversa, que
vai da causa ao efeito, denomina-se a priori, ou seja, «a partir do que é
anterior»; mas esta forma de demonstração é excluída por Aquino no caso
da existência de Deus).
Aquino reuniu elementos do aristotelismo, do platonismo e de outras
fontes e propôs cinco argumentos (cinco vias, como lhes chama) cuja
análise levaria à afirmação de que Deus existe. Essas cinco provas possuem
uma estrutura similar e cada uma se desenvolve em quatro fases sucessivas
seguintes:

1. a verificação de um facto da experiência («vemos» que há coisas


que se movem, etc.);
2. a aplicação do princípio da causalidade ao facto verificado («tudo
o que se move é movido por outra coisa», etc.);
3. a afirmação de que é impossível uma série infinita de causas (não
pode haver uma série infinita de seres que movem outros e que também
sejam movidos por outros, etc.);
4. a afirmação da existência de Deus (logo, há um motor primeiro, que
está imóvel, que é Deus, etc.).

A primeira via, que é a mais genuinamente aristotélica (e cujo texto


inserimos na pág. 93), parte do acto do movimento para concluir pela
existência de Deus como motor imóvel. A segunda parte do facto de que há
causas causadas que culminam na existência de uma causa não-causada. A
terceira (inspirada no filósofo árabe Avicena) toma como ponto de partida
que há seres contingentes (que podem existir ou não) e chega à afirmação
de que há um ser necessário (que não pode deixar de existir). A quarta (de
ascendência platónica) postula que há seres mais ou menos perfeitos, de que
há graus de perfeição, e conclui afirmando que deve haver um ser
sumamente perfeito. Finalmente, a quinta, tem como ponto de partida a
ordem que se manifesta no comportamento natural dos seres para terminar
afirmando a existência de uma inteligência ordenadora.

2.2. Antropologia e conhecimento intelectual

2.2.1. A antropologia tomista

Nas páginas anteriores já nos referimos aos aspectos mais importantes


da antropologia de Tomás de Aquino:

a) Afirma a imaterialidade do entendimento e, portanto, da alma. Em


virtude da sua imaterialidade, o entendimento tem por objecto o ser do real,
de todo o real, sem limitação alguma.
b) Mas o entendimento no homem acha-se vinculado essencialmente a
um corpo material dotado de determinados órgãos de conhecimento
(sentidos). Esta vinculação do entendimento humano ao corpo radica na
união substancial entre corpo e alma defendida por Tomás de Aquino,
contra o augustinismo, baseando-se na teoria hilemórfica de Aristóteles. Daí
que o entendimento humano, não enquanto entendimento mas enquanto
humano, tenha por objecto não o ser de tudo o que é real, mas o ser das
realidades materiais sensíveis.

c) A vinculação do entendimento humano a um corpo dotado de órgãos


de conhecimento (sentidos) impõe que o conhecimento intelectual comece
com o conhecimento sensível e que não possa ser exercido sem o concurso
deste: o entendimento elabora os conceitos a partir dos dados
fornecidos pela percepção sensível.

2.2.2. O conhecimento intelectual

O último dos aspectos apontados – o entendimento forma os conceitos a


partir da experiência sensível – levanta o problema de saber como é
possível passar das representações sensíveis aos conceitos, uma vez que
estes possuem características radicalmente diferentes daquelas. Analisemo-
lo.
Os conceitos caracterizam-se por ser universais. Tomemos, por
exemplo, o conceito de homem e estabeleçamos a seguinte proposição: o
homem é um animal inteligente e livre. Esta proposição não se refere a
nenhum homem em concreto e, contudo, é válida para todos os seres
humanos, para todos os homens. O conceito de homem (como o conceito de
árvore, como todos os conceitos) é universal.
Contrariamente ao que se passa com os nossos conceitos, as nossas
percepções sensíveis não são universais: ninguém viu ou verá o homem
ou a árvore. Existem homens concretos e árvores determinadas, mas não
existem o homem ou a árvore. (Platão pensava que o Homem e a Árvore
universais existiam de facto, mas muito poucos estarão de acordo com ele
neste ponto.) Os nossos sentidos põem-nos em contacto com objectos
individuais.
O problema da formação dos conceitos é, pois, o problema de como se
passa da individualidade das percepções sensíveis à universalidade dos
conceitos. Terá de admitir-se que o entendimento possui a capacidade de
extrair de algum modo os conceitos a partir dos dados fornecidos pelo
conhecimento sensível. Como é sabido, esta capacidade costuma designar-
se capacidade abstractiva e a actividade correspondente abstracção.

O CONHECIMENTO DO INDIVIDUAL
O nosso entendimento não pode conhecer as realidades materiais
singulares em primeiro lugar e directamente. E isto porque nas realidades
materiais o princípio da singularidade é a matéria individual. Como disse
anteriormente, o nosso entendimento entende abstraindo de tal matéria a
forma inteligível; por sua vez, o que se abstrai da matéria individual é
universal. Por conseguinte, o nosso entendimento só conhece
directamente os universais.
No entanto, pode conhecer o angular directamente, por meio da
reflexão. Como vimos atrás, não pode entender directamente as formas
inteligíveis, mesmo depois de as abstrair, a não ser que se volte para as
imagens: nestas apercebe as formas inteligíveis, como dissemos em De
Anima. Assim, entende directamente o universal por meio das formas
inteligíveis, e indirectamente as coisas singulares correspondentes às
imagens. E deste modo formula esta proposição: Sócrates é homem.
São Tomás de Aquino, Suma Teológica I, q. 86, art. 1.

De uma maneira geral, os filósofos que admitem que o nosso


conhecimento começa com os sentidos, admitem também a abstracção
como processo de formação dos conceitos. Existem porém diferenças entre
os vários filósofos na explicação deste processo. Na filosofia de Aquino, a
abstracção explica-se do seguinte modo:

a) De acordo com o que acabámos de dizer, ele distingue no


entendimento uma dupla capacidade, ou actividade: por um lado, a
capacidade abstractiva, ou seja, a capacidade de universalizar, de
converter em universais as representações sensíveis particulares; por outro,
a capacidade de conhecer universalmente. (Esta segunda capacidade
depende obviamente da primeira: o entendimento só poderá conhecer
universalmente se for capaz de universalizar os dados da experiência
sensível). Numa terminologia bebida em Aristóteles e que parece estranha
aos ouvidos actuais, Aquino denomina estas capacidades, respectivamente,
entendimento agente e entendimento possível.

b) As percepções sensíveis – que constituem o ponto de partida de todo


o processo – deixam na imaginação ou memória uma imagem ou
representação particular. (Novamente a terminologia tomista nos parece
estranha neste ponto: designa a imaginação por fantasia, às imagens chama
«fantasmas».) A capacidade abstractiva ou entendimento agente actua sobre
estas imagens ou fantasmas, despojando-as dos seus elementos
individuais e desta forma torna possível o exercício da segunda capacidade
do entendimento (o entendimento possível): o conhecimento, mediante a
formação de conceitos universais.

c) São Tomás afirma que aquilo que o entendimento conhece


primária e directamente é o universal. Só de forma indirecta e secundária
é que o entendimento conhece os seres na sua individualidade, ao desviar,
por assim dizer, o seu olhar para as imagens particulares. O processo é o
seguinte: suponhamos que vai ali um indivíduo caminhando e gesticulando:
1) os sentidos percebem uma figura de determinadas dimensões, cores, etc.,
agitada por movimentos peculiares; 2) isso é registado na imaginação; 3) o
entendimento – na sua função abstractiva – universaliza o conteúdo dessa
imagem; 4) o entendimento – na sua função cognoscitiva – formula o
conceito de homem. O entendimento conhece, pois, primária e
directamente, a essência humana universalizada e não o indivíduo humano,
que constitui o ponto de partida do processo. O conhecimento do indivíduo
pelo entendimento realiza-se de modo secundário e indirecto quando o
entendimento volta o olhar para a imagem reconhecendo nela o indivíduo a
partir do qual se abstraiu o conceito universal.

d) A teoria de São Tomás sobre a abstracção é congruente com a sua


teoria acerca do princípio de individuação. O entendimento agente actua –
como vimos – sobre a imagem particular (por exemplo, a imagem de
Sócrates) fazendo sobressair os aspectos essenciais, a essência (no nosso
exemplo, a essência humana) despojando-a, por assim dizer, dos elementos
individuais (no nosso exemplo, tudo o que não pertence à essência humana
como tal, mas a Sócrates em particular). A essência é idêntica em todos os
indivíduos da mesma espécie: a essência humana é a mesma em todos os
homens e daí que o conceito «homem» seja aplicável a todos. Embora não
se trate de duas realidades ou coisas distintas e separáveis, importa
distinguir em cada indivíduo a essência – que partilha com todos os
indivíduos da mesma espécie – e os elementos estritamente peculiares e
exclusivos de cada indivíduo.
Deste modo de entender a essência surge, para Tomás de Aquino, o
princípio de individuação. O que é que faz que a essência – una e idêntica
– se multiplique e se individualize em cada membro da espécie? O que é
aquilo que torna Sócrates, Platão, etc., em indivíduos distintos, embora
possuindo a mesma essência? Segundo São Tomás, o princípio da
individuação é a matéria concreta, que é distinta em cada membro da
espécie: não a matéria «em geral» (todos os homens possuem o mesmo tipo
de tecidos, órgãos materiais, etc.; a matéria «em geral» não individualiza),
mas a matéria concreta, que é diferente em cada indivíduo.
2.3. A estrutura da realidade

Na secção 1.3. deste capítulo, pusemos em relevo as teses mais


importantes que Tomás de Aquino adoptou de Aristóteles e indicámos em
seguida que no sistema tomista existem certos elementos não-aristotélicos.
Podemos agora acrescentar que o mais importante e genuíno da metafísica
tomista não procede de Aristóteles mas de uma reflexão profunda sobre o
conceito cristão de criação, interpretado platonicamente como participação.
Já no capítulo anterior, ao referirmo-nos a Plotino, chamámos a atenção
para a transcendência filosófica da doutrina cristã da criação, comparando-a
com a doutrina plotiniana da emanação. A doutrina da criação, dizíamos,
acentua a radical diferença existente entre Deus e os restantes seres, que
são contingentes, isto é, existem, mas poderiam não existir.
A contingência dos seres criados levou Tomás de Aquino a reparar
numa diferença que qualquer pessoa cuidadosa nota ao falar das coisas: a
diferença entre o que as coisas são (essência) e o facto de existirem ou não
(existência).
De facto, as perguntas que é um homem? e existem homens?
correspondem a dois aspectos diferentes da realidade: um homem é um
animal racional (essência) e é fácil concluir que esta definição nada tem que
ver com o facto de existirem homens ou não: ainda que se extinga a espécie
o homem continuará sendo «animal racional».
São Tomás não se limitou a atender a esta distinção conceptual entre a
essência e a existência: utilizou-a como peça fundamental do seu sistema.
Vamos expor em seguida a forma como incorpora esta distinção no seu
sistema metafísico.

O SER COMO ACTO E PARTICIPAÇÃO


(…) Porque a existência é a actualidade de qualquer forma ou
natureza, já que não haveria bondade ou humanidade se de facto não
existissem. Assim, qualquer existência diferente da sua essência tem com
ela a mesma relação que o acto tem com a potência. Mas como em Deus
não há qualquer espécie de potencialidade, como vimos, daqui decorre
que a essência não é n’Ele coisa distinta da existência; por conseguinte, a
sua essência é a sua própria existência.
Tal como o que tem fogo e não é o fogo está aceso por participação,
também o que tem existência e não é a existência é ser ou coisa por
participação. Mas Deus identifica-se com a sua essência; e, se não se
identificasse com a sua existência, seria um ser por participação e não por
essência, e por conseguinte não seria o ser primeiro. Isto seria um
absurdo. Logo, não só Deus é a sua essência como também a sua
existência.
São Tomás de Aquino. Suma Teológica I. q. 3, art. 4.

LEI NATURAL E LEI ETERNA


Como já dissemos a lei é regra e medida e pode encontrar-se no
sujeito de duas maneiras: como no sujeito activo, que regula e mede: ou
como no sujeito passivo, regulado e medido: porque uma coisa participa
de uma regra e de uma medida enquanto for regulada e medida por ela.
Assim, de acordo com o exposto, e dado que todas as coisas submetidas à
providência divina são reguladas e medidas pela lei eterna, torna-se
evidente que todas as coisas participam de alguma maneira da lei eterna,
a saber: enquanto, por efeito dessa lei, as coisas tenderem para os seus
próprios actos e fins. A criatura racional, entre todas as outras, está
submetida à providência divina de uma maneira especial, pois participa
dessa providência e é providente sobre si e para os outros. Assim,
participa da razão eterna: esta inclina-o naturalmente para a acção e fim
adequados. Chama-se lei natural a essa participação da criatura racional
na lei eterna.
São Tomás de Aquino, Suma Teológica I-II, q. 91, art. 2.
2.3.1. Composição de essência e existência

Todos os filósofos cristãos – e também os neoplatónicos – se


preocuparam continuamente com pôr em destaque o que mais radicalmente
distingue Deus, o princípio primeiro, das restantes realidades existentes. Os
neoplatónicos haviam estabelecido uma distinção radical ao afirmar que o
princípio primeiro se caracteriza pela sua absoluta simplicidade (daí que o
denominassem Uno), enquanto as demais realidades se caracterizam por
serem compostas. Este critério foi aceite pela filosofia cristã e a tradição
augustiniana afirmava que todas as realidades, excepto Deus, são compostas
de matéria e forma. Tomás de Aquino aceita o critério da composição, mas
não aceita a fórmula augustiniana. (Como bom aristotélico aceita a
existência de formas imateriais.) Segundo ele, a composição que
radicalmente distingue as realidades criadas é a composição de essência e
existência.
A afirmação de que todos os entes criados são compostos de essência e
existência joga perfeitamente com o seu carácter contingente: contingentes
são aquelas realidades que existem, mas podem não existir, o que significa
que a sua essência não pertence necessariamente à sua existência, e, por
conseguinte, são compostos de essência e existência. Só num ser necessário
(que não pode deixar de existir), isto é, Deus, a essência e a existência, o
que é e o existir, se identificam.

2.3.2. A existência como «acto de ser»

Esta distinção – com que a própria linguagem nos brinda – entre o que
as coisas são (essência) e o facto de existirem (existência) é interpretada por
São Tomás através dos conceitos aristotélicos de potência e acto: a essência
é potência (pode ser ou existir), a existência é acto, isto é, actualiza esta
capacidade de ser ou existir que é própria da essência.
A existência é pois caracterizada como acto da essência. Ora, a cada
essência corresponde um tipo de existência determinada. Existir, para um
ser vivo, é viver; para um animal existir é sentir (isto é, ter vida sensitiva, já
que o animal se define como ser vivo sensitivo, é essa a sua essência); para
um entendimento existir é entender.
Esta circunstância – evidente para Tomás de Aquino – de que a cada
tipo de essência corresponde um grau diferente de existência ou ser, obriga-
nos a ser cautelosos quando utilizamos a palavra «existência» no contexto
da sua filosofia. Quando habitualmente falamos de «existência»,
costumamos interpretar o significado desta palavra de modo unívoco: a
pedra existe, a árvore existe, o animal e o homem existem e para nós isso
significa que podemos tropeçar neles, que estão aí no mundo, que existem,
tanto a pedra como o homem. Para Aquino, as proposições «a pedra existe»
e «a árvore existe» não significam exactamente o mesmo, pois existir é o
acto da essência, e a essência da árvore e da pedra são distintas. Por isso em
vez de falar de existência seria mais correcto falar de ser; seria mais
correcto não só conceptualmente mas também terminologicamente, já que
São Tomás utiliza as palavras «essentia» e «esse» («esse», como é sabido, é
o infinitivo que equivale a «ser»). Deveria portanto falar-se de «ser» e de
«acto de ser».
Por conseguinte o acto do ser desdobra-se em diferentes níveis de
perfeição, em graus mais ou menos perfeitos, segundo as essências que em
cada caso actualiza: o acto de ser é mais perfeito num entendimento do que
num animal; mais num animal do que numa planta; mais numa planta do
que numa pedra. A perfeição com que se realiza em cada caso depende
da essência, da potência ou capacidade do seu ser. Tomás de Aquino
conclui destas considerações que o ser de Deus não tem qualquer limitação
e inclui toda a perfeição possível, já que nenhuma essência limitada o
coarcta: a essência é o seu ser e é, portanto, o próprio ser subsistente.

2.3.3. Acto de ser e participação


Se essência e ser se identificam em Deus, o mesmo não acontece com os
entes criados, que são compostos de essência e ser. Os entes criados
participam do ser em graus distintos, segundo a capacidade de ser das suas
respectivas essências.
São Tomás recorre assim ao conceito platónico de participação. Embora
habitualmente se diga (e não sem razão) que Aquino é aristotélico, é no
entanto necessário afirmar que a inspiração mais profunda do seu
pensamento não é aristotélica, mas platónica, neoplatónica.

2.4. Ética e política

2.4.1. Conceito de natureza humana

Como já vimos antes, Tomás de Aquino aceita do aristotelismo que a


felicidade é o fim último do homem, que o conhecimento da natureza
humana permite especificar um conjunto de normas morais que constituem
a lei natural. Continuando a tradição filosófica grega, Tomás de Aquino
regressa à análise da natureza humana.
As reflexões dos Gregos em torno da natureza humana como fonte de
normas de conduta haviam tornado claro que há duas formas fundamentais
de a interpretar: a concepção mecanicista e a concepção finalista.
Efectivamente, a interrogação sobre a natureza como norma de conduta
pode fazer-se de duas maneiras radicalmente distintas.
Em primeiro lugar pode-se perguntar, como o fizeram os sofistas e,
depois, Epicuro, o que é que de facto, leva os homens a agir. A resposta
adequada é sem dúvida que o que, de facto, move os homens é a
consecução do prazer e o afastamento da dor. Esta resposta – baseada numa
interpretação mecanicista da natureza – dá origem a uma ética dos móbiles,
a uma ética que procura descobrir os móbiles ou impulsos que facticamente
determinam a conduta humana.
Em segundo lugar a interrogação sobre a natureza humana como fonte
de normas de conduta pode formular-se inquirindo qual o fim para cujo
cumprimento o ser humano está orientado; foi essa a linha seguida por
Platão e desenvolvida por Aristóteles. Neste caso, não se trata de saber o
que é que de facto leva o homem a agir, mas de descobrir onde se
encontram a perfeição e a plenitude humanas.
Esta orientação dá origem a uma ética dos fins, a uma ética baseada na
perfeição ou cumprimento das exigências da natureza humana. Tomás de
Aquino, seguindo Aristóteles, adere a esta concepção finalista,
teleológica, da natureza.

2.4.2. Existência da lei natural

De acordo com a teleologia aristotélica, Aquino afirma que o homem, à


semelhança de qualquer outro ser natural, possui certas tendências
enraizadas na sua natureza. O termo «tendência» não deve induzir em erro;
esta palavra adquire frequentemente, em psicologia, um sentido
mecanicista, como impulso ou predisposição que determina a conduta do
indivíduo. Neste caso, como é óbvio, deve entender-se não como pulsão
mas como linha de conduta orientada para um fim específico.
A natureza humana possui certas tendências. Isto é algo que o homem
tem em comum com os outros seres naturais, já que a existência de fins é
um traço específico da natureza como tal, e não exclusivamente da natureza
humana.
Ora, o homem distingue-se dos demais seres naturais pela sua
racionalidade, porque só ele é capaz de conhecer as suas próprias
tendências e, portanto, só ele pode deduzir certas normas de conduta
orientadas no sentido de dar-lhes o cumprimento adequado.
Demonstra-se assim, na opinião de Tomás de Aquino, a existência da lei
natural: como ser racional que é, o homem pode formular certas normas de
conduta, de acordo com as exigências da sua própria natureza.
LEI MORAL E DIREITO
Como Santo Agostinho diz, «a lei que não é justa, não parece que seja
lei». Portanto a força da lei depende do seu grau de justiça. A justiça das
coisas humanas é proporcional à sua conformidade à norma da razão. E a
primeira norma da razão é a lei natural, como já expusemos. Por
conseguinte, qualquer lei humana terá carácter de lei desde que derive da
lei da natureza; e se se afastar nalgum ponto da lei natural já não será lei
mas corrupção da lei.
São Tomás de Aquino, Suma Teológica I-II, q. 95, art. 2.

2.4.3. Conteúdo da lei natural

O conteúdo da lei natural deduz-se portanto do repertório das tendências


naturais do homem. Tomás de Aquino põe em evidência a existência de três
ordens de tendência:

a) Enquanto substância (e, portanto, do mesmo modo que qualquer


outra), o homem tende a conservar a sua própria existência. O
cumprimento desta tendência impõe o dever moral de procurar a
conservação da vida.

b) Enquanto animal (e, por conseguinte, como todos os outros animais),


o homem tende a procriar. Desta tendência é possível deduzir certas
normas de conduta relativas à consecução do fim da procriação e cuidado
dos filhos;

c) Enquanto ser racional, o homem tende a conhecer a verdade e a


viver em sociedade. (A sociedade implica a ordenação racional da
convivência com vista à consecução de certos fins e, portanto, é algo
especificamente humano, que não pode confundir-se nem identificar-se com
a manada ou com o rebanho.) Destas tendências derivam as obrigações
morais de procurar a verdade e respeitar as exigências da justiça.

Este quadro cinge-se exclusivamente a preceitos morais de carácter


geral, devendo ser posteriormente particularizados. É nessa particularização
que surgem os maiores problemas desta teoria. Por exemplo: até onde vai a
exigência natural de conservar a própria existência? É lícito pôr a vida em
perigo em caso de guerra? Que pensar da greve da fome? etc. Perguntas
análogas podem fazer-se a respeito dos restantes preceitos primários
contidos na dedução geral de Tomás de Aquino.

2.4.4. Propriedades da lei natural

Visto que a lei moral natural se deduz das tendências da própria


natureza, o seu conteúdo deverá ser evidente, universal e imutável. A
primeira destas propriedades, a evidência, é exigida pela função que lhe
cabe desempenhar na lei natural: uma vez que deverá ser norma objectiva
orientadora da conduta para todos os homens, os seus preceitos terão de ser
facilmente cognoscíveis, de modo que todos os homens possam estar a par
deles. Relativamente às outras duas propriedades, a universalidade e a
imutabilidade da lei natural são dadas pelo conceito de natureza, entendida
como aquilo que é comum a todos os homens, apesar das diversidades
culturais, raciais, etc., e como aquilo que permanece constante através das
mutações históricas, etc., a que o ser humano está submetido.

2.4.5. Lei natural e lei positiva

Tomás de Aquino formula as relações entre a lei natural e a lei positiva


(as relações entre physis e nomos) de um modo sistemático e preciso:

1. Em primeiro lugar, a lei positiva é uma exigência da própria lei


natural. Com efeito, a lei natural impõe a vida em sociedade e esta só é
possível com base em normas legais que regulem a convivência. A positiva
não é, pois, o mero resultado de uma imposição caprichosa por parte dos
mais fortes ou de um arbitrário convénio entre iguais, mas algo exigido pela
própria natureza do homem enquanto ser social.

2. Em segundo lugar, a lei positiva constitui um prolongamento da lei


natural; o seu conteúdo particulariza as normas morais naturais, as quais,
dadas as suas características, não descem à ordenação pormenorizada da
convivência humana.

3. Por último, as exigências da lei natural deverão ser respeitadas


pela legislação positiva. A lei natural constitui assim a norma ou marco
que assinala os limites dentro dos quais se organizará moralmente a
convivência humana.

Esta forma de interpretar as relações entre a lei natural e a lei positiva


torna manifesto que Tomás de Aquino não concebe o mundo do direito e o
mundo da moral como dois reinos desligados e independentes. O direito
está inserido na moral e o ponto da inserção é precisamente a ideia de
justiça. Efectivamente, a justiça como exigência de dar a cada um o que lhe
pertence, é uma exigência moral e é também o fundamento do direito.

2.4.6. A lei natural e a ordem do Universo

A lei natural, enquanto princípio ordenador da conduta humana, não é


algo desligado da ordem geral do Universo em que o homem está inserido.
A totalidade do Universo encontra-se submetida a uma ordenação, que São
Tomás, de acordo com as exigências da doutrina cristã da criação, atribui a
Deus como causa criadora do Universo. Esta ordenação divina do Universo
recebe o nome de lei eterna (conceito que se encontra em Santo Agostinho
e que procede, em última análise, de Heraclito).
A lei eterna é definida por Tomás de Aquino como a «razão da
sabedoria divina enquanto orientadora de todos os actos e movimentos».
Ora, esta ordenação geral do Universo não regula de igual forma o
comportamento humano e o dos restantes seres naturais. O comportamento
destes é regulado através das leis físicas a cujo cumprimento não podem
subtrair-se, pois carecem de liberdade. O homem, ao contrário, é um ser
livre e daí que a sua conduta seja ordenada, não por leis físicas, mas por
uma lei moral que respeita a sua liberdade. A fundamentação teológico-
religiosa leva São Tomás a considerar a lei natural como a parte da lei
eterna que se refere especificamente à conduta humana.

O conceito da lei natural, enquanto ordenação racional da conduta


humana baseada nas solicitações da natureza, gozou de indubitável
prestígio no pensamento ocidental. Na Idade Moderna – e muito
especialmente no Iluminismo – este conceito foi retomado, embora com
base numa concepção diferente da natureza e prescindindo da sua
fundamentação teológica. Na sua formulação tomista, a teoria da lei
natural constituiu e continua a constituir o eixo fundamental da doutrina
moral católica.
Combatida pelo relativismo sofista, a teoria da lei natural foi também
radicalmente criticada no pensamento contemporâneo pelo historicismo
(«o homem não tem natureza, tem história», diz Ortega y Gasset) e pelo
existencialismo, que negaram a existência no homem de uma natureza tal
como é concebida por esta teoria.

LEI NATURAL E LEI POSITIVA


As coisas podem derivar da lei natural de dois modos: primeiro, do
mesmo modo que as conclusões são derivadas dos princípios; segundo,
por meio da determinação, do mesmo modo que as determinações de
certas noções comuns. O primeiro modo é semelhante ao das ciências,
porque se tira conclusões demonstrativas dos princípios. O segundo
assemelha-se aos procedimentos das artes, em que as formas genéricas se
concretizam em algo particular: por exemplo, o arquitecto concretiza a
forma genérica de casa neste ou naquele modelo de casa. Analogamente,
algumas coisas derivam dos princípios comuns da lei natural por meio de
conclusões. Assim, o princípio «não matarás» pode ser derivado como
uma conclusão do princípio «Não prejudicarás o teu semelhante». Outras
coisas são derivadas por determinação: por exemplo, a lei natural impõe
um castigo a quem peca; porém, que se deva castigar ou aplicar uma pena
é uma determinação da lei natural.
São Tomás de Aquino, Suma Teológica I-II, q. 95, art. 2.
6. GUILHERME DE OCKHAM E A CRISE
ESCOLÁSTICA

INTRODUÇÃO

O título deste capítulo utiliza o termo «crise» para caracterizar a


filosofia do século XIV. Trata-se, efectivamente, de um período histórico de
crise, nos diferentes sentidos da palavra. Crise, em primeiro lugar, no
sentido de crítica: os filósofos do século XIV – e de modo muito especial o
mais representativo de todos, Ockham – submetem à crítica as próprias
bases de toda a filosofia anterior. O século XIV é, em segundo lugar, um
século de crise, entendendo por esse termo aquele estado de coisas em que
uma situação se precipita para dar lugar a uma nova situação. Esta
precipitação ocorre num duplo âmbito que convém destacar.
Em geral, o século XIV assiste ao desmoronamento das estruturas
político-religiosas da Idade Média cristã: a harmonia do duplo poder (o
político do Imperador e o religioso do Papa) deteriora-se definitivamente.
Por um lado, o Império desmembra-se numa multidão de Estados e
principados que reclamam a sua própria soberania; por outro, o Cisma do
Ocidente divide a Igreja e os concílios da época vêem surgir a luta entre os
que defendem a autoridade do Papa sobre o concílio e os que declaram ser
partidários da superioridade do concílio sobre o Papa. Os dois poderes não
só se desagregam, como até se confrontam entre si.
No que diz respeito à filosofia, o século XIV representa não só a queda
das grandes sínteses filosófico-cristãs, elaboradas sobre bases gregas, mas
também a aparição de ideias novas, cujo desenvolvimento conduzirá, em
alguns aspectos, à Idade Moderna.

Este capítulo divide-se do seguinte modo:


1. Os limites da razão e a primazia da vontade.
2. Guilherme de Ockham e a crise da tradição filosófica.
3. As contribuições físicas dos cientistas do século XIV.
1. OS LIMITES DA RAZÃO E A PRIMAZIA DA
VONTADE

1.1. Duns Escoto e Guilherme de Ockham

No panorama filosófico do século XIV destacam-se as figuras de dois


franciscanos, Escoto e Ockham. Existem certos pontos de coincidência
entre ambos: como veremos, algumas das teses desenvolvidas por Ockham
estão já esboçadas em Escoto. Os pontos de coincidência entre eles são no
entanto menores do que os pontos de discrepância.

1.1.1. A filosofia de Escoto

Para começar, assinale-se que Escoto nasce na segunda metade do


século XIII e morre logo no dealbar do século XIV (1308). É pois um
filósofo cujo pensamento mantém ainda a marca característica dos
pensadores do século XIII: o sistematismo, ou seja, o empenhamento em
construir um sistema filosófico sólido e coerente, susceptível de explicar a
totalidade do real. A sua mente é primariamente construtiva. Como Tomás
de Aquino, constrói um monumental sistema, vigoroso e original; como São
Tomás, esforça-se por assimilar todos os aspectos do aristotelismo que lhe
parecem dignos de ser assimilados.
O sistema produzido por Escoto é sem dúvida muito diferente do de
Tomás de Aquino, criticando-o e contradizendo-o muitas vezes. Uma das
raízes da diferença existente entre ambos reside no facto de Escoto ser
franciscano e, como tal, ligado à tradição augustiniana. (No capítulo
terceiro frisámos que o augustinismo seria a corrente filosófica aceite pelos
franciscanos no século XIII). O sistema filosófico de Duns Escoto pode ser
analisado a partir da dupla perspectiva do aristotelismo e do augustinismo.

a) O conhecimento das realidades singulares


Apesar de entroncar na tradição augustiniana, Escoto abandonou
algumas teses do augustinismo, entre elas a da Iluminação, um abandono
que obedece sem dúvida à influência do Aristotelismo, o qual explicava o
conhecimento das verdades e essências universais por meio da abstracção.
Seguindo Aristóteles no fundamental, Escoto admite que o conhecimento
do universal se efectua por meio de um processo de abstracção a partir do
conhecimento das realidades sensíveis, e nisto coincide basicamente com
Tomás de Aquino.
No entanto separa-se deste no que diz respeito ao conhecimento das
realidades singulares que segundo São Tomás, não são conhecidas
directamente pelo entendimento. Escoto não partilha desta opinião e afirma
que o entendimento conhece directamente as realidades individuais (este
indivíduo, aquela árvore concreta, etc.) por meio de uma intuição imediata
confusa. O entendimento capta pois abstractivamente o universal (e nisto
coincide com Tomás de Aquino) e directamente, intuitivamente, o
individual (e nisto discorda totalmente de Aquino).

Duns Escoto
Nasceu na Escócia em 1266 e cedo ingressou na Ordem franciscana. Realizou os seus
estudos em Cambridge, Oxford e Paris, sendo posteriormente professor nestas duas últimas
universidades. Morreu em plena maturidade, com a idade de quarenta e dois anos (1308).
Apesar disso, Escoto deixou uma produção notável, em extensão e qualidade. A subtileza das
análises valeu-lhe o cognome de «Doutor Subtil». O seu sistema metafísico – recolhido e
conservado na tradição escolástica escotista – é o último dos grandes sistemas filosóficos
medievais. Entre as suas obras destacam-se: Ordinatio (Opus oxoniense) e Reportata
parisiensia (Opus parisiense).

Guilherme de Ockham
Nascido na última década do século XIII, ingressou muito jovem na Ordem franciscana.
Estudou em Oxford, onde foi Leitor da Bíblia e das Sentenças de Pedro Lombardo. Algumas das
suas doutrinas foram denunciadas em 1323, em Avinhão, aonde se deslocou o próprio Ockham
no ano seguinte, para se defender da acusação. O processo durou vários anos e não chegou a
concluir-se, quiçá porque Ockham fugiu de Avinhão em 1328, unindo-se aos franciscanos
«espirituais» na interpretação da pobreza evangélica, o que implicava uma crítica radical ao
Pontificado. Excomungado nesse mesmo ano pelo Papa, Ockham viu-se envolvido na luta entre
o Imperador e o Papa, tomando partido activo pelo Imperador Luís da Baviera. Quando este
morreu em 1347, Ockham procurou reconciliar-se com a Igreja, embora não saibamos se a
reconciliação se chegou a produzir formalmente. Morreu dois anos mais tarde (1349) em
Munique.
Além dos seus escritos polémicos contra o Papa, Ockham escreveu numerosas obras
teológicas e filosóficas. Merecem destaque o Comentário às sentenças e a Summa totius
logicae.

b) A primazia da vontade e a liberdade


Apesar de rejeitar algumas teses características da corrente augustiniana,
Escoto mantém algumas das suas afirmações fundamentais, por exemplo, o
pluralismo das formas e a primazia da vontade sobre o entendimento. Esta
última tese baseia-se numa análise da vontade que terá uma importância
decisiva no pensamento do século XIV. Para compreender o pensamento de
Escoto sobre este assunto será conveniente, uma vez mais, o recurso a uma
comparação entre este e Tomás de Aquino.
Aquino estabelece que a vontade se caracteriza por ser uma espécie de
apetite ou tendência: enquanto potência natural, a vontade tende
necessariamente ao bem e à felicidade; enquanto vontade, tende livremente
aos bens particulares. Esta análise é rejeitada por Escoto. Onde não há
liberdade, não há vontade em sentido estrito; portanto, o que Tomás de
Aquino denomina «vontade como potência natural» não é, estritamente
falando, vontade. A vontade caracteriza-se por ser livre. A essência da
vontade é a liberdade e, precisamente por isso, a vontade é mais perfeita
do que o entendimento e superior a ele. Com efeito, o entendimento não é
livre para admitir ou não as verdades que capta (por exemplo, o
entendimento não pode discordar de um teorema quando capta a sua
verdade): o entendimento é certamente uma potência natural, a vontade não
o é.
Conhecimento directo, intuitivo, das realidades individuais por parte do
entendimento; primazia da vontade sobre o entendimento assente na
liberdade como essência daquela: eis as duas afirmações em que Escoto
se pode considerar um precursor de Ockham; o terceiro ponto em que
Escoto se antecipa a Ockham é o respeitante aos limites da razão e à sua
relação com a fé. A isso nos referiremos mais adiante.

1.1.2. O criticismo de Ockham

É inegável que com Escoto aparece uma atitude abertamente crítica


relativamente às grandes sínteses filosóficas vigentes no século XIII
(augustinismo, aristotelismo, tomismo): a sua posição ante as duas questões
a que nos referimos em epígrafe anterior é disso prova evidente. No
entanto, a atitude crítica não exclui em Escoto uma vocação sistemática.
Escoto critica as sínteses filosóficas dominantes na época, mas ele próprio
constitui uma síntese, um sistema (em cuja exposição não entraremos). A
atitude de Ockham, cuja actividade intelectual enche a primeira metade do
século XIV, é radicalmente diferente. Ockham é antes de mais um crítico
demolidor de todos os sistemas filosóficos precedentes, do aristotelismo, do
augustinismo, dos sistemas tomista e escotista.
O criticismo, uma nova maneira impulsionada por Ockham de
praticar a filosofia, é a atitude característica e generalizada no século XIV.
O seu florescimento sem dúvida foi favorecido pelas circunstâncias
sociopolíticas a que aludimos na introdução do presente capítulo. Importa
porém ter em consideração outras razões estritamente filosóficas que
estimularam o seu desenvolvimento. O criticismo do século XIV é, em
primeiro lugar, uma consequência da nova visão da filosofia surgida no
século XIII com base no descobrimento do aristotelismo. Depois de séculos
de augustinismo, entrara-se pela primeira vez em contacto com um sistema
que nada devia ao cristianismo nem à Bíblia, um sistema que não dependia
de forma alguma da revelação judaico-cristã, mas que aparece como
resultado da razão, funcionando por si mesma e à margem da fé. Esta
circunstância favoreceu amplamente a ideia de que a razão e a Filosofia são
autónomas.
A concepção da Filosofia como disciplina autónoma favoreceu por seu
turno o criticismo: a Filosofia é essencialmente crítica, revê os seus
pressupostos e conclusões; e esta tarefa crítica poderá ser bloqueada a partir
de fora da filosofia (por submissão da razão a outras instâncias estranhas),
mas não pode ser bloqueada a partir de dentro dela própria, ou seja, de
acordo com as exigências que a sua própria natureza impõe.
Além disso, a atitude crítica ante os sistemas filosóficos do século XIII
não recebeu impulso apenas da Filosofia, mas ainda, e em segundo lugar, da
própria fé cristã, a qual, em muitos casos, viu nestes grandes sistemas um
perigoso inimigo. Efectivamente, eram muitos os que pensavam que a
assimilação do aristotelismo e do averroísmo contaminava perigosamente a
fé com excrescências estranhas de origem grega e muçulmana. Esta atitude
de desconfiança perante a filosofia – e, afinal de contas, da razão –
favoreceu o florescimento da mística, como alternativa contra o
racionalismo filosófico. O século XIV caracteriza-se pela preeminência do
criticismo no campo filosófico e do misticismo no campo religioso.

1.2. Limites da razão e âmbito da fé

O problema das relações existentes entre a razão e a fé – cuja eclosão


teve lugar no século XIII com base na aparição em cena do aristotelismo –
continua a ser uma questão fundamental no pensamento do século XIV. O
averroísmo defendera que razão e fé podem proporcionar informações
diferentes mas também contraditórias acerca dos mesmos conteúdos
(imortalidade pessoal, origem do mundo).

SERÁ POSSÍVEL PROVAR DE FORMA RAZOÁVEL QUE A


VONTADE ORIGINA LIVREMENTE OS SEUS ACTOS DE
MODO EFECTIVO?
(…) Nesta questão exporei primeiro o que é que entendo por liberdade
e em segundo lugar debruçar-me-ei sobre a questão.
Quanto ao primeiro, chamo liberdade ao poder pelo qual eu posso,
indiferente e contingentemente, estabelecer coisas distintas, de modo que
posso ou não causar o mesmo efeito sem efectuar mudanças em nada
excepto naquela potência.
(…) Em relação ao segundo, afirmo que a vontade é livre e que
nenhuma razão consegue provar isso demonstrativamente, já que
qualquer razão que pretendesse prová-lo comportaria alguma afirmação
tão ou mais desconhecida do que a própria conclusão. Contudo pode ser
conhecida de modo evidente através da experiência: com efeito, o homem
sabe que por mais que a razão lhe dite algo a vontade humana pode ou
não querer fazê-lo.
Ockham, Quodl. I, questão 16.

Tomás de Aquino recusou que tal situação pudesse realmente produzir-


se: visto que a verdade é única, a razão e a fé não podem sustentar
afirmações incompatíveis. Nos âmbitos em que uma e outra se pronunciam,
os seus pronunciamentos terão de ser forçosamente harmónicos e coerentes.
O compromisso que Tomás de Aquino elaborou entre ambas incluía,
como frisámos no capítulo anterior, a afirmação essencial de que uma e
outra possuem conteúdos comuns: razão e fé delimitam dois conjuntos com
uma zona de intersecção cujos elementos pertencem a ambas. A tese de que
alguns conteúdos são comuns a ambas implica que a razão pode pronunciar-
se sobre certos artigos de fé. Isto supõe evidentemente um risco: que a
razão venha a pronunciar-se contra os artigos da fé, como aconteceu com os
averroístas. No entanto, possui uma vantagem indubitável e de grande
alcance, que a razão não se desvincula da fé, nem a teologia da filosofia;
têm sentido um tratado filosófico de Deus (demonstração de sua existência
e atributos) em harmonia com a teologia revelada; têm sentido uma
antropologia e uma ética filosóficas (imortalidade da alma, lei natural),
concordes com a fé e a moral cristãs (o decálogo).
O pensamento do século XIV elimina esta zona de intersecção entre a
razão e a fé. Se para São Tomás, uma e outra são fontes de informação
diferentes, que em alguns casos proporcionam informações comuns, para
Ockham trata-se de fontes distintas, com distintos conteúdos também. As
proposições que Tomás de Aquino considerava comuns a ambas são agora
declaradas racionalmente indemonstráveis e, portanto, exclusivamente
objecto de fé religiosa. O âmbito do acesso da razão fica deste modo
extremamente reduzido. Este processo limitador do alcance da razão
culmina em Ockham e tem um predecessor em Duns Escoto como já
indicámos.

a) No tocante ao tema de Deus, já Duns Escoto nega que vários atributos


divinos sejam estritamente demonstráveis. A razão pode certamente
demonstrar a existência de Deus, e Escoto formulou provas de indiscutível
interesse e originalidade relativamente à maneira de pôr o problema. Mas
atributos divinos como a omnipotência, a imensidade, a omnipresença, a
justiça, a misericórdia e a providência na sua acepção cristã, não podem ser
demonstrados por procedimentos filosóficos e exclusivamente racionais:
pertencem ao âmbito da fé.
Ockham é mais radical ainda. Não só os atributos mas também a
própria existência de Deus é indemonstrável pela razão. Ockham chega
a esta conclusão a partir da sua maneira peculiar de interpretar a
causalidade, o conhecimento que o homem tem das causas e dos efeitos.
Que os fenómenos possuem causas, é inegável, no entender de Ockham.
Este princípio geral não basta no entanto para determinar a causa em cada
caso. Suponhamos que analisamos a dilatação de um metal. O princípio
geral de que os fenómenos possuem causas garante-nos que tal dilatação
tem uma causa, mas não nos serve para decidir qual seja exactamente a
causa neste caso. Só a observação nos permite saber qual a causa concreta
de cada fenómeno. No nosso exemplo, a observação de que a dilatação se
segue ao calor permite-nos saber que este é a sua causa.
Ora, esta demonstração da causalidade torna impossível a
demonstração da existência de Deus: podemos estar seguros de que há
uma causa primeira da qual provém o Universo, mas, ao carecer da
observação necessária, não podemos concluir definitivamente que tal causa
seja o Deus criador que é objecto da fé cristã. Com suas concepções acerca
da relação entre causas e efeitos e do nosso conhecimento da mesma,
Ockham adianta-se às teorias empiristas modernas e é possível considerá-lo
como um precursor de Hume.

b) O mesmo processo de limitação do alcance da razão observa-se nos


temas respeitantes à antropologia. Duns Escoto afirmara que não são
demonstráveis certos atributos que a antropologia cristã reconhece à alma: é
o caso da espiritualidade e da imortalidade. Como no tema de Deus,
Ockham vai ainda mais longe do que aquele, afirmando que nem sequer a
existência da alma é demonstrável, em sentido estrito, pela razão.

1.3. Voluntarismo

Os preceitos morais têm a mesma sorte que o tema de Deus e o tema da


alma. Tomás de Aquino aceitara que todos os mandamentos do Decálogo
são acessíveis à razão, por serem preceitos da lei natural. Escoto limita a
afirmação de Aquino aos dois primeiros preceitos, isto é, àqueles que
prescrevem as obrigações do homem para com Deus. Para Ockham,
nenhum dos mandamentos é de lei natural: Deus poderia ter criado um
mundo no qual o ódio a Deus não fosse pecado mas virtude.
Esta forma de interpretar a moral do cristianismo é consequência do
voluntarismo teológico defendido por ambos. Para o compreender
adequadamente, será útil recordar o modo como os gregos encaravam o
problema das normas morais. Estas são o resultado da natureza ou então o
resultado de uma convenção. Parte das leis do Decálogo segundo Escoto, e
todas, segundo Ockham, não são naturais, nem imutáveis portanto. São
convencionais. São o resultado de uma convenção, não de uma convenção
humana mas divina: são assim porque Deus o quis, mas Deus podia ter
querido de outra maneira. Se tivesse querido, porque é que Deus não
poderia ter criado um mundo em que o roubo e o adultério fossem
permitidos? Mais ainda, acrescenta Ockham: se tivesse querido porque não
poderia Deus ter criado um mundo em que o ódio a Deus não fosse proibido
mas recomendado?
Com estas considerações, Ockham não pretende certamente combater a
ordem moral estabelecida por Deus: assim foi imposta por Deus e o homem
não pode alterá-la. O que Ockham pretende é sublinhar a omnipotência e a
liberdade divinas. A sua posição é o resultado de levar às últimas
consequências o primeiro artigo do Credo: «Creio em Deus todo-
poderoso». A liberdade divina não está submetida a nenhuma regra ou
necessidade.
O voluntarismo teológico é a aplicação radical ao caso de Deus da tese
que defende que a vontade é superior ao entendimento e que a sua essência
é a liberdade. Esta tese foi já anteriormente analisada ao referirmo-nos a
Duns Escoto.

A ALMA: FÉ E CONHECIMENTO
Se por alma se entender uma forma intelectiva imaterial e
incorruptível, inteiramente presente em qualquer corpo e em qualquer
parte deste, nem o raciocínio nem a experiência nos permitem saber com
segurança se essa forma existe em nós, se a nossa actividade intelectual
pertence a essa substância ou se tal alma é forma do corpo. Não me
preocupam as exposições de Aristóteles acerca disto pois sempre me
pareceu hesitante. Mantemos, no entanto, estas três afirmações
exclusivamente pela fé.
(…) É evidente que isso não pode ser demonstrado, pois a razão que
pretenda prová-lo comportará elementos que suscitarão a dúvida a quem
quer que discorra segundo a razão natural. E também não pode ser
provado pela experiência, já que apenas experienciamos pela intelecção,
volição e outros actos semelhantes. Quem discorrer segundo a razão
apoiada pela experiência, diria que se trata de acções e operações
causadas e recebidas naquela forma, por virtude da qual estabeleceria
assim que o homem se distingue dos seres irracionais. Se bem que, de
acordo com a fé e a verdade, seja a alma intelectiva e forma incorruptível,
no entanto aquele diria que é forma extensa, corruptível e gerável. E não
parece que a experiência permita concluir doutra maneira.
Ockham, Quodl, I, questão 10.

ENTENDIMENTO E VONTADE
41. Mas cada uma destas potências tem em si um modo próprio de
começar: o entendimento manifesta-se na natureza e por isso, quando
comparado com o seu acto, é natureza; no divino, o Filho manifesta-se na
natureza, embora o seu princípio produtivo seja a memória. Pelo
contrário, a vontade tem um modo próprio e livre de causar as coisas.
Quando a vontade se alia ao entendimento (na produção de um artefacto,
por exemplo), diz-se que tudo é produzido livremente e segundo um
propósito ou intenção, porque a intenção é o princípio superior e imediato
da produção extrínseca. Se alguma potência naturalmente activa se alia
algumas vezes com a vontade, a acção que deriva do princípio
naturalmente activo é propriamente natural; usamos tal potência
livremente pois o acto na sua totalidade subjaz à vontade, e assim diz-se
que actuamos livremente de acordo com a potência superior (…).
42. Conclusão: a vontade nunca é um princípio natural, mesmo que a
sua acção possa sofrer a concorrência de algum princípio naturalmente
activo que falasse per se – segundo uns, o objecto; segundo outros, o
entendimento. Ser naturalmente activo e ser livremente activo são
diferenças primeiras do princípio activo, e a vontade – e por isso se
chama vontade – é um princípio livremente activo. Por conseguinte, a
vontade não pode ser naturalmente activa, mais do que a natureza –
enquanto princípio diferente da vontade – pode ser livremente activa.
43. Então questiona-se: se a acção da vontade é mais determinada pelo
facto de estar necessitada e não tanto pela natureza, a que se deve então o
facto de a vontade não actuar naturalmente, embora actue
necessariamente?
Resposta: todo o agente natural é absolutamente primeiro, ou é
posterior por algo anterior naturalmente determinado para a acção. Deste
modo, a vontade nunca poderá ser o agente absolutamente primeiro.
Embora também não possa ser determinada naturalmente por um agente
superior, a vontade é de tal maneira activa que se determina a si mesma à
acção (quando quer algo necessariamente, por exemplo A); todavia, o seu
querer não é causado naturalmente pelo que causa a vontade – embora o
causasse naturalmente –, mas, uma vez accionado o acto primeiro pelo
que é causado, a vontade, abandonada a si mesma, determina-se a tal
querer, possuindo ou não contingentemente um dado querer.
Duns Escoto, Questões Quodlibéticas, questão 16, § 3.
2. GUILHERME DE OCKHAM E A CRISE DA
TRADIÇÃO FILOSÓFICA

2.1. Princípio de individuação e nominalismo

2.1.1. As essências e individuação

Ao expormos no capítulo anterior a teoria do conhecimento, frisámos


que Tomás de Aquino reconhece ao universal uma dupla preeminência
sobre os indivíduos.

a) Preeminência no âmbito do conhecimento intelectual, enquanto o


entendimento só conhece directamente o universal e indirectamente os
indivíduos graças a uma espécie de reflexão sobre as imagens particulares;

b) Certa primazia no âmbito da realidade. Esta primazia no âmbito da


realidade não significa que São Tomás admitisse a existência de essências
universais (o homem, a árvore, etc.) como fizera Platão. Tomás de Aquino
nunca admitiu este exagero platónico. Mas mesmo que aos nossos conceitos
universais não correspondam na realidade essências universais, como as
ideias de Platão, a universalidade do conceito tem fundamento na realidade:
a essência ou natureza, que é a mesma em todos os indivíduos a que o
conceito se aplica; por exemplo, ao conceito universal de homem
corresponde na realidade a essência humana, a qual se encontra
multiplicada nos indivíduos humanos e é a mesma em todos eles.
Admitir que a essência humana se encontra multiplicada nos indivíduos
humanos levava a considerar o problema do princípio da individuação: o
que é que leva a essência humana, ou qualquer essência, a individualizar-se
e a realizar-se em diferentes indivíduos? Tomás de Aquino, como vimos,
respondia que aquilo que individualiza a essência, o seu princípio de
individuação, é a matéria concreta.
Duns Escoto admite também a existência deste problema e considera
que o princípio de individuação é uma formalidade última que denomina
«estidade» isto é, formalidade que faz que isto seja isto, que este indivíduo
concreto seja este indivíduo concreto e não outro.
Ockham rejeita o problema do princípio de individuação por o
considerar falso, um pseudo-problema que tem origem numa confusão.
Com efeito, o problema do princípio de individuação provém da
consideração de que a mesma essência se encontra multiplicada nos
diferentes indivíduos: a essência de Sócrates é a mesma que a de Platão,
que a de todos e de cada um dos homens. No entender de Ockham, isto é
um erro monumental: a essência de Sócrates é somente a essência de
Sócrates e não se distingue em absoluto do próprio Sócrates, a essência de
Platão é somente a essência de Platão, etc. Não há pois uma essência
multiplicada em diferentes indivíduos, mas há tantas essências como
indivíduos. E como a essência de Sócrates se identifica totalmente com o
próprio Sócrates e como em geral a essência de um indivíduo se identifica
totalmente com o indivíduo em questão, a pergunta «a essência é individual
em virtude de quê? é como perguntar um indivíduo é um indivíduo em
virtude de quê?» e esta pergunta é ociosa. Não há pois princípio de
individuação: há indivíduos, os indivíduos são indivíduos e é tudo.

CONTRA O PRINCÍPIO DE INDIVIDUAÇÃO


(…) Em primeiro lugar demonstrarei esta conclusão: que qualquer
coisa é singular por si mesma. E argumento do seguinte modo: a
singularidade convém de modo imediato àqueles do qual é singularidade;
logo, não pode convir-lhe por algo distinto; logo, se algo é singular, é
singular por si mesmo. Além disso, a relação que o universal tem com o
ser universal é a mesma que o singular tem com o ser singular; logo,
assim como o singular não pode tornar-se universal ou comum por algo
que se acrescenta, também o comum não pode tornar-se singular por algo
que se lhe acrescente; logo, o singular é singular por si mesmo e não por
algo acrescentado.
(…) Assim, toda a coisa exterior à mente será extramental por si
mesma. E não é necessário procurar uma causa da individuação, a não ser
causas extrínsecas e intrínsecas quando o indivíduo é composto: com
mais razão se poderia perguntar como é possível que algo seja comum e
universal.
Ockham, I Sent, 9.6, par. 2.

CONTRA OS ARQUÉTIPOS
Esta descrição dos arquétipos é esclarecida por Séneca na Epístola 66
na qual, depois de enumerar as quatro causas de Aristóteles, diz o
seguinte: «a estas acrescenta Platão a causa arquetípica, à qual chama
“ideia”, e que é aquilo que o artífice contempla a fim de fazer aquilo que
pretende (…)». Esta autoridade afirma que as ideias são determinados
arquétipos conhecidos e que quem as conhece pode criar algo real a partir
da sua contemplação.
(…) Mas esta descrição não concorda com a essência divina nem tem
qualquer relação com a razão, mas apenas com a criatura.
A primeira afirmação é evidente, em primeiro lugar porque há muitas
ideias, como todos reconhecem. Mas a essência divina é única e
absolutamente não-multiplicável; logo, não é ideia.
(…) Em terceiro lugar, posso demonstrar que a própria criatura é
ideia, porque a ela correspondem todos os fins da definição proposta.
Com efeito, a criatura é conhecida pelo princípio intelectual activo e
Deus tem isso em consideração para a produzir racionalmente. Por muito
que Deus conheça a sua própria essência, estaria a criar de modo
desconhecido e não racionalmente, se não conhecesse o que vai criar; por
conseguinte, não criará por meio de uma ideia. Logo, considera realmente
a criatura propriamente criável e, considerando-a, pode criá-la.
(…) Muitas consequências decorrem do que fica dito (…). Em
primeiro lugar, as ideias não estão em Deus subjectiva e realmente mas
apenas objectivamente, ou seja, enquanto conhecidas por Ele, já que as
ideias são as próprias coisas criáveis por Deus (…). Em quarto lugar,
daqui resulta que as ideias são primeiramente das coisas individuais e não
das espécies, pois apenas as coisas individuais – e nada mais – são
criáveis na realidade.
Ockham, I Sente., 9.5, par. 35.

2.1.2. Negação das ideias exemplares

Embora à primeira vista não se mostre evidente, a tese ockhamista de


que só há realidades individuais tem uma relação essencial com a tese da
omnipotência e liberdade divinas. Com efeito, o problema do princípio de
individuação tem origem na afirmação da prioridade da essência sobre o
indivíduo. Esta prioridade foi afirmada por Platão através da teoria das
ideias. O pensamento cristão adoptou esta teoria, seguindo a orientação
neoplatónica, como já tivemos ocasião de explicar anteriormente: as ideias
platónicas converteram-se assim para o augustinismo nos arquétipos
existentes na mente divina. Tomás de Aquino matizou certamente a tese
exemplarista (afirmando que as ideias exemplares são na realidade a própria
essência de Deus enquanto participável), mas não a abandonou; o
exemplarismo não pode ser abandonado por ninguém que admita que Deus
é o Criador e que a criação está conforme um plano racional.
É neste ponto que deve situar-se a teoria ockhamista. Ockham pretende
salvaguardar a Omnipotência divina: admitir ideias exemplares implica,
em seu entender, limitar a omnipotência e a liberdade criadora de Deus;
Ockham nega portanto a existência de ideias exemplares que dirijam (e
dirigindo, coarctem) a liberdade criadora de Deus. Negadas as ideias
exemplares, desaparece a primazia das essências relativamente aos
indivíduos em que podiam realizar-se. Negada, finalmente, a supremacia
das essências sobre os indivíduos, desaparece a prioridade do universal e,
com ela, o problema do princípio de individuação.

As críticas de Ockham aos sistemas filosóficos do século XIII


convergem, afinal, numa total recusa de importantes ideias gregas que o
cristianismo havia assimilado: a identidade e comunidade de essência, a
unidade dentro da pluralidade, o permanente como substrato do mutável,
ideias que garantiam aos gregos a racionalidade, a ordem, a permanência
do Universo.
Ockham pensava que a concepção grega da essência e da natureza
anulava ou, pelo menos, punha em perigo a liberdade e omnipotência
divinas. Eliminadas as ideias exemplares, eliminavam-se as essências
como algo de consistente e imutável. Com estas ficava eliminada a
essência humana e, portanto, o fundamento possível de uma lei moral e
natural.
Em oposição à physis concebida pelos gregos, Ockham concebe um
Universo onde só há indivíduos, um Universo cuja ordem é gratuita e é
de facto assim, mas poderia ter sido radicalmente diferente, se Deus
tivesse decidido de outro modo. A ordem do Universo é puramente
fáctica, contingente.

2.1.3. O nominalismo

A teoria platónica segundo a qual aos nossos conceitos universais


correspondem na realidade essências subsistentes em si mesmas, costuma
designar-se realismo exagerado. A teoria tomista segundo a qual os nossos
conceitos universais possuem certo fundamento na realidade, a saber, a
identidade de essência dos diferentes indivíduos, costuma chamar-se
realismo moderado. A teoria ockhamista segundo a qual os nossos
conceitos universais carecem inclusivamente deste fundamento real, já que
na realidade apenas há indivíduos, seres individuais cujas essências são tão
diferentes entre si como eles próprios, costuma designar-se por
nominalismo.
A utilização do termo «nominalismo» para caracterizar a teoria
ockhamista pode dar lugar a uma interpretação errada desta. No sentido
mais estrito, o nominalismo nega os conceitos universais: não existe o
conceito universal de homem mas apenas a palavra «homem», que se utiliza
para nomear o conjunto dos homens. Portanto, apenas existem homens
universais. Ockham não é nominalista neste sentido estrito e radical.
Ockham admite os conceitos universais, embora afirme que carecem do
fundamento extramental que a teoria realista supõe.
Evidentemente, pode fazer-se ao nominalismo de Ockham a seguinte
pergunta: como é que o conceito de homem é universal e aplicável a todos
os homens se entre eles não há identidade de essência? A esta pergunta
responderam os nominalistas do século XIV – e de outros séculos: o
conceito de homem é aplicável a todos os homens, não porque os homens
possuam a mesma essência, mas porque as diferentes essências dos
diferentes indivíduos se parecem entre si. Sócrates parece-se com Platão em
múltiplos aspectos e daí que possamos dizer «Sócrates é homem», «Platão é
homem»; também se parecem, embora menos, com o cavalo de Calígula e,
por isso podemos dizer «Sócrates é animal», «o cavalo de Calígula é
animal». O único fundamento dos conceitos universais é, pois, a
semelhança entre os indivíduos.

2.2. Conhecimentos intuitivo e abstractivo

2.2.1. Conhecimento dos indivíduos


A rejeição por parte de Ockham da primazia do universal e da
necessidade de um princípio individuante é acompanhada, como é natural,
por uma igual rejeição da teoria tomista do conhecimento. Seguindo a linha
iniciada por Duns Escoto, Ockham afirma que o entendimento conhece
directamente, por intuição, as realidades individuais. Comparando esta
afirmação com a teoria tomista, poderá verificar-se a enorme distância que
os separa. Com Ockham desaparece o complicado rodeio que, segundo São
Tomás, o entendimento deve dar até conhecer o singular: 1) sensação; 2)
imagem; 3) entendimento agente universalizado; 4) entendimento possível
conhecendo o universal; 5) entendimento possível volvendo-se para a
imagem.
Segundo Ockham, nada disto é necessário. Uma realidade individual
(Sócrates, esta árvore, etc.) está aí: os sentidos sentem-na e o entendimento
conhece-a intuitivamente. Isso é tudo, e portanto as coisas passam-se com
esta simplicidade.

OS SIGNOS E AS SUAS CLASSES


Por conseguinte, o signo é triplo: escrito, proferido e concebido (=
conceito). O termo escrito é uma parte da proposição gravada sobre algo
corpóreo, a qual é vista – ou pode ser vista – pelo olho corporal. O termo
proferido é uma parte da proposição oralmente proferida e por natureza
está apta para ser ouvida pelo ouvido corporal. O termo concebido
(conceito) é uma intenção ou estado da alma que significa – ou co-
significa – naturalmente algo e que, por natureza, está apta para formar
parte de uma proposição mental e substituir nela (suppositio) aquilo que
significa.
(...) Mas há diferenças entre estes termos. Uma delas é que o conceito
ou estado da alma significa naturalmente aquilo que significa, ao passo
que o termo proferido e escrito não significam nada a não ser por
convenção voluntária. Daqui decorre outra diferença, a saber: que os
termos proferido e escrito podem mudar de significado caprichosamente,
ao passo que o concebido (conceito) não muda de significado por
capricho.
Ockham, Summa Totius Logicae, 9,1.

O conhecimento intuitivo é em primeiro lugar um conhecimento


directo, imediato: entre a captação de um objecto pelos sentidos e o seu
conhecimento pelo entendimento não existem mecanismos ou operações
intermédias; é, em segundo lugar, conhecimento de algo que está presente;
em terceiro lugar, é um tipo de conhecimento cuja validade é garantida
pela coisa conhecida, já que a sua causa não é senão a própria coisa
conhecida; em quarto lugar, este conhecimento intelectual intuitivo permite
ao entendimento afirmar a existência da coisa conhecida; por fim,
estende-se às relações existentes entre coisas captadas, desta forma: se na
nossa presença estiver um homem branco (Sócrates, no exemplo utilizado
por Ockham), o entendimento capta imediatamente a presença de Sócrates,
a existência da brancura e que esta é uma qualidade daquele, de modo que o
entendimento pode afirmar que Sócrates é branco.
A intuição intelectual é, pois, o fundamento do nosso conhecimento das
realidades individuais e das conexões existentes entre elas.

2.2.2. Os conceitos universais

Além do conhecimento intuitivo das realidades individuais, o


entendimento possui um conhecimento abstractivo. Evidentemente,
formulamos juízos gerais e universais acerca de todos os indivíduos
pertencentes a uma classe («todos os homens são mortais», etc.), o que
pressupõe a posse de conceitos universais. A respeito da sua formulação,
Ockham limita-se a afirmar que se formam espontaneamente no
entendimento, sem se aventurar a dar explicação sobre o processo da sua
formação.
Quanto à sua natureza, os conceitos universais, segundo Ockham, são
signos de carácter linguístico. Na sua análise dos signos linguísticos,
Ockham distingue três classes ou tipos: os signos linguísticos proferidos
(palavras faladas), os escritos (palavras escritas) e os concebidos
mentalmente (conceitos, palavras mentais).
Estes três tipos de signos possuem uma característica comum em virtude
da qual são precisamente signos linguísticos; tanto as palavras (orais e
escritas) como os conceitos podem fazer as vezes das coisas que significam.
Com efeito, se dizemos ou pensamos que os homens são mamíferos, não
pensamos nem dizemos que o termo ou conceito «homem» seja mamífero,
mas que o são os indivíduos significados. O termo – ou conceito –
«homem» faz na proposição as vezes dos indivíduos por ele significado,
substitui os indivíduos no discurso. (Esta característica própria dos signos
linguísticos é denominada por Ockham suposição: os signos têm a
capacidade de supor, de ocupar o lugar das coisas no discurso.)
Tal como as palavras escritas ou faladas os conceitos são signos
linguísticos. Os conceitos, porém distinguem-se dos termos falados e
escritos num traço fundamental: as palavras são signos convencionais, ao
passo que os conceitos são signos naturais; a palavra «homem» significa
os indivíduos humanos em virtude de uma convenção: o mesmo significado
pode então ser expresso por meio de qualquer outra palavra («homo»,
«man», «homme», etc.). O conceito de homem, ao contrário, não é algo
arbitrariamente estabelecido, não pode ser substituído por outro conceito
para significar os indivíduos humanos: neste aspecto, os conceitos parecem-
se mais com certos signos não linguísticos, como o pranto (signo natural de
dor) ou o riso (signo natural de alegria).
O entendimento possui pois uma estrutura linguística que reage perante
as coisas produzindo espontaneamente os conceitos como signos das
mesmas. A base linguística da filosofia de Ockham é um dos seus traços
mais característicos. Com razão P. Vignaux definiu o nominalismo como
«uma ontologia da coisa, na qual convergem uma lógica da linguagem e
«uma teologia da omnipotência». É uma ontologia da coisa, já que se trata
de uma ontologia da realidade cujo centro são os indivíduos e as coisas
individuais; é uma lógica da linguagem, já que a interpretação do
conhecimento se faz a partir das estruturas da linguagem; é, finalmente,
uma teologia da omnipotência, já que a sua afirmação é o princípio supremo
da filosofia ockhamista.

2.3. O princípio de economia

Juntamente com as afirmações da omnipotência divina e da primazia da


realidade individual e o seu conhecimento intuitivo pelo entendimento, o
terceiro grande princípio da filosofia nominalista costuma chamar-se
princípio de economia e pode definir-se assim: não devem multiplicar-se
os entes sem necessidade, isto é, não deve suportar-se a existência de mais
entidades do que as estritamente necessárias para explicar os factos. Esta
regra de economia – que posteriormente se converterá em regra
fundamental para a ciência moderna – constitui um princípio típico do
nominalismo do século XIV.
Sobre este princípio, o menos que pode dizer-se é que é muito sensato e
que muito dificilmente seria negado por qualquer pessoa razoável. Filósofos
como Platão nunca o formularam deste modo, mas não é difícil supor que o
aceitavam implicitamente: quando Platão supôs a existência de Ideias
universais, não o fez certamente com o estúpido fim de se opor a este
princípio, mas porque pensava ser necessário supor a sua existência.

CONTRA A DISTINÇÃO ENTRE ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA


E já que abordámos o tema do ser-existência, considere-se uma breve
digressão sobre a relação entre o ser-existência e a coisa: e isto no caso de
o ser da coisa e a essência da coisa serem dois, diferentes um do outro
extramentalmente.
Na minha opinião não são dois e o existir não significa nada distinto
da própria coisa. Porque, nesse caso, seria uma substância ou um acidente
dela. Mas não pode ser um acidente dado que então o ser-existir do
homem seria quantidade ou qualidade, o que é manifestamente falso,
como se pode demonstrar indutivamente. E também não se pode dizer
que seja uma substância, já que qualquer substância é matéria ou forma,
ou um composto de ambas, ou é uma substância abstracta: com efeito,
não se pode dizer que o ser seja uma destas coisas, e isto supondo que o
ser fosse uma coisa distinta da entidade da coisa.
Ockham, Summa Totius Logicae III, c. 27.

E o que dizemos de Platão – a quem agora nos referimos só porque


aparentemente foi o filósofo que violou este princípio de modo mais
escandaloso – é válido para qualquer outro filósofo. O mais importante não
está, pois, na formulação do princípio mas em determinar que entidades
são necessárias e quais são supérfluas para explicar os factos.
As explicações até ao momento fornecidas permitem-nos compreender
que entidades Ockham considerava necessárias como regra geral. No
âmbito da teologia, Ockham considera necessárias somente as entidades
que sejam exigidas pelos artigos da fé. No âmbito estritamente filosófico,
considera que apenas devem aceitar-se: a) as entidades de que temos
conhecimento intuitivo; b) as realidades cuja existência se deduza
necessariamente do que conhecemos de modo intuitivo. Especificado deste
modo, o princípio de economia (também denominado metaforicamente
«navalha de Ockham») serviu ao nominalismo para eliminar múltiplas
entidades e distinções aceites por Tomás de Aquino e Duns Escoto.
Tomemos como exemplo o princípio de individuação. Obviamente, a
afirmação de que tal princípio existe não é exigida pelos artigos da fé (estes
também não exigem, no entender de Ockham, a existência de ideias
exemplares na mente divina; excluem-na mesmo). Teremos por acaso um
conhecimento intuitivo do princípio de individuação? Não, com certeza, já
que o que conhecemos são indivíduos (conhecemos Sócrates, não a sua
essência, por um lado; e aquilo que faz com que Sócrates seja um indivíduo,
por outro). Deduz-se então necessariamente do que intuitivamente
conhecemos? Também não, segundo Ockham, visto que os indivíduos estão
aí e são por si mesmos. Aplicando a mesma regra e raciocínio semelhante,
Ockham elimina, entre outras coisas, a distinção entre entendimento activo
e entendimento passivo, entre existência e essência, entre substância e
acidentes.

2.4. O nominalismo e a ciência

Ockham não foi um cientista que tivesse pessoalmente contribuído para


o progresso da ciência. No entanto, as suas ideias impulsionaram a
investigação empírica. De facto, os cientistas do século XIV estão ligados
ao movimento nominalista. O impulso dado por Ockham à investigação
científica provém, em primeiro lugar, da sua concepção da ordem do
Universo como algo meramente fáctico e contingente: visto que as leis que
regem o comportamento dos fenómenos são de facto assim, mas poderiam
ter sido de qualquer outro modo, é inútil pretender descobri-las por dedução
a partir de princípios gerais; a única forma de as conhecer será a observação
atenta dos factos.
A esta mesma conclusão conduz a concepção ockhamista da
causalidade: as causas dos factos só podem ser determinadas com certeza
mediante a observação. A observação empírica foi, finalmente, favorecida
pela preeminência que o nominalismo concedeu ao conhecimento do
singular e do individual.
3. AS CONTRIBUIÇÕES FÍSICAS DOS
CIENTISTAS DO SÉCULO XIV

A atitude crítica que os filósofos do século XIV adoptaram perante as


teorias e sistemas anteriores (especificamente, perante o seu substrato
grego, como vimos), manifesta-se de modo singular na crítica à física de
Aristóteles. A concepção aristotélica do Universo havia sido aceite
praticamente de modo universal. Todavia, apesar de não se afastarem do
esquema geral do Universo tal como Aristóteles o concebera (geocentrismo,
conjunto de esferas concêntricas cujo centro é ocupado pela Terra, etc.), os
físicos do século XIV rejeitaram alguns aspectos da explicação aristotélica
do movimento.

3.1. O movimento segundo Aristóteles

Como mais atrás explicámos a definição aristotélica do movimento


(como passagem da potência ao acto) refere-se a todo o tipo de
movimento ou mudança (substancial ou acidental), e, portanto, também ao
movimento local. A partir da própria definição do movimento e da primazia
do acto sobre a potência, impunha-se o princípio de que tudo o que se
move é movido por outro, por um agente que possui em acto a perfeição
ou qualidade possuída só em potência por aquilo que se move. Cingindo-
nos agora ao movimento local, este princípio tinha as seguintes implicações
na física de Aristóteles:
a) Visto que tudo o que se move é movido por outro, se cessar a acção
da causa motriz, cessará também o movimento. A continuação do
movimento exige a acção constante de uma causa motriz ou motor. Por
outras palavras, a aplicação de uma força constante a um móbil produzirá
neste um movimento uniforme. (A física mostrou já que esta afirmação
aristotélica é falsa: uma força constante aplicada a um móbil não produz
neste um movimento uniforme mas uniformemente acelerado.)

b) Em segundo lugar, e visto que tudo o que sem move é movido por
outro, a causa motriz ou motor que produz o movimento no móbil há-de
ser realmente distinta do móbil e do movimento.

c) Por último, o motor deve estar em contacto com o móbil enquanto


dura o movimento.

Estas três afirmações tornavam realmente difícil a explicação dos


movimentos de projecção, isto é, os movimentos em que a causa motriz (a
mão ou a funda que lançam a pedra) não permanece unida ao móbil durante
todo o trajecto. A pedra continua a mover-se uma vez lançada. A
continuação do movimento exige, como frisámos, a acção constante de uma
força motriz distinta do móbil e em contacto com este. Qual é a causa em
tais casos? Aristóteles supôs que nestes casos a causa motriz seria o ar
movido pela causa projectora, ar que continua movendo a pedra ao longo da
sua trajectória.

OS PROJÉCTEIS NA FÍSICA ARISTOTÉLICA


Quanto aos corpos que são transportados, será conveniente ocuparmo-
nos em primeiro lugar de uma determinada aporia. Se tudo o que se move
é movido por algo, como é possível que certos corpos – que não se
movem por si próprios – se movam de modo contínuo sem estar em
contacto com aquilo que os move? E o que se passa, por exemplo, com os
projécteis. Além disso, se dizemos que o motor move conjuntamente o
corpo em questão e algum outro corpo – por exemplo, o ar – e que este,
ao ser movido, por sua vez se move, revela-se igualmente impossível que
este continue a mover-se se o motor primeiro não está em contacto com
ele para o mover (...).
Por conseguinte, há que estabelecer que o primeiro motor faz com que
o ar ou a água (ou qualquer outro corpo que se mova e seja movido
naturalmente) sejam capazes de se mover. Esse corpo move-se e é
movido ao mesmo tempo, mas cessa de ser movido quando o motor cessa
de movê-lo, embora continue a mover-se. Deste modo, uma coisa move-
se quando está em contacto com outra, e assim sucessivamente.
Aristóteles, Física VIII, 10, 226b 27-67 a 12

3.2. A teoria do impetus

A explicação aristotélica do movimento dos projécteis é pouco


convincente e foi de facto criticada já na Antiguidade. Partilhando estas
críticas, os nominalistas de Paris – entre os quais se destaca João Buridano
– abandonaram a explicação aristotélica, considerando que não é necessário
que a causa motriz seja exterior ao móbil. Segundo Buridano, o movimento
do projéctil continua porque a causa motriz (a mão) imprime ao móbil um
impulso ou ímpeto (impetus) que por sua vez actua como causa, mantendo o
projéctil em movimento.
A importância histórica desta teoria nominalista é notável. Galileu
aceitou-a nas suas obras de juventude. Em geral, significa o primeiro
confronto claro, embora apenas parcelar, com a física de Aristóteles, e neste
sentido constitui um primeiro passo na direcção da ciência moderna.
Não se deve porém exagerar a sua importância, como frequentemente se
faz. Muitas vezes se diz, exageradamente, que na teoria do impetus está
implícito o princípio de inércia. Isto seria assim se os físicos do século
XIV tivessem afirmado que a causa motriz exterior (a mão) imprime ao
móbil um certo movimento que continua por si próprio. Mas não é isso o
que na realidade afirmam. O que afirmam é que a causa exterior imprime ao
móbil, não um movimento, mas um impetus que por seu turno actua como
causa do movimento. Renunciam à afirmação, ao axioma, de que a causa
motriz deve ser exterior ao móbil, mas continuam a manter a necessidade de
uma causa motriz que actue constantemente enquanto durar o movimento:
essa causa é o impetus. Para que o princípio de inércia possa ser formulado
é necessário negar o princípio de que tudo o que se move é movido por
outro e, com ele, negar a necessidade de uma acção constante sobre o móbil
enquanto dure o movimento. Isso não o negaram os físicos do século XIV.
As contribuições dos físicos deste século não se limitaram à teoria do
impetus, mas chegaram mesmo a efectuar análises – em alguns casos
surpreendentes – sobre o movimento uniformemente acelerado, tanto do
ponto de vista do seu cálculo (Swineshead), como do ponto de vista da sua
representação (Nicolau de Oresmo). A carência de um instrumento
matemático adequado foi a causa de que os seus progressos tivessem sido
limitados.

O IMPETUS
Conclui-se portanto que quando um motor move um corpo lhe
imprime um certo impetus, uma força capaz de o mover na direcção em
que o motor a lançou, seja para cima, para baixo, para o lado ou
circularmente. Quanto mais rapidamente o motor mover o corpo, mais
poderoso será o impetus que lhe é imprimido. A pedra é movida por este
impetus quando a mão já não a move mais; mas este impetus enfraquece
continuamente por causa da resistência do ar e da gravidade da pedra, que
a faz mover-se numa direcção oposta àquela para a qual o impetus tende a
movê-la. Assim, o movimento da pedra tornar-se-á continuamente mais
lento, enfraquecendo ou desaparecendo, até que a gravidade da pedra
prevalece e a faz mover-se para baixo, para o seu lugar natural.
Parece-me que esta causa explica também a razão pela qual a queda
natural dos corpos pesados se acelera continuamente. No início da queda,
só a gravidade movia o corpo: este caía assim mais lentamente; mas, ao
mover-se, esta gravidade imprimiu ao corpo um ímpeto que o faz mover
ao mesmo tempo que a gravidade. O movimento torna-se então mais
rápido, e do mesmo modo o ímpeto toma-se mais intenso. Torna-se pois
evidente que o movimento se acelerará continuamente.
Buridano, Questiones super VIII livros Phys, q.12.

Ramón Llull (Raimundo Lúlio)


Este poeta, místico, missionário e filósofo de personalidade singular
nasceu em Maiorca em 1235 e morreu em África (provavelmente em
Tunes) em 1316, com 81 anos. Escreveu muitas das suas obras em catalão
(são famosas as suas novelas Blanquerna e Félix), contribuindo de modo
relevante para a fixação e evolução literária desta língua.
Lúlio teve uma formação cortesã e cavalheiresca e viveu profundas
experiências místicas que decidiram a sua vocação missionária e a
orientação do seu pensamento e obra. A primeira destas experiências
ocorreu quando tinha trinta anos, levando-o a terras muçulmanas com o
propósito de converter aquelas gentes ao cristianismo. Anos mais tarde, por
volta dos seus cinquenta anos, teve uma visão mística que, de acordo com o
seu relato, lhe permitiu contemplar todo o Universo reflectindo os atributos
divinos. Esta visão, de tons inconfundivelmente neoplatónico-augustinianos
(como o revela a importância da luz e dos seus reflexos) está de acordo com
a orientação mística e especulativa do seu pensamento.
Embora a sua filosofia revele traços vigorosamente originais, podemos
considerar que o Lúlio se insere na corrente augustiniana, que na Idade
Média era fundamentalmente protagonizada por franciscanos. Em
concordância com o espírito desta tradição, opôs-se à teoria averroísta das
duas verdades, que separava a verdade «teológica» da verdade
«filosófica». Por oposição ao averroísmo, afirmou energicamente que os
mistérios da religião cristã (as verdades da fé) podem ser conhecidos e
demonstrados racionalmente. A esta tarefa dedicou a sua obra mais
significativa do ponto de vista filosófico, intitulada Ars Magna, com os
tratados «A Árvore da Ciência» (Arbor Scientiae) e «O Livro da Ascensão
e Queda da razão» (Liber de Ascensu et Descensu Intellectus).
Para mostrar a concordância entre a teologia e a filosofia e demonstrar
as verdades da fé, Lúlio concebeu um sistema lógico-metafísico audaz e
complicado: estabeleceu certos princípios (vinculados a conceitos
«primeiros», uns de carácter metafísico e outros de carácter lógico) e certas
regras de combinação mediante as quais seria possível alcançar todas as
verdades acessíveis à razão humana.
SEGUNDA PARTE
DO RENASCIMENTO À IDADE
MODERNA

Ao longo da primeira parte, tivemos oportunidade de comprovar como o


problema fundamental do pensamento da Idade Média, especialmente do
século XIII, se resume no problema das relações entre a razão e a fé. Este
problema e as tensões por ele geradas são consequência do confronto entre
a concepção radicalmente cristã da vida que impera na Idade Média e o
processo de expansão cultural e transformação sociopolítica que se produz a
partir do século XIII.
O pensamento moderno institui-se e desenvolve-se em aberto confronto
com a cultura e os ideais da Idade Média. A primeira contestação à
concepção radicalmente religiosa do mundo vigente na Idade Média deu-se
com o humanismo renascentista, com a sua visão antropocêntrica e
naturalista do homem e do Universo. O humanismo renascentista regressa
aos grandes filósofos gregos, mas a forma de os ler e interpretar não se põe
ao serviço da fé religiosa. Os platónicos renascentistas já não são como o
foi Santo Agostinho, e os aristotélicos do Renascimento também não o são
como Tomás de Aquino.
Juntamente com o humanismo renascentista e de forma mais decisiva
ainda do que este, o desenvolvimento da ciência acabou por arruinar os
sistemas filosóficos medievais, fornecendo uma nova imagem
(heliocêntrica, mecanicista) do Universo. A descoberta renascentista dos
grandes científicos gregos (especialmente o pitagorismo e Arquimedes),
juntamente com as necessidades de tipo técnico-prático (estudos de
balística, etc.), levaram ao abandono da física aristotélica (já muito criticada
desde o século XIV) e da imagem geocêntrica do Universo, esférico e
finito. Copérnico, primeiro; Galileu e Kepler depois, e, por último, Newton,
trouxeram uma nova ciência, uma nova metodologia científica (na qual a
matemática ocupa um lugar fundamental), rejeitando definitivamente ideias
científicas rudimentares que haviam prevalecido durante séculos.
Com o abandono da ciência e da filosofia medievais, o pensamento
trouxe a afirmação radical da autonomia da razão. A razão constitui-se em
princípio supremo, não submetido a qualquer instância alheia a ela própria
(tradição, fé, etc.), a partir do qual se fundamenta o conhecimento e se
pretende responder às questões filosóficas supremas acerca do homem, da
sociedade e da história. É certo que a análise da razão levada a cabo no
período que vai de Descartes (primeiro filósofo da modernidade) a Hegel
(criador do último grande sistema especulativo) não leva às mesmas
conclusões. O conceito de razão – a forma como esta se constitui como
princípio e o alcance da sua principalidade – não é igual no racionalismo,
no empirismo, em Kant e no idealismo absoluto de Hegel, como teremos
ocasião de comprovar amplamente.
Ora, o facto de o pensamento moderno se apresentar – em todos os
autores e escolas – como uma análise da razão não deve conduzir à
interpretação unilateral da filosofia moderna como uma filosofia exclusiva
ou preferencialmente interessada em questões gnosiológicas. Já frisámos
anteriormente que a análise da razão é levada a cabo para fundamentar nela
e a partir dela a ciência e para responder, em última análise, às solicitações
e problemas do homem, da sociedade e da história, à procura de uma
ordenação racional da vida e da sociedade. Isto está patente em todos os
movimentos filosóficos modernos (e sobre isso insistiremos em caso na
nossa exposição) e manifesta-se de modo culminante no século XVIII, no
iluminismo.
QUADRO SINCRÓNICO
7. O RENASCIMENTO E A ORIGEM DA
IDADE MODERNA

INTRODUÇÃO

Com este capítulo – dedicado ao Renascimento – iniciamos o estudo da


modernidade. Do ponto de vista da história do pensamento filosófico e
científico, o Renascimento pode caracterizar-se como um período de
transição entre a filosofia medieval e a filosofia moderna.
São três as forças culturais mais significativas que operam durante o
período renascentista: o humanismo, a reforma protestante e o avanço
ininterrupto da ciência. Destas três forças, a que mais profundamente
influirá no advento da modernidade é sem dúvida a ciência. O progresso
científico nesta época viu-se impulsionado fundamentalmente por dois
factores: pelas necessidades de tipo técnico (armamento, navegação, etc.) e
pela descoberta dos textos dos científicos gregos, especialmente de
Arquimedes e do pitagorismo. O regresso aos clássicos – característica do
Renascimento nas suas diversas manifestações culturais – influenciou
positivamente a configuração da ciência moderna, cujo triunfo definitivo
terá lugar no século XVII.
No campo da filosofia, o período renascentista produziu múltiplas
individualidades e perspectivas que se tornam difíceis de classificar em
linhas coerentes de pensamento. Nisto se distingue o Renascimento, tanto
da Idade Média (em que as correntes filosóficas são poucas, vigorosas e
perfeitamente definidas) como da Idade Moderna. Na nossa exposição
ocupar-nos-emos das correntes que restauram os sistemas filosóficos gregos
numa perspectiva marcadamente naturalista e antropocêntrica, dos filósofos
em cujo sistema a ideia de infinitude desempenha um papel fundamental
(Cusa e Giordano Bruno) e de Francis Bacon, o mais significativo
representante dos ideais renascentistas na Inglaterra.

Este capítulo consta destes quatro partes:


1. O Renascimento e a transformação da sociedade europeia.
2. A tradição grega e o novo antropocentrismo naturalista.
3. O problema da infinitude: Cusa e Giordano Bruno.
4. Francis Bacon e o seu conceito de ciência.
1. O RENASCIMENTO E A
TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE
EUROPEIA

1.1. O Renascimento e a Idade Média

O Renascimento constitui um período difícil de analisar na sua


totalidade. É inegável que se nos limitarmos a certos aspectos da cultura – a
arte, por exemplo – o perfil do Renascimento torna-se claro e
inconfundível: qualquer estudante medianamente informado sabe que o
Renascimento representa um regresso aos gostos e aos cânones clássicos,
com o consequente abandono do estilo e modos medievais. Mas se em vez
de nos fixarmos exclusivamente no Renascimento de cunho italiano e na
sua faceta artística, dirigirmos a nossa atenção a toda a Europa e a todos os
aspectos da sociedade e da cultura, a caracterização do período
renascentista torna-se mais difícil e problemática.

a) Em primeiro lugar, muitos dos fenómenos e acontecimentos com os


quais se costuma caracterizar o período renascentista têm origem na última
fase da Idade Média. Em certos aspectos, o Renascimento não representa
uma ruptura com a época anterior mas a continuação de um processo
que nela já fora iniciado.
Assim, no terreno político, a criação dos Estados nacionais surge como
um resultado da desintegração do Império ocorrida no final da Idade Média;
no âmbito económico, o individualismo e o crescimento da burguesia têm
também início no século XIV; no que se refere à literatura, costuma
reconhecer-se que o humanismo tem os seus predecessores italianos no
século XIV, especialmente Petrarca. No terreno filosófico o estudo directo
e a assimilação dos autores gregos, característica do Renascimento pode
fazer-se retroceder razoavelmente ao século XIII, como vimos no capítulo
quinto ao referirmo-nos ao ingente labor de tradução levado a cabo neste
século e à penetração de Aristóteles no Ocidente. O mesmo se pode,
finalmente, dizer a respeito do desenvolvimento da ciência. Perante este
conjunto de factos, não parece acertado falar de uma ruptura total com a
Idade Média; talvez seja mais acertado falar de desenvolvimento e
expansão de certos fenómenos que tiveram origem nela.

b) Uma segunda dificuldade para a caracterização e análise do período


renascentista provém do facto de certos acontecimentos importantes que
tiveram lugar neste período não exercerem uma influência real e notável na
sociedade europeia senão muitos anos após se terem produzido. Um
exemplo típico é o descobrimento da América, que teve lugar, como é
sabido, em 1492 e cujas repercussões apenas se fizeram sentir bastante
tempo depois.

1.2. Factores de transformação da sociedade europeia

As circunstâncias que acabamos de pôr em relevo dificultam a


caracterização e análise do período renascentista. (Boa prova desta
dificuldade é a diversidade de opiniões dos historiadores a tal respeito, bem
como a sua falta de unanimidade, tanto sobre a duração deste período como
acerca do momento histórico aproximado em que deve fixar-se o seu
início.) Ao assinalar esta dificuldade, não pretendemos contudo afirmar que
esta época não possui significado e características próprias.

SUPERANDO A BARBÁRIE MEDIEVAL


Também não me atrevo a explicar a razão pela qual aquelas artes tão
próximas das liberais, ou seja, a pintura, a escultura, caíram de tal modo
durante tanto tempo que, juntamente com as letras, pareciam estar mortas.
Nem a razão qual agora ressuscitam e se levantam de novo, existindo uma
grande abundância de bons artistas e homens de letras. De qualquer
forma, e se o passado foi triste porque não havia nenhum homem sábio,
devemos congratular-nos com a nossa época porque, com um pouco de
esforço, acredito que em breve conseguiremos restaurar, não tanto a
cidade, mas a língua de Roma e todas as disciplinas.
L. Valla, Elegantiae Linguae Latinae (1444).

Durante este período produz-se sem dúvida uma profunda


transformação na sociedade europeia. Por um lado, as mentes mais
despertas da época tinham consciência de que algo havia mudado na cultura
ocidental: estavam convencidas de que se encerrara uma época, a Idade
Média (bárbara e ignorante, em seu entender), e começara um tempo novo
de cultura e de mentalidade mais elevadas. Por outro, durante este período
deram-se acontecimentos de indiscutível importância, que não será
supérfluo recordar.

a) No domínio cultural, tem lugar em 1438 o concílio de Florença-


Ferrara, no qual comparecem teólogos do Oriente, conhecedores da língua
grega e peritos na filosofia e nos textos gregos. Poucos anos depois (1453)
dá-se a queda de Constantinopla, que obriga muitos intelectuais orientais
a emigrarem para a Itália. Um e outro acontecimento constituem factores
importantes do desenvolvimento do humanismo: os intelectuais procedentes
do Oriente dão impulso ao estudo da língua grega e à transmissão dos textos
dos filósofos gregos. Pléton e Bessárion, ambos platónicos, são dois
exemplos notáveis.
b) No campo das descobertas, a par da autêntica descoberta cultural do
passado grego, a que fizemos referência na secção anterior, dão-se no
século XV importantes descobertas e aperfeiçoamentos técnicos. O
desenvolvimento da cartografia, das técnicas de navegação e a bússola
tornam possível a expansão marítima e comercial, o descobrimento da
América e o acesso a regiões do globo até então desconhecidas. A
utilização da pólvora com fins bélicos facilita o fortalecimento do poder
real frente à nobreza, cujos castelos se tornam conquistáveis a tiro de
canhão. Finalmente, a descoberta da imprensa facilita a expansão cultural, a
edição dos clássicos por parte dos humanistas e a circulação de textos
bíblicos, o que favorece a reforma religiosa.

c) No campo religioso, os factores de desintegração, existentes no seio


da igreja já desde o século XIV, culminam na reforma, na primeira metade
do século XVI. A rebelião luterana teve lugar em 1517, e Henrique VIII
proclama-se chefe da igreja anglicana em 1531. Do lado católico, em 1539
organiza-se definitivamente a Companhia de Jesus e pouco depois tem
início o concílio de Trento.

d) No domínio político-social, consolidam-se neste período os Estados


nacionais e as monarquias absolutas. Em estreita relação com as novas
forças políticas, verifica-se um notável crescimento da burguesia e do
capitalismo comercial.

Todos os acontecimentos que acabamos de enumerar encontram-se


intimamente relacionados entre si, condicionam-se reciprocamente. E não
poderia ser de outro modo, visto que cultura, ciência, política e economia
não são domínios isolados no seio de uma sociedade. Atente-se na seguinte
cadeia de influências (que não deve ser interpretada de forma puramente
linear): a utilização do canhão contribui para o triunfo definitivo das
monarquias sobre a nobreza, ao mesmo tempo que suscita problemas de
balística e o estudo das trajectórias dos projécteis, impulsionando o estudo
da física; as monarquias, por seu turno, apoiam a burguesia e são por esta
apoiadas contra a nobreza; os Estados nacionais apoiam a reforma, ou
combatem-na, segundo os seus interesses (a reforma prosperou nos países
em que foi apoiada pelo poder político e fracassou nos restantes); a
fragmentação definitiva da Europa em Estados nacionais origina novas
formas de equilíbrio entre os mesmos: deste facto, e das guerras e
colonização da América, surgem novos problemas teóricos relativos ao
Direito Internacional e discussões dos filósofos acerca das condições em
que a guerra é justa, etc. (É neste domínio que os filósofos espanhóis –
especialmente o jesuíta Suárez e o dominicano Vitoria – contribuem de
forma mais notável para o pensamento europeu: ambos se ocupam de
questões jurídicas e políticas e talvez não seja exagerado considerá-los
como os iniciadores do Direito Internacional).

O DIREITO INTERNACIONAL DOS POVOS


A totalidade dos homens não se agrupou certamente num corpo
político único mas fragmentou-se em diversas comunidades. Isso não
significa, no entanto, que se exclua a conveniência de aquelas
comunidades observarem alguns direitos comuns, fruto de uma aliança e
acordo comuns entre elas, a fim de se ajudarem mutuamente e manterem-
se em paz (o que é necessário para o bem universal). Estes acordos
comuns denominam-se direitos dos povos e a sua introdução deve-se
mais à tradição e aos costumes do que à intuição.

F. Suárez, De las leys, 3,2,6.

Os factores económicos e políticos actuaram em conjunto,


impulsionando a investigação técnica e científica, favorecendo o
aparecimento de diferentes concepções religiosas e ideias filosóficas.
Juntamente com estes factores, há três forças culturais que confluem na
transformação do pensamento europeu e no advento da modernidade: o
humanismo, a reforma e o desenvolvimento da ciência. Esta última foi, de
longe, a força mais poderosa e decisiva das três.

1.3. A filosofia e o desenvolvimento da ciência

As indicações fornecidas até agora induzem-nos a considerar o


Renascimento (séculos XV-XVI) na perspectiva de um período mais amplo
no qual se encontra inserido um período cujo início pode situar-se no final
da Idade Média e cujo apogeu pode fixar-se no primeiro terço do século
XVII. Durante este longo período de quase três séculos, o pensamento
europeu foi submetido a um profundo processo de transformação cujo
resultado é a modernidade. Com efeito, nas primeiras décadas do século
XVII assistimos ao estabelecimento definitivo da ciência e ao início da
filosofia moderna. Os máximos protagonistas deste duplo acontecimento
serão Galileu e Descartes.
Como dissemos e teremos ocasião de comprovar nos próximos
capítulos, o progresso científico é a mais poderosa e definitiva de todas as
forças culturais que confluem no processo que conduz à modernidade.

1.3.1. A filosofia no Renascimento

a) Os filósofos humanistas
Em geral, pode dizer-se que a filosofia renascentista (séculos XV-XVI)
vive de costas voltadas para a actividade científica do seu tempo. Isso é
especialmente notório no caso dos filósofos humanistas. Efectivamente,
estes filósofos voltam-se para os grandes sistemas gregos (platonismo,
aristotelismo, estoicismo, epicurismo), procurando neles a fonte de
inspiração para as suas concepções da natureza e do homem.
Os filósofos humanistas adoptaram na generalidade uma atitude de
menosprezo, quando não de aberta hostilidade, para com a experimentação.
Neste divórcio entre humanismo e ciência radica a separação – prolongada
até aos nossos dias – entre estudos científicos e estudos humanísticos, entre
ciências e letras, bem como da pouco razoável inclusão da filosofia entre
estas últimas.

b) Outros filósofos renascentistas


A desvinculação da filosofia relativamente à actividade científica que
culminará na constituição da ciência moderna não é, aliás, uma
característica exclusiva dos filósofos humanistas, mas antes uma atitude
generalizada entre os filósofos deste período histórico. Uma excepção é
Giordano Bruno, cuja vida decorre na segunda metade do século XVI.
Bruno – que afirmou a infinitude do Universo – conheceu certamente a obra
de Copérnico, cuja teoria heliocêntrica favorecia a ideia de que o Universo
tem dimensões enormes, por oposição às dimensões reduzidas atribuídas
pelo geocentrismo.
Quanto a Nicolau de Cusa, o outro filósofo notável deste período
preocupado com a ideia de infinitude, nada tem a ver com a ciência
moderna, apesar do seu amor e interesse pelas matemáticas: a sua vida
decorre na primeira metade do século XV e, portanto, morre quase cem
anos antes da publicação da obra de Copérnico.
Entre os filósofos de que nos ocupamos neste capítulo inclui-se Francis
Bacon, um homem preocupado com a ciência; combate o aristotelismo da
época no que este tem de atitude anticientífica e oposta à experimentação,
defendendo a indução como método científico.
No entanto, e apesar de defender o método experimental, Bacon baseia-
se ainda no conceito aristotélico de ciência e o seu método indutivo pouco
tem a ver com o método científico utilizado por Galileu e pela ciência
moderna. Apesar de a sua actividade filosófica se prolongar até ao século
XVII, o seu pensamento científico situa-se à margem da revolução
científica consumada por Galileu e Kepler nessa altura.

1.3.2. A ciência no Renascimento


A ciência moderna – que se estabelece definitivamente no século XVII e
que influencia de modo directo o aparecimento da filosofia moderna com
Descartes – não surgiu da noite para o dia; foi em grande medida o
culminar de um lento processo inaugurado no final da Idade Média.
Juntamente com as necessidades e exigências de tipo técnico, importa
salientar dois factores de tipo filosófico-cultural que favoreceram o seu
desenvolvimento. Por um lado, o impulso dado à observação e à
experimentação pelos pensadores nominalistas a partir do século XIV, a
que nos referimos no capítulo VI da 1.ª parte. Por outro lado, a descoberta
genuinamente renascentista dos científicos gregos, especialmente do
pitagorismo e de Arquimedes. O retorno aos gregos não só possibilitou o
conhecimento das correntes filosóficas gregas mas também dos textos
científicos mais notáveis da Antiguidade.
A descoberta da tradição pitagórica deu novo impulso à ideia
(anteriormente abandonada, por influência do aristotelismo) de que o
Universo possui estrutura e ordenação matemática e, por conseguinte, as
leis que regem os fenómenos naturais são matematicamente formuláveis.
Copérnico conheceu certamente a tradição pitagórica, e a atitude de Kepler
perante o Universo é nitidamente pitagórica. Arquimedes por seu turno,
oferecia um modelo de ciência que seria seguido por Galileu. A descoberta
renascentista do grego contribuiu poderosamente para estimular a
consideração matemática do Universo e dos fenómenos físicos. O progresso
das matemáticas juntar-se-ia a esta atitude perante a natureza para
possibilitar o desenvolvimento da ciência moderna.

O UNIVERSO E A LINGUAGEM MATEMÁTICA


A filosofia está escrita nesse vasto livro sempre aberto perante os
nossos olhos: refiro-me ao Universo; mas só o conseguimos ler se
tivermos aprendido a linguagem e se nos tivermos familiarizado com as
letras em que está escrito. Está escrito em linguagem matemática e as
letras são os triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as
quais é humanamente impossível compreender uma única palavra.
Galileu Galilei, il Saggiatore (9.6)
2. A TRADIÇÃO GREGA E O NOVO
ANTROPOCENTRISMO NATURALISTA

2.1. A filosofia grega no renascimento

O interesse pelas humanidades clássicas, pela cultura greco-latina,


trouxe consigo um ressurgir dos sistemas filosóficos gregos. Os grandes
filósofos – especialmente Platão e Aristóteles – são traduzidos e
comentados pelos filósofos humanistas.

2.1.1. O platonismo

O platonismo floresceu especialmente na Academia de Florença fundada


por Cosme de Medíeis, assessorado por Pléton, e levada ao seu máximo
esplendor, por Lourenço, o Magnífico. Mencionámos atrás o nome de
Pléton, juntamente com o de Bessárion, ambos procedentes de Bizâncio e
enviados ao Concílio de Florença.
O velho pleito acerca das diferenças e semelhanças entre as filosofias de
Platão e Aristóteles foi objecto de discussão também neste período. Pléton
escreveu uma obra acerca do tema que foi contestada pelo aristotélico João
de Trebisonda no escrito Comparação de Aristóteles e Platão; Bessárion,
por seu turno, saiu em defesa de Pléton e do platonismo contra esta obra de
Trebisonda, num escrito polémico intitulado Contra o caluniador de
Platão. Além de Pléton e Bessárion merecem ser mencionados Marsílio
Ficino (1433-1499) e Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), máximos
representantes do platonismo renascentista. Marsílio Ficino traduziu para
latim diversas obras de Platão e compôs comentários sobre as mesmas.
Traduziu igualmente as Enéadas de Plotino e escreveu uma obra
denominada Acerca da religião cristã, bem como a Teologia platónica, a
mais importante das suas obras filosóficas. Pico della Mirandola é
sobretudo famoso pelo seu Discurso sobre a dignidade do homem.

2.1.2. O aristotelismo

O aristotelismo renascentista estava dividido em duas correntes: a


averroísta e a alexandrinista. A primeira – sede em Pádua – baseava-se na
interpretação de Aristóteles apresentada por Averróis; a segunda baseava-se
na interpretação de Aristóteles feita pelo comentarista antigo Alexandre de
Afrodísia. O ponto fundamental de dissidência entre as duas correntes
encontrava-se na questão (a que já tivemos ocasião de nos referir
anteriormente) da imortalidade da alma e da natureza do entendimento. No
entender dos averroístas, a alma humana individual é corruptível e mortal,
embora exista um entendimento imortal, único e comum a toda a espécie
humana. Os alexandrinistas concordavam em que a alma individual é
mortal mas não admitiam a existência de um entendimento comum a todos
os homens. As suas disputas são mais uma questão de erudição do que outra
coisa, já que ambas as correntes negaram a imortalidade individual.

CONTRA A IMORTALIDADE INDIVIDUAL


Por conseguinte, se alguém desejar a imortalidade deve procurar a
matéria, fisicamente falando. Mais, quem procura a imortalidade deseja
antes do mais a mortalidade. E a prova é esta: quem quer ser imortal
deseja não ter matéria; ora, quem não tem matéria não é homem. E se não
é homem, não existe. E não ser nada é pior que ser mortal. «Eu quero ser
anjo».
E eu digo que tu não serias tu se fosses anjo, e deste modo o que
desejas é não ser (…). Isto pode ser demonstrado do seguinte modo:
quem destrói a característica específica de uma espécie, destrói a
essência; e se não fosses mortal, destruirias a definição de homem, dado
que na definição de homem a mortalidade é uma característica específica.
P. Pomponazzi, Tratado da Imortalidade da Alma.

O mais importante dos averroístas foi Martinho Nifo (1473-1546) e o


mais importante dos alexandrinistas (e de todos os aristotélicos da época)
foi Pedro Pomponazzi (1462-1525). Porque negava a imortalidade pessoal,
Pomponazzi foi acusado de privar a moralidade de fundamento ao excluir
qualquer tipo de sanção numa vida futura. Pomponazzi rebateu esta
objecção recorrendo à doutrina estóica de que a virtude é o autêntico e
único bem a que vale a pena aspirar.
Aristotélicos posteriores a Pomponazzi são Jacobo Zabarella (1532-
1589) e César Cremonino (1550-1631). Zabarella deixou-nos alguns
comentários a Aristóteles que ainda hoje em dia devem ser tomados em
consideração pela sua indiscutível autoridade; Cremonino pertence à última
geração dos aristotélicos renascentistas, sendo já contemporâneo de Galileu.
Ambos, Zabarella e Cremonino, manifestam uma clara tendência para
desligar da teologia o estudo da natureza: efectivamente, ambos
pensavam que se o mundo e o movimento são eternos (como defendia
Aristóteles), não parece necessário supor a existência de um primeiro motor
imóvel distinto do próprio firmamento. Para Aristóteles, a física culmina na
teologia, na consideração de Deus, pois o movimento de qualquer natureza
depende dele; Zabarella e Cremonino põem em dúvida a necessidade lógica
de tal culminação.

2.1.3. Estoicismo, epicurismo e cepticismo


Também estas correntes filosóficas gregas encontram seguidores durante
o período renascentista. A propósito, merece referência o nome de Justo
Lípsio (1547-1606) como representante da corrente estóica: escreveu uma
Introdução à filosofia estóica e uma Fisiologia estóica. Lourenço Valla
(1407-1457), por sua vez, escreveu um tratado Acerca do prazer, no qual
defendia o princípio fundamental da moral epicurista. Entre os cépticos,
merecem menção Miguel de Montaigne (1533-1592), Pedro Charron
(1541-1603) e o português Francisco Sanches (1551-1622).

O PESSIMISMO LUTERANO
Para os eleitos e para aqueles que estão possuídos pelo Espírito, a
predestinação é a mais doce das doutrinas; mas para os sábios mundanos
é a mais amarga e a mais dura de todas. A razão pela qual Deus nos salva
desta forma é demonstrar que não nos salva pelos nossos méritos mas por
uma eleição pura e simples e pela sua vontade imutável. Somos salvos
pelo seu amor imutável. Então onde está a nossa justiça? E as nossas boas
obras? Onde está a nossa vontade livre? O que é que acontece quando
falamos da contingência das coisas?
Lutero, Sobre os Romanos, VIII, 28.

O OPTIMISMO HUMANISTA
Tal como encontras Deus nas coisas, também te encontras a ti próprio
nelas, dado que és uma criatura divina. Se podes encontrar o espírito no
corpo, a luz nas trevas, o bem no mal, a vida na morte, a eternidade no
tempo ou o infinito no finito, lembra-te de que por natureza és espírito
incorpóreo, lúcido, bom, imortal e capaz da verdade e estabilidade eternas
e do imenso bem, até que atinjas o primeiro céu de cujo cume verás Deus
e a ti mesmo em todas as coisas.
M. Ficino, Do Rapto de Paulo.
2.2. Antropocentrismo e naturalismo renascentistas

A exposição anterior deixou certamente no leitor a impressão de que a


originalidade destes filósofos humanistas é escassa, para não dizer nula. A
originalidade destes filósofos não deve ser procurada nos sistemas que
professam mas na atitude que adoptam perante o homem e a natureza. Os
sistemas filosóficos antigos ganham neles um significado novo, que tem de
qualificar-se de moderno. A esta atitude aludem os termos
«antropocentrismo» e «naturalismo» da nossa epígrafe.
A atitude dos filósofos humanistas é radicalmente antropocêntrica. O
regresso aos filósofos gregos (à cultura grega em geral) é motivado pelo
desejo de encontrar um modelo de humanidade diferente do medieval. No
Renascimento aspira-se a um homem novo, liberto da incultura e da
mediocridade; daí que o humanismo renascentista se caracterize por:

a) insistência na educação das capacidades naturais humanas, no


desenvolvimento da personalidade;
b) a primazia concedida aos valores estéticos;
c) o individualismo.

Em oposição à cultura medieval, que era radicalmente teocêntrica (isto


é, considerava Deus como ponto de referência absoluto de todo o real e do
homem inclusivé, o Renascimento é antropocêntrico e naturalista.
Referido ao ser humano, naturalismo pode ser definido como a atitude
que acentua os aspectos naturais do homem, esquecendo ou
menosprezando a dimensão e o destino sobrenaturais, tão
insistentemente afirmados pelo cristianismo e pelo pensamento medieval.
Esta tendência naturalista observa-se, em maior ou menor grau, em todas as
correntes filosóficas a que fizemos referência no parágrafo anterior, isto é,
não apenas no estoicismo, epicurismo e cepticismo, como no aristotelismo e
no platonismo.
a) A interpretação que a corrente aristotélica faz de Aristóteles é
claramente naturalista. Pomponazzi não só negava a imortalidade pessoal
como extraiu as pertinentes consequências de tal negação, ou seja, que o
homem não tem um destino sobrenatural e que a virtude deve ser
praticada por si mesma, sem esperar recompensa alguma noutra vida. A
forma como os aristotélicos renascentistas utilizam a filosofia de Aristóteles
é radicalmente distinta da forma como Tomás de Aquino o fizera.
Aliás, o naturalismo dos aristotélicos renascentistas revela-se, além
disso, na tendência para suprimir qualquer sujeição do Universo a
Deus: frisámos já que Cremonino e Zabarella puseram em dúvida a
necessidade (afirmada por Aristóteles) de fazer o movimento do Universo
depender de Deus. Referido já não ao homem, mas ao Universo em geral, o
naturalismo caracteriza-se pela exaltação da natureza, da sua força e valor
intrínsecos, que a tornam digna de consideração e de estudo por si mesma, e
não apenas como algo criado e cujo estudo fosse simplesmente um meio de
elevação ao seu criador.

b) Também na corrente platónica pode observar-se uma notável


tendência para o naturalismo. O Renascimento adopta o platonismo de uma
forma muito diferente daquela que adoptaram os primeiros pensadores
cristãos e Santo Agostinho. É certo que os filósofos platónicos do
Renascimento são crentes e insistem (como o fizeram os primeiros
pensadores cristãos) nos pontos de coincidência entre o platonismo e o
cristianismo. Contudo, a diferença entre uns e outros é notável: em Santo
Agostinho, no platonismo cristão antigo e medieval, o elemento
fundamental é o cristianismo e a afirmação central é a da existência de uma
ordem sobrenatural; ao contrário, no Renascimento, o elemento mais
importante é o platonismo, com acentuados traços pagãos.
Isso mesmo se torna manifesto nos dois aspectos fundamentais da sua
filosofia: 1) por um lado, os platónicos renascentistas vêem na filosofia
platónica não só uma filosofia concorde com o cristianismo, mas – para
além do cristianismo – como uma espécie de religião natural. (A filosofia
moderna ocupar-se-á com insistência, no século XVIII, do tema da religião
natural, estritamente racional e sem dogmas; o platonismo renascentista
constitui um claro precedente desta ideia); 2) por outro lado, o platonismo
renascentista exalta o homem e a dignidade humana. (O tema da dignidade
humana é típico dos humanistas do Renascimento e muitos escreveram
obras com este título, como é o caso do platónico Pico della Mirandola).
Esta exaltação do homem não é facilmente compatível com a antropologia
genuinamente cristã. Para o compreender, será conveniente recordar alguns
aspectos da concepção cristã do homem.
No capítulo quarto assinalámos que o traço característico da concepção
cristã do homem é a sua negação do intelectualismo moral. Para o
cristianismo, o pecado não é a ignorância mas a consequência da liberdade
do homem e da corrupção original da natureza humana. Esta concepção do
homem põe em relevo a liberdade humana, ao mesmo tempo que a coloca
em situação difícil: a natureza humana está corrompida e a consequência de
tal corrupção é que o homem quase não é livre para fazer o bem, pois
necessita da graça, de acordo com a antropologia cristã; mas a eficácia da
graça é tal que sob o seu influxo o homem quase não é livre para fazer o
mal. Perante esta forma de encarar o problema, somos levados a pensar que
a liberdade fica realmente anulada, se o homem não pode agir bem sem a
graça nem agir mal com ela. Durante a Idade Média, a partir de Santo
Agostinho, os teólogos (fundamentalmente em virtude da sua profunda
religiosidade) procuraram manter um certo equilíbrio, afirmando
conjuntamente a existência da liberdade, o estado corrompido da natureza
humana e a necessidade da graça.
Este equilíbrio rompe-se no Renascimento. Segundo os humanistas, o
homem é senhor do seu próprio destino e é ele quem, livremente e com
autonomia, decide a soa própria conduta. Num texto significativo de
Pico della Mirandola, Deus dirige-se ao homem e diz-lhe: «Segundo a tua
própria e livre vontade definirás a tua natureza por ti mesmo (...) terás poder
para descer até aos animais ou criaturas inferiores. Terás poder para
renascer entre os superiores ou divinos, segundo a sentença do teu
intelecto». O homem pode, pois, agir bem por si próprio. Isso implica (pelo
menos implicitamente) a negação ou esquecimento das afirmações
essenciais do cristianismo: a necessidade da graça e a maldade ou estado
corrompido da natureza humana.

O protestantismo adoptou uma atitude diametralmente oposta perante este


problema. Sublinhando o carácter corrompido da natureza humana,
afirmou que o homem não é livre de fazer o bem, que todas as obras do
homem são más, que só a fé e a graça podem salvá-lo.
O humanismo do Renascimento defendeu a tese de que o homem é
naturalmente bom, adoptando uma atitude naturalista dificilmente
compatível com o cristianismo; a Reforma defendeu a tese de que o
homem é naturalmente mau, exagerando uma ideia central da
antropologia cristã.
Ambas as teses – a da bondade natural e a da maldade natural do homem
– voltarão a aparecer na modernidade relacionadas com o tema da origem
e natureza da sociedade: Rousseau perfilhará a tese do optimismo
humanista, da bondade natural do homem; Hobbes, ao contrário, tomará
como ponto de partida da sua teoria política a tese pessimista da maldade
natural do ser humano.
3. O PROBLEMA DA INFINITUDE: CUSA E
GIORDANO BRUNO

3.1. Cusa e a nova concepção da natureza

Já antes dissemos que Nicolau de Cusa é cem anos anterior à obra de


Copérnico, e aproximadamente século e meio à obra científica de Galileu.
Pelas suas fontes de inspiração – platonismo cristão – e pelo seu
teocentrismo, Cusa pode ser considerado um filósofo medieval; no entanto,
a sua concepção do Universo permite considerá-lo como um precursor da
visão moderna da natureza. Cusa é, pois, um filósofo de transição.

3.1.1. A teologia de Nicolau de Cusa

a) O princípio neoplatónico de unidade e a coincidência de


contrários
A ideia central de Cusa é a da coincidência dos contrários (coincidentia
oppositorum). Esta ideia não é mais do que a expressão do princípio
neoplatónico da identidade do múltiplo. Com efeito, os sistemas
neoplatónicos (como tivemos ocasião de acentuar ao referirmo-nos a
Plotino no capítulo quarto) esforçavam-se por mostrar como a partir da
unidade mais absoluta, o Uno, se desprende a multiplicidade do real através
de uma escada descendente. Cada um dos momentos ou degraus desta
escala representa um momento de dispersão maior relativamente ao degrau
superior. Contemplando-se a escada de cima, desde a máxima unidade do
real, cada degrau da escada marca sucessivamente uma maior dispersão do
real; contemplada de baixo, desde a máxima dispersão da realidade
sensível, cada degrau para cima marca um grau maior de unidade e
concentração (coincidência) do real. O grau máximo de unidade – no qual a
totalidade do real está presente sem pluralidade alguma – corresponde ao
princípio primeiro, ao Uno.
Esta ideia neoplatónica, que contempla a totalidade do real como um
sistema presidido pela convergência do divergente, é expressa por Cusa por
meio de analogias matemáticas. Recorrendo, à sua maneira, ao conceito
moderno de limite, Cusa sublinha que os contrários coincidem no infinito:
se o diâmetro de um círculo se estende até ao infinito, a sua circunferência
coincidirá com uma linha recta, será simultaneamente recta e curva, e nela
coincidirão os dois contrários.
A coincidência dos contrários ultrapassa a capacidade de compreensão
da razão humana. Como resposta a isso, Cusa distingue no conhecimento
dois níveis ou faculdades: a razão e o entendimento. A razão rege-se pelo
princípio de não-contradição, o que a incapacita para compreender a
coincidência dos contrários: com efeito, segundo o princípio de não-
contradição nada pode ser e não ser ao mesmo tempo, uma linha não pode
ser simultaneamente curva e não curva e, por conseguinte, é impossível a
pretensa coincidência real dos contrários. Contudo a faculdade suprema não
é a razão mas o entendimento, e ao entendimento cabe reunir os contrários
que a razão declara incompatíveis.

Nicolau de Cusa
Nicolau Chripffs nasceu em Cusa em 1401. Estudou em Heidelberga, onde conheceu o
ockhamismo, e posteriormente em Pádua, onde teve ocasião de aprofundar os seus
conhecimentos sobre os filósofos gregos. Ordenando sacerdote em 1430, tomou parte activa nas
disputas internas da Igreja entre os partidários da supremacia do Concílio e os partidários da
supremacia papal. A princípio apoiou aqueles, mas posteriormente veio a conceder aos segundos
o seu apoio talvez pensando que a estrutura piramidal da Igreja realizava melhor a concepção
platónica do uno e do múltiplo. Interveio também na embaixada à corte imperial grega, com a
missão de lograr a união das duas Igrejas. Foi feito cardeal em 1448. Morreu em 1464.
A mais importante das suas obras é o tratado De docta ignorantia (1440).
b) Deus como coincidência de contrários e a teologia negativa
Assim como no neoplatonismo a unidade suprema do múltiplo
corresponde a Deus, o Uno, também em Deus, segundo Cusa, se realiza a
coincidência dos contrários de um modo absoluto. Deus concebido como
coincidência de contrários está para além de todas as diferenças e
oposições que se verificam nos seres finitos, reunindo-as e unificando-as
em si mesmo.
Do ponto de vista do conhecimento humano, o princípio da coincidência
dos contrários em Deus equivale a estabelecer que toda a afirmação acerca
de Deus (por exemplo, Deus é o máximo) deve ser corrigida pela negação
correspondente (no exemplo, Deus não é o máximo, é o mínimo). Isto
supõe a aceitação da teologia negativa, de origem neoplatónica também,
que remonta a Plotino e que Cusa assimilou através do Pseudo-Dionísio.
Em Deus coincidem certamente os contrários, mas de um modo
incompreensível para nós. Daí a afirmação de Cusa de que nos movemos na
ignorância acerca da natureza divina: ignorância que não deve ser entendida
como um estado puramente negativo (o estado de quem não se interrogou
sequer sobre a natureza divina e sobre o nosso conhecimento acerca dela),
mas como um estado positivo resultante do esforço para conhecer a
infinitude divina e do reconhecimento da nossa própria finitude. É uma
ignorância douta, culta, instruída. A tal alude o título da obra mais
importante de Cusa: De docta ignorantia (A douta ignorância).

3.1.2. A cosmologia de Cusa

Para explicar a relação existente entre Deus e o mundo, Cusa recorre


frequentemente a fórmulas que poderiam ser interpretadas como expressões
de panteísmo, como quando diz que Deus «complica» e «explica» a
totalidade do real: tudo se encontra complicado (isto é, reunido, unificado)
em Deus, e Deus explica tudo (isto é, tudo procede d’ Ele e Ele está em
tudo). Todavia, estas expressões e outras similares (que podem encontrar-se
também na tradição platónica, especialmente em Escoto Eriúgena) estão
suficientemente contrabalançadas por declarações expressas, nas quais Cusa
afirma a transcendência divina e rejeita o panteísmo. Cusa não é, pois,
panteísta.
Ao não identificar o Universo com Deus, Cusa não considera o Universo
como infinito absoluto. No entanto, afirma que o Universo é infinito na
medida em que não tem limites: o Universo é uno e, portanto, não limita
nem é limitado por nenhum outro Universo. Não está encerrado numa
circunferência exterior e, por conseguinte, o Universo não tem um centro
determinado. Ao carecer de centro e extremos, carece de direcções
absolutas. (Segundo a cosmologia aristotélica, acima e abaixo são direcções
absolutas: o movimento para cima é o que tem lugar a partir do centro do
Universo até ao seu extremo exterior, e o movimento para baixo é o que
tem lugar desde o exterior até ao centro; direita-esquerda, adiante-atrás
eram igualmente tidos como absolutos). No Universo, em suma, tudo se
move; a Terra não está imóvel no seu centro mas move-se, como os
restantes corpos celestes.

A UNIDADE INFINITA
Com efeito, quem é que poderia compreender a unidade infinita que
antecede infinitamente as oposições, na qual as coisas, sem composição,
estão unidas na simplicidade da unidade, na qual não há o diverso e na
qual o homem não difere do leão nem o céu difere da terra, pois nela eles
são eles mesmos verdadeiramente e não segundo a sua finitude, mas
implicados na própria unidade máxima? Assim, se alguém fosse capaz de
compreender ou nomear uma tal unidade, que como unidade é todas as
coisas e que sendo o mínimo é o máximo, essa pessoa encontraria o nome
de Deus.
N. Cusa, De Docta Ignorantia I, cap. 24
Infinitude do Universo, inexistência de um centro do mesmo, inexistência
de direcções absolutas, movimento da Terra: eis outras tantas afirmações
em que Cusa se afasta da imagem medieval do Universo antecipando a
concepção moderna da natureza.

3.2. Giordano Bruno e a infinitude do Universo

Giordano Bruno é o mais famoso e celebrado dos filósofos


renascentistas da natureza, grupo a que pertencem ainda Bernardino Telésio
(1509-1588) e Tomás Campanella (1568-1639). Filósofo eclético, na obra
de Bruno aprecia-se a influência de elementos tão díspares como: a) o
heliocentrismo de Copérnico; b) o atomismo antigo de Demócrito, de
Epicuro e de Lucrécio; c) o neoplatonismo; d) os escritos herméticos. (O
hermetismo constitui uma tradição do tipo religioso-mágico que exerceu
notável influência na religiosidade e na filosofia durante o Império Romano
e que voltou a florescer no Renascimento: os escritos herméticos faziam-se
remontar a um antigo sábio egípcio, Hermes Trismegisto.) Todas estas
influências mostram que o pensamento de Bruno constitui uma síntese
peculiar de ciência, filosofia, religião e magia.

3.2.1. A infinitude do Universo

A imagem medieval do Universo, geocêntrico e finito, acomodava-se


harmonicamente à concepção cristã, teológica, do real. Segundo esta, o
homem é o único ser racional e livre da criação, objecto de uma especial
atenção por parte do seu Criador, que não só o cria mas irrompe na história
humana, redimindo-o e elevando-o a uma ordem sobrenatural. A distância
que separa o Criador da criatura encontra expressão adequada na finitude do
Universo; a importância especial do homem, como criatura suprema,
encontra expressão igualmente adequada no geocentrismo: a Terra, morada
do homem, encontra-se no centro do Universo.
Expusemos já como Nicolau de Cusa abandonou esta imagem medieval
do Universo. Bruno, mais audaz e radical do que Cusa, rejeitou esta
imagem do cosmos, relegando o homem e a Terra para um lugar
insignificante dentro dele. Aceitando o heliocentrismo, Bruno nega que a
Terra ocupe o centro do Universo; afirmando a infinitude deste, Bruno
afirma que existem inumeráveis sistemas solares como o nosso, que o nosso
Sol não passa de mais uma estrela no cosmos infinito. Mais ainda, nada
impede que existam seres vivos e seres vivos racionais noutras partes do
cosmos. Nem o homem, nem a Terra, sua morada, ocupam qualquer
posição de privilégio no Universo.

Giordano Bruno
Personalidade rica e inquietante, nasceu em 1548 em Nola, nas proximidades de Nápoles.
Ingressou na Ordem dos Dominicanos, abandonando-a em 1576, depois de ter sido acusado de
defender doutrinas heterodoxas. A partir desse momento viajou constantemente pela Europa
(Suíça, França, Inglaterra, Alemanha), suscitando a admiração de uns e a indignação de outros.
No ano de 1592 regressou imprudentemente a Itália, sedo preso e julgado pela Inquisição. Após
sete anos de prisão, foi queimado em Roma a 17 de Fevereiro de 1600.
As suas obras mais importantes são: De umbris idearum (1582), De la causa, princípio de
uno (1584), De l’infinito, universo e mundi (1584).

3.2.2. O Universo como organismo vivo

Bruno foi buscar o heliocentrismo a Copérnico. E embora o próprio


Copérnico não aceitasse a infinitude do Universo, o heliocentrismo, como
atrás acentuámos, favorecia a ideia de que aquele possui dimensões muito
maiores do que as supostas pela teoria geocêntrica. Quanto à ideia de que
existem sistemas solares inumeráveis, cada qual possivelmente com seres
vivos e racionais, Bruno recebeu-a com toda a certeza do atomismo antigo,
através da obra do epicurista Lucrécio. A imagem do Universo de Bruno
não é porém mecanicista, como a do atomismo grego. O seu modelo de
natureza não é mecanicista mas vitalista: o Universo é um ser vivo,
animado. O platonismo e a tradição mágica do hermetismo influenciaram
com certeza este aspecto do pensamento de Bruno.
3.2.3. O panteísmo

A infinitude do Universo, juntamente com o seu carácter de organismo


vivo, levaram Bruno a identificá-lo com Deus. O neoplatonismo situara a
alma do Universo, a alma universal, como terceira hipótese ou momento da
escada do real. (Do Uno procede o entendimento e deste a alma universal).
Giordano Bruno identifica a alma universal como a potência divina, causa
eficiente e formal do Universo: eficiente, enquanto força geradora de todos
os seres; formal, na medida em que está presente em todos os seres,
animando-os e dotando-os de vida. O Universo não é, pois, mais do que
uma manifestação do desdobramento de Deus. A concepção do Universo
como um sistema auto-suficiente, infinito em extensão e força geradora, é
característica do Renascimento. Esta exaltação da natureza é expressa por
Bruno através do panteísmo.

UM UNIVERSO INFINITO E VIVO


Para achardes as respostas às vossas perguntas deveis primeiro ter em
consideração que, sendo o Universo infinito e imóvel, não é necessário
encontrar o seu motor; segundo, os mundos nele contidos são infinitos –
os continentes, as estrelas e outras espécies de corpos chamados astros – e
todos eles se movem mediante um princípio interior que é a sua própria
alma, como demonstrámos já, e por isso é inútil procurar o seu motor
extrínseco; em terceiro lugar, estes corpos do mundo movem-se na região
etérea e não estão mais fixos ou cravados em qualquer corpo do que a
Terra, que é um desses corpos; assim, podemos demonstrar que, devido
ao interior animal inato, a Terra circunda o próprio centro e o Sol de
várias maneiras.
G. Bruno, Sobre o Universo Infinito e os Mundos, I.
4. FRANCIS BACON E O SEU CONCEITO DA
CIÊNCIA

4.1. Projecto de ciência e novo método

Apesar de a sua vida e obra entrarem pelo século XVII (a sua obra mais
notável, o Novum Organon, data de 1620), Francis Bacon pode ser
considerado um filósofo renascentista. Como filósofo da ciência, Bacon é a
expressão eloquente do optimismo renascentista, da confiança na
capacidade do homem para estender mais e mais o seu domínio sobre a
natureza. A ideia central do pensamento de Bacon é que o homem pode
dominar a Natureza e que o instrumento adequado para isso é a
ciência. Esta ideia levou Bacon a opor-se a Aristóteles, no tocante ao
conceito de ciência e ao método adequado para o progresso da investigação
científica.

4.1.1. Concepção utilitarista da ciência

O aristotelismo considerava a ciência como um tipo de conhecimento


teorético cujo fim não é mais do que a contemplação da verdade. Bacon
opôs-se a esta concepção aristotélica da ciência, acentuando que esta possui
dimensão essencialmente prática O fim da ciência não é a contemplação da
Natureza mas o seu domínio: «a natureza – diz Bacon – domina-se,
obedecendo-lhe», isto é, conhecendo as leis que regem os fenómenos
naturais para, submetendo-se a elas, utilizá-las em benefício próprio. Ao
insistir nas possibilidades que a ciência oferece para o domínio da natureza,
Bacon partilhava da mentalidade típica do Renascimento, ao mesmo tempo
que se fazia eco do progresso técnico alcançado neste período. (No Novum
Organon faz referência às consequências práticas derivadas da descoberta
da imprensa, da bússola e da pólvora, que mudaram radicalmente as
possibilidades e perspectivas da literatura, da navegação e da guerra.)
Bacon tinha pois consciência do papel fundamental que estava reservado à
ciência no progresso futuro da humanidade.

4.1.2. Crítica do método aristotélico

Para Aristóteles e para Bacon o método científico consta de dois


momentos, o indutivo e o dedutivo: o momento indutivo consiste em
estabelecer princípios ou leis de carácter geral a partir da observação dos
factos; o momento dedutivo consiste em extrair conclusões a partir dos
princípios gerais previamente estabelecidos. Na concepção geral do
método, Bacon não se afasta basicamente de Aristóteles, embora critique
insistentemente o modo como Aristóteles e os aristotélicos o interpretavam
e utilizavam.
Bacon critica em primeiro lugar a forma como os aristotélicos
praticavam o momento indutivo, sublinhando que a indução aristotélica não
é sistemática nem rigorosa: não é sistemática, porque a recolha se faz sem
qualquer critério, amontoando apenas casos particulares, sem a preocupação
de determinar quais são importantes e quais o não são; não é rigorosa,
porque os aristotélicos costumam extrair conclusões gerais com excessiva
ligeireza a partir de poucos dados, e porque só tomam em consideração os
casos favoráveis, sem se preocuparem com analisar os casos e as
experiências que sejam contrárias à generalidade enunciada.

CONTRA OS ARISTOTÉLICOS: A INDUÇÃO BACONIANA


Há apenas dois caminhos para procurar e descobrir a verdade. Um
parte dos sentidos e dos factos particulares até chegar aos axiomas mais
gerais, e é a partir destes princípios e do que acredita ser verdade
imutável neles que procede à discussão e à descoberta dos intermédios (é
este o caminho usado hoje). O outro caminho faz sair os axiomas dos
sentidos e particulares e eleva-se contínua e progressivamente até chegar;
em última instância, aos princípios mais gerais; este é o caminho
verdadeiro, apesar de não estar demonstrado (...).
Ambos os caminhos partem dos sentidos e dos factos particulares até
chegar aos princípios mais gerais; no entanto, há uma grande diferença
entre eles: enquanto um toca a experiência e os feitos particulares apenas
ao de leve, o outro detém-se sistemática e ordenadamente neles; aquele
estabelece desde o princípio certas generalidades abstractas e inúteis, ao
passo que o outro se eleva gradualmente até àquilo que é realmente mais
conhecido na ordem da natureza.
F. Bacon, Novum Organum.

Bacon
Nasceu em Londres em 1561. Estudou Direito em Cambridge, iniciando uma carreira
política inicialmente caracterizada pelo êxito e posteriormente pelo insucesso. Aos vinte e três
anos ingressou no Parlamento e em 1618 foi nomeado Chanceler. Três anos mais tarde, foi
acusado de aceitar subornos, sendo condenado a pagar uma grande soma à prisão na Torre de
Londres, além de ser expulso do Parlamento e destituído de seus cargos. Não chegou a pagar a
multa e foi libertado após alguns dias de permanência na prisão. A partir desse momento,
dedicou o seu tempo e actividade à filosofia e à ciência. Morreu no ano de 1626.
O projecto de Bacon incluía um ambicioso plano de restauração de todos os ramos do saber
(Instauração magna), embora a maior parte dos escritos projectados tivesse ficado incompleta.
A este projecto pertencem a obra De dignitate et augmentis scientiarum (1623) e o Novum
Organum (1620).

Os aristotélicos praticam e entendem de modo insuficiente o momento


indutivo da ciência. Além disso, Bacon critica a preponderância que o
aristotelismo concede ao momento dedutivo sobre o indutivo, quando
verdadeiramente importante é este último. A preponderância concedida pelo
aristotelismo à dedução manifesta-se no facto de Aristóteles ter criado e
desenvolvido uma lógica da dedução, uma teoria do silogismo dedutivo; a
insuficiência da indução aristotélica manifesta-se no facto de Aristóteles
não ter desenvolvido uma lógica da indução, um sistema de regras para o
raciocínio indutivo.
O objectivo fundamental de Bacon é formular uma lógica da indução. O
próprio título da sua obra mais significativa sobre o assunto, Novum
Organum, exprime tal exigência: ante o organon, aristotélico (o conjunto
das obras lógicas de Aristóteles era conhecido com o título de Organon,
«instrumento»), Bacon pretende um organum, um instrumento novo.

4.2. As fontes dos erros humanos

Se a nova lógica da indução (à qual nos referiremos na próxima secção)


deve proporcionar o caminho positivo pelo qual deverá transitar o labor
científico, antes de o empreender torna-se necessário eliminar os
preconceitos que impossibilitam ao homem um conhecimento objectivo da
natureza. O entendimento humano encontra-se habitualmente ofuscado por
preconceitos e erros. Bacon chama ídolos às fontes gerais dos nossos erros e
distingue quatro tipos fundamentais:

a) Ídolos da tribo. São todas as inclinações, comuns à humanidade em


geral, que nos impelem a interpretar erradamente a natureza. Daí a
tendência que existe em todo o homem para facilmente aceitar como
verdadeiras as hipóteses e explicações que estão mais de acordo com as
suas inclinações, desejos, etc.; a inclinação natural para passar por alto ou
pôr de parte os factos que contradizem as teorias pessoais; a tendência para
interpretar antropomorficamente a natureza, etc.

b) Ídolos da caverna. São os erros que procedem, não de disposições


gerais e comuns a todos os homens, mas de disposições individuais
resultantes do carácter pessoal e da educação recebida, das convicções e
hábitos individuais, etc. («Cada homem» – diz Bacon – «possui uma
caverna pessoal que distorce e ofusca a luz da natureza»).
c) Ídolos da praça pública. São os erros que provêm «do comércio e
associação dos homens entre si. Os homens, efectivamente, comunicam
entre si pela linguagem». Trata-se daqueles erros provenientes do próprio
uso da linguagem, pois o significado das palavras é frequentemente
impreciso. A língua comum condiciona a nossa interpretação das coisas.

d) Ídolos do teatro. Incluem-se neste capítulo os erros provenientes da


aceitação das opiniões dos filósofos antigos, cuja autoridade se acata
acriticamente, unicamente baseados no prestígio que socialmente se lhes
reconhece.

São estes, no entender de Bacon, os quatro tipos mais gerais de


preconceitos que impedem um estudo objectivo da natureza, obstruindo o
autêntico progresso da ciência. Não podemos deixar de reconhecer neste
ponto a lucidez de Bacon. Talvez exageradamente, Condillac formulava
uma verdade ao afirmar que ninguém melhor do que Bacon conheceu as
causas do erro humano.

4.3. A lógica da indução

Para poder construir a ciência, não é suficiente evitar os erros que


continuamente espreitam o entendimento humano; é necessário, ainda,
contar com um método sistemático e rigoroso, com uma lógica da indução.
O objectivo da ciência (ao serviço do domínio da natureza) é, segundo
Bacon, o conhecimento das formas. O conceito baconiano de forma difere
do aristotélico. Bacon fala da forma do calor, do peso, da ductilidade, da
densidade, etc. Ao cientista interessa conhecer em que consistem estas
propriedades físicas, qual é a sua essência, qual a sua forma, em expressão
baconiana. Daí que por vezes entenda as formas como leis: «quando falo de
formas refiro-me apenas àquelas leis e determinações de actualidade
absoluta que governam e constituem qualquer natureza simples – como
calor, leveza, peso – em qualquer matéria e sujeito em que possam dar-se.
Assim, a forma do calor ou a forma da leveza não é outra coisa senão a lei
do calor e a lei da leveza» (Novum Organum, 11, aforismo XVII). É óbvio
que o conhecimento da lei ou forma destas propriedades físicas, destas
naturezas, permitirá produzi-las nos corpos, proporcionando deste modo um
instrumento de domínio e transformação da natureza.
Mas como descobrir estas formas ou leis? Como evitar o erro no
momento de determiná-las? Bacon propõe que as observações realizadas
para a sua determinação se registem em três tábuas: de presença, de
ausência e de graus. Na tábua de presença registar-se-ão cuidadosamente
os casos em que aparece a propriedade (o calor, por exemplo) cuja forma se
procura; na tábua de ausência anotar-se-ão os casos em que tal
propriedade não aparece; na tábua de graus, finalmente, registar-se-ão os
casos em que tal propriedade mostre variações de intensidade. A simples
comparação entre as três tábuas possibilitará o conhecimento da lei ou
forma da propriedade que se investiga (no exemplo, que a lei ou forma do
calor é o movimento rápido de pequenas partículas no interior de um
corpo). A estas tábuas acrescenta Bacon outras regras que possibilitarão
assegurar a eficácia e validade da indução.

CONTRA A TRADIÇÃO: OS ÍDOLOS DO TEATRO


Em suma, há ídolos que se alojaram no espírito dos homens a partir de
diversos dogmas filosóficos e de regras incorrectas de demonstração;
chamo-lhes ídolos do teatro, porque creio que todos os sistemas
filosóficos inventados e propagados até hoje são outras tantas comédias
compostas e representadas contendo mundos fictícios e teatrais. E não
estou a falar apenas dos sistemas hoje em voga nem dos sistemas e seitas
antigos, pois é possível copiar o estilo e compor fábulas em grande
número, na medida em que erros diferentes podem provir, no entanto, de
causas quase comuns. Por outro lado, não me refiro apenas a sistemas
universais mas também a numerosos princípios e axiomas das ciências
que chegaram a prevalecer graças à tradição, à credulidade e à
negligência (…).
F. Bacon, Novum Organum.

4.4. Importância do pensamento de Bacon

A figura de Bacon foi julgada de modos muito díspares pelos


historiadores da ciência e da filosofia. Afirma-se muitas vezes que o seu
contributo para a ciência e para o método científico é escasso ou nulo. De
facto, a concepção baconiana da ciência apresenta insuficiências dignas de
reparo se a compararmos com os avanços científicos e metodológicos
conseguidos na sua época. Bacon ignorou o mais importante do que se
estava realizando diante dos seus olhos no terreno científico: por exemplo,
não tomou em consideração os trabalhos de Galileu, Kepler e Tycho Brahe;
ignorou a importância que as matemáticas possuem na formulação de leis e
teorias científicas; ignorou, finalmente, o papel que a imaginação criadora
desempenha na formulação de hipóteses. Efectivamente, o método que a
ciência utilizou e continua a utilizar não é o proposto por Bacon
(amontoamento de dados e manejo dos mesmos por meio de tábuas), mas o
que foi desenvolvido por Galileu (formulações de hipótese, dedução,
experimentação). Por tudo isso, afirmávamos mais acima que Bacon se
move ainda dentro de uma concepção aristotélica da ciência. No entanto,
não se pode negar a Bacon o mérito indiscutível como crítico dos
preconceitos que impedem o progresso científico, como profeta que
vislumbrou que o domínio do homem sobre a natureza viria da mão da
ciência, como primeiro impulsionador da ideia de que esta deveria
desenvolver-se através do trabalho em colaboração e através de uma
investigação comum e planificada.
8. KEPLER E GALILEU: A LUTA PELO
MÉTODO EXPERIMENTAL

INTRODUÇÃO

No capítulo anterior mostrámos como das três forças culturais do


período renascentista – o humanismo, a reforma e o progresso científico –
foi o último aquele que constituiu o factor mais poderoso de transformação
da cultura e do pensamento europeus.
Neste capítulo ocupar-nos-emos da transformação científica que teve
lugar na primeira metade do século XVII, sobretudo graças à obra de
Kepler e Galileu. Esta revolução teve o seu espectacular campo de batalha
no âmbito da astronomia, ao eliminar a concepção geocêntrica do Universo
e substituindo-a pelo heliocentrismo. Juntamente com a astronomia, a nova
ciência destruiu os fundamentos e os princípios básicos da física de
Aristóteles: finitude do Universo, heterogeneidade das substâncias terrenas
e das celestes (incorruptíveis e inalteráveis), interpretação finalista do
movimento, uniformidade e circularidade do movimento dos corpos
celestes, distinção entre movimentos naturais e movimentos violentos ou
antinaturais, etc. O resultado foi a destruição definitiva da imagem
aristotélica do Universo.
Para esta transformação científica, cujo primeiro protagonista foi
Copérnico, ainda no século XVI, contribuíram a tradição e o conhecimento
dos científicos gregos, promovendo uma atitude platónico-pitagórica
perante a realidade: a estrutura matemática do real. A configuração da nova
ciência e a primazia concedida às matemáticas na interpretação do Universo
determinaram, por conseguinte, uma nova interpretação da razão e um
novo método científico.

Este capítulo está estruturado da seguinte maneira:


1. A astronomia pré-copernicana.
2. Realismo e matemática: Copérnico.
3. Kepler: a procura da pura racionalidade.
4. Galileu e o método experimental.
5. Método resolutivo-compositivo.
1. A ASTRONOMIA PRÉ-COPERNICANA

Talvez nada tenha sido tão decisivo para a configuração do pensamento


moderno como o nascimento da física matemática. Mas esse nascimento só
se conseguiu através de uma contínua luta contra o gigantesco edifício da
física aristotélica, profundamente modificado contudo no decurso da Idade
Média.
E tais mudanças não podiam deixar de produzir-se, pois se o sistema
aristotélico se mostrava fecundo – graças à obra de Tomás de Aquino – para
a cimentação teórica da teologia, só dificilmente podia ajustar-se às
exigências da astronomia – ciência paradoxalmente tanto mais utilizável na
práxis comercial (pense-se na navegação) quanto mais puramente
alcançável pela razão.
Embora posteriormente voltemos ao assunto, vamos indicar aqui as três
grandes exigências da cosmologia aristotélica: geocentrismo, esferas
concêntricas e cristalinas em volta da estável Terra, e movimento uniforme
de tais orbes celestes. Para explicar os dias e as noites Aristóteles recorre ao
primus movens, («primeiro motor»), espécie de alma do mundo por sua vez
movida pelo motor imóvel: Deus.
Esta harmonia, expressão das hipóteses de base da ciência gregam –
finitude do cosmos, uniformidade e circularidade como movimento perfeito
(o mais aproximado da imutabilidade de Deus) –, encontrava-se contudo
perturbada desde o princípio por dois fenómenos: cometas e planetas.
Relativamente aos primeiros a solução proposta era convincente dada a
ausência de instrumentos de precisão: tratar-se-ia de «meteoros», isto é, de
fenómenos produzidos na região sublunar por fricção das capas de ar e fogo
que rodeavam a Terra. Mas os planetas não foram tão fáceis de dominar.
Com efeito, exceptuando o Sol e a Lua, de movimento regular, algumas
«estrelas» variavam periodicamente de intensidade luminosa e outras
(especialmente Vénus e Marte) pareciam comprazer-se em pôr à prova a
paciência do astrónomo, aparecendo, quer em posições opostas, quer
caminhando para trás, em movimento retrógrado. Por isso se lhes chamou
«planetas» (em grego: vagabundo, errante).

1.1. Realismo e positivismo na astronomia

Como adequar a profunda exigência de harmonia e equilíbrio com estes


movimentos aparentemente arbitrários? A solução passa por uma decisão
radical sobre o objecto e alcance da ciência. Ou a ciência tem como missão
exprimir de forma rigorosa e racional o que acontece na natureza
(realismo) ou deve limitar-se a salvar os fenómenos, dando conta das
aparências, traduzindo para a linguagem da razão o aparente, sem se
preocupar com a relação entre o que «se vê» e o que na verdade «é»
(positivismo).
Este convencionalismo positivista pode, por seu turno, deixar para um
saber superior a tarefa de averiguar o que é, ou limitar-se a um puro
fenomenismo que se nega a ir mais além do que é dado. Na ciência natural,
a primeira posição é assumida por Platão: o mundo material – diz – copia
no possível a perfeição das ideias; por isso, não pode pedir-se ao estudo
material mais do que um «conto verosímil» (Timeu). A segunda posição
corresponde ao positivismo de Mach e Avenarius do século dezanove.
Assim, o pano de fundo teórico de Platão e as exigências práticas de
medição do céu para a navegação configuram o nascimento positivista
da astronomia (após os infrutíferos esforços realistas de Eudóxío).
Duas hipóteses podiam, evidentemente, salvar os fenómenos: a
heliocêntrica e a geocêntrica. A primeira foi proposta por Aristarco de
Samos (século III a.C.): o Sol seria o centro do cosmos; a superfície
exterior, o mundo das estrelas fixas; e o interior seria formado por sete
órbitas concêntricas (Mercúrio, Lua, Terra, Marte, Vénus, Júpiter e
Saturno), de diferentes velocidades e dimensões. Parece que pensava
também numa rotação diária da Terra sobre o seu eixo Norte-Sul. Deste
modo se podia explicar por que variavam os planetas de brilho e de
trajectória ao serem vistos da Terra.
No entanto, o esquema não vingou. Efectivamente, ao explicar os
fenómenos celestes, opunha-se brutalmente tanto à física como ao «senso
comum» do seu tempo. Nada, com efeito, é mais sensível do que a
estabilidade e a imobilidade da Terra. Por outro lado, há ainda objecções do
ponto de vista científico: crê-se que Aristarco não acompanhou a sua
hipótese com os cálculos e medições indispensáveis. Mas há uma objecção
ainda mais séria: se a Terra se move em torno do Sol, então estará às vezes
mais próxima de uma determinada região do zodíaco (e as estrelas estarão
mais brilhantes) e outras vezes mais afastada. Tanto o brilho como a
direcção em que aparecem as estrelas de referência deverão variar (é o
fenómeno hoje denominado paralaxe anual das estrelas).
Mas, segundo o que então podia apreciar-se, as estrelas estavam fixas e
brilhavam sempre de forma igual. Em consequência, ou as estrelas devem
estar a uma distância imensa em relação à órbita terrestre, ou o sistema de
Aristarco não é válido. É natural que se seguisse a segunda opção: até ao
século XVII, os astrónomos não puderam medir ângulos inferiores a meio
grau; Bessel descobriu em 1838, pela primeira vez, que a estrela mais
próxima mostra uma paralaxe de um segundo de arco.

POR QUE RAZÃO OS ANTIGOS PENSAVAM QUE A TERRA


ESTAVA IMÓVEL NO MEIO DO MUNDO COMO SE FOSSE O
SEU CENTRO
(16) Foi por essas e outras razões que os filósofos antigos tentaram
demonstrar à força que a Terra era o centro do mundo, alegando como
causa principal a gravidade e a leveza. Com efeito, a terra é o elemento
mais pesado e atrai todas as coisas pesadas, que se precipitam para o seu
interior. Ora, sendo a terra redonda (e porque, por virtude da sua
natureza, atrai os corpos pesados de todos os lados e perpendicularmente
à sua superfície), essas coisas encontrar-se-iam no seu centro se não
fossem retidas na sua superfície, dado que uma linha recta cai
perpendicularmente à superfície tangencial da esfera e passa pelo centro.
Deste modo, parece que as coisas são atraídas para o centro e aí
permanecem. E assim, em última instância, a Terra estaria em repouso no
centro e permaneceria imóvel devido ao peso das coisas que atrai a si.
(26) Também tentaram prová-lo servindo-se de um raciocínio baseado
na natureza do movimento. Com efeito, Aristóteles afirma que é simples
o movimento de um corpo uno e simples; mas dentro dos movimentos há
um que é circular e outro rectilíneo, e mesmo nestes há os que são para
cima e outros para baixo. Por conseguinte, o movimento simples dirige-se
para o centro (para baixo), do centro (para cima) ou à volta do centro
(circular). Sendo elementos mais pesados, a terra e a água são arrastadas
para baixo (para o centro), ao passo que o ar e o fogo, como mais leves,
são arrastados para cima e por isso afastam-se do centro. Deste modo,
será conveniente atribuir um movimento rectilíneo a estes quatro
elementos; por sua vez, aos corpos celestes será atribuído um movimento
à volta do centro. É o que Aristóteles diz.
(36) Mas Ptolomeu de Alexandrina afirma que sucederia o contrário
se a Terra girasse, pelo menos uma revolução por dia. Na verdade, esse
movimento seria muito violento e excessivamente rápido, já que daria a
volta à Terra em 24 horas e assim nunca permitiria a união das coisas mas
a sua dispersão, a menos que alguma força as mantivesse unidas.
Também referiu que, assim dispersa, a Terra teria há muito passado para
além dos próprios céus (o que é perfeitamente ridículo); e além do mais,
todos os seres animados e coisas soltas nunca permaneceriam estáveis.
Aliás, as coisas nunca se dirigiriam para o lugar destinado, mesmo que
caíssem em linha perpendicular, dado que entretanto esse lugar se teria
deslocado devido a essa vertiginosa rapidez. Se assim fosse, também
verificaríamos que as nuvens e tudo o que flutua no ar era sempre
arrastado para o acaso (ocidente).
Copérnico, Das Revoluções dos Corpos Celestes

1.2. O modelo ptolomaico

Optou-se, portanto, pela hipótese geocêntrica. Primeiro Hiparco e mais


tarde (século II a.C.) Cláudio Ptolomeu de Alexandria, propuseram um
sistema que se imporia durante dezassete séculos, e tão válido e preciso que
os árabes o denominariam «o maior» (almagesto, corrupção do grego
mégistos: «o maior»).
Ptolomeu afirma explicitamente que o seu sistema não pretende
descobrir a realidade: é apenas um meio de cálculo. É lógico que adoptasse
o esquema positivista, pois o almagesto opõe-se flagrantemente à física
aristotélica.
Em primeiro lugar, as órbitas são levemente excêntricas. Só assim podia
explicar-se a diferença de brilho dos planetas e o facto de o Sol ao meio-dia
parecer maior no Inverno do que no Verão. Mas, então, a Terra não é o
verdadeiro centro do cosmos.
Em segundo lugar, a órbita do planeta ( P) não gira em volta do ponto
excêntrico (O) à terra (T), mas descreve um círculo (epiciclo) em torno de
um ponto imaginário (D), o qual por sua vez gera uma nova circunferência
(deferente) em volta do ponto excêntrico:
Este artifício permite explicar os movimentos retrógrados (é fácil ver
que a resultante é um movimento «em caracol»), mas então os planetas não
giram em volta da Terra. Houve também necessidade de introduzir outra
modificação em alguns casos. A ciência grega postulava a uniformidade dos
movimentos circulares. Mas os planetas parecem andar por vezes mais
depressa. Por isso, houve necessidade de fingir um equanto, isto é, um
ponto excêntrico ao círculo. O ponto D gira uniformemente em volta do
equanto O mas, em consequência, não o faz em volta de E.
Não é de estranhar que Afonso X, perante o sistema ptolomaico, tivesse
comentado que se Deus lhe tivesse pedido conselho para fazer o mundo o
resultado não teria sido tão complicado.

No entanto, o modelo manteve-se porque:

1. continuava a aceitar a ideia de uma Terra quieta e mais ou menos no


centro;
2. utilizava exclusivamente movimentos circulares e uniformes;
3. servia para predizer as alterações celestes com bastante precisão;
4. era flexível: permitia correcções (novos círculos e equantos) à medida
que aumentava a precisão das observações.

Foi o quarto ponto o responsável pela derrocada do sistema; se


Aristóteles necessitava de 55 esferas para explicar o «sistema terrestre», no
século XV utilizavam-se mais de 80 movimentos simultâneos para explicar
os sete corpos celestes. Já no século XIV Nicolau de Oresme postulara a
rotação da Terra a fim de simplificar o complicado artefacto.
Posteriormente, o infinitismo de Nicolau de Cusa prepararia o terreno para
refutar a grande objecção contra o heliocentrismo: a ausência de paralaxe.
Mas o grande destruidor, como é sabido, seria um clérigo polaco: Nicolau
Copérnico (1473-1543).
2. REALISMO E MATEMÁTICA: COPÉRNICO

Copérnico recebeu no seu leito de morte as provas do primeiro livro da


modernidade: Das Revoluções dos Corpos Celestes. Não pôde, pois, ler o
prólogo que o editor Andreas Osiander, escreveu para a sua obra. Neste
prólogo, Osiander pretende apresentar o De Revolutionibus como um novo
esquema positivista, um conjunto de hipóteses matemáticas que nada
tinham a ver com a realidade. Como tal foi aceite e utilizado por Erasmo
Reinhold para confeccionar as Tábuas Prussianas (1551) e para reformar o
calendário (Gregório XIII, 1582). No entanto, a leitura da obra sugere
fortemente que Copérnico pretendia fazer valer o seu modelo como
real. Por exemplo, diz:

«E assim, supondo os movimentos que nesta obra atribuo à Terra,


encontrei por fim, após longas e cuidadosas investigações, que quando os
movimentos dos outros planetas são referidos à circulação da Terra e
computados para a revolução de cada estrela, não só os fenómenos se
seguem necessariamente daí, mas também a ordem e a magnitude das
estrelas e todos os seus corpos e o próprio céu estão tão interligados que
nada pode mudar-se em parte alguma sem confusão do resto e de todo o
Universo inteiro.»

Para Copérnico, a rotação da Terra sobre o seu eixo e a translação anual


em torno do Sol eram factos físicos e não artifícios matemáticos. Aliás,
qualquer astrónomo podia verificar que as constantes de epiciclos e
deferentes usadas por Ptolomeu para Mercúrio e Vénus estavam invertidas
relativamente às dos outros planetas: prova de que estes estavam mais
próximos do Sol do que a Terra.

2.1. A beleza do simples

Havia outras razões para a mudança de centro: Copérnico necessitava


apenas de 34 círculos, contra os 80 ptolomaicos. Epiciclos e deferentes
continuavam a ser usados, mas evitava-se o «escândalo» dos equantos
fazendo com que as órbitas em volta do Sol descrevessem círculos com
movimento uniforme. É esta procura do simples e harmónico – a
restauração da harmonia celeste – que guia o pensamento de Copérnico.
Paradoxalmente, o pioneiro da modernidade tenta com todas as suas forças
voltar à pureza grega: o movimento uniforme e circular é o único «natural»,
o único perfeito – a imagem da própria divindade. Se a causa é eterna e
imutável, as esferas celestes devem imitar o seu movimento. Porque «a
sabedoria da natureza é tal que não produz nada de supérfluo e inútil».

Copérnico
Nasce em Torun (Polónia) em 1473; de origem germânica, seu tio, bispo de Warmia,
facilitou-lhe os estudos em Cracóvia e depois em Itália, assim como uma sinecura em Frombork
(Frauenburg), onde faleceu em 1543. Permaneceu sempre fiel à Igreja Católica, sendo atacado
por Lutero e Melanchton. Como bom sábio renascentista, realizou estudos sobre medicina,
geografia (mapa da Pomerânia) e economia (cunhagem de moeda). Já em 1507, fez um esboço
da sua teoria heliocêntrica (Commentariolus). Pôde ver as provas da sua obra, Das Revoluções
dos Corpos Celestes, no leito de morte. Dele se disse: «De grande inteligência não só nas
matemáticas, mas também nas questões físicas e em todas as demais». Mas talvez emocione
mais saber que foi: «Administrador dos episcopais e de vida incólume».

Copérnico observa dois mundos. Se por um lado regressa a Platão,


vendo nas matemáticas a harmonia do Universo, onde tudo está sopesado e
equilibrado, por outro eleva o mundo sublunar à categoria celeste,
aproximando assim os dois mundos: Terra e céu, tão cuidadosamente
diferenciados no pensamento grego. Também a Terra, sua descrição e
movimentos estão a partir de agora submetidos às matemáticas. Esta
profunda mudança, esta unificação (pela primeira vez, pode falar-se de
universo) tem claras raízes cristãs. O mundo criado por Deus não admite
distinções nem escalas; tudo é valioso nele. O Universo é um mecanismo
transparente à matemática e «fundado pelo melhor e mais regular artífice».
Uma consequência desta cristianização platonizante é a devolução do
centro do sistema ao Sol, imagem mesma de Deus: «Mas, no meio de tudo,
está o Sol. Porque, neste templo formosíssimo, quem poderia colocar esta
lâmpada em outro ou melhor lugar do que esse, de onde pode ao mesmo
tempo iluminar o conjunto? Alguns, e não sem razão, chamam-lhe a luz do
mundo; outros, a alma ou governante. Trismegisto chama-lhe o Deus
visível, e Sófocles, na sua Electra, o que tudo vê. Assim, na realidade, o
Sol, sentado no trono real, dirige a ronda da família dos astros.»
Voltaremos a encontrar esta heliolatria, mais acentuada se possível, em
Kepler.

2.2. O projecto matemático

São também significativas as respostas que Copérnico dá às possíveis


objecções ao seu sistema. Assim, à objecção de mudança de centro,
Copérnico opõe o seu platonismo contra Aristóteles (também nisto seguia
Oresme e Cusa): a gravidade é um fenómeno local produzido pela tendência
da matéria para formar massas esféricas. Daí se segue que a esfera é o corpo
mais perfeito: o que «merece» ocupar o centro. Mas o Sol é a esfera maior e
mais perfeita; logo, deve ocupar a posição central. Também foi contestada a
objecção de falta de paralaxe de um modo que hoje sabemos correcto, mas
que para a época não deixava de ser uma simples hipótese:

«O tamanho do mundo é tal que a distância da Terra ao Sol, embora


apreciável em comparação com as órbitas de outros planetas, é como nada
quando se compara com a esfera das estrelas fixas».

A REVOLUÇÃO COPERNICANA
Mas deixemos os filósofos a discussão de saber se o inundo é finito ou
infinito. De qualquer modo, sabemos que a Terra é delimitada nos seus
pólos por uma superfície esférica. Em vez de estarmos a abalar o mundo
inteiro, cujos limites ignoramos e que nem sequer podemos conhecer, por
que razão hesitamos nós em atribuir-lhe uma mobilidade de acordo com a
sua natureza e forma? E por que razão não admitimos também que esta
revolução diária é uma é certeza na Terra e uma aparência no céu? Aliás,
isto está até de acordo com o que Eneias (de Virgílio) disse: Ao sairmos
de um porto, as terras e cidades retrocedem.
Com efeito, quando um navio calmamente sobre as águas, os
marinheiros (por obra do seu próprio movimento) crêem que as coisas se
afastam deles, ao mesmo tempo que pensam que eles próprios e as coisas
perto de si estão imóveis. Ora, o mesmo se passa com o movimento da
Terra, pois parece-nos que o mundo gira à volta dela (...).
Na verdade, parece-me bastante absurdo atribuir o movimento ao
continente ou localizante e não ao conteúdo ou localizado que é a Terra.
Finalmente, e sendo manifesto que os planetas se aproximam e afastam
da Terra, será sempre centrípeta e centrífugo o movimento de um único
corpo à volta do centro (que muitos querem que seja o centro da Terra).
Deste modo, devemos conceber genericamente o movimento à volta do
centro (circular), e que cada movimento se reporta sempre ao seu centro.
Por estas razões, o movimento da Terra é mais provável do que a sua
imobilidade, sobretudo no que diz respeito à revolução diária, que é
própria, da Terra.
Copérnico, Das Revoluções dos Corpos Celestes.

Por último, e segundo Aristóteles, a cada corpo elementar (os astros)


corresponde um só movimento natural. Copérnico propunha três para a
Terra: rotação, translação e «libração» (um possível movimento de
oscilação sobre a eclíptica, para explicar a precisão dos equinócios.
Cálculos mais exactos permitiram a Tycho Brahe excluir este movimento).
Mas Copérnico não podia explicar esta proliferação de movimentos
diferentes, prisioneiro ainda dos seus intentos de conciliação com a
Antiguidade.
Temos então de perguntar-nos como pôde o sistema copernicano triunfar
com respostas tão pouco satisfatórias como estas. Em primeiro lugar, a
simplicidade e harmonia, que se deviam ao facto de fornecer uma
explicação unificada de movimentos muito diversos, mas que no entanto
não era mais simples só pelo facto de precisar de menos e de mais simples
cálculos matemáticos. A sua crença nas librações submetia o sistema solar a
uma dança trepidante, na verdade pouco harmónica. O cálculo de Marte
estava felizmente mal estabelecido (felizmente porque, por um lado, a
escassa viabilidade das observações possibilitou a consecução do sistema
copernicano aceitando a margem de erro então comprovado; por outro,
porque a correcção do erro orbital levaria Kepler, como veremos, a
descobrir as suas famosas leis). Para cúmulo, também não havia aqui um
verdadeiro centro. Apesar de todos os louvores ao Sol, as órbitas eram
levemente excêntricas (sempre podia desculpar-se platonicamente tal
excentricidade aduzindo a imperfeição da matéria).

As vantagens do copernicanismo eram em princípio de ordem


técnica:

1. permitia a passagem directa das observações aos parâmetros teóricos;


2. estabelecia um critério para calcular as posições e distâncias relativas
dos planetas;
3. sugeria a solução correcta para o problema da medição da latitude.

Mas nada disto explica o empenho heróico que homens como Kepler e
Galileu poriam em defender a «revolução copernicana». É lícito suspeitar
que a razão profunda deste empenho se deveu a razões metafísicas de tipo
platonizante: o harmónico e matematicamente simples não é só o mais belo
mas também o único verdadeiro. A razão humana assemelha-se de algum
modo à divina quando contempla o cosmos como um mecanismo
perfeitamente regulado. Quando Copérnico rompeu o dualismo grego céu-
terra, fê-lo para elevar o mundo sublunar à categoria celeste, e não o inverso
(como faria certamente Newton). Em última instância, algo é verdadeiro
se, e somente se, se deixa reduzir ao esquema prévio do projecto
matemático. Precisamente por aqui viria a genial modificação kepleriana.
O sistema de Copérnico mostrava efectivamente dois pontos obscuros,
inadmissíveis para um platónico consequente: a imprecisão da órbita
marciana e a (pequena) excentricidade do Sol.
Em 1572 e 1577 apareceram duas novas «estrelas» no céu (na realidade,
cometas). O aperfeiçoamento nos métodos de observação astronómica
permitiu determinar a sua posição: encontravam-se sem dúvida para além
da órbita sublunar. O imaculado e divino céu aristotélico desintegrava-se, e
até o carácter concluso da criação (terminada no sétimo dia) era posto em
causa face a algo que era já um facto e não uma teoria mais ou menos
estetizante como a de Copérnico.

O último quartel do século XVI apresenta-se-nos por isso como uma


frenética ebulição de ideias, onde as contínuas descobertas da fragilidade do
sistema aristotélico-ptolomaico se unem às contínuas hipóteses para tentar
modificar a grande estrutura mas sem a destruir por completo.
3. KEPLER: PROCURA DA PURA
RACIONALIDADE

3.1. Tentativas de conciliação

Assim, o grande astrónomo Tycho Brahe (1546-1601) rejeita as esferas


cristalinas que sustentariam os planetas e sugere um novo sistema cósmico
(1588), conciliador entre Copérnico e Ptolomeu: a Lua, o Sol e a esfera das
estrelas fixas girariam em volta da Terra, enquanto os cinco planetas o
fariam em volta do Sol. O sistema – imediatamente adoptado pelos eruditos
da Companhia de Jesus – era geometricamente equivalente ao copernicano,
com a vantagem de evitar os equantos e com uma maior exactidão nas
observações (de facto, Tycho Brahe é considerado o astrónomo que maior
soma de dados e observações conseguiu antes da descoberta do telescópio).
Sobretudo, o novo sistema não afectava em nada a ordem tão afanosamente
estabelecida ao longo dos séculos.
Giordano Bruno (1548-1600), pelo contrário, levaria às últimas
consequências a revolução copernicana. A rejeição absoluta das orbes
cristalinas leva-o a imaginar uma infinidade de mundos simultaneamente
existentes, nos quais planetas e estrelas girariam na imensidade de um
espaço vazio e infinito. Por causa disso e pelas implicações teológicas
audazes – e heréticas – que extraiu da infinidade dos mundos e do espaço
foi empalado e queimado pela Inquisição romana em 1600.
Por sua vez o astrónomo Michael Mästlin (1550-1631) estudou
cuidadosamente a órbita do cometa de 1577, declarando que só o sistema
copernicano podia explicar a sua presença, embora insistisse nas muitas
inexactidões cometidas pelo sinecurista polaco. Pedia-se, pois, na época
um maior rigor e precisão nos dados astronómicos e uma teoria que,
com a base na copernicana, conseguisse conjugar harmonicamente as novas
descobertas e as exigências da razão matematizante, de raiz platónica. O
homem que logrou levar a cabo tal empresa foi, significativamente,
discípulo e assistente de Mästlin e de Tycho Brahe, assentando a
astronomia moderna em bases sólidas. O seu nome é Johannes Kepler
(1571-1630).

3.2. A obscura física e a clara matemática

Kepler não era somente um minucioso observador tal como o seu mestre
Brahe; era também um grande matemático e sobretudo um fervoroso
místico que acreditava na magia dos números e na harmonia musical das
esferas. Assim, a paixão obsessiva pela exactidão matemática era nele
reforçada pela crença num Universo perfeito, criado e regido por um Deus
matemático. Outro elemento influiria decisivamente na sua formação:
William Gilbert (1540-1603) publicara o seu De Magnete em 1600. Nesta
obra – a base dos estudos sobre o magnetismo – entendia-se a Terra como
um gigantesco íman: a gravidade mais não seria do que uma forma de
atracção magnética. Considerem-se as implicações astronómicas que esta
teoria iria ter na mente de Kepler. A destruição das esferas cristalinas
carecia de uma explicação acerca da razão por que estrelas e planetas não se
dispersavam nos espaços infinitos. «Algo» devia conservá-los nas suas
órbitas. Transpondo o magnetismo terrestre para o Sol, não seria essa força
que explicaria o sistema? Kepler estava deste modo a aproximar-se da
teoria newtoniana. No entanto, a sua obsessão pela precisão matemática
impediu-o de chegar a tal resultado, ao observar ligeiras variações na órbita
lunar. «Abandono» – diria numa famosa carta – «as obscuridades da física
para me refugiar nas claridades da matemática».
Nestas claridades, com efeito, não tinha rival. A sua primeira grande
obra, o Mysterium cosmographicum (1596), mostra-nos Kepler entregue a
especulações dignas do demiurgo platónico. O problema fundamental seria:
como relacionar a distribuição espacial das órbitas com os movimentos dos
elementos do sistema solar? A solução kepleriana seria a de relacionar as
diferentes órbitas com os cinco poliedros regulares: cubo, tetraedro,
dodecaedro, icosaedro e octaedro, inscritos e circunscritos sucessivamente
em esferas. O sorriso que hoje poderia produzir-se perante semelhante
solução apaga-se se recordarmos que especulações deste tipo foram a base
da famosa lei de Bode-Titius (que relaciona as distâncias orbitais com a
série dos números naturais, e que ajudou à descoberta de Neptuno e Ceres).

Johannes Kepler
Nasce em Weil em 1575 e morre em Ratisbona em 1630. A sua vida apresenta uma tal
quantidade de desgraças e atribulações que não pode evitar-se a suspeita de que o grande
astrónomo se refugiou nos céus para fugir da terra, sendo as suas matemáticas, por sua vez, um
exorcismo e uma droga contra a loucura. Uma mãe que acaba por morrer no cárcere acusada de
bruxaria e que só se salva da fogueira graças à intervenção de seu famoso filho, uma mulher que
morre louca por se ter azedado o seu mau carácter, uma segunda que lhe dá sete filhos que
morrem todos antes do pai, e uma vida cheia de perseguições – os católicos querem matá-lo por
ser protestante, os protestantes por ter vivido entre os católicos – todos estes infortúnios
configuram uma moderna história de Job, só aliviada pelos dois grandes sucessos: o acesso aos
dados e instrumentos de Tycho Brahe – prazer que só uma mente científica pode entender – e a
protecção de Rodolfo II, a quem faria o horóscopo (Tábuas Rudolfinas, 1627). Naturalmente,
foram-lhe outorgados fama e dinheiro por ser astrólogo e não astrónomo. E parece que o próprio
Kepler acreditava na influência dos astros; se assim é, esta não lhe podia ter sido mais nefasta.

Mas Kepler era um realista; não se conformava com fingir hipóteses,


mas desejava confirmar empiricamente o seu sistema geométrico. Por isso
se dirigiu a Praga a fim de trabalhar com Tycho Brahe. Os dados com que
ali pôde trabalhar levaram-no a abandonar a sua teoria, mas abriram-lhe o
caminho para a sua grande obra, a Astronomia Nova Aitiologetos seu
Physica Coelestis («Nova Astronomia em que se dá razão das causas, ou
física celeste»), de 1609.

3.3. A queda do movimento circular


É na Astronomia Nova que aparecem as duas primeiras leis do
movimento celeste:

1. Os planetas movem-se em elipses, com o Sol num dos seus focos.


2. Cada planeta move-se de forma aureolarmente uniforme, isto é, a
linha que une o seu centro com o do Sol varre áreas iguais em
tempos iguais.

A primeira lei supõe uma revolução na história do pensamento


ocidental: a queda da circularidade como movimento natural perfeito (uma
concepção a que nem Copérnico nem Galileu conseguiram esquivar-se). Na
descoberta desta lei confluem as duas grandes directrizes do pensamento
kepleriano: o respeito perante os dados recolhidos pela observação e a sua
filosofia platonizante. A conversão das órbitas em elipses foi-lhe imposta
pela impossibilidade de colocar o planeta Marte num movimento circular.
Mesmo utilizando equantos, havia uma discrepância de oito minutos de
arco entre os dados e as predições de Copérnico.
Pois bem, as medições de Tycho Brahe não davam em média um erro
maior do que cerca de quatro minutos de arco. Aqui se revela a grandeza de
Kepler e o sinal dos novos tempos: a teoria guia e dirige a observação; mas
esta é o juiz último e inapelável. Todo o edifício da física e astronomia
antigas caía por terra ao não poder explicar um erro de mais ou menos 4’. O
próprio Kepler deixa-nos entrever a sua gigantesca luta, ao afirmar:

DA HARMONIA DO MUNDO
Para o leitor actual, que associa a ciência da natureza a concepções
muito precisas, duas coisas saltam à vista:
1. Para Kepler, a ciência natural não é de modo algum um meio que
sirva aos fins materiais do homem ou à sua técnica, que com a sua ajuda
possa sentir-se menos incómodo num mundo imperfeito ou que lhe
proporcione o caminho do progresso. Pelo contrário, a ciência é um meio
para a elevação do espírito, um caminho para encontrar repouso e alívio
na contemplação da perfeição eterna do universo criado.
2. Em relação estreita com o anterior há ainda o surpreendente
menosprezo pelo empírico. A experiência não é mais do que uma
descoberta fortuita de factos, os quais podem ser concebidos melhor
partindo dos princípios apriorísticos. A coincidência completa entre a
ordem das «coisas do sentido», obras de Deus, e as leis matemáticas e
inteligíveis, «ideias» de Deus, é o tema basilar do harmonices mundi.
Motivos platónicos e neoplatónicos levaram Kepler à concepção de que
ler a obra de Deus – a natureza – não é mais do que descobrir as
relações entre as quantidades e as figuras geométricas.
«A geometria, eterna como Deus e surgida do espírito divino, serviu a
Deus para formar o mundo, para que este funcionasse melhor e fosse
mais belo e mais semelhante ao seu Criador».
Heisenberg, A Imagem da Natureza na Física Actual

«O meu primeiro erro foi tomar a trajectória do planeta como um círculo


perfeito, e este erro roubou-me a maior parte do meu tempo, por ser o que
ensinava a autoridade de todos os filósofos e estar de acordo com a
metafísica.» Ora bem, a confiança na observação é uma das razões do
abandono da circularidade. A outra razão é ditada pelo platonismo
kepleriano: uma vez desfeitas as esferas celestes, qualquer marcação podia
ter servido para explicar geometricamente as órbitas. No entanto o
pensamento negativo vem de novo em auxílio da modernidade. Dois
grandes homens lançaram as bases da ciência moderna: Galileu e Kepler.
Mas enquanto o primeiro desfaz, como veremos, a distinção ontológica
entre as figuras geométricas ideais e os corpos materiais, reduzindo estes
àquelas, Kepler mantém audazmente o quiasma platónico entre o ideal e o
realizado. As órbitas deveriam ser circulares, mas ao estarem realizadas
material e empiricamente não podem seguir na perfeição as intenções do
demiurgo-criador, são antes desviadas ligeiramente pela acção da natureza,
das «faculdades naturais e animais», como nos diz Kepler, na melhor linha
do Timeu, no seu Epitome Astronomiae Copernicanae, de 1620.

3.4. A lei da harmonia e o sistema solar

Por outro lado, há numerosos indícios de que a adopção do


copernicanismo por parte de Kepler foi motivada por razões de ordem
mística: a posição central do Sol e também a confusão deste com o próprio
Deus (ou, pelo menos, com a sua manifestação).
Uma leitura atenta do fragmento seguinte pode servir como excelente
ponto de meditação sobre a relação constante entre metafísica e ciência
positiva no pensamento ocidental:

«Em primeiro lugar – não o vá negar um cego – o corpo mais excelente


do Universo é o Sol, cuja inteira essência não é outra coisa senão a luz mais
pura, à qual nenhuma estrela pode comparar-se. Só ele, e ele só, é o
produtor, conservador e aquecedor de todas as coisas; é fonte de luz, rica
em frutuoso calor, a mais bela, límpida e formosa à vista, fonte de visão,
pintora de todas as cores, embora em si mesma livre de cor. É chamado rei
dos planetas pelo seu movimento, o coração do Universo pelo seu poder, o
olho do mundo pela sua beleza. Só a ele deveríamos julgar digno do
Altíssimo Deus, se Deus quisesse um domicílio material onde morar com os
santos anjos (...). Com todo o direito nos voltamos pois para o Sol, que é o
único que, em virtude de sua dignidade e poder, parece adequado e certo
para ser o lar do próprio Deus, para não dizer do primeiro motor»

Esta heliolatria é confirmada quando Kepler audazmente equipara a


harmonia cósmica com o símbolo trinitário. O Sol seria Deus Pai; a esfera
das estrelas fixas, o Filho; o meio etéreo que fixaria as relações do todo
mantendo cada planeta em sua órbita, seria o Espírito Santo. Importa aqui
advertir novamente contra qualquer manifestação de «superioridade» em
relação a Kepler por parte do homem «moderno». Sem as especulações
heliolátricas de Kepler não se teria edificado a nova astronomia. Sem a
sua equiparação do meio etéreo com o Espírito Santo não se teria chegado
aos conceitos fundamentais de espaço absoluto e de gravitação universal em
Newton. Também aqui, como na Idade Média, importa dizer: fides
quaerens intellectum, a fé procura a sua modelagem racional.
A segunda lei não comporta implicações tão importantes do ponto de
vista filosófico. Convém notar que com ela os equantos desaparecem
finalmente da astronomia, respeitando contudo a exigência de uniformidade
do movimento angular. Ficava por explicar a causa física de o planeta girar
mais depressa no seu periélio. Como antes se assinalou, Kepler sugeriu –
correctamente – que se devia a uma força emanada pelo Sol, mas
continuava a concebê-la de uma forma quase-mística, com poderes ou
faculdades que «atraiam» do planeta.
Por último, em 1619 publica-se De Harmonice Mundi. Também aqui
nos surpreende a dualidade kepleriana entre achados empíricos e
especulação desenfreada. É de facto no decurso de desesperados esforços
que estabelece uma proporção matemática entre as órbitas que, se fosse
transcrita em papel pautado mostrar-nos-ia a famosa música celestial
pitagórica; daí decorre a terceira lei:

Os quadrados dos períodos de revolução de dois planetas quaisquer são


proporcionais ao cubo das suas distâncias médias até ao Sol:

Ou, mais simplesmente, se T é o período de um planeta dado e R o raio


médio da sua órbita, então:
sendo k uma constante com o mesmo valor para todos os planetas.

A primeira lei põe em evidência a relação entre cada planeta e o Sol. A


segunda, o movimento angular da sua órbita. Mas é a terceira, através de
k que consegue unir todos os planetas num sistema. Só a partir de Kepler
é que se pode falar num «sistema solar». E a terceira lei é com justiça
denominada lei de harmonia do movimento planetário.

Ficava assim explicitamente manifesta a imagem do mundo da


modernidade: um maravilhoso mecanismo de relojoaria regido por leis
imutáveis e extrínsecas aos corpos (é a queda do conceito grego de physis).
Nas palavras do próprio Kepler:

«O meu propósito foi demonstrar que a máquina celeste não deve


comparar-se a um organismo divino mas antes a uma obra de relojoaria.
Assim como naquela toda a variedade de movimentos são produto de uma
simples força magnética, também no caso da máquina de um relógio todos
os seus movimentos são causados por um simples peso. Demonstro, aliás,
como esta concepção física deve apresentar-se através do cálculo e da
geometria.» (Carta a Herwart, 1605).

A força magnética de atracção era, efectivamente, a causa física de que


Kepler necessitava para conciliar realidade e idealidade, física e cálculo.
Mas sabemos que não pôde chegar a descrevê-la matematicamente. Para
isso necessitava da lei de inércia, implicitamente estabelecida por Galileu.
Mas estes dois grandes homens estavam condenados a não se entenderem.
Apesar das suas relações amistosas – como se vê na sua correspondência –,
Kepler foi incapaz de dar o passo gigantesco de Galileu: a
matematização total do Universo. O astrónomo alemão oscilou toda a sua
vida, indeciso entre a fidelidade à observação e à especulação teórica, sem
saber fundir uma na outra. Por isso, podemos dizer que a glória da
descoberta do método experimental cabe por inteiro a Galileu.
O grande paradoxo da obra de Kepler, talvez o maior racionalista da
história da ciência, está em que as suas três leis descrevem factos empíricos
sem uma base teórica sólida. Mais ainda, a terceira lei foi descoberta –
sabemo-lo hoje – pelo método de tentativa e erro, por um fatigante
tacteamento no empírico, sem o guia da razão, dessa razão cujo maior
servidor seria Galileu Galilei (1564-1642).
O ponto de coincidência entre Kepler e Galileu, aquilo que os torna
merecedores (com Descartes) do título de primeiros homens da
modernidade é a insistência em apresentar as suas descobertas na
linguagem das matemáticas; quer dizer, em fazer da experiência um
sistema. Mas enquanto Kepler, fiel ao seu platonismo, tenta adequar na
medida do possível um empirismo instável («as obscuridades da física») ao
mundo estável e eterno das ideias puras («as claridades da matemática»),
Galileu leva às últimas consequências o programa pitagórico: o mundo
terrestre não copia o celeste por meio das matemáticas, pois que só há um
mundo e uma chave para decifrar os seus enigmas:

«A filosofia está escrita neste vasto livro sempre aberto perante os


nossos olhos: refiro-me ao Universo; mas só o podemos ler se tivermos
aprendido a linguagem e se nos tivermos familiarizado com as letras em
que está escrito. Está escrito em linguagem matemática e as letras são
triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é
humanamente impossível entender uma só palavra» (Il Saggiatore, 1623:
«O Ensaísta»).

Talvez não haja na história da ciência moderna texto tão decisivo como
este. A leitura do mundo com olhos matemáticos tinha necessariamente de
chocar de frente com os dois grandes poderes do seu tempo: a ciência
aristotélica e a Igreja. Convém, pois, recordar primeiro, resumidamente, as
posições dos dois poderes.
DEUS, A QUANTIDADE E AS LEIS DO UNIVERSO
No princípio, Deus criou a matéria; ora, conhecendo a definição desta,
creio que se torna muito claro por que razão no princípio Deus criou a
matéria e não outra coisa (...). Deus quis que a quantidade existisse
primeiro para que houvesse uma comparação entre o curvo e o recto. Por
isso apenas me parece divino o Cusano e outros: porque prestaram
atenção à relação mútua entre o curvo e o recto que se atreveram a
comparar o curvo com Deus e o recto com as criaturas. E os méritos
daqueles que compararam o Criador com as criaturas, Deus com o
homem e os juízos divinos com os com os humanos, não foram maiores
do que os daqueles que tentaram comparar uma curva com uma recta ou
um círculo com um quadrado (...).
Mas, em última instância, por que razão é que Deus quis distinguir o
curvo do recto e estabelecer a nobreza do curvo? Porquê? Porque era
absolutamente necessário que o Criador Supremo realizasse a obra mais
bela, pois nem agora nem nunca se pode evitar que o melhor dos seres
não crie a mais bela das obras (...). Mas como o Criador do mundo
preconcebeu na sua mente (utilizando termos humanos, para que o
entendamos como homens que somos) uma Ideia do mundo e a Ideia
existe primeiro que a coisa e, além disso, como dissemos atrás, é anterior
a uma coisa perfeita, ela própria será óptima pois é forma da obra futura;
é evidente que a Ideia de Deus ao fundar o mundo com estas leis, que na
sua bondade se prescreveu a si mesmo, só podia provir da sua essência e
não de outra coisa.
Johannes Kepler, O Segredo do Universo.
4. GALILEU E O MÉTODO EXPERIMENTAL

4.1. A física aristotélica

O cosmos aristotélico pode ser descrito como um sistema fechado e


finito, teologicamente ordenado. O princípio orientador reza assim: «Tudo o
que se move é movido por outra coisa». Na cúpula do sistema encontramos
o motor imóvel, acto puro que move eroticamente (todas as coisas anseiam
parecer-se com ele). Apesar de algumas vacilações do próprio Aristóteles,
não pode estar em contacto com o mundo: é o mundo que tende para ele
como para o seu fim último. Abaixo encontra-se o primeiro motor, que põe
em movimento a esfera das estrelas fixas. Esta por sua vez move a esfera de
Saturno, e assim sucessivamente até à orbe lunar.
Estas esferas são constituídas por uma substância, o éter, na qual a
matéria e a forma se equilibram perfeitamente: o seu movimento é pois
circular. São elas que determinam o tempo («imagem móvel da eternidade»,
na expressão de Platão). Essa substância é também denominada quinta
essência (as outras quatro, terrenas, são a terra, a água, o ar e o fogo). Na
Idade Média, esta substância veio a ser substituída pela imagem familiar de
esferas cristalinas e concêntricas dentro das quais o planeta se incrustaria
«engastado como uma pedra preciosa», como dirá brilhantemente Dante
Alighieri.
Os planetas são, também eles, deuses – na Idade Média entendia-se que
eram movidos por potências angélicas. Abaixo do mundo sublunar
encontra-se a estática Terra, no centro do Universo, estruturada segundo os
quatro elementos antes citados. Uma perturbação, que Dante simula ter sido
produzida pelas estrelas fixas, desordenou parcialmente a ordenação
elementar, engendrando assim o movimento.

Galileu Galilei
Nasce em Pisa em 1564 (ano em que morre Miguel Ângelo) e morre em Arcetri em 1642
(ano em que nasce Newton), o que não deixa de ser um bom argumento para quem acredita na
transmigração das almas. Estuda medicina na Universidade de Pádua. Conta-se que as
oscilações de uma lâmpada na catedral o levaram a descobrir a isocronia pendular. Tendo sabido
que na Holanda se descobrira um telescópio (o inventor foi Lippershuyk), constrói ele próprio
um, descobrindo as manchas solares e os satélites de Júpiter (planetas mediceus). Inventor do
barómetro e do termómetro, lançou as bases para a descoberta do relógio e do pêndulo. De
carácter orgulhoso, contribuiu activamente para engrossar o Índice dos Livros Proibidos (os seus
e os de Copérnico). Se Newton o supera em génio científico, ninguém como ele soube tirar as
consequências filosóficas da nova ciência. A sua fama continuará certamente enquanto a Terra
girar em torno do Sol (ninguém lutou tanto por esta teoria).

GALILEU E A INQUISIÇÃO
Era uma vez um cientista famoso chamado Galileu Galilei que foi
condenado pela Inquisição e se viu obrigado a abjurar as suas doutrinas.
Este acontecimento provocou um grande alvoroço e o caso continuou a
despertar indignação e discussão acesa durante mais de duzentos e
cinquenta anos, e continuou mesmo depois da vitória da opinião pública e
da tolerância da Igreja em relação à ciência. Mas, na actualidade, esta
história é já muito velha e creio que perdeu o seu interesse, pois ao que
parece a ciência de Galileu não tinha inimigos: a sua vida ficou
assegurada. A vitória conquistada há muito tempo foi definitiva e nesta
frente de batalha está tudo calmo. Assim, temos agora uma posição
equânime perante a questão, dado que finalmente aprendemos a pensar
numa perspectiva histórica e a compreender as partes da disputa. E
ninguém se vai dar ao trabalho de ouvir um importuno qualquer que
ainda não conseguiu esquecer uma velha injustiça.
Afinal, qual era o tema dessa velha discussão? Era acerca do «sistema
do mundo» copernicano que, entre outras coisas, explicava que o
movimento diurno do Sol era aparente devido à rotação da Terra. A Igreja
estava disposta a admitir que o novo sistema era mais simples que o
anterior e que era um instrumento mais conveniente para os cálculos
astronómicos e para as previsões. Aliás, esse sistema foi muito usado na
reforma do calendário auspiciada pelo Papa Gregório. Não havia
qualquer objecção a que Galileu ensinasse a teoria matemática do
sistema, desde que tornasse claro que o seu valor era apenas instrumental
e que não era mais do que uma «suposição», dizia o cardeal Bellarmino,
ou uma «hipótese matemática», ou uma espécie de estratagema
matemático «inventado e concebido com o fim de abreviar e facilitar os
cálculos». Por outras palavras, não havia qualquer objecção desde que
Galileu estivesse disposto a partilhar da ideia de Andreas Osiander, que
no seu prefácio ao De Revolutionibus de Copérnico dissera: «Não é
imperioso que estas hipóteses sejam verdadeiras ou que se assemelhem à
verdade; pede-se apenas que elas permitam realizar cálculos que
concordem com as observações».
Parece que o próprio Galileu estava disposto a salientar a
superioridade do sistema copernicano como instrumento de cálculo. No
entanto, ao mesmo tempo conjecturava e acreditara que era uma
descrição verdadeira do mundo; e para ele (tal como a Igreja) este era
certamente o aspecto mais importante da questão.
K. Popper, O Desenvolvimento do Conhecimento Científico

De facto, na Terra os elementos estão misturados. O movimento natural


será precisamente a luta dos corpos para voltar à esfera elementar
correspondente. Água e terra são graves por natureza: tendem a descer
(tendo o horizonte como ponto de referência). Ar e fogo são leves: tendem a
subir. O movimento rectilíneo vertical é pois o movimento natural do
mundo sublunar. Os movimentos horizontais, oblíquos ou compostos são
sempre movimentos violentos, devidos a uma força que actua sobre eles e
que cessam quando cessa de aplicar-se a força (acção por contacto). O
movimento uniforme deve-se à aplicação constante de uma força uniforme
(seja natural ou violenta). A todo o momento, o movimento do móvel é
travado pela sua passagem através de um meio. A não ser assim, o seu
movimento seria instantâneo (passagem imediata ao seu lugar natural), o
que é absurdo, salvo no caso da luz, que não se considera corpo. Daí a
impossibilidade, tanto do vácuo como do infinito em acto. Quando o corpo
ocupa finalmente o seu lugar natural (o seu elemento) repousa em relação
ao meio que, como tal, gira em círculo, excepto nos seus dois extremos: por
carência (centro do elemento «terra») e por absoluta perfeição (Deus, que já
não é, naturalmente, meio).
O sistema aristotélico apresentava certamente grandes vantagens para a
mentalidade medieval: após os esforços de Tomás de Aquino,
subministrava um poderoso apoio à teologia cristã. Além disso, estava de
acordo com o senso comum (vemos girar os céus, ao passo que nós
«estamos quietos») e acomodava-se com bastante precisão aos dados então
disponíveis.
Mas não com toda a precisão. Com efeito, já no século VI, João
Filopono, comentarista da Física de Aristóteles, assinalava dois fenómenos
que iriam converter-se na cruz do aristotelismo: o movimento dos projécteis
(movimento violento) e a queda dos graves (espécie do movimento
natural).
Por que continua em movimento a flecha disparada do arco se já não há
uma força que a impulsione? Uma primeira razão poderia ser que, já que
não existe vazio, o ar deslocado pela ponta da flecha passa para trás,
movendo-a por reacção. No entanto, de acordo com isto, uma flecha com
ponta romba deveria ir mais depressa (desloca mais ar) mas acontece
obviamente, o contrário. Mais ainda: por que teria de descer, se o ar não
acaba nunca? O movimento da flecha deveria ser eterno. A verdade é que
não havia explicação satisfatória para um fenómeno tão «natural».
E parecia não haver melhor sorte relativamente à queda dos graves: é um
facto evidente de observação que uma pedra cai mais depressa conforme se
vai aproximando do solo. Para explicar isso deveríamos postular uma força
cada vez mais potente. Mas, exceptuando a coluna de ar (que é leve no
sistema aristotélico) sobre a pedra, não há força que actue por contacto
sobre o grave.
Também se tentou explicar o fenómeno pelo ar deslocado (como no caso
da flecha). Mas nesse caso o movimento seria uniforme, não acelerado.
Também se aduziu a ânsia do móbil em reunir-se com o seu elemento (mas
se o corpo no elemento está em repouso, deveria ir desacelerando à medida
que se aproximava, e não ao contrário).
Estranho sistema este, capaz de penetrar a vida interna da divindade,
mas não de explicar porque é que as pedras caem ou as flechas se movem.

4.2. A teoria do ímpeto

Já no século XIV, filósofos como João Buridano (falecido por volta de


1358) e Nicolau de Oresme (falecido em 1382) propuseram como
alternativa a sua teoria do impetus. Com ela, dizia Buridano, não seriam
necessárias as inteligências (anjos) para mover os corpos celestes. Oresme
chegaria inclusivamente a dizer que num princípio Deus poderia ter posto
em funcionamento o Universo abandonando-o depois às suas próprias
forças para que actuasse como um mecanismo. Teria de esperar-se no
entanto mais de dois séculos para o estabelecimento da lei de inércia, aqui
prefigurada.
Em síntese, a teoria afirmava que o projéctil se põe em movimento por
uma transferência da força do projector. Esta força actuava como um
ímpeto que se ia gastando à medida que o móbil avançava. Assim podia
explicar-se o movimento da flecha, mas não o dos graves. Para este caso,
imaginava-se que a cada descida se ia acrescentando ao móbil um impetus
accidentalis extraído do meio circundante. Chegou-se inclusivamente a
descrever a massa de um corpo como a relação entre impetus e velocidade
(traduzindo, respectivamente, por «força» e «aceleração», a fórmula é
correcta).
No entanto, os teóricos do ímpeto não puderam – ou não quiseram,
aprisionados pelo seu aristotelismo – matematizar as suas descrições.
Supunham aliás que esgotado o ímpeto, a flecha deveria cair verticalmente,
o que estava longe do que poderia ser observado (todo o projéctil descreve
uma curva; hoje, graças a Galileu, sabemos que é uma parábola). Uma das
razões por que a teoria não prosperou deveu-se ao facto de que corrigia
pontos particulares do sistema, mas não o substituía por um novo marco
teórico (veja-se, a propósito, o exposto no capítulo sexto). Eram meros
remendos num edifício que começava a ruir.
No entanto, o influxo desta teoria chegaria no século XVI à
Universidade de Pádua onde estudava Galileu. Este facto e a tradução latina
das obras de Arquimedes (1543, a data da publicação de De Revolutionibus
de Copérnico) forneceriam os materiais de dinâmica sobre os quais o pisano
levantaria a sua scienza nuova. Os materiais de astronomia foram-lhe
facultados por Copérnico (não por Kepler). Mas na elaboração da nova
ciência Galileu teria de enfrentar-se com outro poder, neste caso não
científico: a Igreja católica.

4.3. Galileu contra a Igreja

A interpretação literal das Escrituras era à partida contrária ao sistema


copernicano (pense-se na ordem de paragem do Sol por parte de Josué). A
interpretação «oficial» (baseada no aristotelismo) não o era menos. A Igreja
católica aceitava contudo de bom grado toda a inovação positivista (no
sentido anteriormente explicado).
Mas Galileu era um furioso realista. Como ressalta da sua carta a
Cristina Lorena, Grã-Duquesa de Toscana em 1615. Nesta famosa carta
afirmam-se três coisas, qual delas a mais grave:

1. Separação de poderes entre a Igreja e ciência: cada uma tem o seu


âmbito próprio e não deve imiscuir-se em terreno alheio.
2. Aparente contradição: Galileu pretende que o milagre de Josué se
compreende melhor dentro do sistema copernicano;
3. Em teologia, afirma, não pode ser considerado herético aquilo que
não foi antes demonstrado ser impossível e falso; pede pois uma
demonstração da falsidade do seu sistema. (Isto não passa de um
engenhoso sofisma: os eclesiásticos teriam de agir então como
cientistas.)

A resposta não se fez esperar: em 1616 o De Revolutionibus de


Copérnico era colocado no índice dos Livros Proibidos e Galileu era
intimado pelo cardeal Belarmino a não defender em público o sistema
copernicano.
A reacção de Galileu consistiu em publicar, em 1632, os Diálogos sobre
os Dois Grandes Sistemas do Mundo (o ptolomaico e o copernicano;
Galileu não teve em conta tanto a componenda de Tycho como a genial
modificação de Kepler). Nestes diálogos, a opinião aristotélica era colocada
na boca de Simplício (uma mal disfarçada espécie de «palhaço tonto»),
sempre rebatido e ridicularizado por Salviati (porta-voz de Galileu), com a
aquiescência de Sagredo (personificação do espectador culto e –
teoricamente – imparcial). Mais ainda: um argumento pessoal do papa
Urbano VIII era posto na boca de Simplício, para ser demolido de seguida.
Era de mais: em 1633 foram proibidos os Diálogos, Galileu foi obrigado
a abjurar (não parece provável que o ancião tivesse coragem para sussurrar
ao seu cão eppur si muove, como quer a lenda) e foi sentenciado a prisão
perpétua (suavizada depois com a reclusão na vila de Arcetri).
Alquebrado e quase cego, Galileu respondeu da única forma que sabia:
publicando clandestinamente, na Holanda, um dos livros mais importantes
da história do pensamento: as Considerações e Demonstrações
Matemáticas sobre duas Novas Ciências (1638). Estas ciências são a
estática e a dinâmica. A primeira segue as pisadas de Arquimedes; a
segunda é obra pessoal de Galileu e situa-o entre os grandes génios da
humanidade. Vamos passar agora à sua fundamentação da dinâmica.

4.4. Rumo à nova ciência


Mencionemos as clássicas palavras de Galileu no início da Jornada
terceira dos seus Discorsi (assim se denomina a sua obra de 1638):

«Exponhamos agora uma ciência nova acerca de um tema mui antigo.


Não há talvez na natureza nada mais antigo do que o movimento, e não
faltam livros volumosos sobre tal assunto escritos pelos filósofos. Apesar de
tudo isto, muitas de suas propriedades, mui dignas de conhecer-se, não
foram observadas nem demonstradas até ao momento. Costumam realçar-se
algumas mais imediatas, como a que se refere, por exemplo, ao movimento
natural dos corpos que ao cair se aceleram continuamente, mas não se
demonstrou até ao momento a proporção segundo a qual tem lugar tal
aceleração. Com efeito, que eu saiba, ninguém demonstrou que um móbil
que cai, partindo da situação de repouso, percorre em tempos iguais espaços
que mantêm entre si a mesma proporção crescente idêntica à que se dá entre
os números ímpares sucessivos começando pela unidade.»

O tema do movimento é antigo: a Physica de Aristóteles trata do «ente


móvel». Mas nela é a entidade que tem a primazia. O movimento é visto
sempre como a correcção de uma deficiência: como um «tender para»
(potência) a perfeição (acto). Ao contrário, a Galileu interessam as
propriedades do movimento enquanto tal e não as causas de uma coisa
estar em movimento, nem as razões porque deixa de o estar. Neste caso do
movimento local, a Aristóteles interessam fundamentalmente os limites do
movimento: o «de onde» e o «até onde». Por isso, é natural que as
propriedades do movimento (não do móbil) não tenham sido observadas ou
demonstradas.
É verdade que os físicos do século XIV (não Aristóteles) assinalam
algumas propriedades da queda; mas não as demonstram. E isto porque
tanto Platão como Aristóteles consideram inviável a aplicação sistemática
da matemática à física (vimos antes como o próprio Kepler retrocedia
perante este problema). A Galileu, ao contrário, não interessa interrogar-
se acerca da essência do móbil, do espaço ou do tempo, mas acerca da
proporção numérica entre estes últimos.

MOVIMENTO UNIFORME
DEFINIÇÃO. Por movimento igual ou uniforme entendo aquele no qual
os espaços percorridos por um móbil em tempos iguais, quaisquer que
estes sejam, são iguais entre si.
ADVERTÊNCIA. Pareceu-nos oportuno acrescentar à velha definição
(que simplesmente fala do movimento igual desde que se percorra
espaços iguais em tempos iguais) a expressão quaisquer, ou seja, para
todos os tempos que são iguais. Com efeito, pode acontecer que um
móbil percorra espaços iguais em determinados tempos iguais, ao passo
que distâncias percorridas em fracções de tempo mais pequenas podem
não ser iguais, mesmo que os tais intervalos mais pequenos o sejam. Da
definição que demos decorrem quatro axiomas, a saber:
AXIOMAI. No caso do mesmo movimento uniforme, o espaço
percorrido num tempo maior é maior que o espaço percorrido durante um
intervalo de tempo menor.
AXIOMAII.No caso do mesmo movimento uniforme, o tempo durante
o qual se percorre um espaço maior é também maior que o tempo
empregue para percorrer um espaço menor.
AXIOMA III. O espaço percorrido a maior velocidade num determinado
tempo é maior do que o espaço percorrido no mesmo tempo mas a uma
velocidade menor.
AXIOMAIV. A velocidade empregue no percurso de um espaço maior
num determinado tempo é maior do que aquela que leva a percorrer, no
mesmo tempo, um espaço menor.
Galileu, Considerações e Demonstrações Matemáticas sobre duas Novas Ciências.
Percorramos agora os passos da ciência nova, seguindo o próprio
Galileu: «Esta discussão está dividida em três partes: a primeira trata do
movimento estável e uniforme; a segunda trata do movimento que
encontramos acelerado na natureza; o assunto da terceira é a dos
movimentos chamados violentos e dos projécteis».

4.4.1. O movimento uniforme

A primeira preocupação de Galileu consiste em dar uma definição para


cada tipo de movimento, exprimível matematicamente, para incluir um
conjunto de axiomas imediatamente a seguir à definição.
Assim, movimento uniforme será: «aquele no qual as distâncias
percorridas pela partícula em movimento durante quaisquer intervalos
iguais de tempo são iguais entre si». Isto é:

s ∞ t ou s = kt

Chamaremos velocidade (v) a esta constante:

s = vt ou v = s/t

Ora, a expressão em ordenadas cartesianas de pontos que intersectam


distâncias e intervalos temporais não autoriza a passar dos pontos a uma
recta contínua. Se traçarmos a referida recta é por uma operação mental que
vai além dos dados: interpolação (recta que une os pontos) e extrapolação
(suposição de que a equação continuará a ser válida se prolongarmos a recta
para além dos pontos).
A matematização de um movimento tão simples como o uniforme
supõe na realidade um profundo esforço de abstracção e idealização
matemáticas:
1. Desprezam-se todas as qualidades não matematizáveis (Galileu
considerará estas qualidades – secundárias – como puramente subjectivas,
na melhor linha atomista).

2. O ponto anterior supõe uma geometrização da realidade; mas agora


afirmam-se além disso os direitos do símbolo (álgebra) sobre a imagem
pura geométrica. A mente interpola e extrapola os dados interpretados
geometricamente.

4.4.2. Movimento em queda livre

Passemos ao movimento uniformemente acelerado (queda dos graves).


Na passagem introdutória a esta questão Galileu diz:

«Não há aumento ou adição mais simples do que aquele que vai


aumentando sempre da mesma maneira. Entenderemos isto facilmente se
considerarmos a relação tão estreita que se dá entre tempo e movimento.»

Esta «estreita relação» não aparece aos sentidos. Pelo contrário: estes
falam-nos de conexão entre aceleração e espaço percorrido. E no entanto o
pisano defendia em 1604 esta tese, de «senso comum». A relação estreita
dá-se na razão e surge de uma exigência de simetria conceptual entre as
noções antitéticas de repouso e de movimento natural (queda livre).
Definiremos o repouso pela relação de um corpo com o espaço que ocupa,
sem consideração do tempo (estreita relação entre espaço e repouso).
Definiremos o movimento pela relação de um corpo com os intervalos em
que se afasta da sua trajectória, sem consideração de espaço (estreita
relação entre tempo e movimento). De novo, aqui é a razão, e não os
sentidos, que dita a essência do movimento. Estabelecido isto, Galileu
continua:
«Diz-se que um corpo está uniformemente acelerado quando partindo do
repouso adquire, durante intervalos iguais, incrementos iguais de
velocidade.»

Isto é: a = ( v – vo) / t

Donde: (v = vo) + at.

Para a queda a partir do repouso: v = at.


Agora, Sagredo propõe que se pergunte sobre a causa dessa aceleração.
A resposta de Salviati marca claramente o rumo da ciência moderna: a
primazia do estudo das propriedades físicas (quantidade) sobre as causas
(quantidades ocultas) que possam ter produzido tais propriedades. As
causas são relegadas para o reino da ficção:

«Tais fantasias, para não falar de muitas outras, seriam examinadas e


resolvidas com bem pouco proveito. De momento, é intenção do nosso
autor investigar e demonstrar algumas propriedades do movimento
acelerado (seja qual for a causa de tal aceleração).»

Apesar de ser impossível a verificação directa da fórmula: a = vt,


Galileu sabe que tal fórmula é correcta e que descreve a essência do
movimento natural da queda. Seria inútil lançar graves do alto de edifícios
ou torres, dada a brevidade do tempo (menos de três segundos para um
edifício de 10 andares. Diga-se desde já que Galileu nunca lançou graves do
alto da torre de Pisa. Se o tivesse feito, os sentidos teriam dado razão a
Aristóteles). É por meio de provas estritamente racionais que o pisano
refuta a ideia de que a velocidade está em proporção com o peso,
sustentando, ao contrário, que seria a mesma para todos os corpos se se
pudesse realizar a experiência no vazio. A prova indirecta da aceleração dá
ideia do génio de Galileu. Vejamos: a velocidade média de um corpo será:
= (v + vo) / 2
Ora, as distâncias percorridas por um grave são, de uma a outra, como os
quadrados dos intervalos temporais:

em geral

Donde (partindo de que a gravidade permanece constante, não é função


de tempo e que o móbil parte do repouso):

A EXPERIÊNCIA E O SEU CARÁCTER MATEMÁTICO


A matemática parte dessa pretensão que consiste em estabelecer uma
determinação da coisa que não resulta da experiência com a própria coisa;
é essa mesma pretensão que subjaz à determinação das coisas,
possibilitando-as e criando-lhes um espaço. Uma tal concepção
fundamental das coisas não é arbitrária nem evidente por si, e daí que
tenha sido necessária uma longa luta para obter a supremacia. Foi preciso
transformar o modo de acedermos às coisas e, simultaneamente,
munirmo-nos de um novo modo de pensar. Podemos percorrer a história
dessa luta de forma precisa, mas dela referiremos um só exemplo. De
acordo com a representação aristotélica, os corpos movimentam-se
sempre segundo a sua natureza: os pesados para baixo e os leves para
cima. Quando caem, os corpos pesados caem mais depressa do que os
leves, dado que estes tendem a mover-se para cima. Foi Galileu quem
chegou ao conhecimento decisivo de que todos os corpos caem à mesma
velocidade e que a diferença dos tempos de queda resulta somente da
resistência do ar e não das diferentes naturezas internas dos corpos, nem
tão pouco das suas correspondentes relações particulares com seus
lugares particulares. Para apoiar a sua afirmação, Galileu projectou uma
experiência na torre inclinada de Pisa, cidade onde era professor de
matemática. Nessa experiência, os diferentes corpos pesados não caíram
da torre exactamente ao mesmo tempo mesmo, mas com pequenas
diferenças de tempo; apesar destas diferenças e, portanto, contra a
própria evidência da experiência, Galileu manteve a sua afirmação. Mas
as testemunhas da experiência ficaram perplexas com a afirmação de
Galileu e agarraram-se ainda com mais obstinação ao antigo ponto de
vista. Esta experiência agravou tanto a oposição a Galileu que ele teve de
deixar o seu cargo de professor e abandonar Pisa.
Ora, Galileu e os seus opositores tinham observado o mesmo «facto»;
mas ambos tornaram-no diferente ao observarem e interpretarem de modo
diverso o mesmo facto e o mesmo acontecimento. O que apareceu a cada
um como facto e verdade autênticos foi uma coisa completamente
diferente. Ambos pensaram qualquer coisa em relação ao mesmo
fenómeno, mas pensaram coisas diferentes, não acerca de aspectos
particulares, mas fundamentalmente em relação à essência do corpo e à
natureza do seu movimento. Galileu tinha a ideia prévia de que a
determinação do movimento de cada corpo é uniforme e em linha recta
desde que não encontre qualquer obstáculo, mas sofrendo modificações
uniformemente sempre que uma força constante actuasse sobre ele.
Heidegger, Que é uma Coisa?, Lisboa, Edições 70, 2002, pp. 94-95

Partindo do repouso: (vo= 0): s = 1/2 vt

E como v = at., s = 1/2 at2

Nem a velocidade nem o tempo podiam medir-se, mas sim o espaço


percorrido, se se aceitar que «os graus de velocidade adquiridos pelo
mesmo móbil sobre planos de diferente inclinação são iguais se forem
iguais as alturas dos diferentes planos».

Este princípio só se torna inteligível se entendermos a altura O/A como a


imagem do tempo transcorrido (perguntamo-nos pela aceleração no ponto
A, não pela velocidade). O princípio diz-nos que a aceleração em A é a
mesma que em B, C, D, E, etc.
Assim, podemos substituir a perpendicular O/A por um plano inclinado
perfeitamente polido pelo qual uma bola de cobre desliza sem fricção.
Eis um exemplo perfeito de experiência na ciência moderna. É a razão
que dirige a observação. Em primeiro lugar, note-se que a distância fica
indeterminada: o único que se mede é o tempo decorrido (por certo,
mediante gotas de água que transbordavam de uma vasilha. Ainda não fora
inventado o relógio de pêndulo). Em segundo lugar, excluem-se as
variáveis não controláveis mas reais (resistência do ar, fricção, etc., que se
introduziram depois como correcção) a fim de manter perante a mente a
pureza (fictícia) de uma função matemática. Em terceiro lugar, a
experiência não confirma uma observação prévia, mas é o resultado de uma
dedução a partir de uma definição e de um princípio, ambos directamente
inverificáveis.
O corolário desta experiência é ainda mais fecundo em consequências.
Todo o grave que desce por um plano inclinado sofre uma aceleração. Se
tivesse de subir, sofreria uma desaceleração. Podemos pois perguntar-nos o
que aconteceria se se mantivesse num plano horizontal, a partir de uma
queda prévia. É evidente que não poderia acelerar nem desacelerar: «a
velocidade adquirida durante a queda precedente (...) se actuasse somente
ela, levaria o corpo numa velocidade uniforme até ao infinito».
Eis, finalmente, dizemos nós a lei fundamental da física clássica: a lei
da inércia. No entanto, Galileu foi incapaz de a apresentar
explicitamente. E isso porque durante toda a sua vida pensou que a
gravidade era a propriedade física essencial e universal de todos os corpos
materiais. A resistência interna inercial à mudança de movimento seria um
caso limite para a superfície cujos pontos fossem equidistantes de um ponto
comum: reaparece de novo o movimento circular como perfeito.
Veja-se a este respeito o seguinte e surpreendente texto de Galileu (não
tão estranho se recordarmos que em astronomia segue Copérnico e se
recusarmos a crença banal de que a ciência surge completa e perfeita da
cabeça de um homem):

«Unicamente o movimento circular pode ser apropriado naturalmente


aos corpos que são parte integrante do Universo enquanto constituído na
melhor das ordens (...) O mais que se pode dizer do movimento rectilíneo é
que é atribuído pela natureza aos corpos e às suas partes, unicamente
quando estes estão colocados fora do seu lugar natural, numa ordem má, e
que portanto necessitam ser repostos no seu estado natural pelo caminho
mais curto.» (Diálogos. Jornada Primeira.)

Não pode deixar de lamentar-se esta recaída na física grega quando


estava a ponto de levantar-se o novo edifício. A glória da formulação
explícita da lei da inércia seria para Descartes, cuja concepção da res
extensa como simultaneamente matéria física e espaço tridimensional,
euclideano, lhe possibilitava a abertura ao infinitismo da nova ciência.
Tanto Galileu como Kepler sabem que está na gravidade a chave da física
clássica. Tanto um como outro falham, no entanto, em seus esforços por
fornecer a explicação racional desta noção. Kepler, por ser incapaz de
formular matematicamente o magnetismo gilbertiano. Galileu, por se ter
refugiado demasiado apressadamente na pura noção matemática da
esfera. Um é incapaz de matematizar um facto físico e o outro de dar uma
explicação física de um preconceito matemático. Dois brilhantes erros
que se entrecruzam e dos quais o génio de Newton extrairá a luminosa
verdade da teoria da gravitação universal.

4.4.3. Movimento dos projécteis

No início da Jornada Quarta dos Discorsi, há uma formulação tão clara


do que nós chamaríamos lei de inércia que, fora do contexto, poderia
induzir em engano. Com efeito, diz-nos Galileu:

«Imaginemos um móbil projectado sobre um plano horizontal do qual se


tirou qualquer atrito; sabemos já que em tal caso (...) o dito movimento se
desenvolverá sobre tal plano com um movimento uniforme e perpétuo, na
suposição de que este plano se prolongue até ao infinito.»

Mas desafortunadamente para Galileu, esse suposto não se dá. O que


não é estranho: já Aristóteles tinha dado uma formulação explícita da lei de
inércia... para rejeitá-la imediatamente como absurda. São estas as suas
palavras:

«de modo que (o corpo) ou estará em repouso, ou necessariamente será


levado ao infinito, se outra coisa mais forte não o detiver» (Physica IV, 8;
215 a 20).
É conveniente meditar neste ponto: não é só toda a observação mas
também toda a teorização física ou matemática que se encontram
sustentadas interiormente por bases de tipo metafísico. Neste ponto,
Aristóteles e Galileu vêem-se incapacitados de aceitar a lei da inércia por
defenderem a perfeição do movimento circular face ao rectilíneo, produzido
sempre violentamente.
No entanto, estas hipóteses de base não impediram Galileu de formular
exactamente o movimento dos projécteis, apesar de deixar na penumbra (à
espera do génio de Newton) a razão deste movimento.
No caso dos projécteis, Galileu está a tratar da composição de dois
movimentos: um, natural (o da queda); outro, violento (o horizontal da
trajectória primeira do projéctil). Não nos interessa desenvolver aqui o
aspecto matemático da teoria.
Mas era conveniente fazer notar que Galileu continua neste ponto
prisioneiro do sistema aristotélico devido à sua incapacidade de levar até às
últimas implicações aquilo que ele próprio iniciou: a matematização do
Universo. A ideia de um espaço euclideano, extenso até ao infinito, é aqui
coarctada pela ideia, também racional, da perfeição do movimento circular
sobre o rectilíneo horizontal, ainda denominado violento.
A diferença entre estas duas ideias racionais – a primeira fecunda e
estéril a segunda (no nosso âmbito teórico) – está no facto de que a ideia –
cartesiana – de um espaço infinito afirma a primazia do símbolo sobre a
imagem, da álgebra sobre a geometria. A segunda, em contrapartida, fica
indissoluvelmente ligada à sua representação geométrica. Não deve
esquecer-se que Galileu, que tanto insistiu na matematização, não foi um
criador em matemáticas. Descartes e Newton sim, foram-no. Por isso
chegaram mais longe.

OBSERVAÇÃO E SUPOSIÇÃO
Imagine-se um móbil projectado sobre um plano horizontal do qual se
retirou qualquer atrito; de acordo com o que atrás expusemos
detalhadamente, sabemos já que neste caso o movimento se processará
sobre o tal plano de modo uniforme e perpétuo, pressupondo que este
plano se prolonga até ao infinito. Pelo contrário, se imaginarmos um
plano limitado e em declive, logo que o móbil (que supomos dotado de
gravidade) chega ao fim do plano e continua a sua marcha, acrescentará
ao movimento precedente, uniforme e inesgotável, essa tendência para
baixo, fruto da sua própria gravidade. Disto resulta um movimento
composto de um movimento horizontal uniforme e de um movimento
descendente naturalmente acelerado. Chamo projecção a este tipo de
movimento e irei demonstrar algumas das suas propriedades, a primeira
das quais é a seguinte:
Teorema 1, proposição 1: um projéctil cujo movimento é composto de
um movimento horizontal e uniforme e de um movimento descendente
naturalmente acelerado, descreve com o dito movimento uma linha
semiparabólica.
Galileu, Considerações e Demonstrações Matemáticas sobre Duas Novas Ciências.
5. MÉTODO RESOLUTIVO-COMPOSITIVO

O método de resolução e composição (análise e síntese ) não é,


rigorosamente, uma descoberta de Galileu. Já era utilizado desde o século
XIV pelos filósofos de Oxford e de Pádua, e pode mesmo ter origem –
como reconhece o pisano num gesto que o honra – no próprio Aristóteles.
Assim, e referindo-se ao Estagirita, diz na Jornada Primeira dos Discorsi:

«Creio que é certo que ele obtinha, por meio dos sentidos, graças às
experiências e às observações, tanta segurança quanto possível sobre as
conclusões, e que depois procurava os meios de demonstrá-las.»

O método galilaico insurge-se por um lado contra o nominalismo


vigente na sua época, e por outro contra a mera recolha de dados a partir da
experiência para conseguir uma generalização indutiva (é o método que
Francis Bacon propugnava). Vejamos, primeiro, o seu antinominalismo.
Na Jornada Segunda dos Discorsi, Simplício queixa-se da trivialidade
dos esforços de Salviati, já que – diz – todos sabem que a causa de os
corpos caírem é a gravidade. A réplica de Salviati é altamente significativa:

«Enganas-te, Simplício; devias dizer que todos sabem que se chama


gravidade. Porém eu não te pergunto pelo nome, mas pela essência da
coisa.»

É a essência, exprimível matematicamente, que Galileu procura. São


muitas as passagens da sua obra que insistem nisso. Assim, na Jornada
Terceira dos Discorsi, a tarefa proposta consiste em «fazer que esta
definição do movimento acelerado mostre as características essenciais dos
movimentos acelerados observados».
Por isso, pode afirmar-se com razão que Galileu é mais fiel ao espírito
de Aristóteles do que os seus seguidores no século XVI. É curioso dar-se
conta de como Simplício protesta nos Discorsi, dizendo que são os
aristotélicos os que fazem experimentos. Isso seria verdade se tivesse dito
«experiências» em vez de «experimentos».

A «experiência» é uma observação ingénua: pretende ser fiel ao que


aparece, ao que se vê e toca. Mas introduz sub-repticiamente crenças e
modos de pensar acriticamente assumidos através da tradição e da
educação.
O «experimento», pelo contrário, é um projecto matemático que escolhe
de antemão as características relevantes de um fenómeno (as que são
quantificáveis) e rejeita as demais. Mais ainda: o pitagorismo de Galileu
leva-o a considerar essas qualidades não-quantificáveis (qualidades
segundas) como irreais e meramente subjectivas. Só existe realmente
aquilo que pode ser objecto de medida (qualidades primeiras).

Estamos agora na disposição de seguir os passos do método


experimental, tal como Galileu os traça na sua carta a Pierre Carcavy
(1637):

1. Resolução. A partir da experiência sensível, resolve-se ou analisa-se


o dado, deixando apenas as propriedades essenciais. É um processo que
pode caracterizar-se como intuição da essência.

2. Composição. Construção ou síntese de uma suposição (hipótese)


abarcando as diversas propriedades essenciais escolhidas. Desta hipótese
deduz-se em seguida uma série de consequências, precisamente aquelas que
podem ser objecto de:

3. Resolução experimental. Comprovação dos efeitos deduzidos da


hipótese.

É interessante notar que em muitos casos Galileu não dá este terceiro


passo, limitando-se a um experimento mental. Mais surpreendente ainda é a
sua concepção na carta mencionada:
«Se a experiência mostra que as propriedades que deduzimos encontram
confirmação na queda livre dos corpos, podemos afirmar sem risco de erro,
que o movimento concreto de queda é idêntico a este que definimos e
supusemos; se não for esse o caso, as nossas demonstrações, que se
aplicavam unicamente à nossa hipótese, nada perdem de sua força e valor,
do mesmo modo que as proposições de Arquimedes sobre a espiral não têm
menos valor por na natureza não existir um corpo a que se possa atribuir um
movimento em espiral.»

É esta a expressão genuína da soberba renascentista: a natureza


autónoma da razão matemática. É incontestável o facto de que uma lei
natural só o será ao ver-se confirmada na resolução experimental. Mas se tal
não acontecer, continua a ter valor de proposição consistente em si mesma.
É graças a esta confiança na razão que, por exemplo, as equações de
Evariste Galois poderão ser utilizadas quase um século depois, ao chegar a
mecânica quântica, ou, no caso do próprio Galileu, que a lei de queda dos
corpos seja estabelecida antes que Torricilli consiga realizar a sua
comprovação experimental.
O mundo novo surge devido à confiança absoluta na razão
projectiva. Por isso, Galileu louva Aristarco e Copérnico que, «com a
vivacidade de seus juízos, fizeram tal violência aos seus próprios sentidos
que foram capazes de preferir o que a razão lhes ditava e não o que as
experiências sensíveis lhes apresentavam da forma mais evidente como o
contrário».
A «hybris» do pisano vai ao ponto de afirmar que no conhecimento
intensivo (isto é, matemático) da realidade a razão iguala-se à do próprio
Deus: «Declaro que, efectivamente, a verdade cujo conhecimento é retirado
de provas matemáticas é idêntica àquela que a sabedoria divina conhece.»
(Discorsi, Jornada Primeira.)
A razão impõe as suas leis à experiência, ao ponto de esta última se
converter num mero índice do poder do intelecto. É o início da razão como
factor de domínio do mundo: «Estou seguro, sem observações, de que o
efeito acontecerá tal como digo, porque deve acontecer assim». (Discorsi,
Jornada Segunda.)
A essência da modernidade experimenta-se pela boca de Galileu e
plasma-se num desafio: a razão desliga-se de toda a autoridade, seja a da
tradição como a dos sentidos. Porque, chi vuol por termine agli umani
ingegni? (Quem se atreverá a pôr limites ao engenho dos homens? Carta a
Cristina de Lorena, 1615).

EXPERIÊNCIA E IMAGINAÇÃO
Uma das experiências imaginárias mais importantes da história da
filosofia natural, e também um dos argumentos mais simples e mais
engenhosos da história do pensamento racional sobre o nosso universo,
estão contidos na crítica de Galileu à teoria do movimento aristotélico.
Essa experiência desautoriza a suposição aristotélica de que a velocidade
natural de um corpo mais pesado é maior do que a de um corpo mais
leve. «Se tivéssemos dois móbiles» – argumenta o porta-voz de Galileu –
«de velocidades naturais diferentes, seria de esperar que quando o mais
atrasado se juntasse ao mais veloz, este seria em parte retardado pelo
mais atrasado e o mais atrasado em parte acelerado pelo mais veloz»; ora,
«se assim é, também é verdade que da junção de uma pedra grande que se
move, suponhamos, com oito graus de velocidade, com uma pedra menor
com quatro graus, resultaria um sistema composto que teria de se mover
com velocidade menor que oito graus; com efeito, as duas pedras unidas
originam uma pedra maior que a primeira, que se movia com oito graus
de velocidade; com efeito, este composto (que é maior que a primeira
pedra isolada) mover-se-á mais lentamente que a primeira pedra isolada,
que é menor; isto vai contra a suposição». E como o ponto de partida fora
a argumentação contra a suposição de Aristóteles, esta fica agora refutada
pois torna-se claro que é absurda.
A experiência imaginária de Galileu é o modelo perfeito do melhor
uso que se pode fazer em experiências imaginárias: trata-se do uso
crítico.
K. Popper, A Lógica da Investigação Científica
9. O RACIONALISMO

INTRODUÇÃO

No capítulo sétimo, falávamos da conveniência em considerar a época


renascentista dentro de um período histórico mais amplo, que iria do século
XIV ao século XVII. No século XVII, dizíamos, começa a filosofia
moderna com Descartes.
Descartes inaugura uma nova época da filosofia caracterizada pela
autonomia absoluta da razão. Em capítulos anteriores assistimos às
tensões que perturbaram a filosofia medieval relativamente ao problema da
autonomia da razão: a partir do averroismo, este problema converteu-se
numa questão crucial para os pensadores medievais. No entanto, em
nenhum momento o pensamento medieval conseguiu afirmar a plena
autonomia da razão, que sempre ficou sujeita, de um ou de outro modo, à
autonomia da fé religiosa.
A autonomia da razão implica, negativamente, que o seu exercício não
seja coarctado ou regulado por nenhuma instância exterior e estranha à
própria Razão, seja ela a tradição, a autoridade ou a fé religiosa.
Positivamente, a autonomia da razão implica que esta é o princípio e o
tribunal supremo a quem compete julgar do verdadeiro e do conveniente,
tanto no âmbito do conhecimento teórico como no domínio da actividade
moral e política. A afirmação da autonomia da razão não é exclusiva do
racionalismo mas sim, a partir deste, de todo o pensamento moderno.
Ainda no capítulo sétimo, assinalámos que a filosofia moderna surge em
íntima ligação com o triunfo da nova ciência. Esta característica estende-se
a toda a filosofia moderna, não apenas ao racionalismo mas para além
deste, ao empirismo e a Kant.
Neste capítulo ocupar-nos-emos do racionalismo, a primeira das
correntes filosóficas da modernidade, à qual pertencem Descartes,
Espinosa, Malebranche e Leibniz. Os dois traços da modernidade que
assinalámos realizam-se de um modo pleno pela primeira vez no
racionalismo: por um lado, a razão constitui-se em princípio supremo e
único no qual se fundamenta o saber; por outro, são as matemáticas que
exemplificam o ideal de saber que se pretende instaurar.

Este capítulo está dividido do seguinte modo:


1. A auto-suficiência da razão como fonte de conhecimento.
2. Descartes e a construção do Universo.
3. Espinosa e Leibniz.
4. A matemática como modelo de saber.
5. Razão e liberdade.
1. A AUTO-SUFICIÊNCIA DA RAZÃO COMO
FONTE DE CONHECIMENTO

Os termos «racionalismo» e «racionalista» são usados frequentemente,


não apenas em filosofia mas também na linguagem e conversação comuns.
Se perguntássemos a qualquer pessoa estranha à filosofia o que significam
tais termos, talvez nos respondesse que o racionalismo é a atitude que
atribui uma importância fundamental à razão. Esta definição não é à partida
desacertada, mas peca por excessiva generalidade e imprecisão.
Efectivamente, não basta indicar vagamente que se confere à razão um
valor de princípio supremo; é necessário estabelecer o que se entende por
razão e de que coisa é ela considerada princípio. Uma e outra coisa só
podem ser definidas se se indicar com precisão: a) a que factores ou
instâncias se nega a categoria de princípio concedida à razão (já que
conceder a primazia a um factor implica obviamente negá-la a outro ou
outros factores); b) em que campo ou esfera se concede à razão a categoria
de fundamento e princípio.
Das observações precedentes deduz-se com facilidade que se pode falar
de racionalismo em diferentes campos ou esferas e que em cada uma o
termo «racionalismo» adquirirá um significado específico e concreto.
Consideremos, por exemplo, o racionalismo religioso. O termo
«racionalismo» aplica-se neste caso a uma esfera determinada, a esfera do
religioso, e significa a teoria que concede a primazia à razão na
fundamentação das ideias religiosas, negando-a aos dogmas e à fé. O
racionalismo religioso pretende construir uma religião natural e universal
que exclua todos os dogmas e crenças que não sejam estritamente racionais.
(Como vimos no capítulo sétimo, este racionalismo aparece já no
Renascimento com o platonismo e difunde-se largamente durante os séculos
XVII e XVIII.)
Embora possa tomar diversas acepções específicas e aplicar-se em
esferas diferentes, o termo «racionalismo» refere-se primordialmente à
corrente filosófica do século XVII a que pertencem Descartes e Leibniz,
Espinosa e Malebranche. Neste caso, o racionalismo opõe-se ao
empirismo inglês do século XVIII. Talvez a melhor forma de entender esta
oposição seja comparar o que dizem ambas as correntes sobre a origem do
conhecimento: o empirismo defenderá que todos os nossos conhecimentos
procedem em última análise, dos sentidos, da experiência sensível; por seu
turno, o racionalismo estabelece que os nossos conhecimentos válidos e
verdadeiros acerca da realidade procedem da razão, do próprio
entendimento. A filosofia racionalista do século XVII atribui a primazia à
razão enquanto fonte e origem dos conhecimentos, negando-a aos sentidos.
Para compreender esta afirmação característica do racionalismo (os
nossos conhecimentos válidos e verdadeiros acerca da realidade procedem
do próprio entendimento) é conveniente tomar em consideração o ideal e o
método da ciência moderna.
O ideal da nova ciência é construir um sistema dedutivo no qual as leis
são deduzidas a partir de certos princípios e conceitos primeiros.
O problema fundamental consiste em determinar donde provêm (e como
é possível formulá-las) as ideias e princípios a partir dos quais se deduz o
corpo das proposições e teoremas da ciência. Perante este problema, só duas
respostas são possíveis: a) os princípios, ideias e definições que estão na
base das proposições científicas provêm da experiência sensível, a sua
origem está na informação que os sentidos nos proporcionam; b) esses
princípios ou ideias básicas não estão na experiência sensível mas é o
entendimento que os possui em si mesmo e por si mesmo.
Esta última é a resposta do racionalismo. Não é da experiência que
procedem as ideias e princípios a partir dos quais se deve construir
dedutivamente o nosso conhecimento da realidade. Certamente que os
sentidos nos fornecem informação acerca do Universo, mas esta informação
é confusa e muitas vezes incerta. Os elementos últimos do conhecimento
científico, as ideias claras e precisas que devem constituir o ponto de
partida, não procedem da experiência mas do entendimento que as possui
em si mesmo. Esta explicação acerca da origem das ideias chama-se
inatismo, pois defende que há ideias inatas, conaturais ao entendimento,
que não são generalizações a partir da experiência sensível.

São duas, por conseguinte, as afirmações fundamentais do racionalismo


acerca do conhecimento: em primeiro lugar, que o nosso conhecimento
acerca da realidade pode ser construído dedutivamente a partir de certas
ideias e princípios evidentes; em segundo lugar, que estas ideias e
princípios são inatos ao entendimento, que este os possui em si mesmo à
margem de qualquer experiência sensível.

MATEMÁTICA E RAZÃO
Estas longas cadeias de razões, completamente simples e fáceis, de
que os geómetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis
demonstrações, tinham-lhe sugerido que todas as coisas que podem cair
sob o conhecimento do homem se encadeiam da mesma maneira e que,
com a condição de simplesmente nos abstermos de aceitar como
verdadeira alguma que o não seja, ou de observarmos sempre a ordem
necessária para as deduzir umas das outras, nenhumas pode haver tão
afastadas a que por fim não se chegue nem tão ocultas que não se
descubram. E não me foi muito difícil procurar por quais era preciso
começar: pois já sabia que devia ser pelas mais simples e mais fáceis de
conhecer; e, considerando que, entre todos os que até aqui procuraram a
verdade nas ciências, só os matemáticos puderam encontrar algumas
demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes, não duvidei de
que deveria começar pelas mesmas que eles examinaram; embora não
esperasse delas nenhuma outra utilidade a não ser a de habituarem o meu
espírito a alimentar-se de verdades e a não se contentar com falsas razões
(...).
Mas, o que mais me contentava neste método era que, por meio dele,
tinha a certeza de usar em tudo a própria razão, se não perfeitamente, pelo
menos o melhor que podia; além de que, ao pô-lo em prática, sentia que o
meu espírito se habituava pouco a pouco a conceber mais nítida e
distintamente os seus objectos, e que, não o tendo submetido a nenhuma
matéria particular, prometia a mim próprio aplicá-lo tão utilmente às
dificuldades das outras ciências e como o aplicara às da álgebra. Não que
ousasse, por essa razão, empreender logo o exame de todas as que se
apresentassem; pois isso seria mesmo contrário à ordem que ele
prescreve. Mas, tendo notado que os seus princípios se deviam derivar
todos da filosofia, na qual eu não encontrara ainda nenhuns certos, pensei
ser preciso, antes de tudo, esforçar-me por nela os estabelecer.
Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Edições 70, 2014, pp. 31-35
2. DESCARTES E A CONSTRUÇÃO DO
UNIVERSO

2.1. A unidade da razão e o método

2.1.1. A unidade do saber e da razão

Na primeira das suas Regras para a Direcção do Espírito, Descartes


afirma: «Todas as diferentes ciências mais não são do que a sabedoria
humana, a qual permanece una e idêntica, mesmo quando se aplique a
objectos diversos e não receba deles mais distinção do que a luz do Sol
recebe dos objectos que ilumina». As diferentes ciências e os diferentes
saberes são, pois, manifestações de um saber único. Esta concepção unitária
do saber provém em última análise de uma concepção unitária da razão. A
sabedoria (bona mens) é única porque a razão é única: a razão que distingue
o verdadeiro do falso, o conveniente do inconveniente, a razão que se aplica
ao conhecimento teórico da verdade e ao ordenamento prático da conduta, é
uma e a mesma.

2.1.2. A estrutura da razão e o método

Visto que a Razão, a inteligência, é única, interessa antes de mais


conhecer qual a sua estrutura e o seu funcionamento próprio, a fim de ser
possível aplicá-la correctamente e deste modo alcançar conhecimentos
verdadeiros e proveitosos.
São dois, no entender de Descartes, os modos de conhecimento: a
intuição e a dedução. A intuição é uma espécie de «luz ou instinto
natural» que tem por objecto as naturezas simples: por seu intermédio
captamos imediatamente conceitos simples emanados da própria razão, sem
qualquer possibilidade de dúvida ou erro. A intuição é definida por
Descartes do seguinte modo (Regra III): «Um conceito da mente pura e
atenta, tão fácil e distinto que não resta qualquer dúvida sobre o que
pensamos; ou seja, um conceito não duvidoso da mente pura e atenta que
nasce só da luz razão, e é mais certo que a própria dedução».
Todo o conhecimento intelectual se desenvolve a partir da intuição de
naturezas simples. Efectivamente, entre umas naturezas simples e outras,
entre umas intuições e outras, surgem conexões que a inteligência descobre
e percorre por meio da dedução. Por mais que se prolongue em longas
cadeias de raciocínios, a dedução não passa, em última análise, de uma
sucessão de intuições das naturezas simples e das conexões entre elas.

INTUIÇÃO E DEDUÇÃO
Poderá agora perguntar-se porque é que à intuição juntámos um outro
modo de conhecimento, que se realiza por dedução; por ela entendemos
o que se conclui necessariamente de outras coisas conhecidas com
certeza. Foi imperioso proceder assim, porque a maior parte das coisas
são conhecidas com certeza, embora não sejam em si evidentes, contanto
que sejam deduzidas de princípios verdadeiros, e já conhecidos, por um
movimento contínuo e ininterrupto do pensamento, que intui nitidamente
cada coisa em particular (...) Distinguimos portanto, aqui, a intuição
intelectual da dedução certa pelo facto de que, nesta, se concebe uma
espécie de movimento ou sucessão e na outra, não; além disso, para a
dedução não é necessário, como para a intuição, uma evidência actual,
mas é antes à memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza. Pelo
que se pode dizer que estas proposições, que se concluem imediatamente
a partir dos primeiros princípios, são conhecidas, de um ponto de vista
diferente, ora por intuição, ora por dedução, mas que os primeiros
princípios se conhecem somente por intuição, e, pelo contrário, as
conclusões distantes só o podem ser por dedução.
Descartes, Regras para a Direcção do Espírito, regra III, Lisboa, Edições 70, 2002, p. 21

Descartes
Nasceu em 1596, no seio de uma família nobre e abastada. De 1604 até 1614 estudou no
colégio dos Jesuítas de la Flèche. A sua relativa fortuna permitiu-lhe dedicar a vida ao estudo, à
ciência e à filosofia. Permaneceu na Holanda de 1628 a 1649, transferindo-se neste último ano
para Estocolmo, onde morreu no ano seguinte.
As suas obras mais significativas são: As Regras para a Direcção do Espírito (Regulae ad
directionem ingenií), incompletas, escritas por volta de 1628 e publicadas em 1701; as
Meditações (Meditationes de prima philosophia in quibus existentia Dei et animae immortalitas
demonstrantur), escritas em 1640 e cujo conteúdo comunicou a diversos filósofos e teólogos, o
que originou seis séries de objecções e respostas; o Discurso ao Método (1637) e os Princípios
da Filosofia (Principia philosophiae), obra aparecida em 1644.

Visto que a intuição e a dedução constituem o dinamismo interno e


específico do conhecimento, este deve aplicar-se num processo de dois
passos: 1) em primeiro lugar, um processo de análise até chegar aos
elementos ou naturezas simples; 2) em segundo lugar, um processo de
síntese, de reconstrução dedutiva do complexo a partir do simples. A um e
outro momento se referem respectivamente as regras segunda e terceira do
Discurso do Método: «Dividir cada uma das dificuldades em tantas partes
quantas as possíveis e necessárias para resolvê-las melhor» (regra segunda);
e «conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objectos
mais simples e fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, por passos, até
ao conhecimento dos mais complexos; supondo inclusivamente uma ordem
entre aqueles que não se antecedem naturalmente uns aos outros» (regra
terceira).
Esta forma de proceder não é pois arbitrária: é o único método que
responde à dinâmica interna de uma razão única. Até agora, pensa
Descartes, a razão foi utilizada deste modo apenas no campo das
matemáticas, produzindo resultados admiráveis. Nada impede no entanto
que a sua utilização se estenda a todos os domínios do saber, produzindo
frutos igualmente admiráveis.

2.2. A dúvida e a primeira verdade

2.2.1. A dúvida metódica

Como frisámos mais acima ao caracterizar o racionalismo, o


entendimento deve encontrar em si mesmo as verdades fundamentais a
partir das quais seja possível deduzir o edifício inteiro dos nossos
conhecimentos. Este ponto de partida tem de ser uma verdade
absolutamente certa, sendo absolutamente impossível duvidar dela.
Somente assim o conjunto do sistema ficará firmemente fundamentado.
A busca de um ponto de partida absolutamente certo exige uma tarefa
prévia que consiste em eliminar todos os conhecimentos, ideias e crenças
que não apareçam dotados de uma certeza absoluta: há que eliminar tudo
aquilo de que seja possível duvidar. Daí que Descartes comece pela dúvida.
Esta dúvida é metódica, é uma exigência do método no seu momento
analítico. O escalonamento dos motivos para duvidar apresentados por
Descartes faz que a dúvida adquira a máxima radicalidade.

1. A primeira e mais óbvia razão para duvidar dos nossos conhecimentos


encontra-se em falácias dos sentidos, que nos induzem às vezes em erro.
Pois bem, que garantia existe de que não nos induzem sempre em erro? A
maioria dos homens considerará como altamente improvável que os
sentidos nos induzam sempre em erro, mas a improbabilidade não equivale
a uma certeza e, por isso, a possibilidade de duvidar acerca do testemunho
dos sentidos não fica totalmente eliminada.

2. Deve-se pois duvidar de que as coisas sejam como as percebemos por


meio dos sentidos, mas isso não nos permite duvidar de que existam as
coisas que percebemos. Daí que Descartes acrescente uma segunda razão –
mais radical – para duvidar: a impossibilidade de distinguir a vigília do
sonho. Por vezes os sonhos mostram-nos mundos de objectos com extrema
nitidez, e ao despertar descobrimos que tais universos não têm existência
real. Como distinguir o estado de sonho do estado de vigília e como
alcançar uma certeza absoluta de que o mundo que percebemos é real?
(Como no caso das falácias dos sentidos: a maioria dos homens – se não
todos – tem critérios para distinguir a vigília do sonho; mas tais critérios
não servem para fundamentar uma certeza absoluta.)

3. A impossibilidade de distinguir a vigília do sonho permite duvidar da


existência das coisas e do mundo, mas não parece afectar certas verdades,
como as matemáticas: adormecidos ou acordados, os três ângulos de um
triângulo somam 180 graus na geometria de Euclides. Daí que Descartes
acrescente o terceiro e mais radical motivo de dúvida: talvez exista algum
espírito maligno – escreve Descartes – «de extremado poder e inteligência
que põe todo o seu empenho em induzir-me em erro» (Meditações, I). Esta
hipótese do «génio maligno» equivale a supor que talvez o entendimento
seja de tal natureza que se equivoque necessariamente e sempre quando
pensa captar a verdade. Trata-se, uma vez mais, de uma hipótese
improvável, mas que nos permite duvidar de todos os nossos
conhecimentos.

O QUE SE ENTENDE POR PENSAMENTO


Por pensamento entendo o que está em nós de tal modo que temos
imediatamente consciência disso. Assim, todas as operações da vontade,
do entendimento, da imaginação e dos sentidos são pensamentos.
Acrescentei imediatamente, a fim de excluir as coisas que dependem e
são consequências dos nossos pensamentos: por exemplo, o movimento
voluntário conta desde logo com a vontade, como princípio seu, mas em
si mesmo esse movimento não é pensamento.
Descartes, Meditações Metafísicas
2.2.2. A primeira verdade e o critério

A dúvida levantada até este extremo de radicalidade parece desaguar


irremediavelmente no cepticismo. Isso pensou Descartes durante algum
tempo até que, por fim, encontrou uma verdade absoluta, imune a toda a
dúvida por mais radical que esta seja: a existência do próprio sujeito que
pensa e duvida. Se eu penso que o mundo existe, talvez me engane quanto à
existência do mundo mas não pode haver erro quanto ao facto de que eu
penso isso; de igual modo, posso duvidar de tudo menos de que eu duvido.
A minha existência como sujeito que pensa (que duvida, que se equivoca,
etc.) está assim isenta de todo o erro possível e de toda a dúvida possível.
Descartes exprime-o com o seu célebre «Penso, logo existo».
Mas a minha existência como sujeito pensante não é somente a primeira
verdade e a primeira certeza: é também o protótipo de toda a verdade e de
toda a certeza. Porque é que a minha existência como sujeito pensante é
absolutamente indubitável? Porque a percebo com toda a clareza e
distinção. Daqui deduz Descartes o seu critério de certeza: tudo quanto
perceber com igual clareza e distinção será verdadeiro e, portanto,
poderei afirmá-lo com inquebrantável certeza. «Neste primeiro
conhecimento não existe senão uma percepção clara e distinta do que
afirmo; o que não seria suficiente para assegurar-me da certeza de uma
coisa, se fosse possível que o que percebo clara e distintamente seja falso.
Portanto, parece-me que posso estabelecer como regra geral que tudo o que
percebo clara e distintamente é verdadeiro.» (Meditações, III.)

2.3. As ideias

2.3.1. As ideias, objecto do pensamento

Temos já uma verdade absolutamente certa: a existência do eu como


sujeito pensante. Esta existência indubitável do eu não parece implicar no
entanto a existência de qualquer outra realidade. De facto, ainda que eu o
pense, talvez o mundo não exista na realidade (segundo Descartes, podemos
duvidar de sua existência); o único certo é que eu penso que o mundo
existe. Como demonstrar a existência de uma realidade extramental,
exterior ao pensamento? Como conseguir a certeza de que existe algo à
parte do meu pensamento, exterior a ele?
O problema é enorme, sem dúvida, já que a Descartes não resta outro
remédio senão deduzir a existência da realidade a partir da existência do
pensamento. Assim o exige o ideal dedutivo: da primeira verdade do «eu
penso» deverão extrair-se todos os nossos conhecimentos, inclusive, claro
está, o conhecimento de que existem realidades extramentais.
Antes de passar adiante com a dedução, vejamos como faz Descartes os
elementos com que contamos para levá-la a cabo. Este balanço mostra-nos
que contamos com dois: o pensamento como actividade (eu penso) e as
ideias que pensa. No exemplo citado, «eu penso que o mundo existe», esta
fórmula põe a claro a presença de três factores: o eu que pensa, cuja
existência é indubitável; o mundo como realidade exterior ao pensamento,
cuja existência é duvidosa e problemática e as ideias de «mundo» e de
«existência» que indubitavelmente possuo (talvez o mundo não exista, mas
não pode duvidar-se de que possuo as ideias de «mundo» e «existência», já
que, se as não possuísse, não poderia pensar que o mundo existe).
Desta análise conclui Descartes que o pensamento pensa sempre
ideias. É importante anotar que o conceito de «ideia» muda em Descartes,
relativamente vigente no passado. Para a filosofia anterior, o pensamento
não recai sobre as ideias mas directamente sobre as coisas: se eu penso que
o mundo existe, estou pensando no mundo e não na minha ideia de mundo
(a ideia seria algo assim como um meio transparente através do qual o
pensamento recai sobre as coisas: como uma lente através da qual se vêem
as coisas, sem que ela mesma seja percebida). Para Descartes, ao contrário,
o pensamento não recai directamente sobre as coisas (cuja existência não é
certa em princípio) mas sobre as ideias: no exemplo utilizado, eu não penso
no mundo mas na ideia de mundo (a ideia não é uma lente transparente mas
uma representação ou fotografia que contemplámos). Como garantir que à
ideia de mundo corresponde uma realidade do mundo?

2.3.2. A ideia, realidade objectiva e acto mental

A afirmação de que o objecto do pensamento são as ideias, leva


Descartes a distinguir cuidadosamente dois aspectos nelas: as ideias
enquanto actos mentais («modos de pensamento», na expressão de
Descartes) e as ideias enquanto possuem um conteúdo objectivo.
Como actos mentais, todas as ideias possuem a mesma realidade; quanto
ao seu conteúdo, a sua realidade é diferente: «Enquanto as ideias são
somente modos do pensamento, não reconheço desigualdade alguma entre
elas e todas elas parecem provir de mim da mesma maneira; mas enquanto
uma representa uma coisa, e a outra uma outra coisa, é evidente que são
mui distintas entre si. É indubitável que aquelas ideias que me representam
substâncias são algo mais e possuem em si, por assim dizer, mais realidade
objectiva do que aquelas que representam somente modos ou acidentes.»
(Meditações, III.)

NOÇÃO DE IDEIA
Pela palavra ideia entendo aquela forma dos nossos pensamentos cuja
percepção imediata nos torna conscientes deles. Assim, quando
compreendo o que digo, não posso expressar com palavras nada que não
seja certo, porque tenho em mim a ideia da coisa que as minhas palavras
significam. Por conseguinte, não designo por ideia as imagens da minha
fantasia, nem sequer lhes chamo ideias enquanto estão na fantasia
corpórea (ou seja, enquanto estão inseridas em certas partes do
cérebro), mas só quando informam o próprio espírito a elas dedicado
nessa parte do cérebro.
Descartes, Meditações Metafísicas
2.3.3. Classes de ideias

Temos, pois, de partir das ideias. Temos de submetê-las a uma análise


cuidadosa para tentar descobrir se alguma delas nos serve para romper o
cerco do pensamento e sair para a realidade extramental. Ao realizar esta
análise, Descartes distingue três tipos de ideias:

1. Ideias adventícias, isto é, aquelas que parecem provir da nossa


experiência externa (as ideias de homem, de árvore, as cores, etc).
Escrevemos «parecem provir» e não «provêm» porque ainda não temos
certeza da existência de uma realidade exterior.

2. Ideias factícias, ou seja, as que a mente constrói a partir de outras


ideias (a ideia de um cavalo com asas, etc.).

É claro que nenhuma destas ideias pode servir-nos de ponto de partida


para a demonstração da existência da realidade extramental: as adventícias,
porque parecem provir do exterior e, portanto, a sua validade depende da
problemática existência da realidade extramental; as factícias, porque ao
serem construídas pelo pensamento a sua validade é questionável.

3. Existem, no entanto, algumas ideias (poucas, mas à partida as mais


importantes) que não são adventícias nem factícias. Ora bem, se não podem
provir da experiência externa, nem são construídas a partir de outras, qual é
a sua origem? A única resposta possível é que o pensamento as possui em si
mesmo, isto é, são inatas. (Eis aqui já a afirmação fundamental do
racionalismo de que são inatas as ideias primitivas a partir das quais se irá
construir o edifício dos nossos conhecimentos.) Ideias inatas são, por
exemplo, a de «pensamento» e a de «existência», que não são construídas
por mim nem procedem de experiência externa alguma, mas que encontro
na própria percepção do «penso, logo existo».
2.4. A existência de Deus e do mundo

Entre as ideias inatas, Descartes descobre a ideia de infinito, que se


apressa a identificar com a ideia de Deus (Deus=infinito). Com argumentos
convincentes, Descartes demonstra que a ideia de Deus não é adventícia (e
não o é, evidentemente, visto que não possuímos experiência directa de
Deus) e com argumentos menos convincentes esforça-se por demonstrar
que também não é factícia. Contra a opinião tradicional de que a ideia de
infinito provém, por negação dos limites, da ideia de finito, Descartes
afirma que a noção de finitude, de limitação, pressupõe a ideia de
infinitude: esta não deriva pois daquela; não é factícia.

DEMONSTRAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE DEUS A PARTIR DA


SUA IDEIA
De modo que só resta a ideia de Deus, mediante a qual posso
considerar se existe alguma coisa que não tenha origem em mim próprio.
Por «Deus» entendo uma substância infinita, eterna, imutável e
independente, sumamente omnisciente e omnipotente, que me criou e
criou todas as coisas (se porventura as coisas existem). Ora, o que se
entende por Deus é sem dúvida tão notável que quanto mais aprofundo
essa ideia menos me parece que possa ter a sua origem só em mim. Por
conseguinte, devo concluir forçosamente pelo exposto que Deus existe.
Como sou uma substância, tenho em mim uma certa ideia de substância;
no entanto, como sou finito, nunca poderia ter a ideia de uma substância
infinita, a não ser que a minha origem se deva a outra substância
realmente infinita (...). E deste modo acabam as dificuldades, tendo eu de
concluir necessariamente o seguinte: porque eu existo e há em mim uma
certa ideia de um ente perfeitíssimo (ou seja Deus), está demonstrado à
evidência que Deus existe.
A força deste argumento reside na certeza de que é impossível que eu,
por virtude da minha natureza, tenha em mim a ideia de Deus se Deus
não existisse de facto.
Descartes, Meditações Metafísicas.

Uma vez estabelecido por Descartes que a ideia de Deus – como ser
infinito – é inata, o caminho da dedução fica definitivamente desimpedido:

a) A existência de Deus é demonstrada a partir da ideia de Deus.


Entre os argumentos utilizados por Descartes merecem ser destacados dois:
em primeiro lugar, o argumento ontológico, a que já nos referimos no
capítulo quarto ao ocuparmo-nos de Santo Anselmo; em segundo lugar, um
argumento baseado na causalidade aplicada à ideia de Deus. Esta prova
parte da realidade objectiva das ideias e pode ser formulada assim: «a
realidade objectiva das ideias requer uma causa tal que possua realidade em
si mesma, não só de um modo objectivo mas também de um modo formal
ou eminente» isto é, a ideia como realidade objectiva requer uma causa real
proporcionada; logo, a ideia de um ser infinito requer uma causa infinita;
logo, foi causada em mim por um ser infinito; logo, o ser infinito existe.

b) A existência do mundo é demonstrada a partir da existência de


Deus: visto que Deus existe e é infinitamente bom e veraz, não pode
permitir que me engane ao crer que o mundo existe; logo, o mundo existe.
Deus aparece assim como garantia de que às minhas ideias corresponde
um mundo, uma realidade extramental. Convém no entanto notar que Deus
não garante que a todas as minhas ideias corresponda uma realidade
extramental. Descartes (como Galileu, como toda a ciência moderna) nega
que existam as qualidades secundárias, apesar de termos as ideias das cores,
dos sons, etc. Deus garante somente a existência de um mundo constituído
exclusivamente pela extensão e pelo movimento (qualidades primárias). A
partir destas ideias de extensão e movimento pode deduzir-se a física; as
leis gerais do movimento; Descartes tenta realizar esta dedução.
Tentaremos uma análise mais pormenorizada da interpretação cartesiana do
mundo no capítulo décimo primeiro, na alínea «a máquina cartesiana do
mundo» (3.1.).

2.5. A estrutura da realidade

Pelo anteriormente exposto compreende-se facilmente que Descartes


distingue três esferas ou âmbitos da realidade: Deus ou substância infinita,
o eu ou substância pensante e os corpos ou substância extensa.
(Assinalámos já que, segundo Descartes, a essência dos corpos é a
extensão: para ele não existem as qualidades secundárias.)

A SUBSTÂNCIA
Chama-se substância àquela coisa na qual, tal como no seu sujeito,
algo lhe é inerente, ou seja, pela qual existe algo que concebemos; quer
dizer, uma propriedade, qualidade ou atributo do qual temos em nós uma
ideia real. A única precisa que temos de substância é que se trata de uma
coisa na qual existe formalmente ou eminentemente o que concebemos,
ou seja, o que está objectivamente nalguma das nossas ideias, pois a luz
natural ensina-nos que o nada não comporta nenhum atributo do real.
Chamamos espírito à substância na qual o pensamento está
imediatamente inserido. Este nome é, no entanto, equívoco, pois às vezes
é atribuído ao vento ou a certos licores; mas não encontro outro melhor.
Chamamos corpo à substância que é sujeito imediato da extensão e
dos acidentes que pressupõem extensão, como a figura, a situação, o
movimento local, etc. Perguntar-se-á de imediato se a substância
chamada espírito é a mesma à qual chamamos corpo ou se se trata de
duas substâncias diferentes e separadas.
Chamamos Deus à substância que entendemos ser sumamente perfeita
e na qual não concebemos nada que possa incluir defeitos ou limitações
de perfeição.
Descartes, Meditações Metafísicas.

PROPOSIÇÃO XVI
Da necessidade da natureza divina derivam coisas infinitas de
maneiras infinitas (isto é, tudo o que pode caber num raciocínio infinito).
DEMONSTRAÇÃO: Esta proposição deve ser evidente para todos; desde
que se considere que a razão conclui várias propriedades de uma dada
definição de uma coisa, as quais derivam naturalmente, e de um modo
necessário, dessa definição (ou seja, da própria essência da coisa), e
tantas quanto maior realidade a definição da coisa expressar, isto é,
quanto mais realidade a essência da coisa definida implicar. Mas como a
natureza divina possui atributos infinitos absolutos (de acordo com a
definição 6), cada qual expressando também uma essência infinita do seu
género, da necessidade dessa natureza derivam então necessariamente
coisas infinitas de modos infinitos (ou seja, tudo o que cabe num
raciocínio infinito). Q. E. D.
Espinosa, Ética

O conceito de substância é um conceito fundamental em Descartes e, a


partir dele, em todos os filósofos racionalistas. Uma célebre definição (que
não é a única dada por Descartes, mas a mais significativa) estabelece que a
substância é uma coisa que existe de tal modo que não necessita de
nenhuma outra coisa para existir. Tomando-se esta definição à letra, é
evidente que só poderia existir a substância infinita (Deus), já que os seres
finitos, pensantes e extensos são criados e conservados por Ele. O próprio
Descartes reconheceu (Princípios, I, 51) que tal definição só pode aplicar-se
de modo absoluto a Deus, embora a definição possa continuar a manter-se
no que se refere à independência mútua entre a substância pensante e a
substância extensa que não necessitam uma da outra para existir.

Ao afirmar que a alma e o corpo, pensamento e extensão constituem


substâncias distintas, o objectivo último do pensamento de Descartes é
salvaguardar a autonomia da alma relativamente à matéria. A ciência
clássica (cuja concepção da matéria Descartes compartilha) impunha uma
concepção mecanicista e determinista do mundo material, no qual não há
lugar algum para a liberdade. A liberdade – e com ela o conjunto dos
valores espirituais defendidos por Descartes – só podia salvaguardar-se
subtraindo a alma ao mundo da necessidade mecanicista e isto, por seu
turno, exigia que se situasse numa esfera da realidade autónoma e
independente da matéria. Esta independência da alma e do corpo é a ideia
central trazida pelo conceito cartesiano de substância.

A autonomia da alma relativamente à matéria justifica-se, aliás, na


clareza e na distinção com que o entendimento percebe a independência de
ambas: «posto que, por um lado, possuo uma ideia distinta do corpo
enquanto é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é evidente que eu
sou distinto do meu corpo e que posso existir sem ele» (Meditações, VI).
3. ESPINOSA E LEIBNIZ

3.1. Espinosa

3.1.1. A noção de substância

A noção cartesiana de substância a que acabámos de referir-nos incluía


dois elementos: a) a autonomia e independência da substância expressa na
sua definição («que não necessita de nenhuma outra coisa para existir»); b)
a percepção clara e distinta da autonomia da substância, da sua
independência relativamente a qualquer outra substância. Ambos os
aspectos surgem integrados na definição da mesma, dada por Espinosa:
«Por substância entendo aquilo que é em si e se concebe por si; isto é,
aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa para se
formar» (Ética). Substância é pois o que existe por si mesmo e é conhecido
por si mesmo.
Nesta fórmula observe-se que intervêm explicitamente dois elementos
distintos (que correspondem aos dois elementos da noção cartesiana): por
um lado, a realidade ou existência da substância («o que existe por si
mesmo»); por outro, o conhecimento da substância («é conhecido por si
mesmo»). Esta fórmula implica que entre a ordem do conhecimento e a
ordem da realidade exista uma correspondência perfeita: o que existe por si
mesmo é conhecido por si mesmo; e o inverso: o que é conhecido por si
mesmo existe por si mesmo.

3.1.2. O monismo panteísta


Espinosa interpreta a realidade como um sistema único em que as partes
remetem para o todo e encontram nele a sua justificação e fundamento. Este
sistema total, esta substância única, é denominada por Espinosa Deus sive
Natura (Deus ou Natureza).
Este monismo panteísta encontra justificação lógica na definição
espinosista de substância, da qual se deduz necessariamente. Com efeito, se
substância é o que se concebe por si mesmo e, portanto, existe por si
mesmo, a ideia de uma substância criada é contraditória: enquanto
substância há-de ser conhecida e definida por si mesma, sem necessidade de
recurso à ideia de outra substância; enquanto criada, não pode ser conhecida
e definida por si mesma, mas a sua definição inclui necessariamente a ideia
de Deus (como definir uma substância criada senão como uma substância
produzida por Deus?). Não existem, pois, substâncias criadas, não há
pluralidade de substâncias. Existe uma substância única, infinita, que se
identifica com a totalidade do real: as partes não são auto-suficientes,
somente o todo o é.
Esta substância infinita, Deus ou Natureza, possui infinitos atributos dos
quais dois nos são conhecidos: o pensamento e a extensão. Por sua vez,
cada um destes infinitos atributos realiza-se em infinitos modos (que são as
diferentes realidades individuais, almas e corpos particulares).

Baruch Espinosa
Descendente de judeus espanhóis ou portugueses (segundo opiniões divergentes) emigrados,
nasceu em Amsterdão em 1632. A sua formação intelectual procede de duas fontes: por um
lado, a filosofia e religião judaica tradicionais; por outro, a filosofia de Descartes. Excomungado
e expulso da Sinagoga em 1656, transferiu-se para Haia, onde viveu modestamente do seu
trabalho como polidor de lentes. Morreu aos 44 anos, em 1677.
Escreveu um tratado (por acabar) acerca do método: Reforma do Entendimento e um Tratado
Teológico-Político; ambos, juntamente com a Ética (Ética more geometrico demonstrata),
constituem, o mais importante da sua produção filosófica.

Gottfried Wilhelm Leibniz


Nasceu em Leipzig em 1646 e morreu em 1716. Na Universidade de Leipzig, familiarizou-se
com o pensamento aristotélico, platónico e escolástico, bem como a filosofia de Descartes. Aos
dezanove anos doutorou-se em Direito, dedicando a partir de então grande parte da sua
actividade à carreira política e diplomática. Durante a sua residência em França conheceu os
trabalhos matemáticos de Pascal. Em 1676 inventou o cálculo infinitesimal. Conheceu
igualmente Espinosa numa viagem pela Holanda, bem como outros cientistas e filósofos da
época.
Leibniz deixou uma ampla e interessante correspondência, bem como inúmeros opúsculos,
entre os quais merecem destacar-se o Discurso da Metafísica, O Sistema Novo da Natureza e a
Comunicação entre as Substâncias e Monadologia, escrita já no final da sua vida. Obras de
maior envergadura são Novos Ensaios acerca do Entendimento Humano (em que analisa
pormenorizadamente o Ensaio de Locke) e Ensaios de Teodiceia.

3.1.3. A ordem do real

A definição espinosista de substância baseia-se em que existe uma


correspondência perfeita entre a ordem das ideias e a ordem do real. Este
princípio (implicitamente suposto por Descartes) é explicitamente afirmado
por Espinosa na sua proposição: «A ordem e conexão das ideias é a
mesma que a ordem e a conexão das coisas» (Ética II, prop. 7). A
correspondência entre as duas ordens constitui a chave e o fundamento de
todo o sistema filosófico de Espinosa. Com efeito, tal correspondência
implica:

a) que a totalidade do real (Deus, Natureza) constitui um sistema no qual


as diferentes partes – os seres particulares – estão relacionadas umas com as
outras e, em última análise, com o todo. A realidade apresenta a estrutura de
um sistema na sua totalidade. (A obra fundamental de Espinosa tem por
título Ética demonstrada segundo a ordem geométrica e nela expõe a
ordem total da realidade, utilizando a forma de um tratado de geometria: a
partir de certas definições – Deus, substâncias, etc. – e de certos axiomas
deduz-se em forma de teoremas a estrutura da totalidade do real).

b) A conexão existente entre as ideias (entre as proposições de um


sistema matemático-geométrico) é necessária, contínua e intemporal:
necessária, porque os teoremas são como são e não podem ser de outro
modo; contínua, pois as proposições sucedem-se e derivam umas das outras
sem saltos nem lacunas; e intemporal porque a derivação de proposições
umas a partir das outras não implica uma sucessão cronológica mas apenas
lógica, a sucessão que vai do princípio à consequência. Dado haver uma
correspondência entre a ordem do pensamento e a ordem da realidade,
também as conexões existentes na realidade possuirão as características
assinaladas de necessidade, continuidade e intemporalidade. Por isso,
quando Espinosa contempla a realidade more geométrico (segundo a ordem
geométrica), fá-lo sub specie aeternitatis (numa perspectiva intemporal, de
eternidade).

3.2. Leibniz

3.2.1. A noção de mónada

Também Leibniz vai buscar a Descartes a ideia básica de substância


como uma realidade que é autónoma e independente de qualquer outra
substância em seu ser e em seu comportamento. Leibniz, contudo, critica e
rejeita dois pontos fundamentais do cartesianismo: a concepção cartesiana
da extensão como essência da substância material e o mecanicismo como
execução do movimento. Obviamente, existe uma estreita vinculação lógica
entre os dois aspectos da doutrina cartesiana.
Ao negar que a extensão seja a essência da realidade corpórea, Leibniz
chega à conclusão de que existe uma infinidade de substâncias simples,
inextensas, a que chama mónadas. Ao negar o mecanicismo, Leibniz
afirma que estas substâncias são activas: os diferentes processos e
determinações que afectam uma mónada têm origem na actividade desta,
são interiores a ela e não o resultado de qualquer influxo exterior. As
mónadas não actuam, pois, umas sobre as outras. Ora, apesar de as
substâncias ou mónadas não exercerem qualquer influência recíproca, o
Universo manifesta uma ordem como totalidade: como é possível esta
ordem se cada mónada actua por si e a partir de si, desligada realmente das
demais? A resposta de Leibniz a esta pergunta encontra-se na sua teoria da
harmonia pré-estabelecida: ao criar o mundo, Deus ordenou-as de tal modo
que, mesmo sem existirem influências mútuas entre elas, o resultado da
actividade de todas é a ordem harmónica da totalidade.

Um dos problemas teóricos cruciais do racionalismo é o da relação


existente entre as diferentes substâncias, especificamente entre a
substância pensante (alma) e a substância extensa (corpo; ou antes, no
caso de Leibniz, a multidão de mónadas que «compõem» o corpo). A
noção cartesiana de substância conduzia à negação da intercausalidade
das substâncias, da possibilidade de que uma substância influenciasse ou
actuasse sobre outra.
Para resolver este problema, Malebranche introduziu a doutrina
ocasionalista. Segundo o ocasionalismo, não são as substâncias que
actuam sobre as outras, mas é Deus quem realmente actua: uma lesão
cerebral (corpo) não é causa da perda da memória (alma), mas ocasião
para Deus actuar causando a perda da memória. Leibniz, como acabámos
de notar, propôs a harmonia pré-estabelecida. Quanto a Espinosa, o seu
monismo permite obviar perfeitamente ao problema da interacção da
mente e do corpo: «são uma e mesma coisa que se concebe, num caso,
sob o atributo do pensamento e, no outro caso, sob o atributo da
extrosão» (Ética III, prop. 2, escólio).

3.2.2. O princípio da razão suficiente

a) Verdades de facto e verdades de razão


Na sua análise do conhecimento, Leibniz distingue estes dois tipos de
verdades, sendo as seguintes as respectivas características:

1. As verdades de razão são verdades analíticas, isto é, basta analisar o


sujeito da proposição para concluir que o predicado lhe convém. Tomemos
um exemplo: «O todo é maior do que as suas partes». Basta analisar a ideia
de «todo» («todo» é algo composto de várias «partes») para compreender
que o predicado lhe convém necessariamente, que tem de ser «maior do que
as suas partes», que não pode ser de outro modo.
Segundo Leibniz, as verdades de razão baseiam-se exclusivamente no
princípio de contradição. No nosso exemplo, basta que o todo seja o todo e
a parte seja a parte para que a nossa proposição seja verdadeira sem mais
requisitos.

2. As verdades de facto não são analíticas, isto é, não é suficiente


analisar o sujeito para compreender que o predicado lhe convém. Tomemos
outro exemplo: «César passou o Rubicão». Esta proposição enuncia um
facto, uma verdade, que podemos encontrar nos livros de história. Esta
verdade não é analítica, já que por muito que analisássemos o conceito de
César (se isso fosse possível), não poderíamos dele deduzir que passou o
Rubicão, como podemos deduzir que a ideia de «todo» tem de ser
necessariamente maior do que as partes. Em rigor, César podia não ter
passado o Rubicão.
As verdades de facto não se baseiam pois, apenas no princípio da
contradição: «César» continuaria sendo «César» e «passar o Rubicão»
continuaria a ser «passar o Rubicão», mesmo que aquele não tivesse
passado este. Para fundamentar as verdades de facto, é preciso pois outro
princípio além do de contradição, o princípio que Leibniz denominou
«razão suficiente». Este princípio estabelece que tudo o que existe ou
acontece tem uma razão para existir ou acontecer (caso contrário, não
existiria nem aconteceria). Aplicado ao nosso exemplo, o princípio exige
que há (houve) alguma razão suficiente para que César passasse o Rubicão
(senão, não o teria feito). Tudo é inteligível, tudo pode ser teoricamente
deduzido a partir da sua razão suficiente (o ideal dedutivo do racionalismo
está presente em Leibniz) e bastaria conhecer a razão suficiente que
determinou César para – a partir dela – saber que passaria o Rubicão.

b) O problema da liberdade
A distinção entre verdades de facto e verdades de razão foi introduzida
por Leibniz, entre outros motivos para salvaguardar a liberdade dos actos
humanos. César, já dissemos, passou o Rubicão, mas podia não o ter
passado. A distinção entre os dois tipos de verdade é no entanto difícil de
manter, admitindo o princípio de razão suficiente. E parece que as verdades
de facto vêm a ser, em última análise, verdades de razão. Vejamo-lo com o
exemplo que utilizámos:

– de acordo com a filosofia de Leibniz, se César passou o Rubicão, deve


haver uma razão suficiente para o ter feito;
– esta razão suficiente tem de encontrar-se no próprio César e não fora
dele, já que, de acordo com o conceito racionalista de substância,
nenhuma substância pode influenciar outra e, por conseguinte, é no
próprio César que terá de encontrar-se a razão de toda a sua actividade;
– esta razão suficiente não pode ser certamente a pura «vontade». A
vontade não é mais do que a carência de razões. Aquele que diz ter feito
algo porque lhe deu na vontade está na realidade a dizer que o fez sem
uma razão suficiente. Mas isso é irracional;
– logo, se houve uma razão e a razão também se encontra no próprio
César, poderíamos encontrá-la analisando o conceito de ‘César’ e, por
conseguinte, o predicado («passou o Rubicão»). As verdades de facto
seriam portanto, analíticas de razão.

Leibniz não parecia disposto a aceitar esta conclusão e nas suas obras
apresentou duas contestações ao raciocínio acima exposto.

1. Em primeiro lugar – diz Leibniz – seria necessária uma análise


infinita realizada por um entendimento infinito, e isso não é possível. Para o
entendimento humano, «César passou o Rubicão» será sempre um facto que
não é possível deduzir, mas que pode ser conhecido por experiência
(baseando-nos no testemunho de alguém que viu). Esta contestação não
parece resolver o problema, pois um entendimento infinito poderia levar a
cabo tal análise por conseguinte, embora facticamente, para nós não seja
uma verdade analítica, vem teoricamente e em si mesma a sê-lo.

OS DOIS RELÓGIOS E A HARMONIA


Imagine-se dois relógios em perfeita correspondência. Ora, esta
correspondência pode acontecer de três maneiras. A primeira consiste na
influência mútua de um relógio sobre o outro; a segunda, nos cuidados do
homem que se ocupa deles; a terceira, na sua própria precisão (...).
Substitua-se agora estes dois relógios pela alma e pelo corpo. A sua
concordância ou simpatia também acontecerá de uma destas três
maneiras. A via da influência é a da filosofia vulgar; mas como não é
possível conceber partículas materiais, espécies ou qualidades imateriais
capazes de passar de uma substância a outra, vemo-nos obrigados a
abandonar esta opinião. A via da assistência é própria do sistema das
causas ocasionais, mas isto é trazer Deus ex machina para as coisas
naturais e vulgares quando, de acordo com a razão, o seu modo de
intervenção não é diferente daquele com que concorre em todas as outras
coisas da natureza. Por conseguinte, só resta a minha hipótese, ou seja, a
via da harmonia pré-estabelecida por um artífice divino previdente que
desde o início formou cada uma destas substâncias de uma maneira tão
perfeita e as regulou com tal precisão que, regendo-se elas apenas pelas
suas próprias leis recebidas com o seu ser, se encontram, com efeito,
concertadas uma com a outra.
Leibniz, Carta a M. D. L.

O PRINCÍPIO DA RAZÃO SUFICIENTE


31 – Os nossos raciocínios baseiam-se em dois grandes princípios: O
princípio da contradição, por meio do qual julgamos falso o que implica
contradição e verdadeiro o que é oposto ou contraditório ao falso.
32 – O princípio da razão suficiente, por meio do qual consideramos
que nenhum facto pode existir ou ser verdadeiro e que nenhuma
enunciação é verdadeira se não houver uma razão suficiente para que isso
seja assim e não de outro modo, mesmo que não possamos conhecer estas
razões na maior parte dos casos.
33 – Há duas espécies de verdades: as de raciocínio e as de facto. As
verdades de raciocínio são necessárias, e o seu contrário é impossível; as
de facto são contingentes e o seu contrário é possível. Quando uma
verdade é necessária, a sua razão pode ser encontrada através da análise
das suas ideias e verdades mais simples até se chegar às primeiras (...).
36 – Mas a razão suficiente também pode ser encontrada nas verdades
contingentes ou de facto, isto é, na série de coisas que fazem parte do
universo das criaturas, mas aqui a análise em razões particulares poderia
levar a uma pormenorização ilimitada devido à imensa variedade das
coisas da natureza e à divisão infinita dos corpos. A causa eficiente da
minha escrita presente é formada por uma infinidade de imagens e de
movimentos, e há ainda uma infinidade de pequenas inclinações e
disposições da minha alma, presentes e passadas, que formam a causa
final.
37 – Não é possível avançar na análise dado que toda esta
pormenorização engloba ainda outros contingentes anteriores e
porventura ainda mais detalhados, além de que cada um deles requer
também uma análise semelhante para lhes conferir razão. A razão
suficiente deve, poi, situar-se fora da sequência ou séries destes
pormenores e contingências por mais infinitos que estes sejam.
38 – Deste modo, a razão última das coisas residirá numa substância
necessária na qual a pormenorização das mudanças é apenas eminente, tal
como na sua origem: a isso chamamos Deus.
Leibniz, Monadologia.
2. Existe – diz Leibniz noutras ocasiões – uma diferença radical entre os
dois tipos de verdades: as de razão referem-se a essências, enquanto as de
facto se referem a existências. Vejamos o que significa esta distinção.
Que as verdades de razão se referem a essências significa que são
verdades independentemente de existirem ou não os sujeitos a que se
referem: «o todo é maior do que as suas partes» é verdade
independentemente de existirem todos, ou de não existirem, do mesmo
modo que os três ângulos de um triângulo somam cento e oitenta graus,
mesmo que não houvesse triângulos. Não é este o caso das verdades de
facto, as quais implicam a existência do sujeito. «César passou o Rubicão»
só é verdade num mundo em que existe César; num mundo em que não
tivesse existido César, não se teria produzido este facto.

c) Deus e o princípio de razão suficiente


O problema é assim transferido para Deus. Segundo Leibniz, as
verdades de razão – que não implicam existências – têm fundamento no
entendimento divino, enquanto as verdades de facto têm fundamento na
vontade divina, que decidiu criar este mundo em que há César e há
Rubicão. Se tivesse decidido criar outro mundo em que não existisse César,
o facto em questão não se teria produzido.
Claro que podemos continuar ainda a insistir: por que fez Deus este
mundo? Qual a razão suficiente para que Deus criasse este mundo e não
outro entre os infinitos mundos possíveis a que Leibniz se refere? É bem
conhecida a resposta de Leibniz a esta pergunta: Deus criou este mundo
porque é o melhor de todos os mundos possíveis. Eis a razão suficiente da
sua criação.
É evidente que o problema da liberdade se coloca agora a respeito do
próprio Deus, relativamente à criação deste mundo. A sua criação é
realmente livre? – Não se deduziria necessariamente de Deus tudo o que
existe e tudo o que acontece no Universo, como acontece no sistema de
Espinosa?
4. A MATEMÁTICA
COMO MODELO DE SABER

Após a exposição que acabámos de fazer acerca dos temas mais


importantes dos filósofos racionalistas, podemos agora indicar quais os
pontos fundamentais do racionalismo que derivam da sua aceitação das
matemáticas como saber modelo.

a) Em primeiro lugar, temos de assinalar como característica


fundamental do racionalismo o seu ideal de ciência dedutiva no seguimento
do modelo matemático, ou seja, a convicção fundamental de que é possível
deduzir o sistema do nosso conhecimento acerca do Universo a partir de
certas ideias e princípios evidentes e primitivos.

b) A influência do modelo matemático manifesta-se, além disso, em


duas convicções fundamentais do racionalismo, às quais aludimos também
anteriormente:

1. A convicção de que o domínio da razão, do pensamento, é


necessário: os três ângulos de um triângulo valem necessariamente dois
rectos e tal propriedade deduz-se necessariamente da natureza do triângulo.
O raciocínio matemático desenvolve-se como uma cadeia, onde tudo é
como tem de ser e não pode ser de outro modo.
Alargando-se esta necessidade desde as matemáticas ao âmbito de toda a
realidade, torna-se difícil manter as ideias de liberdade e de contingência.
(Um acto livre é precisamente aquele que não é necessário, que é assim mas
poderia ser de outra maneira; do mesmo modo, contingente é o não
necessário, o que é mas poderia não ser). Vimos como Leibniz pretende
criar no seu sistema um vazio para a liberdade e a contingência,
distinguindo entre verdades de razão (necessárias) e verdades de facto
(contingentes); mas vimos também como esta distinção é difícil – senão
impossível – de manter dentro de um sistema racionalista. Espinosa foi
mais radical e coerente e negou abertamente que alguma coisa seja livre,
contingente: segundo Espinosa tudo o que acontece, acontece
necessariamente.

2. A convicção de que o domínio do pensamento corresponde


exactamente ao âmbito da realidade. Espinosa dizia que «a ordem e
conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas». Como
vimos, a definição racionalista de substância baseia-se nesta convicção: o
que pode conceber-se por si mesmo, sem necessidade de recorrer à ideia de
outra coisa, o que existe por si mesmo e independentemente de tal coisa.
São consequência desta convicção e da consequente definição da substância
o «ocasionalismo» de Malebranche, a «harmonia pré-estabelecida» de
Leibniz e o «panteísmo» de Espinosa.

c) Esta última convicção de que a realidade corresponde ao pensamento


conduz logicamente a um notável desprezo da experiência: não será
necessário recorrer a ela visto que o pensamento por si mesmo é capaz de
descobrir a estrutura da realidade.

Semelhante menosprezo da experiência revela-se na tese típica do


racionalismo, segundo a qual o pensamento possui ideias e princípios
inatos, não extraídos da experiência, a partir dos quais pode construir-se o
edifício do nosso conhecimento. Revela-se igualmente na utilização que
todos os filósofos racionalistas fazem do argumento ontológico para
demonstrar a existência de Deus.
d) Existe, finalmente, uma última característica comum a todos os
filósofos racionalistas: o seu recurso a Deus para garantir a
correspondência entre a ordem do pensamento e a ordem da realidade.
A garantia desta correspondência é o Deus perfeito e veraz que não pode
enganar-nos; em Leibniz, o Deus que «harmoniza» o Universo de forma tal
que a correspondência não falhe («harmonia pré-estabelecida»); em
Espinosa, finalmente, Deus é também a garantia última da correspondência
entre o pensamento e o mundo corpóreo, pois Deus é a única substância, e o
pensamento e a extensão não são mais do que dois atributos seus.
5. RAZÃO E LIBERDADE

5.1. Raízes antropológicas do racionalismo

Nas páginas anteriores insistimos preferencialmente nos aspectos


relativos à teoria do conhecimento racionalista: inatismo das ideias, ideal de
um sistema dedutivo cujo protótipo é o saber matemático, concepção da
realidade como uma ordem racional, etc. Trata-se sem dúvida de aspectos
essenciais e significativos do racionalismo. No entanto, é importante
assinalar que a motivação última da filosofia não reside tanto no seu
interesse pelo conhecimento científico-teórico da realidade, mas numa
profunda preocupação pelo homem, pela orientação da conduta humana,
de modo a possibilitar uma vida plenamente racional. Esta profunda
preocupação pela conduta humana aparece explicitamente afirmada em
Descartes na primeira parte do Discurso do Método, ao expor a trajectória
da sua própria actividade filosófica: «Sentia continuamente um desejo
imperioso de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, com o fim de
ver claro em minhas acções e caminhar com segurança nesta vida». O
objectivo último que Descartes persegue através da filosofia é, pois, a
solução de um problema antropológico: fundar na razão o uso da liberdade,
a fim de que o uso racional desta torne possível alcançar a felicidade e a
perfeição humana.
Apesar da aparente frieza do sistema, construído na forma árida de um
sistema geométrico, Espinosa tem também como objectivo último a
obtenção da «felicidade suprema». Não é casual nem arbitrário que a sua
obra fundamental tenha por título Ética (demonstrada à maneira da
geometria). As quatro últimas partes que compõem a obra ocupam-se da
natureza humana, das paixões ou afectos, da liberdade e do entendimento,
ou seja, da determinação do que seja o «bem verdadeiro», a felicidade e a
perfeição humanas; na primeira das cinco partes, a Ética de Espinosa trata
de Deus (da estrutura e ordem da totalidade do real = Deus ou Natureza), o
que prova claramente que o conhecimento da realidade é para Espinosa uma
condição prévia para o conhecimento da natureza humana que nos é
própria.
A motivação profunda do racionalismo é por conseguinte antropológica.
Na exposição que se seguirá, não nos ocuparemos contudo de todos os
aspectos da antropologia de Descartes e Espinosa mas apenas de um tema
relevante da mesma: o tema da liberdade. Ambos os filósofos estudam a
liberdade numa dupla relação:

1. Relação da liberdade com o corpo, quer se entenda este como


substância, coisa extensa (Descartes), quer como um modo da extensão
(Espinosa).

2. Relação da liberdade com o entendimento ou razão interpretados,


tanto por Descartes como por Espinosa, dentro de um esquema lógico-
matemático. Trata-se, definitivamente, de saber como é possível a liberdade
e a consecução da felicidade.

5.2. A experiência cartesiana da liberdade

No capítulo segundo (primeira parte), ao ocuparmo-nos da concepção


platónica da alma, assinalámos as dificuldades com que Platão se debate no
momento de explicar as relações existentes entre a parte racional da alma e
as partes inferiores da mesma. Dizíamos então que esta mesma dificuldade
apareceria posteriormente entre outros filósofos modernos e
contemporâneos. Com efeito, Descartes separa a alma do corpo de uma
maneira ainda mais radical do que o platonismo o fizera, considerando-
os substâncias autónomas e auto-suficientes. Agudiza-se desta forma o
problema da relação, qualificada por Descartes como «combate», entre as
partes inferior e superior da alma, entre os apetites naturais ou paixões, de
um lado, e a razão e a vontade, do outro. Qual é a origem das paixões, como
afectam a parte superior da alma e qual é o comportamento desta a respeito
daquelas?

5.2.1. As paixões

Por paixões entende Descartes as percepções ou sentimentos que há em


nós e que afectam a alma sem terem origem nela. A sua origem encontra-se
nas forças que actuam no corpo, forças que Descartes denomina «espíritos
vitais». As paixões são portanto:

1. involuntárias: a sua aparição escapa ao controlo e ao domínio da alma


racional, pois não se originam nela; 2. imediatas; 3. nem sempre racionais,
isto é, nem sempre concordes com a razão; daí que possam significar uma
certa servidão para a alma: «as paixões agitam diversamente a vontade, e
assim tornam a alma escrava e infeliz».

Neste ponto Descartes toca um tema tipicamente estóico: o tema do auto


domínio, do autocontrolo. A atitude de Descartes perante as paixões não é
absolutamente negativa, aliás. Não se põe a questão de ter de afastá-las ou
erradicá-las por princípio, pelo simples facto da sua existência. O que é
preciso enfrentar não são as paixões enquanto tais, mas a força cega com
que procuram arrastar a vontade de um modo imediato, sem dar lugar a uma
reflexão razoável.
A tarefa da alma relativamente às paixões consiste, pois, em submetê-las
e ordená-las em conformidade com o ditame da razão. E a razão,
efectivamente, que descobre e mostra o bem que, como tal, pode ser
querido pela vontade. A razão subministra não só o critério adequado a
respeito das paixões, mas também a força necessária para se lhes opor. As
armas de que a parte superior da alma se serve, escreve Descartes, são
«juízos firmes e determinados referidos ao conhecimento do bem e do mal,
segundo os quais decidiu conduzir as acções da sua vida».

5.2.2. O eu como pensamento e liberdade

Com o termo «eu» exprime Descartes a natureza mais íntima e própria


do homem. Do eu possuímos um conhecimento directo, intuitivo, claro e
distinto, que se manifesta no «eu penso». O eu como substância pensante
(res cogitans) é centro e sujeito de actividades anímicas que, em última
análise, se reduzem a duas faculdades, o entendimento e a vontade;
«Todos os modos do pensamento que experimentamos em nós, podem em
geral reduzir-se a dois: um é a percepção ou operação do entendimento; o
outro, a volição ou operação da vontade. Com efeito, o sentir, imaginar e
entender puro não são mais do que diversos modos do perceber, assim
como desejar, rejeitar, afirmar, negar, duvidar são distintos modos de
querer.» (Princípios da Filosofia, 1, 32.)

O USO DA RAZÃO E A FELICIDADE


Na verdade, podemos ser felizes sem esperar nada, desde que
observemos três coisas relacionadas com as três regras da moral que eu
abordei em O Discurso do Método.
A primeira é que devemos fazer o melhor uso possível do espírito de
modo a sabermos como agir em todas as circunstâncias da vida.
A segunda consiste em possuirmos uma vontade firme e constante
para executarmos tudo o que a razão nos aconselha, de modo a não
sermos desviados pelas paixões e pelos apetites; creio que a virtude
consiste nesta força de vontade (...).
A terceira é que, regendo-nos assim o mais possível pela razão,
devemos ter consciência de que todos os bens que não possuímos estão
absolutamente fora do nosso alcance; e deste modo acostumar-nos-emos
a não os desejar. Com efeito, é o desejo, o desgosto e o arrependimento
que nos impedem de ser felizes: mas se seguirmos sempre o que a razão
nos dita, não haverá motivos para arrependimentos; e mesmo que os
acontecimentos venham posteriormente demonstrar que nos enganámos,
a culpa não foi nossa.
Descartes, «Carta a Elisabeth», de 4 Agosto 1645, in Correspondência.

PROPOSIÇÃO XXXVI
O amor intelectual da alma a Deus é o mesmo amor com que Deus se
ama a si mesmo, não com Deus infinito mas na medida em que pode ser
explicado através da essência da alma humana considerada na perspectiva
da eternidade, ou seja, o amor intelectual da alma a Deus é uma parte do
amor infinito com que Deus se ama a si mesmo.
Corolário: Daqui resulta que Deus ama os homens na medida em que
se ama a si mesmo e, por conseguinte, são uma e a mesma coisa o amor
de Deus aos homens e o amor intelectual da alma a Deus.
Escólio: Em virtude disto, compreende-se claramente em que é que
consiste a nossa salvação ou felicidade, ou seja, a nossa liberdade; a
saber: num amor constante e eterno a Deus, isto é, no amor de Deus aos
homens.
Este amor ou felicidade é chamado «glória» nos livros sagrados, e não
sem motivo, pois este amor, por se referir a Deus ou à alma, pode ser
chamado mais correctamente «felicidade da alma», o que na realidade
não se distingue da glória.
Espinosa, Ética.

A vontade caracteriza-se por ser livre. A liberdade ocupa um lugar


central na filosofia de Descartes:
a) A existência da liberdade está fora de dúvida: diz Descartes que é
«tão evidente que há-de considerar-se uma das noções primeiras e
maximamente comuns que há inatas em nós» (ibid. I, 39);
b) a liberdade é a perfeição fundamental do homem ( ibid. I, 37);
c) o exercício da liberdade constitui um elemento essencial do projecto
de Descartes: a liberdade permite-nos ser donos, tanto da natureza (o
objecto último do conhecimento para Descartes, como para Bacon, é o
domínio da natureza), como das nossas próprias acções. (Entre as
acções significativas que tornam a liberdade possível, figura a dúvida, a
decisão de duvidar que é o ponto de partida de toda a filosofia de
Descartes, como vimos.)

Em que consiste exactamente a liberdade, o seu exercício? Na opinião


de Descartes, a liberdade não consiste na mera indiferença perante as
possíveis alternativas que se oferecem à nossa escolha: a pura indiferença
entre os termos opostos não significa perfeição da vontade, mas imperfeição
e ignorância do conhecimento. A liberdade também não consiste na
absoluta possibilidade de negar tudo, dizer arbitrariamente não a tudo. A
liberdade consiste em escolher o que é proposto pelo entendimento
como bom e verdadeiro.
A liberdade não é pois a indiferença ou a arbitrariedade, mas a
submissão positiva da vontade ao entendimento, que descobre a ordem do
real, procedendo de um modo dedutivo-matemático.

5.3. Espinosa: liberdade e razão

5.3.1. A libertação das paixões

Para Descartes, a felicidade anda unida à liberdade e esta, por sua vez,
ao domínio sobre as paixões. «As paixões» – escreve Descartes – «agitam
diversamente a vontade, e assim tornam a alma escrava e infeliz». A falta
de liberdade, a submissão à força cega das paixões, torna o homem infeliz e
desgraçado.
Também Espinosa põe o problema da liberdade em relação com a
libertação das paixões, fazendo da liberdade um ingrediente fundamental da
felicidade. A consecução desta é a aspiração última da filosofia de
Espinosa: a nossa salvação identifica-se com a nova liberdade e esta com a
felicidade (Ética V, 36).
Para Espinosa a essência da alma consiste no conhecimento e, por isso, a
libertação das paixões ocorre quando a alma possui o conhecimento das
coisas. Suponhamos que alguém se encontra dominado pelo ódio a outra
pessoa: o seu ódio cessará logo que compreenda que a conduta reprovável
da pessoa odiada, bem como de tudo quanto acontece no Universo, está
determinada necessariamente, que não é livre (no sentido habitual deste
termo), e logo que compreenda que tanto o odiado como aquele que odeia
são modos, realizações particulares da substância única e que, portanto,
possuem uma natureza comum e um bem comum. Nesse momento, o ódio
cederá lugar ao amor. «Um afecto que é uma paixão» – afirma Espinosa –
«deixa de ser paixão quando formamos uma ideia clara e distinta dele»
(Ética V, prop. 3). As paixões, os afectos negativos, são ideias obscuras e
confusas; os afectos positivos são ideias claras e distintas.

5.3.2. Liberdade e felicidade

A salvação, a libertação do homem realiza-se, portanto, através de um


processo de conhecimento e de compreensão da realidade. Mas em que
consiste a liberdade, segundo Espinosa?
A liberdade não pode consistir, obviamente, na ausência de
determinação do sujeito, na possibilidade de fazer isto ou aquilo. Neste
sentido, não existe liberdade, pois tudo quanto existe e acontece existe e
acontece necessariamente. É este, como vimos, o preço que o racionalismo
absoluto tem de pagar, a concepção da ordem da realidade como uma
ordem geométrica em que tudo se segue necessariamente de suas causas,
como uma consequência se segue das premissas. Segundo Espinosa a
liberdade não consiste na possibilidade – absurda – de romper a ordem
natural, mas no seu conhecimento cada vez mais profundo e amplo, e na sua
aceitação racional.
Ao conhecer a ordem do real, conhecemos Deus, já que toda a ordem do
real mais não é do que Deus ou a natureza. Este conhecimento proporciona-
nos o sumo prazer ou satisfação intelectuais. Este prazer ou deleite,
acompanhado da ideia de que Deus é a causa universal, constitui o amor
intelectual de Deus (Ética V, prop. 32, corolário). Não se trata,
evidentemente, do amor a um Deus pessoal, como o amor de que se fala na
religião cristã. Em Espinosa Deus não é um ser pessoal e distinto do mundo
e do homem.
Visto que Deus se identifica com a totalidade do real, e portanto com o
homem (enquanto modo finito em que se realiza a sua essência), o amor
com que Deus se ama a si mesmo, o amor com que Deus ama os homens e
o amor com que estes amam a Deus, são uma só e a mesma coisa.

Entre a filosofia de Espinosa e o pensamento dos estóicos existem muitos


pontos de coincidência fáceis de descobrir. Merecem destaque: a
afirmação de um determinismo total; a exigência de aceitação deste
determinismo, interpretado como destino pelos estóicos e como ordem
racional geométrica por Espinosa; a necessidade de libertar-se das
paixões que perturbam a alma; o intelectualismo, finalmente, que procura
em ambos os casos a libertação através do conhecimento (ideal do sábio
no estoicismo e redução da liberdade à razão na filosofia de Espinosa).
10. O EMPIRISMO

INTRODUÇÃO

No capítulo anterior ocupámo-nos da primeira grande corrente da Idade


Moderna, o racionalismo. O empirismo, do qual vamos ocupar-nos neste
capítulo, constitui o segundo grande movimento da filosofia moderna.
Empirista é, em geral, toda a filosofia segundo a qual a origem e valor
dos nossos conhecimentos depende da experiência. Entendido desta forma
geral, o empirismo é uma constante na história do pensamento: existiu antes
da modernidade e vê-lo-emos surgir mais de uma vez na época
contemporânea.
Mas este capítulo não se refere ao empirismo em geral nem às diferentes
correntes empiristas que aparecem ao longo da história, mas ao empirismo
moderno (século XVIII), também chamado por vezes «empirismo inglês».
(Note-se que todos os autores de que nos ocupamos neste capítulo são
britânicos, enquanto todos os autores racionalistas estudados no capítulo
anterior são europeus do continente). O empirismo inglês ou moderno
caracteriza-se por constituir uma resposta histórica ao racionalismo do
século XVII. O primeiro filósofo empirista nesta corrente é Locke e a linha
por ele inaugurada continua e radicaliza-se sucessivamente em Berkeley e
Hume.
Deverá ainda entender-se a que, além disso, os filósofos empiristas,
particularmente Locke e Hume, participam plenamente das ideias do
Iluminismo. Alguns aspectos do pensamento destes dois autores serão
tratados, portanto, no capítulo seguinte, dedicado ao Iluminismo.
Organizamos este capítulo em duas partes:
1. O empirismo e os limites do conhecimento.
2. Moral e política.
1. O EMPIRISMO E OS LIMITES DO
CONHECIMENTO

1.1. Locke

1.1.1. Negação das ideias inatas

No capítulo anterior apontámos que a tese fundamental do racionalismo


é a afirmação de que o entendimento possui certas ideias e princípios inatos.
Segundo o racionalismo, seria possível deduzir todo o edifício dos nossos
conhecimentos fundamentais acerca da realidade a partir dessas ideias e
princípios que o entendimento encontra em si mesmo, sem necessidade de
recorrer à experiência.
A doutrina empirista, de que nos ocuparemos agora, surge como teoria
oposta ao racionalismo quanto à origem do conhecimento. Segundo o
empirismo, não existem ideias nem princípios inatos no entendimento.
Anteriormente à experiência, o nosso entendimento é como uma página
em branco em que nada está escrito. Podemos, pois, definir o empirismo
como a teoria que nega a existência de conhecimentos inatos e, por
conseguinte, todo o nosso conhecimento procede da experiência.
Locke dedicou o livro primeiro da sua obra ( Ensaio acerca do
Entendimento Humano) à demonstração de que não existem ideias nem
princípios inatos. Se existissem, argumenta Locke, todos os homens os
possuiriam desde o primeiro momento da sua existência. Ora, não é isso o
que se passa. Não há, pois, ideias inatas.
1.1.2. A génese das ideias

O entendimento não tem princípios inatos: todas as nossas ideias provêm


da experiência. Desta tese geral deduzem-se duas importantes afirmações
de Locke:

a) em primeiro lugar, que o problema fundamental a tratar é o da génese


de nossas ideias, isto é, como se originam a partir da experiência, já que
todas as nossas ideias – até as mais complexas e abstractas – procedem
dela;
b) em segundo lugar, que o nosso conhecimento é limitado, não pode ir
além da experiência. E esta limitação é dupla: quanto à sua extensão (o
entendimento não pode ir além do que a nossa experiência permite
conhecer) e quanto à sua certeza (só podemos ter certeza acerca daquilo
que cai dentro dos limites da experiência).

É evidente que destes dois aspectos do conhecimento – a sua génese e os


seus limites – o fundamental, no entender de Locke, é o primeiro: como já
indicámos, é a experiência que impõe os limites ao nosso conhecimento,
precisamente porque todo o nosso conhecimento provém da experiência.
Daí que Locke dedique uma atenção muito especial ao estudo da génese das
nossas ideias.
Mas como abordar esta questão? Como estudar o modo como os nossos
conhecimentos se originam a partir da experiência?
Aparentemente, existe apenas um caminho: tomar as nossas ideias mais
complexas e decompô-las até encontrar as ideias simples de que procedem,
tomar as nossas ideias mais simples e estudar como se combinam e
associam para formar ideias mais complexas. Trata-se pois de estudar os
mecanismos psicológicos de associação e de combinação de ideias. Como
pode avaliar-se já pela forma como põe o problema, e como ficará patente
ao estudar as suas doutrinas, a análise empreendida pelo empirismo é uma
análise de tipo psicológico.
Este modo de apresentar o problema do conhecimento costuma chamar-
se psicologismo. O psicologismo pode definir-se como a doutrina segundo
a qual o valor dos conhecimentos depende da sua origem e génese, estudada
do ponto de vista dos processos psíquicos da mente humana.

1.1.3. A noção de ideia

Para Locke, a questão fundamental é pois a que diz respeito à génese das
nossas ideias. Antes de penetrarmos neste problema, temos de esclarecer o
que Locke entende por «ideia».

John Locke
Nasceu em Bristol em 1632, no mesmo ano que Espinosa. Nascido no seio de uma família de
tendências liberais, Locke foi um fervoroso defensor do liberalismo e, em geral, dos ideais
ilustrados de racionalidade, tolerância, filantropia e liberdade religiosa. Estudou química e
medicina, após ter abandonado os estudos de teologia. Desterrado primeiro (circunstância que
aproveitou para viajar pela Holanda, França e Alemanha), regressou a Inglaterra após a
Revolução de 1688. Morreu em 1704.
Entre as suas obras destacam-se: o Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690), os Dois
Tratados sobre o Governo Civil (1690) e A Racionabilidade do Cristianismo (1695).

A noção de ideia em Locke é fundamentalmente a mesma que Descartes


introduziu. No capítulo anterior expusemos que segundo Descartes o
conhecimento é sempre conhecimento de ideias: não conhecemos
directamente a realidade, mas as nossas ideias acerca da realidade. Foi
precisamente por isso que a Descartes se pôs o problema da existência de
uma realidade distinta das ideias e exterior às mesmas.
Também para Locke o nosso conhecimento (Locke chama
frequentemente «percepção» ao conhecimento) é conhecimento de ideias. A
sua noção de ideia, tomada de Descartes, pode exprimir-se nas seguintes
afirmações:
a) as ideias são o objecto imediato do nosso conhecimento ou
percepção. Ideias são, pois, aquilo que conhecemos, quer se trate de uma
cor, uma dor, uma recordação ou uma noção abstracta (costumamos utilizar
o termo «ideia» mais restritamente, reservando-o para as noções abstractas;
nenhum de nós certamente chamaria ideia a uma cor que vemos ou a uma
dor de que padecemos. Locke amplia o significado do termo a tudo o que
conhecemos ou percebemos, e daí que uma cor ou uma dor sejam também
ideias no sentido lockeano).

b) as ideias são imagens ou representações da realidade exterior.

1.1.4. Classes de ideias

O estudo psicológico da génese das ideias leva Locke a distinguir entre


ideias simples e ideias complexas. Estas últimas provêm sempre da
combinação de ideias simples.

a) Ideias simples
Dentro das ideias simples – que não são já combinações de outras ideias,
mas como que átomos do conhecimento – Locke distingue ainda duas
classes: as que provêm da sensação (da experiência externa) e aqueles que
provêm da reflexão (Locke entende por «reflexão» a experiência interna, o
conhecimento que a mente tem dos seus próprios actos e operações). Uma
ideia que obtemos por reflexão é, por exemplo, a ideia de pensamento já
que, por experiência interna, percebemos que pensamos e em que consiste
pensar.
Dentro das ideias de sensação (experiência externa), Locke distingue,
por último, as ideias das qualidades primárias (figura, tamanho, etc.) e as
ideias das qualidades secundárias (cores, odores, etc.). Esta distinção é já
nossa conhecida, pois aparecia também em Galileu e Descartes; e como
eles, Locke afirma que só as qualidades primárias existem realmente nos
corpos.

b) Ideias complexas. A ideia de substância


As ideias complexas provêm da combinação de ideias simples. No
conhecimento das ideias, o entendimento humano é passivo, limita-se a
recebê-las; mas na elaboração das ideias complexas, o entendimento é
activo, actua combinando e relacionando ideias simples. Locke distingue
três classes de ideias complexas: ideias de substâncias, de modos e de
relações.
Talvez não valha a pena embrenhar-nos na minuciosa exposição que
Locke leva a cabo acerca de cada uma destas três classes de ideias
complexas. Mas vale a pena, porém, que nos detenhamos um pouco na
primeira dessas classes, as ideias das substâncias. As ideias das substâncias
(como, por exemplo, a ideia de homem, de árvore, de pedra, etc.; em geral,
todas as ideias de coisas ou objectos) são complexas, compostas de uma
série de qualidades ou ideias simples.
Considere-se o caso de um objecto qualquer, uma rosa, por exemplo. O
que é que apercebemos? Apercebemos uma certa cor, um volume, uma
figura, um tamanho, um odor agradável, uma sensação suave ao tacto, etc.;
numa palavra, um conjunto de sensações simples. Mas a rosa é realmente
isso? Todos nós, pensa Locke, nos sentiremos inclinados a responder que
não. A cor, o odor, a figura não são a rosa: são a cor da rosa, o odor da rosa,
etc. O que é então a rosa, para além destas qualidades sensíveis? Visto que
o que percebemos é a cor, o odor, etc., é forçoso confessar que não sabemos
o que é a rosa, que supomos que, por debaixo destas qualidades, há algo de
misterioso que lhe serve de suporte. Segundo Locke, a substância, o suporte
das qualidades é incognoscível, um «não sei quê» para usar uma expressão
sua.

DA REFERÊNCIA DAS PALAVRAS


§ 4. Primeiro, as palavras referem-se frequentemente em segredo às
ideias que estão na mente de outros homens. Segundo o uso que os
homens lhes dão, as palavras podem apenas significar própria e
imediatamente as ideias que estão na mente de quem fala, embora no seu
pensamento se refiram secretamente a outras coisas.
Primeiro, supõem que as palavras são também sinais das ideias dos
outros homens com quem comunicam, porque, se assim não fosse,
estariam a falar em vão e não poderiam fazer-se compreender se os sons
que aplicam a uma ideia não fossem os mesmos que quem os escuta
aplicaria a outra ideia, pois isso seria falar duas linguagens diferentes. No
entanto, tal suposição não implica que os homens se dêem normalmente
ao trabalho de verificar se a ideia que têm em mente é a mesma daqueles
com quem conversam, contentando-se com pensar que usam a palavra,
segundo imaginam, na acepção comum de linguagem, e desse modo
supondo que a ideia tornada signo nessa palavra é precisamente a mesma
à qual os homens desse país aplicam esse nome.
§ 5. Segundo, referem-se à realidade das coisas. Em segundo lugar,
como os homens não querem que se pense que falam apenas das suas
imaginações mas sim das coisas como elas são realmente, por isso
supõem que com frequência as suas palavras também significam a
realidade das coisas. Mas como isto se refere mais particularmente às
substâncias e aos seus nomes, tal como o anterior talvez se refira às ideias
simples e aos modos, falaremos mais demoradamente acerca destas duas
diferentes maneiras de aplicar as palavras quando abordarmos em
particular os homens, os modos mistos e as substâncias. Com efeito, seja-
me permitido dizer que é perverter o uso das palavras e ocasionar
inevitavelmente obscuridade e confusão no seu significado sempre que as
façamos significar qualquer outra coisa que não sejam as ideias que
temos na nossa mente.
§ 6. Como se criam as palavras gerais. Em seguida devemos
considerar como se criam as palavras gerais. Dado que todas as coisas
que existem só são particulares, como é que cunhamos palavras gerais?
Onde encontramos nós as naturezas gerais que supomos dignificar por
esses termos? As palavras tornam-se gerais quando as convertemos em
signos de ideias gerais, e as ideias tornam-se gerais quando lhes
suprimimos as circunstâncias de tempo e de lugar e quaisquer outras
ideias que possam determinar-lhes esta ou aquela existência particular.
Através desta abstracção habilitamos as ideias a representar mais do que
um indivíduo; como cada indivíduo está em conformidade com a ideia
abstracta, então cada um é dessa classe, segundo se diz.
J. Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano. Livro III, cap. II, § 4 e 5; cap. III, § 6.

Berkeley
Irlandês, nasceu em 1685. Estudou na Universidade de Dublin, onde teve ocasião de
conhecer as principais correntes filosóficas e científicas da época. Foi um homem
profundamente religioso que pôs a filosofia ao serviço da fé e combateu os livre-pensadores. Em
1734 foi nomeado bispo anglicano no sul da Irlanda. Morreu no ano de 1753. A sua obra
fundamental é o Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano, escrito quando tinha
vinte e cinco anos (1710). Posteriormente escreveu uma obra de divulgação sob o título Três
Diálogos entre Hilas e Filonus.

Não conhecemos, portanto, a substância. Não sabemos o que é a rosa.


Está fora de dúvida que esse pedaço de matéria terá uma determinada
estrutura em virtude da qual possui sempre essas qualidades e propriedades
e não outras. Mas esta estrutura é-nos igualmente desconhecida. A
consequência do empirismo de Locke é que não conhecemos o ser das
coisas, conhecemos apenas aquilo que a experiência nos mostra, e a
experiência só nos mostra um conjunto de qualidades sensíveis. A
experiência é, pois, a origem e também o limite do nosso conhecimento.

1.1.5. A existência de uma realidade distinta

Pela mesmo razão que a Descartes, isto é, por considerar que o objecto
do conhecimento são as ideias, também a Locke se colocou o problema da
existência da realidade.
Locke nunca duvidou de que existisse uma realidade distinta das nossas
ideias. A sua noção de ideia como representação ou imagem da realidade
implica que existe uma realidade da qual a ideia é imagem. Ao tratar da
existência real, Locke distingue – seguindo Descartes – três grandes
âmbitos ou zonas: o eu, Deus, e os corpos. Da existência do eu temos
certeza intuitiva (neste ponto segue Descartes e o seu célebre «penso, logo
existo»); da existência de Deus temos certeza demonstrativa (a existência
de Deus pode ser demonstrada utilizando o princípio de causalidade: Deus é
a causa última da nossa existência); da existência dos corpos temos certeza
sensitiva (a existência dos corpos está razoavelmente comprovada, pois as
nossas sensações são produzidas em nós por eles. Repare-se – e mais
adiante voltaremos ao assunto – que tanto a existência de Deus como a
existência do mundo exterior, dos corpos, são afirmadas em virtude de um
raciocínio causal: Deus é a causa última da nossa existência, os corpos são
a causa das nossas sensações.

1.2. Berkeley

Berkeley – metade místico, metade empirista – observou que existiam


certas incoerências na doutrina de Locke, corrigiu-as e o resultado de tudo
isso foi uma estranha teoria segundo a qual «o ser das coisas consiste em
serem percebidas». O raciocínio de Berkeley é o seguinte:

a) As ideias não são representações de uma realidade exterior e


distinta delas mesmas.
Tomemos um quadro qualquer, desses que cobrem as paredes dos
museus, o São Pedro de El Greco, por exemplo. Temos algum processo de
saber se a figura humana ali desenhada é realmente uma representação ou
imagem do São Pedro histórico? Evidentemente que não. Para saber isso,
precisaríamos de conhecer não só o retrato mas também o original para os
podermos comparar. Este facto simples mostra-nos a incoerência
fundamental que, no entender de Berkeley, Locke cometeu: por um lado,
afirma que só conhecemos ideias, que não conhecemos nenhuma realidade
exterior e distinta delas; por outro, afirma que as nossas ideias são
representações dessa realidade exterior e distinta da qual não temos
conhecimento algum.
De acordo com este raciocínio, Berkeley estabelece que a afirmação
lockeana de que as nossas ideias representam algo diferente delas próprias é
incoerente e gratuita. Se conhecemos apenas ideias (e Berkeley é fiel a este
princípio), não tem qualquer sentido dizer que são representações.

b) As coisas são, na realidade, ideias e o seu ser consiste portanto em


serem percebidas.
Por conseguinte, conhecemos apenas ideias (no sentido amplo de Locke,
que inclui sensações, etc). Uma vez isto assente, Berkeley dirige-nos a
seguinte pergunta: Conhecemos as coisas? Conhece o leitor a cadeira em
que está sentado, a mesa em que apoia firmemente os braços, a
esferográfica que aperta entre os dedos? A maioria das pessoas responderia
que sim e Berkeley é uma dessas pessoas. Façamos então um silogismo
tomando estas duas afirmações como premissas e preparemo-nos para
aceitar a conclusão: só conhecemos ideias, conhecemos as coisas, logo, as
coisas são ideias.
É inútil procurar qualquer falha lógica no raciocínio, porque não a tem.
A mesa, a esferográfica, a cadeira mais não são do que o conjunto das
sensações (as ideias, no sentido de Locke e Berkeley) que delas possuímos.
Não há duas realidades – coisas e ideias – como pretendia Locke, mas uma
só, as ideias ou percepções: o ser das coisas é, portanto, o facto de serem
percebidas.

c) A mente humana e Deus


As ideias pertencem sempre à mente que as percebe. Se o ser das coisas
consiste em serem percebidas, o ser da mente consiste em perceber. As
únicas substâncias são as mentes ou espíritos que percebem. Locke
sublinhara – e com razão, pensa Berkeley – que o entendimento é passivo
relativamente às ideias simples, que não as produz nem as cria, mas recebe-
as. Pois bem, de onde recebe o nosso espírito as ideias? E não se pode
responder como Locke que provêm de uma realidade exterior, distinta das
ideias. Esta realidade não existe, como vimos. A conclusão de Berkeley é
que a nossa mente as recebe de Deus. Note-se também que Berkeley chega
à afirmação da existência de Deus através da ideia de causa: Deus é a causa
das nossas ideias.

1.3. Hume

1.3.1. Elementos do conhecimento

Hume não estava completamente satisfeito com a maneira como Locke


utilizava o termo «ideia» para se referir a tudo aquilo que conhecemos. (A
cor que vemos, a dor que sentimos, eram denominadas ideias por Locke,
como já dissemos). Consequentemente, reservou a palavra ‘ideia’ para
designar apenas certos conteúdos do conhecimento. Veja o leitor esta
página e feche em seguida os olhos, tentando imaginá-la. Em ambos os
casos estará percebendo (ou conhecendo) esta página, embora entre os dois
casos exista uma considerável diferença: a percepção desta página é mais
viva quando a vemos do que quando a imaginamos. Ao primeiro tipo de
percepção chama Hume impressões (conhecimento por meio dos sentidos);
ao segundo tipo chama ideias (representações ou cópias das impressões no
pensamento). As ideias são mais débeis e menos vivas do que as
impressões.
O exemplo que utilizámos põe, aliás, a claro que as ideias procedem
das impressões, são imagens ou representações destas.

1.3.2. Tipos de conhecimento

Além da distinção entre impressões e ideias – distinção relativa aos


elementos do conhecimento –, Hume introduz uma importante distinção
relativa aos modos de conhecimento. De acordo com esta distinção, o nosso
conhecimento é de dois tipos: conhecimento de relações existentes entre
as ideias e conhecimento factual, de factos. Esta distinção tem um certo
paralelismo com a classificação leibniziana das verdades em «verdades de
razão» e «verdades de facto».

David Hume
Filho de proprietário rural escocês, nasceu em Edimburgo em 1711. A sua afeição às letras e
à filosofia levou-o a abandonar a profissão de comerciante a que se dedicara a princípio.
Transferiu-se para França onde, retirado no campo, compôs a sua obra mais importante, o
Tratado acerca da Natureza Humana. Esta obra não obteve o êxito e reconhecimento que
esperava. Escreveu outras obras, entre as quais merecem destacar-se a sua Investigação Sobre o
Entendimento Humano e a sua Investigação sobre os Princípios da Moral. Morreu em 1776.
A influência de Hume na filosofia foi enorme. Foi a leitura de Hume que despertou Kant, no
dizer deste, do seu «sono dogmático». O empirismo contemporâneo reconhece nele a sua fonte e
precursor mais qualificado.

Tomemos a seguinte proposição, já utilizada no capítulo anterior ao


expormos a teoria de Leibniz: «o todo é maior do que as suas partes». Este
conhecimento nada tem a ver com os factos, com o que se passa ou
acontece no mundo, é independente de que haja todos e de que haja partes:
quer existam, quer não, sejam quais forem os factos, esta proposição é
verdadeira. Este conhecimento não se refere pois a factos, mas à relação
existente entre as ideias de todo e de parte. Mesmo que em última análise
estas ideias procedam (como todas) da experiência, a relação entre as
mesmas é, enquanto tal, independente dos factos. A este tipo de
conhecimento pertencem a lógica e as matemáticas. As relações entre ideias
formulam-se em proposições analíticas e necessárias.
Para além das relações entre ideias, o nosso conhecimento pode referir-
se a factos: o conhecimento que tenho de que agora estou a escrever, de que
há pouco escutava música, de que dentro de alguns instantes ferverá a água
que pus ao lume, é um conhecimento factual, de factos. O conhecimento de
factos não pode ter, em última análise, outra justificação diferente da
experiência, das impressões. Nas explicações que apresentamos de seguida
iremos ocupar-nos deste tipo de conhecimento.
1.3.3. O empirismo e a ideia de causa

Ao classificar os elementos do conhecimento em impressões e ideias,


Hume estava a lançar as bases do empirismo mais radical. As
consequências que derivarão desta forma de encarar o problema serão ainda
mais radicais do que as de Berkeley, e muito mais radicais do que as de
Locke. Com esta formulação, introduz-se com efeito um critério taxativo
para decidir acerca da verdade das nossas ideias. Queremos saber se uma
ideia qualquer é verdadeira? Muito simples: comprovemos se tal ideia
procede de alguma impressão. Se podemos indicar a impressão
correspondente, estaremos perante uma ideia verdadeira; caso contrário,
estaremos ante uma ficção. O limite dos nossos conhecimentos são, pois, as
impressões.

a) A Ideia de causa e o conhecimento de factos


Aplicando este critério em sentido estrito, o nosso conhecimento dos
factos fica limitado às nossas impressões actuais (isto é, ao que agora
vemos, ouvimos, etc.) e às nossas recordações (ideias) actuais de
impressões passadas (ou seja, o que recordamos ter visto, ouvido, etc.), mas
não pode haver conhecimento de factos futuros, pois não possuímos
impressão alguma do que acontecerá no futuro (como poderíamos ter
impressões do que ainda não aconteceu?).
Pois bem, é indiscutível que na nossa vida esperamos que, no futuro, se
produzirão certos factos: vemos cair a chuva através da vidraça e tomamos
precauções, supondo que a chuva molhará tudo quanto encontrar no seu
caminho; colocamos um recipiente de água sobre o fogo, esperando que ela
aqueça. No entanto, só temos a impressão da chuva a cair e a impressão da
água fria sobre a chama. Como podemos estar seguros de que
posteriormente teremos as impressões dos objectos molhados e da água
quente?
NOÇÃO DE CAUSA E EFEITO
É a relação necessária entre causas e efeitos que nos serve de base
para inferirmos de umas e de outros. A base da nossa inferência é a
transição que resulta da união por força do hábito. São, portanto, a mesma
coisa.
A ideia de necessidade nasce de uma impressão. Mas nenhuma
impressão transmitida pelos nossos sentidos pode originar essa ideia.
Logo, deve resultar de alguma impressão interna ou imprecisão de
reflexão. Nenhuma impressão interna se relaciona com o assunto presente
mas apenas essa inclinação, produzida pelo hábito, de passar de um
objecto à ideia do seu acompanhante habitual. É esta a essência da
necessidade. Em suma, a necessidade é algo que existe na mente e não
nos objectos. Aliás, ser-nos-ia impossível fazer a mínima ideia dela se a
considerássemos como qualidade dos corpos. Ou não temos qualquer
ideia de necessidade ou a necessidade não é mais do que uma
determinação do pensamento para passar de causas a efeitos e de efeitos a
causas, de acordo com a experiência da sua união.
Há duas definições para esta relação e sua distinção radica apenas na
apresentação de aspectos diferentes do mesmo objecto, o que nos leva a
considerá-los como relação filosófica ou relação natural: ou seja, como
comparação entre duas ideias ou como a associação entre elas. Podemos
definir CAUSA como «objecto precedente e contíguo a outro, de modo
que todos os objectos semelhantes ao primeiro se situam em relações
parecidas de precedência e contiguidade relativamente aos objectos
semelhantes ao último». Se acharmos esta definição defeituosa, porque se
realiza a partir de objectos que não têm a ver com a causa, podemos
estipular esta outra em vez da anterior: «CAUSA é um objecto precedente
e contíguo a outro e de tal forma unido a ele que a ideia de um determina
na mente a formação da ideia do outro, e a impressão de um determina a
formação de uma ideia mais nítida do outro». Se também se refutar esta
definição pela mesma razão, não conheço outro procedimento a não ser
que a pessoa que mostra tais escrúpulos forneça uma definição mais
exacta, pois, no que me respeita, confesso que sou incapaz. Quando
examino cuidadosamente os objectos correntes denominados causas e
efeitos, basta-me um único exemplo para verificar se um objecto é
precedente e contíguo ao outro; e ao alargar a minha visão para
considerar outros casos, apenas comprovo que objectos similares se
situam constantemente em relações similares de sucessão e contiguidade.
E de novo, quando considero a influência desta conjunção constante,
percebo que uma tal relação nunca poderia ser objecto de razão e que em
nenhum caso poderia operar sobre a mente a não ser por hábito,
determinando a imaginação a transpor a ideia de um objecto para a do seu
acompanhante habitual e a transpor a impressão do hábito para uma ideia
mais nítida do outro. Por mais estranhas que estas afirmações possam
parecer, penso que é inútil perder mais tempo a investigar ou argumentar
sobre o tema; por isso, basear-me-ei nelas como se fossem máximas.
Hume, Tratado da Natureza Humana.

Hume observou que em todos estes casos (isto é, tratando-se de factos),


a nossa certeza acerca do que acontecerá se baseia numa inferência causal:
estamos seguros de que as coisas debaixo da chuva se molharão (em vez de
se tornarem azuis, por exemplo) e de que a água aquecerá (em vez de
arrefecer mais, por exemplo) baseando-nos em que a água e o fogo
produzem esses efeitos. A chuva é causa, o fogo é causa e os seus efeitos
respectivos são o molhar e aquecer tudo o que cai sob a sua acção.

b) Causalidade e «conexão necessária»


A ideia de causa é pois a base de todas as nossas inferências acerca dos
factos de que não temos uma impressão actual. Mas o que entendemos por
causa? Como entendemos a relação causa-efeito quando pensamos que o
fogo é a causa e o calor o efeito? Hume observa que esta relação se concebe
normalmente como uma conexão necessária (isto é, é impossível que não se
dê) entre a causa e o efeito, entre o fogo e o calor: o fogo aquece
necessariamente, e portanto, sempre que ponhamos água ao lume, ela
aquecerá necessariamente. Visto que tal conexão é necessária, podemos
conhecer com certeza que o efeito se produzirá necessariamente.

c) Crítica da ideia de conexão necessária


Não sejamos contudo tão precipitadamente optimistas e apliquemos o
critério acima exposto a esta ideia de causa. Uma ideia verdadeira é,
dizíamos, aquela que corresponde a uma impressão. Ora bem, teremos
alguma impressão que corresponda a esta ideia de conexão necessária entre
dois fenómenos? Não, responde Hume. Temos observado o fogo frequentes
vezes, e temos observado ainda que, em seguida, aumentava a temperatura
dos objectos situados junto dele, mas nunca observámos que entre os dois
factos existe uma conexão necessária. A única coisa que observámos, a
única coisa observável, é que entre os dois factos se deu uma sucessão
constante no passado, que sempre aconteceu o segundo depois do primeiro.
Que além desta sucessão constante exista uma conexão necessária entre os
dois factos é uma suposição incomprovável. E como o nosso conhecimento
acerca dos factos futuros só teria justificação se existisse uma conexão
necessária entre aquilo a que chamamos causa e aquilo a que chamamos
efeito, acontece que, para falar com propriedade, não sabemos que a água
vai aquecer; acreditamos simplesmente que a água aquecerá.
Que o nosso pretenso conhecimento dos factos futuros por inferência
causal não seja em rigor conhecimento, mas suposição e crença
(acreditamos que a água aquecerá), não significa que não estejamos
absolutamente certos acerca dos mesmos: todos temos a certeza de que a
água do nosso exemplo irá aquecer. Segundo Hume, esta certeza provém do
hábito, do costume de ter observado no passado que, sempre que aconteceu
o primeiro, aconteceu também o segundo.

1.3.4. A existência de realidades extramentais


A nossa certeza acerca de factos observados não se apoia pois no
conhecimento destes, mas numa crença. Na prática, pensa Hume, isto não é
realmente grave, pois tal crença e certeza bastam e sobejam para viver. Mas
até onde é possível alargar a certeza baseada na inferência causal?
O mecanismo psicológico a que nos referimos (o hábito, o costume), é a
chave que nos permite responder a esta pergunta. A inferência causal só é
aceitável entre impressões: da impressão actual do fogo podemos inferir a
iminência de uma impressão de calor, porque fogo e calor têm-nos surgido
repetidas vezes unidos na experiência. Podemos passar de uma impressão
a outra, mas não de uma impressão a algo do qual nunca tenhamos tido
experiência.

a) A realidade exterior
Tomemos este critério e comecemos por aplicá-lo ao problema da
existência de uma realidade distinta das nossas impressões e exterior a elas.
Segundo Locke a existência dos corpos como realidade distinta e exterior às
impressões ou sensações justifica-se numa inferência causal: a realidade
extramental é a causa das nossas impressões. Ora, no entender de Hume
esta inferência é inválida, pois não vai de uma impressão para outra, mas
das impressões para uma pretensa realidade que está para além delas e da
qual não temos, por isso, impressão ou experiência alguma. A crença na
existência de uma realidade corpórea distinta das nossas impressões é
portanto injustificável se apelarmos para a ideia de causa.

b) A existência de Deus
Locke e Berkeley tinham utilizado a ideia de causa, o princípio de
causalidade, para fundamentar a afirmação de que Deus existe. No entender
de Hume, esta inferência é também injustificada pela mesma razão, porque
não vai de uma impressão a outra, mas das nossas impressões a Deus, que
não é objecto de impressão alguma.
Pois bem, se nem a existência de um mundo diferente das nossas
impressões nem a existência de Deus são racionalmente justificáveis, donde
vêm as nossas impressões? (Recorde-se que para Locke procedem do
mundo exterior e para Berkeley de Deus). O empirismo de Hume não
permite responder a esta pergunta. Simplesmente, não sabemos, nem
podemos saber: pretender responder a esta pergunta é pretender ir além das
nossas impressões e estas constituem o limite do nosso conhecimento.
Temos impressões, não sabemos de onde procedem, e é tudo.

c) O eu e a identidade pessoal
Das três realidades ou substâncias cartesianas (Deus, mundo, eu) falta
apenas ocuparmo-nos do eu como substância distinta das nossas ideias e
impressões. A existência de um eu, de uma substância cognoscente distinta
dos seus actos, fora considerada indubitável não só por Descartes, mas
também por Locke e Berkeley. E não serve de nada a Hume aplicar agora a
sua crítica da ideia de causa, já que a existência do eu não foi considerada
pelos seus predecessores como resultado de uma inferência causal, mas
como resultado de uma intuição imediata («Penso, logo existo»).
No entanto, a crítica de Hume atinge também a realidade do eu. A
existência do eu como substância, como sujeito permanente dos nossos
actos psíquicos, não pode justificar-se apelando a uma pretensa intuição, já
que só temos intuição das nossas ideias e impressões, e nenhuma impressão
é permanente, mas sucedem-se umas às outras de maneira ininterrupta: «O
eu ou pessoa não é nenhuma impressão, mas aquilo a que supostamente as
nossas ideias e impressões se referem. Se alguma impressão originasse a
ideia do eu, tal impressão deveria permanecer invariável ao longo do curso
de toda a nossa vida, já que se supõe que o eu existe deste modo. No
entanto, não há impressões constantes e invariáveis. Dor e prazer, tristeza e
alegria, paixões e sensações sucedem-se umas às outras e nunca existem
todas ao mesmo tempo (Tratado acerca da Natureza Humana», 1, 4, 6)
Não existe, pois, o eu como substância das impressões e ideias, como
sujeito da série dos actos psíquicos. E esta afirmação taxativa de Hume não
permite explicar facilmente a consciência que todos possuímos da nossa
própria identidade pessoal: efectivamente, cada sujeito humano reconhece-
se a si próprio através das suas diferentes e sucessivas ideias e impressões.
(O leitor que está a ler esta página tem consciência de ser o mesmo que
antes contemplava a paisagem ou escutava música com prazer; se existe
apenas conhecimento das impressões e ideias, e estas – a página, a
paisagem, a melodia – são tão distintas entre si, como é que o sujeito tem
consciência de ser o mesmo?). Para explicar a consciência da própria
identidade, Hume recorre à memória: graças à memória, reconhecemos a
conexão existente entre as diferentes impressões que se sucedem: o erro
consiste em confundirmos sucessão com identidade. Apesar de os
princípios de que partia o obrigarem a chegar a esta conclusão, Hume notou
que a sua explicação não é plenamente satisfatória, o que o levou a uma
atitude resignadamente céptica.

1.3.5. Fenomenismo e cepticismo

Os princípios empiristas da filosofia de Hume levam-no, em última


análise, ao fenomenismo e ao cepticismo. Efectivamente, por um lado, as
impressões isoladas são dados primitivos para os quais não é preciso
procurar qualquer justificação, pois são os elementos últimos que
constituem o ponto de partida absoluto; por outro, as percepções aparecem
associadas entre si, sem que seja possível descobrir conexões reais entre
elas, mas apenas a sua sucessão ou contiguidade. Não é possível, portanto,
encontrar um fundamento real da conexão das percepções, um princípio
de unidade das mesmas que seja distinto delas: nem conhecemos uma
realidade exterior diferente das percepções, nem conhecemos uma
substância pensante ou eu como sujeito das mesmas. Só conhecemos as
percepções, a realidade fica reduzida a estas, a meros fenómenos, no
sentido etimológico do termo (fenómeno = o que aparece ou se mostra). É
este o sentido do fenomenismo de Hume.
O fenomenismo anda associado a uma atitude céptica: «Em resumo» –
escreve Hume – «há dois princípios que não sou capaz de tornar
consistentes nem me é possível renunciar a qualquer deles: que todas as
nossas percepções são existências diferentes e que a mente não percebe
nunca conexão real alguma entre existências distintas. Se as nossas
percepções tivessem como sujeito algo de simples e individual, ou se a
mente percebesse alguma conexão real entre elas, desapareceria a
dificuldade do caso. Pela minha parte, vou solicitar que se me permita ser
céptico e confesso que esta dificuldade excede a minha capacidade de
entendimento» (Tratado, Apêndice).

A IDEIA DE EU
Alguns filósofos pensam que aquilo a que chamamos o nosso eu é
algo de que temos consciência intimamente em qualquer momento; algo
cuja existência e continuidade sentimos na nossa existência e, para além
da evidência de uma demonstração, cuja perfeita identidade e
simplicidade sabemos com certeza. Em vez de nos distraírem dessa
contemplação, dizem que a sensação mais intensa e a paixão mais
violenta apenas a inculcam com mais intensidade e nos leva a verificar a
influência que têm sobre o eu, seja pela dor ou pelo prazer.
Todas estas afirmações contrariam, infelizmente, a própria
experiência; não temos qualquer ideia do eu da maneira que se disse.
Com efeito, de que impressão derivaria esta ideia? É impossível refutar
isto sem chegar a uma contradição e a um manifesto absurdo. Aliás, esta
pergunta colocar-se-ia de imediato se for nossa intenção que a ideia do eu
seja clara e inteligível. Para cada ideia real deve haver uma impressão que
lhe dê origem. Mas o eu ou pessoa não é nenhuma impressão, é apenas
aquilo a que as nossas impressões e ideias distintas supostamente se
referem. A haver uma impressão que origine a ideia do eu, essa
impressão seria invariavelmente idêntica durante toda a nossa vida, pois
supõe-se que o eu existe desse modo. Mas nenhuma impressão é
constante e invariável. Dor e prazer, tristeza e alegria, paixões e
sensações sucedem-se umas às outras e nunca existem todas ao mesmo
tempo. Logo, a ideia do eu não pode ter origem em nenhuma destas
impressões nem tão-pouco noutras quaisquer. Por conseguinte, essa ideia
não existe. Quanto à minha pessoa, e sempre que penetro mais
intimamente naquilo que chamo eu mesmo, a qualquer momento
encontro-me perante outra percepção particular, seja ela de calor ou frio,
de luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou prazer. Nunca consigo
encontrar-me a mim mesmo sem uma percepção e nunca observo outra
coisa a não ser a percepção. Quando as minhas percepções são
suprimidas durante algum tempo, num sono profundo, por exemplo,
durante esse tempo dou-me conta de mim mesmo, e pode dizer-se que
não existo verdadeiramente. E se todas as minhas percepções fossem
suprimidas pela mente e eu já não pudesse pensar, sentir, ver, amar ou
odiar, depois da decomposição do meu corpo o meu eu seria
completamente aniquilado, de modo que não consigo conceber o que é
que faz mais falta para me converter num perfeito nada.
Hume, Tratado Sobre a Natureza Humana.
2. MORAL E POLÍTICA

Tanto Locke como Hume foram pensadores profundamente imbuídos do


espírito e dos interesses do Iluminismo. Isto quer dizer, entre outras coisas,
que as suas preocupações intelectuais não se limitaram à teoria do
conhecimento. Ambos se ocuparam, por exemplo, do tema da religião,
como teremos ocasião de expor no capítulo seguinte. Ocuparam-se
igualmente de questões políticas e morais, contribuindo com interessantes
teorias e soluções, como veremos a seguir.

2.1. Locke e o liberalismo

O pensamento político de Locke exerceu notável influência na formação


da filosofia política liberal. Influenciou Montesquieu, a revolução
americana e, em geral, toda a corrente liberal progressista que ao longo do
século XVIII se opôs ao absolutismo político. No primeiro dos seus
Tratados do Governo Civil, Locke acentua que a teoria da origem divina do
poder implica a aceitação de que os homens não são livres e iguais por
natureza, afirmação que Locke rejeita de forma categórica. No segundo dos
Tratados citados expõe as suas teorias político-liberais.

2.1.1. O estado de natureza

A filosofia de Locke (como a de Hobbes antes dele e a de Rousseau


posteriormente) remete para a distinção fundamental introduzida pelos
sofistas entre natureza e convenção. É necessário estabelecer qual é o
estado natural do ser humano a fim de nele fundamentar racionalmente a
sociedade política.
Os homens no estado natural são livres e iguais entre si. Já no capítulo
sétimo chamámos a atenção para o facto de que a tese renascentista do
homem naturalmente bom seria retomada por Rousseau, ao passo que a
tese protestante do homem naturalmente mau seria retomada por Hobbes.
Locke parece não partilhar nenhuma destas duas teses extremas. É certo que
no estado natural (no qual não existe organização política) os homens
podem violar os direitos e liberdades dos demais (portanto, o homem não é
necessariamente bom), mas também é certo que no estado natural os
homens contam com uma lei natural, descoberta pela razão: a lei natural
impõe limites à consciência e à conduta dos homens. Além da lei moral, os
homens possuem naturalmente certos direitos. Entre os direitos naturais,
Locke insiste – de acordo com as circunstâncias socioeconómicas da sua
época – no direito de propriedade. Os homens possuem um direito natural à
propriedade, cujo fundamento é o trabalho.

2.1.2. A sociedade política

No estado natural, torna-se difícil uma defesa racional dos direitos


individuais (e muito especialmente do direito de propriedade), quer porque
o indivíduo é incapaz de repelir por si as agressões dos outros, quer porque,
ao repeti-las, se excede desnecessariamente e de modo arbitrário. Torna-se
então necessária uma organização política e uma lei objectiva que remedeie
as desvantagens do estado natural.
São duas, em nossa opinião, as ideias fundamentais de Locke acerca da
organização dos indivíduos em sociedades políticas. Em primeiro lugar,
Locke não admite que a sociedade política seja antinatural, radicalmente
contrária à natureza: mais ainda, concebe-a como algo de útil e adequado
para salvaguardar o desfrute pacífico dos direitos naturais. Em segundo
lugar, pretende fundamentar racionalmente a sociedade política e o único
fundamento racional que encontra é o consenso, o consentimento de todos
os indivíduos: a origem da sociedade está, pois, no acordo, no pacto de
todos os indivíduos. Através deste pacto (explícito ou implícito), os
indivíduos renunciam a parte da sua liberdade para dela poderem gozar com
maior segurança, aceitando submeter-se à vontade da maioria.
Locke desenvolve a sua teoria política para além destas ideias gerais,
especificando os poderes que devem funcionar no Estado, bem como a
supremacia absoluta do legislativo. Mas os pormenores da sua teoria são
menos importantes. Além disso, alguns dos seus princípios (por exemplo, a
primazia concedida à defesa da propriedade privada como função do
Estado) são reflexo da situação socioeconómica da sua época.
Mais importante é a sua ideia de que aqueles que exercem o poder
político têm um mandato popular e são responsáveis perante o povo pelo
desempenho da sua missão, que consiste em promover o bem comum.
Trata-se sem dúvida de ideias muito gerais, mas que vieram a converter-se
em princípios básicos comumente aceites em todo o Estado democrático.

2.2. Hume e o emotivismo moral

Do conjunto da obra filosófica de Hume, a parte mais conhecida é a sua


teoria do conhecimento, radicalmente empirista. A teoria do conhecimento,
no entanto, constitui apenas uma parte do seu projecto geral de fundar e
desenvolver uma ciência do homem, como mostra o próprio título da sua
obra fundamental: Tratado acerca da natureza Humana. Hume pretende
levar a cabo em relação ao homem uma tarefa análoga à que Newton
realizou em relação à natureza: a constituição de uma ciência baseada no
método experimental.

2.2.1. Crítica do racionalismo moral

Em geral, podemos dizer que um código moral é um conjunto de juízos


através dos quais se exprime a aprovação ou reprovação de certas condutas
e atitudes: assim, aprovamos a generosidade e a benevolência, reprovamos
o crime e a opressão. A maioria dos filósofos que se ocuparam da moral
interroga-se sobre a origem e fundamentação destes juízos morais: em que
se fundamenta a nossa aprovação da benevolência, por exemplo, e a nossa
reprovação ou rejeição do crime e opressão?
Uma resposta, dada já desde os Gregos, a esta pergunta é que a distinção
entre o bom e o mau moralmente, entre as condutas viciosas e virtuosas,
está baseada na razão; a razão pode conhecer a ordem natural e a partir
deste conhecimento pode determinar que condutas e atitudes são concordes
com essa ordem; o conhecimento da concordância ou discordância da
conduta humana com a ordem natural é, pois, o fundamento dos nossos
juízos morais.
Hume considera que o conhecimento intelectual, não é nem pode ser o
fundamento dos nossos juízos morais. O seu principal argumento é o
seguinte: a razão não pode determinar nem impedir o nosso
comportamento; pois bem, os juízos morais determinam e impedem o nosso
comportamento; logo, os juízos morais não provêm da razão.

O SENTIMENTO MORAL
Este raciocínio prova não só que a moralidade não consiste em
relações – que são objecto da ciência – mas, se se examinar com cuidado,
também prova com segurança que a moralidade não consiste em
nenhuma questão de facto que a razão possa descobrir. Esta é a segunda
parte da nossa argumentação e, se a conseguirmos tornar evidente,
concluiremos que a moralidade não é objecto da razão. Será difícil provar
que a virtude e o vício não são questões de facto cuja existência possamos
inferir por meio da razão? Tomemos o exemplo de uma acção
reconhecidamente viciosa como seja um assassinato premeditado.
Examinai-o sob todos os pontos de vista possíveis e verificai se
encontrais essa questão de facto ou existência a que chamais vício.
Qualquer que seja o ponto de vista sob o qual o observeis, apenas
encontrareis certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não existe
nenhuma outra questão de facto incluída nesta acção. Enquanto
considerais o objecto, já o vício vos escapou completamente. Só o
descobrireis se dirigirdes a reflexão para o vosso coração e aí encontreis
um sentido de desaprovação contra tal acção. E aqui temos já uma
questão de facto, mas ela é objecto do sentimento e não da razão.
Hume, Tratado sobre a Natureza Humana.

A premissa menor («os juízos morais determinam e impedem o nosso


comportamento») é evidente: a aprovação moral de certas condutas inclina-
nos a realizá-las, a reprovação de outras condutas impede-nos de as realizar.
Quanto à premissa maior («a razão não pode determinar o nosso
comportamento nem evitá-lo»), deriva da teoria de Hume do conhecimento.
Com efeito, o conhecimento é de relações entre ideias ou de factos. O
conhecimento das relações entre ideias, as matemáticas por exemplo, é útil
para a vida, mas por si próprio não leva à sua aplicação: as matemáticas
aplicam-se às técnicas quando se persegue um fim ou objectivo que não
procede das próprias matemáticas.
Quanto ao conhecimento fáctico, limita-se a mostrar-nos factos e os
factos não são juízos morais: «Atenta numa acção qualquer» – escreve
Hume – «considerada viciosa, um assassínio intencional, por exemplo.
Examina-o sob todos os pontos de vista e vê se podes encontrar um facto,
uma existência real a que chamas vício. Seja qual for o modo como o
examinas, encontrarás apenas certas paixões, motivos, volições e
pensamentos: não há mais facto nenhum neste caso. Enquanto dirigires a
tua atenção para o objecto, o vício não aparecerá em parte alguma. Não o
encontrarás nunca até que dirijas a tua reflexão para o teu próprio coração e
encontres um sentimento de reprovação que brota em si próprio a respeito
de tal acção. Eis um facto, mas um facto que é objecto do sentimento e não
da razão. Está em ti próprio, não no objecto».

2.2.2. O sentimento e os juízos morais


O parágrafo anterior mostra o lado positivo da teoria de Hume acerca do
fundamento dos juízos morais: o fundamento destes não está na razão (nem
no conhecimento das relações entre ideias nem no conhecimento dos
factos), mas no sentimento. Se a razão é incapaz de determinar a conduta,
os sentimentos são as forças que realmente nos determinam a agir. O
sentimento moral, por seu turno, é um sentimento de aprovação ou de
reprovação que experimentamos a respeito de certas acções e maneiras de
ser dos seres humanos. É natural e desinteressado.
Ao propor esta teoria sobre o fundamento dos juízos morais, Hume
adopta numa corrente de pensamento desenvolvida em Inglaterra na
primeira metade do século XVIII por filósofos moralistas como
Shaftesbury (1671-1713) e Hutcheson (1694-1746), corrente que
encontrou a sua continuação nos nossos dias na doutrina do emotivismo
moral.
11. O ILUMINISMO

INTRODUÇÃO

O Iluminismo foi um amplo movimento de ideias, não apenas de


carácter estritamente filosófico, mas cultural num sentido lato, que constitui
um «estado de espírito» que impregnou todas as actividades literárias,
artísticas, históricas e religiosas.
Estende-se e desenvolve-se aproximadamente durante o século XVIII,
denominado século da Ilustração ou século das luzes precisamente em
virtude da exigência de clareza, melhor, de clarificação necessária
relativamente a todos os aspectos e dimensões da vida humana. A este
propósito, convém fazer duas observações.

a) que toda a atitude e reflexão filosófica se propõem em geral a uma


clarificação racional da vida humana e do mundo; e assim pode falar-se
de «iluminismo», tanto, por exemplo, na sofística grega, como em
sistemas posteriores ao século XVIII. O genuíno do Iluminismo do
século XVIII consiste numa particular maneira de entender essa
clarificação racional e as questões a ela submetidas;
b) que, enquanto movimento filosófico e cultural que se estende por um
século e em diferentes âmbitos geográficos, culturais e sociopolíticos,
não é possível estudar aqui o Iluminismo pormenorizadamente e em
detalhe, porque o movimento iluminista não é separável, salvo por
razões pedagógicas (como é o nosso caso), dos diferentes filósofos que
já foram estudados (Locke, Hume, por exemplo) ou o serão mais
adiante (por exemplo, Kant).

O tema do Iluminismo está estruturado nas seguintes partes:


1. Enquadramento histórico e sociopolítico do Iluminismo.
2. O conceito de «razão esclarecida».
3. Newton e o problema da natureza.
4. Homem e Deus: o deísmo e a religião natural.
5. Homem e sociedade (Rousseau).
1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E
SOCIOPOLÍTICO DO ILUMINISMO

É oportuno ter presente, e por isso o indicamos (se bem que de forma
sucinta), que o Iluminismo tem lugar na época das revoluções liberais
burguesas: desde a inglesa 1688 até à revolução francesa de 1789. Em certa
medida, o pensamento iluminista vem coadjuvar no processo contra o
ancien régime, exprimindo a ideologia crítica das classes médias e a
concepção liberal e tolerante em todas as ordens, e significa o que Paul
Hazard denominou «a crise da consciência europeia».
Os países em que o Iluminismo teve maior força e relevo foram a
Inglaterra, onde propriamente se iniciou; a França onde adquiriu maior
brilhantismo e onde se converteu em foco de irradiação; e a Alemanha, para
onde passou provindo de França. O Iluminismo, atitude e mentalidade
racionalista de clarificação, configurou-se e repercutiu-se de um modo
muito diverso nos diferentes países. Em Inglaterra, num enquadramento de
menor tensão sociopolítica, o Iluminismo (Enlightenment) teve um carácter
preponderantemente empirista-epistemológico, e privilegiou as ciências da
natureza e as questões sobre a religião num espírito de liberdade e
tolerância.
Em França, onde se conjugava a organização política autoritária e a
classe média burguesa ascendente, com a progressiva tensão social, são
mais relevantes as questões de ordem moral, de direito (especialmente
direito político) e do progresso histórico. O Iluminismo alemão
caracterizar-se-á, não por novos temas, mas pela análise da «razão» no
intuito de encontrar nela e dela fazer o sistema de princípios que oriente
fundadamente e a partir de si própria o saber da natureza e a acção moral e
política da vida humana. Kant virá a ser (como veremos) a expressão mais
depurada e filosófica da atitude e exigência do Iluminismo.
A Enciclopédia ou Dicionário fundamentado das ciências, das artes e
dos ofícios passa por ser a obra mais representativa do Iluminismo francês.
Principalmente sob a égide de Diderot e D’Alembert, significou uma
grande revolução na cultura e no pensamento. Os seus objectivos foram: a)
difundir a cultura e os conhecimentos, proporcionando informação e
instrução; b) criar uma opinião crítica e antidogmática; c) sobretudo, levar a
cabo uma dura crítica dos preconceitos é das crenças tradicionais. Neste
sentido, e por este espírito crítico, a Enciclopédia é uma obra representativa
da atitude iluminista.
No pensamento iluminista a «razão» é, segundo se escreveu com acerto,
«sinónimo de todas as forças espirituais fundamentais e independentes».
Vejamos como esta razão, assim entendida, se configura e exerce. Na
referida configuração se exprime o «espírito» iluminista.

2.1. A autonomia da razão

«O Iluminismo consiste no facto pelo qual o homem sai da menoridade.


Ele próprio é culpado dela. A menoridade fundamentava-se na incapacidade
de se servir do próprio entendimento, sem a orientação de outro. Cada um é
culpável desta menoridade, dado que a sua causa não reside num defeito do
entendimento, mas na falta de decisão e ânimo para dele se servir com
independência, sem a orientação de outros. Sapere aude – tem a coragem de
te servir do teu próprio entendimento. Eis a divisa do Iluminismo.» Nestas
palavras de Kant fica modelarmente expresso o carácter autónomo da razão
esclarecida. A razão é suficiente em si e por si mesma, pelo que se exige
confiança nela, e por consequência a decisão de se servir dela com
independência, sem outros limites para além daqueles que são dados pela
sua própria natureza. Daí a necessidade de analisá-la e conhecer os seus
limites.
2.2. Os limites da razão

Os limites do entendimento são impostos pela sua própria natureza. A


razão é uma e a mesma em todos os povos, homens, culturas e épocas, e
tem uma «essência ou natureza» fixa, desenvolvendo-se no tempo, é
verdade, mas sempre segundo a conformação da sua natureza e de acordo
com a sua essência. Supõe-se que há uma natureza da razão, como há uma
natureza ou legalidade do mundo físico. E, além do mais, esta natureza da
razão é «racional». Constitui o que poderíamos chamar o «naturalismo» da
razão ilustrada.

Quando no desenrolar do Iluminismo começarem a surgir com clareza os


limites da razão e se verificar que a sua «natureza» está submetida, de um
modo profundo, à marcha e à evolução da história, e que o componente
racional está condicionado pelas suas raízes emocionais ou passionais,
então estará a assistir-se ao começo de outro mundo intelectual e
filosófico, o mundo romântico.

2.3. Carácter «crítico» da razão

Aquilo de que esta razão, autónoma por si, necessita é de ser


«clarificada» no seu poder e independência relativamente ao que a
sufocava. É pois uma razão crítica, nos seguintes sentidos:

a) Não tanto contra a ignorância, pois esta pode facilmente ser superada,
mas contra os preconceitos, que a cegam e paralisam;
b) Não contra a história e o passado, como se quisesse e pudesse
começar absolutamente de novo a estrear o mundo (uma ilusão e uma
quimera), mas contra a tradição, entendida como a carga que pressiona e
se suporta sem outro motivo que não seja o de ser passado, não
permitindo a sua reapropriação racional e livre.
c) Crítica, por isso, não tanto contra a legalidade, pois a razão tem seus
próprios princípios e leis, mas contra a autoridade externa, isto é, contra
a autoridade não reconhecida nem reconhecível como tal pela própria
razão. Autoridades externas serão a tradição e o passado, mas também o
presente e o vigente se não for racional, se não se submeter ao juízo da
razão.
d) Crítica não apenas contra a credulidade, pois a própria razão poderia
reconhecer o sentido da religião, mas contra a superstição e a idolatria.
Não, pois, contra o sentido da ideia de Deus, e do divino, mas contra
uma determinada representação de Deus.

Assim compreendida, a razão crítica esclarecida não é a absoluta e


simplista negação de certas dimensões da vida e da realidade, ou de certas
questões (a história, a legalidade política, a religião), mas a rejeição do
modo de entendê-las, que contraria a sua ideia de clarificação racional.
Neste sentido, a razão esclarecida é tolerante. A tolerância é, nas palavras
de Voltaire, «o património da razão».

2.4. Carácter analítico da razão

A razão não só tem uma natureza mas é também um «organon», isto é, o


instrumento ou meio para conhecer, e com o qual interpretar o mundo e
exercer a crítica. De acordo com a sua natureza, no seu proceder
cognoscitivo a razão é analítica. Com este termo se estabelece a diferença
relativamente à ideia de orientação «racionalista» que se fez da razão no
século XVII.
Contra uma razão prenhe de conteúdos (teoria das ideias inatas), que
pretende conhecer a partir de si própria de um modo dedutivo e a priori e
que crê possuir em si mesma os esboços, certamente gerais, mas sem
dúvida essenciais de toda a realidade; contra uma razão que poderia
denominar-se «sistemática» e dedutiva, a razão esclarecida entende-se
como: a) capacidade de adquirir conhecimentos com referência especial à
experiência e ao empírico; b) capacidade de analisar o empírico, procurando
compreender, numa aliança entre o empírico e o racional, as leis gerais nos
elementos particulares.

NECESSIDADE E PERIGO DO ILUMINISMO


A aporia que nos surgiu revelou-se assim como o primeiro objecto do
nosso estudo sobre a autodestruição do Iluminismo. Não temos nenhuma
dúvida iluminista – e é essa a nossa posição desde o início – em relação
ao facto de que na sociedade a liberdade é inseparável do pensamento.
Mas julgamos ter descoberto com igual clareza que o próprio conceito de
tal pensamento, assim como as formas históricas concretas e as
instituições sociais às quais está intimamente ligado, implica já o gérmen
da regressão que hoje se verifica em todo o lado. Se o Iluminismo não
acolhe em si a consciência deste momento regressivo, estará a assinar a
sua própria condenação. E se a reflexão sobre o aspecto destrutivo do
progresso é deixada aos seus inimigos, o pensamento cegamente
pragmatizado perde ao mesmo tempo o seu carácter de superação e
conservação e também a sua relação com a verdade. Em todo este
absurdo incompreendido, a debilidade da compreensão teórica de hoje
revela-se na misteriosa atitude das massas tecnicamente educadas para se
submeterem ao despotismo e na sua tendência auto destrutiva para a
paranóia «popular».
Horkheimer, Adorno, Dialéctica do Iluminismo.

2.5. Secularização da razão

Face à concepção racionalista da razão que se remetia, em última


análise, para a teologia e pretendia ter um uso e alcance transcendente, o
Iluminismo tem uma ideia ou concepção secularizada da razão. O
Iluminismo vem romper o equilíbrio entre a fé e a razão, mediante um
processo redutivo da fé ao racional, vem exigir e realizar a progressiva e
total secularização da vida humana. É importante apreciar e reconhecer que
esta secularização se efectua transpondo os grandes temas do pensamento
teológico para o nível do mundano, onde se mantêm reinterpretados num
sentido secular.
Efectivamente, a concepção religiosa-teológica do mundo mantinha-se e
sobrepunha-se à relação homem-Deus. Deus constitui o centro, origem e
princípio do sentido do mundo (teocentrismo); o sentido da humanidade e
da história é estabelecido e regido por Deus previdente (providência); o
destino último do homem e o fim da história é constituído pela salvação
sobrenatural e eterna do homem, realizada por e com a graça de Deus
(redenção divina).
Ora, a razão secularizada vai transpor estas questões para um nível
mundano, reinterpretando-as e, de certo modo, dando-lhes um significado
secular. Assim, face ao «teocentrismo», postula-se «fisiocentrismo» (de
«physis», natureza), com a natureza como ponto de referência e com a sua
«fé» secular-racional nas leis naturais. Face ao «providencialismo divino»,
manter-se-á a fé no progresso contínuo e sem limites da razão e da
humanidade. E face à redenção sobrenatural, a razão secularizada defenderá
a salvação do homem como resultado do seu próprio trabalho na história: a
sociedade e a história são assim o novo enquadramento e horizonte de
salvação.
A partir destes caracteres da razão esclarecida podemos apreciar melhor
o espírito e o sentido do Iluminismo, bem como os seus principais núcleos
temáticos. O grande filósofo e «historiador» alemão Hegel escreve: «O
princípio do Iluminismo é a soberania da razão, a exclusão de toda a
autoridade. As leis impostas pelo entendimento, essas determinações
fundadas na consciência presente e referentes às leis da natureza e ao
conteúdo do que é justo e bom, são o que se chamou a razão. Chamava-se
Iluminismo à vigência destas leis. O critério absoluto face a toda a
autoridade da fé religiosa e das leis positivas do direito, e em particular do
direito político, era então que o conteúdo fosse visto com evidência e em
livre presença pelo espirito humano» (Lições sobre a Filosofia da História
Universal). Como se pode reconhecer no texto de Hegel, os grandes temas
do Iluminismo são:

ILUMINISMO E CONSCIÊNCIA CRÍTICA DA


ACTUALIDADE
Seria sem dúvida uma questão fulcral para o estudo do século XVII
em geral e, mais concretamente, da Aufklärung, interrogar-se sobre o
seguinte facto: a Aufklärung denominou-se a si própria Aufklärung; é sem
dúvida um processo cultural muito específico que teve consciência de si
mesmo dando-se um nome, situando-se em relação ao seu passado e ao
seu futuro e designando as operações que teria de efectuar no interior do
seu próprio presente.
Não será a Aufklärung a primeira época que se designa a si própria e
que, em vez de se caracterizar simplesmente, de acordo com um velho
hábito, como período de decadência ou de prosperidade, de esplendor de
miséria, se denomina por via de um determinado acontecimento, que é
próprio de uma história geral do pensamento, da razão e do saber, e no
interior da qual desempenha o seu próprio papel? A Aufklärung é um
período, um período que formula a sua própria divisa e os seus próprios
preceitos e que diz o que se tem de fazer, tanto em relação à história geral
do pensamento como em relação ao seu presente e às formas de
conhecimento, de saber, de ignorância e de ilusão, nas quais sabe
reconhecer a sua situação histórica.
Parece-me que nesta questão da Aufklärung radica uma das primeiras
manifestações de um determinado modo de filosofar que teve uma longa
história desde há séculos. Uma das grandes funções da chamada filosofia
moderna (aquela cujo começo pode ser situado nos finais do século
XVIII) é interrogar-se sobre a sua própria actualidade.
Foucault, O Que é o Iluminismo?
a) a natureza física e o conhecimento da sua legalidade e o seu
subsequente domínio;
b) a religião e o sentido da fé e de Deus (deísmo e religião natural);
c) a sociedade e a história, isto é, a organização racional da sociedade e
da convivência política; e o estabelecimento de um progresso histórico
com base e em consonância com as exigências da razão.

E tudo isso a partir do conceito de «natureza humana» ou «razão


natural» e da exigência de uma total clarificação racional. O Iluminismo iria
assim tentar realizar o projecto que já Hume acariciara de uma «ciência do
homem»: «É evidente» – escreveu no seu Tratado da Natureza Humana –
«que todas as ciências se relacionam em maior ou menor grau com a
natureza humana e que, embora pareçam desenvolver-se a grande distância
desta, regressam afinal a ela por uma ou outra via. Inclusivamente as
matemáticas, a filosofia natural e a religião natural dependem de algum
modo da ciência do homem, pois estão sob a compreensão dos homens e
são julgadas segundo as capacidades e faculdades destes».
Como lema do Iluminismo, poderia servir a frase de Pope: «O estudo
próprio da humanidade é o homem». O homem, eixo e matriz da natureza,
Deus e sociedade, é o ponto vivo de união em torno do qual se articulam
todos os esforços do século XVIII. E será o mesmo Alexander Pope quem
exaltará a figura de Newton que desenvolverá esplendidamente o
Iluminismo, ao enlaçar harmonicamente a natureza e a divindade. O
epitáfio que orna o túmulo de Newton servir-nos-á de charneira para expor
o seu pensamento e as suas contribuições:

Envoltas estavam em trevas


A natureza e suas leis.
E Deus disse: Faça-se Newton!
E tudo foi luz.
(Pope, Epitáfio de Newton)
3. NEWTON E O PROBLEMA DA NATUREZA

3.1. A máquina cartesiana do mundo

O século XVIII vê triunfar na Europa a revolução científica iniciada por


Copérnico, Kepler e Galileu. Aos esforços destes pioneiros para instaurar
um método experimental, e à sua insistência quase religiosa em valorizar a
precisão e a exactidão das matemáticas, junta-se agora uma cosmovisão de
perspectivas tão ambiciosas como as do derrubado sistema aristotélico: a
filosofia mecanicista de René Descartes.
Podemos agrupar assim as linhas essenciais deste mecanicismo:

a) Só existe o matematizável: figura, tamanho e movimento; que são as


qualidades primárias. As restantes qualidades ficam reduzidas ao âmbito do
subjectivo.

b) Por consequência, as «coisas» naturais reduzem-se a massas pontuais


movendo-se no espaço euclideano (infinito, isotópico e tridimensional).

c) Toda a acção e reacção devem exercer-se mediante choque ou


impulso. Em todo o caso, por contacto.

d) É suficiente descrever matematicamente as leis que regem estes


movimentos e acções; o âmbito da causalidade reduz-se à causa eficiente e
esta à função que relaciona duas variáveis.
e) O tempo torna-se um conceito secundário a partir do momento em
que a ubiquidade das massas se dá num espaço infinito: o ponto de partida
de um movimento (medida do tempo) é arbitrário e reversível.

f) Os princípios que regem a imensa maquinaria do sistema são dois: o


princípio de inércia e o de conservação do momento ou quantidade de
movimento (mv).

Como consequência destes postulados do mecanicismo cartesiano, a


física fica integrada na cinemática (deslocação de massas pontuais num
espaço infinito). Assim, se Descartes podia enunciar pela primeira vez,
explicitamente, a lei da inércia (princípio fundamental da física), era-lhe
impossível introduzir no seu sistema as considerações dinâmicas de Galileu
(queda dos graves) e de Kepler (segunda lei). Por outro lado, o seu repúdio
das qualidades ocultas leva-o necessariamente a postular um espaço pleno
(acção por contacto). A descoberta de forças aparentemente actuantes à
distância (gravidade, magnetismo e electricidade) ficava no seu sistema
reduzida à imaginária, não matemática, dos turbilhões.
Com efeito, para poder explicar estes novos fenómenos Descartes foi
obrigado a fingir um Universo pleno composto por três elementos:

a) As partes mais espessas da matéria, agrupadas em diferentes centros


pelo movimento universal em turbilhão.

b) Partículas mais subtis e redondas, transparentes e em contínuo


movimento, introduzidas nos interstícios da matéria espessa e preenchendo
os espaços interplanetários. Descartes chamou éter a esta matéria, seguindo
uma respeitável tradição grega (assim chamava também Aristóteles à sua
quinta essentia).
c) Partículas mais diminutas ainda, que formam o tecido das estrelas e
ocupam os interstícios do éter: constituem a luz.

Este artifício do turbilhão explicava certamente alguns factos


interessantes em astronomia, a saber, que todos os planetas se moviam
aproximadamente no mesmo plano e na mesma direcção em volta do Sol.
Mas para o cientista, e precisamente em nome das exigências absolutas
da matemática – o próprio programa cartesiano –, não deixava de ser um
escândalo que o sistema físico do mundo fosse irredutível às matemáticas,
tendo de refugiar-se na fantasia dos turbilhões. E também não deixava de o
ser o facto de que as decisivas descobertas de Galileu (dinâmica) e de
Kepler (astronomia física) não tivessem cabimento na cinemática
cartesiana. A segunda metade do século XVII está inteiramente preenchida
por um esforço de renovação mental poucas vezes igualado na história,
orientado para a conciliação num sistema unitário das descobertas parciais
destes grandes homens:

Isaac Newton
Woolsthorpe, 1642; Londres, 1727. Atrabiliário, áspero e mal-humorado, jamais reconheceu
o valor dos seus companheiros e fez o possível por diluir as pegadas dos que o precederam.
Culpado de dezanove mortes durante o seu cargo de Director da Casa da Moeda. Presidente da
Royal Society, nunca houve tantos nobres estúpidos na sábia instituição como sob o seu
mandato. É, no dizer dos especialistas, o maior cientista de todos os tempos. A sua imensa
influência estende-se da análise (cálculo de fluxos) à mecânica (lei da gravitação universal), à
óptica (teoria corpuscular da luz), à astronomia (construção do primeiro telescópio de reflexão)
e à teologia (Comentário aos livros proféticos de Daniel e João).

a) tratava-se de conjugar a geometria analítica cartesiana com o conceito


dinâmico de derivada do tempo, implicitamente descoberto por Galileu.
Assistiam assim aos alvores da razão empírico-analítica anteriormente
explicada. O resultado, decisivo na história da matemática, foi a invenção
do cálculo infinitesimal.
b) Tratava-se, também, de atribuir uma causa física às leis empíricas de
Kepler. O resultado seria a descoberta, ainda não ultrapassada, da teoria da
gravitação universal.

c) Em terceiro lugar, havia que combinar a cinemática cartesiana com a


dinâmica de Galileu num único sistema físico: a mecânica.

d) Por último, havia que tentar introduzir no edifício da mecânica forças


como o magnetismo e a electricidade, incompatíveis com o Universo inerte
de Descartes.

Estas quatro conquistas, pilares do imenso edifício da ciência moderna,


reúnem-se em torno de um homem (embora na primeira e na quarta não
deva silenciar-se a decisiva contribuição de Leibniz): Isaac Newton (1642-
1727).

3.2. O sistema do mundo

São duas as obras que cimentam a glória de Newton: os Princípios


Matemáticos da Filosofia Natural (1687) e a Óptica (1704). Nesta
exposição vamos limitar-nos, claro está, à importância filosófica das
descobertas newtonianas.
O título da primeira obra é um claro desafio aos Princípios da Filosofia
de Descartes (1638). No entanto, a precisão «princípios matemáticos» não
deve induzir em erro. Apesar desta insistência no matemático, Newton vai
efectuar uma viragem decisiva na filosofia natural (física), abandonando o
racionalismo dos pioneiros e cumprindo, antes, o programa empirista
iniciado por Francis Bacon (1561-1626) e Robert Boyle (1627-1691). Com
Newton, a matemática deixa de ser o fundamento para se converter num
meio auxiliar: a geometria nasce da mecânica e sem ela não tem sentido.
Está no próprio Prefácio dos Princípios:
«Descrever linhas rectas e círculos são problemas, mas não problemas
geométricos. Precisamos da mecânica para a solução destes problemas; e
uma vez demonstrados, a geometria esclarece o seu uso. E é uma glória
para a geometria que com estes poucos princípios, trazidos do exterior,
possa fazer tantas coisas. Portanto, a geometria fundamenta-se na prática
da mecânica, e não é mais do que uma parte da mecânica universal, que
se propõe e demonstra exactamente a arte de medir.»

Assim, na contínua polémica entre a resolução e composição, entre


análise e síntese, Newton concede decididamente a primazia à segunda (o
que vem a ter consequências decisivas na filosofia de Kant). Note-se que,
desta forma, Newton acaba por se separar do ideal Iluminista da razão
empírico-analítica, que ele próprio tão poderosamente contribuiu para
forjar. A geometria serve para esclarecer, para expor com maior exactidão o
que já de antemão se demonstrou (diríamos melhor: mostrou, pois aparece
num modelo mecânico). Falando com rigor, a ciência não começaria pois
por uma demonstração matemática, mas por uma construção a partir do
sensível. O método da ciência é a indução, afirma Newton face ao
racionalismo continental. Estudem-se atentamente as famosas regulae
philosophandi (regras do filosofar) do Livro III dos Principia:
«I. Não devem admitir-se como causas das coisas naturais mais do que
aquelas que simultaneamente sejam verdadeiras e bastem para explicar os
fenómenos. Assim, dizem os filósofos: a natureza nada faz em vão; e se faz
em vão é aquilo que, podendo ser produzido por poucas coisas, o foi por
muitas. Com efeito, a natureza é simples, e não se preocupa com as causas
supérfluas.
«II. Na medida do possível, a efeitos naturais do mesmo género há que
atribuir causas do mesmo género.
«III. As qualidades dos corpos que não admitem aumento ou diminuição
de graus e que pertencem a todos os corpos nos quais seja possível
experimentar, deverão ser consideradas como qualidades universais dos
corpos (...). A extensão, dureza, impenetrabilidade, mobilidade e forças de
inércia do todo surge da extensão, dureza, impenetrabilidade, mobilidade e
forças inerciais das partes: donde concluímos que as partes mínimas de todo
o corpo são extensas, duras, impenetráveis e dotadas de força de inércia. E
este é o fundamento de toda a filosofia (...). Mas eu não afirmo em absoluto
que a gravidade seja algo constitutivo dos corpos. Por força inerente
entendo apenas a força inercial.
«IV. Na filosofia experimental, as proposições, extraídas mediante
indução a partir dos fenómenos – e apesar de hipóteses em contrário –,
devem ser tidas por verdadeiras, seja exactamente ou da maneira mais
aproximada possível, enquanto não aconteçam fenómenos pelos quais essas
proposições se tornem ainda mais exactas ou sujeitas a excepções. É isto
que deve fazer-se, e não suprimir, por causa de uma hipótese, um
argumento indutivo».

«NÃO SIMULO HIPÓTESES»


Até aqui explicámos os fenómenos dos céus e do nosso mar pela força
da gravidade, mas ainda não atribuímos uma causa a essa força. A sua
origem deve com certeza radicar numa causa que chega a penetrar nos
próprios centros do Sol e dos planetas sem que a sua força sofra a mínima
diminuição; também não opera segundo a quantidade das superfícies das
partículas sobre as quais actua (como acontece com as causas mecânicas),
mas de acordo com a quantidade de matéria sólida que elas contêm,
propagando-se em todas as direcções até distâncias enormes e
decrescendo sempre como o quadrado inverso das distâncias. A
gravidade até ao Sol é formada pela gravidade das diversas partículas que
compõem o seu corpo; e ao afastar-se do Sol essa gravidade decresce
exactamente como o quadrado inverso das distâncias até à órbita de
Saturno, como o demonstra com clareza a quietude do afélio dos planetas,
e inclusive o afélio mais remoto dos cometas, se tais afélios forem
também invariáveis. Mas até hoje não se conseguiu descobrir a causa
dessas propriedades da gravidade a partir dos fenómenos, e eu não vou
simular hipóteses. Devemos chamar hipótese a tudo aquilo que não é
deduzido a partir dos fenómenos, e as hipóteses metafísicas ou físicas;
sejam elas de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia
experimental. Nesta filosofia, as proposições particulares são inferidas a
partir dos fenómenos e são logo generalizadas por via da indução. Foi
deste modo que se descobriu a impenetrabilidade, a mobilidade, a força
impulsiva dos corpos e as leis do movimento e de gravidade. E é
suficiente que a gravidade exista realmente e actue conforme as leis que
expusemos, servindo para explicar todos os movimentos dos corpos
celestes e do nosso mar.
Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural.

É escusado insistir na importância decisiva-embora nem sempre


favorável – que estas regras têm tido na história da ciência moderna.
A primeira, expressão da famosa «navalha de Ockham», é o postulado
de regularidade e simplicidade na natureza (e, por conseguinte, na
investigação científica), que desempenhou um papel decisivo – como vimos
– na aceitação do sistema copernicano.
A segunda, que hoje poderíamos chamar lei de continuidade, cimenta a
chamada «síntese newtoniana». Esta lei permitiu a Newton distinção entre
céu e terra e entre diversas classes de elementos (presente ainda,
paradoxalmente, em Descartes), mas é também esta mesma lei que impedirá
a constituição da química (baseada na diferença dos elementos) até ao
século XIX.
A terceira mostra o princípio de indução (ou, mais exactamente, da
transdução: passagem do observável ao não observável, de consequências
graves na teologia de Newton, como depois veremos). Newton volta assim,
claramente, a Arquimedes: primeiro faz-se uma experiência mecânica,
construindo um modelo físico aproximado, e logo se idealiza
geometricamente. Observe-se que este método está em absoluta oposição
directa com o de Galileu, e que não permite nunca uma confiança absoluta
no poder matemático da razão.
Nesta terceira regra (Newton não era muito cuidadoso na exposição
doutrinal), abandonam-se por um momento os aspectos metodológicos para
nos mostrar a estrutura da matéria. Trata-se de um claro atomismo (frente
ao continuismo cartesiano) do qual se exclui explicitamente toda a
afirmação de vivacidade ou actividade por parte da matéria. A atracção da
gravidade é extrínseca aos corpos. Vamos deixar sem resposta, por agora, a
interrogação acerca da sua origem.
Por fim, a quarta regra – continuação da terceira – insiste no carácter
indutivo da ciência e é a má vontade newtoniana contra as hipóteses. Note-
se que se trata tanto de hipóteses metafísicas (as qualidades ocultas e
escolásticas), como mecânicas (as teorias a priori cartesianas ou galilaicas).
Curiosamente, se por um lado o sistema fica reconhecidamente reduzido ao
verosímil (voltando assim à velha exigência platónica de «conto provável»
para a ciência natural), assegura-se por outro a sua validade quase eterna,
pois – salvo um milagre – os fenómenos continuam a ser como são, sem
poderem ser explicados mediante hipóteses diferentes (o que vai em certa
medida contra a regra I: Newton assume tacitamente que ninguém
encontrará princípios mais simples e «evidentes»).
Também no final dos Principia se voltará a insistir, obsessivamente, nas
duas proibições: a atribuição de actividade aos corpos e a postulação de
hipóteses:

«Na verdade, a razão destas propriedades da gravidade não se pode


deduzir a partir dos fenómenos, e eu não simulo hipóteses».

Ora, esta afirmação é falsa no âmbito do próprio sistema newtoniano,


que utiliza hipóteses mecânicas (a construção de modelos segundo o
modelo da simplicidade), metafísicas (o espaço e o tempo absolutos) e
metodológicas (o princípio de transdução, que passa do geral para o
universal). Se assim for – e há inumeráveis provas disso –, devemos
questionar-nos sobre a origem desta má vontade contra as hipóteses. A
resposta será dada de seguida, ao aprofundarmos as implicações destes três
tipos de hipóteses.

3.3. A antologia dualista de Newton

3.3.1. Actividade e passividade

As hipóteses mecânicas são fornecidas pela crença de que a natureza


não actua em vão; é simples e não se preocupa com o supérfluo. Ora,
sabemos que o Universo newtoniano é composto por átomos inertes,
absolutamente passivos. O conjunto destas passividades não pode,
obviamente, originar uma actividade. O que é pois a natureza para actuar
sempre infalivelmente e para ordenar o mundo do modo mais simples
possível?
No final da Óptica Newton fixou uma série de queries («questões») de
importância fundamental, já que nelas se vislumbram os verdadeiros
interesses do cientista. É na questão 28 que encontramos uma resposta, tão
audaz quanto clara:

«Para a rejeição de tal meio (refere-se ao éter contínuo cartesiano)


dispomos da autoridade dos mais antigos e célebres filósofos da Grécia e
Fenícia, que fizeram do vácuo, dos átomos e da gravidade dos átomos, os
primeiros princípios da sua filosofia, atribuindo tacitamente a gravidade a
uma causa diferente da matéria densa. Filósofos posteriores apagaram da
filosofia natural a consideração de tal causa, imaginando hipóteses para
explicar mecanicamente todas as coisas e relegando para a metafísica todas
as demais causas. No entanto, o objectivo básico da filosofia natural é
argumentar a partir dos fenómenos, sem imaginar hipóteses e deduzir as
causas a partir dos efeitos até atingir a primeiríssima causa que, certamente,
não é mecânica».
Aqui, Newton revela claramente as suas intenções. É surpreendente esta
união do atomismo (que hoje sabemos ateu ou, quando muito, não
preocupado com os deuses – Epicuro) com a crença na divindade. Newton
não lera os atomistas. Mas, em contrapartida, havia estudado
apaixonadamente os filósofos platónicos de Cambridge (em cujo Trinity
College estudou e ensinou) e especialmente Henry More e Ralph
Cudworth. Este último defendia a existência de uma idade de ouro,
incontaminada, na qual os homens possuíam uma prisca sapientia
(«sabedoria antiga»), segundo a qual dividiam o mundo em potência activa
(Deus) e passiva (matéria). Uma centelha desta sabedoria perdida teria
chegado até à Fenícia e à Grécia (note-se que as categorias aristotélicas de
acção e não-acção passam agora a constituir a verdadeira realidade). Pois
bem, os esforços de Newton vão orientar-se na reconstrução desta sabedoria
revelada e imediatamente perdida pelo pecado dos homens (o dilúvio).
Assim, a Óptica conclui com esta admoestação:

«Não restam dúvidas de que se o culto aos falsos deuses não tivesse
cegado os pagãos (...) ter-nos-iam ensinado o culto ao verdadeiro Autor e
Benfeitor, do mesmo modo que o fizeram os seus antepassados sob o
governo de Noé e seus filhos antes de se terem corrompido».

PRINCÍPIOS GERAIS DA FILOSOFIA NATURAL


Também me parece que estas partículas não só possuem uma vis
inertiae, acompanhada das leis passivas do movimento que derivam
naturalmente dessa força, mas que estão também movidas por certos
princípios activos, como a gravidade e aqueles que causam a fermentação
e a coesão dos corpos. Julgo que estes princípios não são qualidades
ocultas, supostamente derivadas das formas específicas das coisas, mas
sim leis gerais da natureza por via das quais as próprias coisas se formam
e cuja verdade nos é dada pelos fenómenos, mesmo que as suas causas
não tenham sido descobertas ainda. Estas qualidades são visíveis e só as
suas causas é que são ocultas. Os aristotélicos não deram o nome de
qualidades ocultas às manifestações mas apenas àquelas qualidades que
supunham ocultas nos corpos e que eram causas desconhecidas de
fenómenos visíveis, como o caso das causas da gravidade, das atracções
eléctricas e magnéticas e das fermentações; e isto na suposição de que
essas forças ou acções derivavam de qualidades desconhecidas que não
podiam ser descobertas mas que se tornavam visíveis. Essas qualidades
ocultas colocam obstáculos ao desenvolvimento da filosofia natural, e por
isso foram refutadas nos últimos anos. Dizer que todas as coisas estão
dotadas de uma qualidade oculta específica pela qual actua e produz
efeitos visíveis, equivale a não dizer nada. Com efeito, constituiria um
grande passo na filosofia conseguir derivar dois ou três princípios gerais
do movimento a partir dos fenómenos para depois dizer como as
propriedades e acções de todas as coisas corpóreas derivam desses
princípios visíveis, mesmo que as causas desse princípios não tivessem
sido ainda descobertas. Assim, não me custa propor os princípios do
movimento atrás mencionado, dado que são de aplicação geral, mesmo
que as suas causas estejam ainda por descobrir.
Newton, Óptica.

Assim se explica a insistência de Newton em que não se transforme a


gravidade em potência interior aos corpos. O Universo seria então activo
(como em Leibniz) e não haveria necessidade da acção de Deus. Leibniz
resolveu o dilema de forma filosoficamente mais subtil. É esta hipótese
religiosa que proíbe o emprego de outras hipóteses. Deus e matéria
opõem-se frontalmente como actividade pura e passividade inerte. Não
há gradação possível da matéria até Deus: as causas finais desapareceram;
todo o movimento, toda a força, têm Deus como causa.
É então a própria Divindade a causa directa da gravidade? Aqui o
pensamento de Newton vacila. A partir da edição latina da Óptica (1706),
orienta-se decididamente no sentido de postular a acção de um éter
(descontínuo) subtilíssimo, mais densamente agrupado nas regiões vazias
interestelares do que nos interstícios dos corpos. Seria esta diferença de
densidade que explicaria a atracção. Contudo, importa referir que em
múltiplas ocasiões nos fala de espíritos etéreos, pelo que é possível supor
que este éter não actua mecanicamente apenas por meio da sua força (nem
poderia, se toda a acção vem de Deus). Não é isto um regresso não apenas
às qualidades ocultas, mas à própria angelologia medieval? Leibniz acusaria
Newton, ironicamente, de «comer bolotas após a descoberta do trigo»
(Quinta carta a Clarke), isto é, de converter o Universo numa teofania, num
milagre permanente, precisamente na idade do triunfo da mecânica.
Mais ainda: este Universo inerte exigia a contínua intervenção de
Deus (providência, face ao puro papel de criador que Descartes atribuiu a
Deus), e não apenas para o conservar, mas para continuamente o reformar,
pois estaria em contínua degradação (curiosa ressurreição da concepção
neoplatónica da matéria como mal). Em particular, os cometas seriam
corpos enviados por Deus para subministrar novo combustível às estrelas
em crise de extinção. Mas Newton não se detém aqui: é possível supor a
existência de outros sistemas com outras leis da natureza, segundo apraza a
Deus:

«Deus é capaz de criar partículas de matéria de diversos tamanhos e


figuras, em diferentes proporções no espaço e talvez de diferentes
densidades e forças, a fim de com isso mudar as leis da natureza e formar
mundos de diferentes tipos em diversas partes do Universo» (Óptica,
Questão 31).

Tantos esforços dispendidos pelos maiores génios do século XVII –


incluindo em parte o próprio Newton – para criar uma imagem unitária e
matematicamente estruturada do mundo, pareciam vir agora abaixo pela
irrupção do Deus voluntarista e irracional prefigurado já no augustinismo
inglês do século XIV. É desnecessário dizer que nisto a modernidade
não iria seguir Newton.
3.3.2. Espaço e tempo

Passemos agora às hipóteses metafísicas, exemplificadas no espaço e


no tempo absolutos. Os lugares clássicos da sua definição encontram-se no
Escólio Geral do livro III dos Principia:

«I. O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, de si e por sua natureza,


sem relação a nada externo, flui equavelmente, e chama-se também
duração: o relativo, aparente e vulgar, é uma medida sensível e externa (seja
exacta ou inexacta) daquela duração e é tomado pelo vulgo como tempo
verdadeiro: assim, uma hora, um dia, um mês, um ano».

«II. O espaço absoluto, por natureza sem relação a nada externo,


permanece sempre igual a si mesmo e imóvel; o relativo é a medida deste
espaço, ou certa dimensão móvel, que é definida pelos nossos sentidos
segundo a sua relação aos corpos e que o vulgo toma por espaço imóvel
(...). O espaço absoluto e o relativo são iguais em espaço e magnitude; mas
nem sempre permanecem iguais quanto ao número».

Newton prossegue depois com as definições, derivadas, de lugar e


movimento.
Que estas hipóteses são metafísicas (para além do físico) provam-no as
próprias regras do filosofar. Com efeito, por indução poderíamos chegar,
em todo o caso, ao espaço e tempo relativos, mas nunca ao absoluto. A
relatividade do espaço e do tempo prova-se por sua procedência da medida
sensível dos corpos; se uníssemos as diferentes medidas possíveis, teríamos
colecções de tempos e espaços.
De modo algum podemos chegar ao carácter absoluto destes âmbitos
partindo das relações entre corpos. É certo que Newton aduz duas
engenhosas experiências para provar o carácter absoluto do espaço: a da
água a girar dentro de um balde e a das esferas separadas por uma corda
tensa. No entanto, estas experiências só provam que o espaço relativo em
que acontecem está situado dentro de outro âmbito, que não tem de ser
forçosamente absoluto (assim, nos finais do século XIX o cientista alemão
Ernst Mach provaria matematicamente que as aparências se explicavam
perfeitamente aceitando as estrelas fixas como um sistema de referência).
Hoje sabemos que nada na natureza está em repouso absoluto: há repouso
apenas em relação a algum sistema de coordenadas. Newton estava a
extrapolar o princípio da relatividade de Galileu (invariância de sistemas
inerciais) a fim de estabelecer dois âmbitos de presença e duração. Que
razões o moviam a isso? Em princípio, podemos afirmar que os famosos
axiomas ou leis do movimento precisam do carácter absoluto e infinito do
espaço. Vejamos a formulação exacta destes axiomas:

«Lei I. Todo o corpo persevera no seu estado de repouso ou movimento


uniforme e rectilíneo enquanto não for obrigado a mudar de estado por uma
força que lhe seja imprimida».

«Lei II. A mudança de movimento é proporcional à força motriz


imprimida e produz-se segundo a linha recta em que actuou a referida
força».

«Lei III. Há sempre uma reacção contrária e igual a uma acção; isto é, as
acções de dois corpos são sempre mutuamente iguais e de sentido
contrário» (Principia, liv. I.)

A primeira lei exprime o princípio de inércia e dá uma definição


implícita de massa (potência de resistência à mudança de movimento). A
segunda lei define a força: F = ma. A terceira é o princípio de acção e
reacção.
É preciso pôr aqui em relevo dois pontos: a circularidade das leis I e II
(uma explica-se pela outra) e o carácter principal, «evidente», da força
imprimida, que fica por definir. Unamos agora as duas hipóteses de base:
um espaço infinito e absoluto no qual se deslocam massas inertes, e uma
força que extrinsecamente actua sobre os corpos. É possível desvendar,
finalmente, o segredo destas hipóteses: o espaço é o órgão sensorial
(sensorium) de Deus, aquilo que garante a sua omnipresença; a força o sinal
da actividade e potência divinas. Era necessário afirmar o carácter absoluto
do espaço para não misturar a matéria com a Divindade; era necessário o
carácter extrínseco da força para não dar aos corpos caracteres divinos.
No entanto, Newton não identifica espaço e tempo com Deus; Deus é a
pessoa que se manifesta como espaço e tempo: «Não é eternidade e
infinidade, mas eterno e infinito; não duração e espaço, mas dura e está
presente. Dura para sempre e está presente em todas as partes; e existindo
sempre e em todas as partes, constitui o espaço e a duração.» (Principia,
Escólio Geral.)
Esta é uma ideia presente já em Henry More (que chegara inclusive à
identificação de Deus com o espaço), aberta a múltiplas objecções: se Deus
está presente substancialmente no espaço, então Deus é um corpo (embora
imenso) e converte-se na velha alma do mundo dos filósofos árabes
medievais. E se está presente virtualmente, é porque Deus pode ser
simultaneamente potência e acto, inactividade (o espaço é inactivo
causalmente) e pura acção. Em todo o caso, Deus, aquilo que é simples e
sem mistura, aparece sensivelmente como um composto de partes. Tanto
Berkeley como Leibniz utilizaram o melhor da sua crítica para lutar contra
esta estranha concepção newtoniana, tão inútil para a ciência como nociva
para a religião.
Mas os interesses de Newton iam noutra direcção. Era uma ideia comum
no seu tempo a existência de um sensório ou lugar onde interagiam a
matéria e o espírito – recorde-se a glândula pineal cartesiana. Mas a
religiosidade protestante do cientista inglês exigia uma passividade absoluta
por parte do sensório humano. O homem recebia no sensório as imagens
das coisas (nunca as próprias coisas); e isto devia-se à sua localização
espácio-temporal. O homem é um animal receptivo:
«Vemos somente as figuras e cores dos corpos; ouvimos apenas sons;
tocamos apenas as superfícies externas; cheiramos unicamente os odores e
saboreamos os sabores; mas as substâncias íntimas não as conhecemos
mediante nenhum sentido, nem sequer mediante qualquer acção reflexa;
muito menos temos ideia da substância de Deus.» (Principia, Escólio
Geral.)

CIÊNCIA E METAFÍSICA
Por que razão a natureza não faz nada em vão e donde provém a
ordem e a beleza que vemos no mundo? Qual é a finalidade dos cometas
e por que razão todos os planetas se movem na mesma direcção em
órbitas concêntricas ao passo que os cometas o fazem em todas as
direcções segundo órbitas muito excêntricas? O que é que impede as
estrelas fixas de caírem umas em cima das outras? Como é que os corpos
dos animais foram criados com tanta arte e qual é a finalidade das suas
várias partes? Por acaso o olho foi criado sem perícia na óptica ou o
ouvido sem conhecimento dos sons? De que modo é que os movimentos
do corpo derivam da vontade e de onde provêm os instintos dos animais?
O aparelho sensitivo dos animais não é o lugar onde está presente a
substância sensitiva, a qual recebe as formas sensíveis das coisas através
dos nervos e do cérebro para que a sua presença imediata seja apercebida
nessa tal substância? E assim, tendo-nos debruçado correctamente sobre
estas coisas, os fenómenos não nos levam a crer que há um ser
incorpóreo, existente, inteligente, e omnipresente que vê intimamente as
próprias coisas no espaço infinito como se fosse na sua própria
sensibilidade, apercebendo-as plenamente e compreendendo-as
totalmente pela sua presença imediata perante ele? Com efeito, o que
apercebe e sente em nós é apenas a visão e a contemplação das imagens
dessas coisas transportadas pelos órgãos dos sentidos até aos nossos
pequenos aparelhos sensitivos. Deste modo, e embora cada passo
verdadeiro dado nesta filosofia não nos leve imediatamente ao
conhecimento da causa primeira, todavia aproxima-nos dela, e por isso
devemos tê-la em grande conta.
Newton. Óptica.

As críticas de Locke e Hume estão já prefiguradas no fenomenismo de


Newton. O que este não poderia prever era que viessem a ser utilizadas
como argumentos em favor do agnosticismo, e inclusive do ateísmo. Ele,
que havia retirado do homem todas as potências que Descartes lhe atribuíra,
para as colocar em Deus; ele, que escrevera os Principia «não com o
propósito de apresentar um desafio ao Criador, mas para reforçar e
demonstrar o poder e superintendência de um Ser Supremo.» (Carta a
Conduitt.)
Assim, o sensório divino percebe os corpos tais quais são, já que todos
estão nele mergulhados. E pode modificar por seu arbítrio as suas posições,
mediante os espíritos etéreos. O homem, ao contrário, é limitado e passivo;
não está na sua mão alterar os estados dos corpos (quando crê fazê-lo está,
na realidade, a obedecer aos planos de Deus – note-se a reprodução
malebrancheana desta teoria).

3.3.3. Da matéria a Deus

Passemos, por último, às hipóteses metodológicas. A mais importante


dentre elas é o princípio da transdução (regra III). A sua importância é tal
que é considerado o «fundamento de toda a filosofia». Em que reside o seu
valor? Reduz, em primeiro lugar, a matéria a qualidades primárias,
matematizáveis. Com o atributo da massa (inércia) confere-lhes o carácter
essencial de passividade. Faz do homem um ser duplamente passivo
(receptor de passividade). Até aqui, o princípio seria de mera indução:
passagem do particular a uma generalização empírica.
No entanto, o princípio vai mais longe e constitui-se numa prova a
posteriori da existência de Deus: a ordem, finalidade e beleza que o
sensório humano descobre não são produzidas por si nem pelas coisas
inertes. Portanto, tem-se acesso ao reino da primeira causa: «Este belíssimo
sistema (...) só pode proceder do conselho e domínio de um ser inteligente e
poderoso». Toda a filosofia natural (e a matemática ao seu serviço) se
manifesta agora como uma imensa praeparatio Dei. Mais ainda, através do
princípio de transdução o mecânico transforma-se em teólogo: «Ocupar-se
d’EIe a partir das aparências das coisas compete certamente à filosofia
natural.» (Principia, Escólio Geral.)

3.4. A ideia de natureza

Se na ordem científica Newton conseguiu sintetizar as diversas


descobertas no seio de uma mecânica racional, na ordem filosófica levantou
uma muralha entre sentidos e razão, entre a matéria passiva e a força activa.
O Iluminismo atesta a luta denodada para alcançar uma nova síntese. Seria
Kant quem a realizaria. Mas talvez fosse, nalguns aspectos, já tarde de
mais.

Do ponto de vista filosófico e metodológico, Newton surge como a


antítese de Galileu. Este mantivera rigorosamente a cisão entre ciência e
fé. Aquele esforçou-se, ao longo de toda a sua vida, por apresentar a
ciência como prova da fé. O pisano (e Descartes mais ainda) confiou de
tal maneira no poder da razão que equiparou o conhecimento intensivo do
homem ao divino, enquanto Descartes fazia o mesmo em relação à
vontade. Newton, fiel à essência do protestantismo, rebaixou de tal forma
o homem que o condenou a viver num mundo de imagens e de sombras,
deixando o conhecimento das próprias coisas para Deus. Por isso, insistiu
no carácter empírico e indutivo do conhecimento, face ao racionalismo
matematizante continental.

Ao homem iluminista interessou de imediato o carácter


impressionantemente unitário e estruturado da mecânica newtoniana, e não
os seus interesses teológicos, dominantes, em última análise. Assim,
combinando o ideal matemático e omnicompreensivo de Descartes com a
prudência empírica e o rigor experimental de Newton, foi-se formando uma
imagem da natureza, operante de algum modo nos nossos dias, e cujo
melhor expoente é talvez a audaz História Geral da Natureza, de
Immanuel Kant (1755).
Seriam estas as linhas essenciais do conceito de natureza no Iluminismo:

a) A natureza não é tanto um conjunto de fenómenos (natureza


materialmente considerada) quanto um sistema de leis (natureza
formalmente considerada) regido pelos seguintes princípios:

1) Regularidade: natura nihil agit frustra (a natureza nada faz em vão).


2) Continuidade: natura non facit saltus (a natureza não dá saltos).
3) Conservação: na natureza nada se cria ou se destrói, apenas se
transforma (massa, quantidade de movimento, energia); princípio
expressamente formulado em toda a sua generalidade por Lavoisier.
4) Mínimo esforço: natura agit semper per vias simplices (a natureza
actua sempre pelo caminho mais fácil). Princípio formulado por
Maupertuis.

b) A natureza é uma estrutura de tal modo consistente que o


conhecimento das suas leis permite-nos predizer o futuro e actuar em
consequência (daí que a ideia iluminista de natureza esteja na base da
revolução científico-técnica do século XIX). O tempo possui um valor
secundário; é reversível relativamente ao espaço infinito.

c) A natureza é autónoma: não necessita de Deus para ser explicada. O


próprio Newton suspeitara desta transformação, que se daria mesmo contra
a sua vontade: «Um Deus sem domínio, sem providência e sem causas
finais, nada mais é do que fatalidade e natureza.» (Principia Liv. III.)
d) As leis da natureza configuram o reino da necessidade. A liberdade
não existe; a ilusão de ser livre deve-se a um desconhecimento das variáveis
intervenientes: determinismo.

e) Todo o existente se pode reduzir ao âmbito mecânico do físico-


químico: reducionismo fisicista. No entanto, e face ao cartesianismo, trata-
se de um mundo vivo, um mundo de forças em interacção (vis viva). A
massa é limite entre duas forças (vis inertiae, vis impressa): energetismo.

DA MATÉRIA A DEUS
É eterno e infinito, omnipotente e omnisciente, isto é, perdura desde a
eternidade até à eternidade e está presente desde o infinito até ao infinito.
Rege tudo e conhece tudo quanto é ou pode ser feito. Não é eternidade e
infinitude mas sim eterno e infinito; não é duração ou espaço, mas dura e
está presente. Dura sempre e está presente em todas as e dá origem à
duração e ao espaço. Como cada partícula de espaço é sempre, e como
cada momento indivisível de duração é ubíquo, O criador e senhor de
todas as coisas nunca poderá ser nunca nem nenhuma parte. A alma
apercebe-se das coisas em tempos diferentes e com diversos sentidos e
órgãos de movimento, mas é sempre a mesma pessoa indivisível. Na
duração há partes sucessivas e no espaço há partes coexistentes, mas nem
um nem outro se encontram na pessoa do homem ou no seu princípio
pensante, e muito menos na substância pensante de Deus. Como coisa
dotada de percepção, o homem é uno e idêntico consigo mesmo durante
toda a sua vida e em cada um dos seus órgãos sensoriais. Deus é uno e o
mesmo Deus sempre e em todas as partes. A sua omnipresença não é
virtual mas também substancial, pois a virtude não existe sem substância.
Todas as coisas contidas nele e são movidas por ele, mas não se afectam
mutuamente. Deus não sofre qualquer alteração pelo movimento dos
corpos e os corpos não encontram resistência na ubiquidade de Deus.
Assim, há que reconhecer que existe necessariamente um Deus supremo e
que, pela mesma necessidade, existe sempre e em todas as partes.
Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural.

3.5. Do teísmo ao sensacionismo

Os próprios progressos da ciência tão solidamente estabelecidos por


Newton foram tornando cada vez mais desnecessária a intervenção de Deus
no âmbito do natural. A descoberta da energia por Christian Huyghens (1/2
mv2) e da vis viva por Leibniz (mv2), face à inerte quantidade do movimento
cartesiano (mv), que Newton não pôde nem quis superar, os progressos em
biologia e química e o domínio da energia eléctrica (a garrafa de Leyden)
configuraram nos finais do século XVIII um mundo no qual o melhor
sucessor de Newton, Laplace, podia responder a Napoleão que não havia
introduzido Deus no seu sistema por não ter necessidade dessa «hipótese
inútil».
Mas a desdivinização do mundo arrastava necessariamente a queda da
razão como sujeito cognoscente: a mente humana, privada da sua
comparação com Deus, fica fora do sistema mecânico. Ou então (e este é o
grande paradoxo), é o próprio sistema mecânico que se mentaliza, que se
torna psiquismo. Com efeito, a clássica cisão entre qualidades primárias e
secundárias passava pela primazia da razão matemática, reflexo da divina.
Eliminados os dois tipos de razão, limitado o homem aos meros fenómenos,
cai também a distinção entre qualidades: ambas são objectivas, ou
subjectivas, como se queira. O homem é uma colecção de sensações.
Eliminados o espaço e o tempo absolutos, não há outro remédio senão o
humano. Mas então é impossível distinguir entre coisas e sensações das
coisas: é o sensacionismo de Lamettrie (L’Homme Machine, 1748) e de
Condillac (Traité des Sensations, 1754).
As saídas deste «cerco psíquico» deram origem ao mundo actual.
Encontramos duas explícitas e outra subtilmente tortuosa. A primeira, o
transcendentalismo kantiano, que outorga francamente à razão a
actividade que Newton reservava a Deus. A segunda, o materialismo
mecanicista, chefiado neste domínio por Georges Cabanis (1757-1808) e
seu famoso lema: Les nerfs: voilà tout l’homme (os nervos: eis o homem).
A terceira saída retoma o voluntarismo newtoniano e projecta-o no
homem. Se este, diz Condillac, não é explicável como unidade mediante
uma razão sintética, reconhecer-se-á como organismo mediante os seus
desejos e impulsos. É uma linha que, através do romantismo, chega até
Nietzsche e Freud.
4. HOMEM E DEUS: O DEÍSMO E A
RELIGIÃO NATURAL

O Iluminismo apresenta-se com frequência como um movimento


antiteológico e anti-religioso. Esta interpretação precisa de ser
caracterizada. Com efeito, a secularização que, paralelamente ao
pensamento moderno desde o seu início, ela prossegue e radicaliza, mantém
contudo o reconhecimento do divino, bem como uma peculiar interpretação
da religião. Para uma adequada compreensão do problema, convém ter em
conta as duas observações seguintes:

a) Em primeiro lugar, deve ter-se em consideração a situação em que


surge a reflexão iluminista. Essa situação encontra-se definida pela:

1. explicação científico-mecânica da natureza, com a consequente


exclusão da finalidade na ordem natural-física;
2. experiência histórica da religião revelada, e o problema da
justificação do homem diante de Deus;
3. Realidade do mal e pelo problema que este coloca especialmente em
relação com a ideia de uma finalidade na natureza, estabelecida
providentemente por um Deus bom.

b) Convém ter presente em segundo lugar, a atitude tanto do


Renascimento como da Reforma a respeito da religião. O impulso e o
espírito religioso da Reforma, que se alimenta da crise da razão e do
voluntarismo do século XIV, afirma a impotência da natureza, a radical
debilidade humana como sequela do pecado original e a absoluta
necessidade da graça divina. Neste sentido, não é mais do que o exagero
expresso do augustinismo. A religião humanista do Renascimento, ao
contrário, crê na total auto-suficiência da razão: o homem pode salvar-se
por si mesmo. Neste sentido, o Renascimento destila pelagianismo.
(Recorde-se, a propósito, o exposto nos capítulos quarto e sétimo e aprecie-
se a linha de continuidade entre as diversas filosofias).

DAS ORIGENS DA RELIGIÃO NATURAL


Mesmo quando a investigação relativa à religião tem grande
relevância, há duas questões particulares que põem à prova a nossa
reflexão, a saber: a questão que se refere ao seu fundamento racional e a
que se refere às origens na natureza humana.
A primeira questão, que é a mais importante, admite felizmente a
solução mais óbvia ou, pelo menos, a mais clara. A organização da
natureza revela-nos um autor inteligente e nenhum investigador racional,
após séria reflexão, pode duvidar por um momento sequer dos princípios
primários do monoteísmo e da religião autênticos. Mas a questão relativa
às origens da religião na natureza humana já oferece dificuldades
maiores. A crença num poder invisível e inteligente difundiu-se
amplamente entre a raça humana, em todos os lugares e em todas as
épocas. Mas a sua universalidade talvez só tenha existido a fim de não
admitir nenhuma excepção, pois não foi de modo algum uniforme nas
ideias que sugeriu. A acreditar em certos viajantes e historiadores, foram
descobertos povos que não tinham qualquer sentimento religioso. Nunca
dois povos e dificilmente dois homens coincidiram com exactidão nos
mesmos sentimentos. Por conseguinte, poderia parecer que este
preconceito não resulta de um instinto original ou de uma impressão
primária da natureza – tal como acontece com o amor-próprio, a atracção
entre os sexos, o amor pelos filhos, a gratidão ou o ressentimento –, pois
já se comprovou que tais instintos são absolutamente universais em todos
os povos e épocas e perseguem sempre um objecto inflexivelmente. Os
primeiros princípios religiosos devem ser secundários, a tal ponto que
podem ser facilmente pervertidos por diversos acidentes, já que, por um
extraordinário conjunto de circunstâncias, em muitos casos certas causas
e até o seu exercício podem ser absolutamente impedidos.
Hume, História da Religião Natural.

Pois bem, o Iluminismo vai seguir a senda traçada pela experiência


renascentista, pois só nela é possível a realização do projecto iluminista.

4.1. Redução do cristianismo à razão: Locke

O Iluminismo pretende levar a cabo uma fundamentação filosófica do


cristianismo e da fé, de modo que a revelação esteja em consonância com o
que a mera e única razão natural pode estabelecer e reconhecer.
A atitude de Locke é clara e modelar. «A razão» – escreve na obra
Ensaio sobre o Entendimento Humano – «tem de ser o nosso juiz em última
instância e o nosso guia em tudo.» (Livro IV, cap. XIX, §14.) Portanto,
também na religião. E no entanto, «havendo os homens sido imbuídos na
opinião de que não devem consultar a razão em matérias religiosas (...)
deram rédea solta à fantasia e às suas naturais inclinações supersticiosas»
(o.c., Liv. IV, cap. XVII. §11). A religião, segundo Locke, pertence
intimamente ao ser do homem, ao ponto de afirmar que «a religião é o que
mais nos deveria distinguir dos animais e o que mais peculiarmente nos
deveria elevar como criaturas racionais, acima dos brutos» (ibidem). Ora, se
quisermos acabar com a superstição, como exige o projecto iluminista, e se
além disso, em particular, pretendermos fazer luz sobre a natureza da
religião, é preciso que a verdadeira religião seja radical: enquanto não nos
guiarmos pela razão «disputaremos em vão, e em vão tentaremos
convencer-nos mutuamente em assuntos de religião» (o.c., Livro IV, cap.
XVIII, §1).
A religião é pois racional, num duplo sentido. Por um lado, na medida
em que o seu conteúdo se deixa compreender pela razão, entendendo aqui
«razão» como «a descoberta da certeza ou da probabilidade das proposições
ou das verdades que a mente logra alcançar por meio da dedução partindo
daquelas ideias que adquire pelo uso das suas faculdades naturais, a saber: a
sensação ou a reflexão» (ibidem). A racionalidade da religião refere-se pois,
neste primeiro aspecto, ao modo do seu conhecimento, à certeza que é
possível ter a respeito da religião. Assim, deve estar submetida às condições
que a razão impõe em qualquer outro campo de questões, à razão analítica.
Mas além disso, por outro lado, a religião é racional na medida em que não
só pertence intimamente ao ser natural-racional do homem, como se indicou
mais acima, mas na medida em que «a razão é a revelação natural, por onde
o eterno Pai da luz e manancial de todo o conhecimento comunica aos
homens essa porção de verdade que colocou ao alcance de suas faculdades
naturais» (o.c., livro IV, cap. XIX. §4).
É esta pertença, no preciso sentido assinalado, da religião à natureza
racional do homem que melhor prova a sua verdade, e que a faz estar a
salvo e acima da historicidade das diferentes religiões positivas e das suas
recíprocas e intermináveis disputas, tão presentes no século das luzes e nas
guerras de religião. A invariabilidade da «natureza humana» e a sua
universalidade, o facto de ser a mesma em todos os homens e épocas,
mostra e justifica a verdade e importância da religião natural ou racional.
Pode continuar-se a supor e a admitir que a revelação é supra ou extra-
racional mas isto, que é o importante por agora, não contradiz a razão.
Mas devemos dar um passo mais: tendo a revelação de estar em
concordância com a razão, a razão natural constitui-se em juiz que decide
do que pretende passar por revelação. A razão converte-se no critério da
revelação. Com isso, em verdade só poderá considerar-se como religião a
emanada da razão, isto é, a religião natural.
A religião natural estará pois contra os milagres e as profecias, contra os
ritos e os dogmas. Fará uma crítica dura e implacável da religião positiva.
Por outro lado, enquanto reduzida aos princípios da mera razão, não haverá
diferença entre a religião e a moral. A religião consiste no conhecimento
dos deveres ou mandatos morais, e a sua actividade ou exteriorização não
será mais do que a acção meramente ética. Voltaire disse-o de forma precisa
e paradigmática: «Entendo por religião natural os princípios da moralidade
comuns à espécie humana».

4.2. Religião natural e deísmo

O conceito de religião natural está em estreita relação com o deísmo. Na


verdade, a disputa entre religião natural e religião revelada não se pode
entender à margem do deísmo. Para uma clara compreensão do que este
significa, convém distingui-lo do ateísmo e, sobretudo, do teísmo.

Voltaire
Nasce em Paris em 1694. Morre em 1778. A figura de Voltaire é talvez a mais característica
do Iluminismo francês, embora a sua imagem tenha sido bastante deformada como símbolo e
protótipo da descrença anticristã do século. Voltaire foi personalidade complexa, contraditória,
apaixonada e inconformista e, por isso, polémica: honrada em alguns momentos da sua vida até
à exaltação e injuriada noutros até ao desprezo. A sua vida, longa e agitada, provou todas as
experiências de um homem intelectual e público: desde o cárcere na Bastilha (1717) e o exílio
na Inglaterra (1726-1729), até às mais fervorosas homenagens populares. A paixão de Voltaire é
a recusa de todo o obscurantismo, realizada no meio de um profundo pessimismo acerca do
homem, acerca dessa constante estupidez que se comprova através da história. Voltaire discute
azedamente sobre este ponto com Rousseau, embora tenham muitas coisas em comum.
Não é este o melhor dos mundos possíveis: o mal está presente na história e sem esperança
de erradicação plena. No entanto, o único remédio que se pode e deve opor a este facto é a sã
razão esclarecedora e clarificadora.
O génio inquieto e curioso de Voltaire produziu obras em todo o tipo de géneros, literários:
tragédias, novelas, poemas, tratados de física e de filosofia, de história... Importa destacar entre
os seus escritos: Cartas sobre os Ingleses ou Cartas Filosóficas (1734), Metafísica de Newton
ou paralelo entre as Opiniões de Newton e Leibniz (1740), Dicionário Filosófico Manual
(1764), O Filósofo Ignorante (1776), Ensaio sobre os Costumes e Espírito das Nações (1740),
Filosofia da História (1765).
A) Face ao ateísmo, que afirma a inexistência de Deus, tanto o deísmo
como o teísmo coincidem em afirmar a existência de Deus. Ora bem, o
teísmo não só estabelece a existência de Deus como julga poder estabelecer
a sua essência por meio da razão e por analogia com a natureza e as
propriedades ou predicados do homem; assim, concebe Deus como autor
livre do mundo e do homem com os quais mantém uma relação previdente:
Deus como providência. Portanto, o teísmo pensa Deus como um ser
pessoal. «O teísmo autêntico» – comentará Hume nos seus Diálogos sobre
a Religião Natural – «faz de nós produtos de um ser perfeitamente bom,
sábio e poderoso, de um ser que nos criou para que fôssemos felizes, o qual,
ao ter implantado em nós um incomensurável desejo de bem, prolongará a
nossa existência por toda a eternidade.»
O teísmo encerra numerosos pressupostos, alguns dos quais vamos
recordar numa simples enumeração, pois já foram de alguma maneira
tratados noutros capítulos:

a) Um uso e um poder transcendente da razão, que lhe permite


sobrepor-se ao mundo;
b) Passagem da natureza a Deus mediante uma prova racional da sua
existência, tendo aliás especial relevância a prova físico-teológica
formulada na ideia de que existe um fim na natureza e, por conseguinte,
uma inteligência suprema ordenadora;
c) O optimismo teológico, na medida em que o mundo é o melhor dos
mundos possíveis.

Ora bem, se a este três pontos contrapusermos: 1) o carácter empírico,


analítico e imanente da razão esclarecida; 2) a explicação científico-
mecânica da natureza e a correspondente exclusão de uma finalidade
natural; 3) a difícil compatibilidade do providencialismo e do optimismo
teológico do teísmo com a realidade do mal (palpável de um modo tão cruel
como no famoso terramoto de Lisboa) veremos as tremendas dificuldades
em que se encontraria o teísmo, pelo menos na forma como o pensaram os
filósofos iluministas.

B) O deísmo, cuja estreita relação com a religião natural não devemos


esquecer, exprime as exigências da razão esclarecida e tenta resolver os
problemas do teísmo, ao mesmo tempo que mantém a crença na existência
de Deus. O deísmo foi cunhado no seu sentido geral e na sua funcionalidade
pelo pensamento iluminista inglês. John Toland escreveu uma obra cujo
título é sumamente expressivo – Cristianismo não Misterioso – e Mattews
Tindel quis mostrar no seu livro O Cristianismo tão Velho como a Criação
o carácter natural de toda a revelação. É porém o francês Voltaire quem
melhor expõe as teses gerais do deísmo, cujo sentido e alcance se captará
com a sua simples enumeração:

a) Deus existe e é autor do mundo.

b) Não é possível determinar a natureza e atributos de Deus.

c) A criação do mundo por Deus não é fruto de um acto livre, mas


necessário, pelo que Deus não é responsável do mal.

d) Uma vez criado o mundo, Deus não volta a intervir nele. Negação,
pois, do conceito de providência divina.

e) O mal, se tal é possível, só é explicável a partir do homem; a este


incumbe tentar anulá-lo.

O deísmo assim considerado e reduzido a estas teses, baseia-se na razão


teórica e obedece a uma posição estritamente intelectual. Por outro lado, o
deísmo, na sua relação com a religião natural, entendida esta como o
reconhecimento dos mandatos morais, baseia-se na razão prática. É
precisamente a debilitação e, em última análise, a negação do poder
teológico e transcendente da razão teórica que acabará por deixar o deísmo
reduzido ao seu aspecto «moralista» e como «religião natural», uma e outra
edificadas sobre o conceito de «natureza humana».

4.3. Negação do deísmo: Hume

Como acabamos de ver, a concepção «deísta» de Deus e a «religião


natural» baseiam-se na ideia de uma «natureza humana», «racional». Pois
bem, de carácter a dissolução de semelhante «natureza humana racional»
virá negar tanto o deísmo como a religião natural, para impor uma nova
atitude ante o problema de Deus e oferecer uma nova explicação do facto
religioso. Tal obra foi levada a cabo por Hume.
Já vimos, na teoria do conhecimento de Hume, a importância
fundamental atribuída à experiência. Com tal teoria é obviamente negado
todo o presumível uso supra-empírico do conhecer. Mas que dizer da
«natureza humana racional» e da sua pretensão de ser base e explicação da
religião? Pois simplesmente que não existe. O que se tem vindo a
considerar como tal não é, em verdade e em última análise, mais do que um
complexo de impulsos, instintos e paixões, ordenados e fixados de certa
maneira por alguns princípios, cuja natureza é em definitivo inexplicável.
«A razão» – escreve Hume nos já citados Diálogos sobre a Religião
Natural – «é, na sua fábrica e estrutura internas, algo tão pouco conhecido
por nós como o instinto ou a vegetação; e quiçá, até a vaga e indeterminada
palavra natureza, à qual o homem comum tudo refere, não seja também, no
fundo, explicável» (Parte VII).
Mas então a que fica reduzida a religião e como explicá-la? A religião
não tem o seu princípio na razão, nem é possível encontrar para ela um
fundamento e explicação racional. Surge dos sentimentos e alimenta-se do
temor, da ignorância e do medo do desconhecido. Tem pois uma base
psicológica, e quiçá patológica. As crenças e os princípios religiosos não
são, escreve em História Natural da Religião, «mais do que sonhos de
homens enfermos» (cap. XV). Assim, passou-se de uma religião «natural»,
fundada e exigida por uma «natureza humana racional», a uma explicação
ou «história natural da religião», onde o «natural» significa um conjunto de
instintos e sentimentos, cujo precipitado seria a religião. Em qualquer caso,
no entender de Hume, não se pode dar uma resposta negativa taxativa e
categórica ao problema da religião e de Deus. «O todo constitui um
intrincado problema, um enigma, um mistério inexplicável. Dúvida,
incerteza e suspensão do juízo surgem como único resultado da nossa mais
esmerada investigação sobre o tema» (ibidem).
Eis-nos perante o cepticismo de Hume, que é um repto à própria razão e
que Kant aceitará, pois o cepticismo, dirá o filósofo alemão, pode bem ser
um lugar de descanso (Ruheplatz) para a razão após a dura luta contra o
dogmatismo, mas de modo algum um lugar para residir e habitar
(Wohnplatz) (Crítica da Razão Pura, II. Teoria transcendental do método.
Cap. I.).
5. HOMEM E SOCIEDADE (ROUSSEAU)

Como acentuámos já, o projecto do Iluminismo podia sintetizar-se na


ideia de uma ciência do homem e no exercício de uma razão autónoma e
secularizada. O pensamento iluminista acreditou que sobre estas bases seria
possível um contínuo progresso no desenvolvimento e a realização da
«natureza racional do homem». A sociedade e a história constituem o
enquadramento deste progresso.
Contra este talvez excessivo optimismo no progresso insurge-se a dura
realidade do mal, que vinha também pôr em causa a bondade e providência
de Deus. O deísmo tentou solucionar, do modo que já conhecemos, a
responsabilidade de Deus relativamente ao mal. Por outro lado, o
«naturalismo» da razão e a «bondade» do ser humano (em oposição à ideia
do homem como uma «natureza caída» afectada pelo pecado original)
tornam difícil a explicação do mal, assim como tornavam desnecessária a
graça divina, pois é o próprio homem e não Deus quem deve proporcionar-
se a salvação, a qual não se realizará num além mas no aquém da sociedade
e da história, em consonância com o espírito secular.
Do que acabamos de dizer segue-se que o problema da sociedade
adquire uma singular importância. Não apenas na medida em que
questões como a estruturação da ordem social, da origem e natureza da
sociedade, da teoria da organização política, etc., são questões que com
outras pertencem a essa procurada «ciência do homem». Mas também, e
com especial relevância, na medida em que na sociedade e na história (no
social, numa palavra) confluem os temas não resolvidos, procurando na
sociedade a sua solução e por sua vez recebendo da sociedade a sua nova
configuração.
Assim, a sociedade vem a ser o domínio para o qual é transposto o
problema da teodiceia (a tentativa da justificação de Deus relativamente ao
facto do mal) e da origem do mal; mas também só na sociedade pode
encontrar-se e alcançar-se a solução do mal moral. E tudo isso em relação
com a questão sobre a natureza do homem, não só porque a origem, a
natureza e o significado da sociedade estão em estreita relação com a
natureza do homem, mas também na medida em que o sentido do social
(em sentido lato, poderia equivaler ao «cultural») virá oferecer uma
interpretação da cultura e do seu significado relativamente à «natureza» ou
ao «natural».

Rousseau
(1712-1778). Nasce em Genebra. Jean-Jacques Rousseau é uma das figuras mais grandiosas
do Iluminismo: talvez a que mais ampla influência exerceu na consciência intelectual posterior.
As suas Confissões, bem como as Fantasias de um passeante solitário, ambas publicadas
postumamente, dão-nos a medida de um pensamento acutilante, ansioso por penetrar nas
profundezas do homem e da sua natureza. O Discurso sobre as Ciências e as Artes, escrito
quando contava 38 anos, marca o seu distanciamento da corrente enciclopedista e à sua posição
básica e radical, «revolucionária» no ajuste da problemática iluminista. A cultura, as ciências e
as artes foram de facto o meio fundamental de degeneração e de obscurantismo do homem
natural. Tal denúncia é, ao mesmo tempo, uma reivindicação do homem natural. Mas o «homem
natural» rousseauniano configura-se na verdade não tanto como a de um regresso, mas mais
como a «ideia reguladora» de um juízo sempre necessário sobre a cultura e a história. A
influência de Rosseau em pensadores geniais, posteriores a ele – como será o caso de Kant – foi
extraordinária.
Para além das já citadas, Rousseau publicou outras obras de igual interesse:
O Contrato Social; Discurso sobre a Origem e Fundamento da Desigualdade entre os
Homens, A Nova Heloísa. Esta última, publicada em 1762, foi rotulada de ímpia e o escândalo
obrigou-o a fugir de França, embora tenha voltado de novo a Paris após alguns anos de exílio.

Talvez o filósofo iluminista que mais profundamente pensou sobre estes


temas e sobre a sua interconexão, e que mais influenciou a posteridade
tenha sido Rousseau. Kant assinalou com clareza o seu significado nuclear
e modelar relativamente à natureza do homem e da sociedade: «Newton foi
o primeiro a ver a ordem e a regularidade unidas a uma grande simplicidade
onde antes dele não havia senão desordem e uma mal ponderada
multiplicidade e, desde então, os cometas caminham por vias geométricas.
Rousseau foi o primeiro a descobrir, sob a multiplicidade das supostas
formas humanas, a natureza recôndita do homem e a lei oculta segundo a
qual a Providência fica justificada com a sua observância».
O ponto de partida de Rousseau é constituído por uma dura denúncia do
artificialismo da vida social e uma crítica da civilização, interpretada
sempre, e sobretudo pelo Iluminismo, como progresso. A crítica propõe-se
clarificar: a) se o progresso na cultura, ciências e artes implica um
progresso humano, um progresso na moralidade e felicidade do homem; b)
se o progresso, que a organização social moderna (a chamada sociedade
burguesa) parece representar, permite fazer do homem um ser unitário, total
e livre.
A resposta de Rousseau às duas questões é negativa. No início do
Emílio, escreve: «Tudo está bem ao sair das mãos do Autor das coisas; tudo
degenera nas mãos dos homens». E no Contrato Social: «O homem nasce
livre, mas por toda a parte se encontra agrilhoado». Importa reparar, não
tanto no carácter negativo da resposta (embora seja importante), mas no
sentido preciso da sua intenção e alcance, pois de modo algum significa,
como veremos, rejeição indiferenciada da cultura e da sociedade, mas, ao
contrário, a rejeição da ordem social existente, da ideia vigente de cultura e
do indiscriminado optimismo no progresso. A propósito, partindo da
organização fáctica da sociedade, é preciso distinguir e esclarecer: a) se a
sociedade é por essência má o social vem por isso a prejudicar o natural,
isto é, a «natureza» do homem; b) se a estruturação fáctica actual da
sociedade é deficiente e injusta. Para Rousseau, a questão reside neste
último ponto.
O problema consiste pois em explicar como a sociedade se tornou
deficiente e injusta e como deveria ser reestruturada e ambas as questões
em estreita relação com a «natureza» do homem, já que é a partir desta que
segundo Rosseau, deve explicar-se e compreender-se a sociedade. Com este
propósito, Rousseau distingue entre estado de natureza (estado natural) e
estado social, a fim de «distinguir o que há de originário e o que há de
artificial na natureza actual do homem», pois «enquanto não conhecermos o
homem natural é inútil pretender determinar a lei que recebeu ou a que
melhor convém ao seu estado» (Discurso sobre a Origem da Desigualdade
entre os Homens, prólogo).
O estado de natureza designa o «suposto» estado ou situação do
homem anteriormente à sua vida em sociedade, estado no qual o homem (o
«homem natural») seria bom e feliz, independente e livre, e guiado pelo são
«amor de si». Ao contrário, o estado social designa a real situação presente
na qual ao viver em sociedade (em determinada ordem e estrutura social) o
homem se torna mau, é movido pelo «amor-próprio» ou insaciável egoísmo
(torna-se «homem artificial») e onde reinam a injustiça, a opressão e a falta
de uma autêntica liberdade. O problema anteriormente indicado reduz-se
pois a compreender a passagem do estado de natureza ao «estado social».
É muito importante notar que o «estado de natureza» (e os conceitos
correlativos de «homem natural», «liberdade natural», etc.) não designa
uma situação fáctica e empírica, um facto histórico que se considere com
nostalgia e ao qual se desejaria regressar. Pois o estado natural, escreve na
obra citada, é «um estado que já não existe, que talvez nunca tenha existido,
que provavelmente nunca existirá, e do qual, no entanto, é necessário ter
conceitos adequados para julgar com justiça o nosso estado presente».
O «estado de natureza» (e seus conceitos correlativos) é pois uma
categoria sociopolítica com a qual e a partir da qual se poderá compreender
a génese e a condição de possibilidade da sociedade, analisar a sua estrutura
a partir desse fundamento, e relativamente a esse ideal de natureza e
liberdade humanas ajuizar e valorizar o estado presente e habilitar
teoricamente a reestruturação de uma nova ordem social que permita e
realize o que o homem terá de ser por exigência da sua «natureza».
Por conseguinte, a crítica da injusta ordem social e da cultura não
significa em Rousseau um retorno a um estado natural, anárquico e bárbaro,
mas a transformação de uma ordem social estabelecida pela força (Hobbes)
e vivida de forma heterónoma, numa ordem estabelecida em igualdade e
liberdade e vivida em autonomia.
Pois bem, como é possível pensar ou estabelecer a passagem do «estado
natural» ao «estado social»? Ou, o que é o mesmo, como determinar a
origem da sociedade e o laço, vínculo ou contrato em que se funda e
desenvolve a vida social e política? São modelares duas explicações de tal
passagem: a de Hobbes (1588-1679) e a de Rousseau.
Em oposição a Grócio, que via no homem um «instinto social» e na
sociedade a simples consequência desta «natural disposição social do
homem», tanto Hobbes como Rousseau crêem que o homem não é social
por natureza verificando-se a prioridade do indivíduo sobre a comunidade.
Porém, são diferentes as explicações que um e outro apresentam com base
na ideia que cada um tinha, do «homem natural» e do «estado de natureza»,
bem como do ideal de vínculo social e de ordem política em conexão com
as respectivas concepções da natureza do homem.

DA CULTURA, DO PROGRESSO E DO HOMEM «NATURAL»


De todos os conhecimentos humanos, o mais útil e o menos avançado
parece-me ser o do homem; aliás, atrevo-me a dizer que até a inscrição do
templo de Delfos continha um preceito mais importante e mais difícil que
todos os livros dos moralistas. Por isso julgo que o tema deste Discurso é
uma das questões mais interessantes que a filosofia pode proporcionar e,
infelizmente para nós, é também uma das mais espinhosas para os
filósofos resolverem. Como é que se pode conhecer a fonte da
desigualdade entre os homens se estes não começarem pelo conhecimento
deles mesmos? E como é que o homem conseguirá ver-se tal qual a
natureza o formou, havendo tantas mudanças que o decurso dos tempos e
das coisas produziu na sua constituição original? E como conseguirá ele
separar o que corresponde ao seu próprio ser daquilo que foi acrescentado
ou mudado no seu estado primitivo pelas circunstâncias e pelos seus
progressos? A alma humana assemelha-se à estátua de Glauco que foi de
tal modo desfigurada pelo tempo, pelo mar e pelas tempestades que mais
parecia um animal feroz do que um deus. Também a alma foi
constantemente aletrada no seio da sociedade por inúmeras causas, pela
aquisição de uma multitude de conhecimentos e de erros, pelas mudanças
ocorridas na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões;
por assim dizer, alterou tanto a sua aparência que é quase irreconhecível.
E assim, em vez de um ser que actua sempre segundo princípios certos e
invariáveis, em vez dessa simplicidade celestial e majestosa com que o
seu amor a havia marcado, agora encontramos apenas a disforme
oposição entre a paixão que julga raciocinar e a razão em delírio.
O mais cruel, todavia, é que todos os progressos da espécie humana a
afastam cada vez mais do seu estado primitivo; quantos mais
conhecimentos novos acumulamos, mais nos privamos dos meios de
adquirir o mais importante: e assim, num certo sentido, à força de
estudarmos o homem afastamo-nos da possibilidade de o conhecer.
Rosseau, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, in O
Contrato Social

Para Hobbes o homem é o lobo do homem ( homo homini lupus) e o


estado natural é um estado de violência e guerra de todos contra todos,
considerando que só uma força superior e a submissão podem estabelecer o
vínculo ou contrato entre os homens. O vínculo é pois um contrato de
submissão e de alienação, pelo que, em rigor, não se pode considerar um
«contrato», já que ao ser uma contratação pela força, a ordem social e
política assim estabelecida carece de justiça.
Para Rousseau, semelhante forma de contrato imposto por coacção, nega
a liberdade «natural» do homem e não institucionaliza nem permite uma
adequada liberdade civil e política. O verdadeiro vínculo social deve ser
pois baseado num contrato livre. Mas isso não significa de modo algum
que na ordem social e política estabelecida por esse contrato não haja nem
tenha de haver submissão e obrigatoriedade da lei. O carácter genuíno do
contrato reside, pelo contrário, precisamente no sentido da submissão à lei
em liberdade. Com efeito, «o problema fundamental ao qual o contrato
social dá solução» – escreve Rousseau – é «encontrar uma forma de
associação (...) pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a
si próprio e permaneça tão livre como antes» (O Contrato Social, livro I,
cap. VI).
No contrato social, pelo qual se passa de uma liberdade «natural» a uma
liberdade «civil e política», dá-se uma alienação voluntária e livre, uma
despossessão do que pertence ao «homem natural»; não em favor de uma
vontade individual, mas em favor de toda a comunidade, vindo assim a criar
uma união social perfeita, cuja expressão e princípio director é aquilo a que
Rousseau chama a «vontade geral».
Os homens não se submetem senão à lei que eles mesmos se deram;
livre e racionalmente. «Ao dar-se cada um a todos os outros» – escreve
Rousseau –, «não se dá a ninguém em particular, e como não existe nenhum
membro da comunidade sobre o qual não se adquira o mesmo direito que
nos permitimos sobre nós próprios, assim cada um recebe o que entrega na
mesma medida, recebendo ao mesmo tempo uma força maior para se
afirmar a si próprio e se manter no que é e no que tem» (O Contrato Social,
livro I, cap. VI). E com isso passaram de um estado natural e de
necessidade a um estado baseado na razão e fruto da liberdade, estando tal
comunidade social muito acima do «estado de natureza».
Nesta nova ordem social racional e livre será possível erradicar o mal
moral e a injustiça e realizar a perfectibilidade e felicidade do homem: a sua
plena realização e salvação, como fruto da acção que a sua razão prática
leva a cabo.
A consideração reflexiva sobre a natureza e princípios desta razão
prática, orientada para uma clarificação racional da acção moral do homem,
será uma das grandes tarefas a que Kant se proporá. Assim, o filósofo
alemão será a expressão mais «filosófica» do amplo movimento cultural
que foi o Iluminismo.
12. O IDEALISMO TRANSCENDENTAL DE
KANT

INTRODUÇÃO

O pensamento de Kant representa um desígnio vigoroso e original de


superar, sintetizando-as, as duas correntes filosóficas fundamentais da
modernidade: o racionalismo e o empirismo. A obra de Kant não se limita
no entanto a essa síntese superadora, pois nela confluem todos os fios mais
importantes da trama da época moderna. Pode portanto ser considerada
como o apogeu filosófico do século XVIII.
No capítulo anterior fizemos várias referências prospectivas ao
pensamento de Kant. Com efeito, este não pode ser adequadamente
compreendido a não ser na perspectiva complexa dos interesses e ideias do
Iluminismo.
Neste capítulo ocupar-nos-emos da filosofia de Kant, atendendo a quatro
núcleos temáticos importantes: em primeiro lugar, a concepção kantiana da
filosofia e o sentido que adquire o empreendimento de realizar uma crítica
da razão em conexão com os interesses filosóficos do Iluminismo; em
segundo lugar, ocupar-nos-emos da crítica a que a Kant submete a razão
teórica na sua relação essencial com o conhecimento da natureza; em
terceiro lugar, ocupar-nos-emos da razão prática na sua relação essencial
com o conhecimento moral e com a tarefa moral; por último, procuraremos
dar uma visão totalizante do pensamento kantiano através da sua concepção
da religião e da história.
Este capítulo consta das seguintes partes:
1. Sentido de uma crítica da razão. A ideia de filosofia.
2. A natureza e a razão teórica.
3. A liberdade e a tarefa da razão prática.
4. História e religião.
1. SENTIDO DE UMA CRÍTICA DA RAZÃO. A
IDEIA DE FILOSOFIA

Como Descartes e Espinosa, como Locke e Hume, Kant é por vezes


considerado exclusivamente como um teórico do conhecimento. Esta
interpretação da filosofia kantiana é unilateral e, por conseguinte, pode
conduzir a uma visão deformada e superficial da figura e importância de
Kant. De facto, o seu pensamento é motivado pela situação específica em
que se encontram a filosofia e a sociedade do seu tempo e por uma
exigência de clarificação do homem e da sociedade, no contexto histórico-
social – cruzamento antagónico de alternativas e de caminhos – do
Iluminismo.
Esta exigência de clarificação, assumida pela filosofia kantiana como
tarefa principal, é de tal modo importante que só a partir dela é possível
determinar o sentido e o alcance da figura de Kant como teórico do
conhecimento e como filósofo da ciência.
O cruzamento antagónico de caminhos que Kant vive e experimenta tem
origem numa diversidade de interpretações da razão, ponto de partida do
pensamento moderno, a partir do qual se determinam: a) o trabalho
científico; b) a acção moral; c) a ordenação da sociedade, e d) o projecto
histórico em que a sociedade se realiza.

1.1. Necessidade de uma crítica da razão


A diversidade de interpretações da razão, é vivida agudamente por Kant.
A expressão «que significa orientar-se no pensamento» (título de um dos
seus opúsculos mais importantes) encerra a exigência e o sentido de
filosofar para o pensador de Königsberg. A tarefa fundamental imposta por
esta exigência será: submeter a razão a julgamento. Para quê? Para
resolver, se possível, o antagonismo entre as interpretações da mesma que a
dilaceram e a aniquilam:

a) por um lado, o dogmatismo racionalista, isto é, a pretensão


racionalista de que somente a razão, auto-suficiente e à margem da
experiência, possa interpretar a estrutura e o sentido da totalidade do
real;
b) por outro, o positivismo empirista, cuja expressão última é o
cepticismo, como desígnio de reduzir o pensamento ao dado pelos
sentidos, com a consequente derrota da razão;
c) finalmente, o irracionalismo, entendido como hipervalorização do
sentimento, da fé mística ou do entusiasmo subjectivo, e portanto como
negação da própria razão.

ILUMINISMO E RAZÃO
Pensar por si mesmo significa procurar a suprema pedra-de-toque da
verdade em si mesmo (ou seja, na própria razão); a máxima de pensar
sempre por si mesmo é o Iluminismo (Aufklärung). Ora, isto implica
menos do que pensam aqueles que situam o Iluminismo nos
conhecimentos, já que o Iluminismo é mais um princípio negativo no uso
da própria faculdade de conhecimento, e o rico em conhecimentos é com
frequência o menos esclarecido no uso dos mesmos; servir-se da própria
razão significa apenas perguntar-se a si próprio a propósito de tudo o que
se pode admitir. É possível converter em princípio universal do uso da
razão aquele fundamento pelo qual se admite algo, ou também se admite
a regra daí derivada? Todos nós podemos comprovar isto e nesse exame a
superstição e o delírio depressa desaparecerão, mesmo que não se possua
os conhecimentos necessários para poder refutar com fundamentos
objectivos; com efeito, neste caso cada um serve-se simplesmente da
máxima da autoconservação da razão. Assim, revela-se fácil instaurar o
esclarecimento em sujeitos singulares por meio da educação; basta que os
jovens sejam desde cedo habituados a uma tal reflexão. Mas esclarecer
uma época torna-se muito mais demorado e penoso, dado que há muitos
obstáculos externos que podem proibir esse tipo de educação e dificultá-
lo.
Kant, O Que Significa Orientar-se no Pensamento.

Dogmatismo racionalista, positivismo empirista, irracionalismo, eis três


interpretações antagónicas e irreconciliáveis da razão que impõem, segundo
Kant, a necessidade de levar a cabo uma crítica da mesma.

1.2. Iluminismo e liberdade como meta da razão

O julgamento da razão (isto é, o julgamento a que a razão é submetida:


genitivo objectivo) significa para Kant um exercício crítico da razão (isto é,
realizado pela razão: genitivo subjectivo). Este julgamento é absolutamente
necessário, não só por causa da diversidade de interpretações que os
filósofos deram da razão (como dizíamos na secção anterior), mas também,
e mais originariamente ainda, por causa do modo como os homens da sua
época vivem a sua vida humana: um modo que é não esclarecido, isto é, de
menoridade. Embora se trate de uma «época de esclarecimento», Kant
pensa que os homens desta época não conseguiram torná-la realmente numa
«época esclarecida».
Kant registra uma situação humana de «menoridade» favorecida pela
negligência, pelo isolamento na individualidade abstracta e,
definitivamente, por falta de verdadeira liberdade. A tarefa da crítica da
razão (em seu sentido mais pleno, até «orientar-se no pensamento») terá por
objectivo primordial a realização da liberdade, a superação das suas
constrições: a constrição civil e a constrição da consciência (seja pela
religião, seja pelas normas social e historicamente recebidas). Estas
limitações da liberdade implicam portanto um uso da razão à margem de
uma legalidade imposta por ela própria.
O remédio para essa situação só pode ser a crítica da razão, de modo a
que esta ouse procurar em si mesma a pedra-de-toque da verdade. «A
máxima de pensar por si próprio: é isso o Iluminismo. Uma crítica da razão
será pois a exigência que o ser humano impõe de se esclarecer acerca do
que é e acerca dos fins e interesses.
Precisamente por isso e neste sentido, afirmávamos que a crítica da
razão se propõe o exercício e realização da liberdade, uma liberdade que
não se satisfaz com ser vivida de modo subjectivo, mas que deve projectar-
se para a acção e para a práxis na estruturação de uma nova ordem social.
Esta liberdade é o motor da crítica e aponta para uma situação – época
esclarecida – que é talvez inalcançável (daí a importância do elemento
utópico no pensamento kantiano). Mas entretanto a mesma crítica responde,
consagrando-a, a uma «época de esclarecimento». A distinção entre «época
esclarecida» e «época de esclarecimento» introduz-nos na relação que Kant
estabelece entre Iluminismo e história: por um lado, o Iluminismo é motor e
meta da história; por outro, a história deve ser entendida como melhoria e
progresso no Iluminismo.

RAZÃO E LIBERDADE
À liberdade de pensar opõe-se, em primeiro lugar, a coacção civil. É
verdade que a liberdade de falar ou de escrever pode ser-nos retirada por
um poder superior, mas não a liberdade de pensar. Mas estaríamos a
pensar bem e com correcção se não pensássemos, por assim dizer, em
comunidade com outros, que nos comunicam os seus pensamentos e a
quem comunicamos os nossos? Por conseguinte, pode dizer-se que o
poder externo que priva os homens da liberdade de comunicar
publicamente os seus pensamentos também os priva da liberdade de
pensar, e este é o único tesouro que nos resta no meio de tanto peso civil
e também o único que pode oferecer um remédio contra todos os males
inerentes a essa condição.
Em segundo lugar, a liberdade de pensar é tomada no sentido de que a
intolerância (Gewissenszwang) se opõe a ela. É o que acontece quando
em matéria religiosa, sem coacção externa, certos cidadãos se erigem em
tutores de outros e, em vez de fornecerem argumentos, procuram antes
inspirar um medo angustiante, por meio de fórmulas de fé obrigatórias,
em relação ao perigo de uma investigação pessoal, anulando assim
qualquer exame da razão graças à impressão antecipadamente produzida
no ânimo.
Em terceiro lugar, a liberdade de pensar significa que a razão só se
submete à lei que ela dá a si mesma e a nenhuma outra; e o contrário
disto é a máxima de um uso sem lei da razão (e assim, fora das limitações
das leis, poderá ver mais longe, tal como o génio). Daqui resulta
naturalmente que a razão, se não se quer submeter à lei que ela fornece a
si mesma, deve então dobrar-se ao jugo das leis que outros lhe dão; pois
sem lei, nada, nem sequer o maior absurdo, se mantém por muito tempo.
Assim, a ausência explícita de lei no pensamento (isto é, uma libertação
em relação às limitações impostas pela razão) produz esta consequência
inevitável: a liberdade de pensar perde-se finalmente, e, porque não é por
culpa do acaso mas de uma verdadeira petulância, a liberdade perde-se
por ligeireza, no sentido próprio da palavra.
Kant, O Que Significa Orientar-se no Pensamento.

1.3. A ideia de filosofia

A filosofia kantiana inclui pois um duplo elemento: a) crítica das


desnaturações da razão; b) projecto de um novo estado da humanidade na
liberdade. Ora, o cumprimento de ambos os objectivos exige a descoberta e
estabelecimento dos princípios, leis e fins últimos que a razão impõe a
partir de si mesma e de acordo com a sua mais genuína natureza.
De acordo com este projecto, «razão pura» significa, num sentido muito
preciso (prescindindo agora de outros matizes), a essência da razão
enquanto faculdade que estabelece a partir de si mesma:

a) os princípios que regem o conhecimento da natureza;


b) as leis que regulam o comportamento enquanto acção moral ou livre;
c) os fins últimos desta razão, bem como as condições em que podem
ser atingidos.

1.3.1. O conceito mundano da filosofia

Na perspectiva desta ideia geral e suprema da razão, a filosofia é, para


Kant, «a ciência da relação de todos os conhecimentos com os fins
essenciais da razão humana». É este o conceito mundano ou cósmico da
filosofia, por oposição ao conceito académico da mesma, a que nos
referiremos posteriormente. Na sua concepção mundana, compete à
filosofia propor-se:

a) estabelecer os princípios e limites a partir dos quais é possível um


conhecimento científico da natureza. Ou seja, responder à pergunta: que
posso conhecer?
b) estabelecer e justificar os princípios da acção e as condições da
liberdade. Ou seja, responder à pergunta que devo fazer?
c) delinear projectivamente o destino último do homem e as condições e
possibilidades da sua realização. Ou seja, responder à pergunta: que me é
permitido esperar?

À primeira questão dedicar-se-á a metafísica, à segunda a moral e à


terceira a religião. Ora, nem as três perguntas nem as disciplinas filosóficas
correspondentes se encontram desligadas, antes derivam dos fins essenciais
da razão. Daí que as três perguntas possam e devam ser retomadas numa
quarta que as engloba: o que é o homem? Isto mostra à evidência que o
projecto total da filosofia kantiana consiste numa clarificação racional ao
serviço de uma humanidade mais livre, mais justa, mais orientada para a
realização dos fins últimos.

1.3.2. O conceito académico da filosofia

O que acabamos de dizer não esgota a concepção kantiana da filosofia


nem a tarefa que lhe compete. De facto, não basta orientar todos os
conhecimentos do homem e da sociedade e o legado da história,
estabelecendo a sua relação com os fins últimos da razão (filosofia em
sentido mundano), pois cabe à filosofia ocupar-se da inter-relação e da
unidade interna desses conhecimentos para estabelecer (ou, ao menos,
procurar) o sistema de todos eles. É isso que constitui a tarefa da filosofia
no seu sentido ou conceito académico.

1.3.3. A actividade crítica da filosofia

Deverá atender-se, por fim, a que a filosofia, entendida como exercício


da razão, se insere num enquadramento sociopolítico e exige o uso público
da racionalidade. Ambas as dimensões da crítica filosófica – inserção
sociopolítica e exercício público da razão – devem ser protegidas e
impulsionadas pelo próprio poder político: desse modo, tanto o próprio
exercício do poder como as realizações das ciências e das técnicas ficarão
submetidos ao exercício crítico da razão.
Isso mostra que para Kant todos os conhecimentos e as ciências devem
estar ao serviço da promoção dos fins últimos da razão: portanto, ao serviço
de uma humanidade mais livre. É a realização de uma humanidade mais
livre que determina a submissão da racionalidade científica e tecnológica à
racionalidade total, regida por esses fins.
Immanuel Kant
A sua vida (1724-1804) teve de excitante ou extraordinário. Homem de profunda
religiosidade, que transparece na sua obra formalmente árida (foi educado no pietismo), sóbrio
de costumes, de vida metódica, benévolo, provinciano (só uma vez em sua vida saiu de
Königsberg, sua cidade natal, e não foi longe nem por muito tempo) e solteiro (como Descartes,
Espinosa, Locke e Leibniz), Kant encarna as virtudes (e talvez o aborrecimento) de uma vida
inteiramente dedicada ao estudo e ao ensino. Profundamente imbuído dos ideais do Iluminismo,
Kant professou uma profunda simpatia pelos ideais da independência americana e da revolução
francesa. Foi pacifista convicto, anti-militarista e estranho a toda a forma de patriotismo
exclusivista.
As obras de Kant costumam distribuir-se em três períodos, que habitualmente se denominam
pré-crítico, crítico e pós-critico. O primeiro corresponde à sua filosofia dogmática, à sua
aceitação da metafísica racionalista, seguindo Leibniz e Wolff. As suas obras mais conhecidas e
influentes foram escritas no segundo período: a Crítica da Razão Pura (1781, 2aed. 1787), a
Critica da Prática (1788) e a Critica da Faculdade de Julgar (1790). Além destas obras, Kant
produziu uma notável quantidade de obras e opúsculos. A originalidade, o vigor e a influência
do seu pensamento obrigam a considerá-lo como um dos filósofos mais notáveis da cultura
ocidental.
2. A NATUREZA E A RAZÃO TEÓRICA

2.1. O problema do conhecimento

A primeira das perguntas a que uma crítica da razão deve responder é,


como indicámos na secção anterior, que posso conhecer? A resposta a esta
pergunta implica assinalar: a) os princípios a partir dos quais é possível um
conhecimento científico da natureza; b) os limites dentro dos quais é
possível tal conhecimento. Esta tarefa é levada a cabo por Kant na sua obra
Crítica da Razão Pura. A ela vamos dedicar esta segunda secção.

2.1.1. Racionalismo e empirismo

Toda a doutrina kantiana do conhecimento se fundamenta na distinção


de duas fontes do conhecer: a sensibilidade e o entendimento, que
possuem características distintas e opostas entre si. A sensibilidade é
passiva, limita-se a receber impressões provenientes do exterior (cores,
sons, etc; em termos gerais, aquilo que Locke denominava «ideias simples»
e Hume «impressões de sensação»); o entendimento, pelo contrário, é
activo. Tal actividade (a que por vezes Kant chama «espontaneidade»)
consiste primordialmente em que o entendimento produz espontaneamente
certos conceitos e ideias, sem os derivar da experiência. Conceitos deste
tipo são, por exemplo, os de «substância», «causa», «necessidade»,
«existência», etc.
Esta distinção entre sensibilidade e entendimento (e a consequente
afirmação de que este produz espontaneamente certos conceitos) pode
utilizar-se para fundamentar filosofias muito distintas. Vejamos:
a) Em primeiro lugar, pode ter como resultado uma doutrina racionalista.
De facto Kant foi, de início, um filósofo racionalista. Visto que o
entendimento produz espontaneamente certos conceitos sem os derivar da
experiência, o entendimento poderá conhecer a realidade construindo um
sistema a partir destes conceitos, sem necessidade de recorrer aos dados dos
sentidos. É esta a ideia central do racionalismo, como expusemos no
capítulo nono. Combinando de forma adequada os conceitos acima
assinalados (substância, causa, existência, necessidade), que segundo Kant
não derivam da experiência, poderíamos chegar à afirmação da existência
de um ser necessário (isto é, que não pode não existir: Deus) e poderíamos
concebê-lo como substância e causa primeira.

EXPERIÊNCIA, CONHECIMENTO E APRIORIDADE


Não restam dúvidas sobre o facto de que todos os nossos
conhecimentos começam com a experiência. Com efeito, só conseguimos
exercitar a faculdade de conhecer através de objectos que excitam os
nossos sentidos: por um lado, os nossos sentidos produzem
representações por si mesmos e, por outro, impulsionam a nossa
actividade intelectual a compará-los, a fim de os associar ou separar.
Deste modo, a experiência consiste na elaboração da matéria informe das
impressões sensíveis em conhecimento dos objectos. Assim, nenhum
conhecimento precede a experiência no tempo mas começa com ela.
Mas o nosso conhecimento não deriva inteiramente da experiência,
embora comece com ela. Na verdade, a experiência pode proporcionar-
nos um conhecimento compósito, constituído por aquilo que
percepcionamos através das impressões e pela nossa capacidade de
conhecer (que nesse momento se reduz a simples impressões sensíveis); e
assim, por falta de prática que nos habilite a separar ou a associar
elementos, não conseguimos distinguir esse conhecimento desta matéria
elementar.
Esta questão necessita de ser aprofundada, a fim de sabermos se existe
um conhecimento que seja independente da experiência e mesmo até
independente das impressões sensíveis. A este conhecimento chamamos a
priori e distingue-se do conhecimento empírico, cuja fonte é a posteriori,
ou seja, radica na experiência.
Kant, Crítica da Razão Pura.

b) Mas, impressionado pela filosofia de Hume, Kant acabou por


abandonar o racionalismo (Kant dizia que Hume o havia despertado do
«sono dogmático» em que estava mergulhado. Sob a influência de Hume,
Kant chegou à conclusão de que o nosso conhecimento não pode pretender
ir para além da experiência. Que acontece, então, com aqueles conceitos
que não procedem dos sentidos, que o entendimento produz
espontaneamente?
A resposta de Kant será a seguinte: é certo que existem no entendimento
conceitos que não procedem da experiência, mas tais conceitos têm
aplicação exclusivamente no âmbito dos dados sensoriais. Tomemos, por
exemplo, o conceito de «substância» e recordemos o que dissemos ao expor
o pensamento de Locke (ver: capítulo décimo, 1.1). Embora por meio dos
sentidos só percebamos figuras, cores e odores, etc., toda a gente diz que
vê, toca e cheira uma rosa. O que é a rosa, para lá do conjunto de sensações
que percebemos? Locke pensava que era um substrato ou suporte destas
qualidades, real mas incognoscível.
Segundo Kant, «substância» é primordialmente um conceito que o
entendimento possui e utiliza para unificar os dados sensíveis: se não
possuíssemos o conceito de substância e não o aplicássemos ao conjunto
das sensações em questão, não poderíamos formular proposições como «a
rosa é vermelha» ou «a rosa tem cheiro», etc., já que em todas estas
proposições concebemos a rosa como substância, e a cor, o cheiro, etc.,
como propriedades suas.
Prescinda-se do conceito de substância e não poderemos falar das coisas,
já que sempre que formulamos um juízo com um sujeito e um predicado
(«os gatos são mamíferos», «os corpos são pesados», etc.) concebemos o
sujeito como substância e os predicados como propriedades ou acidentes
daquela.
Sob a influência de Hume, Kant chegou portanto às seguintes
conclusões acerca dos conceitos não derivados da experiência: primeiro,
que o entendimento os utiliza para conhecer os objectos dados pelos
sentidos, para ordená-los e unificá-los; segundo, que não podem ser
legitimamente utilizados para se referirem a algo de que não temos
experiência sensível. O conceito de «substância» que nos é imprescindível
para unificar um conjunto de qualidades sensíveis (cores, etc.) não tem
sentido se for aplicado, por exemplo, a Deus, do qual não temos experiência
sensível.
Note-se, por outro lado, a diferença fundamental entre Kant e os
empiristas: a tese fundamental do empirismo é que todos os nossos
conceitos provêm dos sentidos. Kant não partilha desta afirmação já que,
em sua opinião, o entendimento possui conceitos que não provêm da
experiência, embora só tenham aplicação válida dentro desta.

2.1.2. Possibilidade da metafísica como ciência

a) Na introdução à Crítica da Razão Pura, Kant mostra-se


primordialmente interessado no problema da possibilidade da metafísica, ou
seja, no problema de saber se é possível um conhecimento científico
rigoroso acerca de Deus, da liberdade e da imortalidade da alma. O
interesse de Kant neste problema é perfeitamente compreensível se
tivermos em conta a sua própria evolução intelectual. Como vimos, Kant foi
a princípio racionalista e esteve profundamente convencido de que o
entendimento pode derrubar as fronteiras da experiência e atingir um
conhecimento autêntico acerca das realidades que estão para além dela, tais
como Deus ou a alma. A influência de Hume, no entanto, fez com que esta
fé Kantiana na possibilidade da metafísica vacilasse.
No entender de Kant, são duas as deficiências que tradicionalmente
caracterizaram a metafísica, colocando-a numa manifesta situação de
inferioridade relativamente à ciência (física, matemáticas): em primeiro
lugar, a ciência progride, ao passo que a metafísica continua a debater as
mesmas questões que Platão e Aristóteles há tantos séculos atrás já
debatiam (existência de Deus, imortalidade da alma, etc.); em segundo
lugar, os científicos põem-se de acordo nas suas teorias e conclusões,
enquanto o mais escandaloso desacordo reina entre os metafísicos. Urge
pois pôr-se o problema de saber se a metafísica é possível como ciência, se
a metafísica pode ser construída como se constroem as ciências
matemáticas e físicas. A ser possível, Kant pensa que a Metafísica poderá
superar o deplorável estado em que se tem encontrado ao longo de todos os
séculos da sua existência, logrando o acordo e o progresso. Se tal não for
possível, Kant pensa que o melhor será abandonar definitivamente a ilusão
de construir sistemas metafísicos com pretensões de conhecimento
científico. Como pode ver-se, a colocação do problema não pode ser mais
clara nem mais taxativa.

b) O problema fundamental a resolver é pois o de saber se a metafísica


é possível como ciência. A solução para esse problema exige no entanto
que nos coloquemos uma questão prévia: como é possível a ciência?
Obviamente, só quando tivermos determinado as condições que tornam
possível a ciência é que poderemos interrogar-nos em seguida sobre se a
metafísica se ajusta ou não a tais condições. A apresentação geral do
problema é simples e pode formular-se assim: a ciência é possível sob
certas condições; pode a metafísica ajustar-se a essas condições? Se a
resposta for afirmativa, a metafísica poderá obter a categoria de ciência; se,
ao contrário, a resposta for negativa, a metafísica não poderá constituir-se
como ciência e faremos bem em abandoná-la.
Esta maneira de pôr o problema parecerá – com razão – excessivamente
abstracta e geral. Falamos em investigar as condições que tornam possível o
conhecimento científico, mas de que condições se trata? e como
investigar tais condições? Vamos tentar concretizar um pouco mais,
atendendo a estas duas perguntas.

2.1.3. O conhecimento científico

a) Quais são as condições do conhecimento científico?


Para compreender a maneira como Kant põe o problema, temos de
distinguir dois tipos de condições que denomina, respectivamente,
condições empíricas e condições a priori. A terminologia kantiana pode
parecer estranha e difícil à primeira vista, mas não nos devemos deixar
impressionar pelas palavras, e tentemos esclarecer o seu significado. Para
tanto, comecemos com um exemplo.
Como é óbvio, o facto de podermos ver uma coisa depende de um sem-
número de condições: de que a nossa vista seja suficientemente aguda e o
objecto não se encontre excessivamente afastado ou seja demasiado
pequeno, etc. Estas condições são particulares e fácticas: de facto, um
indivíduo pode ter uma acuidade visual suficiente para ver um objecto que
outro indivíduo é incapaz de perceber por sofrer de miopia, por exemplo;
mais ainda, mesmo que se trate de distâncias ou tamanhos tais que nenhum
indivíduo humano possa de facto perceber, sempre será possível inventar
instrumentos suficientemente poderosos (telescópios ou microscópios) que
possibilitem a sua percepção. Este tipo de condições – particulares e
fácticas, que podem ser alteradas – denominam-se empíricas.
Mas existem outras condições de um tipo totalmente diferente. No caso
da visão, uma condição para ver algo é que a nossa percepção esteja
localizada num lugar do espaço e num momento do tempo. Imaginemos a
seguinte cena: um indivíduo aproxima-se de nós e diz-nos que viu uma
determinada coisa; perguntamos-lhe: onde? Responde-nos que em parte
alguma. Perguntamos-lhe: quando? E responde-nos que em nenhum
momento. Então deduzimos que se trata de um louco ou de um brincalhão,
em qualquer dos casos, estamos certos de que o indivíduo em questão não
viu nada. Espaço e tempo são condições da nossa percepção, mas de um
tipo completamente diferente do apontado no parágrafo anterior: não são
particulares (não afectam a visão deste objecto ou deste indivíduo em
particular) mas gerais (afectam a visão como tal a todos os indivíduos); não
são puramente fácticas (que possam ser alteradas) mas estritamente
necessárias (deixar de se dar). Estas condições segundo, Kant são a priori.
As condições a priori são, pois, universais e necessárias. A estas duas
características deve acrescentar-se uma terceira que define a sua natureza:
são anteriores à experiência. Isso significa que não provêm dos dados dos
sentidos mas que os condicionam. São condições que pertencem à estrutura
do sujeito. No exemplo anteriormente utilizado, todo o sujeito que capta
algo por meio do sentido da visão fá-lo necessariamente num lugar do
espaço e num momento do tempo; de outro modo tal não acontece. As
coisas são taxativas, segundo Kant. Digamos, a concluir, que as condições a
priori – universais e necessárias – tornam possível a experiência sendo
anteriores à mesma. Enquanto tornam possível a experiência e o
conhecimento, estas condições a priori são denominadas por Kant
transcendentais.

b) Como investigar as condições que tornam possível o


conhecimento científico?
Uma vez que sabemos de que condições se trata, tentemos precisar como
é possível investigá-las.
Perguntar pelas condições que tornam possível o conhecimento
científico é formular uma pergunta à primeira vista excessivamente
genérica. É no entanto possível concretizá-la se tivermos em conta que uma
ciência é um conjunto de juízos ou proposições. Com vontade e paciência
podia pegar-se num tratado de física e convertê-lo numa lista de
proposições: «os átomos constam de tais partículas», «a partícula X tem tais
características», etc. (Evidentemente, os juízos científicos não aparecem
formulados isoladamente mas concatenados entre si, formando raciocínios.
Mas os raciocínios se compõem de juízos, e portanto podem ser
decompostos nestes).
Este facto levou Kant a pensar que a pergunta sobre as condições que
tornam possível a ciência podia concretizar-se da seguinte maneira: quais
as condições que tornam possíveis os juízos da ciência? Não é necessário
percorrer todos e cada um dos tratados científicos para procurar as
condições que tornam possível a ciência. Bastará, pensa Kant, observar
cuidadosamente que tipo de juízos utiliza o saber científico e investigar as
condições que os tornam possíveis.

2.1.4. Os juízos sintéticos a priori

Falamos dos juízos das ciências e ainda que cada vez mais
concretizemos a nossa maneira de pôr o problema, encontramo-nos ainda
num nível excessivamente genérico. De facto, que tipos de juízos são
característicos da ciência? (Kant entende sempre por ciência as matemáticas
e a física, tal como havia sido formulada por Newton). Para um
esclarecimento é necessário distinguir entre diversos tipos de juízos.

a) Juízos analíticos e juízos sintéticos


Kant começa por estabelecer a distinção entre juízos analíticos e
sintéticos, distinção já nossa conhecida em parte através da distinção que
Leibniz propusera entre «verdades de razão» e «verdades de facto».
Segundo Kant, um juízo é analítico quando o predicado está
compreendido no sujeito (ao menos implicitamente) e, por conseguinte,
basta analisar o sujeito para compreendermos que o predicado lhe convém
necessariamente «o todo é maior do que as suas partes» é um juízo
analítico, porque basta analisar o conceito de «o todo» para encontrar a
verdade do predicado. Estes juízos não nos dão informação alguma ou,
como diz Kant, não são extensivos, não ampliam o nosso conhecimento:
como é óbvio, a quem souber o que é um todo, este juízo nada ensina que
não soubesse já antes de formulá-lo.
Um juízo é sintético, pelo contrário, quando o predicado não está
contido na noção do sujeito. «Todos os nativos da aldeia X medem mais de
1,90» é um juízo sintético, pois na noção de sujeito não está incluído o
predicado: o conceito de sujeito inclui unicamente o dado de haver «nascido
na aldeia X», mas não inclui nenhum dado acerca do tamanho ou estatura.
Estes juízos dão realmente uma informação ou, como diz Kant, são
extensivos, ampliam o nosso conhecimento. Àquele que sabe ou entende o
que significa «nascer na aldeia X» este juízo ensina algo mais, a saber, que
tais indivíduos são altos.

b) Juízos a priori e juízos a posteriori


A classificação anterior está feita atendendo a se o predicado está
incluído ou não na noção do sujeito. A classificação de que agora nos
ocupamos é feita atendendo a outro critério, a saber, ao modo como é
possível conhecer a verdade de um juízo qualquer. (Não deve esquecer-se
que, ao serem feitas com base em critérios diferentes, estas classificações
são diferentes).
Juízos a priori são aqueles cuja verdade pode ser conhecida
independentemente da experiência, pois o seu fundamento não se encontra
nesta. «O todo é maior que as suas partes» é, de acordo com esta
classificação, um juízo a priori: conhecemos a sua verdade sem necessidade
de comprovar e medir os todos e as partes.
Juízos a posteriori são aqueles cuja verdade é conhecida a partir dos
dados da experiência. De acordo com esta classificação, «todos os nativos
da aldeia X medem mais de 1,90» é a posteriori: não temos outro recurso
senão observar tais indivíduos se quisermos ter a certeza da verdade deste
juízo.
Esta distinção permite diferenciar, na opinião de Kant, certas
características importantes de um e outro tipo de juízos. Os juízos a priori
são universais e necessários: nenhuma excepção é possível ao juízo «o todo
é maior do que as partes»; os juízos a posteriori, pelo contrário, não são
universais nem necessários.
Esta última afirmação de Kant – que os juízos a posteriori não são
estritamente universais nem necessários – pode, à primeira vista, parecer
desconcertante. Quando afirmamos que «os nativos da aldeia X medem
mais de 1,90?» não estaremos a fazer um juízo universal? Para
compreender a afirmação kantiana, temos de ter em conta as duas
observações seguintes: em primeiro lugar, que só é estritamente universal o
juízo que exclua toda a possível excepção; em segundo lugar, Kant aceita a
afirmação de Hume de que a experiência não pode mostrar qualquer
conexão necessária (recorde-se que era nisto que Hume se baseava para a
sua crítica à ideia de causa): a experiência só nos mostra que as coisas
acontecem de facto assim, mas não que têm de acontecer necessariamente
assim.
Apliquemos estes dois critérios ao juízo que temos utilizado como
exemplo: a experiência mostra-nos que os nativos da suposta aldeia X
medem de facto mais de 1,90 mas não nos mostra qualquer conexão
necessária entre «nascer em tal aldeia» e «ter tal altura»; não é contraditório
que em tal aldeia nasça um anão (como seria contraditório que um todo
fosse menor do que as suas partes). Nenhum juízo extraído da experiência
é, pois, necessário ou universal em sentido estrito. O nosso juízo a
posteriori exprime simplesmente que, até agora, não se produziram
excepções, não que seja impossível que existam.

c) Os juízos sintéticos a priori


Até ao momento, Kant não foi excessivamente original. A sua
originalidade começa a partir daqui e será manifesta ao comparar as suas
conclusões com as de Hume.
Hume aceitaria esta dupla classificação dos juízos, considerando-a
coincidente com a sua própria classificação em «relação de ideias» e
«juízos sobre factos». Segundo Hume, as duas classificações coincidem e
sobrepõem-se: de um lado, há juízos analíticos que são a priori
(estritamente universais); do outro, estão os juízos sintéticos que são a
posteriori (e por conseguinte contingentes e não estritamente universais).
Todo o juízo analítico é a priori e vice-versa; todo o juízo sintético é a
posteriori e vice-versa. Os exemplos que (intencionalmente) utilizámos
parecem dar razão a Hume: «o todo é maior do que as suas partes» é
analítico (o predicado está contido no sujeito) e é a priori (a sua verdade é
exequível sem necessidade do recurso à experiência), e portanto
estritamente universal e necessário (sem possíveis excepções); pelo
contrário, «os nativos da aldeia X medem mais de 1,90» é sintético (o
predicado não está incluído na noção do sujeito) e é a posteriori (a sua
verdade só pode ser conhecida empiricamente), e portanto não estritamente
universal e contingente (não é impossível uma excepção). Segundo Hume,
o quadro dos juízos é o seguinte:

Kant, porém, tem outra história para contar. Tomemos o exemplo


seguinte: «a recta é a distância mais curta entre dois pontos». Será um juízo
analítico? Certamente que não, pensa Kant, pois o predicado não está
contido na noção do sujeito: no conceito de linha recta, não entra para nada
ideia alguma de distâncias. É portanto sintético. Será um juízo a posteriori?
Também não, pensa Kant, já que:

a) conhecemos a sua verdade sem andar a medir distâncias entre dois


pontos, sem necessidade de recorrer a nenhuma experiência
comprobatória;
b) é estritamente universal e necessário (carece de possíveis excepções).
É portanto a priori. Contrariamente a Hume, Kant admite que há juízos
sintéticos a priori.

Segundo Kant, o quadro dos juízos é o seguinte:

NOÇÃO DE JUÍZO
Em todos os juízos, a relação de um sujeito com um predicado
acontece de duas maneiras (consideraremos apenas os juízos afirmativos,
dado que a aplicação aos juízos negativos é fácil). Ou o predicado B
pertence ao sujeito A como algo que está contido (oculto) no conceito A,
ou então B está inteiramente fora do conceito A, ainda que associado a
ele. Chama-se juízo analítico ao primeiro caso e juízo sintético ao
segundo. Nos juízos analíticos (afirmativos) há uma relação de identidade
entre o predicado e o sujeito, ao passo que nos sintéticos esta relação é
desprovida de identidade. Aos primeiros poderíamos ainda chamar juízos
explicativos e aos segundos juízos extensivos: nos primeiros, o predicado
não acrescenta nada ao conceito do sujeito, apenas o decompõe pela
análise dos conceitos parciais que haviam sido já pensados pelo contrário
(ainda que confusamente); pelo contrário, os segundos acrescentam ao
conceito do sujeito um predicado que não fora pensado pelo sujeito e que
nunca poderia ter derivado de qualquer análise. Por exemplo, se eu disser
que «Todos os corpos são extensos», trata-se aqui de um juízo analítico.
Por isso, não devo afastar-me do conceito que associo ao corpo para
encontrar a extensão que lhe é própria; devo apenas decompor este
conceito (isto é, tornar-me consciente da multiplicidade que ele
comporta) a fim de encontrar este predicado – trata-se, pois, de um
analítico. Em contrapartida, quando digo que «Todos os corpos são
pesados», já o predicado é completamente distinto do que eu considero
em geral como conceito de corpo – a adição de um tal predicado fornece
assim um juízo sintético.
Kant, Crítica da Razão Pura.

Existem, pois, juízos sintéticos a priori; por serem sintéticos, são


extensivos, ou seja, dão-nos informações, ampliam o nosso conhecimento
acerca daquilo a que se referem; por serem a priori, são universais e
necessários e o conhecimento da sua verdade não procede da experiência.
Mais ainda, os princípios fundamentais da ciência (matemáticas e física)
são deste tipo.
O exemplo que anteriormente utilizamos («a recta é a distância mais
curta entre dois pontos») é um juízo das matemáticas, da geometria.
Também na Física existem juízos sintéticos a priori. Um exemplo deste
tipo de juízos é, segundo Kant, o princípio de causalidade: «tudo o que
começa a existir tem causa». Na opinião de Kant, não se trata de um juízo
analítico: na ideia de «algo que começa a existir» não está contida a ideia de
«ter uma causa». É portanto, sintético. Mas é ao mesmo tempo estritamente
universal e necessário, e portanto a priori. Neste caso, também Kant se
afasta de Hume.
Para Hume, o princípio de causalidade é um juízo a posteriori,
contingente e não estritamente universal: provém da experiência, é uma
generalização resultante do facto de repetidas vezes termos observado a
sucessão constante de dois fenómenos; ora, como os sentidos não mostram
conexões necessárias, e apenas mostram que as coisas acontecem de facto
assim, tal juízo não é estritamente universal nem necessário, mas
contingente. Certamente, nota Hume, até agora a experiência não nos
mostrou nunca algo que comece a existir sem causa, mas isso não implica
que seja logicamente impossível: logicamente impossível seria que algo
existisse e não existisse ao mesmo tempo, que começasse e não começasse
a existir (violar-se-ia o princípio de contradição), mas não que algo comece
a existir sem causa. Se tal acontecesse – pensa Hume –, admirar-nos-íamos
sobremaneira, porque estamos habituados ao contrário; no entanto,
podemos concebê-lo como possível sem incorrer em contradição.
A argumentação de Hume a favor de que o princípio de causalidade é
sintético a posteriori (contingente e não estritamente universal) é uma
argumentação poderosa. Que tem Kant a opor a esta argumentação?
Segundo Kant, Hume foi vítima de erro ao confundir as leis causais
particulares com o princípio geral de causalidade. Tomemos uma lei causal
qualquer, por exemplo, «os corpos são dilatados pelo calor». Kant não teria
inconveniente em reconhecer que se trata de um juízo sintético a posteriori:
a experiência mostra-nos de facto que os corpos são dilatados pelo calor,
mas não que tenha necessariamente de ser assim; é perfeitamente
concebível sem contradição que um corpo se contraia em vez de se dilatar.
É pois um juízo a posteriori, baseado na experiência e, como tal, nem
estritamente universal nem necessário.
Pois bem, suponhamos que um belo dia um corpo se contrai em tais
circunstâncias, em vez de se dilatar. Significaria isso uma excepção ao
princípio geral de causalidade? Não, pensa Kant. Significaria uma excepção
a essa lei particular, mas não ao princípio de causalidade. Tal contracção
não deixará por isso de ter uma causa. O princípio de causalidade é uma lei
universal e necessária, uma lei que o entendimento aplica necessária e
universalmente a todos os fenómenos da experiência. Suprima-se essa lei
e o mundo da experiência torna-se impossível.
Antes de seguir adiante, façamos um breve resumo da teoria kantiana
dos juízos:
a) além dos juízos analíticos (que são sempre a priori) e dos juízos
sintéticos a posteriori, existem juízos sintéticos a priori;
b) estes juízos são extensivos (por serem sintéticos) e são também
estritamente universais e necessários (por serem a priori);
c) visto que são a priori, a sua validade é estabelecida e conhecida
independentemente da experiência;
d) as ciências – matemáticas e física – possuem juízos sintéticos a
priori. Mais ainda: os princípios fundamentais das ciências são
sintéticos a priori;
e) e portanto a pergunta: quais são as contradições que possibilitam os
juízos da ciência? equivale a esta outra: quais são as condições
(transcendentais) que tornam possíveis os juízos sintéticos a priori?

INTUIÇÃO: MATÉRIA E FORMA DO FENÓMENO


Para se relacionarem com os objectos, o conhecimento e o
pensamento servem-se desse modo ou meio imediatos que é a intuição.
No entanto, esta intuição só acontece quando o objecto nos é fornecido, o
que só é possível (pelo menos para nós homens) se o objecto afectar o
nosso espírito. Chamamos sensibilidade à capacidade de receber
(receptividade) representações provenientes do modo como somos
afectados pelos objectos. É a sensibilidade que nos dá os objectos e só ela
nos pode fornecer intuições; mas é o entendimento que permite concebê-
los e só ele forma conceitos. Todavia, em última instância e mediante
certos signos, o pensamento reporta-se às intuições, seja em linha recta
(pensamento directo), seja por desvios (pensamento indirecto). Por
conseguinte, liga-se também à sensibilidade, já que nenhum objecto nos
pode ser dado de outra maneira.
A sensação é o efeito de um objecto na nossa capacidade de
representação, desde que ele nos afecte. É empírica a intuição que se
reporta ao objecto por meio da sensação. E chama-se fenómeno ao
objecto indeterminado de uma intuição empírica.
Chamo matéria do fenómeno àquilo que nele corresponde à sensação
e forma é àquilo que dentro da multiplicidade do fenómeno pode ser
ordenado através de certas relações e aspectos das sensações. Aquilo que
constitui as sensações não é ainda uma sensação, dado que é susceptível
de ser ordenado e configurado. Ora, se a matéria dos fenómenos nos é
dada somente a posteriori, daqui resulta que a sua forma encontra-se já
toda a priori no espírito por meio de sensações tomadas em conjunto. Por
conseguinte, podemos considerar que a forma é independente da
sensação.
Kant, Crítica da Razão Pura

2.2. A Crítica da Razão Pura

Na Crítica da Razão Pura podemos considerar três partes, a que Kant


chama, respectivamente, estética transcendental, analítica
transcendental e dialéctica transcendental.
Estas três partes correspondem às três faculdades que Kant distingue no
homem: sensibilidade, entendimento e razão. (Para falar com propriedade
– e como anteriormente indicámos –, existem apenas duas faculdades de
conhecimento, que são a sensibilidade e o entendimento; mas dentro deste
Kant distingue dois tipos de actividade intelectual: a formulação de juízos
realizada pelo entendimento propriamente dito e a faculdade de raciocinar,
de conjugar juízos formando raciocínios, a que Kant chama razão.)
Estas três partes correspondem também aos três tipos de conhecimento
cujo estudo interessa fundamentalmente a Kant: o matemático, o físico e o
metafísico. O plano destas três partes é o seguinte:

a) Na estética transcendental Kant estuda a sensibilidade e mostra as


condições que tornam possível que existam nas matemáticas juízos
sintéticos a priori.
b) Na analítica transcendental estuda o entendimento e as condições que
tornam possível que haja juízos sintéticos a priori na Física;
c) Na dialéctica transcendental estuda a razão, ao mesmo tempo que se
ocupa do problema da possibilidade ou impossibilidade da metafísica, isto
é, saber se a metafísica satisfaz as condições que possibilitam a formulação
de juízos sintéticos a priori.

2.2.1. A estética transcendental

a) As condições sensíveis do conhecimento


A explicação do conhecimento dada por Kant na estética transcendental
foi já referida quando procurávamos explicar o que Kant entende por
condições «transcendentais». Utilizando como exemplo a visão, dissemos
que esta depende de certas condições particulares e empíricas (como a
acuidade visual ou o tamanho do objecto), mas que também – e isto é que é
verdadeiramente importante para Kant – depende de duas condições
absolutamente gerais e necessárias, o espaço e o tempo.
Não se pode ver uma coisa, dizíamos, sem a ver num lugar do espaço e
num momento do tempo. Para compreender a teoria kantiana da
sensibilidade basta generalizar este exemplo: espaço e tempo são condições
gerais e necessárias – transcendentais – não apenas da visão, mas da
sensibilidade. Kant chama-lhes «formas a priori da sensibilidade» e ainda
«intuições puras». Vamos tentar aclarar o significado das duas expressões.

1. Espaço e tempo, formas a priori da sensibilidade


Formas. Que o espaço e o tempo são formas significa que não são
impressões sensíveis particulares (cores, sons, etc.), mas a forma ou o modo
como percebemos todas as impressões particulares: as cores, os sons, etc.,
são percebidos no espaço e no tempo. A priori. O termo a priori
encontrámo-lo já ao ocuparmo-nos dos juízos: um juízo é a priori – como
vimos – quando o seu conhecimento e a sua validade são independentes da
experiência. Em geral, a priori significa para Kant aquilo que não procedem
os sentidos: o espaço e o tempo não procedem da experiência mas
precedem-na como condições para que ela seja possível.
Da sensibilidade. Ou seja, do conhecimento sensível. Kant distingue
entre sensibilidade externa (a que Locke denomina «sensação») e
sensibilidade interna (a que Locke chamava «reflexão»). A sensibilidade
externa está submetida às duas formas de espaço e tempo (cores, sons, etc.,
percebem-se no espaço e no tempo). A sensibilidade interna está
unicamente submetida à forma do tempo (as nossas vivências, imaginações
e recordações, etc., sucedem-se umas às outras no tempo).

2. Espaço e tempo, intuições puras


Intuições. Ao afirmar que o espaço e o tempo são intuições, Kant
pretende sublinhar que não são conceitos do entendimento. Com efeito,
Kant pensa – seguindo certas noções bem conhecidas da lógica tradicional –
que os conceitos se caracterizam por poderem ser aplicados a uma
multiplicidade de indivíduos (o conceito «homem» é aplicável a todos os
membros da espécie humana). No entanto, o espaço e o tempo são únicos,
há só um espaço e um tempo. Não há uma pluralidade de espaços e tempos
(como há uma pluralidade de homens), mas partes de um espaço único e
intervalos de um tempo único que flui sem cessar.
Além disso, há uma segunda razão para negar que espaço e tempo sejam
conceitos extraídos da experiência. O conceito «homem» é o resultado da
abstracção de certos traços a partir da observação empírica de diversos
indivíduos humanos, isto é, forma-se posteriormente à experiência. Não
pode ser esse o caso do espaço e do tempo, já que são condições de toda a
experiência, e portanto anteriores a ela (a priori, transcendentais).
Puras. O termo «puro» significa, para Kant, vazio de conteúdo
empírico. O espaço e o tempo são como duas coordenadas vazias nas quais
se ordenam as impressões sensíveis (cores, sons, etc.).
FONTES DO NOSSO CONHECIMENTO
O nosso conhecimento emana de duas fontes principais do espírito: a
primeira consiste na capacidade de receber as representações (a
receptividade das impressões) e a segunda na faculdade de conhecer um
objecto por meio dessas representações (a espontaneidade dos conceitos).
Pela primeira é-nos dado o objecto e pela segunda ele é pensado em
relação a esta representação (como determinação pura do espírito).
Intuição e conceitos constituem pois os elementos de todo o nosso
conhecimento, de modo que não há conhecimento quando os conceitos
não têm a intuição correspondente, nem quando a intuição não tem
conceitos. Ambos são puros ou empíricos. Empíricos se contiverem uma
sensação (o que pressupõe a presença real do objecto) e puros se na
representação não se misturar qualquer sensação. À sensação pode
chamar-se a matéria do conhecimento sensível. A intuição pura, por
conseguinte, contém unicamente a forma pela qual alguma coisa é
percebida e o conceito puro contém a forma do pensamento de um
objecto em geral. Apenas as intuições e os conceitos puros são possíveis
a priori; e os empíricos só a posteriori.
Kant, Crítica da Razão Pura.

b) Os juízos sintéticos a priori em matemáticas


Além de expor as condições sensíveis do conhecimento, Kant ocupa-se
na estética transcendental do conhecimento matemático, o que pode parecer
estranho à primeira vista: as matemáticas, de facto, não se fazem com os
sentidos, mas com o entendimento. Se Kant se ocupa das matemáticas neste
momento é porque pensa que a possibilidade dos juízos sintéticos a priori
em matemáticas depende precisamente de que o espaço e o tempo sejam
intuições puras. O raciocínio de Kant pode resumir-se do seguinte modo:
A geometria e a aritmética ocupam-se, respectivamente, do espaço e do
tempo. Que a geometria se ocupe das propriedades do espaço, não parece,
em princípio, difícil de admitir. Que a aritmética tenha a ver com o tempo é,
porém, uma afirmação estranha, que Kant explica assim: a aritmética
ocupa-se da série numérica (l, 2, 3..., n) e esta, por sua vez, baseia-se na
sucessão temporal (o 2 antes do 3 e depois do l, etc.). O tempo é, segundo
Kant, o fundamento último da aritmética.
As matemáticas podem formular juízos sintéticos a priori porque espaço
e tempo são intuições puras, a priori:

• as matemáticas formulam juízos acerca do espaço e do tempo; ora, o


espaço e o tempo são condições prévias, independentes dos dados
sensíveis particulares; logo, os juízos das matemáticas são
independentes de toda a experiência particular (isto é, a priori);
• as matemáticas formulam juízos acerca do espaço e do tempo; ora,
todos os objectos da nossa experiência são-nos dados no espaço e no
tempo; logo, em todos os objectos da nossa experiência se cumprirão
necessariamente os juízos das matemáticas (isto é, estes são
rigorosamente universais e necessários, sem excepção possível).

2.2.2. A analítica transcendental

a) O conhecimento intelectual: as condições intelectuais do


conhecimento. A sensibilidade coloca-nos perante uma multiplicidade de
fenómenos, perante uma variedade de impressões no espaço e no tempo.
Ora, perceber esses fenómenos (cores, formas, sons, etc.) não é ainda
compreendê-los. Se perceber é a função própria da sensibilidade,
compreender é a função própria do entendimento. Dela se ocupa Kant na
analítica transcendental, através de um conjunto de análises complicadas.
Apresentamos um esquemático resumo da sua doutrina nos pontos
seguintes:

SENSIBILIDADE E ENTENDIMENTO
Se chamarmos sensibilidade à capacidade que o nosso espírito tem de
(respectividade) receber representações que de qualquer modo o afectam,
então chamaremos entendimento à espontaneidade do conhecimento, ou
seja, àquela capacidade de nós próprios podermos produzir
representações. Devido à nossa natureza, a intuição será necessariamente
sensível, pois apenas dá conta do modo como somos afectados pelos
objectos. Em contrapartida, o entendimento é a capacidade de podermos
pensar os objectos fornecidos pela intuição sensível. Contudo, nenhuma
destas propriedades se sobrepõe à outra, já que sem a sensibilidade não
daríamos conta dos objectos e sem o entendimento nenhum objecto
seria pensado. Assim, os pensamentos sem conteúdo são vazios e as
intuições sem conceitos são cegas. Daqui resulta que é necessário tornar
os conceitos sensíveis (isto é, juntar-lhes um objecto na intuição) e tornar
as intuições inteligíveis (ou seja, submetê-las a conceitos). Estas duas
capacidades ou faculdades não são susceptíveis de trocar de funções: o
entendimento não intui nada e os sentidos não pensam nada. O
conhecimento deriva unicamente da sua conjugação; mas nem por isso
devemos confundir as suas funções, tornando-se imperioso separá-las e
distingui-las cuidadosamente uma da outra. Nesta mesma base assenta
também a distinção que fazemos entre a ciência das regras da
sensibilidade em geral – a estética – e a ciência das regras do
entendimento em geral – a lógica.
Kant, Crítica da Razão Pura.

1. A função de compreender ou entender realiza-se por meio de


conceitos. Suponhamos que estamos a ver um objecto qualquer que nos é
familiar, uma casa, por exemplo. Os nossos sentidos fornecem-nos certas
impressões sensíveis (cores, formas, etc.) aqui e agora. Se alguém nos
perguntar o que estamos a ver, diremos que vemos uma casa. O conceito de
casa constitui pois a chave que nos permite compreender e interpretar essas
percepções sensíveis. Suponhamos agora que, pelo contrário, se apresenta
diante dos nossos olhos algo estranho que em nada se parece com o que
vimos na nossa vida. Perceberemos também, como no caso anterior,
impressões sensíveis (cores, formas, etc.) aqui e agora. Porém, se alguém
nos perguntar o que estamos a ver, não poderemos responder: falta-nos um
conceito onde enquadrar essas impressões sensíveis.
Estes dois exemplos mostram-nos como o nosso conhecimento
compreende conceitos além de percepções sensíveis. Mostram-nos ainda
que compreender os fenómenos é poder referi-los a um conceito: isto é uma
casa, isto é uma árvore, etc. Quando não o podemos fazer, a nossa
compreensão fica bloqueada. Observe-se, finalmente, que esta actividade de
referir os fenómenos aos conceitos se realiza sempre através de um juízo:
isto é uma casa, isto é um cão, um cão é um mamífero, etc. O entendimento
pode ser considerado, pois, como a faculdade dos conceitos ou como a
faculdade dos juízos. As duas caracterizações implicam-se mutuamente.

2. É necessário distinguir dois tipos de conceitos diferentes, os


empíricos e os puros ou categorias. Os conceitos empíricos são aqueles que
procedem dos dados dos sentidos (são a posteriori, na terminologia
kantiana). Os conceitos de «casa», «cão», «mamífero», são empíricos,
extraídos da experiência a partir da observação das semelhanças e traços
comuns a certos indivíduos.
Para além destes, segundo Kant, o entendimento possui conceitos que
não procedem da experiência e são, portanto, a priori. Recorde-se o que
dissemos antes: o entendimento caracteriza-se pela sua espontaneidade,
porque produz espontaneamente certos conceitos sem os derivar de dados
sensíveis.
Citámos então quatro desses conceitos puros (substância, causa,
necessidade, existência) e indicávamos como o entendimento os aplica às
impressões sensíveis, aos fenómenos, para os unificar e coordenar. Segundo
Kant, não são na realidade quatro, mas exactamente doze os conceitos puros
ou categorias do entendimento.
Kant estava seguro desta afirmação porque havia descoberto os doze
conceitos, em sua opinião, por um procedimento rigoroso e infalível. A
função fundamental do entendimento é formular juízos, unificar e
coordenar os dados da experiência sensível por meio de juízos. Ora,
pensava Kant, haverá tantas maneiras de unificar os dados da experiência,
tantos conceitos puros, como formas possíveis de juízo. Com esta ideia na
mente, Kant recorreu à lógica e encontrou que os juízos podem ser: a)
universais, particulares e singulares, quanto à quantidade; b) afirmativos,
negativos e indefinidos, quanto à qualidade; c) categóricos, hipotéticos e
disjuntivos, atendendo à relação; d) problemáticos, assertóricos e
apodícticos, atendendo à modalidade.

São doze, pois, as categorias ou conceitos puros: unidade, pluralidade


e totalidade, que correspondem aos três tipos de juízos atendendo à
quantidade; realidade, negação e limitação, que correspondem aos três
tipos de juízos segundo a qualidade; substância, causa, comunidade, que
correspondem aos três tipos de juízos atendendo à relação: possibilidade,
existência e necessidade, que correspondem finalmente aos três tipos de
juízos segundo a modalidade.
Esta descoberta dos conceitos puros – quantos e quais são – a partir da
classificação dos juízos, é denominada por Kant «dedução metafísica das
categorias».
Que os conceitos puros sejam exactamente doze (e precisamente estes
doze) foi muitas vezes criticado pelos comentaristas de Kant. O mais
importante não é no entanto este pleito, mas o papel que desempenham na
actividade intelectual.

3. Os conceitos puros são condições transcendentais, necessárias, do


nosso conhecimento dos fenómenos. Isto significa que o entendimento não
pode pensar os fenómenos senão aplicando-lhes estas categorias, e portanto
os fenómenos só podem ser pensados de acordo com elas.
Tomemos um juízo qualquer, por exemplo «todos os nativos da aldeia X
medem mais de l,90», do qual já nos servimos muitas vezes antes. O
conhecimento sensível oferece-nos uma pluralidade de figuras, formas,
movimentos, cores, etc. Ao formular este juízo o entendimento coordena
estas impressões sensíveis aplicando certas categorias: visto que é um juízo
geral (segundo a sua quantidade), o entendimento aplica a categoria de
unidade: os indivíduos em questão surgem unificados como «nativos da
aldeia X»; visto que é um juízo afirmativo (segundo a sua qualidade), o
entendimento aplica a categoria de realidade: a altura em questão é algo que
realmente lhes pertence; visto que é um juízo categórico (segundo a
relação), o entendimento aplica a categoria de substância: os habitantes
dessa tantas vezes mencionada e anónima aldeia são concebidos como
substâncias e a sua notável estatura é concebida como uma propriedade ou
acidente seu; visto que, finalmente, é um juízo assertórico (segundo a
modalidade), o entendimento aplica a categoria de existência: a estatura dos
nativos da aldeia X é um facto que se impõe à nossa inspecção e
observação.
A exposição e justificação da função que desempenham as categorias no
conhecimento é denominada por Kant «dedução transcendental das
categorias». Elimine-se esta função unificadora do entendimento por meio
das categorias e não restará mais do que um conjunto de impressões
sensíveis desconexas e desarticuladas.

4. Os conceitos puros são vazios. Assim como o espaço e o tempo se


enchem com impressões sensíveis, as categorias hão-de encher-se com os
dados procedentes do conhecimento sensível. Isso implica que as
categorias só são fontes de conhecimento aplicadas aos fenómenos (isto é,
às impressões sensíveis que ocorrem no espaço e no tempo). Como
dizíamos no início desta parte as categorias não têm aplicação válida para
além dos fenómenos, não podem aplicar-se validamente a realidades que
estejam para além da experiência.
Tomemos agora o seguinte exemplo: «todos os espíritos são bondosos».
Do ponto de vista da sua estrutura, este juízo é equiparável ao que
anteriormente considerámos («todos os nativos da aldeia X medem mais de
1,90»): é universal, afirmativo, categórico e assertórico (ou apodíctico);
nele se utilizam as categorias de unidade, realidade, substância e existência
(ou necessidade); entre os dois juízos existe no entanto, e no entender de
Kant, uma diferença radical: no primeiro caso, as categorias aplicam-se a
dados dos sentidos, ao passo que no segundo se aplicam a algo que não nos
é dado na experiência sensível. Trata-se, pois, de uma aplicação ilegítima
das categorias (ilegítima do ponto de vista do conhecimento), e portanto
não se pode falar de conhecimento em sentido rigoroso.

b) Os juízos sintéticos a priori na física


Já dissemos que na analítica transcendental Kant se ocupa de duas
questões: do estudo do entendimento (faculdade dos conceitos, dos juízos) e
da possibilidade dos juízos sintéticos a priori na física. A primeira questão
foi já exposta nos parágrafos precedentes e a explicação kantiana da mesma
pode resumir-se nas duas seguintes proposições: 1) o entendimento conhece
aplicando os conceitos puros aos fenómenos, aos dados dos sentidos; 2) as
categorias ou conceitos puros só têm validade quando são aplicados aos
fenómenos, ao que é dado na experiência. Abordaremos em breve a
segunda questão.
Os princípios fundamentais em que a física se baseia são, segundo Kant,
juízos sintéticos a priori. Mais acima, propúnhamos como exemplo de juízo
sintético a priori o princípio de causalidade, que constitui uma lei
fundamental do nosso conhecimento da natureza. Existem outros princípios
importantes relativos à natureza que, segundo Kant, são também desta
classe, mas prescindiremos deles, já que o seu caso é exactamente o mesmo
que o do princípio de causalidade. Tomemos, pois, este como exemplo e
vejamos como – sendo sintético – pode ser a priori.

FENÓMENO E NÚMENO
Devido à sua origem, as categorias não se baseiam na sensibilidade,
como acontece com as formas da intuição espaço e tempo, e por isso
parecem permitir uma aplicação para além dos objectos dos sentidos.
Mas, por sua vez, são apenas formas de pensamento, que só contêm a
faculdade lógica de reunir a priori numa consciência ou múltiplo que é
dado pela intuição. Assim, e se lhes retirarmos a única intuição que nos é
possível, podem ter ainda menos significação que aquelas formas
sensíveis e puras por meio das quais pelo menos um objecto nos é dado.
Em contrapartida, um modo de combinar um múltiplo, próprio do nosso
entendimento, não significa absolutamente nada se não lhes
acrescentarmos aquela única intuição na qual esse múltiplo pode ocorrer.
Com efeito, o nosso conceito permite-nos denominar como entes dos
sentidos (phaenomena) certos objectos a título de fenómenos,
distinguindo entre o modo como os intuímos e a sua própria constituição;
de maneira que por essa última constituição (ainda que não a
contemplemos neles), os opomos àqueles, por assim dizer, àqueles ou
também a outras coisas possíveis que não sejam objecto dos nossos
sentidos, como os objectos somente pensados pelo entendimento – a estes
chamamos entes da razão (noumena). Coloca-se então a seguinte
questão: por acaso os nossos conceitos puros do entendimento não terão
uma significação relativamente a estes últimos, sendo assim uma espécie
de conhecimento dos mesmos? Ora, desde o primeiro momento uma
ambiguidade ficou patente, a qual pode provocar um grave equívoco: em
certas relações o entendimento denomina um objecto como mero
phaenomenon; mas fora dessa relação há ao mesmo tempo, todavia, uma
representação de um objecto em si e, por conseguinte, imagina-se que
pode haver conceitos desse objecto; mas como o entendimento não
proporciona mais que categorias, em última instância o objecto deve pelo
menos poder ser pensado; contudo, o objecto desencaminha o
entendimento e leva-o a aceitar como conceito determinado de um ente
(que nunca pudéssemos conhecer pelo entendimento) o conceito
totalmente indeterminado de um ente da razão, que é algo que está fora
da nossa sensibilidade. Se por noumenon entendemos uma coisa que não
seja objecto da nossa intuição sensível abstraindo do nosso modo de a
intuir, dizemos que é um noumenon em sentido negativo. Mas se por tal
entendermos um objecto de uma intuição não-sensível, supomos já uma
espécie particular de intuição, a saber: a intuição intelectual, que todavia
não é a nossa, cuja possibilidade tampouco podemos compreender, e
assim dizemos que esse seria nouemnon no sentido positivo.

Kant, Crítica da Razão Pura.

1. O princípio de causalidade baseia-se na categoria de causa. Ora, a


causa (como todas as categorias) é um conceito puro que não procede dos
sentidos, mas é prévio à experiência a que se aplica: logo, a validade do
princípio de causalidade não depende da experiência, mas precede-a. É por
conseguinte a priori.

2. Como já acentuámos, os fenómenos só podem ser conhecidos pelo


entendimento se este lhes aplicar as categorias. Por conseguinte, as
categorias aplicam-se a todos os fenómenos que o entendimento conhece;
logo, o princípio de causalidade (baseado na categoria de causa) será
aplicável a todos os fenómenos que o entendimento conhece (ou pode
conhecer). É portanto estritamente universal e necessário.

c) O idealismo transcendental. Fenómeno e númeno. As categorias


não são aplicáveis para além da experiência, para além do que ocorre no
espaço e no tempo. Isto denomina-se fenómeno (o que aparece ou se
mostra ao sujeito). Ora, a própria ideia de algo que aparece implica,
correlativamente, a ideia de algo que não aparece, a ideia de algo em si. O
objecto – porque aparece e é conhecido – chama-se «fenómeno»; ao
correlato do objecto, considerado à margem da sua relação com a
sensibilidade, chama-se «coisa em si» ou melhor «númeno» (na medida em
que é algo apenas inteligível).
A distinção entre fenómeno e númeno é fundamental no sistema
kantiano. Ao tratar desta questão na Crítica da Razão Pura, Kant distingue
dois sentidos no conceito de númeno: negativo e positivo. Negativamente,
«númeno significa uma coisa na medida em que não pode ser reconhecida
por meio da intuição sensível»; positivamente, significa um «objecto que
pode ser conhecido por meio da intuição não sensível», ou seja, por meio da
intuição intelectual. Ora, visto que carecemos de intuição intelectual e
possuímos apenas intuição sensível, o nosso conhecimento é limitado aos
fenómenos e, por conseguinte, o conceito de númeno permanece como algo
negativo, como limite da experiência, como limite do que pode ser
conhecido. Não há conhecimento das coisas em si, dos númenos. O acesso
às coisas em si não se faz na razão teórica, mas na razão prática, como
veremos. A distinção entre fenómeno e númeno permite compreender por
que razão Kant chama à sua doutrina «idealismo transcendental»; porque
o espaço, o tempo, e as categorias são condições de possibilidade da
experiência, dos fenómenos, e não propriedades ou traços reais de
todas as coisas em si mesmas.

2.2.3. A dialéctica transcendental

Na dialéctica transcendental, Kant ocupa-se da possibilidade da


metafísica, bem como da natureza e funcionamento da razão.

a) Impossibilidade da metafísica como ciência


A pergunta sobre a possibilidade da metafísica que como a princípio
indicámos, preocupava Kant profundamente – recebe resposta negativa na
dialéctica transcendental. A metafísica – entendida como um conjunto de
proposições ou juízos acerca de realidades que estão para além da
experiência – é impossível, já que as categorias só podem usar-se
legitimamente na sua aplicação aos fenómenos, aos dados dos sentidos.
A aplicação das categorias para além da experiência é logicamente
ilegítima e dá lugar a erros e a ilusões. A missão da dialéctica consiste em
mostrar como tais erros ou ilusões – e muito especialmente os da metafísica
especulativa – provêm de passar por alto a distinção entre fenómeno e coisa
em si. A dialéctica transcendental é pois uma crítica do entendimento e da
razão na sua pretensão de alcançar o conhecimento das coisas em si, do que
está para além da experiência. Mas se a aplicação das categorias é
logicamente ilegítima, é também uma tendência inevitável, de acordo com a
própria natureza da razão. Como veremos já de seguida, a razão tende
inevitavelmente para a procura do incondicionado, tende a estender o seu
conhecimento para além da experiência, a fazer perguntas e formular
respostas acerca de Deus, da alma e do mundo como totalidade.

b) A razão
O conhecimento intelectual não se limita a formular juízos, mas liga
também uns juízos aos outros, formando raciocínios. Tomemos um
exemplo simples utilizado pelo próprio Kant: “Todos os homens são
mortais; todos os investigadores são homens; logo, todos os investigadores
são mortais». Este simples silogismo mostra-nos como a conclusão, o juízo
«todos os investigadores são mortais», tem o seu fundamento num juízo
mais geral, a premissa «todos os homens são mortais». (Os investigadores
são uma parte dos homens; portanto, se estes são mortais, aqueles também o
são.) O nosso raciocínio pode ir, no entanto, mais longe: poderíamos
perguntar-nos pelo fundamento da premissa maior e então teríamos o
seguinte silogismo: Todos os animais são mortais; todos os homens são
animais; logo, todos os homens são mortais.
O juízo que no primeiro silogismo aparecia como fundamento da
conclusão surge neste silogismo como fundado num juízo mais geral ainda:
«todos os animais são mortais». Novamente podemos procurar um juízo
ainda mais geral que sirva de fundamento à premissa maior, e visto que os
animais são uma parte dos seres vivos, podemos estabelecer o seguinte
silogismo: Todos os seres vivos são mortais; todos os animais são seres
vivos; logo, todos os animais são mortais.
Que fizemos no exemplo que estamos a considerar? A resposta é
simples: a razão procura encontrar juízos cada vez mais gerais, susceptíveis
de abarcar uma multiplicidade de juízos particulares que lhes sirvam de
fundamento. O juízo «todos os animais são mortais» abarca e serve de
fundamento a uma multiplicidade de juízos («os homens são mortais», «os
cães são mortais», etc.); o juízo «todos os seres vivos são mortais» abarca
juízos ainda mais gerais, servindo-lhes de fundamento «os animais são
mortais», «plantas são mortais», etc.).
A razão é, pois, de tal natureza que tende a encontrar juízos, leis,
hipóteses cada vez mais gerais e que abarquem e expliquem um maior
número de fenómenos. Assim se constrói a ciência. Pensemos, por
exemplo, nas leis do movimento. Aristóteles considerava que as leis que
explicam os movimentos dos corpos celestes deviam ser distintas das leis
que regem os movimentos dos corpos sublunares e, ainda dentro destes,
indicava princípios deficientes para os movimentos naturais e para os
movimentos violentos. Galileu acabou com a distinção entre movimentos
naturais e violentos, explicando-os a todos pelas mesmas leis.
Posteriormente, Newton formulou a lei da gravitação universal, lei mais
geral ainda, pois explica conjuntamente os movimentos celestes e os
terrestres. É este o funcionamento da razão como consequência da sua
tendência natural para procurar condições cada vez mais gerais e, em última
análise, o incondicionado.

RAZÃO E IDEIAS TRANSCENDENTAIS


A razão nunca se refere directamente a um objecto, fá-lo unicamente
através do entendimento e, através deste, refere-se ao seu próprio uso
empírico; ou seja, não cria conceitos (de objectos), limitando-se a
ordená-los e a dar-lhes a unidade que podem ter na sua extensão máxima
possível, isto é, relativamente à totalidade das séries; o entendimento não
atende a isto mas apenas à união mediante a qual em todas as partes se
produzem séries de condições em vez de conceitos. Em consequência, o
entendimento e o seu emprego idóneo é propriamente o objecto da razão;
assim como o entendimento une por meio de conceitos múltiplos do
objecto, por sua vez também a razão une o múltiplo dos conceitos por
meio de ideias, dado que, a título de finalidades, conferem uma certa
unidade colectiva aos actos do entendimento, e só noutros casos é que se
ocupam da unidade distributiva.
Por conseguinte, afirmo que as ideias transcendentais nunca são o uso
constitutivo graças ao qual surgem conceitos de certos objectos; e, no
caso de as entendermos assim, as ideias são apenas conceitos dialécticos.
Pelo contrário, têm antes um uso regulativo que é indispensavelmente
necessário e que consiste em dirigir o entendimento: ou para certo fim em
relação ao qual as linhas directivas de todas as suas regras convergem
para um ponto, apesar de ser somente uma ideia (focus imaginarius); ou
para um ponto do qual os conceitos do entendimento não partem
realmente, uma vez que se encontra totalmente fora dos limites da
experiência possível, mas servindo no entanto para lhes proporcionar ao
mesmo tempo a unidade máxima e a extensão máxima.
Kant, Crítica da Razão Pura.

O CARÁCTER REGULATIVO DAS IDEIAS DA RAZÃO


Se repararmos no nosso conhecimento do entendimento em toda a sua
extensão, verificamos que o carácter sistemático do conhecimento é
aquilo de que a razão dispõe com toda a propriedade e que ela se
encarrega de produzir; ou seja, é a sua coerência como base de um
princípio. Esta unidade da razão pressupõe sempre uma ideia: a ideia da
forma do todo do conhecimento, a qual precede o conhecimento concreto
das partes e contém as condições para determinar a priori o lugar e a
relação que correspondem a cada parte relativamente às outras. Por
conseguinte, esta ideia postula a unidade completa do conhecimento do
entendimento; e assim, este não surge como um mero agregado
contingente mas como um sistema coerente segundo leis necessárias. Não
se pode dizer que esta ideia seja propriamente um conceito do objecto,
mas antes a unidade completa destes conceitos, na medida em que serve
de regra para o entendimento.
Kant, Crítica da Razão Pura.
c) A razão e a metafísica
A razão impele-nos a procurar leis e condições cada vez mais gerais e
susceptíveis de explicarem um número maior de fenómenos. Enquanto esta
procura se mantém dentro dos limites da experiência, tal tendência é eficaz
e amplia o nosso conhecimento. Mas esta tendência da razão leva
inevitavelmente a ultrapassar as barreiras da experiência, à procura do
incondicionado: os fenómenos físicos pretendem unificar-se e explicar-se
por meio de teorias metafísicas acerca do mundo (a substância material do
racionalismo), o que dá lugar a antinomias; os fenómenos psíquicos
pretendem unificar-se e explicar-se por meio de teorias metafísicas acerca
da alma (a substância pensante do racionalismo), o que dá lugar a
paralogismos; uns e outros tentam unificar-se e explicar-se por meio de
teorias metafísicas acerca de uma causa suprema de ambos (a substância
infinita do racionalismo, Deus, ideia da razão).
Deus, alma e mundo são, segundo Kant, três ideias da razão que
desempenham um papel muito especial no sistema do nosso conhecimento.
Pois apesar de não nos proporcionarem nenhum conhecimento objectivo,
expressam contudo o ideal da razão de encontrar leis e princípios cada vez
mais gerais: como o horizonte que nunca se atinge (que não pode ser
alcançado), mas que nos indica continuamente que há que avançar mais e
mais.
3. A LIBERDADE E A TAREFA DA RAZÃO
PRÁTICA

3.1. A razão prática e o conhecimento moral

Na Crítica da Razão Pura – a cujo estudo dedicámos a parte anterior –


Kant fez um notável esforço para explicar como é possível o conhecimento
dos factos (possível graças à conjunção de dois elementos: as impressões
sensíveis procedentes do exterior e certas estruturas a priori que o sujeito
impõe a tais impressões, a saber, as formas de espaço-tempo e as
categorias) e até onde é possível o conhecimento de objectos (conhecimento
que só tem lugar na aplicação das categorias aos fenómenos; a metafísica,
ao aplicar as categorias para além dos fenómenos, não proporciona
conhecimento objectivo).
Ora, a actividade racional humana não se limita ao conhecimento dos
objectos. O homem necessita também de conhecer como deve agir, qual
deve ser a sua conduta: a razão possui também uma função moral, em
correspondência com a segunda das perguntas que propúnhamos na
primeira parte: que devo fazer?
Esta dupla vertente pode exprimir-se por meio da distinção entre razão
teórica e razão prática. Não se trata, obviamente, de duas razões, mas de
duas funções perfeitamente diferenciadas. A razão teórica ocupa-se em
conhecer como são as coisas; a razão prática, ocupa-se de saber como deve
ser a conduta humana. À razão prática não corresponde o conhecimento de
como é de facto a conduta humana, mas o conhecimento de como deve ser:
não lhe interessam quais os motivos que empírica e psicologicamente
determinam os homens (desejos, sentimentos, egoísmo, etc.), mas quais
devem ser os princípios que hão-de levá-lo a agir, caso a sua conduta deva
ser racional e, portanto, moral. Esta separação entre as duas esferas costuma
exprimir-se dizendo: a ciência (a razão teórica) ocupa-se do ser, ao passo
que a moral (a razão prática) se ocupa do dever ser.
A diferença entre as duas actividades racionais manifesta-se, segundo
Kant, no modo totalmente distinto de uma e outra exprimirem os seus
princípios ou leis: a razão teórica formula juízos («o calor dilata os
corpos»), ao passo que a razão prática formula imperativos ou
mandamentos («não matarás», etc.).

3.2. O formalismo moral

A teoria moral de Kant não é menos original do que a sua teoria do


conhecimento científico. A ética kantiana representa uma autêntica
novidade dentro da história da filosofia: se antes dele as diversas éticas
tinham sido materiais, a ética de Kant é formal.

3.2.1. As éticas materiais

Para compreender o significado da teoria kantiana, é necessário entender


o que é uma ética material.
Comecemos por indicar que não deve confundir-se ética material com
ética materialista: o contrário de uma ética materialista é uma ética
espiritualista, o contrário de uma ética material é uma ética formal. (Por
exemplo, a ética de Aquino é material, mas não é materialista.)
De um modo geral, podemos dizer que são materiais aquelas éticas
segundo as quais a bondade ou maldade da conduta humana depende de
algo que se considera bem supremo para o homem: por conseguinte os
actos serão bons quando nos aproximem da consecução de tal bem
supremo, e maus (reprováveis, não aconselháveis) quando dele nos afastem.
De acordo com esta definição, podemos encontrar em toda a ética material
os dois elementos seguintes:

a) A noção de que há bens, coisas boas para o homem; as diferentes


éticas materiais começam por determinar qual – dentre todos eles – é o bem
supremo ou fim último do homem (prazer, felicidade, etc.).
b) Uma vez estabelecido tal bem supremo, a ética estabelece normas ou
preceitos orientados para alcançá-lo.

A RAZÃO PRÁTICA
A especulação da razão no uso transcendental dirige-se em definitivo
para um propósito final referente a três objectos: a liberdade da vontade, a
imortalidade da alma e a existência de Deus. É muito exíguo o interesse
especulativo da razão dos três, e assim dificilmente se empreenderia um
tão laborioso trabalho de investigação transcendental que, além disso, tem
de lutar com constantes obstáculos, porque todas as descobertas a esse
respeito ainda não demonstraram a sua utilidade em concreto, ou seja, na
investigação da natureza.
Tudo o que é possível por meio da liberdade é prático. Mas se as
condições do exercício do nosso livre arbítrio são empíricas, nesse caso a
razão só pode ter um uso regulativo e serve apenas para operar a unidade
das leis empíricas; é o caso, por exemplo, da doutrina da prudência, na
qual a união de todos os fins propostos pelas nossas inclinações se opera
no fim único da felicidade. E a concordância dos meios para chegar a
essa unidade constitui a tarefa da razão que, consequentemente, não pode
proporcionar leis puras completamente determinadas a priori mas apenas
leis pragmáticas da conduta livre para a consecução dos fins que os
sentidos nos recomendam. Pelo contrário, seriam produtos da razão pura
as leis práticas puras cujo fim seja completamente dado pela razão e que
não estejam condicionadas empiricamente. É o que acontece com as
morais: em consequência, só elas pertencem ao uso prático da razão pura
e permitem um canone.
Kant, Crítica da Razão Pura.

Por outras palavras, podemos dizer que uma ética material é uma ética
que tem conteúdo. E tem conteúdo no duplo sentido que acabamos de
indicar: a) na medida em que estabelece um bem supremo (por exemplo, o
prazer na ética epicurista) e na medida em que diz o que deve fazer-se para
consegui-lo («não comas em excesso», «afasta-te da política», são preceitos
da ética epicurista, por exemplo).

3.2.2. Crítica de Kant às éticas materiais

Kant rejeitou as éticas materiais porque em seu entender apresentam as


seguintes deficiências:

a) Em primeiro lugar, as éticas materiais são empíricas, são a posteriori,


ou seja, o seu conteúdo é extraído da experiência. Tomemos o exemplo da
ética epicurista: Como sabemos que o prazer é um bem máximo para o
homem? Indubitavelmente, porque a experiência nos mostra que desde
pequenos os homens procuram o prazer e fogem da dor. Como sabemos que
para se conseguir um prazer duradouro e razoável devemos comer com
sobriedade e permanecermos afastados da política? Sem dúvida porque a
experiência nos mostra que a longo prazo o excesso produz dor e
enfermidades, e a política produz desgostos e sofrimentos. Trata-se pois de
generalizações a partir da experiência.
Possivelmente, um epicurista pouco se preocupará com o facto de a sua
ética ser empírica, a posteriori. Mas isso preocupa Kant sobremaneira, pela
seguinte razão: porque pretende formular uma ética cujos imperativos sejam
universais e porque em sua opinião, da experiência não se podem extrair
princípios universais. (Este último ponto ficou claramente exposto na
primeira parte do tema: nenhum juízo que proceda da experiência pode ser
rigorosamente universal; para ser tal, um juízo há-de ser a priori, ou seja,
independente da experiência.)

b) Em segundo lugar, os preceitos das éticas materiais são hipotéticos


ou condicionais: não valem de modo absoluto, mas apenas de modo
condicional, como meios para conseguir um certo fim. Quando o sábio
epicurista aconselha «não bebas em excesso», deve entender-se que
pretende dizer «não bebas em excesso, se queres alcançar uma vida regrada
e aprazível». Que acontecerá se alguém responder ao sábio epicurista: «eu
não quero alcançar essa vida de prazer moderado e contínuo»? O preceito
epicurista carecerá, evidentemente, de validade para ele. Este é um segundo
motivo pelo qual uma ética material não pode ser, no entender de Kant,
universalmente válida.

c) Em terceiro lugar, as éticas materiais são heterónomas.


«Heterónomo» é o contrário de «autónomo» e se a autonomia consiste em
que o sujeito se dê a si próprio a lei, em que o sujeito se determine a si
próprio no agir, a heteronomia consiste em receber a lei a partir de fora da
própria razão.

O BEM MORAL
O valor moral da acção não reside, pois, no efeito que dela se espera
nem tão-pouco em nenhum princípio de acção cujo fundamento
determinante dependa desse efeito esperado. Na verdade, todos esses
efeitos (o nosso próprio prazer ou a promoção da felicidade alheia)
podem realizar-se por meio de outras causas, e para isso não era
necessária a intervenção da vontade de um ser racional, que é o único
onde se pode encontrar o bem supremo e absoluto. Por conseguinte, esse
bem moral só pode ser constituído pela representação da própria lei, que
só se encontra no ser racional, desde que o fundamento determinante da
vontade seja ela e não o efeito esperado. Não é lícito esperar que esse
bem moral resulte do efeito de qualquer acção, pois que ele está já
presente na própria pessoa que age segundo essa lei.
Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

As éticas materiais são heterónomas, segundo Kant, porque a vontade é


determinada a agir deste modo ou daquele por desejo ou inclinação.
Continuando com o exemplo da ética epicurista, o homem é determinado na
sua conduta por uma lei natural, pela inclinação ao prazer, sendo por este
dominado.

3.2.3. A ética formal de Kant

a) Sentido de uma ética formal


Segundo Kant as éticas materiais encontram-se inevitavelmente
afectadas pelas três deficiências que apontámos. A partir desta crítica, o
raciocínio kantiano é simples e pode ser exposto do seguinte modo:

– todas as éticas materiais são empíricas (e portanto incapazes de


apresentar princípios rigorosamente universais), hipotéticas em seus
imperativos e heterónomas;
– ora, uma ética rigorosamente universal não pode ser nem empírica
(mas a priori), nem hipotética em seus imperativos (mas estes devem
ser absolutos, categóricos), nem heterónoma (mas autónoma, isto é, o
sujeito deve determinar-se a si próprio a agir, deve dar-se a si próprio a
lei);
– uma ética estritamente universal e racional não pode ser material. Tem
de ser, portanto, formal.

O que é então uma ética formal? É uma ética vazia de conteúdo, que não
tem conteúdo em nenhum dos sentidos em que o tem a ética material:
1. não estabelece nenhum bem ou fim que deva ser perseguido, e
portanto,
2. não nos diz o que devemos fazer, mas como devemos agir, a forma
como devemos actuar.

b) O dever
A ética formal não estabelece pois o que devemos fazer: limita-se a
indicar como devemos agir sempre, seja qual for a acção concreta. Segundo
Kant um homem age moralmente quando age por dever. O dever «é a
necessidade de uma acção por respeito à lei» (Fundamentação da
Metafísica dos Costumes), isto é, a submissão a uma lei, não pela utilidade
ou satisfação que o seu cumprimento possa proporcionar-nos, mas por
respeito para com a mesma.
Kant distingue três tipos de acções: contrárias ao dever, conformes ao
dever e feitas por dever. Somente as últimas têm valor moral. Suponhamos,
utilizando um exemplo do próprio Kant, o caso de um comerciante que não
cobra preços abusivos aos seus clientes. A sua acção é conforme ao dever.
Ora, talvez o faça assim para assegurar a clientela e, neste caso, a acção é
conforme ao dever, mas não por dever: a acção (não cobrar preços
abusivos) converte-se num meio para atingir um objectivo, um fim (garantir
a clientela). Se, ao contrário, actua por dever, por considerar ser esse o seu
dever, a acção não é um meio para atingir um fim ou objectivo, mas um fim
em si mesma, algo que deve fazer-se por si que determina a sua realização,
quando este móbil é o dever: «uma acção feita por dever tem o seu valor
moral, não no objectivo que por meio dela se pretende atingir, mas na
máxima pela qual foi decidida; não depende pois da realidade do objecto da
acção, mas exclusivamente do princípio do querer» (ibidem).

c) O imperativo categórico
A exigência de agir moralmente exprime-se num imperativo que não é –
nem pode ser – hipotético (como os mandamentos das éticas materiais),
mas categórico.
Kant deixou-nos diversas formulações do imperativo categórico, das
quais a primeira é a seguinte: «age somente segundo uma máxima tal que
possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal» (ibidem). Esta
formulação revela claramente o seu carácter formal; de facto, este
imperativo não estabelece nenhuma norma concreta, mas a forma que
devem ter as normas que determinam a conduta de cada um, denominadas
«máximas» por Kant): qualquer máxima deve ser tal que o sujeito possa
querer que se converta em norma para todos os homens, em lei universal.
Esta formulação do imperativo categórico mostra ainda a exigência de
universalidade própria de uma moral racional.
Kant apresenta, ainda na Fundamentação Metafísica dos Costumes, a
seguinte formulação do imperativo categórico: «age de tal maneira que
uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e como um fim e nunca apenas como um meio». Tal como
a formulação anterior, também esta mostra o seu carácter formal e a sua
exigência de universalidade; diferentemente da anterior, nesta formulação
inclui-se a ideia de fim.
Só o homem, enquanto ser racional é fim em si mesmo. Portanto nunca
deve ser utilizado como um simples meio.

3.3. Liberdade, imortalidade e existência de Deus

A Crítica da Razão Pura pusera a claro a impossibilidade da metafísica


como ciência, isto é, como conhecimento objectivo do mundo, da alma e de
Deus. Contudo a alma – a sua imortalidade – e a existência de Deus
constituem interrogações de interesse fundamental para o destino do
homem.
Kant nunca negou a imortalidade da alma ou a existência de Deus. Na
Crítica da Razão Pura limitou-se a estabelecer que a alma e Deus não são
acessíveis ao conhecimento científico, objectivo, visto que este apenas tem
lugar na aplicação das categorias aos fenómenos fornecidos pela
experiência. Deste modo, para Kant o lugar adequado para as questões
sobre o problema de Deus e da alma não é a razão teórica, mas a razão
prática.

O PRIMADO DA RAZÃO PRÁTICA


Por primado entre duas ou mais coisas ligadas pela razão entendo eu a
supremacia de uma delas como princípio primeiro e determinante de
união com todas as outras. Num sentido mais restrito e prático, primado
significa a superioridade do interesse de uma coisa, ao passo que as
outras se subordinam a esse interesse (o qual não se submete a nenhum
outro interesse). Podemos atribuir um interesse a qualquer capacidade do
espírito, ou seja, um princípio que contém em si a condição sem a qual
não poderíamos exercer essa capacidade. A razão é a faculdade dos
princípios e por isso determina o seu próprio interesse e o dos poderes do
espírito. O interesse do uso especulativo da razão consiste no
conhecimento do objecto, incluindo-se aí os princípios a priori mais
elevados; é uma aplicação prática que determina a vontade em relação a
um fim último e total. O interesse desta capacidade da razão não reside
nos requisitos para o seu uso genérico (ou seja, que não haja contradição
entre princípios e afirmações), mas na condição genérica de ter razão; o
interesse da razão não é a simples concordância consigo própria mas
unicamente a sua amplitude.
Kant, Critica da Razão Prática.

Segundo Kant a liberdade, a imortalidade da alma e a existência de Deus


são postulados da razão prática. O termo «postulado» deve entender-se
aqui em seu sentido estrito, como algo que não é demonstrável mas que é
suposto necessariamente como condição da própria moral. Com efeito, a
exigência moral de agir por respeito ao dever supõe a liberdade, a
possibilidade de agir por respeito ao mesmo, vencendo as inclinações
contrárias. Segundo Kant também a imortalidade da alma e a existência de
Deus são postulados da moral, embora nestes dois casos o seu raciocínio
seja mais complicado e tenha sido objecto de diversas objecções. Quanto à
imortalidade o seu raciocínio é o seguinte: a razão ordena-nos que
aspiremos à virtude, isto é, à concordância perfeita e total da nossa vontade
com a lei moral; esta perfeição é inatingível numa existência limitada; a sua
realização só se consegue num processo indefinido e infinito que, portanto,
exige uma duração ilimitada, isto é, a imortalidade.
No que se refere à existência de Deus, Kant afirma que a falta de acordo
que encontramos no mundo entre o ser e o dever ser exige a existência de
Deus como realidade em quem o ser e o dever ser se identificam e em quem
se dá uma união perfeita de virtude e felicidade.
A terceira pergunta kantiana – o que me é permitido esperar? – tem
um sentido escatológico e a ela responde a religião.
Mas esgotar-se-á o sentido da pergunta – e da sua resposta – na simples
dimensão religiosa? Kant pensou claramente que não. A consecução do fim
cuja realização última e perfeita se espera da religião, implica e exige a
acção social e política, por meio da qual este fim se realizará através do
tempo: assim, a história representa um momento igualmente essencial na
resposta à pergunta: o que me é lícito esperar?
4. HISTÓRIA E RELIGIÃO

4.1. O ser humano

a) Na Crítica da Razão Pura, Kant estabelece a distinção fenómeno-


númeno como único meio de resolver as contradições da razão consigo
mesma. Esta distinção aplica-se igualmente ao homem. Como fenómeno, o
homem está submetido e é explicado segundo as leis matemático-físico-
biológicas da natureza, como um objecto mais entre os objectos do mundo
físico. Mas enquanto númeno, o homem, ser livre, pertence ao âmbito
inteligível da razão prática. As ideias de moralidade e de liberdade
possibilitam a tematização desse âmbito que, como já vimos, é objecto de
um saber não teórico mas prático.

b) Kant reconhece no homem aquilo que ele chama suas «disposições


naturais»; estas articulam-se segundo três direcções ou vertentes ou
constituintes da sua natureza; 1) disposição para a animalidade, explica a
capacidade técnica do homem; 2) disposição para a humanidade, que
explica a sua capacidade pragmática; c) disposição para a personalidade,
que explica a sua capacidade moral.

c) Estas disposições, no seu conjunto, constituem a estrutura radical do


homem, que remete a uma dualidade de dimensões, em consonância com a
primeira distinção: a dimensão empírico-sensível e a dimensão ético-social.
A primeira refere-se ao homem no seu conjunto individual, egoísta, fechado
sobre si, como um objecto mais entre as coisas. Em atenção a ela, pode e
deve falar-se da natural insociabilidade do homem, sem que a este nível –
que não é susceptível de juízos morais – a descrição tenha qualquer sentido
pejorativo.
A segunda – dimensão ético-social – refere-se ao homem como inserido
no reino dos fins e da moralidade, como pertencente a uma comunidade de
pessoas. Segundo esta dimensão, pode e deve falar-se da sociabilidade do
homem. Visto que as duas dimensões o constituem estritamente, temos de
extrair decididamente a conclusão de que Kant concebeu o homem como
um ser que encerra em si uma paradoxal complexidade: uma «insociável
sociabilidade» ou uma «sociável insociabilidade».

DISPOSIÇÕES QUE CONSTITUEM O SER HUMANO


Em relação à sua finalidade, os elementos que determinam a natureza
humana podem ser delimitados sucintamente em três classes:
1 ) Como ser vivo, o homem tem disposição para a animalidade;
2) Como ser vivo racional, o homem tem disposição para a
humanidade;
3) Como ser racional susceptível de ser responsabilizado, o homem
tem disposição para possuir uma personalidade.
1. Genericamente, a disposição do ser humano para a animalidade
corresponde ao amor físico a si próprio, que é meramente mecânico pois
não requer o uso da razão.
2. A disposição para a humanidade corresponde genericamente ao
amor físico a si próprio mas fazendo uso da comparação (o que implica o
uso da razão): ou seja, só sabemos se somos felizes ou infelizes por
comparação com os outros.
3. A disposição para ter uma personalidade consiste na capacidade de
respeitar a lei moral enquanto motivo suficiente para o exercício do livre
arbítrio. Esta capacidade de respeitar a lei moral corresponde em nós ao
sentimento moral: por si só não é uma finalidade da disposição natural,
mas poderá sê-lo enquanto motivo do livre arbítrio.
Segundo as suas condições de possibilidade, verificamos que a base
da primeira disposição não integra a razão; que a segunda radica
indubitavelmente na razão prática, mas unicamente ao serviço de outros
motivos; e que a terceira é prática por si mesma e por isso tem por base a
razão legisladora incondicional.
Kant, A Religião nos Limites da Simples Razão, Lisboa, Edições 70, 2013, pp. 32-34.

Estas considerações sobre o homem são necessárias, para explicar o que


é a história ou a religião em Kant. Recordemos agora uma formulação do
imperativo categórico, que aparecia em quarto lugar na Crítica da Razão
Prática: «Cada um deve propor-se, como fim último e supremo, o soberano
bem possível no mundo». Em estrita concordância com esta formulação,
Kant acentuou muito bem a ideia da filosofia como «um guia para o
conceito em que se deve colocar o soberano bem e para a conduta mediante
a qual se pode atingi-lo». Ora bem, nesta concepção da Filosofia resulta que
história e religião são as peças que fecham o sistema kantiano, as que lhe
dão amplitude, às quais tudo se ordenava, porque elas encerram o segredo
da realização humana, motor primeiro dessa complexa actividade –
mundana e académica ao mesmo tempo – que é o filosofar para Kant.
Com efeito, Kant concebe a história como um desenvolvimento
constantemente progressivo, embora lento, das disposições originárias do
género humano na sua totalidade. A filosofia da história kantiana aborda as
seguintes questões: em que medida e sob que condições e até que ponto a
história, enquanto evolução da comunidade humana, pode conduzir à
realização do soberano bem.
Kant estabelece a ideia de uma «sociedade de cidadãos do mundo» e
promove a acção prático-política da razão para organizar a sociedade nesse
sentido, acção que deve comportar a maior realização possível da liberdade.
Em contrapartida, Kant reajusta o lugar e significado da religião e
estabelece a ideia do soberano bem como união de virtude e felicidade.

4.2. História

A História é uma consequência necessária da natureza do homem: um


conjunto de disposições, como vimos mais acima. Mas «todas as
disposições naturais de uma criatura estão destinadas a desenvolver-se
alguma vez de uma maneira completa e em conformidade com o fim».
Realização completa e atingir o seu fim, referidos os dois aspectos às
disposições humanas, são, segundo Kant, o «primeiro» princípio da história.
Primeiro e necessário para a explicar, mas não suficiente.
O conceito de história ilumina-se para Kant quando adverte que um só
homem, essa «única criatura racional da Terra», não pode, como indivíduo,
desenvolver completamente todas as disposições originárias da natureza
humana. A tarefa, na sua totalidade, está confiada à espécie. Daí o curso
temporal da história («segundo» princípio).
Esse momento que será o desenvolvimento pleno da natureza é a meta
das acções humanas e o que dá vigência aos princípios práticos da razão.
Deste modo, pode dizer-se do homem e só dele que, longe de ser conduzido
pelo instinto ou por conhecimentos inatos é obra de si próprio («terceiro»
princípio). Esta tese kantiana deve ser entendida na sua pureza mais
genuína como assentando no reconhecimento da disposição «racional» do
homem, que em si mesma implica a liberdade.
Kant referiu mais pormenorizadamente a explicação da história, dada a
complexidade deste conceito, que assenta em múltiplos «princípios».
Aludamos em resumo a mais dois.
A diversidade das disposições originárias da natureza joga como
promotor do seu próprio desenvolvimento, justamente pelo antagonismo
dessas mesmas disposições. Neste princípio explicativo, Kant vislumbrou
claramente a tensão dialéctica da história, uma tensão radicada nas
oposições indivíduo-sociedade, fenómeno-númeno, o empírico-ético das
acções humanas. É neste contexto que Kant alude claramente à «insociável
sociabilidade» dos homens.
Kant, por fim, tem de dar mais um passo. A realização da essência
humana exige à sociedade que se justifica como aspecto indispensável da
compreensão da história. «O magno problema da espécie humana», para
cuja solução o homem é compelido pela natureza, é o estabelecimento de
uma sociedade civil que administre o direito de modo universal.
A sociedade, assim entendida, como meta última da tarefa que é a
história, significa simultaneamente: (l um meio onde se encontre a maior
liberdade; 2) um meio que contenha a mais rigorosa determinação e
segurança dos limites dessa liberdade. No entender de Kant, poder e direito
devem conjugar-se estreitamente na constituição da sociedade. E só nela
assim entendida poderá ser alcançada a suprema intenção da natureza, que é
o desenvolvimento de todas as suas disposições.
Há que insistir em que essa sociedade, assim entendida, é antes de mais
uma tarefa sempre aberta, um problema que não poderá ser resolvido «sem
que exista uma relação exterior entre os Estados». A ideia de uma liga de
nações, de uma sociedade internacional, é o último círculo do horizonte no
qual se move a compreensão kantiana da história. A história procura, como
soberano bem, a organização de uma sociedade que produza a suprema
intenção da natureza. Hoje, diríamos uma sociedade plenamente justa.
Duas coordenadas marcam, definitivamente, o «espaço» deste soberano
bem, enquanto realizável na história: por um lado trata-se de uma tarefa
sempre aberta e ilimitada, por outro, é uma tarefa que em última análise, é
de todo o género humano, mas não do indivíduo.

4.3. A Religião

«O soberano bem possível no mundo» é a proposta da liberdade, como


indica a quarta fórmula do imperativo categórico. O bem soberano ou
supremo é o objecto e fim da razão pura prática, é a lei essencial de toda a
vontade livre por si mesma. Mas de onde virá esse supremo bem que a
razão moral nos leva a propor-nos como objecto do nosso esforço? O dar-se
a si mesma a lei é, para uma vontade, a essência da sua liberdade. Mas isso
não explica que seja supremo o bem que a liberdade se propõe. A moral não
necessita de fundamento material para a determinação do livre arbítrio.
Necessita sim de trazer para a luz essa relação entre liberdade e supremo
bem e por isso Kant recorre à religião. Na explicação desta relação, Kant
fundamenta aquilo a que chama «a passagem da moral e religião».

Há dois momentos essenciais na determinação da religião. Em primeiro


lugar, o reconhecimento de que o supremo bem está referido a uma vontade
moralmente perfeita, santa e toda-poderosa. Em segundo lugar, considerar
os deveres da vontade livre como mandamentos dessa perfeita vontade,
como mandamentos divinos, embora não como ordens arbitrárias e
contingentes de um poder estranho. Tais mandamentos continuam a ser leis
essenciais de toda a vontade livre, mas são preceitos na medida em que
somente de uma vontade moralmente perfeita podemos esperar o bem
supremo, que nos torna felizes.
A moral Kantiana, que não se apoia no recurso à felicidade – como
vimos –, «enlaça-se», por assim dizer, com a felicidade, pois esta resulta da
realização do bem moral. Por isso – assinala Kant –, a moral não é
propriamente a doutrina de como nos tornarmos felizes, mas de como
devemos chegar a ser dignos da felicidade. Só depois, quando a religião
sobrevém, nasce também a esperança de sermos um dia participantes dessa
felicidade, na medida em que procurámos não ser indignos dela.
Deste modo de fundamentar a religião derivam duas consequências
importantes muito relacionadas entre si.
Em primeiro lugar, a rejeição de toda a religião positiva por parte de
Kant, ou mais precisamente, dito com terminologia já hegeliana, a rejeição
de toda a positividade na religião.
Em segundo lugar, a redução da religião aos limites da simples razão ou
à racionalização da religião; o que põe o problema de como o conceito de
religião se relaciona com o conceito de religião revelada (que não deve
identificar-se exactamente com o de religião possível).
Relativamente ao primeiro, Kant entende por «religião positiva» toda a
religião que se reduz a um conjunto de ritos e dogmas que são aceites e
mantidos apenas pela autoridade de uma tradição ou por uma igreja
institucionalizada, sem a mediação da razão prática e o reconhecimento do
seu carácter autónomo.
Relativamente ao segundo, parece bastante claro que Kant, face à
religião positiva tal como acabamos de descrevê-la, tentou fundar um
conceito de religião natural ou moral, o que é perfeitamente coerente com o
processo de secularização iluminista em que está inserido. Mas, por outro
lado, convém notar que a religião moral é a consideração estritamente
filosófica da religião, segundo os princípios da razão e os postulados e
condições de realização dos mesmos que a razão exige; isto é, trata-se da
religião dentro dos limites da própria razão. Isso não significa precisamente,
na intenção kantiana, a negação de uma religião revelada, cuja possibilidade
subsiste como algo que ultrapassa os limites da razão. Religião moral e
revelada relacionam-se em Kant não já simplesmente como duas esferas
compatíveis, mas inclusivamente mesmo harmónicas.
Torna-se assim claro como o sistema crítico de Kant controla –
debilitando-o, por assim dizer – o simples reducionismo do acto religioso à
moral, ao mesmo tempo que eleva essa religiosidade natural e é até capaz
de superá-la.

COMUNIDADE ÉTICA E COMUNIDADE JURÍDICA


A constituição de uma comunidade ética implica necessariamente que
todos os indivíduos se submetam a uma legislação pública e que todas as
leis que os unem sejam encaradas como mandamentos provenientes de
um legislador comum. Tratando-se de uma comunidade jurídica, o
legislador seria no entanto a própria multidão unida como um todo (é o
caso das leis constitucionais), uma vez que a legislação parte do seguinte
princípio: de acordo com uma lei universal, a liberdade individual deve
submeter-se às condições de coexistência com a liberdade dos outros;
neste caso, a vontade geral origina assim uma coacção exterior legal.
Por outro lado, e no caso de uma comunidade ética, o povo em si não
pode constituir-se como legislador. Aliás, e sendo uma comunidade ética,
todas as leis visam a moralidade das acções (ou seja, é algo interior e que
não pode ser submetido a leis humanas públicas). Ao passo que as leis
humanas de uma comunidade jurídica visam apenas a legalidade das
acções (que se manifestam de modo visível), o mesmo já não acontece
com a moralidade, que é interior. Por conseguinte, tem de haver outra
entidade acima do povo para legislar publicamente sobre uma
comunidade ética. Não se julgue, porém, que a origem destas leis éticas
radica na vontade deste Ser superior (por exemplo, que certos estatutos
não teriam um carácter obrigatório sem haver um mandamento prévio),
pois então não se trataria de leis éticas e o dever de as respeitar já não
seria uma virtude livre mas um dever jurídico susceptível de coacção.
Deste modo, uma comunidade ética só pode ter como legislador
supremo aquele em relação ao qual todos os verdadeiros deveres (logo,
também os de natureza ética) representam simultaneamente mandamentos
seus. Deste modo, só pode ser alguém que conheça os corações e que
consiga penetrar no mais fundo das intenções de cada indivíduo; aliás, e
como em qualquer comunidade, tem de ser alguém que faça com que
todos recebam o equivalente aos actos praticados. Isto corresponde ao
conceito de Deus como soberano moral do mundo. Assim, só poderá ser
considerada como comunidade ética um povo que obedeça a leis divinas,
ou seja, um povo de Deus submetido a leis morais.
Kant, A Religião nos Limites da Simples Razão, Lisboa, Edições 70, 2013, pp. 104-105.
13. HEGEL E A DIALÉCTICA

INTRODUÇÃO

O sistema kantiano provocou uma profunda transformação do pensar


que afectou todas as esferas da reflexão filosófica. Relativamente a esta
transformação, a filosofia kantiana aparecia como um ponto de referência
obrigatório e ao mesmo tempo como um embaraço. Prosseguir o espírito do
kantismo significava ao mesmo tempo recusar muitas das suas teses. É que
a filosofia crítica kantiana quis ser um difícil jogo de equilíbrio da razão,
vigilante, respeitosa e crítica ao mesmo tempo – e não é supérfluo repisar o
último qualificativo – com todas e cada uma das suas instâncias. Três
grandes problemas, vividos como obstáculos, legava esta filosofia aos seus
sucessores: (a) a sua concepção do idealismo transcendental; (b) o problema
da coisa em si; (c) a oposição entre razão teórica e razão prática.
No tocante ao primeiro ponto, a filosofia posterior a Kant propõe-se
assumir até às últimas consequências a instância crítica e racional presente
naquele idealismo, levando-o à sua verdade última. O idealismo posterior a
Kant anula o carácter de «realismo empírico», com que se auto-reconhecia
o kantismo, devolvendo essa instância, julgada irracional, à razão.
Isso significa – em relação com o segundo ponto – que a coisa em si
kantiana será negada como a expressão prototípica de dualismos e de
limites que, se são reconhecidos pela razão, hão-de ser explicados por ela,
do que paradoxalmente resulta que não há nada incognoscível, ou que,
enquanto incondicionado, esteja à margem e por cima da razão.
Para superar esse estado de cisões e de redutos não racionais, era preciso
potenciar e desenvolver as teses kantianas na linha da razão prática. Tanto o
idealismo subjectivo de Fichte como o idealismo objectivo de Schelling
serão intentos meritórios nessa linha. Mas a superação do kantismo, como
uma reimplantação nova daquele criticismo, só será alcançado no sistema
de Hegel.

Este capítulo é composto pelas seguintes partes:


1. Enquadramento histórico-social e filosófico da obra de Hegel.
2. Sentido e estrutura da dialéctica.
3. O conceito de espírito e suas formas.
4. A «esquerda hegeliana». Feuerbach.
1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-SOCIAL
E FILOSÓFICO DA OBRA DE HEGEL

A filosofia de Hegel surge, como toda a verdadeira filosofia, em estreita


dependência da situação social, cultural e filosófica do seu tempo, e numa
tentativa de resposta racional aos problemas pendentes da referida situação,
que era singularmente complexa. Vejamos os seus momentos mais
fundamentais.

1.1. Enquadramento histórico-social

A filosofia de Hegel tem como poucas uma clara, rica e concreta


implantação político-social, alimenta-se e vive em estreita relação com os
acontecimentos do seu tempo, repensa e reassume toda a tradição ocidental
e elabora uma teoria ou ideia sobre a realidade na multiplicidade das suas
formas e aspectos, teoria orientada para propor e iniciar uma realização
mais plena da liberdade e da razão. É que a situação histórica de Hegel
constitui, em seu entender, uma falta de liberdade: era preciso, pois, pôr a
realidade em consonância com as exigências da razão.
O enquadramento histórico-social da época está configurado por estes
factores: a situação na Alemanha, o ideal da polis grega, o cristianismo e a
descoberta da «subjectividade», e a Revolução Francesa. Vejamos tais
factores em separado:

1.1.1. A situação da Alemanha


A Guerra dos Trinta Anos deixou a Alemanha muito atrasada «política e
economicamente». Não existia nela um Estado moderno, antes pelo
contrário, havia um excessivo acantonamento assente num feroz despotismo
feudal, tanto mais forte quanto carecia de jurisdição centralizada. A
Alemanha não era um Estado. A liberdade estava subjugada e a censura
privava também da livre expressão. Atacava-se a cultura e em geral tudo o
que significava esclarecimento. Por outro lado existia um numerosíssimo
campesinato, a industrialização era mínima e não havia uma classe média
poderosa que pudesse lutar para transformar este estado de coisas.
Hegel viveu a Alemanha do seu tempo como um ataque às suas
aspirações democráticas e de liberdade e concebeu muito claramente a
necessidade de um Estado moderno e racional.

HISTÓRIA, LIBERDADE E FILOSOFIA


Pode dizer-se que a história universal é a exposição do espírito, de
como o espírito labora para chegar a saber o que é em si. Os orientais não
sabem que o espírito, ou o homem como tal, é livre por si. E como não o
sabem, não o são. Sabem apenas que há alguém que é livre. Mas,
precisamente por isso essa liberdade é um mero capricho, barbárie e
paixão rude, ou também doçura e mansidão, um acidente casual ou um
capricho da natureza. Por isso, este alguém é um déspota e não um
homem livre, um humano. A consciência da liberdade só surgiu com os
Gregos, e por isso os Gregos foram livres. Mas tanto eles como os
Romanos só souberam que alguns são livres e não souberam que o
homem como tal também o é. Platão e Aristóteles não souberam isto. Por
isso os Gregos não só tiveram escravos, cuja vida e preciosa liberdade
estavam vinculadas à escravidão, como também essa sua liberdade foi ao
mesmo tempo apenas um produto acidental, imperfeito, efémero e
limitado, e uma dura servidão do humano. Só as nações germânicas é que
chegaram, com o cristianismo, à consciência de que o homem é livre
como homem e que a liberdade do espírito constitui a sua natureza mais
própria. Esta consciência surgiu pela primeira vez na religião, na região
mais íntima do espírito. Mas introduzir este princípio no mundo temporal
constitui um trabalho cuja solução e desenvolvimento exigia uma
dedicação difícil e morosa.
Hegel, A Razão na História, Lisboa, Edições 70, 2014, pp. 64-65

1.1.2. O ideal da “polis” grega

Como contraponto deste estado de coisas, desta atomização radical da


vida, a «polis grega» aparece a Hegel como um modelo crítico a respeito do
presente. Na polis grega cumpria-se a harmonização do indivíduo com o
«todo social», a vida do homem consistia, e esgotava-se na vida e no
«espírito» da polis. Ao ponto de o indivíduo não ser nada à margem e
separado (excluído) da comunidade cultural, social e política da «cidade».
Neste aspecto, é muito importante o conceito de «espírito do povo»
(Volksgeist), o único concreto e efectivo, já que o outro, o espírito
individual, é apenas abstracto e, tomado em sua abstracção, irreal e sem
vida. É no «espírito do povo» que o indivíduo se constitui e realiza. No
entanto, Hegel pensa que esta realização e harmonia é deficiente e
meramente «formal», pois o indivíduo não descobriu a consciência da sua
própria individualidade e da sua liberdade. Na polis grega apenas alguns
conseguiram ser verdadeiramente livres.

1.1.3. O cristianismo e a «subjectividade»

Relativamente à «polis grega» o cristianismo supõe negativamente a


dissolução da vida harmónica e em conjunção interna com a comunidade
social; e encarava positivamente a descoberta do conceito «subjectividade»,
que será interpretado por Hegel como um momento absolutamente
necessário para a realização plena da liberdade e para o seu
desenvolvimento e perfeição do espírito. A religião constitui para Hegel um
aspecto fundamental da vida de um povo.
A «subjectividade» significará, em última análise, uma função crítico-
negativa relativamente à positivização da vida religiosa e em geral da vida
político-social. O termo «positividade» significa a «constrição» que se
impõe à vida a partir de uma realidade «exterior» e imposta pela força da
tradição, sem estar fundamentada na própria razão. «Positividade»
equivaleria a «alienação». Ora, a descoberta da «subjectividade» e o seu
carácter de princípio racional e livre representará para sempre, na opinião
de Hegel, um princípio orientador na organização social e política da vida
do espírito.

1.1.4. A Revolução Francesa

Para Hegel a Revolução significou fundamentalmente o valor supremo


da razão e o seu triunfo sobre a realidade. O princípio da Revolução
estabelecia que o pensamento deve governar a realidade e a ordem político-
social; «todo o racional é real», dirá Hegel, isto é, só pode considerar-se
como verdadeira realidade a que realiza as exigências e os fins da razão. A
Revolução propunha-se unir a vida social-comunitária com o princípio da
«subjectividade», no sentido exposto, com a realização da liberdade e o
saber-se livre.
No entanto, a experiência do «Terror», que Hegel interpretou como a
exasperação do princípio subjectivo da liberdade (na forma de uma «virtude
subjectiva» – Robespierre – e como «vontade interna», o que «traz consigo
a tirania mais terrorífica»), a experiência do «Terror», dizíamos, mostrou a
Hegel a tremenda dificuldade de conjugar racionalmente a liberdade do
homem e a organização político-social num equilíbrio em que nenhum dos
pólos ou momentos seja reduzido e dissolvido no outro, pois em tal caso
acabar-se-ia com a liberdade objectiva e com a vida do espírito.

1.2. O enquadramento filosófico


A obra de Hegel pode considerar-se como a maturidade filosófica e
cultural da tradição ocidental; o seu pensamento passa por ser o último
grande sistema filosófico, no qual confluem e se conjugam praticamente
todas as filosofias anteriores. O próprio Hegel concebeu e interpretou a sua
obra como a realização plena, numa interna unidade, de todas as correntes
anteriores, que serão assim consideradas como momentos que conduzem ao
sistema hegeliano e que, por conseguinte, são assumidas – ainda que
transformadas – nele.
Por isso, a pormenorizada explicação do enquadramento filosófico da
obra de Hegel requereria uma revisão de toda a filosofia ocidental, tal como
ele próprio faz no seu livro A Razão na História. Importa no entanto
sobremaneira, e isso bastará, chamar a atenção para dois pontos
fundamentais.
Em primeiro lugar, a filosofia de Hegel propõe-se pensar a relação entre
os dois grandes e fundamentais conceitos postos em evidência pela tradição
filosófica anterior: natureza e espírito. O primeiro, principal objecto de
investigação por parte da filosofia grega; o segundo, descoberta do
cristianismo sobre o qual se apoiou e em torno do qual girou especialmente
a filosofia moderna (a partir de Descartes), sob o nome de consciência ou
subjectividade.
O projecto filosófico hegeliano consiste em pensar a conexão interna
entre um e outro, de modo a conseguir elaborar uma teoria unitária,
total e fechada sobre toda a realidade. Mas para isso Hegel deve levar a
cabo uma crítica e superação da obra que, em seu entender, alcançara a
maior maturidade «crítica e reflexiva» e que, no entanto, oferecia as
maiores dificuldades para esse projectado «sistema unitário, fechado e
total» em que deve consistir a filosofia. Essa obra é a filosofia de Kant.
Importa recordar, a propósito, que a filosofia kantiana estabelecera e
mantinha como «insuperáveis» os seguintes conflitos:
a) A distinção entre entendimento e razão. O entendimento era uma
faculdade cognoscitiva do finito e limitado, que só consegue saber das
coisas enquanto simples «fenómenos». A razão «tende», para o infinito e
absoluto, para o incondicionado que, no caso de poder ser alcançado
cognoscitivamente, pode fundar e tornar possível um conhecimento
absoluto e total; a razão procura o absolutamente incondicionado, o «em si»
absoluto. No entanto, neste projecto fica em mera intenção sem que seja
possível à razão (pelo menos na interpretação que Kant dela fez) alcançar o
absoluto: a razão procura a totalidade, mas sem poder atingi-la. Daí que,
embora «formalmente» seja uma razão absoluta, «materialmente» e em seu
exercício é sempre finita e limitada.
A distinção entre «entendimento» e «razão» implica um não menos
grave conflito, a saber:

Hegel
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) nasceu em Estugarda, no mesmo ano em que
nasceram Hölderlin e Beethoven. Em Tubinga foi companheiro e amigo do poeta Hölderlin e do
filósofo Schelling. Nessa época participaram os três de um vivo entusiasmo pela Revolução
Francesa e pela Antiguidade grega. Em 1793 Hegel abandona Tubinga para ir como perceptor
para Berna. Mais tarde transfere-se para Frankfurt e em 1801 para Iena, onde se encontrava
Schelling. São de destacar neste período duas publicações: Fé e Saber e Diferença entre o
Sistema de Fichte e Schelling.
A primeira obra só aparecerá em 1807 – a Fenomenologia do Espírito. Nesta mesma época,
Hegel enfrenta-se com sérios problemas pessoais: a ruptura com Schelling e grandes
dificuldades económicas. Tudo isso o obriga a abandonar Iena. A partir de 1808 é director e
professor de filosofia do «Ginásio» de Nuremberga. Nesta cidade nascerá outra obra chave do
pensamento hegeliano: Ciência da Lógica (os seus dois volumes são publicados em 1812 e em
1816). Justamente neste ano Hegel passa para a Universidade de Heidelberga. Um ano mais a
sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas vê a luz. No ano seguinte muda-se de novo, desta vez
para a Universidade de Berlim, onde chega em pleno triunfo profissional. Aqui viria a falecer.
Outra das suas obras mais importantes e de grande influência é Princípios da Filosofia do
Direito. E como obras póstumas, recolhidas a partir das suas lições, têm particular interesse a
Introdução à História da Filosofia, A Razão na História – Introdução à Filosofia da História
Universal e as Lições sobre Filosofia da Religião.
b) A distinção na realidade entre fenómeno e númeno ou coisa em si
(utilizaremos neste contexto os dois termos como sinónimos). Este radical
conflito e cisão significa que, ao menos para o saber e para o conhecimento,
a ordem da realidade está dividida, sem que seja possível como
consequência elaborar uma teoria una, absoluta e total sobre a realidade na
sua integridade, ou se possa rejeitar a «hipótese» de que nem todo o real é
racional, isto é, em consonância com a natureza e o alcance da razão
humana que, enquanto finita, tem que deixar um âmbito inatingível ao seu
poder e, portanto, incognoscível.
As duas distinções apontadas impõem por seu turno uma terceira, a
saber:

c) A separação entre o ser e o dever ser. Esta terceira distinção tem as


«limitações» já indicadas nas duas anteriores, mas comporta também, de
um modo especial, e isso é o mais importante no seu caso, a radical
separação entre a «simples teoria» e a «práxis», entre o pensamento e a
acção, com a agravante, na opinião de Hegel, de que em última análise tal
separação conduz ao insucesso tanto a tarefa da teoria como a da práxis,
pois o seu desajuste é estrutural e permanecerá sempre assim, com a
consequente impossibilidade de realizar plenamente o «dever-ser», que no
entanto se apresenta e se quer impor como absoluto e plenamente real e
efectivo;

d) As distinções apontadas podem resumir-se numa quarta: o conflito


entre o finito e o infinito (ou, com outras expressões, entre o mundo e
Deus, a natureza e o espírito, etc.). Com a grave circunstância, além disso,
de que um infinito distinto e separado do «finito» se converte, diz Hegel,
em finito.
Aristóteles concebeu expressamente a filosofia como o que o próprio
nome indica: uma «tendência» (filo) para a «sabedoria» (sofia), isto é,
desejo de um saber universal e necessário da totalidade do real. Para Kant,
embora a filosofia deva pugnar por adquirir tal saber absoluto (tornar-se um
«sistema», diz Kant), uma tarefa inatingível para a razão humana finita:
justamente por isso, para Kant a filosofia não pode ser senão «crítica».
Hegel diz que a filosofia tem de deixar de ser «tendência» para o saber, para
ser um efectivo e pleno «saber», para ser ciência (Wissenschaft, escreve
ele). Ou seja, não «crítica» mas sistema: o sistema absoluto da totalidade do
real, um «sistema racional».
É este, nem mais nem menos, o projecto hegeliano. A sua obra tem um
claro significado «teórico» ou de interpretação do real; mas surge num
enquadramento histórico-social, alimenta-se da sua implantação mundana e
procura «iluminar» o sentido em que toda a realidade, especialmente a
realidade histórica e social, tem de chegar a ser plenamente racional. O
adjectivo que melhor define a concepção hegeliana da realidade é o de
«dialéctica».
2. SENTIDO E ESTRUTURA DA DIALÉCTICA

2.1. Sentido da dialéctica

O termo «dialéctica», que tem uma tradição muito antiga na filosofia


(desde Platão a Kant), está especialmente ligado ao nome de Hegel, ao
ponto de o adjectivo «dialéctico» servir para caracterizar com muita
precisão toda a sua filosofia (tanto a sua teoria do conhecimento e do
método, como a sua ideia da realidade: fala-se assim de método dialéctico
ou de natureza dialéctica do real.
Atendendo a esta estreitíssima relação entre a «filosofia» de Hegel e a
«dialéctica», o conceito que se tenha da primeira modelará o da segunda e
vice-versa. Hegel é considerado um filósofo «idealista» (embora não se
saiba muito bem e claramente o que este termo quer dizer aplicado a
Hegel), e por consequência a dialéctica hegeliana é considerada como algo
de sumamente abstracto, sem uma referência concreta à realidade e às suas
dimensões histórica, social, política, etc. A dialéctica seria entendida como
um simples e incontrolado jogo entre conceitos; da mesma maneira a
filosofia de Hegel seria entendida como o sonho que reduz o real e a
multiplicidade das suas formas a simples conceitos ou ideias (idealismo).
No entanto, semelhante modo de entender a questão é excessivamente vago
e desconceituado.

2.1.1. Carácter concreto e histórico


Sublinhámos já que a filosofia de Hegel surgiu num preciso
enquadramento histórico e social, tentando interpretar muito real e
concretamente a situação «dividida» e de «falta de liberdade» do homem. O
termo «dialéctica» é utilizado por Hegel para compreender e exprimir a
situação real do mundo; na dialéctica hegeliana vive uma vontade de
efectiva implantação numa realidade alienada, contraditória e que pugna
por superar tal situação. A dialéctica hegeliana, como escreveu o pensador
marxista Ernst Bloch, «não é um parto virginal da suposta vida própria dos
conceitos»; pelo contrário, «há na dialéctica hegeliana algo do vento da
Nova Fronda, o hálito da transformação do existente que sopra dos lados da
Revolução Francesa» (Bloch, O Pensamento de Hegel).
A dialéctica hegeliana tem pois uma clara radicação histórica e concreta:
exprime, por um lado, a contradição do mundo existente; e por outro a
necessidade de superar os limites presentes, movida pela exigência de
realizar de um modo total e efectivo (numa organização social e política) a
liberdade e a infinitude.

2.1.2. A dialéctica, estrutura da realidade

Noutro sentido, enquanto expressão da filosofia de Hegel, a dialéctica


significa a radical oposição de Hegel a toda a interpretação fragmentária e
atómica da realidade e conhecimento.
O carácter dialéctico do real significa que cada coisa é o que é, e só
chega a sê-lo em interna relação, união e dependência com outras coisas, e
em última análise com a totalidade do real. A filosofia hegeliana, enquanto
dialéctica, concebe a realidade como um todo, sem que isso em nada afecte
a relativa independência de cada coisa na sua singularidade.
A concepção dialéctica do real opõe-se ao crasso positivismo e à
interpretação empírico-fáctica da experiência. Face à pretendida autonomia
e independência dos factos, tal e como são dados de um modo imediato na
experiência, a estrutura dialéctica do real mostra que os factos são apenas
um jogo «subterrâneo» de relações, que são as que realmente, e em última
instância, constituem e esgotam as coisas, apesar da sua imediata e aparente
consistência e autarcia individual. Para um pensamento dialéctico, «os
factos não são, de per si, na realidade, algo mais do que aquilo que o mar
dos cruzamentos dialécticos faz vir, diluído, à superfície acessível aos
sentidos. Este mar, com suas correntes, é o que o conhecimento científico
tem de sondar, sem se limitar a ver a simples imediatez dos factos; estes não
são mais do que simples indícios para o verdadeiro conhecimento» (Bloch,
o. c.).
Aliás, o carácter dialéctico do real não significa apenas a sua «natureza
relacional», mas, ainda mais originariamente, que cada coisa só é o que é, e
consegue sê-lo no seu contínuo devir e processo; isto é, a realidade,
enquanto dialéctica, não é fixa nem determinada de uma vez por todas, mas
está num contínuo processo de transformação e mudança, cujo motor é
simultaneamente tanto a sua interna limitação e desajuste em relação à sua
exigência de infinitude e absoluto, como a interna relação em que está com
outra coisa ou realidade, que neste aspecto aparece como o seu contrário.
A realidade enquanto dialéctica é pois processual, regida e movida
pela contradição, internamente relacionada (inter-relacional) e
constituída como oposição de contrários. Deste modo, cada realidade
particular remete para a totalidade, e só pode ser compreendida e explicada
em relação ao todo; por outro lado, cada coisa não é senão um momento do
todo, que se constitui na totalidade, mas que é também assumida e
dissolvida nela. Hegel exprime de um modo preciso e breve tudo o que
vimos dizendo com a frase «o verdadeiro é o todo». (Esta frase pode soar
abstracta, mas na realidade tem um significado muito concreto e
consequências de extrema importância, como se poderá verificar pela
análise da sua filosofia da história ou da sua filosofia do direito, por
exemplo).

DIALÉCTICA E NEGATIVIDADE
A consciência, como ser imediato ao espírito, comporta os dois
momentos do saber e da objectividade negativa ao saber. Quando o
espírito se desenvolve neste elemento e nele exerce os seus momentos,
esta oposição corresponde a estes momentos, que aparecem todos como
imagens da consciência. Este caminho que a consciência faz é a ciência
da experiência; a substância com o seu movimento é considerada como
objecto da consciência. Dado que nela só há substância espiritual, a
consciência só sabe e concebe o que encontra na sua experiência, e isso
só acontece totalmente enquanto é objecto do seu-si-mesmo. Em
contrapartida, o espírito converte-se em objecto porque este movimento
consiste em tornar-se no ele-mesmo-um-outro, quer dizer, em objecto do
seu-si-mesmo, e superará este ser-outro. E o que se chama experiência é
inteiramente este movimento no qual se estranha o imediato e o
experimentado, ou seja, o abstracto, quer pertença ao ser sensível ou ao
que é simplesmente pensado, para logo retornar a si depois deste
estranhamento, e isso é tanto assim como é exposto na sua realidade e na
sua verdade enquanto património da consciência.
A desigualdade que se produz na consciência entre o eu e a substância
(que é o seu objecto) é a sua diferença, o negativo em geral. Pode ser
considerado como defeito de ambos, mas é a sua alma que move os dois;
daí que alguns pensadores antigos tenham concebido o vazio (certamente
como o motor) como o negativo, sem captar todavia o negativo em si
mesmo. Ora, se este algo negativo aparece antes do mais como
desigualdade do eu relativamente ao objecto, na mesma medida é também
a desigualdade da substância relativamente a si mesma.
Licitamente, a ciência só pode organizar-se através da própria vida do
conceito; a determinabilidade que desde o exterior, desde o esquema, se
impõe à existência é, por si, pelo contrário, a alma do conteúdo pleno que
se move a si mesma. O movimento do que é consiste, por um lado, em
tornar-se no mesmo-outro, convertendo-se no seu conteúdo imanente; por
lado, o que é volta a recolher em si mesmo este desenvolvimento ou este
ser ali, ou seja, converte-se a si mesmo em um momento e simplifica-se
como determinabilidade. Naquele movimento, a negatividade é a
diferenciação e a afirmação da existência; este recolher-se em si é tornar-
se simplicidade determinada. Deste modo, o conteúdo torna claro que
conferiu a si mesmo a sua determinabilidade e não a recebeu como
imposição de outro, e assim ergue-se por si no momento e num lugar do
todo.
Hegel, Fenomenologia do Espírito.

2.1.3. A dialéctica, estrutura do conhecimento

O carácter dialéctico (tal como o estamos a considerar) tem igual alcance


e significado no que se refere ao saber («conhecimento dialéctico»,
«método dialéctico»). O tema do conhecimento tem uma inserção clara na
filosofia de Hegel. Com efeito, entre as diferentes (e não forçosamente
contraditórias) caracterizações que Hegel dá da filosofia encontra-se esta:
«o conhecimento efectivo do que é em verdade» (Fenomenologia do
Espírito, Introdução). Ou seja, a teoria acerca da realidade exige e anda de
mão dada com a explicação do saber, numa palavra, do «pensar». Como já
é sabido, a relação «ser-pensar» é uma dimensão fundamental da filosofia
ao longo da sua história.
Ora, segundo Hegel, também o conhecimento tem uma estrutura
«dialéctica». E tem-na não de modo originário mas derivado: como a
realidade é dialéctica, também é dialéctico o conhecimento, na medida em
que este é um momento ou dimensão do real, e na medida em que o saber se
configura e se exprime dialecticamente ao manifestar a natureza dialéctica
da realidade.
Mas na verdade – e é importante valorizar isto – tais distinções entre
conhecimento e realidade, pensar e ser, etc., são inadequadas segundo
Hegel, precisamente em virtude do carácter dialéctico da realidade em geral
e do princípio de que «o verdadeiro é o todo». Em qualquer caso o que há é
a interna relação estrutural entre ser e pensar ou, por outras palavras, entre
sujeito e objecto.
Depois do que ficou dito, bastará acrescentar o seguinte acerca da
estrutura dialéctica do saber:

a) O conhecimento consiste estruturalmente na relação entre o sujeito e


o objecto. Cada polo desta relação só o é por causa do outro, com a
particularidade de que cada um deles «nega e contradiz» o outro, dando-se
entre eles uma desigualdade ou desajuste que impõe um processo de
transformação com tendência para a igualdade ou identidade.

b) O processo destinado a superar a diferença entre objecto e sujeito


tende para a identidade de ambos, isto é, para a redução de um ao outro. Só
na identidade completa que se atinge na redução, é possível alcançar
um conhecimento absoluto, isto é, o saber da totalidade do real.

Como já acentuámos, Hegel pretendeu fazer da filosofia um sistema e


acabar com a admissão de um «em si» incognoscível, numa palavra,
alcançar um conhecimento absoluto. Segundo Hegel, só um saber total e
absoluto merece o nome de verdadeiro conhecimento (Hegel dá-lhe o nome
de «ciência», num sentido que tem muito pouco a ver com a sua acepção
científico-positiva.

DIALÉCTICA E EXPERIÊNCIA
Aquilo a que propriamente se chamará experiência é este movimento
dialéctico que a consciência efectua em si mesma, tanto no seu saber
como no seu objecto, enquanto o novo objecto verdadeiro surge perante
ela. Nesta relação, e no processo atrás referido, deve salientar-se com
grande precisão um momento por meio do qual se derramará uma nova
luz sobre o lado científico da exposição que se segue. A consciência sabe
algo, e este objecto é a essência ou o em-si, mas este é também o em-si
para a consciência, e daí a ambiguidade deste algo verdadeiro.
Verificamos que a consciência tem agora dois objectos: um é o primeiro
em-si, o outro é o ser para ela deste em-si. De momento, o segundo
parece ser a reflexão da consciência em si-mesma: não uma representação
de um objecto mas do seu saber daquele primeiro. Mas, como atrás
salientámos, o primeiro objecto muda e deixa ser o em-si para se
converter na consciência num objecto que é em-si somente para ela, o
que, por seu lado, significa que o verdadeiro é o ser para ela deste em-si
e, por conseguinte, que isto é a essência ou o seu objecto. Este novo
objecto contém a anulação do primeiro e é a experiência efectuada sobre
ele.
Hegel, Fenomenologia do Espírito.

O conhecimento dialéctico é um saber absoluto, não só porque conhece


a totalidade do real, mas porque, além disso, conhece cada coisa ou
realidade particular em relação ao todo como formando um momento do
todo. Assim, os saberes relativos (ou parciais) só são válidos quando em
relação com o conhecimento absoluto e graças a este.
A tese «epistemológica» de que o conhecimento dialéctico é um saber
absoluto está, pois, em estreita conexão com a tese «ontológica» de que o
verdadeiro é o todo.

c) Na redução à identidade absoluta que constitui o verdadeiro e pleno


conhecimento dialéctico tem lugar a dissolução do objecto no sujeito: será
pois no sujeito e como sujeito que se atinge a identidade absoluta; esta será
uma identidade do sujeito: uma identidade subjectiva. Mas com isto não só
se cumpre uma redução «epistemológica» (do objecto de conhecimento ao
sujeito do conhecer), mas também e além disso uma redução ontológica (do
ser ao pensar): «segundo o meu modo de ver» – escreve Hegel – «tudo
depende de que o verdadeiro não seja entendido ou expresso como
substância, mas também e na mesma medida como sujeito»
(Fenomenologia do Espírito, Prólogo).
E sendo o sujeito do saber, em última análise, pensamento ( Denken),
razão (Vernunft) ou ideia, a redução ao sujeito, a redução do ser ao pensar,
converte a filosofia hegeliana em idealismo absoluto. Pelo que em
definitivo não se trata tanto da redução do ser ao pensar, como da
interpretação do ser como ideia ou razão. «Todo o real é racional»,
escreverá Hegel. Por isso, talvez seja o termo «espírito» aquele que melhor
exprime a natureza do real.
A passagem seguinte exprime muito bem e resumidamente a linha
fundamental de tudo o que expusemos: «Que o verdadeiro só é real como
sistema ou que a substância é essencialmente sujeito, exprime-se na
representação que enuncia o absoluto como espírito, o conceito mais
elevado de todos e que pertence à época moderna... Só o espiritual é o
real» (ibidem).

2.2. Estrutura da dialéctica

Após o que foi dito na secção anterior, parece-nos que fica clara uma
questão posta a propósito da dialéctica hegeliana: saber se é um método de
conhecimento (o «método dialéctico») ou algo mais. A dialéctica exprime e
constitui a natureza e estrutura do real; por isso também constitui o modo de
proceder do conhecimento e forma de aceder à captação e expressão do real
(«modo de proceder» e «forma de aceder» equivalem aqui a método, metá-
odós).

MOMENTOS DA DIALÉCTICA
§ 79. O lógico, segundo a forma, tem três aspectos: a) o abstracto ou
intelectual; b) o dialéctico ou negativo-racional; c) o especulativo ou
positivo-racional. Estes três aspectos não constituem as três partes da
lógica, mas são momentos de todo o lógico-real, de todo o conceito ou de
todo o verdadeiro em geral. Podem juntamente pôr-se sob o primeiro
momento, o intelectual, e manter-se assim separados uns dos outros;
deste modo, porém, não se consideram na sua verdade (...).
§ 80. a) O pensar, enquanto entendimento, atém-se à rígida
determinidade e à sua diferença relativamente às outras; uma tal
abstracção limitada surge no entendimento como subsistindo e existindo
por si.
§ 81. b) O momento dialéctico é o próprio suprimir-se de tais
determinações finitas e a sua transição para as opostas (...).
§ 82. c) O [momento] especulativo ou positivo-racional apreende a
unidade das determinações na sua oposição; é que se contém de
afirmativo na sua solução (Auflösung) e na sua passagem (Übergehen).
Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome – Vol. I, Lisboa, Edições 70, 1988, pp.
134-135

Costuma caracterizar-se a estrutura e essência da dialéctica recorrendo


às palavras «tese», «antítese» e «síntese», como três passos sucessivos nos
quais se cumpre a dialéctica. No entanto, já Hegel prevenira contra o grave
e constante risco de entender esta trilogia de um modo abstracto e
formalista, com a consequente desvirtuação da sua natureza.
Muitíssimo mais hegeliano é pensar a dialéctica como um todo estrutural
complexo constituído por três momentos ou aspectos que Hegel denomina:
a) o aspecto «abstracto ou intelectual»; b) o momento «dialéctico ou
negativo-racional»; c) o aspecto «especulativo ou positivo racional» (para a
sua pormenorizada e precisa consideração, veja-se o parágrafo 79 e segs. da
Enciclopédia das Ciências Filosóficas).
Estes três momentos da dialéctica hegeliana articulam-se constituindo
uma estrutura, cuja adequada compreensão se atinge mediante o que
poderíamos denominar «categorias» fundamentais da dialéctica e que são a)
imediatez-mediação; b) totalidade; c) negatividade-contradição; d)
superação. (A breve explicação que será necessário fazer destas categorias
encontra-se na 3.ª parte desta obra, capítulo 15, 3.1.1, a propósito da crítica
marxista à dialéctica hegeliana. No mesmo capítulo se explicitarão e
completarão algumas das teses mais importantes do sistema hegeliano).
3. O CONCEITO DE ESPÍRITO E SUAS
FORMAS

3.1. O conceito de espírito

Espírito significa para Hegel o objecto e o sujeito da autoconsciência, e


consiste em actividade, desenvolvimento e incessante progresso. Por isso se
torna extraordinariamente difícil e pobre caracterizá-lo à margem das
formas em que se configura, do seu desenvolvimento e resultados. O
espírito só consegue ser efectivamente o que é através das suas
manifestações. De um modo antecipativo, é possível a aproximação à sua
natureza mediante os conceitos de «eu», «sujeito» e de «infinito».

a) Espírito é aquilo a que me refiro com o pronome «eu», aquilo de que


sou consciente quanto mais intimamente entro em mim mesmo e me sei
como «actividade produtiva». O lema «conhece-te a ti mesmo» enquanto
saber do espírito e de suas manifestações exprime com rigor a tarefa da obra
de Hegel.

b) Enquanto actividade, o espírito é «sujeito», na medida em que está e


se constitui numa relação com o outro de si e nele se reconhece e a ele
reconhece como um momento de si mesmo. É uma contínua mediação com
toda a forma de objectividade.

c) Enquanto eu e sujeito, o espírito é «infinito»: não no sentido de uma


extensão indefinida, ou uma realidade transcendente, mas enquanto se
possui a si mesmo na relação absoluta com o outro e nesta relação objectiva
está consigo mesmo, quer dizer, se realiza como liberdade.

3.2. As formas do espírito

O desenvolvimento do espírito supõe, segundo a sua própria natureza,


um processo:

– O espírito na forma de relação consigo mesmo. Trata-se do espírito


subjectivo.
– O espírito na forma da realidade «como de um mundo a produzir».
Tal é o espírito objectivo.
– O espírito na forma da unidade da sua objectividade e da sua
subjectividade. Tal é o espírito absoluto.

3.2.1. O espírito subjectivo

a) Antropologia
O espírito que emerge da natureza manifesta-se em primeiro lugar como
alma. Esta é, diz Hegel, a latente idealidade ou imaterialidade da matéria. O
tratamento da alma começa com a secção acerca da alma natural, na qual se
reconhece uma espécie de vida psíquica difundida por amplos sectores da
natureza – não parcelada ainda em almas individuais. A alma natural possui
diferenças qualitativas correspondentes aos diferentes meios geográficos,
climas, estações e dias.
Mas a alma tem outra manifestação mais importante: a sua
individualidade que se manifesta nas diferenças inatas de capacidade,
temperamento e carácter individual. Hegel refere-se aqui também às
variações características da juventude, maturidade, etc. e bem assim às do
sexo. Atribui uma especial importância aos estados de sono e vigília, pois
proporcionam-lhe o material adequado para estudar a sensação, termo que
Hegel utilizou para se referir aos estados de consciência obscura. A
sensação equivale à consciência de um objecto exterior a nós próprios.
Da sensação passa Hegel ao sentimento, que representa o resultado
psíquico de um conjunto de sensações. Entre os sentimentos Hegel destaca
a loucura que consiste no domínio unilateral de alguma particularidade de
«sentimento de si» que não se adaptou ao mundo ordenado
sistematicamente. Mas a loucura não é apenas uma desordem, mas o
estigma da nossa grandeza espiritual: capaz de desligar-se de todo o
conteúdo finito, pode associar-se a qualquer forma de ser. O problema surge
quando essa possibilidade, inerente à própria consciência, se converte numa
realidade absurda.
Hegel estabelece uma última distinção: a alma real. Chama-se «real»
por ser uma alma perfeitamente acomodada num corpo onde o exterior e o
interior se identificaram. A maneira de andar, o tom da voz, ou a própria
expressão facial tornam-se tão psíquicas quanto corporais; superou-se desta
forma a inércia da matéria.

ESPÍRITO E LIBERDADE
Portanto, o primeiro que temos de expôr é a determinação abstracta do
Espírito. Dizemos dele que não é um abstracto, não é uma abstracção da
natureza humana, mas algo de inteiramente individual, activo,
absolutamente vivo; é uma consciência, mas também o seu objecto – e tal
é a existência do espírito que consiste em ter-se a si como objecto. Por
conseguinte, o espírito é pensante e é o pensar de algo que é, o pensar de
que é e de como é. O espírito sabe: mas saber é a consciência de um
objecto racional. Além disso, o espírito só tem consciência porquanto é
auto-consciência; isto é, só sei de um objecto, porquanto nele também sei
de mim mesmo, sei que a minha determinação consiste em que o que eu
sou é também para mim objecto, em que eu não sou simplesmente isto ou
aquilo, mas sou aquilo de que sei. Sei do meu objecto e sei de mim; não
se devem separar as duas coisas. O espírito constitui, pois, para si uma
determinada representação de si, do que ele é essencialmente, do que é a
sua natureza. Pode apenas ter um conteúdo espiritual; e o espiritual é
justamente o seu conteúdo, o seu interesse. Eis como o espírito chega a
um conteúdo; não é que encontre o seu conteúdo, mas faz de si o seu
objecto, o conteúdo de si mesmo. O saber é a sua forma e a sua conduta,
mas o conteúdo é justamente o próprio espiritual. Assim o espírito,
segundo a sua natureza, está em si mesmo, ou é livre [54].
A natureza do espírito pode conhecer-se no seu perfeito contrário.
Opomos o espírito à matéria. Assim como a gravidade é a substância da
matéria, assim também, devemos dizer, a liberdade é a substância do
espírito. A todos é imediatamente patente que o espírito, entre outras
propriedades, possui também a liberdade; mas a filosofia ensina-nos que
todas as propriedades do espírito existem unicamente mediante a
liberdade, que todas são apenas meios para a liberdade, que todas buscam
e produzem somente a liberdade. É este um conhecimento da filosofia
especulativa, a saber, que a liberdade é a única coisa verídica do espírito.
A matéria é pesada porquanto há nela o impulso para um centro; é
essencialmente composta, consta de partes singulares, as quais tendem
todas para o centro; por isso, não há unidade alguma na matéria. Ela
consiste numa pluralidade e busca a sua unidade; por conseguinte, aspira
a superar-se a si mesma e busca o seu contrário. Se o alcançasse já não
seria matéria, mas acabaria como tal; aspira à idealidade, pois na unidade
ela é ideal. O espírito, pelo contrário, consiste justamente em ter em si o
centro; persegue também o centro, mas o centro é ele próprio em si. Não
tem a unidade fora de si. Encontra-a continuamente em si; ele é e reside
em si mesmo. A matéria possui a sua substância fora de si; o espírito, em
contrapartida, é o estar-em-si-mesmo e tal é justamente a liberdade. Com
efeito, se sou dependente, refiro-me a um outro que não sou eu e não
posso existir sem esse algo exterior. Sou livre quando em mim mesmo
estou.
Hegel, A Razão na História – Introdução à Filosofia da História Universal, Lisboa, Edições 70,
2014, pp. 57-58
b) Fenomenologia
A secção fenomenológica resume o processo dialéctico da
Fenomenologia do Espírito: consciência, autoconsciência e razão.
Hegel segue o desenvolvimento da consciência através das três fases
características: começa pela consciência sensível, na qual o objecto
desdobra um enorme conteúdo actualmente vazio. É necessário passar ainda
da sensação à percepção, tentar identificar objecto e pensamento. É
necessário igualmente passar da percepção ao entendimento, pois é
absolutamente impossível pensar a indisciplinada variedade de aparências
do objecto sem as submetermos a princípios, os quais tornarão óbvias tais
delimitações.
Hegel passa então à autoconsciência cujo primeiro estádio, o
«desiderativo», surge em virtude da contradição entre a autoconsciência e a
consciência, ou seja, entre o nosso apetite de apropriação do mundo e da
sua inteligibilidade, e o carácter opaco dos seus conteúdos. Esta
autoconsciência desiderativa é por natureza insaciável, ou seja, apesar de
«consumir» um objecto não se contenta com essa actualidade. Esta
contradição resolve-se na autoconsciência social, que não é mais do que o
reconhecimento – mútuo – de outras pessoas, como pressuposto da
autoconsciência para qualquer delas e explicação da pluralidade de
indivíduos.
Ora, Hegel não ignora o grande problema que este reconhecimento
implicava, pois se evidencia aí a contradição entre a comunidade essencial
das que se reconhecem e a impenetrabilidade de que antes falávamos. A
dialéctica do senhor e do escravo manifesta concretamente esta insolúvel
contradição.
Mas o que interessa sublinhar é que: embora esta contradição seja
insolúvel, só nos reconhecemos como pessoas quando em relação com os
outros; na opinião de Hegel, os alicerces da razão radicam nesta
conflitualidade; daí que a razão seja subjectiva mas também –
intersubjectivamente – objectiva.
c) Psicologia
A secção «psicológica» do espírito subjectivo apresenta três subdivisões:
espírito teórico, espírito prático e espírito livre.
O espírito teórico articula-se em três fases de conhecimento: intuição
directa, reprodução imaginativa e pensar puro.
Na intuição directa encontramos os modos de consciência directa, não
analisada, tais como a sensação ou a consciência sensível. A diferença
consiste em que este conteúdo é intelectual, coisa que não ocorria na
fenomenologia. Este conhecimento concebe as relações espácio-temporais
não meramente subjectivas (como acontecia em Kant), mas objectivas.
Na imaginação reprodutiva, torna-se explícito o domínio implícito da
mente sobre as suas imagens: pode evocá-las e associá-las de uma forma
determinada, pode utilizá-las como signos ou símbolos universais. Quando
a palavra se interioriza e se converte em imagem privada, temos o caso da
memória própria, isto é, signos que possuem a firmeza e durabilidade do
externo juntamente com a manipulabilidade do subjectivo.
As actividades de intuição, imaginação e memória passam agora ao
pensamento. Vimos como o espírito teórico começa por ser algo privado,
pessoal, que como tal se opõe ao mundo; essa individualidade torna-se
imediatamente universal graças a um sistema impessoal de símbolos,
mediante os quais a essência do mundo é captada. Mas agora é preciso
tornar essa «teoria» prática e actual.

ESPÍRITO E HISTÓRIA
§ 341. O elemento em que o espírito universal existe – que na arte é a
intuição e a imagem; na religião, o sentimento e a representação; na
filosofia, o pensamento livre e puro – é, na história universal, a realidade
espiritual em toda a extensão da sua interioridade e exterioridade. É um
tribunal porque na sua universalidade em si e por si, o particular, as
famílias, a sociedade civil e os espíritos dos povos, na sua realidade
heterogénea, existem apenas como algo ideal, e o movimento do espírito
neste elemento consiste em expor isso.
§ 342. Por outro lado, a história universal não é o mero tribunal do seu
poder, ou seja, a necessidade abstracta e irracional de um destino cego.
Dado que este destino é razão em si e por si e porque o seu ser por si é
saber no espírito, ela é (e somente pelo conceito da sua liberdade) o
desenvolvimento necessário dos momentos da razão e por isso da sua
autoconsciência e da sua liberdade; então, a história universal é assim o
desenvolvimento e a realização do espírito universal.
§ 343. A história do espírito é a sua acção, pois o espírito só é aquilo
que faz, e a sua acção é fazer-se enquanto objecto da sua consciência,
apreendendo-se a si mesmo e explicitando-se. Este apreender-se é o seu
ser e o seu princípio, e a sua consumação é ao mesmo tempo a sua
alienação e a transição para outra concepção. Formalmente falando, o
espírito que volta a conceber essa concepção (ou, o que vai dar o ao
mesmo, que retorna a si da sua alienação), é o espírito de um estádio
superior àquele em que se encontrava na sua primeira concepção.
Hegel. Princípios da Filosofia do Direito.

O espírito prático, ao procurar submeter o mundo às suas próprias


exigências, faz-lhe uma série de exigências que no princípio adoptam a
forma de sentimentos: de agrado/desagrado; de alegria/tristeza; de
ansiedade, esperança, medo, etc. Ao confrontarem-se com um mundo que
não coincide com eles, os sentimentos passam a ser impulsos de
transformação. Ora, para que o espírito prático seja efectivo tem que
complementar a individualidade do impulso com a universalidade da razão,
isto é, terá de superar essa imediatez sentimental através de um processo de
reflexão.
Tal elemento universal manifesta-se subjectivamente sob a forma de
escolha livre, que Hegel relaciona ao mesmo nível, com a felicidade ou
«interesse do eu» que nos conduzirá a tentar satisfazer todos os nossos
impulsos.
Se este estado fosse final ou definitivo, nada nos impediria de classificar
Hegel como egoísta; no entanto, e uma vez mais, esse nível está
mediatizado pela dialéctica. Com efeito, a vontade livre terá de se tornar
objecto de reflexão mediante a superação das suas contingências e
arbitrariedades, terá de submeter a original rebeldia da paixão individual
face ao mundo.
Este «controlo» das paixões e dos interesses por parte da vontade livre
começa a separar-nos do espírito subjectivo para nos ir introduzindo na sua
exteriorização, isto é, no espírito objectivo: a manifestação do espírito num
mundo ordenado de instituições, costumes e prescrições, etc.

3.2.2. O espírito objectivo

a) O direito
A tarefa do espírito objectivo é a realização efectiva da liberdade,
que é a essência última do espírito prático. Pois bem, este sistema há-de
garantir a unidade da liberdade dentro da pluralidade de elementos
materiais sobre os quais deve edificar-se sua realidade objectiva.
A realidade na qual se objectiva precisamente a liberdade é o direito,
que tem como ponto de partida (abstractamente falando) a pessoa e a
propriedade. A pessoa é o indivíduo livre, que se mantém numa abstracção,
porque lhe falta uma plenitude interna, até conseguir esse complemento
através da posse de algo exterior. Este ponto de partida supõe de forma
inelidível a propriedade privada. Portanto, a mediação da coisa enquanto
possuída (propriedade da pessoa) objectiva-se através da primeira relação
interpessoal, isto é, o contrato.
Mas a pluralidade de pessoas referidas a uma mesma coisa tem como
resultado uma variedade quase irredutível de fundamentos jurídicos, que
choca inevitavelmente com a unidade do justo em si. Então, o espírito toma
consciência desta contradição e parece refugiar-se em si mesmo porque a
fidelidade que o espírito exige é completamente inatingível com o direito.
Com esta negatividade abre-se o caminho para a moralidade: a vontade
livre não só será livre em si mas – sobretudo – para si.

b) A moralidade
Na esfera da moralidade, a pessoa torna-se sujeito: a vontade
determina-se a si mesma no seu interior.
Esta intenção unificadora refere-se ao conteúdo concreto do sujeito; por
outro lado, a acção moral deverá procurar sempre o bem. No entanto, o
carácter formal da intenção (conteúdo concreto do sujeito) e a abstracção do
bem (como fim) provocam directamente uma oposição entre: a) o próprio
conteúdo; b) o bem abstracto. Deste modo Hegel realça as múltiplas
contradições em que costuma cair a consciência moral, que se resumem na
contradição entre a boa consciência e o mal que se dá na pura
subjectividade moral.
Por isso é necessário unificar toda as determinações particulares para
superar a contradição da moralidade. Só a totalidade é a verdade, tanto na
esfera teórica como na prática. Quer isto dizer que a superação da
moralidade e a passagem à eticidade possui um fundamento ontológico: a
vinculação da universalidade e as suas determinações particulares.

c) A eticidade
Hegel define a eticidade como «o conceito de liberdade que chegou a
ser o mundo existente (Vorhandenen) e a natureza da autoconsciência»
(Filosofia do Direito, parágrafo 142). Isto significa a realização plena da
liberdade e a total supressão da arbitrariedade, ou seja, a libertação do
sujeito de todas as vinculações sensíveis, imediatas e naturais. Por isso, o
desenvolvimento da eticidade mais não é do que o desdobrar da liberdade
universal como consequência da actividade dos indivíduos. Cada um destes
será «para-si» sempre que se integre no todo e seja parte do «produto social
comum». Como é óbvio, a eticidade é necessária para que o sujeito possa
ser livre.
O ponto de partida da eticidade é a família, não considerada em
abstracto mas na imediata realidade do amor, que a faz surgir. Mas a família
supera-se para dar lugar à sociedade civil. Aí a substância ética já não é o
amor mas as relações entre particulares.

d) A sociedade civil
A estruturação das necessidades particulares dentro da sociedade
constitui um «sistema de necessidades» que apresenta o homem não como
pessoa, mas como «burguês»; em sentido estrito: membro de uma sociedade
burguesa onde a satisfação das necessidades não se produz imediatamente,
mas através da multiplicidade e divisão dessas mesmas necessidades. Hegel
sublinhará com uma agudeza intempestiva a confusa situação do homem
nessa sociedade na qual a conjugação de interesses particulares e meios
técnicos o arrastarão irremediavelmente para uma «indeterminada
multiplicação e especificação de necessidades, meios e prazeres» (Filosofia
do Direito, parágrafo 195).
Dentro do sistema da sociedade civil, merece menção especial o
trabalho. Característico dele é a sua função especificadora da matéria
relativamente à determinação das necessidades. Tal especificação supõe a
divisão do trabalho e dos seus processos.
A especificação dos processos laborais alude à passagem da ferramenta
para a máquina; aquela constitui um meio de racionalizar a subjectividade
do trabalho. Mas a máquina, ao contrário, acabará por ser um princípio
extrínseco que se torna totalmente independente do homem; até torná-lo seu
escravo. Hegel põe assim a descoberto o ponto de partida da
desumanização do trabalho por parte da técnica.

A SOCIEDADE CIVIL
§ 182. A pessoa concreta que é para si um fim particular, enquanto
totalidade de necessidades e de mistura de necessidade natural e árbitro, é
um dos princípios da sociedade civil. Mas a pessoa particular está
essencialmente em relação com outra particularidade, de tal modo que só
se faz valer e só se satisfaz por meio da outra e ao mesmo tempo pela
mediação da forma da universalidade que é o outro princípio.
Agregado. A sociedade civil é a transformação que surge entre a
família, e é o Estado, se bem que a sua formação seja posterior à do
Estado. Com efeito, por ser a transformação e para poder existir cria o
Estado, que necessita de a ter ante si como algo independente. Por outro
fado, a concepção da sociedade civil pertence ao mundo moderno, que é
o primeiro que faz a justiça a todas as determinações da ideia. Quando se
representa o Estado como uma unidade de diversas pessoas, como uma
unidade que só é comunidade, o que se nomeia é exclusivamente a
determinação da sociedade civil. Muitos doutrinários modernos do direito
público ainda não abandonaram esta compreensão do Estado. Na
sociedade civil, cada um é fim para si mesmo e todos os outros não são
para ele. Mas se não estiver em relação com os demais não pode alcançar
os seus fins; por isso, os outros são meios para o fim de um indivíduo
particular. Deste modo, e na relação com os outros, o fim particular
acontece sob a forma da universalidade e satisfaz-se ao satisfazer ao
mesmo tempo o bem-estar dos demais. Dado que a particularidade está
ligada à condição da universalidade, a totalidade é o terreno da mediação.
É na totalidade que se liberta toda a individualidade, toda a diferença de
aptidão e toda a contingência de nascimento e de sorte, é nela que
desembocam todas as paixões governadas pela razão que ali aparece.
Limitada pela universalidade, a particularidade é apenas a medida pela
qual cada particularidade promove o seu bem-estar.
Hegel, Princípios da Filosofia do Direito.
Perante a inevitável questão da igualdade ou desigualdade dos
«burgueses» relativamente ao património social, Hegel afirma-se a favor da
desigualdade natural dos homens, reforçada, aliás, por outros factores,
como o capital, as circunstâncias casuais e a habilidade pessoal aliada à
orientação externa de tal habilidade. A esta irredutível diversidade entre os
homens não podemos opor, segundo Hegel, uma «igualdade abstracta e
vazia». O tipo de sociedade para que Hegel aponta fundamenta-se na
relação dialéctica que se estabelece entre a satisfação das necessidades
particulares e as gerais do resto da sociedade, totalmente oposta à
universalidade abstracta da igualdade formal.
A desigualdade natural está directamente relacionada com outro tipo de
«particularidade» dentro da universalidade: as ordens sociais sob as quais se
constituem sistemas particulares de necessidades. Hegel distinguiu três
ordens: 1) a mais substancial, dependente da posse e cultivo do solo; 2) a
comercial e industrial; 3) a que se ocupa dos interesses comuns da
sociedade.
O papel desempenhado pelas ordens é fundamental para cada indivíduo,
porque a sua efectividade na sociedade exige uma determinação real e
particular e esta só se alcança – segundo Hegel – sob a inscrição do
indivíduo numa das três ordens citadas. O fundamental está na necessária
consciência de limitação que todo o indivíduo deve ter para tornar viável a
universalidade social com que vamos manter, precisamente, a nossa
individualidade. Hegel apresenta um exemplo: alguns indivíduos –
especialmente jovens – recusam a integração numa das ordens e pretendem
manter-se na universalidade, esquecendo que dessa forma jamais alcançam
a efectividade.
Porém a estruturação das ordens necessita forçosamente de uma
realização efectiva na consciência universal, isto é, conhecida e valorizada
como tal: que é uma determinação de direito, a lei (Gesetz) e a objectivação
do justo. A lei como tal, segundo Hegel, possui três tipos de implicações
fundamentais: a) a sua positividade enquanto aspecto formal, e como tal,
não submetida a contingências; b) a sua materialidade, que se inscreve
totalmente na realidade quotidiana; c) a sua estrita aplicabilidade a todos e a
cada um dos casos individuais.

e) O Estado
O longo processo estudado (direito, moralidade, eticidade e sociedade
civil) apresenta um vector comum a todos eles: o Estado, que para Hegel
surge como resultado, não como mera consequência desses momentos. Por
outras palavras, o Estado é a última manifestação do que estava oculto
nas formas anteriores da eticidade. Na sua forma imediata, o Estado
surge como mais uma instituição, como algo de exterior que fundamenta as
anteriores; deste modo, a família e a sociedade civil (burguesa) encontram
no Estado o seu sentido definitivo.
Mas, fiel ao seu método, Hegel expõe a última manifestação do espírito
objectivo, ou seja, o Estado, como a reconstrução de uma unidade entre o
indivíduo isolado e a universalidade. O Estado reconstrói a unidade perdida
na sociedade civil burguesa não por um acordo entre ordens nem entre
particulares, mas por mediação da razão. À primeira vista, exterior e
imediata, o Estado surge como uma espécie de «espartilho» (Estado-
policial). Agora, numa segunda abordagem com base na razão, o Estado
surge como a suprema racionalidade universal sem por isso ter de sufocar e
negar o indivíduo.
Desta forma, o Estado surge agora como a realização efectiva da ideia
ética: a reconciliação entre a essência interna e a sua aparência exterior. O
Estado não elimina o indivíduo, mas é o fiel guardião da sua liberdade; não
como um «meio de protecção» mas como a realização efectiva da liberdade
individual.
O conceito de Estado manifesta-se assim como fruto da razão na sua
união da realidade (particular) e do pensamento (universal): o Estado é a
razão objectivada e só pode ser pensado objectivamente a partir da
concepção do espírito objectivo.
Julgamos oportuno nesta altura, fazer dois tipos de considerações: em
primeiro lugar, a concepção filosófica do Estado como suprema realização
do espírito objectivo deve diferenciar-se das atitudes políticas que, como
tal, estão ordenadas para uma práxis concreta. No Prólogo à Filosofia do
Direito, Hegel adverte que a missão da filosofia não é estruturar o Estado
mas mostrar a sua racionalidade.
Em segundo lugar, Hegel acreditava na unidade racional como
totalização que abarcaria até o mais afastado confim humano da razão. Mas
esta unidade esbarra com as limitações reais que surgem no pensamento
entendendo por limitações os próprios limites do panlogismo hegeliano.
Ora, esta filosofia do Estado ou da sociedade não é mais do que a
interpretação filosófica de uma época determinada, na qual estão bem
evidentes a univocidade do seu posicionamento e a falta de actualidade do
seu imaginado ardil de unir o céu com a terra.

3.2.3. O espírito absoluto

No final da Enciclopédia, Hegel procura mostrar a realidade que


corresponde rigorosamente ao conceito. Esta realidade é o espírito absoluto,
que se manifesta de três maneiras: de modo imediato e sensível na arte, de
modo emocional e representativo na religião, e pelo pensamento reflexivo
na filosofia.
Não se trata do desenvolvimento absoluto do espírito, que será objecto
da lógica, mas das grandes fases da tomada de consciência do espírito por si
mesmo. Esta dialéctica fenomenológica do espírito absoluto conserva um
carácter histórico, porque estas fases estão vinculadas aos grandes
momentos do desenvolvimento do espírito subjectivo e do desenvolvimento
do espírito objectivo da história humana.

a) A arte
Segundo Hegel, a arte exprime a ideia de uma maneira imediata, em
conexão com um material dado aos sentidos. Esse material sensível surge
penetrado por alguma noção ou significado interno, e essa penetração
significa – de uma maneira simbólica – a absorção e domínio do «outro»
pelo espírito autoconsciente. Por isso, uma obra de arte mostra como o
espírito pode assumir e superar o que é não-espiritual.
Hegel põe em destaque a fusão que é característica da obra de arte das
ideias ou noções com o material sensível. Deste modo, o criador e o
verdadeiro contemplador da obra de arte não verão nela um simples
conjunto de relações ou características gerais mas uma riqueza de
significação no próprio objecto unida à sua imediatez sensível.
Na reconstrução de formas prenhes de noções radica a tarefa de um
especial poder da imaginação, que opera inconsciente ou instintivamente, e
não por aplicação de regras ou fórmulas. Isto não significa que o génio não
obedeça a princípios gerais por não saber formulá-los, mas que o artista
imaginativo é obrigado a considerá-los.
Hegel retoma aqui a antiga tradição da irracionalidade e arbitrariedade
como elemento essencial do artista, o que o torna pouco adequado para ser
o verdadeiro profeta do espírito. Isto tem para Hegel uma razão muito
poderosa: a arte não é capaz de manifestar a profundidade do espírito
precisamente porque não consegue superar plenamente a distinção entre o
interno e o externo. Face à distinção, Hegel contrapõe a profundidade do
espírito, que não é o interno nem o externo, mas a união de ambos.

b) A religião
A Enciclopédia mostra-nos o desenvolvimento da ideia na sua realidade
espiritual. Ao tratar da religião revelada, verifica-se uma distinção
fundamental que é preciso ter em conta para uma recta compreensão do
religioso no novo enquadramento do espírito absoluto. Tal distinção é a que
se produz entre a forma e conteúdo do espírito absoluto. Se a
Fenomenologia do Espírito tende a superar a distinção entre a forma e o
objecto, a Enciclopédia faz o mesmo entre a forma e o conteúdo.
Na religião encontramo-nos ante uma expressão do (saber) absoluto que,
todavia, não conseguiu identificar a sua forma e conteúdo. Isso devido ao
facto de o saber religioso ser no essencial um saber subjectivo, fundado na
representação, e precisamente, esta supõe uma certa exterioridade entre o
material dado, por um lado, e a subjectividade própria, por outro.
Por esta razão, a distinção entre matéria e forma converte-se numa
separação taxativa entre sujeito e objecto. Esta distinção – fruto do regime
«representativo» da religião – é superada no culto, cuja missão é reconstruir
a unidade do sujeito e da sua consciência ao nível do espírito, para lhe
proporcionar um sentimento de participação no absoluto. Por isso, na
Enciclopédia (parágrafo 564) Hegel afirma que Deus é Deus apenas na
medida em que Ele se conhece a si mesmo, mas esse conhecimento de si
mesmo é a autoconsciência de Deus no homem, o conhecimento de Deus
pelo homem que se desenvolve no autoconhecimento do homem em Deus.
Portanto, o culto – essencial para Hegel na esfera religiosa do espírito
absoluto – supõe o conhecimento de Deus e da relação que a consciência
finita tem com Ele, o culto implica uma função purificadora cujo resultado
é a fé. Neste sentido estrito entende-se que a religião cristã seja
precisamente o espírito absoluto: nada há fora dele a que deva ser referido.
O mundo não é de forma alguma algo de estranho ao cristianismo; a
religião cristã e a secularização coincidem, isto é, a religião – o espírito na
sua referência essencial – realiza-se plenamente e nada fica fora dela.

c) A filosofia
A religião não poderá nunca libertar-se de inconsistências e será presa
fácil para a crítica racionalista. O seu conteúdo especulativo não
corresponderá sempre ao modo de formulação, essencialmente
representativo. Daí a inevitável passagem à filosofia porque só num meio
conceptual pode a ideia ter cumprimento concreto.
Por conseguinte a passagem da religião à filosofia não é senão a
supressão da forma de representação religiosa; isto é, não se trata de uma
nova ou mais profunda realização do espírito, mas de mudar a forma de
maneira que se adapte tanto ao conteúdo que seja apenas expressão própria
do mesmo.
Para Hegel a filosofia ocupa-se essencialmente da unidade, que não é a
abstracção própria de algo imediato, mas o desenvolvimento progressivo
que a faz passar através de uma série de unidades concretas até atingir a
plena unidade do absoluto. Isto significa que a filosofia tem um
desenvolvimento dialéctico, isto é, que a unificação não implica de modo
algum a supressão das diferenças, mas assunção destas na própria unidade.
É esta a verdade do espírito absoluto. Por isso, Hegel generaliza esta
terceira forma do espírito sob a distinção de «religião». Porque a religião se
ocupa da verdade e esta é o seu conteúdo propriamente dito. O problema
reside em que tal conteúdo só se manifesta ao nível da representação
(Vorstellung) isto é, aparece como uma série de representações cujo traço
de união não está baseado no próprio pensamento. Ora, a missão inovadora
da filosofia relativamente à religião consistirá em substituir a representação
pelo próprio pensamento, pelo conceito (Begriff). Portanto, a finalidade da
filosofia consistirá em compreender a religião especulativamente.
Uma última consideração é inevitável: para Hegel, a filosofia – como
compreensão «especulativa» de um longo processo – é fundamentalmente
história da filosofia. Mas não se trata de forma alguma de uma história de
acontecimentos mas da reformulação dessa filosofia ao nível do
pensamento puro. Por esta razão o supremo cumprimento do espírito
consiste, de acordo com isto, em entender a sua própria história, isto é, não
em fazer uma «súmula» de factos históricos, mas reflectir sobre os mesmos.
Neste sentido, a filosofia realiza-se como história da filosofia na
recapitulação que a razão faz de si mesma como história.
A história da filosofia revela-se-nos então como o desenvolvimento
especulativo do espírito. E isto quer apenas dizer que a história da
humanidade é o seu desenvolvimento, o que a fez chegar a ser o que é.

RELIGIÃO E FILOSOFIA
As religiões expressam o modo como os povos representam a essência
do universo, a substância da natureza e do espírito e a relação entre o
homem e essa essência. Nas religiões, a essência absoluta é o objecto
sobre o qual a consciência se projecta e, enquanto tal, primordialmente
para um além mais próximo ou remoto, aprazível ou terrível e hostil. É
pela devoção e pelo culto que o homem supera este antagonismo,
elevando-se à consciência da unidade e à sua essência e adquirindo o
sentimento ou a confiança de desfrutar da graça de Deus, de que Deus se
digna aceitar a reconciliação do homem com a divindade. Entre os
Gregos, por exemplo, esta essência é já na sua representação algo
agradável para o homem e o culto tem por missão desfrutar desta
unidade. Ora, esta essência é, em tudo e por tudo, a razão em si e para si,
é a substância concreta geral, é o espírito cujo fundamento primigénio se
objectiva na consciência; por isso, não só a razão como tal mas também a
razão geral infinita comportam em si uma representação deste espírito.
Por conseguinte, devemos acima de tudo perspectivar a religião do
mesmo modo que fazemos com a filosofia, quer dizer, devemos conhecê-
la e reconhecê-la como racional, dado que se revela como obra da razão,
como o seu produto mais elevado e mais conforme à razão. Assim, torna-
se absurdo pensar que os sacerdotes inventam as religiões para defraudar
o povo e para proveito próprio, etc.
A devoção não é mais do que o pensamento projectado sobre o Além.
Em contrapartida, a filosofia pretende efectuar esta reconciliação por
meio do conhecimento pensante, ao passo que o espírito se esforça por
assimilar a sua essência. Perante o seu objecto, a filosofia comporta-se na
forma de consciência pensante; a religião fá-lo de outro modo. Mas a
diferença entre os dois campos não deve ser concebida tão em abstracto,
como se estivéssemos a pensar apenas num enquadramento filosófico e
não no da religião; também esta alberga representações e pensamentos
gerais.
Hegel, Lições sobre a História da Filosofia.
4. A ESQUERDA HEGELIANA. FEUERBACH

4.1. A «esquerda hegeliana»

A filosofia de Hegel enfrenta questões e problemas de carácter religioso


e político, enquadrando-se num tempo histórico de revolução e de
profundas mudanças sociais. Religião e política estão continuamente
presentes na obra de Hegel, ainda que na linguagem mais abstrusa, abstracta
ou conceptual. Por outro lado, como vimos já, o método dialéctico e o
sistema absoluto pretendem conservar todos os momentos e instâncias da
vida do espírito e ao mesmo tempo unificá-los e englobá-los numa difícil
superação no sistema da ideia ou razão absolutas.
Na obra de Hegel, simultaneamente tão rica e unificadora, transparece
um pouco por todo o lado uma grande ambiguidade. Esta ambiguidade
facilitou por um lado a interpretação da sua filosofia como a consolidação e
manutenção da religião e da teologia, e também como justificação
«ideológica» do poder autoritário e Estado «fascista»; e, por outro como a
negação da religião e de Deus; além disso, o carácter dialéctico
(contraditório e processual) da realidade proporciona um «motor de
transformação» da ordem política e social vigente. Numa palavra, o método
dialéctico defendia a transformação, enquanto o sistema podia ser posto ao
serviço da reacção. Engels denunciou-o claramente: «Quem fizesse finca-pé
no sistema de Hegel podia ser bastante conservador em ambos os campos (a
religião e a política); quem considerasse primordial o método dialéctico
podia figurar na extrema oposição tanto no aspecto religioso, como no
aspecto político» (Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica
Alemã, I).
Após a morte de Hegel, alguns discípulos e os intérpretes da obra
hegeliana seguiram o primeiro caminho e outros o segundo originando as
denominadas «direita» e «esquerda» hegelianas. A esquerda hegeliana
levará a cabo uma crítica, mais ou menos inteligente, radical e progressiva
segundo os casos, mas sempre com a pretensão de inovar e de reorientar a
filosofia de outra maneira, senão mesmo de a anular ou superar. A crítica da
soterrada teologia hegeliana, do idealismo, da mistificação «espiritualista-
racional» da dialéctica, etc., serão momentos da encarniçada «luta» que se
empreendeu contra a filosofia de Hegel.
Na «esquerda» houve duas tendências claramente delimitadas: uma que
atenderá principalmente à crítica da religião e da teologia (Feuerbach,
Strauss, Bauer) e outra que iniciará a crítica política e, a um nível mais
fundo, teórica da filosofia hegeliana (Marx).

4.2. Feuerbach

Feuerbach sente a necessidade de uma reforma radical da filosofia: esta


não pode continuar a olhar para o passado nem ser uma questão de
«escola», mas deve estar do lado das necessidades verdadeiras e operar a
transformação do presente com vista às necessidades do futuro; só no futuro
se encontra a necessidade verdadeira e progressiva.
A verdadeira reforma da filosofia tem de romper amarras com o passado
e pensar o presente numa perspectiva de futuro: «só quem tiver a coragem
de ser absolutamente negativo», escreve Feuerbach, «terá forças para criar o
novo». Muito expressivos são os títulos que ele dá a dois dos seus livros
fundamentais: Teses para a Reforma da Filosofia e Princípios da Filosofia
do Futuro.
A nova reforma da filosofia exige, como passo iniludível, a crítica da
filosofia hegeliana.
4.2.1. A crítica feuerbachiana de Hegel

A crítica de Feuerbach a Hegel pode ser resumida em duas teses


fundamentais: a) a filosofia de Hegel é uma filosofia idealista que deforma
e transforma a realidade (que, na verdade, pensa Feuerbach, é material) em
«pensamento puro e descarnado»; b) a filosofia de Hegel é no fundo uma
teologia racionalizada.

ANTIGA E NOVA FILOSOFIA


35. Se a antiga filosofia dizia: o que não é pensado não existe, então,
pelo contrário, a filosofia nova diz: o que não é amado, o que não se pode
amar não existe. Mas o que não se pode amar também não se pode
adorar. Só o que pode ser objecto da religião constitui o objecto da
filosofia.
O amor, não só no plano objectivo, mas também subjectivo, é o
critério do ser – o critério da verdade e da realidade efectiva. Onde não
há amor, também não há verdade alguma. E só é alguma coisa quem
algo ama – nada ser e nada amar são idênticos. Quando mais alguém é;
tanto mais ama, e vice-versa.
36. Se a antiga filosofia tinha como ponto de partida a proposição: sou
um ser abstracto, um ser puramente pensante, o corpo não pertence à
minha essência; então, pelo contrário, a nova filosofia começa com a
proposição: sou um ser real, um ser sensível; sim, o corpo na sua
totalidade é o meu eu, a minha própria essência. O filósofo antigo
pensava, pois, numa contradição e conflito incessantes com os sentidos
para impedir as representações sensíveis de manchar os conceitos
abstractos; pelo contrário, o filósofo novo pensa em consonância e em
paz com os sentidos. A antiga filosofia admitia a verdade da sensibilidade
– e até no conceito de Deus, que inclui o ser em si mesmo; pois este ser
devia no entanto ser ao mesmo tempo um ser distinto do ser pensado, um
ser fora do espírito, fora do pensar, um ser efectivamente objectivo, isto
é, sensível – mas só o admitia de um modo dissimulado, conceptual,
inconsciente e involuntário, unicamente a verdade da sensibilidade com
alegria, com consciência: é a filosofia sinceramente sensível.
Feuerbach, Princípios da Filosofia do Futuro (parágrafos 35 e 36), Lisboa, Edições 70, 2002, p.82

a) Para Feuerbach, a filosofia não pode nem deve começar com


abstracções, tais como o pensamento ou o conceito, mas com o não-
filosófico: a vida, as suas necessidades e deficiências. Nisto se funda a
inversão feuerbachiana do idealismo hegeliano: só é verdade e divino o
que não necessita de prova, o que é imediatamente certo de per si, o que
contém imediatamente a afirmação da sua existência. «Ora, só o sensível é
claro como o dia. Só onde começa o sensível acabam todas as dúvidas e
disputas» (Princípios ...).
A filosofia idealista carece de um princípio passivo real e verdadeiro. É
verdade que Hegel fala (na Fenomenologia do Espírito, por exemplo) da
«certeza sensível»; no entanto, em verdade o sensível não passa de uma
expressão e manifestação (um «fenómeno») do espírito, outra «forma» do
pensamento e do conceito. Assim, e de um modo tão agudo quanto
engenhoso, «a fenomenologia do espírito não é mais do que a lógica
fenomenológica»; isto é, a «fenomenologia» esconde a ideia e o conceito
por detrás da consciência sensível.
Esta mistificação manifesta-se esplendidamente na interpretação
hegeliana da natureza, verdadeira cruz do idealismo. Perante a suposição de
que a natureza é o «sair da ideia fora de si» (a natureza seria um produto
lógico), Feuerbach reivindica a originalidade da natureza, o seu carácter
«alógico», que de modo algum pode reduzir-se a «ser-pensado».
Nesta mesma linha, Feuerbach afirma, contra a prioridade do eu e do
espírito, a facticidade originária do corpo e da sensibilidade. Mas
sensibilidade e sensível são mais do que determinações do homem:
constituem a natureza de todo o real. A filosofia de Feuerbach é pois
sensualismo e materialismo.

b) O segundo aspecto da crítica de Feuerbach (a filosofia de Hegel é


uma teologia racionalizada) está em estreita conformidade com o desprezo
que Hegel tem pela «sensibilidade»: tal como a teologia cristã, o idealismo
hegeliano vê a natureza como uma realidade derivada. «A teoria hegeliana»
– escreve Feuerbach – «de que a realidade é posta pela ideia, constitui
apenas uma expressão racional da doutrina teológica, segundo a qual a
natureza é criada por Deus.»
Estes dois aspectos da crítica de Feuerbach a Hegel, o filosófico e o
teológico, põem a claro a verdadeira natureza do homem e a sua
significação central: o homem para Feuerbach, é um «ser-natural».

A ORIGEM HUMANA DE «DEUS»


A religião é a cisão do homem consigo mesmo, pois considera Deus
como um ser que é o oposto a si. Deus não é aquilo que o homem é, o
homem não é aquilo que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem é o ser
finito; Deus é perfeito, o homem é imperfeito; Deus é eterno, o homem é
temporal; Deus é omnipotente, o homem é impotente; Deus é santo, o
homem é pecador. Deus e o homem são extremos: Deus é aquilo que é
absolutamente positivo, a soma de todas as realidades; o homem é aquilo
que é absolutamente negativo, a soma de todas as negações.
O homem objectiva na religião a sua essência secreta. Por
conseguinte, é necessário demonstrar que esta oposição ou cisão entre
Deus e o homem (com a qual a religião começa) é uma cisão entre o
homem e a sua própria essência. A necessidade intríseca desta
demonstração deriva do facto de que nunca poderia ter havido qualquer
desunião ou cisão se o ser divino, que é o objecto da religião, fosse
realmente uma coisa diferente da essência do homem.
Este ser é a inteligência, a razão ou o entendimento. A concepção de
Deus como o oposto do homem, como ser não-humano, ou seja, como ser
pessoal, é a essência objectivada do entendimento. A essência divina
pura, perfeita e omniperfeita é a autoconsciência do entendimento, a
consciência do entendimento em relação à sua própria perfeição. O
entendimento ignora os sofrimentos do coração, não sofre
concupiscências, paixões ou necessidades, e por isso não tem defeitos
nem debilidades como o coração.
Um Deus que expressa apenas a essência do entendimento não satisfaz
a religião, não é o Deus da religião.
No que se refere ao entendimento ou à razão de Deus, a característica
mais importante da religião, particularmente da religião cristã, consiste na
perfeição moral. Como ser moralmente perfeito, Deus não é mais do que
a ideia realizada, a lei personificada da moralidade, o ser moral do
homem – o ser próprio do homem – entendido como ser absoluto.
Feuerbach, A Essência do Cristianismo.

4.2.2. Redução da teologia à antropologia

A crítica que Feuerbach faz da religião não tem por objectivo negar a
dimensão religiosa do homem. Pelo contrário, segundo Feuerbach, a
religião constitui «a essência imediata do homem». O sentido da sua crítica
radica em mostrar a falsidade da «essência teológica» da religião e em
reduzir a religião inteiramente à essência do homem. «O segredo da
teologia» – dirá Feuerbach – «está na antropologia.»
Com a expressão «essência teológica» da religião faz-se referência à
relação do homem com Deus, entendido este como um ser distinto e
separado, que possui de um modo infinito e absoluto todas as propriedades
e perfeições que o homem possui apenas de forma finita. Ora, esta ideia de
«Deus», como um ser de infinitas perfeições, mais não é do que um produto
ou obra do homem: «A essência de Deus não é mais do que a essência do
ser humano; ou, melhor dizendo, é a essência do homem objectivada e
separada dos limites do homem individual, real e corpóreo. É a essência
contemplada e venerada como um ser-outro, próprio e diferente do homem.
Por isso, todas as determinações da divindade são igualmente do ser
humano» (Feuerbach, A Essência do Cristianismo, Introdução, cap. II).
Nesta passagem explica-se a génese de Deus a partir da projecção que
o homem faz de si mesmo e da sua essência. É possível reconhecer três
momentos nesta génese: a) a objectivação fora de si que o homem faz de
seus predicados e determinações; b) a separação desses predicados da sua
relação originária com o homem, e a abstracção dos limites que tais
predicados têm no homem individual; c) a consideração de tais predicados
assim separados e objectivados num presumível sujeito como se fosse um
«ser-outro», alheio e estranho ao homem. Isto é, na génese da ideia de Deus
e na sua aceitação como um ser absoluto cumpre-se a alienação que
constitui o «desdobramento» da essência teológica da religião. «Alienação»
significa aqui duas coisas: 1) expropriação, que se faz à realidade sensível
que é o homem, da sua própria natureza para a colocar fora dele; 2) a
servidão e submissão a algo estranho, erigido contra a realidade sensível e
contra o homem.
A crítica da religião «teológica» é por conseguinte uma redução da
religião à essência do homem e uma redução da teologia à antropologia. A
religião é para Feuerbach a autoconsciência primeira e indirecta do homem.
Nega-se a religião de Deus e afirma-se a religião do homem, a religião da
humanidade.
Fica no entanto pendente pelo menos uma dupla questão: Foi a crítica de
Feuerbach a Hegel radical e progressiva? A crítica feuerbachiana da
alienação religiosa e a sua ideia do homem foram suficientes e adequadas?
No capítulo quinze (da 3.ª Parte) procuraremos dar resposta a esta dupla
questão.
TERCEIRA PARTE
A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Consideramos como contemporânea a filosofia que, dentro da


imprecisão cronológica própria das produções culturais, se estende ao longo
da segunda metade do século XX até aos nossos dias. A filosofia
contemporânea, nas suas linhas mais características, só pode ser
adequadamente compreendida quando em conexão com a obra de Hegel.
Com efeito, o pensamento contemporâneo constitui em grande medida uma
reacção contra o sistema hegeliano, do qual apesar disso retoma algumas
das análises e interrogações.
A mais notável reacção contra Hegel é feita por Marx. O marxismo,
originalmente entroncado na esquerda hegeliana, distingue o sistema
hegeliano (idealista) do método dialéctico. Aceitando e transformando este
último, a filosofia marxista «inverte» o sistema de Hegel propondo uma
visão dialéctico-materialista da consciência, da sociedade e da história.
Outra reacção contra o hegelianismo – estreitamente vinculada à
situação económica, social e intelectual resultante da revolução industrial –
é o positivismo, especialmente o de Comte. Neste caso, reage-se contra o
que o racionalismo hegeliano possa ter de menosprezo da experiência, com
a pretensão de instaurar um saber positivo, capaz de fundamentar uma nova
organização político-social. Tal como Marx, Comte conserva no entanto,
embora transformando-o, um momento importante do hegelianismo: a ideia
de «espírito objectivo.
O positivismo (tomado como uma atitude renitente à especulação
filosófica e propenso a considerar a ciência como forma de conhecimento
não só modelar mas exclusiva) constitui, além disso, uma constante na
história do pensamento. Apesar das suas notáveis diferenças na maneira de
pôr os problemas, é possível reconhecer esta linha no empirismo do século
XVIII, no positivismo do século XIX e no positivismo ou empirismo lógico
do século XX.
Este último (juntamente com o atomismo lógico e a filosofia analítica)
faz parte da corrente analítica dos nossos dias, cuja máxima originalidade
consiste em haver transformado o próprio conceito de filosofia: para esta
corrente, a filosofia não tem por objecto a realidade, mas a análise da
linguagem acera da realidade, quer se trate da linguagem comum ou da
científica.
Outras correntes da filosofia contemporânea, como a historicista. a
vitalista, a existencialista ou a personalista, tomaram como objecto principal
de consideração o fenómeno da história, da vida e da irredutibilidade da
existência pessoal. O existencialismo constitui originalmente uma reacção
contra o hegelianismo e a favor da individualidade, preterida pelo sistema
dialéctico de Hegel (Kierkegaard). No seu desenvolvimento no século XX
(Heidegger, Sartre), o existencialismo depende directamente da
fenomenologia de Husserl, no tocante às suas análises da existência
humana. Quanto ao vitalismo de Nietzsche, representa uma reacção não
apenas contra Hegel, mas contra toda a tradição intelectualista-religiosa que
se opôs à vida e aos valores vitais desde que se verificou a aliança do
platonismo com o cristianismo.
Mesmo quando as correntes filosóficas remetem directa ou
indirectamente para Hegel, seria errado extrair dele, por oposição ou
continuação (ou por ambas as coisas) todo o pensamento contemporâneo. O
descrédito geral da especulação filosófica subsequente ao hegelianismo
conduziu a atitudes relativistas cépticas contra as quais também a filosofia
se levantou. Este confronto com o relativismo e o cepticismo tornou-se
patente a partir de diferentes posições, tanto na fenomenologia de Husserl
(a tentativa de fazer da filosofia uma ciência de rigor) como nas
investigações levadas a cabo por Dilthey e Ortega y Gasset, que
pretendem compreender a vida e a história com base em categorias
específicas e rigorosas.
Talvez a característica externa mais saliente da filosofia contemporânea
seja a disparidade de perspectivas, sistemas e escolas, face ao
desenvolvimento de certo modo mais uniforme e linear da filosofia
moderna (racionalismo, empirismo, Kant, idealismo hegeliano). Para esta
proliferação de pontos de vista e de escolas contribuíram em grande medida
factores socioculturais como: a crise contemporânea dos sistemas políticos,
o avanço espectacular das ciências naturais e lógico-formais e o
desenvolvimento das ciências humanas, cujos métodos e resultados tiveram
repercussões e consequências de interesse no campo e nos problemas da
filosofia (psicanálise, estruturalismo).
QUADRO SINCRÓNICO
14. O POSITIVISMO DE COMTE

INTRODUÇÃO

No uso quotidiano da linguagem, o termo «positivismo» tem um sentido


relativamente claro e compreensível, bem como um horizonte de referência
muito amplo. Mas estas mesmas características fazem com que o termo
permaneça desfocado, sem contornos precisos e, consequentemente,
inadequado para o uso científico e filosófico e para uma mais rigorosa
compreensão dos campos de saber a que costuma ser aplicado: política
positiva, direito positivo, ciência positiva, etc.
Do ponto de vista filosófico, o termo «positivismo» tem uma acepção
muito relacionada com o modo de entender a natureza do saber e do que
pode ser o objecto do conhecimento. Conhecimento ou saber positivo é o
que estabelece os factos, o dado pelos sentidos, como o único objecto
possível de conhecimento. Todavia esta acepção continua a ser demasiado
geral e imprecisa. Geral, porque é aplicável a muitos sistemas filosóficos, e
imprecisa, já que não especifica o que deve entender-se por «factos» ou
«dado» nem a que fica reduzido tal saber. À medida que se avança na
determinação destas questões, o que se ganha em precisão perde-se na
generalidade, ao mesmo tempo que se começa a duvidar da possibilidade de
um «positivismo» simples.
Mas o termo «positivismo» pode aplicar-se não apenas a uma maneira
peculiar de interpretar o saber, como também a uma filosofia, na medida em
que faz uma série de afirmações com pretensão de verdade e estabelece
uma teoria da realidade e, consequentemente, do homem, da história, da
sociedade e da religião. É neste enquadramento concreto que se elabora o
pensamento que mais merece o nome de positivismo: a filosofia de Comte.

A explicação desta teoria filosófica está estruturada em três partes:


1. A sociedade industrial e o espírito positivista.
2. Natureza do saber e sistema das ciências.
3. A sociologia e a positivização da razão.
1. A SOCIEDADE INDUSTRIAL E O ESPÍRITO
POSITIVISTA

1.1. A sociedade industrial

O positivismo é muito mais do que uma teoria do saber. Comte


pretendeu ser não apenas um sábio mas também um reformador da vida
humana e da sociedade em todos os seus aspectos. A necessidade desta
reforma parecia ser proveniente: a) da revolução e das suas consequências
na organização da sociedade; b) da situação criada pela indústria e das
possibilidades que a organização industrial proporcionava para estruturar de
forma diferente a sociedade.

1.1.1. Consequências da revolução

A revolução não só arruinou um regime político (o «antigo regime»),


como também o regime religioso que dava justificação teológica a essa
organização política.
A revolução arruinou, além disso, a estrutura social, no que foi ajudada
pelo fenómeno económico-social da industrialização. A desintegração
social foi agravada pela crise da religião, que fora um importante factor
integrador, e pelos antagonismos sociais surgidos como consequência do
novo modo de vida próprio da sociedade industrial.
A anarquia e o caos propiciados pela revolução cresceram e foram
reforçados, aliás, pela interpretação que o Iluminismo fizera da razão: uma
razão que exige o livre exame, que defende a independência do indivíduo,
que funda teoricamente o valor da liberdade e que se assumia como crítica
negativa contra a ordem estabelecida, se esta não satisfizesse tais exigências
racionais. Como consequência, de tudo isto resultou a ruptura da antiga
unidade social e a sociedade entrou em crise.

1.1.2. A indústria e as suas implicações

A indústria é um factor que caracteriza fundamentalmente a sociedade


nos começos do século XIX. Da indústria esperava-se a realização das
potencialidades e dos ideais do homem; baseada na organização científica
do trabalho que ela proporciona esperava-se uma nova estruturação da
sociedade. E o processo industrial e a sua ideologia pareciam destinados a
constituir o factor integrador da nova ordem social. Segundo Saint Simon,
a «sociedade como um todo baseia-se na indústria. A indústria é o único
garante da sua existência e a única fonte de riqueza e de prosperidade, O
estado de coisas mais favorável à indústria é, por conseguinte, o mais
favorável à sociedade. Isso constitui tanto o ponto de partida como a meta
de todos os nossos esforços».
Mas a indústria implica:

a) primeiro, que o homem pode e tem de transformar a natureza. Isso


significa, por um lado, a potenciação da dimensão dominadora do homem e
da sua razão prática enquanto operativa instrumental; uma atitude que
Bacon já assinalara e que prossegue o lema cartesiano: «chegar a
conhecimentos que sejam muito úteis para a vida e que, em lugar desta
filosofia especulativa, se possa encontrar uma filosofia prática, por meio da
qual nas tornemos donos e senhores da natureza». E, por outro lado,
significa uma mudança da ideia da natureza, convertida agora em meio ou
material de trabalho.
b) segundo, a redução do saber à ciência físico-natural. E isso em
estreita relação com:

c) terceiro, a técnica (na sua forma maquinal) como aplicação da


ciência e como interpretação prático-instrumental da razão.

1.1.3. Nova sociedade e crise social

Face à sociedade do antigo regime, baseada em princípios teológicos e


regida por sacerdotes e militares, a sociedade industrial funda-se sobre a
ciência e são os sábios e os cientistas quem constitui a sua direcção
espiritual. A época de Comte vive uma crise social provocada pelo
desaparecimento de um tipo de sociedade e pelo aparecimento de outro bem
diferente. «Um sistema social que se extingue, um sistema novo chegado à
maturidade plena e que tende a constituir-se, tal é a característica atribuída à
época actual pela marcha geral da civilização. Em conformidade com este
estado de coisas, dois movimentos de natureza diferente agitam hoje a
sociedade: um movimento de desorganização e outro de reorganização.
Pelo primeiro, isoladamente considerado, a sociedade é arrastada para uma
profunda anarquia moral e política que parece ameaçá-la com uma próxima
e inevitável dissolução. Pelo segundo movimento, a sociedade é conduzida
ao estado social definitivo da espécie humana, o mais conveniente à sua
natureza, aquele em que todos os meios de prosperidade devem receber o
mais pleno desenvolvimento e aplicação mais directa. É na coexistência
destas duas tendências opostas que consiste a grande crise sofrida pelas
nações mais civilizadas. É sob este duplo aspecto que a crise deve ser
considerada para ser compreendida».

«IDEOLOGIA» E CRISE SOCIAL


As ideias regem e agitam o mundo; ou, por outras palavras, em última
instância qualquer mecanismo social assenta em opiniões (...). A grande
crise política e moral das sociedades actuais depende, em última análise,
da anarquia intelectual. Com efeito, o nosso maior mal reside nesta
profunda divergência que hoje se verifica entre todos os espíritos
relativamente às máximas fundamentais cuja firmeza é a primeira
condição de uma verdadeira ordem social. Enquanto as inteligências
individuais não tiverem aderido unanimemente a um certo número de
ideias gerais capazes de formar uma doutrina social comum, não se pode
ignorar que o estado das nações permanecerá, sem dúvida,
essencialmente revolucionário, apesar de todos os paliativos políticos que
se possam adoptar, e não comportará realmente mais do que instituições
provisórias.
Comte, Curso de Filosofia Positiva.

Neste texto, Comte não só assinala a crise social e o seu sentido, como a
analisa, servindo-se da distinção entre épocas «orgânicas» e épocas
«críticas». Uma época orgânica é aquela em que a sociedade está baseada
num sistema de crenças fixo e firme e, desenvolvendo-se de acordo com
ele, tende à conservação da ordem herdada. Uma época crítica, pelo
contrário, é aquela em que o sistema de ideias até então válido perde
vigência, em que a sociedade tende à destruição da ordem estabelecida e à
construção de uma nova ordem (uma nova época orgânica) erguida sobre
um sistema superior de ideias.
Assim, a crise social que Comte vive é o resultado da desorganização da
sociedade teológico-militar, que será substituída pela nova etapa
organizativa, da sociedade científico-industrial ou positiva, Porém, há um
aspecto comum a todas as épocas, que é de singular importância: a unidade,
convivência e ordem social e o progresso da sociedade que é a história
repousam num sistema de crenças e ideias, num sistema intelectual, «As
ideias», escreve Comte, «governam e transformam o mundo, ou, por outras
palavras, todo o mecanismo social repousa afinal sobre opiniões (...). A
grande crise política e moral das sociedades actuais deve-se, em última
análise, à anarquia intelectual, O nosso mais grave mal consiste, com efeito,
nesta profunda divergência que existe agora entre todos os espíritos acerca
de todas as máximas fundamentais cuja estabilidade é a primeira condição
de uma verdadeira ordem social.» Daí que antes da reforma social seja
preciso fazer uma reforma intelectual. Se «todo o regime social está
fundado sobre um sistema filosófico», então «a única revolução que nos
convém é uma revolução filosófica, uma mudança de sistema nas ideias; a
revolução política e a mudança nas instituições só podem vir depois».

1.2. O espírito positivista

É neste contexto que se deve compreender a filosofia positivista de


Comte, que se apresenta como uma contribuição básica a essa reforma
intelectual, fundamentada não em um pensamento teológico mas na ciência.

1.2.1. Dimensão epistemológica

Neste aspecto o positivismo elabora uma teoria do saber e um sistema


das ciências com base na nova ciência surgida do estudo do progresso e da
ordem social: a sociologia. Enquanto teoria do saber, o positivismo inspira-
se principalmente no empirismo inglês e em alguns filósofos do
Iluminismo, do qual absorve a redução do conhecimento ao que é dado na
experiência e aos fenómenos, a recusa de qualquer instância metafísica ou
teológica, e a admiração pela ciência da natureza, ao ponto de fazer dela o
modelo de todo o conhecimento. Neste sentido, pode falar-se de um modo
positivista de pensar, com os traços essenciais seguintes:

a) Fenomenismo. A diferença entre essência e fenómeno é gratuita e


infundada. A suposta essência fica reduzida ao fenómeno, e só se aceitará
como real aquilo que se apresente e se manifeste efectivamente na
experiência. A teoria do saber está, pois, em estreita relação com uma
interpretação do real, com uma ontologia.

b) Nominalismo. Em correlação com a recusa em admitir essências


exclui-se que ao discurso e à linguagem, pelo facto de nele se utilizarem
termos gerais, corresponda uma realidade igualmente universal, Pelo
contrário, não há outros objectos para além dos concretos e singulares.

c) Unidade de método no saber e nas ciências, estabelecida a partir de


um saber ou ciência que se toma como modelo.

1.2.2. Dimensão histórica e filosófica

Mas o espírito positivista ultrapassa bastante a dimensão epistemológica,


por mais fundamental que esta seja, e isso não só por exigências internas
derivadas da sua determinação do saber, mas também do seu projecto de
totalização e de reforma social.

O ESPÍRITO POSITIVO
Devido à sua natureza, o espírito positivo revela-se sempre
directamente progressivo, em qualquer assunto a que seja aplicado,
ocupando-se infatigavelmente em aumentar a massa dos nossos
conhecimentos e em aperfeiçoar o seu vínculo: aliás, os exemplos usuais
de progresso indiscutível são hoje tomados sobretudo das diversas
ciências positivas. Na lição seguinte explicarei de modo mais específico
como, do ponto de vista social, a ideia racional de progresso – tal como
começa a ser concebida, ou seja, como ideia de um desenvolvimento
contínuo, com tendência inevitável e permanente para um fim
determinado – deve ser certamente atribuída à influência imprevista da
filosofia: por outro lado, só a filosofia é capaz de esclarecer esta noção do
estado vago e mesmo flutuante em que todavia se encontra, ao atribuir-
lhe claramente o fim necessário do progresso e a sua autêntica marcha
geral. O primeiro desenvolvimento do sentimento de progresso social
deve-se em parte certamente ao cristianismo, devido à sua proclamação
solene de uma superioridade fundamental da nova lei sobre a antiga;
torna-se no entanto evidente que a política teológica deve ser hoje
considerada como radicalmente incompatível com qualquer ideia de
progresso contínuo, pois procede de acordo com um tipo imutável cuja
realização suficiente só é oferecida por um passado longínquo; pelo
contrário, a política teológica revela manifestamente, como vimos, um
carácter profundamente retrógrado. Sob certo aspecto, se o vínculo muito
menor das suas doutrinas não a tornasse bastante mais acessível ao
espírito geral do nosso tempo, a política metafísica apresentaria uma
incompatibilidade análoga, num grau quase tão pronunciado e em função
dos mesmos motivos essenciais. Importa assinalar, com efeito, que a
noção de progresso só começou a preocupar vivamente a razão pública
quando a metafísica revolucionária perdeu a sua supremacia inicial. Deste
modo, o desenvolvimento geral do instinto progressivo, e do instinto
orgânico, está de futuro essencialmente reservado à política positiva.
Comte, A Física Social.

a) Em primeiro lugar, a caracterização do saber científico não se faz


arbitrariamente, mas atende-se à história das ciências, ao desenvolvimento
progressivo em que se constituíram como ciências positivas. O que
significa, por um lado, a necessidade de estudar a história das ciências ou o
sistema de ideias e interpretar a natureza e o sentido da história, visto que
segundo o próprio Comte «as ideias governam o mundo». Mas significa
também, por outro lado, e é o que mais importa agora acentuar, que a teoria
do saber e o sistema das ciências tornam manifesto o que é a própria
história, o espírito humano e a natureza da sociedade. Por isso, no
positivismo de Comte a sociologia é de facto uma teoria sobre a história,
sobre o espírito humano e sobre a ordem social.
b) Em segundo lugar, a reforma social que, em última análise,
impulsiona o positivismo comtiano supõe uma série de valorações e
promove valores concretos, que se inserem no chamado «espírito
positivista»; enquanto que o positivismo promove uma revolução política e
uma mudança nas instituições sociais, deverá fazer-se uma análise crítica e
valorativa da sua atitude face à situação social e política da sociedade
industrial.

Como vemos, o positivismo não se limita a uma teoria do saber nem a


uma ciência determinada, nem sequer a uma sistematização das ciências;
bem pelo contrário, representa uma teoria geral sobre a realidade, um
sistema não só de verdades mas também de valores. Isto é, uma filosofia.
«Emprego a palavra filosofia» escreve Comte, «na acepção que lhe
davam as antigos e especialmente Aristóteles, para designar o sistema
geral de concepções humanas; e ao acrescentar-lhe a palavra positiva,
anuncio que considero esta maneira especial de filosofar que consiste em
considerar as teorias (...) como tendo por objecto a coordenação dos
factos observados.»
2. NATUREZA DO SABER E SISTEMA DAS
CIÊNCIAS

2.1. Ordem, progresso e estado

De quanto fica dito no parágrafo anterior, interessa-nos retomar agora os


seguintes pontos:

a) O traço mais característico da ordem social é o estado da inteligência


ou do saber, pelo que a filosofia, sistema intelectual das ideias por
antonomásia, é o fundamento dessa ordem e o que configura a sua estrutura.
O que não quer dizer que este traço venha a determinar o progresso da
sociedade e da história, já que nelas se conjugam e complementam os
diferentes sectores do todo social; mas consegue dominá-lo: «Em todos os
tempos», escreve Comte, «desde o primeiro impulso do génio filosófico se
reconheceu sempre, de maneira mais ou menos precisa, mas constantemente
irrecusável, que a história da sociedade está sobretudo dominada pela
história do espírito humano.»

b) A distinção entre épocas orgânicas e críticas, e a passagem


progressiva de umas a outras permite-nos agora precisar dois conceitos de
singular importância: as categorias de ordem e progresso. O termo
«ordem» indica a conexão, estrutura e unidade sistemática da sociedade
numa época determinada, o que lhe empresta estabilidade e segurança; e
como acabamos de dizer a ordem decisiva e dominante é em última
instância a ordem das ideias. Assim, a ordem política não é mais do que a
«expressão da ordem civil» e a «ordem civil não é por sua vez mais do que
a expressão do estado da civilização». Ao ponto de que só a partir desta
ordem fundamental ser possível criar a instituição social. Mas a sociedade é
histórica e tem um desenvolvimento exigido pelo próprio princípio da
ordem, isto é, o espírito ou a natureza humana.
Ora, o termo «progresso» indica a transição de uma ordem determinada
a outra. Deste modo, nas palavras de Comte, o progresso não é mais do que
«o desenvolvimento da ordem», afirmando também que toda a ordem e o
seu consequente progresso está estabelecida e é exigida pela natureza
humana. E o facto de haver um progresso na ordem da sociedade ao longo
da história não quer dizer apenas que se dá uma série de transições, mas
também que nestas transições se progride, se acede e se cria uma ordem
cada vez mais perfeita que cada vez exprime e realiza melhor o espírito
humano, a natureza do homem.
O espírito humano e o sistema de ideias e ciências que o configuram
consistem, pois, de ordem e progresso e é nesta ordem e progresso que se
podem reconhecer as características e exigências da natureza humana para a
sua realização. Ora, a relação interna entre ordem e progresso constitui o
espírito humano e a sociedade em cada época, o estado em que se
encontram. De modo que o termo «estado» – terceira categoria
fundamental do positivismo de Comte – indica simultaneamente tanto a
unidade sistemática e estrutural do espírito humano numa época
determinada, como o facto de que essa situação é apenas um estádio entre
os vários que o espírito vai percorrendo no desenvolvimento e prossecução
do fim proposto pela sua natureza.

c) Convém recordar a importância atribuída por Comte, no seu projecto


de reforma da sociedade, ao espírito científico, ao sistema de ideias e às
ciências. Mas decidir o que é o saber, quais as ciências e como levar a cabo
a sua sistematização e, caso fosse preciso, a sua reorganização, de modo a
que possam promover a reforma social em consonância com os fins
genuínos do espírito humano, tudo isso só se pode fazer em relação com a
história, já que para Comte, esta é, em última instância, o progresso do
espírito científico.
Estes três pontos levam-nos, por conseguinte, a tratar da ordem
progressiva do espírito humano, dos seus diferentes estados.

2.2. A lei dos três estados

Por «estado» entende Comte, como acabamos de ver, a unidade


sistemática interna (e em última análise intelectual) em que se estrutura e
funda a vida social. Já no ano de 1822, no Prospectus des travaux
nécéssaires pour réorganiser la société, escreve: «Pela própria natureza do
espírito humano, cada ramo dos nossos conhecimentos está necessariamente
sujeito na sua marcha a passar sucessivamente por três estados teóricos
diferentes; o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstracto e,
por último, o estado científico ou positivo». É extremamente importante
destacar o seguinte:

a) que a ordem e progresso nos diferentes estados é imposta «pela


própria natureza do espírito humano». Isso é um indício do sentido e
dos limites do positivismo comtiano;
b) que a divisão em três estados e a passagem de um a outro não é uma
mera e simples sucessão mas exprime, com base na necessidade que os
impõe, uma lei do espírito humano que rege também os conhecimentos;
a «lei dos três estados». Aquilo que a caracteriza e distingue é sobretudo
a maneira de entender ou interpretar a natureza das coisas ou
fenómenos e o modo de explicá-los, bem como a correspondente ideia
que se faz do conhecimento.

CONCILIAÇÃO POSITIVA DA ORDEM E DO PROGRESSO


Como resultado deste crescente sentimento da insuficiência social
antecipadamente oferecida pelo espírito teológico e pelo espírito
metafísico (os únicos que até hoje disputaram activamente a supremacia),
a razão pública deve estar implicitamente disposta a acolher hoje o
espírito positivo como a única base possível para verdadeiramente
resolver a profunda anarquia intelectual e moral que caracteriza sobretudo
a grande crise moderna. Embora ainda seja alheia a essas questões,
durante a luta revolucionária dos últimos três séculos, a escola positiva
foi-se preparando gradualmente e na medida do possível, construindo o
verdadeiro estado normal das classes mais simples das nossas
especulações reais. Esses antecedentes científicos e lógicos tornaram-na
forte e, por outro lado, foi purificada das diversas aberrações
contemporâneas, apresentando-se hoje como se acabasse de adquirir a
generalidade filosófica que lhe faltava. Deste modo, a partir de agora
atreve-se a empreender, por sua vez, a solução, ainda intacta, do grande
problema, trazendo convenientemente aos estudos finais a mesma
regeneração que já realizara sucessivamente nos diferentes estudos
preliminares.
Assim, deve salientar-se a aptidão espontânea de tal filosofia para
constituir directamente a conciliação fundamental, procurada em vão
entre as exigências simultâneas da ordem e do progresso, dado que basta
que estes efeitos estendam aos fenómenos sociais uma tendência
plenamente conforme à sua natureza, o que se tornou agora muito
familiar nos restantes casos essenciais. Em qualquer questão, o espírito
positivo conduz sempre ao estabelecimento de uma harmonia exacta e
elementar entre as ideias de existência e as ideias de movimento,
originando assim, especialmente em relação aos corpos vivos, a
correlação permanente entre as ideias de organização e as ideias de vida;
e deste modo, por uma última especialização própria do organismo social,
propiciar a solidariedade contínua entre as ideias de ordem e as ideias de
progresso. Para a nova filosofia, a ordem constitui sempre a condição
fundamental do progresso; e, reciprocamente, o progresso converte-se no
fim necessário da ordem, como fundamento ou destino, tal como na
mecânica animal o equilíbrio e o progresso são mutuamente
indispensáveis,
Comte, Discurso sobre o Espírito Positivo.

2.2.1. O estado teológico

Neste primeiro estado, ponto de partida necessário do espírito humano,


pretende-se conhecer a natureza das coisas perguntando pelo seu porquê e
apelando na sua explicação para causas últimas, ocultas e sobrenaturais, que
darão conta de todos os fenómenos e das suas irregularidades. O
conhecimento assim obtido é um saber absoluto que se sobrepõe ao poder
da imaginação. Feiticismo, politeísmo e monoteísmo representam três
momentos que no estado teológico indicam um progresso no saber, que
tende sempre a reduzir o número das causas, e dos princípios (ou leis) na
explicação dos fenómenos.

2.2.2. O estado metafísico

Este outro estado representa um notável progresso no desenvolvimento


da humanidade pois, embora se continue a indagar sobre o porquê das
coisas, o princípio da explicação já não se coloca em presumíveis realidades
divinas e fora da natureza, mas nas próprias coisas imutáveis e necessárias,
na medida em que estas actuam de acordo com propriedades, entidades
abstractas ou poderes naturais. A própria natureza contém, pois, a
capacidade de explicação dos fenómenos.
O conhecimento continua a ter um carácter absoluto, na medida em que
as entidades ou propriedades das coisas são imutáveis e necessárias, e estão
livres da relatividade e circunstância de cada coisa em concreto. A redução
das causas transcendentes e sobrenaturais a princípios inseridos na natureza
das próprias coisas significa uma certa racionalização do conhecimento; no
entanto este continua a sobrepor-se ao poder da imaginação, que cria e crê
em semelhantes entidades.
Apesar das suas deficiências, o estado metafísico supera o estado
teológico e serve de preparação para o estado positivo.

2.2.3. O estado positivo

É o último estado no desenvolvimento do espírito humano e, no entender


de Comte, o estado definitivo em que a humanidade irá perdurar. Entra-se
nele quando o homem abandona a interrogação sobre o porquê dos
fenómenos e afasta as pseudoquestões teológicas e metafísicas pela sua
falta de utilidade e proveito para a nova sociedade positivista. Agora já não
se pergunta pela causa ou essência das coisas, mas pelo modo como se dão
os fenómenos e pela regularidade ou lei em que ocorrem.
O conhecimento terá um carácter relativo (no sentido que mais tarde se
exporá) e o exercício da imaginação é substituído por um saber da razão,
dentro dos limites do que é dado, orientado para a acção operativo-
instrumental. É a razão prática (não na acepção kantiana, como é óbvio) da
sociedade industrial, que cria e opera sobre a técnica, entendida esta como
aplicação da ciência. No estado positivo não se procura pois nenhuma
explicação mas uma mera descrição dos fenómenos e das suas
regularidades mediante a observação e o raciocínio sobre os factos
observados.

A lei dos três estados, que exprime a estrutura do espírito humano, mostra
que o estado positivo da sociedade industrial é o mais adequado à
natureza humana. E sendo o projecto comtiano uma reforma da sociedade
com base no espírito científico do positivismo, a teoria do saber e das
ciências, igualmente positiva, está em estreita ligação com essa lei e
muito especialmente com a sua culminação definitiva, no estado positivo.
Com a intenção, aliás, de que o modo de saber positivo nas ciências se
generalize e seja aplicado aos demais factores da ordem social, como a
política, a religião e, em suma, à totalidade da vida humana. Só assim e
então se cumprirá a reforma social proposta. Daí a necessidade de
considerar com mais pormenor a teoria do saber e o sistema das ciências.

2.3. Teoria do saber e da ciência

2.3.1. Características do saber positivo

O saber alcançado no estado positivo atinge a genuína natureza,


plenitude e adequação do conhecimento ao fim a que, segundo Comte, deve
servir. A rica significação do termo «positivo» permitir-nos-á compreender
com precisão a natureza deste saber. E para isso nada melhor do que
escolher um texto, porventura longo mas precioso, do Discurso sobre o
Espírito Positivo.
«Considerada, em primeiro lugar, na sua acepção mais antiga e mais
comum, a palavra ‘positivo’ designa o real, por oposição ao quimérico: esta
relação convém plenamente ao novo espírito filosófico, assim caracterizado
após a sua constante consagração às investigações verdadeiramente
acessíveis à nossa inteligência, com a exclusão permanente dos
impenetráveis mistérios de que se ocupava sobretudo na sua infância.
«Num segundo sentido, muito próximo do anterior, mas todavia distinto,
este termo fundamental indica o contraste entre o útil e o ocioso: em
filosofia refere-se à destinação necessária de todas as nossas sãs
especulações, à melhoria contínua da nossa verdadeira condição individual
e colectiva em vez da vã satisfação de uma estéril curiosidade.
«Segundo uma terceira significação usual, esta feliz expressão é
frequentemente utilizada para qualificar a oposição entre a certeza e a
indecisão; indica assim a aptidão característica de uma tal filosofia para
constituir espontaneamente a harmonia lógica no indivíduo e a comunhão
espiritual em toda a espécie, em vez das indefinidas dúvidas e dos
intermináveis debates que devia suscitar o antigo regime mental.
«Uma quarta acepção habitual, demasiadas vezes confundida com a
anterior, consiste em opor o preciso ao vago: este sentido recorda a
tendência constante do verdadeiro espírito filosófico para obter em tudo o
grau de precisão compatível com a natureza dos fenómenos e conforme
com a exigência das nossas verdadeiras necessidades; é sabido que a antiga
maneira de filosofar conduzia necessariamente a opiniões vagas, não
comportando uma indispensável disciplina a não ser a partir de uma
compreensão permanente, apoiada numa autoridade sobrenatural.
«É necessário, por fim, destacar especialmente uma quinta aplicação,
menos usual do que as outras, embora por outro lado igualmente universal,
quando se emprega a palavra positivo como o contrário de negativo. Sob
este aspecto, indica uma das mais eminentes propriedades da verdadeira
filosofia moderna, revelando-a sobretudo destinada, por sua natureza, não a
destruir mas a organizar. As quatro características gerais a que acabámos de
referir-nos distinguem-na simultaneamente de todos os modos possíveis,
sejam teológicos ou metafísicos, próprios da filosofia no seu início. Esta
última significação, ao indicar, por outro lado, uma tendência contínua do
novo espírito filosófico, oferece hoje uma importância especial para
caracterizar directamente uma das suas principais diferenças, não tanto com
o espírito teológico, que foi muito tempo orgânico, mas com o espírito
metafísico propriamente dito, que nunca pôde ser mais do que crítico (...).

Augusto Comte
Nasce em 1798 em Montpellier e morre em 1857 em Paris. Os seus primeiros anos de vida
intelectual estão marcados pela influência de Saint-Simon, com quem colabora de perto. Mais
tarde distanciar-se-á dele mas o seu pensamento não poderá desvincular-se do facto de ter vivido
de perto os primeiros passos do socialismo francês. Se a isto juntarmos a sua experiência
intelectual da crise do idealismo e a sua grande sensibilidade perante o facto do
desenvolvimento das ciências da natureza, teremos detectado as coordenadas que balizam o
sistema do positivismo comtiano.
A vida de Comte foi relativamente curta mas apaixonante. Aos vinte e oito anos sofre uma
crise cerebral. Quando recupera, dedica-se à elaboração do seu pensamento, e em 1830 publica
o primeiro volume da obra Curso de Filosofia Positiva. As suas ideias não foram bem acolhidas,
o que significou o fracasso da sua carreira profissional: não chegou a ser professor de
matemáticas do Instituto Politécnico de Paris.
A sua vida amorosa esteve bastante relacionada com o seu itinerário intelectual: separado da
mulher, em 1845 conheceu Clotilde de Vaux, que foi para Comte uma espécie de musa,
encarnação das suas ideias, uma espécie de Beatriz inspiradora da sua «religião da
humanidade».
Outras obras de Comte dignas de menção são: Sistema de Política Positiva ou Tratado de
Sociologia que institui a Religião da Humanidade (quatro volumes, 1851-1854); Catecismo
Positivista (1852); Discurso sobre o Espírito Positivo (1844).

«A única característica essencial do novo espírito filosófico que,


todavia, não se indicou directamente por meio da palavra positivo, consiste
na sua tendência necessária para substituir em tudo o absoluto pelo
relativo.»
Este longo texto dá-nos não só uma clara e precisa indicação de algumas
características do saber positivo, como além disso o faz em relação aos
estados teológico e metafísico, assinalando as diferenças. De todas estas
características, a mais importante e nuclear é sem dúvida o ser relativo.
Nele se exprime a quinta essência do espírito positivista; «substituir em
tudo o absoluto pelo relativo».
Todo o positivo, e também o saber, é relativo, isto é, está e estará em
relação ao sujeito, manifestando-se-lhe. Daí que seja um fenómeno dado ao
homem, posto perante ele de uma forma que possa ser observado e
verificado. Por conseguinte, um fenómeno positivo observável e verificável.
Ora, tais características são as que caracterizam propriamente aquilo a que o
positivismo de Comte chama um facto. O saber positivo e o saber dos
factos.

2.3.2. Ideia e características da ciência

Ora, embora tudo isto seja verdade, não é suficiente para que a teoria
comtiana do saber ou da ciência fique adequadamente caracterizada. Neste
ponto se revela a diferença, que é muito instrutiva, entre o positivismo de
Comte e o de Stuart Mill. Indiquemo-la resumidamente com palavras de
Cassirer: «Para Mill, a experiência é, no fundo, apenas um conglomerado,
uma soma de observações concretas, unidas pelo débil nexo da associação e
que se vai estendendo continuamente graças ao método da ‘indução’, a qual
é uma realidade inegável mas que, no tocante à sua validade, é e será
sempre um enigma. J. S. Mill fundamenta assim aquela forma do
‘positivismo’ que só quer reconhecer como base para o conhecimento da
verdade e da realidade os factos concretos. Todas as supostas
‘generalidades’ devem reduzir-se, segundo ele, a elementos individuais, a
coisas dadas aqui e agora, aos dados simples que as percepções dos sentidos
nos oferecem.
«Para Comte, pelo contrário, a relação entre o geral e o particular no
conhecimento científico determina-se de modo muito diferente. A função
deste conhecimento não consiste, segundo ele, em estabelecer factos mas
em obter leis. E as leis jamais se obtêm como resultado da simples soma de
observações isoladas; são a expressão de relações que só é possível pôr em
destaque e estabelecer mediante a função do pensamento coordenador. Este
ponto de partida imprime à lógica de Comte um traço acentuadameme
construtivo» (O Problema do Conhecimento na Filosofia e na Ciência
Moderna).
O saber positivo comtiano não é um saber de factos mas de leis, isto é,
das relações e regularidades em que os factos se organizam e estruturam.
Na sequência disto, podemos indicar as seguintes características relevantes
no conceito comtiano de ciência:

a) «A ciência consiste no conhecimento das leis dos fenómenos, para


as quais os factos, em rigor, por precisos e rigorosos que sejam, mais não
fazem do que fornecer o material indispensável. Portanto, quando se pensa
na determinação destas leis, pode afirmar-se sem exagerar que a verdadeira
ciência, muito longe de consistir em observações isoladas, tende, ao
contrário, a sobrepor-se na medida do possível à investigação imediata dos
factos concretos, substituindo-a pela previsão racional.»

b) A ciência é um factor ou componente do sistema social. Neste


sentido, as ciências são um instrumento ao serviço do domínio da natureza e
em consonância com os interesses ou fins da sociedade. Isto dá-nos já uma
indicação da relação que deve haver entre as ciências e o saber que se ocupa
da sociedade, ou seja, a sociologia. O critério da ciência e dos
conhecimentos em geral vem a ser a eficácia e a utilidade. Saber para
prever, prever para prover.

c) O conhecimento e a verdade têm um carácter relativo. Esta


relatividade (que de momento só consideramos no seu aspecto
epistemológico) resulta da relação do saber com o estado ou situação do
sujeito, e da sua variabilidade e progresso ao longo da história.

d) A ciência caracteriza-se também pela sua unidade (pretensão de


raiz cartesiana, recorde-se): unidade no método e natureza do saber, e
unificação das ciências na dependência da que constitui o princípio e o fim
do saber. «Não se deve pois conceber, no fundo, mais do que uma ciência, a
ciência humana, ou mais exactamente social, da qual a nossa existência
constitui simultaneamente o princípio e o fim, e na qual acaba por fundir-se
naturalmente o estudo racional do mundo exterior.»

2.4. O sistema das ciências

A organização e classificação comtiana das ciências corresponde


principalmente a um critério lógico;mas que também tem em conta um
aspecto histórico, a saber, a ordem da sua descoberta e constituição.
Segundo o critério lógico, tomam-se em consideração os diferentes
factos de que cada ciência se ocupa, sobretudo a sua generalidade e
complexidade. Complexidade e generalidade que estão em proporção
inversa: a menor complexidade no conteúdo implica uma maior
aplicabilidade na extensão, uma maior generalidade. Assim, a matemática é
a menos complexa e a de maior aplicabilidade. Em seguida, numa
ordenação progressiva de acordo com a proporção inversa assinalada, as
restantes ciências: a astronomia (que se ocupa dos factos que ocorrem no
firmamento); a física e a química (que tratam respectivamente os factos
físicos e os químicos); a biologia (que estuda os factos biológicos); e por
último a ciência que terá de estudar os factos sociais e que passa por ser (no
sentido e limites a estabelecer) criação do próprio Comte: a sociologia.
No entender de Comte, foi esta a ordem em que surgiram as ciências no
seu processo histórico de descoberta e constituição. O progresso, como
vimos, é o desenvolvimento da ordem, e a lei dos três estados está em
estreita relação com a sucessiva positivização do saber e das ciências. A
experiência e o conhecimento da progressão histórica nos três estados serve
a Comte como força para postular a instauração do saber positivo também
nas questões humanas e sociais e para que com a nova ciência positiva, a
sociologia, se possa atacar a reforma social que é, não esqueçamos, o que
anima e inspira o positivismo comtiano.
3. A SOCIOLOGIA E A POSITIVIZAÇÃO DA
RAZÃO

3.1. Noção de sociologia e suas partes

A sociologia, à qual de início Comte chamou «física social», constitui a


ciência suprema e a ela estão subordinadas as restantes ciências. A sua
supremacia está em estreita conexão com a supremacia do estado positivo.
O objecto da sociologia é a investigação e o estabelecimento das leis
que regem a ordem e o progresso da sociedade, isto é, as leis do
desenvolvimento histórico. E embora seja verdade que, à semelhança das
outras ciências positivas, a sociologia se serve da observação e da
comparação, no entanto o seu genuíno objectivo é segundo Comte o
conhecimento da «natureza do espírito humano» e as subsequentes leis de
desenvolvimento histórico, ou, o que é o mesmo, a estrutura (ordem) da
sociedade e seu desenvolvimento (progresso). Mas, além disso, a sociologia
deve promover uma organização mais progressiva e livre do espírito ou
natureza humana e da sociedade; contém pois uma instância moral ou
valorativa.
Em estreita relação e dependência das categorias de «ordem» e
«progresso», a sociologia divide-se em estática social e dinâmica social. A
estática social estuda a estrutura da sociedade que não fez, aliás, mais do
que exprimir a estrutura ou natureza do espírito e isso independentemente
de todo o desenvolvimento, com a intenção de encontrar os princípios de
toda a ordem social. A dinâmica social, por seu lado, estuda a mudança
social, as fases ou estados sucessivos. Os estados do devir do espírito
humano são necessários, de modo que, tal como o progresso não é senão o
desenvolvimento da ordem, a dinâmica social não fez mais do que explicar
a estática social à qual está subordinada.

3.2. Positivização da razão

Como se pode aquilatar por esta breve caracterização, muito dificilmente


se pode considerar a sociologia comtiana como uma ciência «sóbria e
rigorosamente positiva»; bem pelo contrário, pode considerar-se como uma
teoria da natureza humana e como uma filosofia da história. Na medida em
que deste modo leva a cabo uma interpretação totalizadora, não apenas da
natureza humana e da história, mas também da «totalidade» das ciências
(que, como temos indicado, estão subordinadas e submetidas ao «social»),
nessa medida, dizíamos, o positivismo de Comte é muito mais do que uma
teoria do saber, pois encerra uma teoria da realidade: só o «positivo» e o
«relativo» podem considerar-se real.
Já vimos que o conceito de «o relativo» expressava a quinta essência da
natureza do saber; não só o saber é «relativo», mas também – e mais radical
e primeiramente – é relativa a realidade. O positivismo comtiano assenta no
princípio (ou suposto) filosófico de «substituir em tudo o absoluto pelo
relativo». Tudo é relativo: eis o único princípio – ao que parece – absoluto.
A teoria comtiana da realidade, e especialmente da natureza humana e
da história, faz com que também o homem atinja este total relativismo. O
positivismo comtiano supõe pois uma interpretação do homem, cujo sentido
último talvez Leszek Kolakowski tenha expressado bem: «um anti-
individualismo radical, a negação do indivíduo humano e o culto da
Humanidade enquanto único individuum real (...). A filosofia de Comte é
uma destruição completa da subjectividade humana; assim como a
individualidade humana subjectivamente concebida é uma ficção
especulativa do ponto de vista de critérios da ciência positiva, também é
uma ficção do ponto de vista sociológico (...). Comte é o herdeiro real de
Hume». (La philosophie positiviste, Denoel, Paris, 1976, págs. 83-84).
Mas positivismo comtiano, como toda a verdadeira filosofia e mais do
que muitas delas, influenciou e configurou o modo como o homem entende
e realiza a sua vida. Assim, é possível falar de uma «total positivização do
homem e do seu viver», cuja realização podemos reconhecer claramente na
nossa idade científica e tecnológica.
Finalmente, o positivismo comtiano levou a cabo uma interpretação
«redutivamente positivista» da razão: a positivização da razão. Com esta
expressão pretende-se designar a amputação da natureza e tarefa crítica da
razão relativamente à realidade social e histórica dada, e a sua submissão
cega às ciências e à técnica como únicos modos do exercício prático-
racional do pensamento. «A oposição positivista ao princípio de que os
factos da experiência têm de justificar-se perante o tribunal da razão»,
escreveu Marcuse, «impedia (...) uma crítica compreensiva do que é dado.
A dita crítica não tinha mais cabimento na ciência. Em última instância, a
filosofia facilitou a capitulação do pensamento perante tudo o que existe e
manifesta o poder de persistir na experiência» (Marcuse, Razon y
Revolución. Hegel y el surgimiento de la Teoria Social, Aliança Ed.,
Madrid, 1971 pág. 319).

O ESTADO POSITIVO E A RELIGIÃO


O padre – Na verdade, minha filha, a nossa fé teve sempre o mesmo
objectivo essencial: conceber a ordem universal que enforma a existência
humana a fim de determinar a nossa relação com ela. A nossa intenção
foi sempre entender esta ordem independente de nós, para que a
pudéssemos suportar melhor e, sobretudo, para a alterar, seja por meio do
estabelecimento de causas fictícias ou pelo estudo das suas leis Riais.
Qualquer doutrina religiosa fundamenta-se necessariamente numa
explicação do mundo e do homem, que são o objecto duplo e constante
dos nossos pensamentos teóricos e práticos.
A fé positiva expõe directamente as leis efectivas dos vários
fenómenos observáveis sejam eles interiores ou exteriores; ou seja, expõe
as suas constantes relações de sucessão e de semelhança, as quais nos
permitem prever o seu encadeamento. Mas encara como radicalmente
inacessível e profundamente inútil a investigação sobre as causas
propriamente ditas, primeiras ou últimas, dos acontecimentos. As suas
concepções teóricas explicam sempre o como mas nunca o porquê. Por
outro lado, quando refere os meios de guiar a nossa actividade, fez
prevalecer sempre a finalidade, uma vez que o efeito prático deriva de
uma vontade inteligente.
O dogma fundamental da religião resume-se, pois, à verificação de
uma ordem inalterável que submete a si todos os acontecimentos. Esta
ordem é simultaneamente objectiva e subjectiva, e convém tanto ao
objecto como ao sujeito observador. As leis físicas pressupõem leis
lógicas e, reciprocamente, as leis lógicas pressupõem leis físicas. Aliás, a
nossa razão nunca compreenderia a harmonia exterior se não observasse
nenhuma regra. Se o mundo fosse mais simples e mais poderoso do que o
homem, a sua regularidade seria ainda mais irreconciliável com a sua
desordem. É por isso que o pensamento positivo se baseia na harmonia
entre o objecto e o sujeito. Por conseguinte, esta ordem é susceptível de
verificação mas não de explicação.
Comte, Catecismo Positivista.
15. O MARXISMO

INTRODUÇÃO

Não é fácil apresentar uma caracterização precisa do marxismo. E isso


por uma série de razões, que se podem sintetizar em duas perguntas: 1) O
que é o marxismo? (A resposta não pode ser simples nem unívoca, pois o
termo «marxismo» encerra múltiplos sentidos); 2) O que se deve considerar
como marxismo? Para responder a esta segunda interrogação devemos
clarificar se por marxismo entendemos desde o pensamento de Marx até às
últimas e mais recentes «leituras» da sua obra, passando pelas diferentes
interpretações e usos que dela se têm feito em diferentes momentos
históricos e em diversos quadrantes geográficos, políticos e culturais.

1. É óbvio que o marxismo está em muito estreita relação com a


produção teórica e a acção prático-política do seu fundador: Marx. O
problema está precisamente no sentido desta produção. Para a clarificação
do mesmo é importante ter presente quais foram, como acentuou Lenine, as
«três fontes» da obra de Marx:a saber: a) a filosofia clássica alemã: b) a
economia política inglesa; c) o socialismo revolucionário francês. E tudo
isso em conjunção com a situação do proletariado na nova sociedade
industrializada e com o desenvolvimento das ciências da natureza. Em
relação com as três fontes, seria possível indicar pelo menos três sentidos
do termo «marxismo»:
a) Numa primeira acepção económico-sociológica, o marxismo é uma
teoria da realidade social, ou antes, de uma determinada sociedade e do seu
particular modo de produção: a sociedade burguesa capitalista. Neste
aspecto, o marxismo é uma crítica da economia política e pode considerar-
se como uma «macro-sociologia» e, em última análise, como veremos,
como uma teoria da história. O marxismo encerra assim um momento de
«cientificidade»: pretende instaurar e fundar uma ciência.

b) Por outro lado, no seu significado político, o marxismo é uma prática


ou acção revolucionária orientada para a transformação da realidade e da
estrutura económico-política-social. Neste sentido, o marxismo leva a cabo
uma crítica da alienação em que vive o homem, crítica feita a partir de uma
teoria acerca da natureza do homem e da sociedade. Poderia inclusivamente
dizer-se que «o grande objectivo que toda a formulação teórica do
marxismo serve à a intervenção prática no movimento histórico”. Este
princípio revolucionário que dá forma a toda a sua obra teórica, até aos
últimos escritos da sua vida, foi expresso por Marx já na juventude (...) com
a seguinte afirmação lapidar: «Os filósofos limitaram-se a interpretar o
mundo de diversas maneiras: mas o que importa é transformá-lo» (Karl
Korsch, Karl Marx, Ariel, Barcelona, 1975).

c) Em terceiro lugar, no seu significado «crítico-filosófico», o marxismo


é uma crítica da filosofia ou, pelo menos, de uma certa ideia e função da
filosofia. Marx propôs-se empreender um ajuste de contas com a tradição
filosófica anterior, a fim de, como escreveu a seu pai em 1837, «ter assim a
consciência da nossa posição real». A crítica marxista visa principalmente o
idealismo (e em especial o de Hegel) e o materialismo mecanicista (em
especial o de Feuerbach). E se por «filosofia» deve entender-se o que a
«consciência filosófica anterior» entendeu, o marxismo não só não é
filosofia como realiza uma dura crítica da filosofia e proclama o seu
desaparecimento e superação. Mas isto não quer dizer que o marxismo não
seja também uma filosofia: é uma filosofia e implica toda uma ontologia.
Em qualquer caso, o marxismo representa uma «concepção do mundo»
que se propõe realizar uma clarificação racional da consciência, que implica
uma cultura e tem uma ideia do lugar e da instalação do homem no mundo.
Sendo esta obra uma história da filosofia, a apresentação que vamos fazer
atenderá principalmente aos aspectos e teses do marxismo mais
propriamente filosóficos.

2. A resposta à segunda pergunta que fizemos pode ser a seguinte:

a) Por marxismo deve entender-se a obra de Karl Marx, e na expressão


do próprio Engels, com toda a legitimidade, pois o marxismo é a corrente
que «está associada primordialmente ao nome de Marx» (Engels, Ludwig
Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica Alemã, IV). Engels continua: «a
parte mais considerável das principais ideias directrizes (...) correspondem a
Marx(...). Sem ele, a teoria não seria hoje, nem de longe, o que é».

b) Pode também considerar-se como marxismo a obra de Engels


juntamente com a de Marx e sobretudo o intento engelsiano de tematizar
ou sistematizar as teses de Marx, completando-as, ao ponto de elaborar toda
uma filosofia não apenas da sociedade e da história, mas também da
natureza (o que é costume designar por «materialismo dialéctico»).

c) Por último, pode considerar-se como marxismo tanto o que, a partir


da produção de Lenine, se poderia denominar «escolástica soviética», como
as diferentes «leituras» que no século XX se fizeram de Marx. Por exemplo,
a leitura «científico-estrutural» de Althusser; ou a existencialista de
Sartre, que entende o marxismo como «uma antropologia da revolução»
(para utilizar uma expressão de Habermas no seu livro Teoria e Práxis); ou
a leitura do marxismo como uma «teoria crítica da sociedade», levada a
cabo pela Escola de Frankfurt, com as diferenças próprias de cada um dos
seus representantes. Ou, por último, a reflexão e reapropriação que do
marxismo fizeram autores como Lukács, Bloch e Gramsci.
Parece razoável reduzir a nossa apresentação do marxismo a alguns dos
aspectos da obra de Marx, os mais especificamente filosóficos, com a
inclusão de algumas teses de Engels. Em primeiro lugar, tomaremos em
consideração o ajuste de contas de Marx com a «consciência filosófica»
anterior (basicamente Hegel e Feuerbach). Em segundo lugar, veremos a
crítica marxista da alienação e as suas principais teses sobre o ser humano.
Por último, e a partir da conjunção de materialismo e dialéctica, que
constituem os dois princípios básicos do marxismo, apontaremos as linhas
gerais da interpretação marxista da história.

Este capítulo está organizado em três partes:


1. A crítica de Marx à consciência filosófica.
2. As formas de alienação e o humanismo marxista.
3. Materialismo, dialéctica e história.
1. A CRÍTICA DE MARX À CONSCIÊNCIA
FILOSÓFICA

1.1. A crítica de Marx a Hegel

O ajuste de contas que Marx concretiza com a consciência filosófica tem


Hegel como principal interlocutor. Por um lado, porque o idealismo de
Hegel é a expressão mais madura e modelar da filosofia como
«interpretação» da realidade, ao mesmo tempo que contém os germes para a
sua transformação. E por outro, porque em Hegel se dá a consumação
teórica e ideológica do mundo cristão-burguês; porque o derrube do sistema
hegeliano, fruto das suas próprias contradições e da sua impotência ante
uma nova ordem social, significaria o derrube da concepção cristã-burguesa
do mundo.

1.1.1. O real e o racional

O ponto de arranque e o que está em litígio na crítica de Marx a Hegel é


o conceito hegeliano da realidade, que se define, de forma muito precisa, na
seguinte frase, uma das mais tópicas e reveladoras do seu pensamento: «O
que é racional é real e o que é real é racional». (Hegel, Princípios da
Filosofia do Direito, prólogo.)
Nesta frase, entendida num sentido dogmático e reaccionário (que não é
único), Hegel afirma:
a) A realidade é de natureza racional; a razão, constitui a essência da
realidade, pelo que esta é, em última análise, redutível a ideia, a
pensamento; de modo que as diferentes formas do real mais não são do que
expressões e manifestações («fenómenos») da ideia, ou melhor, do espírito.
(Pense-se no sentido da obra de Hegel intitulada Fenomenologia do
Espírito.)

b) Todo o real, na multiplicidade das suas formas e manifestações é


racional, está em consoância com a razão e satisfaz as suas exigências. Por
conseguinte, também a realidade social e política é racional tal como está de
facto estruturada. Como se vê, a frase encerra uma tese ontológica
«idealista» (a realidade é de natureza racional ou ideal) que pode aliás
proporcionar o fundamento ou justificação de uma ordem social e política.

1.1.2. A realidade como sujeito

Em estreita relação com tal tese ontológica está o problema que, como
escreve Engels, constitui «o problema central de toda a filosofia,
especialmente da moderna», a saber, «o problema da relação entre o pensar
e o ser» (Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã,
II), o problema da relação entre o conhecimento e a realidade.
Abordado a partir da interpretação ‘idealista’ da frase «todo o racional é
real e todo o real é racional», este problema resolve-se com a afirmação de
que o «pensar» (ou a razão, a ideia, etc.) determina e rege o ser ao ponto de,
no extremo e no delírio (aos quais é discutível que Hegel chegasse), a
realidade seria apenas um produto do pensar e portanto limitada ao
conhecimento da forma ou conteúdo do pensamento. E como na relação
pensar-ser o pensar (ou pensamento) é considerado «sujeito» e o ser (ou
realidade) «objecto», na interpretação «idealista» dá-se a primazia do
sujeito sobre o objecto sendo este mera expressão, e manifestação daquele,
de modo que todos os objectos mais não são do que momentos ou
manifestações do sujeito.
Neste mesmo sentido se orienta a outra frase de Hegel não menos tópica
e fundamental: «que o verdadeiro (ou o que, neste contexto, é o mesmo, a
realidade) não se apreende e exprime como substância, mas também e
na mesma medida como sujeito» (Fenomenologia do Espírito, prológo).

1.1.3. A realidade como espírito

A conjunção das duas teses (aliás inseparáveis), a ontológica e a


epistemológica (que estabelece em que consiste o saber ou episteme), torna
claramente manifesto que, segundo Hegel, os objectos só são o que são
enquanto formas do sujeito, da razão, da ideia ou do espírito, de tal modo
que isolada e independentemente não têm verdadeira realidade, consistência
e sentido. Ou, dito com uma terceira frase de Hegel, também tópica e
fundamental: «o verdadeiro é o todo». Mas como a totalidade das formas
da realidade e dos objectos é redutível ao sujeito ou ao espírito, o
verdadeiro é o sujeito como espírito. A totalidade do real ou, o que é o
mesmo, o absoluto, é espírito, e «só o espiritual é o real».
Ou seja, segundo Hegel toda a realidade (e o saber, ou discurso que
exprime o que é a realidade; também, pois, a filosofia) é uma grande
unidade ou sistema e, enquanto tal, está fechada, finalizada e enclausurada;
uma finalização que deve ser entendida como plenitude e consumação em
consonância com as exigências da razão; por conseguinte, a realidade
aparece como unidade ou sistema racional.

UM DUPLO ERRO DE HEGEL


O primeiro transparece claramente na Fenomenologia, o berço da sua
filosofia. Quando Hegel concebe a riqueza, o poder do Estado, etc., como
entidades alienadas do ser humano, concebe-os apenas na sua forma de
pensamento – por consequência, uma alienação do pensamento filosófico
puro, isto é, abstracto. Todo o movimento vai assim terminar no saber
absoluto. Trata-se precisamente do pensamento abstracto do qual os
objectos se encontram alienados e que eles confrontam com a sua
pretensa realidade. O filósofo – também ele uma forma abstracta do
homem alienado – estabelece-se a si mesmo como a medida do mundo
alienado. Toda a história da alienação e toda a retracção da alienação se
reduz, portanto, à história da produção do pensamento abstracto, isto é.
do pensamento absoluto, lógico, especulativo. A desapropriação que
forma o interesse real da alienação e a abolição da alienação, é a oposição
do em si e para si, da consciência e da autoconsciência, do objecto e do
sujeito, isto é, a oposição do pensamento abstracto e da realidade sensível
ou da existência sensórial real, no interior do próprio pensamento. Todas
as outras contradições e movimentos constituem apenas a aparência, a
capa, a forma esotérica destas duas posições, que são as únicas
interessantes e que constituem o significado das outras contradições
profanas. Não é que o ser humano se objective a si mesmo de modo
inumano, em oposição a si próprio, mas porque se objectiva a si mesmo
na distinção e na oposição ao pensamento abstracto, que constitui a
alienação tal como ela existe e como deve ser transcendida.
[XVIII] A apropriação das faculdades objectivadas e alienadas do
homem é assim, em primeiro lugar, apenas uma apropriação que ocorre
na consciência, no pensamento puro, isto é, na abstracção. É a
apropriação destes objectos como pensamentos e como movimentos de
pensamento. Por esta razão, apesar da sua aparência perfeitamente
negativa e crítica e não obstante a crítica genuína que contém e que se
antecipa a ulteriores desenvolvimentos, já se encontra implícita na
Fenomenologia, como germe, como potencialidade e como segredo, o
positivismo acrítico e o idealismo também acrítico das últimas obras de
Hegel – a dissolução filosófica e a reinstauração do mundo existente. Em
segundo lugar, a vindicação do mundo objectivo para o homem – por
exemplo, o reconhecimento de que a consciência sensível não é nenhuma
consciência sensível abstracta, mas uma consciência sensível humana,
que a religião, a riqueza, etc., são unicamente a realidade alienada da
objectivação humana, das faculdades humanas postas em acção e que
portanto constituem o caminho para a verdadeira realidade humana – esta
apropriação ou a compreensão de semelhante processo surge de tal modo
em Hegel que a sensibilidade, a religião, o poder do Estado, etc., são
fenómenos espirituais; de facto, só o espírito constitui a autêntica
essência do homem, e a verdadeira forma do espírito é o espírito
pensante, o espírito lógico, especulativo.
Marx, Manuscritos Económico-Filosóficos, Lisboa, Edições 70, 1993, pp. 243-4.

Karl Heinrich Marx (Mordecai era o apelido familiar judeu)


Nasceu em Tréveros (Trier) na Alemanha, em 1818 e morreu em Londres em 1883. As
numerosas ambiguidades em que se desenvolveu a sua vida configuram uma personalidade tão
complexa quanto sedutora. De uma família burguesa rica (pai advogado), foi baptizado aos seis
anos na igreja evangélica e enviado aos doze anos para o Gymnasium (semelhante a um instituto
secundário) dos padres jesuítas. Estuda direito em Bona e Berlim, ao mesmo tempo que preside
com outros à «União Estudantil Treverina dos Amigos da Borga». Participa em vários duelos.
Aos dezoito anos casa em segredo com Jenny von Westphalen. A partir de então, começa a
estudar a filosofia hegeliana. Trabalhou como jornalista, primeiro na Gazeta Renana e funda em
1843 os Anais Franco-Alemães; no ano seguinte parte para Paris, onde trava contacto e amizade
para sempre com Friedrich Engels. Muda-se para Bruxelas, mas a sua estada só é autorizada «se
se dedicar apenas à filosofia». Era grande o seu desejo de ter filhos varões (não mostrava grande
apreço pelo sexo feminino):mas dos seus oito filhos – um ilegítimo – só sobreviveram três
meninas.
Sempre perseguido pela polícia, muda de Paris para Berlim e Viena, vendo proibidas as suas
publicações periódicas (Nova Gazeta Renana). Expulso definitivamente da Prússia em 1849,
fixa residência em Londres onde sobrevive graças à ajuda desinteressada de uma pensão mensal
de Engels (fixada a partir de 1856). Colaborador do New York Herald Tribune, tenta em vão
emigrar para os Estados Unidos. Em 1866, realiza-se o Primeiro Congresso da Internacional
Socialista, dinamizada por Marx. No ano seguinte surge o primeiro volume de O Capital. Em
1872 rompe definitivamente com os anarquistas de Bakunine e em 1875 com o Partido Social-
Democrata de W. Liebknecht. Amigo fiel dos seus amigos (embora algo egoísta), pequeno-
burguês nos costumes e na sensibilidade artística, intransigente ao máximo no que se refere aos
«bons costumes» vitorianos, político pouco hábil (consegue mais divisões do que adesões), é
sem dúvida, no plano teórico, um dos maiores génios da humanidade. A sua filosofia (a despeito
do que dela fizeram os seus «seguidores») pretendeu ser aberta e crítica: mais um método de
análise do que um sistema dogmático. Os seus ensaios de economia política (fruto de quase
vinte anos de estudo ininterrupto na Biblioteca Nacional de Londres) são quase irrepreensíveis
do ponto de vista científico. Neles confluem o melhor da filosofia clássica (Hegel), os avanços
científicos dos economistas ingleses (Smith e Richards) e a utopia revolucionária dos socialistas
franceses (Fourier e Saint-Simon, entre outros). Este difícil equilíbrio só podia manter-se
dinamicamente vivo graças ao poder de síntese de Marx. Com a sua morte, o delicado jogo de
forças começaria a desequilibrar-se. Do seu ódio a todo o dogmatismo dão fé as famosas
palavras dirigidas ao seu genro Paul Lafargue: «Ce qu’il y a de certain c’est que moi je ne suis
pas marxiste» (O certo é que eu não sou marxista).

1.1.4. O «idealismo» hegeliano

O que dissemos até agora parece suficiente para proporcionar algumas


afirmações fundamentais do «idealismo» hegeliano, as quais Marx enfrenta
e critica:

a) A realidade é razão, ideia, espírito (tese ontológica).

b) A ideia ou o espírito, enquanto sujeito, rege, determina ou inclusive


origina os diferentes objectos, as diferentes formas da realidade ou
natureza. Tese epistemológica que, como é óbvio, é inseparável da tese
ontológica. De facto, e nas palavras de Engels, à pergunta sobre «qual é o
principal: o espírito ou a natureza», «os (filósofos) que afirmavam o
carácter primeiro do espírito relativamente à natureza (...) alinhavam no
campo do idealismo» (Engels, o. c., II).

c) A realidade é um sistema racional. O verdadeiro é o absoluto, e o


absoluto é ideia ou espírito.

Esta teoria hegeliana acerca da realidade é prenhe de consequências na


sua aplicação a diferentes aspectos ou problemas. Enumeremos em síntese
alguns especialmente relevantes neste momento.

l. No concernente à natureza do homem, parece claro que o homem


consiste em razão, ou melhor, em espírito. Dito precisamente com palavras
de Marx: «a essência humana, o homem, equivale para Hegel à
autoconsciência» (Marx, Manuscritos Económico-filosóficos).
2. A história surge como regida pelo espírito, que é o seu sujeito, e como
desenvolvimento progressivo na realização da liberdade, uma liberdade
espiritual. Para Hegel a história é, nas palavras de Marx, «uma acção
imaginária de sujeitos imaginários» (Marx, A Ideologia Alemã), O modo de
realização e de materialização dessa liberdade, diz Hegel, é o Estado, que é
a plasmação do espírito, e a consumação da ideia.

3. No que se refere à «filosofia do direito» isto implica que a


estruturação social e política e a vida do homem na referida estrutura é
plenamente racional; isto é, que a ordem política do seu tempo coincide
com os princípios da razão e permite a realização plena do homem, Ora,
«segundo Marx (...) a existência do proletariado contradiz a suposta
realidade da razão, já que representa toda uma classe que demonstra a
própria negação da razão. O destino do proletariado não é a realização das
potencialidades humanas mas o inverso (...). A realidade da razão, do
direito e da liberdade, converte-se então na realidade da falsidade, da
injustiça e da escravatura» (Marcuse, Razão e Revolução). Como se vê, o
significado político do marxismo está em estreita relação com o seu
significado crítico-filosófico.

4. Com efeito, também a concepção hegeliana do saber e da filosofia é


criticada por Marx. Para Hegel, a filosofia é uma consideração pensante dos
objectos ou das coisas, uma reflexão puramente especulativa, que se limita
a reproduzir a realidade na ordem do discurso; «a filosofia», escreve Hegel,
«chega sempre demasiado tarde. Enquanto pensamento do mundo aparece
apenas quando a realidade cumpriu e terminou o seu processo de formação»
(Princípios da Filosofia do Direito, prólogo). E o saber limita-se a ser uma
mera «teoria». Assim entendida, a filosofia é para Marx uma forma de
ideologia, ou melhor ainda, é a expressão de que se servem as diferentes
ideologias que configuram (desfigurando-a) uma ordem social; o marxismo
propõe a superação da filosofia demonstrando que o saber não é só
nem primeiramente teoria mas práxis. (De tudo isto nos ocuparemos
mais adiante.)

1.1.5. A ambiguidade da filosofia hegeliana

Se atentarmos melhor na frase que de início indicamos: «o que é


racional é real e o que é real é racional» está latente nela um significado
crítico, prático e revolucionário. Assim o entendeu o próprio Engels,
quando escreveu: «Para Hegel, nem tudo o que existe, nem pouco mais ou
menos, é real pelo simples facto de existir». Isto significa que toda a
existência e realidade que não corresponda plenamente às exigências da
razão e que não fique justificada perante ela, deve ser transformada com
vista a uma realização mais racional. Esta interpretação dinâmica e
revolucionária encontra o seu fundamento ontológico na concepção
hegeliana da realidade como um desenvolvimento dialéctico. E aqui se
encontra, na justa afirmação de Engels, «o lado revolucionário da filosofia
hegeliana (...). A grande ideia central de que o mundo não pode conceber-se
como um conjunto de objectos acabados, mas como um conjunto de
processos» (o.c., IV). E sendo a realidade dialéctica, é também dialéctica a
natureza e o método do saber.
Como se vê, na complexa filosofia de Hegel transparece por todo o lado
uma ambiguidade que permite uma interpretação num ou noutro sentido, o
que historicamente veio a acontecer nas denominadas «direita e esquerda
hegelianas». Engels resumiu-o de forma breve e concisa: «Quem fizesse
finca-pé no sistema de Hegel, podia ser bastante conservador em ambos os
domínios (a religião e a política); quem considerasse primordial o método
dialéctico, podia figurar na extrema oposição, tanto no aspecto religioso
como no aspecto político.» (o.c., I)
Marx critica e rejeita de forma absoluta o idealismo hegeliano e o seu
carácter sistemático, bem como tudo o que implica na sua aplicação aos
diferentes problemas, No entanto, e embora critique também o carácter
idealista da dialéctica hegeliana, Marx aceita, como um dos grandes
achados de Hegel, a estrutura dinâmica, contraditória e processual da sua
teoria da realidade quando diz: «o grandioso da fenomenologia hegeliana
(...): a dialéctica da negatividade como princípio motor e gerador» (Marx,
Manuscritos Económico-Filosóficos).

1.2. A crítica de Marx a Feuerbach

Em oposição a qualquer interpretação idealista da realidade, o marxismo


defende uma teoria ou concepção materialista do real. «O materialismo»,
escreve Engels, «é uma concepção geral do mundo baseada numa
determinada interpretação das relações entre o espírito e a matéria.» «Para o
materialismo, o único real é a natureza (...). A natureza existe
independentemente de toda a filosofia; é a base sobre a qual cresceram e se
desenvolveram os homens, que são também, de si, produtos naturais; fora
da natureza e dos homens não existe nada, e os seres superiores que a nossa
imaginação religiosa forjou mais não são do que outros tantos reflexos
fantásticos do nosso próprio ser.» (o. c., II e I, respectivamente.)
Como tivemos ocasião de indicar no capítulo 13, Feuerbach, crítico de
Hegel, considerava-se um filósofo materialista. A publicação da sua obra A
Essência do Cristianismo significou uma libertação das redes e
emaranhados idealistas. «O entusiasmo», recorda Engels, «foi geral; ao
ponto de nos convertermos todos em feuerbachianos.»
Mas o entusiasmo por Feuerbach não durou mais do que um instante. A
filosofia materialista de Feuerbach foi criticada: 1) na sua forma de
entender o materialismo; 2) na maneira de exercer a crítica filosófico-
teórica do idealismo; 3) no idealismo latente que jazia sob a sua deficiente
interpretação do materialismo e na insuficiente crítica da alienação religiosa
e da filosofia hegeliana.

1.2.1. Crítica do «materialismo»


O materialismo de Feuerbach tem sérias limitações e defeitos
fundamentais.

a) Por um lado, é um materialismo mecanicista, em consonância e


continuidade com o materialismo do século XVIII. A natureza explica-se
por meio de causas mecânicas.

b) Disso resulta, em segundo lugar, que o materialismo feuerbachiano se


revela «incapaz de conceber o mundo como um processo, como uma
matéria sujeita a desenvolvimento histórico». O movimento da realidade
material engendra sempre os mesmos resultados e consiste na perpétua
repetição do mesmo.

c) Por conseguinte, em terceiro lugar, o homem é interpretado como


«objecto sensível», ou seja, como um ser não activo-prático, e portanto
apenas contemplativo. Neste aspecto, o materialismo de Feuerbach deve ser
considerado como um «materialismo contemplativo, isto é, que não
concebe o sensorial como uma actividade prática» (Marx, Teses sobre
Feuerbach, IX).

Todos estes aspectos estão contemplados na primeira das Teses sobre


Feuerbach, que a seguir transcrevemos no que neste momento nos
interessa: «A falha fundamental de todo o materialismo precedente
(incluindo o de Feuerbach) reside no facto de que só capta a coisa, a
realidade, o sensível, sob a forma do objecto ou da contemplação, não como
actividade humana sensorial e como prática; não de um modo subjectivo
(...) Feuerbach aspira a objectos sensíveis, realmente distintos dos objectos
conceptuais, mas não concebe a própria actividade humana como uma
actividade objectiva (...) só se considera como autenticamente humano o
comportamento teórico (...)».
INSUFICIÊNCIA DO MATERIALISMO DE FEUERBACH
No entanto, Feuerbach tem sobre os materialistas «puros» a grande
vantagem de compreender que também o homem é «objecto sensível»;
mas entende o homem apenas como «objecto sensível» e não como
«actividade sensível» (neste aspecto também se mantém na teoria), não
concebendo os homens na sua conexão social e nas suas condições de
vida reais que fizeram deles aquilo que são; nunca chega aos homens
activos, aos homens realmente existentes, ficando-se pela abstracção de
«o homem». Só consegue reconhecer o «homem corpóreo, individual,
real» no sentimento, ou seja, não conhece outras «relações humanas» «do
homem com o homem» além de amor e amizade, e mesmo estas são
idealizadas. Não faz nenhuma crítica às condições de vida actuais e, por
conseguinte, nunca chega a conceber o mundo sensível como a totalidade
da actividade sensível e viva dos indivíduos que o constituem. Por isso,
quando em vez de homens saudáveis vê, por exemplo, uma turba de
famélicos escrofulosos, esgotados pelo excesso de trabalho e pela
tuberculose, é obrigado a recorrer a uma «concepção superior» e à ideal
«compensação na espécie». Reincide, portanto, no idealismo
precisamente onde o materialista comunista vê a necessidade e, ao
mesmo tempo, a condição de uma transformação da indústria e da
estrutura sociais.
Sendo materialista, a história não conta para Feuerbach; mas quando
considera a história, não é materialista. Para ele, materialismo e história
divergem completamente, o que de resto é explicado pelo que ficou
exposto.
Marx, Engels, A Ideologia Alemã.

1.2.2. Insuficiência teórica do materialismo

O materialismo de Feuerbach contém além disso uma grave deficiência


teórica na forma como concretiza a crítica do idealismo hegeliano e instaura
o seu materialismo. Esta deficiência teórica é de singular importância,
embora de início não pareça. Engels assinalou-a claramente: «A escola
hegeliana desfizera-se, mas a filosofia de Hegel não fora criticamente
superada (...). Feuerbach rompeu o sistema e pô-lo simplesmente de lado.
Mas para liquidar uma filosofia não basta, pura e simplesmente, proclamar
que é falsa. E uma obra tão gigantesca como era a filosofia hegeliana, que
exercera uma tão grande influência no desenvolvimento espiritual da nação,
não se eliminava pelo simples facto de ser ignorada. Era preciso ‘suprimi-
la’ no sentido que ela mesma utiliza, isto é, destruir criticamente a sua
forma, mas conservar o novo conteúdo conquistado por ela» (o. c., I). Que
Marx critique duramente a deficiência teórica da crítica de Feuerbach a
Hegel é uma prova, de momento indirecta, de que para o marxismo é da
maior importância fazer sempre uma análise teórica bem fundamentada.
Ilustremos este ponto com a análise crítica que Marx fez da crítica de
Feuerbach à alienação religiosa, seguindo para tal a quarta das Teses sobre
Feuerbach. Podem considerar-se as seguintes passagens:

a) Feuerbach parte de facto da auto-alienação religiosa, por meio da qual


o único mundo existente, a saber, o universo natural e sensível, é duplicado
ou desdobrado num mundo religioso e num mundo terreno.

b) A crítica de Feuerbach a esta alienação religiosa consiste


simplesmente em reduzir o mundo religioso ao mundo terreno, que em si
encerra a causa da sua duplicação. Mas esta redução à qual se reduz a
crítica de Feuerbach apenas consegue «mundanizar» e «imanentizar» a
religião, conservando incólume o sentimento religioso. Com esta
transposição dá-se por terminada e considera-se suficiente a crítica.

c) E no entanto, para a análise teórica do marxismo, a crítica nem sequer


começou. Com efeito, escreve Marx, «o facto de que o fundamento terreno
se separe de si próprio para plasmar-se como um reino independente que
flutua nas nuvens, é algo que só pode explicar-se pela própria dilaceração e
contradição deste fundamento terreno consigo mesmo. Por conseguinte, é
necessário não só compreendê-lo na sua própria contradição, como alterá-lo
na prática».

A crítica tem de ser pois uma crítica prática e revolucionária, e não o


pode ser se não estiver fundamentada e clarificada pela prévia compreensão
teórica. E a compreensão teórica realiza-se na análise dos processos não
manifestos e das relações ocultas em que tem lugar a produção daquilo que
aparece como algo autónomo e independente. Isto é, a compreensão teórica
é genética (histórica) e relacional (dialéctica).
O materialismo de Feuerbach e a sua crítica materialista estão a mil
léguas da análise crítico-teórica do marxismo, que inclui o processo
histórico-genético e a dialéctica. «Na medida em que Feuerbach é
materialista» escreve Marx na Ideologia Alemã, «não aparece nele a
história, e na medida em que toma a história em consideração, não é
materialista. Materialismo e história aparecem nele completamente
divorciados.» (o.c.)

1.2.3. Crítica do «idealismo» de Feuerbach

A exclusão da história no materialismo feuerbachiano, a conservação de


um sentimento religioso no homem («a religião», escreve Feuerbach na
Essência do Cristianismo, «funda-se na diferença essencial que existe entre
o homem e o animal; os animais não têm religião»), a abstracção que se faz
da relação social e histórica no momento de afirmar qual é a essência do
homem, o pôr a natureza ou essência do homem num quimérico e
imaginado «género humano», tudo isto vem tornar claro que o materialismo
de Feuerbach é, no fim de contas, e segundo a crítica marxista, um
«idealismo».
Idealismo num duplo aspecto. Em primeiro lugar, pelo seu proceder
metódico abstractivo, que prescinde tanto da história como da interna
relação social. Em segundo lugar, pela admissão de uma essência humana
genérica da qual cada homem individual é expressão ou realização
particular.
O homem é, em qualquer dos casos, um ser abstracto, na medida em
que, considerado com independência e separado das relações sociais e da
história, se torna um indivíduo livre, que «não vive num mundo real,
historicamente surgido e historicamente determinado» (Engels, o. c., III); é,
consequentemente, um homem irreal.
E é, por outro lado, um ser abstracto na medida em que a sua essência se
pensa como «género humano», ainda que «imanente a cada indivíduo»
(Marx, Teses sobre Feuerbach, IV), porém não reduzido nem redutível a
um indivíduo, bem pelo contrário, pensado (melhor, imaginado) como uma
«generalidade interna»; o homem abstracto é, na verdade, a ideia abstracta
ou separada de homem.
E o idealismo latente no materialismo de Feuerbach tem a sua expressão
mais depurada na manutenção da religião, que agora é interpretada como a
relação de cada homem com o género: «A religião», lê-se em A Essência do
Cristianismo, «é a relação do homem consigo mesmo ou, melhor dizendo,
com a sua essência». Este idealismo é tanto mais radical quanto, orientado
sobretudo para a natureza e para a essência genérica, presta escassa atenção
à ordem real, social e política. Ora, só a aliança com a política, como
escreve Marx a Ruge (carta de 13 de Março de 1843), «poderia permitir à
filosofia contemporânea tornar-se verdade».
Assim, tanto o idealismo hegeliano como o materialismo de Feuerbach
têm de ser transformados e superados. Face à conversão filosófica do
mundo, há que mundanizar a filosofia.
2. AS FORMAS DE ALIENAÇÃO E O
HUMANISMO MARXISTA

2.1. O conceito de «ideologia»

O marxismo propôs-se, como já indicámos, realizar uma clarificação


crítica e racional da consciência, uma clarificação do conjunto de ideias ou
representações que o homem tem acerca de si mesmo, do seu lugar no
mundo e na história, de modo a que possa viver a sua inserção e relação
com a realidade sem qualquer obnubilação.
Pode denominar-se ideologia, numa acepção muito geral, «um sistema
de representações (imagens, mitos, ideias ou conceitos, conforme os casos)
dotadas de uma existência e de um papel históricos no seio de uma dada
sociedade» (Althusser, A Revolução Teórica de Marx). Nesta primeira
acepção geral, a ideologia é um momento essencial e necessário na vida dos
homens e na sociedade, pois, como realçou Engels, «tudo o que move os
homens tem de passar necessariamente pelas suas cabeças».
Ora, na medida em que a ideologia exprime a relação do homem com o
seu mundo e a sua existência social e histórica, as ideias que reflectem esta
relação podem fazê-lo de um modo adequado e verdadeiro ou, pelo
contrário, de um modo falso.
Neste caso, o termo «ideologia» recebe uma acepção mais restrita e
precisa, vindo a significar um conjunto de «ideias», «formações
nebulosas» ou «sublimações» que dão uma imagem ou representação
falseada e falsificadora da realidade e das condições em que se
desenvolve a vida dos homens.

Friedrich Engels
Nasce em Barmen (hoje Wuppertal), em 1820 e morre em Londres, em l895. Filho de um
importante industrial, inicia-se nos problemas técnicos da indústria manufactureira, em Barmen,
passando imediatamente a dirigir, até 1845, uma sucursal em Manchester. Apaixonado pelo
socialismo e atento observador, dá-se a conhecer com A Situação da Classe Operária em
Inglaterra (1845). Conhece Karl Marx em Paris, iniciando uma amizade prolongada para além
da morte deste (é o executor testamentário dos livros II e III de O Capital, publicados por
Engels em 1884). Fruto da colaboração com Marx são A Ideologia Alemã (não publicado na
altura), A Sagrada Família (1845, contra Bauer e os jovens hegelianos) e o Manifesto
Comunista (1848), cujo famoso lema «Proletários de todo o mundo uni-vos» Engels
estabelecera um ano antes. Secretário da Liga dos Comunistas, de 1850 a 1869 volta a dirigir o
negócio paterno em Manchester, passando depois para Londres. A sua vantajosa situação
económica permite-lhe ajudar o movimento social-democrata em geral e a família Marx, muito
em particular. As suas obras mais importantes são: Anti-Dübring (1877, primeira exposição
completa do marxismo como sistema filosófico), Do Socialismo Utópico ao Socialismo
Científico (1881), A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884) e Ludwig
Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (1888). Foi acusado, com alguma razão, de
converter o marxismo numa filosofia omniabarcante e «metafísica», tentando extrapolar os
métodos de análise económico-políticos para a esfera das ciências naturais, caindo por vezes
num teleologismo cósmico e num materialismo mecanicista. Embora com certeza a isso se
tivesse oposto, após a revolução de 1917 foi utilizado para fazer do marxismo uma «doutrina»: o
chamado diamat («materialismo dialéctico») ou, em expressão feliz, a «escolástica soviética»,
tão eficazmente combatida pela Escola de Frankfurt.

O marxismo defende, relativamente ao conjunto de ideias ou


representações em que consiste a ideologia, pelo menos as três teses
seguintes:

a) o que os homens pensam é um produto da sociedade em que vivem; a


consciência, entendida como o conjunto de ideias, é «um produto
social», apresenta-se «como a linguagem da vida real»;
b) a ideologia tem um sentido primário e quase exclusivamente negativo
quando está formado por ideias falsas e falsificadoras. «Em toda a
ideologia» – escreve Marx – «os homens e suas relações aparecem
invertidos como numa câmara escura»;
c) os conteúdos ideológicos da consciência (a religião, a moral, a
política, etc.) não têm substantividade própria nem, consequentemente,
a sua própria história e desenvolvimento, apesar de a consciência
ideológica se assemelhar às ideias como entidades com substantividade
própria, com um desenvolvimento independente e submetidas apenas às
suas leis próprias» (Engels, o.c., IV).

As formas ideológicas da consciência têm por função ocultar, desfigurar,


sublimar e suplantar imaginativa ou conceptualmente uma situação de
existência real, social e histórica dos homens, que o marxismo caracteriza
como de alienação. A crítica marxista da consciência ideológica é exigida
pela crítica da situação alienada do homem. Esta análise crítica tem de ser
teórica, e o conhecimento que surgir desta análise crítica constituirá
igualmente um corpo teórico acerca das estruturas e leis da sociedade e da
história. «Indagar as causas determinantes que se reflectem nas cabeças (…)
de um modo claro ou confuso, de forma directa ou sob uma roupagem
ideológica e inclusive divinizada: eis o único caminho que nos pode
conduzir à descoberta das leis pelas quais se rege a história em conjunto»
(Engels, o.c., IV).
A clarificação racional, o conhecimento da situação de consciência
ideologizada e de existência alienada será uma momento necessário
para acabar com a ideologia e a alienação. A teoria é pois indispensável.
Mas não é suficiente, pois a crítica deverá ser também prática; ou, mais
precisamente, se é verdadeira teoria não pode deixar de ser prática, pois já
enquanto teoria está promovida pela praxis (a teoria é um modo de
produção, a produção teórica) e está destinada, pela sua própria natureza e
origem, a realizar-se, consumar-se e verificar-se praticamente.
É pois preciso indicar muito resumidamente o sentido da alienação e
suas formas.

2.2. A alienação e as suas formas


2.2.1. Conceito de «alienação»

Dada a complexidade do problema um bom modo de chegarmos à


compreensão deste conceito é partir de uma análise semântica do termo
«alienação», para o qual podemos encontrar uma tripla origem:

1. económica, segundo a qual «alienação» significa a transmissão de


uma propriedade de uma pessoa a outra;
2. jurídica, significando então a transferência que um indivíduo faz da
sua liberdade para a sociedade (recorde-se, por exemplo, o modelo do
contrato social de Rousseau, estudado no capitulo 11);
3. teológica, exprimindo então a acção pela qual Deus cria e produz o
mundo.

Em qualquer caso, a alienação supõe ou requer:

a) uma dualidade de elementos ou pólos;


b) a acção de um deles (sujeito) pela qual se põe em relação com o
outro;
c) o peculiar modo de entender essa relação (que sempre será sob a
forma de acção produtiva-transformadora);
d) o estado ou situação em que o pólo activo-produtivo se encontra em
relação com o pólo que recebe a acção transformadora.

A complexidade estrutural do fenómeno da alienação explica o facto de,


na sua análise, o próprio Marx (e já antes o fizera Hegel, embora noutro
contexto) ter utilizado diferentes termos para o compreender e o exprimir
melhor.
Por isso, a acção pela qual o pólo subjectivo, activo-produtivo, sai fora
de si e nesta saída se exprime e entra em relação com algo de diferente de si
mesmo, é designada pelo termo Entäusserung, que pode traduzir-se por
exteriorização. Pois bem, nesta «exteriorização» o pólo subjectivo (o sujeito
ou o homem) despoja-se de alguma maneira de algo de si próprio (mesmo
que seja ao menos da sua actividade ou força produtiva), expropriando ou
perdendo algo de si; esta despossessão ou expropriação costuma ser
designada com o termo Veräusserung que pode traduzir-se por
«alienação».
No fim de contas, o que os dois termos alemães (Entäusserung e
Veräusserung) significam pode ser resumido no termo «alienação», que se
refere apenas à acção relacional do pólo subjectivo com o pólo objectivo
(ou objecto), actividade na qual o sujeito se exprime e manifesta, e nesta
sua acção expressiva, produtiva e transformadora se despoja pelo menos da
sua força produtiva ou trabalho. Neste preciso sentido, a alienação significa
a estrutura ou natureza activa, relacional e produtiva do sujeito ou do
homem; por conseguinte, neste preciso aspecto, a alienação é ineliminável
ou insuperável (pois constitui a natureza do homem) pelo que não contém
qualquer conotação negativa (ou «alienante»).
Mas esta acção relacional-produtiva, por estar referida ao pólo objectivo,
efectua uma transformação no objecto, que é modificado por ela; o objecto
converte-se, assim, de algum modo, em resultado ou produto da acção
transformadora do sujeito, em obra e em propriedade sua. Ora, a situação
em que o resultado da acção produtiva e transformadora do homem não lhe
pertence, não é considerada e usada como sua, mas torna-se propriedade de
outro (aliud) e para o sujeito activo-produtor torna-se alheia e estranha, essa
situação, dizíamos, é designada pelo termo Entfremdung, que também pode
traduzir-se por «alienação». «O objecto que o trabalho produz», escreve
Marx, «o seu produto, está perante o produtor como um ser estranho, como
um poder independente dele (...) o trabalhador relaciona-se com o produto
do seu trabalho como com um objecto estranho» (Manuscritos Económico-
Filosóficos).

A ALIENAÇÃO
Em que é que consiste a alienação do trabalho?
Em primeiro lugar, o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer,
não pertence à sua natureza; portanto, ele não se afirma no trabalho, mas
nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve
livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e
arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se sente em si fora do
trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho
não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a
satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras
necessidades. O seu carácter estranho ressalta claramente do facto de se
fugir do trabalho como da peste;logo que não existe nenhuma compulsão
física ou de qualquer outro tipo. O trabalho externo, o trabalho em que o
homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de
mortificação. Finalmente, a exterioridade do trabalho para o trabalhador
transparece no facto de que ele não é o seu trabalho, mas o de outro, no
facto de que não lhe pertence, de que no trabalho ele não pertence a si
mesmo, mas a outro. Assim como na religião a actividade espontânea da
fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, reage
independentemente como uma actividade estranha, divina ou demoníaca,
sobre o indivíduo, da mesma maneira a actividade do trabalhor não é a
sua actividade espontânea. Pertence a outro e é a perda de si mesmo.
(...) Considerámos o acto de alienação da actividade prática humana, o
trabalho, segundo dois aspectos: l) A relação do trabalhador ao produto
do trabalho como a um objecto estranho que o domina. Tal relação é ao
mesmo tempo a relação ao mundo externo sensível, aos objectos naturais,
como a um mundo estranho e hostil; 2) A relação do trabalho ao acto da
produção dentro do trabalho. Tal relação é a relação do trabalhador à
própria actividade como a alguma coisa estranha, que não lhe pertence, a
actividade como sofrimento (passividade), a força como impotência, a
criação como castração, a própria energia física e mental do trabalhador,
a sua vida pessoal – e o que é a vida senão actividade? – como uma
actividade dirigida contra ele, independente dele, que não lhe pertence.
Tal é a auto-alienação, em contraposição com a acima referida alienação
da coisa.
Marx, Manuscritos Económico-Filosóficos, Lisboa, Edições 70, 1993, pp. 162-163.

Nesta situação, o alienado ou estranho não é só o produto, mas também


e mais radicalmente o produtor, o homem. Efectivamente, dado que o ser
humano consiste na sua acção produtiva e dado que esta se manifesta e se
molda (objectivando-se) no produto, a despossessão deste implica a
despossessão, a perda, a negação de si mesmo, a sua desrealização: «A
realização do trabalho (...) surge (...) como desrealização do trabalhador
(...). O trabalhador põe a sua vida no objecto, e a partir de então esta já não
lhe pertence, mas ao objecto» (Ibidem).
Por outro lado, o produto (obra, resultado e propriedade da acção
produtiva) torna-se independente, fica desligado da sua relação com o
sujeito produto; ou seja, é considerado uma coisa natural (res, em latim;
Ding, em alemão). E por conseguinte o próprio sujeito produtor, o homem
trabalhador, é também convertido em coisa (pois vimos já que o homem é a
sua actividade produtora, e esta realiza-se e objectiva-se no seu produto);
isto é, o próprio homem torna-se coisa, é reificado, feito coisa (res facere).
Assim, a reificação do homem (Verdinglichung), converte-o numa coisa
entre coisas, e submete-o ao mesmo tratamento e uso das coisas: o homem
torna-se uma mercadoria.
Como é óbvio, nesta segunda acepção do termo (a alienação como perda
de si mesmo e expropriação do que é sua propriedade, como reificação do
homem e rompimento consigo mesmo), a alienação encerra um sentido
negativo, não necessário nem concorde com a natureza do homem, mas
consequência do modo de uma sociedade ou de uma época histórica
determinada entender e organizar a «relação de produção». A alienação é
pois negativa porque implica e impõe uma negação da liberdade do homem,
uma des-humanização, uma conversão do «humano no animal» (Marx, o.
c.).
Na medida em que a alienação não é uma situação natural mas
histórica, ou seja o resultado de uma determinada organização e
estruturação da vida social e económica, uma dupla tarefa se impõe:

1. O estudo e conhecimento dessa determinada estrutura


socioeconómica ou modo de produção (isto é, uma teoria científica da
sociedade e em última análise, uma teoria da história).

2. A transformação prática da realidade social, orientando-a para


uma melhor e plena realização do homem.

Como podemos avaliar, há uma instância teórica e outra prático-política.


Mas em ambas vigora uma exigência de humanização mais plena da
natureza e da realização completa e das potencialidades do homem.
Precisamente por isso cabe ao marxismo elaborar uma teoria ou concepção
do homem: para poder ajuizar, à luz dos seus enunciados teóricos, se uma
determinada situação é alienada, e oferecer o seu próprio projecto de
humanização em função da sua concepção do homem.

2.2.2. As formas de alienação

A análise da alienação que acabámos de realizar apoiou-se na


consideração do conceito básico de «actividade produtiva» ou trabalho. A
alienação fundamental é pois a económica, a do trabalho alienado,
alienação estrutural e radical da sociedade capitalista ou do modo de
produção capitalista, estudado e justificado pela economia política clássica.
Marx empreende uma crítica teórica da economia política (economia
política que é ideológica, na medida em que «oculta a alienação essencial
do trabalho», Manuscritos) e da alienação económica nas suas obras
Contribuição para a Crítica da Economia Política e O Capital. Esta crítica
é exercida mediante conceitos teóricos, como os de valor de uso e valor de
troca, mercadoria, trabalho geral abstracto, mais-valia, capital constante e
capital variável, acumulação do capital, etc.
O carácter radical da alienação económica promove outras formas
de alienação, como a social, que se ergue sobre a divisão da sociedade em
classes, e a política mediante a divisão entre «sociedade civil» e «Estado».
Estas duas formas de alienação estão estreitamente ligadas e inter-
relacionadas com a ideologia, «segregando» um «conjunto de
representações» ideológicas que tendem a justificar e obnubilar a situação
real, Marx empreende a crítica destas alienações, a nível teórico,
principalmente na crítica dos Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, e
em obras de carácter histórico-teórico como, por exemplo, O Dezoito de
Brumário de Luís Bonaparte.
Estas três formas de alienação (a económica, a social e a política) têm as
suas últimas ramificações, que completam a situação alienada do ser
humano e da sua consciência «ideológica» noutras duas: a alienação
religiosa e a alienação filosófica.
No entender de Marx, a religião e o modo de existência religioso não
podem considerar-se como constitutivos do homem. Pelo contrário, a
existência da religião está em estreita relação com a organização económica
e sociopolítica, proporcionando-lhe uma justificação ideológica e
estabilidade, na medida em que a libertação que a religião parece propor
não é deste mundo, nem se realiza mediante a transformação da estrutura
social. A religião é assim um modo de existência intrinsecamente falseada,
uma forma de alienação infindável do homem, e cujas características são a
resignação, a justificação transcendente da injustiça social e a compensação
no céu pela opressão da sociedade terrena.
Como Feuerbach, Marx crê que a religião é uma projecção do homem;
porém, diferentemente de Feuerbach, situa a raiz da religião não num
sentimento religioso, mas na miséria e na divisão da vida social. A crítica
marxista da religião tem pois um sentido primeiro e essencialmente
sociopolítico, isto é, em relação com a função ideológica que desempenha
na estruturação e dinâmica da sociedade.
Contudo, a sua interpretação da natureza do homem também não lhe
permite equacionar com sentido o problema de Deus: «Quando se tornou
evidente de uma maneira prática e sensível na natureza a essencialidade do
homem (...) tornou-se praticamente impossível a interrogação sobre um ser
estranho, um ser situado acima da natureza e do homem» (Manuscritos).
A transformação prática das condições materiais (socioeconómicas) da
vida acabariam, pensava Marx, com a religião e com a aparente dimensão
religiosa do homem.

O HOMEM, SER NATURAL E ACTIVO


O homem é directamente um ser da natureza. Como ser natural e
enquanto ser natural vivo é, por um lado dotado de forças naturais, de
forças vitais, é um ser natural activo; estas forças existem nele como
talentos e capacidades, como pulsões. Por outro lado, enquanto ser
natural, corpóreo, sensível e objectivo, é um ser que sofre, condicionado e
limitado tal como o animal e a planta, quer dizer, os objectos das suas
pulsões existem fora dele, como objectos, independentes, e, no entanto,
tais objectos são objectos das suas necessidades, objectos essenciais,
indispensáveis ao exercício e à confirmação das suas faculdades. Que o
homem seja um ser corpóreo, dotado de forças naturais, vivo, real,
sensível, objectivo, significa que ele tem objectos reais, sensíveis como
objectos do seu ser, ou que pode exteriorizar a própria existência só em
objectos reais, sensíveis. Ser objectivo, natural, sensível e
simultaneamente ter fora de si o objecto, a natureza, o sentido para uma
terceira pessoa, é a mesma coisa. A fome é uma necessidade natural;
portanto, requer uma natureza fora de si, um objecto exterior,
indispensável à sua integração e à expressão da própria natureza. O Sol é
o objecto da planta, objecto indispensável e que lhe assegura a vida, da
mesma maneira que a planta é objecto do Sol, enquanto expressão da
força suscitadora de vida do Sol, do poder objectivo do Sol.
Um ser, que não tenha a sua natureza fora de si, não é nenhum ser
natural, não participa do ser da natureza. Um ser, que não tenha objecto
fora de si, não é nenhum ser objectivo.
Um ser, que não seja ele próprio objecto para um terceiro ser, não tem
existência para o respectivo objecto, quer dizer, não possui relação
objectiva, o seu ser não é objectivo.
Marx, Manuscritos Económico-Filosóficos, Lisboa, Edições 70, 1993, pp. 249-50.

No que se refere à filosofia, como conjunto de representações e ideias,


também ela constitui uma forma de alienação, com uma singular força
ideológica, E isso por duas razões: porque só interpreta a realidade e além
disso porque a interpreta falsamente. (Recorde-se a crítica de Marx ao
idealismo e ao materialismo mecanicista).

2.3. O ser humano e o humanismo marxista

Pode dizer-se que, de certo modo, a crítica de Marx ao idealismo e ao


materialismo, a explicação da alienação a partir da actividade produtiva do
homem e a necessidade de uma superação das formas de alienação,
radicam naquilo que, segundo Marx, constitui a natureza humana.

2.3.1. O ser humano

Resumimos em cinco afirmações ou teses gerais a concepção marxista


da natureza humana:

l. «O homem é imediatamente ser natural»; não apenas ser natural, «mas


ser natural humano».

a) Enquanto ser natural, o homem está dotado de forças naturais activas;


mas é também um ser passivo, no duplo sentido de que tem necessidades e
de que, enquanto corpóreo e sensível, está referido essencialmente aos
objectos reais e é ele próprio um objecto para qualquer outra realidade ou
ser. Isso faz do homem um ser totalmente natural.
Falemos, então, do «naturalismo» do homem. A seguinte passagem de
Marx, embora densa, é muito expressiva quanto a este ponto: «Um ser que
não tem a sua natureza fora de si não é um ser natural, não participa do ser
da natureza. Um ser que não tem nenhum objecto fora de si não é um ser
objectivo. Um ser que não é, por sua vez, objecto para um terceiro ser, não
tem nenhum ser como seu objecto, isto é, não se comporta objectivamente,
o seu ser não é objectivo. Um ser não objectivo é um não ser, um absurdo»
(Manuscritos).

b) Enquanto ser natural humano, o homem não é mera natureza, fixa e


dada, mas tem de fazer-se em seu ser e saber-se nesta sua progressiva
realização humana. Enquanto ser natural humano, «o homem tem o seu acto
de nascimento, a história», um acto de nascimento «com consciência». «A
história» – escreve Marx, «é a verdadeira história natural do homem»
(Manuscritos).

2. O trabalho constitui a essência do homem ou, melhor do que o


trabalho, a produção, entendida como «actividade prático-produtiva». É a
produção que, no entender de Marx, o distingue originariamente dos
animais, e nenhuma outra coisa (como por exemplo, a religião – Feuerbach
– ou a autoconsciência – Hegel), «O próprio homem diferencia-se dos
animais a partir do momento em que começa a produzir os seus meios de
vida.» (A Ideologia Alemã.)
O conceito de produção ou práxis constitui-se assim como centro e
espinha dorsal não apenas do homem, mas ainda das restantes ordens ou
âmbitos da realidade. A práxis irradia necessária e estruturalmente em todas
as expressões do homem e da sua vida. Com efeito:

a) na práxis tem lugar a abertura do homem ao mundo e à realidade;


b) mediante a práxis, o homem realiza e desenvolve o seu ser na
história, que se entende assim como um processo real prático;
c) a práxis configura a totalidade da vida social: «Toda a vida social é
portanto essencialmente prática» (Tese sobre Feuerbach, VIII.);
d) é na práxis que o velho problema da natureza do saber, do
conhecimento e da verdade encontra a sua origem e o seu sentido
último; portanto, também o sentido e o valor da teoria: «O problema de
saber se se pode atribuir ao pensamento humano uma verdade não é um
problema teórico mas um problema prático» (Teses sobre Feuerbach,
II);
e) na práxis e mediante ela encontra-se uma solução (e não apenas
técnica, mas também teórica) para os problemas e para os
pseudoproblemas: «É na prática que o homem deve demonstrar a
verdade, isto é, a realidade e o poder, a terrenalidade do seu
pensamento». «Todos os mistérios que induzem à teoria, ao misticismo,
encontram solução racional na prática humana e na compreensão desta
prática.» (Teses sobre Feuerbach, II e VIII, respectivamente).

3. «O homem é um animal não apenas sociável, mas que consiste e se


constitui na sociedade.» Em oposição, pois, a interpretações como as de
Hobbes ou Rousseau, Marx reduz o ser individual do homem à sociedade,
«O homem, no sentido mais literal, é um zoon politikón, não apenas um
animal sociável, mas um animal que não pode isolar-se a não ser dentro da
sociedade.» (Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política.)

4. «A natureza do homem consiste pois na produção da sua vida.» Esta


produção constitui-o numa dupla relação: com a natureza (relação natural) e
com os outros homens, com a sociedade (relação social). «O ser dos
homens» – escreve Marx em A Ideologia Alemã – «é o seu processo de vida
real.»
5. Por último, e numa expressão que é a quinta essência do enunciado,
Marx afirma que «a essência humana (...) é, na sua realidade, o conjunto
das relações sociais» (Teses sobre Feuerbach, VI.)
Esta caracterização do ser do homem, vem realçar dois pontos. Primeiro,
que, como afirmámos no início deste ponto, a natureza do homem funda e
permite compreender a crítica de Marx ao idealismo e ao materialismo bem
como a sua explicação da alienação e da necessidade de a superar; com a
explicitação, que agora fazemos, de que a alienação do homem radica numa
determinada estruturação económica-social histórica; não é em vão que o
próprio homem é histórico.
Segundo, que juntamente com a radicalidade do homem como ser
humano natural e como sujeito, se dá o que poderíamos chamar a sua
«relacionalidade» e o seu «carácter de resultado», na medida em que o
homem consiste no «conjunto das relações sociais»». Estes dois pontos, e
especialmente o último, colocam o problema do sentido do humanismo
marxista, mas também a questão de como e a partir de quê elaborar uma
teoria científica da sociedade e da história, ou seja o problema do
materialismo histórico. Estas duas questões estão interrelacionadas de uma
forma particular. Vejamos primeiro o sentido do humanismo.

2.3.2. O humanismo marxista

Sob a designação «humanismo» podem entender-se, e de facto


entenderam-se historicamente muitas coisas. No marxismo deve ser
reconhecido um tríplice significado:

a) Em primeiro lugar, o marxismo pode ser considerado um


humanismo na medida em que promove uma crítica e luta contra a
alienação do homem, tendo como finalidade acabar com a sua exploração,
com a sua conversão em coisa (em algo inumano) e obter a sua libertação.
O humanismo marxista advoga pois a liberdade, a racionalidade e a
personalidade do homem. Neste sentido, o marxismo defende o ideal
racionalista iluminista do homem.

b) Em segundo lugar, o marxismo é um humanismo na medida em


que nega a existência de um ser distinto e superior à natureza e ao
homem; na medida em que estabelece a principalidade e autonomia do
homem que como ser natural e humano, realiza e consuma as suas
potencialidades, desenvolvendo e planificando a natureza. É neste sentido
que Marx fala do «naturalismo realizado ou humanismo (Manuscritos). Por
isso, o humanismo marxista é ateu, nega a existência de Deus e afirma a
primazia, suficiência e autonomia do homem.

HUMANISMO MARXISTA
Mas o homem não é unicamente um ser natural; é um ser natural
humano; quer dizer, um ser para si mesmo, por conseguinte, um ser
genérico, e como tal tem de autenticar-se e expressar-se tanto no ser
como no pensamento. Assim, nem os objectos humanos são objectos
naturais, como eles se apresentam directamente, nem o sentido humano,
tal como é imediata e directamente dado, constitui a sensibilidade
humana, a objectividade humana. Nem a natureza objectiva, nem a
natureza subjectiva se apresenta imediatamente ao ser humano numa
forma adequada. E assim como tudo o que é natural deve ter a sua
origem, também o homem tem o seu processo de génese, a história, que
no entanto para ele constitui um processo consciente e que assim,
enquanto acto de origem com consciência, se transcende a si próprio. A
história é a verdadeira história natural do homem. (Voltaremos ainda a
este ponto.)
(...)
Quando o homem real, corpóreo, com os pés bem firmes na terra,
inalando e exaltando todas as forças da natureza, põe as suas faculdades
objectivas reais, em virtude de alienação, como objectos alienados, o acto
de pôr não constitui o sujeito; é a subjectividade de faculdades objectivas,
cuja acção deve, por conseguinte, ser objectiva. O ser objectivo actua
objectivamente e não actuaria de modo objectivo, se a objectividade não
fizesse parte da sua determinação essencial. Cria e põe unicamente
objectos porque é estabelecido por objectos, porque é fundamentalmente
natural. No acto de pôr, não desce da sua «pura actividade» para a
criação do objecto; o seu produto objectivo confirma apenas a sua
actividade objectiva, a sua actividade como actividade de um ser
objectivo, natural.
Estamos agora a ver como o naturalismo consistente ou o humanismo
se distingue tanto do idealismo como do materialismo, constituindo ao
mesmo tempo a sua verdade unificadora. Descobrimos ainda que só o
naturalismo é capaz de compreender o processo da história mundial.
Marx, Manuscritos... – ed. cit., pp 251-249.

c) Em terceiro lugar, o marxismo pode ser considerado um humanismo


na medida em que Marx afirma em algumas das suas obras que o homem é
o princípio da sociedade, o sujeito da história e, por consequência, a base
explicativa da sua concepção teórica do mundo e da história. Um
humanismo que poderíamos denominar «epistemológico», na medida em
que o homem é o princípio científico-explicativo da teoria da história.
Contudo, esta acepção de humanismo provoca dúvidas sobre a sua
viabilidade. Se por um lado o homem é o conjunto de relações sociais e se
se constitui na conjunção de tais relações, poderia ser considerado o
resultado de um todo que, se o não determina (e essa é outra questão), pelo
menos configura e explica em parte. Por outro lado, se é resultado,
dificilmente pode ser princípio teórico-científico de explicação da
sociedade e da história. Nessa acepção, o pensador marxista francês Louis
Althusser negou que o marxismo seja um humanismo e que se possa falar
de um «humanismo socialista». Efectivamente, diz que o conceito de
«humanismo» é um conceito ideológico, ao passo que o conceito de
«socialismo» é científico. «Entendamo-nos: não se trata de negar a
realidade que é indicada pelo conceito de humanismo socialista mas de
definir o valor teórico deste conceito. Ao dizer que o conceito de
humanismo é ideológico (e não científico), afirmamos também que indica
um conjunto de realidades existentes, mas que, diferentemente de um
conceito científico, não nos dá os meios de as conhecer (...). Confundir
estas duas ordens seria impedir todo o conhecimento e manter uma
confusão» (Althusser, La Revolución Teórica de Marx), e no que diz
respeito à explicação científica da história, seria a impossibilidade de
elaborar um conhecimento ou teoria sobre ela. Por conseguinte, «do ponto
de vista estrito da teoria pode e deve então falar-se abertamente de um anti-
humanismo teórico de Marx (...). Só se pode conhecer algo acerca do
homem na condição de reduzir a cinzas o mito filosófico do homem (...). O
anti-humanismo teórico de Marx não suprime, portanto, de maneira alguma,
a existência histórica do humanismo» (o. c.).
O problema do humanismo marxista continua a ser uma questão em
debate, que não vamos resolver aqui. Limitar-nos-emos a levantar o
problema e a apresentá-lo.
3. MATERIALISMO, DIALÉCTICA E
HISTÓRIA

3.1. Materialismo e dialéctica

No seu significado teórico-filosófico, o marxismo construiu a sua


concepção da realidade mediante uma crítica radical do idealismo e do
materialismo mecanicista, transformando-os numa verdadeira «superação
dialéctica» que, por isso, não constitui eclecticismo ou amálgama de ambos,
mas uma original reexposição teórica da realidade, «O naturalismo
realizado, ou humanismo (expressão com que Marx designa a relação
interna entre a natureza e a actividade produtiva ou trabalho como
expressão do ser humano), distingue-se tanto do idealismo como do
materialismo, e é ao mesmo tempo a verdade unificadora de ambos.»
(Manuscritos.)

3.1.1. Conceito marxista de dialéctica

A ideia fulcral nesta nova concepção do mundo é a dialéctica, ideia que


constituía «o lado revolucionário da filosofia hegeliana» e que exprime a
natureza da realidade como um processo, como uma totalidade dinâmica de
elementos inter-relacionados.
«A dialéctica de Hegel» – escreve Marx numa carta a Kugelmann – «é a
forma básica de toda a dialéctica, mas só após a eliminação da sua forma
mística.»
Indiquemos apenas alguns aspectos da «desmistificação» da
«materialização» do seu carácter idealista, da «reviravolta» (Umstulpung)
que Marx efectua com a dialéctica de Hegel.

a) Quanto às categorias de imediato-mediato o marxismo negará que


toda a realidade ou objecto que se apresenta como imediato suponha já
previamente uma mediação e seja, portanto, o resultado de uma acção
produtiva mediadora. Isto aplica-se especialmente à natureza que não é o
resultado de algo prévio e distinto dela, o espírito (tese que conduziria ao
idealismo), mas que é algo original e, portanto, ontológica e a-
historicamente imediato.

b) A categoria de totalidade não exprime toda a razão ou o espírito, nem


o todo que é o real em um «todo racional ou espiritual» (Hegel), mas apenas
a totalidade natural-social, o todo material que é a produção da vida: a
totalidade da sociedade de classes.

c) Esta totalidade contém a categoria da negatividade, isto é, o carácter


negativo ou contraditório do real. Mas esta contradição é precisamente real
(segundo o novo conceito marxista de «realidade») e não simplesmente
lógica ou dos conceitos. E a negação da situação contraditória ou negativa
(a «negação da negação») não é simplesmente «lógica ou só pensada e
realizada na ordem do pensamento», mas consiste na transformação da
ordem real dada e na instauração de outra nova ordem.

AS LEIS DA DIALÉCTICA
Por conseguinte, as leis da dialéctica abstraem-se da história da
natureza e da história da sociedade humana. Com efeito, essas leis são
apenas as mais gerais destas fases do desenvolvimento histórico e do
próprio pensamento, as quais se reduzem fundamentalmente a três:
– a lei da troca da quantidade pela qualidade, e vice-versa;
– a lei da penetração dos contrários;
– a lei da negação da negação.
A chamada dialéctica objectiva domina toda a natureza e a chamada
dialéctica subjectiva (o pensamento dialéctico) é apenas o reflexo do
movimento, através de contradições, que se manifesta na natureza; na sua
luta constante e no seu trânsito de um fim a outro, ou elevando-se ambos
os fins a uma forma superior, essas contradições são precisamente as que
condicionam a vida da natureza. Atracção e repulsão. A polaridade
começa no magnetismo.
Engels, Dialéctica da Natureza.

MATERIALISMO E PRODUÇÃO DA VIDA


A produção da vida, tanto da própria pelo trabalho como da alheia
pela procriação, manifesta-se imediatamente como uma relação dupla:
por um lado, como uma relação natural e, pelo outro, como uma relação
social; mas social no sentido de cooperação de vários indivíduos, sejam
quais forem as suas condições, modos ou fins. Daqui se segue que um
determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial está
sempre associado a um determinado modo de cooperação ou a uma
determinada fase social; por sua vez, esse modo de cooperação é uma
«força produtiva». Daí resulta também que a soma das forças produtivas
acessíveis ao homem condiciona o estado social e, por conseguinte, a
«história da humanidade» deve ser sempre estudada e elaborada cm
conexão com a história da indústria e do intercâmbio.
Desta maneira, é já antecipadamente manifesto que há uma conexão
materialista dos homens entre si, condicionada pelas necessidades e pelo
modo de produção e que é tão velha quanto os próprios homens; essa
conexão adopta constantemente novas formas, possibilitando assim uma
«história», sem que inclusive exista qualquer absurdo político ou
religioso que também mantenha os homens unidos.
Marx, Engels, A Ideologia Alemã.

d) Daí que a superação (Aufhebung) da contradição ou negatividade


não consista na aniquilação («não fazer nada», negar e dissolver o seu
carácter real) do objecto natural-material que recebe a actividade
transformadora, nem numa actividade que seja apenas pensada, que só se
realize na ordem dos conceitos.

Por isso, para o marxismo, a realidade é uma dialéctica material. Mas, o


que significa que a dialéctica seja material? Isso dependerá do que se
entenda por «materialismo».

3.1.2. Conceito marxista de «materialismo»

Coloca-se aqui o problema de se saber se o marxismo tem uma


concepção da realidade «natural», considerada à margem e
independentemente do homem e da história, ou se tem uma diferente teoria
da realidade. Nesta questão, o pensamento de Marx difere da «escolástica
marxista» posterior.
a) A teoria de Marx toma em consideração conjuntamente a «natureza»
e o «homem», enquanto dialecticamente relacionados, «A natureza»,
escreve Marx nos Manuscritos, «tomada de forma abstracta, por si, fixada
na separação do homem, não é nada para o homem». Korsch expô-lo com
clareza e precisão: «Marx, desde o princípio, concebe a natureza em
categorias sociais. A natureza física não intervém directamente na história
universal, mas apenas mediatamente, como processo de produção material
que, desde a sua própria origem, acontece não apenas entre o homem e a
natureza, mas simultaneamente também entre o homem e o homem; (...) em
vez da pura natureza, aberta a toda a actividade humana, na ciência
rigorosamente social de Marx a natureza aparece sempre como ‘matéria’
social, como produção material, mediada e transformada pela actividade
social humana.»
Assim, o materialismo de Marx consiste em considerar a realidade
como o processo dialéctico real de produção, um processo material (e não
espiritual), isto é, como trabalho ou acção produtiva do homem na e
com a natureza. E, consequentemente, deste processo dialéctico entre
natureza e homem só é possível uma teoria e uma ciência: «Nós», escreve
em A Ideologia Alemã, «conhecemos apenas uma ciência, a ciência da
história. A história pode ser considerada sob duas vertentes, pode dividir-se
em história da natureza e história da humanidade. Mas estas duas vertentes
não devem cindir-se; enquanto existirem homens, a história da natureza e a
história dos homens condicionar-se-ão reciprocamente».

A dialéctica material de Marx é, pois, uma dialéctica histórica e o seu


materialismo pode considerar-se também histórico, A expressão
«materialismo histórico» utiliza-se para designar a concepção
materialista da história. Mas também, num sentido mais lato, poderia
designar a teoria marxista sobre a realidade, abarcando aspectos que, sem
estarem separados da produção histórica, podem ser considerados
teoricamente à margem da história. Nesse sentido o conceito «filosófico»
de materialismo segundo Marx poderia denominar-se «materialismo
dialéctico», tendo em consideração que o significado desta expressão não
pode confundir-se nem identificar-se com o significado da expressão
«materialismo dialéctico» (Diamat), utilizado para significar uma
concepção dialéctica da natureza pura e simples, independente do homem
e da história.

b) Nesta última acepção, o materialismo dialéctico é um sistema


filosófico que afirma que a matéria constitui a essência de todo o real, que a
matéria está regida por uma dialéctica precedente e à margem do ser
humano e da história, e que esta dialéctica da natureza tem as suas próprias
leis.
Este sistema constitui uma particular e precisa ontologia que, como
refere Alfred Schmidt, «se pode examinar sem qualquer referência à obra
de Marx», Assim entendido, o materialismo dialéctico foi projectado e
iniciado por Engels, em quem se «justapõem e entrelaçam simplesmente em
parte dois conceitos de natureza: um mediato em sentido social concreto e
outro que tem um carácter materialista-metafísico» (Alfred Schmidt, O
Conceito de Natureza em Marx).
Indiquemos simplesmente as leis dialécticas da «matéria», que é,
segundo o materialismo dialéctico, infinita no espaço e no tempo e não-
entrópica (rejeição da lei da entropia):

1. lei da acção recíproca e da conexão universal;


2. lei da mudança universal e do desenvolvimento incessante;
3. lei da mudança qualitativa;
4. lei da luta dos contrários.

3.2. Concepção materialista da história

Para o marxismo, a história não é uma colecção de factos mortos», como


é para os empiristas, nem «uma acção imaginária de sujeitos imaginários»,
conforme a interpretou o idealismo (A Ideologia Alemã), mas sim, em
última análise, uma sucessão dos diferentes modos de produção, o
«processo real de produção».
Sobre a estrutura deste processo e as categorias ou conceitos com os
quais Marx o analisa, parece-nos oportuno reproduzir um trecho
pertencente ao livro Contribuição à Crítica da Economia Política que
dispensará pela sua clareza qualquer comentário. Diz assim:

«Na produção social da sua vida, os homem travam determinadas


relações necessárias independentes da sua vontade, relações de produção
que correspondem a um determinado estádio de desenvolvimento das suas
forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção
constitui a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se
levanta uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas sociais de consciência. O modo de produção da vida
material determina o processo da vida social, política e espiritual em geral.
Não é a consciência do homem que determina o seu ser mas, ao contrário, o
seu ser social é que determina a sua consciência. Num determinado estádio
de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em
contradição com as relações de produção existentes ou, para usar a
equivalente expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das
quais se haviam movido até então. De formas de desenvolvimento que eram
as forças produtivas, essas relações transformam-se em entraves das
mesmas. Começa então uma época de revolução social.
«Com a alteração do fundamento económico subverte-se mais
rapidamente ou mais lentamente toda a gigantesca superestrutura. Na
consideração destas comoções, importa distinguir sempre entre a
transformação material das condições económicas da produção e as formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma,
ideológicas, nas quais os homens tomam consciência deste conflito e o
dirigem. Do mesmo modo que não se pode julgar um indivíduo pelo que ele
imagina ser, também não é possível julgar uma tal época de transformação
pela sua consciência, mas temos de explicar essa consciência pelas
contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção. Uma formação social nunca
sucumbe antes de se terem desenvolvido todas as forças produtivas para as
quais é suficientemente capaz e nunca aparecem em seu lugar novas
relações de produção superiores antes que as suas condições materiais de
existência tenham incubado no seio da própria sociedade anterior. Por isso,
a humanidade nunca se atribui senão tarefas que pode resolver, pois,
pesando bem, achar-se-á sempre que a própria tarefa não surge senão
quando as condições materiais da sua solução estão já presentes ou, pelo
menos, em processo de devir».

MATERIALISMO HISTÓRICO
Esta concepção da história assenta portanto no desenvolvimento do
processo real da produção e cujo ponto de partida é a produção material
da vida imediata, e assenta também na concepção da forma de
intercâmbio correspondente a este modo de produção e por ele
engendrada, ou seja, a sociedade civil (nos seus diversos estádios) como
base de toda a história, representada na sua acção como Estado. É a partir
dela que explica todos os diferentes produtos teóricos e formas da
consciência – a religião, a filosofia, a moral, etc. – e é a partir destas
premissas que estuda o seu processo de nascimento. Deste modo,
obviamente, as coisas também podem ser expostas na sua totalidade
(assim como a acção recíproca entre estes diferentes aspectos). Ao
contrário da visão idealista da história, não se trata de procurar uma
categoria em todos os períodos, mas sim de permanecer constantemente
com os pés assentes no chão real da história; não se trata de explicar a
práxis a partir da ideia mas de explicar a formação de ideias a partir da
práxis material. Em consequência disto, todas as formas e produtos da
consciência não derivam da crítica espiritual, da redução à «consciência
de si» ou da transformação em «aparições», «espectros», «visões», etc.,
mas derivam apenas da transformação prática e revolucionária das
relações sociais reais que originam estas fantasias idealistas. Por outro
lado, só a revolução e não a crítica pode ser a força motora da história, da
religião, da filosofia e de toda a demais teoria. Esta concepção mostra que
a história não termina ao resolver-se em «consciência de si, tomo espírito
do espírito»; pelo contrário, em todos os estádios há nela um resultado
material, uma soma de forças de produção e uma relação historicamente
criada dos indivíduos entre si e com a natureza (e que cada geração
transmite à seguinte), uma massa de forças produtivas, capitais e
circunstâncias que, podendo ser modificada pela nova geração, lhe
prescreve no entanto as suas próprias condições de vida e lhe imprime um
determinado desenvolvimento e um carácter especial. Assim, as
circunstâncias fazem os homens e os homens fazem as circunstâncias.
Esta soma de forças de produção, capitais e formas de intercâmbio
sociais é um dado adquirido para todos os indivíduos e para todas as
gerações e é o fundamento real daquilo que os filósofos entendem como
«substância» e «essência do homem», algo que têm apoteotizado e
combatido.

Marx, Engels, A Ideologia Alemã.

«Em traços largos, pode dizer-se que os modos de produção asiático,


antigo, feudal e burguês moderno são épocas progressivas da formação
social económica. As relações de produção burguesas são a última forma
antagónica do processo de produção social, antagónica não no sentido do
antagonismo individual, mas no de um antagonismo que brota das
condições sociais de vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se
desenvolvem no seio da sociedade burguesa produzem ao mesmo tempo as
condições materiais da solução desse antagonismo. Por isso, a pré-história
da sociedade humana acaba nesta formação social.» (Marx, o. c.)

Os conceitos ou categorias fundamentais que, segundo o texto, importa


assinalar na concepção da história como o «processo real de produção»,
são:

a) Forças produtivas: este conceito designa a capacidade de produção


ou trabalho real dos homens.

Lenine
Vladimir Ilich Ulianov, que entrará na história com o nome de Lenine, nasce em Simbirsk
em 1870, e morre em Gorki em 1924. Filho de um inspector escolar (mais tarde promovido a
Director Regional do Ensino Elementar), foi marcado aos dezasseis anos pela terrível e
duradoura impressão da execução de seu irmão Alexandre «por atentar contra a segurança do
Estado. Estuda Direito na Universidade de Cazã, mas é expulso por tomar parte em movimentos
revolucionários. No entanto, em 1891 recebe autorização para se licenciar na Universidade de S.
Petersburgo.
Adere ao movimento social-democrata que paulatinamente se vai alterando até à aceitação
do determinismo histórico no processo das formações económico-sociais: feudalismo,
capitalismo, socialismo, simplificando e trivializando a importante contribuição de Marx para o
estudo dos modos de produção. Posteriormente, e contra isso, Lenine insistirá no papel do
indivíduo e na flexibilidade da doutrina, modificável segundo a realidade concreta
(voluntarismo), embora mais tarde, e paradoxalmente, Lenine imponha as suas teses
«ortodoxas» como o marxismo «verdadeiro». Em 1897 é desterrado para Tchukenskoi (Sibéria),
seguindo-o aquela que viria a ser a sua companheira constante: Nadia Krupskaia, Após o seu
regresso (1901), dá-se o cisma dos sociais-democratas, entre os que pretendiam aliar-se à
intelligentizia burguesa e liberal e que tomaram o nome de mencheviques (Martov), e os que
propugnavam radicalmente por uma tomada do poder por parte do proletariado: os
bolcheviques (Lenine). Em 1905 os dois partidos separam-se para sempre. Nesse mesmo ano
estala a revolução em S. Petersburgo, prontamente abortada.
Lenine vive no estrangeiro (fundamentalmente Londres e Genebra), apoderando-se
paulatinamente da direcção do partido. Ao estalar a revolução de 1917, os alemães, desejosos de
se verem livres da frente Oriental, põem à disposição de Lenine o famoso comboio blindado,
com o qual se muda da Suíça para S. Petersburgo. Derruba do poder os socialistas de Kerenski
(a 7 de Novembro de 1917: Outubro, segundo o calendário ortodoxo) e toma nas suas mãos o
poder do Estado como presidente do Conselho de Comissários do Povo. Em 1918 dissolve a
Assembleia Constituinte e assina com os alemães a paz de Brest-Litovsk. Institui em todas as
empresas industriais o controlo operário e nacionaliza as terras, estabelecendo unidades de
produção (kolkoses).
Doente desde 1922, assiste impotente à espectacular ascensão do secretário-geral Josef
Estaline; numa carta, não publicada durante muitos anos, lamentou ter-lhe outorgado tanto
poder. Orgulhoso e intransigente até ao fanatismo quando se tratava da revolução, para a qual
vivia em cada instante, no aspecto político são famosas as suas teses acerca da necessidade da
ditadura do proletariado como passo para o comunismo, do centralismo democrático dentro do
partido (não se admitem tendências; a minoria deve submeter-se à maioria) e da ideia de que é o
partido que deve guiar e dirigir o povo (segue-se a inevitabilidade de um partido único).
No aspecto filosófico, as suas teses mais famosas são a afirmação da fase imperialista do
capitalismo actual, caracterizado pelo auge dos monopólios e pela extensão multinacional das
indústrias (livros fundamentais: O Estado e a Revolução e O Imperialismo, Fase Superior do
Capitalismo) e na teoria do conhecimento, o seu decidido realismo contra o positivismo idealista
de Mach e Avenarius, que o leva a defender a «teoria do reflexo»: os sentidos copiam a
realidade tal como ela é. A matéria é o constitutivo único e último de um mundo «em si»,
independente do sujeito. As teses estão reunidas em Materialismo e Empiriocriticismo (1909).
O próprio Lenine reconheceu em muitas ocasiões a sua falta de preparação em filosofia e a
utilização desta como arma política. Por último, e em matéria de moral (especialmente sexual),
Lenine não brilhou como pensador progressista. Pelo contrário, as suas ideias neste campo eram
intoleravelmente conservadoras. Assim, são famosos os seus ataques a Alexandra Kolontai,
intelectual feminista.

b) Relações de produção: exprimem «as relações que se estabelecem


entre os proprietários dos meios de produção e os produtores directos num
processo de produção determinado» (Marta Harnecker, Os Conceitos
Elementares do Materialismo Histórico.

c) Estrutura económica ou infra-estrutura: significa o fundamento


sobre o qual assenta e que condiciona todo o processo de produção e
também, por consequência a produção ideológica denominada
«superestrutura». A estrutura económica é constituída pelas forcas
produtivas e pelas relações de produção.

d) Superestrutura: designa, mais ou menos rigorosamente, o conjunto


de representações ou ideias que configuram a «consciência»; bem como as
«estruturas» jurídicas e políticas que irradia e das quais a «infra-estrutura»
se serve.

e) Modo de produção: este conceito «refere-se à totalidade social


global, isto é, tanto à estrutura económica como aos outros níveis da
totalidade social: jurídico-político e ideológico» (Marta Harnecker, o. c.).

f) Formação social: na sua relação interna, a totalidade dos conceitos ou


categorias anteriores vêm a constituir um complexo ou todo social. A
formação social designa pois «uma totalidade social concreta
historicamente determinada» (Marta Harnecker, o. c.). A formação social
está assim integrada por uma estrutura económica, uma estrutura jurídico-
política e uma estrutura ideológica.

g) Revolução social: significa a destruição e transformação de


determinadas relações de produção, com a consequente subversão da
superestrutura.

Por último, e prosseguindo com o texto reproduzido, indiquemos


explicitamente três teses acerca da concepção materialista da história:
1. O factor determinante da história é a relação entre as forças
produtivas e as relações de produção. A história consiste, em última análise,
no processo real da produção material da vida. O motor da história é pois
a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, ou,
o que vem a dar no mesmo, a luta de classes. «A história de toda a
sociedade até hoje existente», escreve Marx no Manifesto Comunista, «é a
história da luta de classes».

2. Na história, na determinação e configuração do seu desenvolvimento,


dá-se uma particular relação entre a infra-estrutura (o fundamento
económico) e a superestrutura. Contra a tese de que o fundamento
económico determina sem mais o processo histórico e a superestrutura (tese
que poderia denominar-se economicista), que seria então apenas um reflexo
automático da infra-estrutura, o marxismo defende uma relação dialéctica
entre a infra e a superestrutura, embora o fundamento económico
constitua, em última instância, o princípio de explicação. Portanto, dizer
simplesmente que «o factor económico é o único factor determinante» é
«uma frase oca, abstracta e vaga» (Engels, carta a Bloch, 21-IX-1890).

3. O vector ou fim para o qual a história se dirige é o


desaparecimento das classes e a instauração do comunismo. A
sociedade comunista e sem classes, eschaton para o qual, ao que parece, a
história tende (marcha que será acelerada mediante a acção do
proletariado), virá acabar com as alienações e possibilitará a realização total
do homem. Com base nesta tese alguns autores, não sem fundamento, viram
no marxismo uma «metafísica da história» e, em todo o caso, uma instância
utópica.
A utopia não tem aqui um significado negativo, antes desempenha
importante papel na concepção marxista do mundo, ao ponto de um filósofo
marxista (Ernst Bloch) ter chegado a fazer da utopia e da esperança uma
disposição estrutural-constitutiva do homem. «O conteúdo essencial da
esperança» escreve Bloch, «não é a esperança mas, na medida em que
aquele não permita que esta fracasse, é a existência sem distância, o
presente. A utopia funciona apenas em virtude do presente a alcançar, e por
isso o presente está no final, como a falta de distância pretendida,
salpicando todas as distâncias utópicas. Precisamente porque a consciência
utópica não se alimenta com o mal existente, precisamente porque é
necessário o telescópio mais potente para ver a estrela real Terra, e porque o
telescópio se chama utopia concreta: precisamente por isso, a utopia não
pretende uma distância eterna do objecto, mas deseja antes coincidir com
ele como um objecto que já não é estranho ao sujeito.» (Bloch, O Princípio
da Esperança)
16. HISTORICISMO E VITALISMO

INTRODUÇÃO

Sob a denominação de «vitalismo» costuma entender-se um conjunto de


filósofos cuja reflexão gira em torno do tema da vida, como F. Nietzsche,
W. Dilthey, J. Ortega y Gasset e H. Bergson, O agrupamento destes autores
– e de outros menos significativos – sob a mesma designação não deixa de
ser ambígua. Com efeito, o termo «vitalismo» pode ter duas diferentes
acepções e referir-se à vida em sentido biológico e à vida em sentido
biográfico, isto é, como existência humana vivida. Esta última acepção está
em relação essencial com o conceito de «vivência».
Dos quatro filósofos citados, W. Dilthey centrou a sua reflexão na vida
entendida no segundo sentido. Ortega y Gasset ocupou-se da vida em
ambos os sentidos, embora se possa afirmar que nas primeiras obras (por
exemplo, O tema do nosso tempo) se ocupou mais da vida biologicamente
entendida, e na sua obra posterior prestou preferencialmente atenção à vida
humana, num sentido muito próximo do de Dilthey. No caso de Nietzsche,
o conceito de vida é biológico-cultural e abarca portanto as duas dimensões,
o impulso e a vivência. O vitalismo de Bergson, finalmente, formula o
conceito de vida como impulso vital universal que se expande evolutiva e
ascendentemente em luta contra o peso retardatário da matéria.
No título do capítulo, o vitalismo junta-se ao historicismo. Esta ligação é
essencial no conceito de vida a que chamamos «biográfico» (a vida como
existência vivida). Com efeito, a vida humana é por natureza temporal e
temporais são as realizações humanas, individuais e colectivas. Daí que a
historicidade seja um traço essencial das realizações culturais, e estas,
portanto, não possam ser compreendidas nem interpretadas adequadamente
a não ser sob a perspectiva histórica. Dilthey e Ortega, por consequência,
podem ser considerados, em certo sentido, historicistas.
O capítulo termina com uma exposição das ideias fundamentais de
Miguel de Unamuno, cujo vitalismo, contrariamente ao de Ortega,
radicaliza a oposição entre a razão e a vida.

Este capítulo está dividido nas seguintes partes:


1. O historicismo de Dilthey.
2. O vitalismo de Nietzsche.
3. O raciovitalismo de Ortega y Gasset.
4. Vida, tragédia e heroísmo: Miguel de Unamuno
1. O HISTORICISMO DE DILTHEY

Em linhas gerais pode dizer-se que a filosofia moderna se vai


constituindo, por um lado, contra a concepção do mundo da Idade Média e
especialmente contra a metafísica que estava subjacente e baseava
teoricamente essa concepção; e, por outro, numa estreita relação com o
nascimento e desenvolvimento da ciência. O fio condutor que a filosofia
moderna segue no seu desenvolvimento é a análise da razão com o fim de
fundamentar filosoficamente as ciências, emitir um juízo fundado sobre as
grandes questões que se apresentam ao homem (metafísica) e atingir um
conhecimento desta razão e da sua natureza.
Neste processo a obra de Kant representou um modo particular de
encarar estas questões. Ocupou-se – e indicámo-lo na altura – de uma
fundamentação das ciências da natureza mediante uma análise da (crítica)
razão considerada segundo uma estrutura a priori. Por outro lado, o
desenvolvimento das ciências naturais seguiu o seu processo ascendente,
incrementando-se a redução do saber filosófico à experiência natural.
É verdade que a filosofia de Hegel potenciou a importância da dimensão
histórica da razão. Mas Hegel entende a razão em última análise, como
razão lógica, como «ideia». De modo que a dimensão histórica da razão, e
todas as ciências do espírito acabaram acentuadamente logicizadas,
desconhecendo-se o carácter próprio destas ciências, com o consequente
risco – muito real, aliás – de que a sua natureza fosse explicada com base
nas ciências da natureza, e o espiritual fosse entendido como uma mera
expressão do natural.
1.1. Crítica da razão histórica

Dilthey enfrenta-se, pois, com a necessidade de efectuar uma clara


distinção entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, e a
exigência de estabelecer fundadamente o método genuíno e a natureza
destas últimas.
As ciências do espírito têm por objecto o homem na totalidade das suas
manifestações culturais; expressões que, como o próprio homem, têm um
carácter histórico. O problema de Dilthey consistirá, pois, em saber como
estabelecer uma fundamentada compreensão da vida humana histórica e das
ciências do espírito. «O conhecimento da realidade histórico-social»
escreve Dilthey, «efectua-se nas ciências particulares do espírito. Mas estas
reclamam uma consciência sobre a relação das suas verdades com a
realidade de que são o conteúdo parcial, bem como a relação com outras
verdades que, do mesmo modo que elas, foram abstraídas desta realidade, e
só uma tal consciência poderá emprestar aos seus conceitos plena claridade
e às suas proposições uma evidência total. Destas premissas deriva a missão
de desenvolver um fundamento gnosiológico das ciências do espírito e,
em seguida, a de utilizar o recurso assim criado para determinar a conexão
interna das ciências particulares do espírito, as fronteiras dentro das
quais é possível o conhecimento em cada uma delas e a relação
recíproca das suas verdades. A solução desta tarefa poderia designar-se
como crítica da razão histórica, ou seja, da capacidade do homem para
conhecer-se a si mesmo e à sociedade e à história por ele criadas» (Dilthey,
Introdução às Ciências do Espírito).
O projecto de Dilthey é paralelo ao objectivo que Kant se propôs na sua
Crítica da Razão Pura, embora, é claro, não relativamente às ciências da
natureza, mas às ciências do espírito; não, portanto, uma crítica da razão
«física», mas da razão «histórica». E como Kant, Dilthey procura apresentar
uma epistemologia ou teoria do saber das ciências do espírito. Mas reduzir a
crítica da razão histórica a uma simples dimensão epistemológica seria
falsificar ou deformar a obra de Dilthey. Pois a sua intenção última
consiste no esclarecimento da natureza e estrutura da vida humana e
da sua originária e radical dimensão histórica já que só a partir da vida
humana se poderá vir a compreender fundadamente (instância ou momento
epistemológico da crítica) as suas diferentes manifestações culturais
(ciências do espírito), o sentido da história e a própria necessidade e
natureza da filosofia. Por conseguinte, na crítica da razão histórica está
latente uma instância ontológica (uma ontologia da vida como realidade
radical) e inclusive uma dimensão metafísica, na medida em que os
problemas últimos que o «enigma da vida» suscita, são de carácter
metafísico.

CIÊNCIAS DO ESPÍRITO E DA VIDA


1. Começo pela questão de como é possível delimitar as ciências
naturais relativamente às outras ciências, quer se opte por designar estas
últimas de «ciências do espírito» ou «ciências culturais». Todas estas
ciências se referem aos homens e às suas relações entre si e com a
natureza exterior.
O que há de comum a todas estas ciências na sua relação com os
homens, na relação entre estes e com a natureza exterior? Todas se
baseiam na vivência, na expressão de vivências e na compreensão desta
expressão. A vivência e a compreensão de todas as espécies de
expressões de vivências fundamentam todos os juízos, conceitos e
conhecimentos que são próprios das ciências do espírito. Nasce assim
uma teia do saber na qual se interligam o vivido, o compreendido e a sua
representação no pensar conceptual. E esta teia acontece na totalidade do
grupo de ciências que constituem o factum que está na base da teoria das
ciências do espírito.
Dilthey, O Mundo Histórico.
As ciências do espírito partem da conexão psíquica dada pela
experiência interna. A diferença fundamental entre o conhecimento
psicológico e o conhecimento da natureza radica no facto de que a
conexão na vida psíquica se dá de um modo primário, e nisto consiste
também a primeira e fundamental peculiaridade das ciências do espírito.
Como no domínio dos fenómenos exteriores só a coexistência e a
sucessão é que entram na experiência, a ideia de conexão só poderia
surgir se se desse na unidade conexa própria. Esta unidade conexa é-nos
dada através das nossas percepções internas e das suas ligações, na
conexão estrutural da vida psíquica, sem necessidade de qualquer
hipótese acerca de uma espontaneidade unitária ou de uma substância
psíquica. Esta conexão abarca todas as formações unitárias e todas as
conexões particulares. Não podemos ir além desta conexão, a qual
constitui a condição unitária da vida e do conhecimento.
Dilthey, Psicologia e Teoria do Conhecimento.

1.2. Relativismo e cepticismo no saber

1.2.1. Situação cultural e filosófica

Relativamente às ciências do espírito, Dilthey encontra-se perante quatro


«factos» culturais-filosóficos que configuram de algum modo o seu tempo:

a) A generalizada positivização do saber, consequência tanto do


desenvolvimento das ciências da natureza, como da corrente positivista e de
uma certa interpretação dos resultados da obra de Kant.

b) A relatividade de todos os sistemas filosóficos e metafísicos. A


diversidade dos sistemas filosóficos (que aparecem mesmo como
contraditórios) apresenta-se como um facto indiscutível, indício do
definitivo derrube de qualquer filosofia com pretensões de necessidade
absoluta.

c) A apreensão clara da historicidade de todo o fenómeno cultural.


Esta consciência histórica mostra-se assim, por um lado, como argumento
contra a pretensão de necessidade absoluta de qualquer filosofia e, por
outro, põe-nos na pista da realidade dessas manifestações culturais e,
sobretudo, daquilo que as produz: a vida humana. O seguinte texto de
Dilthey exprime estes dois aspectos, cremos que de um modo preciso e
unitário: «A consciência histórica (...) leva-nos para além (...) de um
sistema unitário de validade universal. A consciência histórica mostra como
(...) a luta entre os sistemas metafísicos repousa, em última análise, na
própria vida, na experiência da vida, nas posições ante os problemas da
vida.» (Teoria das Concepções do Mundo)

d) O cepticismo, como consequência «da anarquia dos sistemas


filosóficos». A partir desta consideração, as produções, as ciências do
espírito e o espírito humano ou a própria vida, aparecem nas palavras de
Dilthey como «umas imensas ruínas».

Wilhelm Dilthey
Filosófo e historiador alemão, nasceu em Biebrich, em 1833, e morreu em Seis, no Tirol, em
1911. Foi professor em Basileia, Kiel, Breslau e, por fim, em Berlim a partir de 1882. A sua
obra acrescenta ao neokantismo uma tentativa de compreensão da vida, da história e do mundo
que integra toda a cosmovisão na evolução histórica. Separa radicalmente as ciências da
natureza – cujo objectivo é apenas explicar – das ciências do espírito que terão de se encarregar
da descrição do ser humano. A sua gnosiologia das ciências do espírito é uma das primeiras
tentativas contemporâneas de subordinar a «razão» à «vida» e está fundamentada numa
psicologia preocupada com a «poderosa realidade efectiva da vicia anímica».
As suas obras mais notáveis, são:
– Introdução às Ciências do Espírito (1883).
– Ideias sobre uma Psicologia Descriptiva e Analítica (1894).
– A Juventude de Hegel (1905).
– A Estrutura do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito (1910).
1.2.2. Crítica das soluções anteriores

Nesta situação cultural Dilthey verifica, além disso, que falharam as três
tentativas de fundamentar e explicar as ciências do espírito, a saber: a) a da
ciência natural; h) a da metafísica; c) a da escola histórica:

a) Com efeito, quanto à ciência natural, a sua pretendida fundamentação


é uma confusão (e em última análise redução) das ciências do espírito ou da
cultura (como também eram chamadas) com as da natureza e, além disso,
um crasso erro ontológico, ao entender a vida como uma coisa natural.

b) No tocante à metafísica, a falha explica-se logo que se atende ao que,


no entender de Dilthey, constitui os seus dois caracteres fundamentais: a
pretensão de absolutismo e o seu carácter exclusivamente intelectual. Este
intelectualismo é muito limitado e portanto insuficiente para explicar a
riqueza e complexa estrutura da vida, cujos enigmas se devem compreender
no seu decurso histórico.

c) A escola histórica representa para Dilthey a primeira tentativa séria de


abordar e estudar a história como uma determinada parcela da realidade até
então muito descurada. Mas no seu estudo dos factos culturais e históricos a
escola histórica considera-os apenas como simples «factos», limitando-se a
observá-los e a descrevê-los, sem indagar sobre o seu sentido dentro do
todo unitário que é o decurso da vida humana. A escola histórica é
justamente uma forma do positivismo reinante, um «positivismo histórico».

1.3. A vida e as concepções do mundo

Nesta complexa situação, e estimulado pelo problema das ciências do


espírito e dos enigmas da vida, cresce a complexa obra de Dilthey, Esta
obra, por vezes exageradamente adjectivada de «nebulosa», pode ser
resumida nos dois pontos seguintes.

1.3.1. A vida e suas dimensões

O centro do pensamento de Dithey é constituído pelo conceito de


vida, de vida humana. A filosofia surge como exigência imposta pela vida
e não como uma exigência meramente intelectual. Por isso, a reflexão
filosófica deve abordar o enigma e os problemas da vida, e deve fazê-lo
com um tratamento «histórico», pois «o que quer que o homem seja,
experimenta-o apenas através da história». Ora, a compreensão da sua
sucessão histórica, a compreensão do seu sentido, só pode realizar-se a
partir da estrutura da própria vida. E é na reflexão sobre as suas
manifestações históricas que a vida vai paulatinamente descobrindo aquilo
que ela é. Existe, como vemos, uma relação recíproca entre história e vida.
A vida tem uma estrutura constituída por três dimensões:

a) uma dimensão representativa ou intelectual, regida pelo


entendimento, através da qual a vida cria uma imagem objectiva do
mundo, ou seja, um conhecimento científico;
b) uma dimensão afectiva, sobre a qual se edifica o conjunto de
«valorações» que acompanham necessariamente o viver (experiência da
vida);
c) uma dimensão volitiva na qual se iniciam as acções em que a vida
consiste (princípios de acção).

Na unidade destas três dimensões estruturais, a vida realiza a vivência


do que ela é nas suas expressões e manifestações, na conexão destas
manifestações entre si e em relação à sua origem e deste modo se
«compreende», ao mesmo tempo, no que é e nas suas expressões objectivas
e históricas.
1.3.2. Teoria das concepções do mundo

A vida não é nem pode reduzir-se a uma destas dimensões, mas consiste
antes na unidade das três, impelida, aliás, pela necessidade de «fazer uma
ideia geral da totalidade da vida”, acicatada pelos enigmas que se lhe
impõem e não podendo aceitar com a dissolução de si mesma que, em
última análise, a total relatividade histórica e o subsequente cepticismo
representam.

EXPERIÊNCIA E ENIGMA DA VIDA


A vida é a raíz última da concepção do mundo. Com efeito, a vida
apresenta-se ao nosso saber sob inumeráveis formas, onde quer que haja
os mesmos traços comuns. Ela estende-se pela terra em incontáveis
manifestações singulares e é revivida de novo em cada indivíduo e, ainda
que se subtraia à observação, como um mero momento que é do presente,
é no entanto retida no eco da recordação. Por outro lado, e à medida que
se objectiva nas suas manifestações exteriores, pode ser abarcada em toda
a sua profundidade por meio da compreensão e da interpretacão, ou ser
apercebida quando nos damos conta da nossa própria vivência.
A experiência da vida nasce da reflexão sobre a vida. Nela, os
acontecimentos singulares provocados pelos nossos impulsos e
sentimentos na sua confluência com o ambiente e o destino convertem-se
num saber objectivo e geral. Tal como a natureza humana é sempre a
mesma, também os traços fundamentais da experiência da vida são
comuns a todos.
Se contemplarmos o conjunto das várias experiências da vida,
veremos surgir a imagem da própria vida, cheia de contradição,
simultaneamente vida e lei, razão e arbitrariedade, mostrando sempre
aspectos novos e, se os seus pormenores forem claros, a sua totalidade
misteriosa. A alma tenta abarcar num todo a teia vital e as experiências
que ascendem a ela, mas não o consegue.
Dilthey, Teoria das Experiências do Mundo.

A elaboração de uma ideia geral e complexa (na medida em que


considera as três dimensões estruturais) acerca da totalidade da vida é o que
Dilthey chama concepção do mundo (Weltanschaung). «As concepções do
mundo» escreve Dilthey, «não são produtos do pensamento. Não nascem da
pura vontade de conhecer. A captação da realidade constitui um factor
importante na sua formação, mas é apenas um. Surge das atitudes vitais, da
experiência da vida, da estrutura da nossa totalidade psíquica. A elevação
da vida a consciência no conhecimento da realidade, a consideração da vida
e a realização da vontade representa o árduo e lento trabalho realizado pela
humanidade com o desenvolvimento das concepções do mundo.» Como se
vê, a concepção do mundo articula-se à volta da tríplice dimensão da
estrutura da vida: o conhecimento objectivo, a consideração dos valores e a
acção da vontade.
As concepções do mundo distinguem-se segundo a sua lei formativa e a
sua estrutura. Dilthey aponta uma concepção «religiosa», outra «artística» e
uma terceira «filosófica ou metafísica», mas a mais importante (para os
objectivos de Dilthey) é esta última, na qual, indagando através da história a
«conexão entre vida e metafísica», é possível reconhecer três grandes tipos:
o naturalismo, o idealismo da liberdade e o idealismo objectivo.
É importante definir o sentido da teoria diltheyana da concepção do
mundo. Pretende-se estancar com ela a ferida produzida na vida pela
consciência da relatividade histórica; uma sutura que não é produzida
«arbitrária ou externamente», mas propiciada pela própria vida, vindo a
«concepção do mundo» a ser como que o precipitado no qual a própria vida
se distancia da «dissolução historicista-relativista», do positivismo histórico
e do cepticismo, sem no entanto cair em «um saber universal necessário e
rigoroso», à maneira de «sistemas filosóficos periclitantes»; sem cair, numa
palavra, na metafísica como sistema fechado e a-histórico.
Precisamente, os problemas que o conjunto da vida impõe, insolúveis de
modo definitivo e nos quais a vida humana precisa de pôr ordem e orientar-
se mediante as «concepções do mundo», significam muito claramente que,
embora a metafísica seja impossível para Dilthey, é no entanto inevitável,
mesmo que seja como «problema» e «tarefa aberta». O historicismo de
Dilthey não consiste num relativismo vago e cinzento; pelo contrário, a
filosofia diltheyana procura uma fuga ao relativismo e ao cepticismo,
conservando no entanto a historicidade da vida. História e vida são a
espinha dorsal da filosofia de Dilthey que, a partir da História, tende
para uma concepção sistemática da vida como realidade radical: «A
Filosofia tem por missão primeira e como parte propedêutica a condução,
através das etapas da História, da predisposição filosófica e da necessidade
filosófica que existe nos sujeitos da plena consciência histórica actual. Esta
História é a indispensável propedêutica da filosofia sistemática.»

A ESTRUTURA DA CONCEPÇÃO DO MUNDO


Todas as mundividências, ao empreenderem proporcionar uma
solução completa do enigma da vida, contêm, regra geral, a mesma
estrutura. Esta consiste sempre numa conexão em que, sobre a base de
uma imagem cósmica, se decidem as questões acerca do significado e do
sentido da vida e daí se deduzem o ideal, o sumo bem, os princípios
supremos da conduta de vida. É determinada pela legalidade psíquica
segundo a qual a apreensão da realidade, no decurso da vida, constitui o
substrato para a valoração das situações e dos objectos quanto ao prazer e
quanto ao desprazer, ao agrado e ao desagrado, ao assentimento e à
recordação, e esta avaliação da vida constitui, em seguida, por seu turno,
o estrato inferior para as determinações da vontade. O nosso
comportamento passa regularmente por estas três camadas da consciência
e a peculiaríssima natureza da vida psíquica faz-se valer no facto de que,
em semelhante nexo operativo, continua a actuar a camada mais
profunda: as reacções, implicadas nos modos de conduta segundo os
quais faço juízos dos objectos, neles me comprazo ou intento realizar
algo, determinam a edificação dos diferentes estratos entre si e
constituem, por isso, a estrutura da formação em que se expressa todo o
nexo operativo da vida anímica (...).
Tal é a estrutura da mundividência. O que no enigma da vida se
contém como confuso, como um feixe de tarefas, é aqui elevado a uma
conexão consciente e necessária de problemas e soluções; esta progressão
tem lugar em fases por ela regularmente determinadas: donde se
depreende que cada concepção do mundo tem um desenvolvimento e
chega nele à explicação do que em si está implicado: assim obtém, pouco
a pouco, no decurso do tempo, duração, solidez e poder: é um produto da
história.
Dilthey, Teoria das Concepções do Mundo, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 116-117.
2. O VITALISMO DE NIETZSHE

2.1. A crítica da tradição ocidental

O objecto da crítica nietzscheana é-nos desvendado pelo próprio


Nietzsche no prólogo ao seu livro Para Além do Bem e do Mal: a filosofia
dogmática entendendo por tal – relativamente à Europa – o platonismo. Na
opinião de Nietzsche, Platão instaurou o erro dogmático mais duradouro e
perigoso: o «espírito puro» e o «bem em si». Isso significou a negação total
da «verdade» do ser. Com efeito, o platonismo significa pôr de cabeça para
baixo o perspectivismo, que é a condição fundamental de toda a vida.
Portanto, junto à crítica do platonismo e do erro ontológico que alimenta
essa filosofia dogmática, Nietzsche apresenta a sua própria ontologia.
Seguindo o próprio Nietzsche, podemos estudar três directrizes na sua
crítica: a crítica da moral, a crítica da metafísica tradicional no seu aspecto
ontológico e epistemológico, e a crítica das ciências positivas.

2.1.1. A crítica à moral

Neste aspecto da sua crítica Nietzsche refere-se à moral como


«contranatureza», ou seja, a moral que se opõe à vida, que estabelece leis
ou decálogos contra as instintos vitais, porque prefere a inibição à
exuberância. A crítica da moral platónico-cristã indica que a moral
contranatural, isto é, a moral ensinada até agora, se dirige contra os instintos
da vida, é uma condenação – por vezes encoberta – desses instintos.
A base filosófica da moral contranatural é o platonismo; o mundo das
ideias serve o mais além religioso dos cristãos, de tal forma que o
platonismo acabou por se converter na metafísica cristã. Efectivamente, esta
moral põe o centro da gravidade do homem não nesta vida, mas na outra, no
mundo das ideias, no além salvador. Nietzsche não encontra palavras
suficientemente duras para qualificar o que denomina por vezes por
«complot do cristianismo»: «A vida acaba onde começa o reino de Deus»
(O Crepúsculo dos Ídolos).
De forma que a moral, como juízo valorativo sobre a vida, segundo foi
ensinada e imposta como «norma de conduta» no Ocidente, não é mais do
que um sintoma de decadência, de niilismo; enfim, um juízo valorativo que,
por ser antitético à própria vida (tal como a entende Nietzsche), é por
conseguinte negativo. O paradoxal deste juízo negativo a respeito da vida é
que se justifica em Deus e não no próprio homem. Por isso, a moral como
contranatureza tem um primeiro objectivo: demonstrar a vontade livre do
Homem.
Entra aqui em cena a posição moralista do cristianismo: «Os teólogos,
para sua existência, apelam continuamente para a ordem moral do mundo, e
desse modo tornam-nos livres, responsáveis. Mas desse modo infectam a
inocência do devir por meio do castigo e da culpa». Para pecar e ser objecto
das iras divinas, temos de estar capacitados moralmente, isto é, ser livres.
Mas Nietzsche inverte o argumento: a responsabilidade é possível se o
homem é livre, e isto por sua vez é possível porque o homem e o mundo
foram feitos previamente «culpados». O cristianismo, diz Nietzsche, é
«uma metafísica do verdugo».
O que em substância se crítica aqui é a ideia de uma ordem moral do
mundo que, a modo de guia, sirva para dirigir a história do homem. Mas
aponta-se especialmente para a transcendência dessa ordem como algo
externo ao próprio homem; este tem ordens, metas, leis, mas são próprias,
imanentes, parciais e humanas. Um guia absoluto, tal como o propõe a
moral tradicional, só é possível se imaginarmos alguém fora do mundo, fora
da vida; mas esta ideia é a imagem estonteada da própria moral cristã, cujo
ressentimento para com a vida a obrigou a procurar vectores exteriores à
própria vida, leis não deste mundo, mas do além, do mundo das ideias.

NIILISMO
Já ouviram falar daquele homem louco que levava uma lanterna acesa
em pleno meio-dia, correndo pelas ruas e gritando: «procuro Deus»? E
que foi recebido com enormes gargalhadas pelos que estavam ali e que
não acreditavam em Deus? Será que se perdeu? – dizia um. Perdeu-se
como as criancinhas? – dizia outro. Estará escondido? Terá medo de nós?
Terá emigrado? – assim gritavam, rindo-se. O homem louco saltou para o
meio deles e fuzilou-os com o seu olhar. «Para onde foi?» – exclamou –
«Vou dizer-vos: fomos nós que o matámos. Vós e eu. Somos todos
assassinos, mas como o fizemos? Como é que conseguimos esvaziar o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Como fizemos
para afastar esta terra do sol? Para onde vai agora? Para onde vamos nós,
que nos afastamos de todos os sóis? Não estamos nós continuamente a
cair? Para trás, para a frente, para todos os lados? Será que para nós ainda
haverá um acima e um abaixo? Não vagueamos nós como se fosse
através de um nada infinito? O espaço vazio não nos absorve? Não está
cada vez mais frio? Nunca houve nada assim: e por causa deste feito
todos quantos nasçam depois de nós farão parte de uma história superior
à história anterior. Este grandioso acontecimento está para chegar e vai
aparecendo aos poucos, embora não tenha ainda penetrado nos ouvidos
dos homens. O relâmpago e o trovão levam o seu tempo, a luz das
estrelas leva o seu tempo. Mesmo depois de terem acontecido, os feitos
levam o seu tempo até serem vistos e ouvidos».
Nietzsche, A Gaia Ciência.

Visto que a ordem moral do mundo não é dada pelo próprio homem, não
nos chega da própria história mas de Deus, a tese nietzscheana que combate
esta ideia é a seguinte: se até agora Deus foi a grande objecção contra a
vida, contra a existência, nós negamos Deus, negamos a
responsabilidade perante Deus; desta forma «redimimos» o mundo. O
homem não carece de Deus para saber-se livre originalmente, sempre o foi
e será, porque o mundo não tem nenhuma lei transcendente que o obrigue.
Nietzsche é pois o grande crítico da moral antinatural que ele identifica
em traços largos com a moral tradicional. Costumara chamar-se a si próprio
«imoralista»; mas não porque fosse amoral. A sua moral passa por
caminhos bem diferentes dos do cristianismo, mas não deixa de ter uma
moralidade: a exaltação da vida em seu completo desenvolvimento, na sua
criatividade e destruição naturais, no original devir do ser.

2.1.2. Crítica ontológica da metafísica

A metafísica tradicional assenta num erro fundamental: a crença na


antítese dos valores. Os filosófos dogmáticos sempre acreditaram que as
coisas de valor supremo tinham uma origem própria, que de modo algum
podiam derivar deste mundo terreno e efémero, pois vinham directamente
de Deus, do «outro mundo». Para justificar uma série de valorações, ou
melhor, de categorias, o filósofo – diz Nietzsche – inventa um mundo
distinto deste; um mundo, portanto, que possui categorias totalmente
contrapostas.
A ontologia tradicional é estática porque considera o ser como algo de
fixo, imutável; por outro lado, esse ser não se deixa ver tal como é na
realidade neste mundo, onde tudo é aparência e falsidade dos sentidos, pois
tem o seu próprio mundo: o que o homem conhece do ser é apenas mera
aparência. E como sabemos que este mundo é irreal, devemos procurar no
outro para encontrar a verdade. O filósofo dogmático dedica-se, diz
Nietzsche, a procurar, a indagar, a «especular» por cima do movimento do
mundo, porque pensa que o ser do mundo não se pode estudar no torvelinho
desta vida, que é para ele causa de erro.

Friedrich W. Nietzshe
Nasceu em 1844, em Roecken (Turíngia). Os seus avós e seu pai foram pastores protestantes.
Paradoxalmente, Nietzsche seria um grande ateu. Quando tinha dois anos, nasceu sua irmã
Elisabeth, que iria ser a sua companheira, amiga, confidente, enfermeira e causadora do maior
embuste político feito ao filósofo. Na escola de Pforta recebe uma sólida formação humanista.
Muito bom intérprete de piano, mas mau compositor, Wagner foi o seu guia espiritual, depois de
Schopenhauer. Aos vinte e quatro anos é nomeado catedrático extraordinário da Universidade
de Basileia. Optou pela nacionalidade suíça. Em 1871, aparece a sua primeira obra, O
Nascimento da Tragédia no Espírito da Música. Com esta grande obra começaria o seu fracasso
«profissional». Entre 1873-76 publica as Considerações Intempestivas, uma dura crítica ao
progressismo racionalista quase-religioso, ao positivismo, à arte burguesa, etc. Humano,
Demasiado Humano aparecerá entre 1875-78 (1aparte) e 1880 (2.aparte). Por esta altura cai
enfermo: terríveis dores de cabeça e olhos. A partir de então transforma-se em nómada: Riva,
Génova, Sicília, Rapallo, Sils-Maria, Turim... e sobretudo a grande nostalgia do Sul.
Entretanto, a sua vida decorre com grande austeridade. Em 1881 publica Aurora e um ano
depois A Gaia Ciência, onde se manifestam de uma forma quase sistemática alguns dos seus
princípios filosóficos. Em Roma conhecerá Lou von Salomé, tão inteligente como auto-
suficiente, da qual Nietzsche continuou enamorado apesar da posterior separação. Tendo por
espaço vital uma profunda solidão, escreve o seu livro mais importante, Assim Falava
Zaratustra, no qual o seu estilo e pensamento atingem alturas elevadíssimas de maturação.
Nenhuma das obras posteriores atingiria o nível desta, nem Para Além do Bem e do Mal (1886)
nem sequer a sua não menos famosa Genealogia da Moral (1887).
As dores tornam-se mais frequentes e insuportáveis. Nietzsche começa um período cheio de
extravagâncias. A loucura espreita-o. Um amigo íntimo, porventura o último que lhe restava, fê-
lo ingressar numa clínica de Basileia; diagnóstico: lesão cerebral. Tinha então quarenta e cinco
anos. Morreu em vinte e cinco de Agosto de 1900, às portas de um século que o reconheceria
sucessiva e paradoxalmente como violento fascista e revolucionário anarquista. Tido como
ideológico pré-nazi, em poucos anos Nietzsche passaria a ser considerado como o filósofo do
Maio 68.

Esta separação entre ser real e aparente é já um juízo valorativo sobre a


vida, um juízo negativo, porque dá mais importância ao mundo das ideias
(real) do que ao mundo dos sentidos (irreal, aparente). Todavia, não existe
um mundo aparente e outro verdadeiro, mas o devir constante do ser
criando e destruindo o único mundo existente. Isso mesmo veremos mais
adiante; interessa-nos agora insistir (como se fez na crítica à moral) na
negação absoluta de todo o tipo de ontologia que implique menosprezo pela
vida. A ontologia tradicional baseia-se, na opinião de Nietzsche, nos
preconceitos dos filósofos contra algumas manifestações vitais, como o
horror à morte, à velhice, à mudança, à procriação...».
A ontologia relaciona-se estreitamente com a moralidade, por isso
mesmo Nietzsche aparentou a divisão do mundo em real e aparente, própria
do platonismo, com a moral antinatural que vê nos sentidos uma causa de
perdição, própria do cristianismo, Este problema aprofunda-se e clarifica-se
ao mesmo tempo com estas quatro teses acerca do erro tradicional sobre o
ser:

l. «As razões pelas quais este mundo foi classificado de aparente pelo
metafísico fundamentam antes a sua realidade; outra espécie de realidade
diferente é absolutamente indemonstrável.» Ao falar de «razões», Nietzsche
refere-se às categorias através das quais a razão humana crê apreender o ser,
tais como: unidade, identidade, causalidade, finalidade, etc.
A tradição metafísica ocidental toma como verdadeira a reflexão da
razão sem se dar conta de que o que fundamenta essa reflexão não é a
lógica mas a necessidade que o ser humano tem de sobreviver num mundo
em devir. Necessitamos das categorias da razão porque, graças a elas,
podemos viver com certo «repouso, segurança e calma» (O Livro do
Filósofo) fazendo assim frente ao devir constante do ser.

2. «As categorias do ser verdadeiro das coisas são signos do não-ser, do


nada» (Crepúsculo dos Ídolos). Quer isto dizer que o chamado mundo
verdadeiro se constrói em oposição ao mundo aparente dos sentidos, sempre
em mudança.
Mas esta contraposição não é mais do que uma ilusão moral: uma
ontologia baseada na crença de que o devir do ser é um erro dos nossos
sentidos imprime precisamente as suas categorias mais fundamentais à
custa do não-ser, do nada: justifica-se num mundo onde o ser foi
«coisificado» através dos conceitos.

3. «Inventar outro mundo diferente deste implica ter receio da vida, uma
atitude de receio perante a vida como devir.» Aqui descobre-se a intenção
de Nietzsche: o problema de fundo é apenas o niilismo, consequência da
perspectiva estática do ser. Inventar outro mundo não tem sentido se não se
pretende que seja melhor do que este que pisamos; ora, isto é próprio de
uma atitude de ressentimento para com a vida. A sintomatologia niilista
começa com o receio face à vida: duvida-se do valor da vida como
«vingança» imediata e inventa-se outro mundo como finalidade. A moral
como antinatureza tem aí o seu ponto de arranque.

4. «Dividir o mundo em verdadeiro e aparente, seja à maneira platónico-


cristã, seja à maneira kantiana, é uma sugestão da decadência.» Ambas as
opções separam o real do aparente. Isto é muito importante porque
Nietzsche se apoia nesta interpretação para explicar a sua própria ontologia.
Tanto o platonismo como o kantismo são sintomas da vontade do poder. É a
necessidade de racionalizar o impossível, de racionalizar o ser como devir
que nos obriga a inventar ficções lógicas e modelos de conhecimento que
nos permitam a estabilidade frente ao que em si é caos (no sentido de que
não existem nem lei nem ordem sobrenaturais).
As categorias ou conceitos com os quais tentamos apreender o ser são,
diz Nietzsche, ficções convencionais com objectivos de designação, mas
nunca de aclaração (Para Além do Bem e do Mal). Somos nós, humanos,
quem cria – impelidos pela vontade do poder – todas as categorias
existenciais. Por isso os filósofos se dedicaram até ao presente a
«mumificar» o devir do ser por meio de conceitos que só servem para
etiquetar. Esta necessidade obriga-nos a procurar o mecanismo adequado à
consecução da afirmação humana perante o mundo; e consideramos este
mecanismo único e verdadeiro.
Além disso, se existe um mundo real e um mundo aparente, deve haver
um homem real e outro aparente, equivocado. Nietzsche aponta para o
seguinte: a própria ontologia platónica, que nega o devir do ser, propôs os
meios adequados para que o espírito acariciasse a ideia de uma ordem
moral sobrenatural; abandona-se desta forma o primitivo carácter de
«inocência» que possuía o devir do ser e torna-se o homem dependente de
uma razão superior a si próprio quer se trate de Deus (primeira
manifestação dogmática do espírito), quer da razão (segunda), quer da
ciência ou da história (terceira e quarta manifestações, respectivamente).
Para Nietzsche o metafísico platónico e o sacerdote cristão tem o mesmo
pathos dentro do pensamento ocidental.

2.1.3. Crítica epistemológica da metafísica

Vimos até agora apenas a crítica geral à ontologia, ou seja, como se caiu
na falsa interpretação da realidade do ser. No entanto, Nietzsche não faz
crítica fora da razão: explica a génese das categorias que comportam o
maior obstáculo para a interpretação da realidade como devir, conceitos
que, por isso mesmo, serão postos em causa.

O PRINCÍPIO DA LINGUAGEM E A GRAMÁTICA


As diferentes concepções filosóficas não são arbitrárias nem
autónomas mas, pelo contrário, apresentam um desenvolvimento de
relação e parentesco mútuos. Ainda que surjam na história do pensamento
de modo aparentemente súbito e fortuito, nem por isso deixam de
pertencer a um sistema, do mesmo modo que todos os membros da fauna
de um continente formam um sistema. Se nos damos conta disso é porque
os mais diferentes filósofos obedecem sempre a um certo esquema básico
de filosofias possíveis, percorrendo sempre a mesma trajectória, como se
estivessem sob o efeito de qualquer força invisível; aliás, e por mais que a
sua vontade crítica ou sistemática os faça sentir-se independentes em
relação aos outros, há algo que os guia e os impele a seguir determinada
sucessão, o que vai dar precisamente a esse sistematismo inato e ao
parentesco dos conceitos. Com efeito, o pensar filosófico não é tanto uma
descoberta mas um reconhecimento, uma reminiscência, um regresso à
remota e antiquíssima economia da alma que outrora originou aqueles
conceitos – neste sentido, filosofar é uma espécie de atavismo
exacerbado. Dado que há uma afinidade linguística, será fácil explicar a
singular parecença familiar entre as filosofias indiana, grega ou alemã.
Por conseguinte, graças à filosofia comum da gramática (isto é, graças ao
domínio e orientação inconsciente que funções gramaticais idênticas
exercem), não se pode evitar que tudo esteja preparado de antemão para
que os sistemas filosóficos se desenvolvam e sucedam de modo
semelhante, como se fosse impossível fazer outra interpretação do
mundo. Como o conceito de sujeito está menos desenvolvido nos
filósofos da área linguística uralo-altaica, é bastante provável que a sua
visão do mundo e os seus caminhos sejam diferentes dos que os indo-
germânicos ou muçulmanos seguem: em última instância, a força
invisível de determinadas funções gramaticais corresponde à força
invisível de juízos de valor fisiológicos e de condições raciais.
Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal.

a) Realidade e conceito
Toda a palavra se converte em conceito a partir do momento em que
deixa de servir precisamente para a vivência original, única e
individualizada, a que deve a sua origem. Pretende-se que o conceito sirva
para exprimir e significar uma multiplicidade de coisas ou realidades
individuais que, rigorosamente falando, diz Nietzsche, «nunca são
idênticas» (O Livro do Filósofo). Um exemplo: o conceito «folha» formou-
se prescindindo arbitrariamente das diferenças individuais; provoca-se deste
modo a representação de folha como se na natureza existisse algo fora das
folhas, uma espécie de forma original que servisse de modelo para conhecer
todas as folhas. Nietzsche refere-se aqui à função do platonismo e à sua
relação com a génese dos conceitos e processos de substancialização.
A verdade, então, não é mais do que um conjunto de generalizações,
ilusões que o uso e o costume foram impondo e cuja natureza
desconhecemos: «metáforas já esquecidas que perderam a sua força
sensível, moedas que perderam o seu valor e que agora entram em
consideração como metal, não como moedas» (o. c.).
O processo da formação do conceito vai desde a sensação até ao produto
como tal. Passa-se da sensação à imagem, mediante metáforas intuitivas, e
da imagem ao conceito através da «fixação», produzida pelo costume, de
uma metáfora ou conjunto de metáforas.

HISTÓRIA DE UM ERRO
1. O mundo verdadeiro, acessível ao sábio, ao piedoso, ao virtuoso:
este vive nele, é ele.
(Forma mais velha da ideia; relativamente inteligente, simples,
convincente. Transcrição da frase «Eu, Platão, sou a verdade.»)
2. O mundo verdadeiro, inacessível por agora, mas prometido ao
sábio, ao piedoso, ao virtuoso («ao pecador que faz penitência».)
(Desenvolvimento da ideia: torna-se mais subtil, mais insidiosa,
inapreensível – torna-se mulher, torna-se cristã...)
3. O mundo verdadeiro, inacessível, indemonstrável, mas já pensado
como uma consolação, um dever, um imperativo.
(No fundo, o velho sol, mas dissimulado pela névoa e pelo cepticismo;
a ideia tornou-se sublime, pálida, nórdica, regiomontana.)
4. O mundo verdadeiro – inantingível? De qualquer modo não
alcançado. E enquanto não alcançado, também desconhecido. Por
conseguinte, nem sequer consolador, salvador, imperativo: como é que
algo de desconhecido poderia obrigar?...
(Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. Canto de galo do
positivismo.)
5. O «mundo verdadeiro» – uma ideia que já não é útil para nada, e
também já não imperativa – uma ideia que se tornou supérflua,
prescindível; por conseguinte, uma ideia refutada; toca a eliminá-la!
(Dia claro; pequeno almoço; retomo do bons sens e da serenidade;
rubor de Platão; alvoroço endiabrado de todos os espíritos livres.)
6. O mundo verdadeiro foi por nós destruído: que mundo resta? talvez
o aparente?... Mas não! Com o mundo verdadeiro destruímos igualmente
o aparente!
(Meio-dia, momento da sombra mais curta; fim do mais longo erro;
culminação da humanidade; incipit Zarathustra [começa Zaratustra].)
Nietzsche, O Crepúsculo dos Ídolos, Lisboa, Edições 70, 2002, pp. 35-36.

Como se vê, é negado todo tipo de processo lógico na formação dos


conceitos e esta «acção» – diz Nietzsche – é o racional, produzido pela
capacidade de abstracção que o homem possui: em primeiro lugar,
generaliza as impressões, converte-as em conceitos e depois refere a eles a
sua própria vida (conhecimento e moral aparecem conjuntamente). E graças
a esta abstracção o homem pode fazer face ao devir, que o arrastaria de
intuição em intuição, sem possibilidades de sobrevivência, criando uma
ordem piramidal por castas e graus, um novo mundo de leis, privilégios,
subordinações e – sobretudo – «fixações de limites», mundo totalmente
contraposto ao mundo primitivo das primeiras intuições.
O olvido da natureza metafórica do conceito ajuda a representar não só
um grupo de coisas, mas também a colocar nele a sua mesmíssima forma ou
eidos. O conhecimento usa os conceitos como eixos de coordenadas da
realidade; de facto a tradição ocidental supõe que o conceito não recorta
arbitrariamente as articulações da realidade; pelo contrário, afirma que as
formas que a realidade assume correspondem exactamente aos conceitos
(categorias) que a mente humana foi forjando.
Nietzsche põe em dúvida que os conceitos apreendam a verdadeira
realidade do ser, que é devir e mudança. Existiria a Verdade (com
maiúscula) se fosse possível uma percepção exacta. Mas tal é impossível
para Nietzsche, porque entre o mundo do sujeito e o do objecto não são
possíveis correspondências lógicas (causalidade, finalidade, etc.). Só é
possível um comportamento «estético» que se sabe criativo e efémero.
Através das palavras e dos conceitos não se chega nunca a penetrar na
origem das coisas; nem sequer, afirma, as formas puras da sensibilidade e
da inteligência (o espaço, o tempo, a causalidade, etc.), proporcionarão
jamais algo que se pareça com uma verdade eterna.

b) Realidade e linguagem
É muito importante a relação entre filosofia e linguagem. Os conceitos
filosóficos desenvolvem-se em relação mútua e sempre fazem parte de
algum sistema conhecido. Até os filósofos mais diversos realizam por vezes
um certo «esquema básico» de filosofias possíveis; algo existente nos
conceitos os vai impelindo a suceder-se em determinada ordem,
precisamente a do parentesco inato entre eles. O filósofo não deve perder
isso de vista e deve, mais do que descobrir, «reconhecer», recordar as
origens, as primeiras pedras dos sistemas filosóficos.
Onde se situa essa origem, essa matriz do pensamento? Nietzsche
responde-nos com um exemplo: a semelhança filosófica entre as filosofias
indiana, grega e alemã deve-se à apriórica semelhança linguística. Existe
um centro comum que predispõe para certo esquema filosófico básico: a
filosofia da gramática, mais não é do que «domínio e direcção inconscientes
exercidas por funções gramaticais idênticas», que faz com que a estrutura
do sistema se encontre dada de antemão na própria linguagem. E, vice-
versa, cada estrutura gramatical limita o campo de interpretação, as
possibilidades de conceptualização do mundo.
Outro exemplo: os filósofos da área linguística uralo-altaica (na qual o
conceito de «sujeito» está pouco desenvolvido) provavelmente interpretarão
o mundo de forma diferente dos da área linguística indo-germânica ou
arábica. Mas isso não significa que Nietzsche identifique, sem mais,
pensamento com linguagem, porque as funções filosóficas gramaticais
apontam para algo fora da linguagem e do próprio pensamento, para as
próprias coisas, para o mundo em que nos movemos. Em última instância,
as funções filosóficas gramaticais são «juízos de valor fisiológicos e
condições de vida».
Outra coisa é o modo de solução «formal» que se estabeleça entre cada
filosofia e o respectivo esquema linguístico: poderá parecer que cada
sistema como tal está condicionado pela funcionalidade de cada gramática.
Mas Nietzsche duvida precisamente dessa formalização apriórica da
linguagem que o costume consagra e questiona-se se, precisamente, não
estamos a ser «enganados» pela própria linguagem. «A razão na linguagem:
Oh que velha fêmea enganadora!... Creio que não vamos desembaraçar-nos
da ideia de ‘Deus’ porque continuamos ainda a acreditar na gramática.»
(Crepúsculo dos Ídolos.)

2.1.4. Crítica das ciências positivas

Nietzsche crítica a ciência positiva porque é uma matematização do real.


Esta matematização não nos ajuda a conhecer as coisas, mas apenas a
estabelecer uma relação quantitativa com eles. Em A Gaia Ciência fala dos
mecanicistas – que coloca ao mesmo nível dos positivistas – de forma
depreciativa e diz que a sua metodologia científica se baseia no número, na
quantidade. A pura determinação quantitativa das coisas tende a anular as
diferenças que realmente existem entre elas, já que o modelo matemático da
natureza se baseia na quantidade, e não na qualidade própria de cada coisa,
e tende à igualização de todas.
Querer reduzir todas as qualidades a quantidades – segundo Nietzsche –
é um erro e uma loucura. Imaginemos que alguém queira apreciar o valor
de uma peça musical segundo o que dela pudesse ser pesado, contado,
calculado, etc.; semelhante apreciação científica da música seria
inteiramente absurda. O mesmo se passa com a relação dogmática entre o
devir do ser e o modelo matemático da natureza. Esta metodologia é guiada
por um imperativo e um critério de valoração: «lá onde o homem já nada
tem que ver e que agarrar, também nada tem que procurar» (Para Além do
Bem e do Mal). A ironia é ainda mais patente quando diz que os novos
filósofos, ou seja, os positivistas («operários da fisiologia») constituem uma
estirpe rude e laboriosa de maquinistas que apenas pretendem – de acordo
com o imperativo da ciência positiva – realizar trabalhos grosseiros.
O que é para nós uma lei da natureza, física ou química? Não é algo que
conheçamos em si, afirma Nietzsche; conhecemos apenas os seus efeitos,
isto é, a sua relação com outras leis da natureza, as quais, por sua vez, só
aparecem enquanto soma de relações. São-nos totalmente incompreensíveis
quanto à sua essência; e de facto, a única coisa que nelas conhecemos é o
que lhes trazemos: «o tempo, o espaço, isto é, relações de sucessão e
números». O que admiramos nas leis da natureza, o que reclama a nossa
atenção e nos poderia induzir a desconfiar do idealismo, está unicamente na
rigidez da matemática e na inviolabilidade das representações do espaço e
do tempo, representações que o homem produz com a mesma necessidade
com que a aranha segrega e constrói a sua teia.
Nietzsche não ataca a ciência em si mas uma determinada
metodologia (o mecanicismo e o positivismo do seu tempo). Este método
relaciona-se com a metafísica tradicional porque se inspira directamente na
lógica, redutora das diferenças, ou seja, na ontologia que trata do devir do
ser como se fosse uma aparência. Consuma-se o processo de matematização
da realidade a partir do momento em que prescindimos arbitrariamente das
qualidades próprias das coisas, pois o modelo matemático aponta para a
estabilização formal das relações entre mundo e homem. Mas este tipo de
relações só implica relações formais, isto é, externas.

A crítica à ciência e à sua ideia de progresso tem duas vertentes:

a) Ciência e moral. A ciência investiga o curso da natureza, mas nunca


pode dar uma ordem ao homem. A ciência só conhece quantidade e
número; nada sabe acerca da paixão, da força, do amor, do prazer, etc.;
aliás, nem a física, nem a química nem as matemáticas explicam o homem,
mas é este que explica aquelas. Isto é, a ciência – conhecimento
antropomórfico – está muito longe de poder fazer juízos de valor sobre a
vida, e por conseguinte também não pode fornecer nada que se pareça com
uma lei moral vinculadora.

b) Ciência e Estado. A ciência – diz Nietzsche – converteu-se em ama-


seca e está ao serviço dos interesses criados. Concretamente, o Estado
tomou-a ao seu serviço com o objectivo de a explorar para os seus fins (O
Livro do Filósofo, I). O «monstro mais frio de todos os monstros, o
Estado», tem na ciência o seu mais fiel servidor. O «golpe de estado» dado
pela ciência (Renascimento) à religião foi habilmente utilizado, não pelo
povo, mas pelo «príncipe».

2.2. O niilismo

O niilismo não é uma doutrina filosófica mas um movimento histórico


típico da cultura ocidental. Não se trata de um fenómeno parcial, nem de
uma idade concreta, mas da essência de todo um destino: o dos povos
ocidentais. A meditação acerca do niilismo, toma como objecto o que
aconteceu com a verdade do mundo supra-sensível, bem como as relações
desta com a essência do homem.
Nietzsche fez uma afirmação – «Deus morreu» – que nos revela a
essência deste pensamento sobre a história do Ocidente. E «Deus morreu»
significa que, por termos subtraído ao mundo supra-sensível a pretensa
função ordenadora das nossas existências, ficamos sem bússola, sem
sentido para atribuir a esta vida. Se Deus, como síntese do fundamento
supra-sensível e origem de todo o real, perdeu toda a sua força obrigatória e
sobretudo construtiva, é então óbvio que o homem perdeu totalmente a
orientação no mundo.
Ora, pensar a fundo na essência do niilismo mais não é do que repensar
até às últimas consequências a própria metafísica, entendida não como
platonismo ou outro sistema filosófico, mas na qualidade de armação
fundamental do que existe.
O niilismo tem dois rostos: um negativo, como essência da tradição
platónico-cristã, que explica a crítica destrutiva da tradição ocidental; outro
positivo, porque o niilismo – quer dizer, a reflexão acerca do mesmo –
supõe o reconhecimento das condições através das quais o Ocidente acaba
por ser niilista; é neste sentido que se elucidam as tentativas para escapar ao
niilismo.
Nietzsche, como europeu do século XIX não só pensou como sofreu as
consequências do niilismo; por isso mesmo, encontramos no pensamento
nietzscheano os três grandes «momentos» de tal movimento:

a) Niilismo como consequência imediata da destruição dos valores em


vigor até então; é o momento da tremenda dúvida, da desorientação radical
e da perda de sentido.

b) Niilismo como afirmação do próprio processo niilista enquanto


consequência necessária do pensamento platónico-cristão; é o momento da
reflexão, do distanciamento relativamente à tradição.

c) Niilismo como ponto de inflexão para uma nova perspectiva do ser e


do homem; é o momento da nova valoração da vida, da esperança, a
grande «aurora».

A MORAL COMO SINTOMATOLOGIA


É conhecida a exigência que faço ao filósofo: deve colocar-se para
além do bem e do mal – e ter deixado de si a ilusão do juízo moral.
Semelhante exigência deriva de um ponto de vista que foi, pela primeira
vez, por mim formulado: não há jactos morais. O juízo moral tem em
comum com o religioso crer em realidades que o não são. A moral é
unicamente uma interpretação de certos fenómenos; mais estritamente,
uma falsa interpretação. O juízo moral, tal como o religioso, pertence a
um estádio da ignorância em que até falta o conceito do real e a distinção
entre o real e o imaginário; de modo que «verdade», no sobredito estádio,
designa simplesmente coisas que hoje chamamos «imaginações». O juízo
moral jamais deve pois, tomar-se à letra: enquanto tal contém sempre só
contra-senso. Mas conserva um valor inestimável como semiótica, porque
revela, pelo menos ao douto, as mais valiosas realidades das civilizações
e interioridades que não sabiam o bastante para a si mesmas se
«compreenderem». A moral é somente uma linguagem de signos, simples
sintomatologia: importa saber de que se trata para daí tirar utilidade.
Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, Lisboa, Edições 70, 2002, pp 55-56.

O SER COMO DEVIR E VONTADE DE PODER


Contrariamente ao positivismo, que se limita ao fenómeno, eu diria
que «só há factos»; não, a bem dizer, não há factos, o que há são
interpretações. Não conhecemos nenhum facto em si: talvez seja um
absurdo pretender semelhante coisa.
Digo-vos que «tudo é subjectivo»; mas isto é já interpretação. O
«sujeito» não é nada dado mas algo acrescentado, imaginado, algo que se
esconde por detrás. Enfim, será preciso postular também uma
interpretação por detrás da interpretação? Isto é já poesia, hipótese.
O mundo é cognoscível na medida em que a palavra «conhecimento»
tiver algum sentido; mas é susceptível de muitas interpretações, e por isso
não tem nenhum sentido fundamental mas variadíssimos sentidos. É o
perspectivismo.
Uma «coisa em si» é tão absurda como um «sentido em si» ou como
uma «significação em si». Não há nenhum «facto em si» porque, para que
um facto se possa dar, ele deve ser sempre interpretado de algum modo.
A pergunta «o que é isto?» é a atribuição de um sentido partindo de
outra coisa. A «essência» é algo de perspectiva e pressupõe já uma
pluralidade.
O ser. A única representação que temos do ser é «viver». Por
conseguinte, como é que pode haver algo que morra?
Recapitulação: a mais alta vontade de poder é imprimir ao devir o
carácter de ser.
Opera-se uma dupla falsificação – uma que parte dos sentidos e outra
do espírito – para conservar um mundo do ser, da duração, da
equivalência, etc.
Tudo retoma, e nisso consiste a aproximação extrema de um mundo
do devir ao mundo do ser: é o auge da meditação
A condenação e a insatisfação do devir derivam dos valores atribuídos
ao ser: após se ter inventado um tal mundo de ser.
Nietzsche, A Vontade de Poder.

Este terceiro aspecto do niilismo é percorrido não pela reflexão da razão,


mas por algo instintivo, que Nietzsche denomina vontade de poder. Com o
niilismo, como objecto do pensamento do homem que tenta superar este
estado, abrem-se as portas a uma nova ontologia e antropologia
fundamentais. Mas antes de entrar nesse terreno devemos configurar, à
guisa de resumo, o que significa «Deus» na famosa frase «Deus morreu».
O que morreu foi o deus dos metafísicos, o deus monoteísta. «Os deuses
morreram (...) de riso ao ouvir um deles dizer que era o único deus»
(Assim Falava Zaratustra); ou seja, para Nietzsche, o monoteísmo da razão
(dogmatismo) obriga a rejeitar outras razões, outros «deuses». O niilismo
implica a opção pelo Uno, por uma única direcção de consciência, porque
se crê que verdadeiramente existe um sentido superior, sobrenatural, que
guia o homem através da razão. Os outros deuses são os que o politeísmo
venerara antanho: múltiplos, contraditórios, em eterna luta; daí que para
Nietzsche o «divino» não seja o facto de existir um deus mas deuses. A
pluralidade de perspectivas é condição de liberdade para o homem porque o
politeísmo sempre figurou o espírito livre e múltiplo do homem: a força de
criar-se novos modos de ver o mundo (A Gaia Ciência, II, 143).
É pois o deus monoteísta quem morre; o deus moral das contraposições
metafísicas entre bem e mal, entre mundo real e mundo aparente, entre bom
e mau. «Deus morreu» desvenda-nos então as duas faces anteriormente
estudadas do próprio niilismo: morre Deus-Uno-Todo-Poderoso (essência
da metafísica dogmática), mas renascem os deuses-múltiplos-finitos.
Através destes, Nietzsche tentará superar o estado niilista em que o homem
se encontra, quando reflecte sobre o pensamento ocidental e se dá conta de
que é o «assassino» de Deus.

2.3. A vontade de poder

Para Nietzsche, a realidade tem um carácter móvel, dinâmico,


incessantemente em mudança; numa palavra, a realidade é perspectiva.
Também a realidade vital (no seu sentido mais lato, tanto a vida humana
como a animal), é devir e perspectiva. Mas a vida é «interpretadora», isto é,
selecciona e interpreta o aspecto sob a qual enfrenta e se relaciona com a
realidade.
É impossível tentar levar a cabo uma compreensão fixa, essencial e
definitiva da realidade e não só porque a realidade seja devir, mas porque o
intelecto humano para realizar qualquer análise científica e pretensamente
objectiva, só pode servir-se das suas próprias formas de compreensão e de
interpretação, elas também sujeitas ao devir e à diversidade de perspectivas.
Como se vê, segundo Nietzsche há uma estreita relação entre a realidade
e a vida, entre o ser e a sua interpretação através do pensamento e da
linguagem; ou seja, entre ontologia e antropologia.

2.3.1. Interpretação da realidade


A realidade do mundo é múltipla enquanto tal e múltiplo é o ser humano
porque possui uma pluralidade de impulsos e instintos, cada um com a sua
própria perspectiva em luta constante entre si. A significação plural do que
se mostra nas várias perspectivas é dada mediante o leque de aspectos em
que se revela o ser. Esta multiplicidade converte-se em «aparência» quando
o que se nos revela numa perspectiva se fixa, ou fica estabelecido como o
único determinante, com o consequente menosprezo de todas as restantes
perspectivas e da sua inesgotável afluência mutável.
Por outro lado o ser «é devir», porque sempre se está fazendo, sempre
está por se fazer, sempre está em processo; um processo infinito, eterno,
sem possibilidade de fim. A concepção do ser como devir aponta para este
duplo sentido: para o ser como movimento permanente e para o ser como
resultado de um processo eterno; neste aspecto, a realidade do ser revela-se-
nos como mudança; não quantitativa mas qualitativa.
A ontologia nietzscheana combate – com argumentos que são
metafísicos também – a ontologia estática que via no devir uma simples
aparência. Este combate trava-se em pleno coração da metafísica e nele se
enfrentam dois tipos de argumentos: por um lado, os da metafísica
dogmática considerados superiores por provirem do mundo supra-sensível;
e por outro, os de Nietzsche, que são «irracionais», não por virem de algum
lugar alheio ao pensamento, mas por serem contrários aos da razão do
platonismo. Razão que pretendia fundamentar numa determinada
metafísica, numa moral e, inclusive, na ciência, a dualidade do mundo com
o consequente desprezo pelo âmbito dos sentidos, pelo chamado «mundo
aparente».
Contra o uno opõe Nietzsche o múltiplo, isto é, a pluralidade do ser em
suas manifestações, que mais não são do que as perspectivas (múltiplas e
irredutíveis) mediante as quais o homem aborda o mundo. Estas
perspectivas coincidem historicamente com as necessidades do homem e o
próprio facto de considerar o ser como devir torna absurda a pretensão de
delinear arbitrariamente essas múltiplas necessidades.
2.3.2. A nova ideia de verdade

O problema da verdade ganha agora um sentido diferente. A questão de


fundo já não é se um juízo é falso ou verdadeiro, mas se o juízo favorece ou
não a vida, se a conserva, se a torna maior. A lógica humana serve para
igualar, estabilizar e ter uma visão de conjunto. O ser por ela determinado é
somente aparência, mas uma aparência essencialmente necessária para o ser
vivo, isto é, útil para se afirmar e estabelecer dentro da constante mudança.
Portanto, a verdade, o estável ou, por outras palavras, o que pudemos
agarrar com os nossos conceitos no devir do ser, é unicamente a
consolidação de uma perspectiva, uma aparência que se impôs através do
costume, mas que nem por isso deixa de ser um erro, Daí que Nietzsche
afirme que «a verdade é aquela classe de erro sem a qual uma
determinada espécie de seres vivos não poderia viver. O valor para a
vida é o que decide em última instância». (A Vontade de Poder, III).
E este o sentido essencial da radicalidade do pensamento nietzscheano; a
que ele chama vontade de poder. Esta justifica – como condição necessária
para a afirmação da vida – o erro; a vontade de poder é, pois, vontade de
aparência, inclusive de ilusão, sobretudo em relação ao conhecimento que o
homem pode ter acerca do mundo. Mas esta vontade é mais profunda, mais
metafísica do que a vontade de verdade que imperava sob o reinado do
mundo supra-sensível. E é mais profunda porque conhece a realidade
autêntica do ser: o devir, e sabe que a razão humana não poderá jamais
abarcá-lo, totalizá-lo, nem simplificá-lo nas suas categorias.

2.3.3. A nova ideia da linguagem

Outro problema que Nietzsche transforma com a sua ontologia é o da


linguagem acerca do ser. Se as categorias, os conceitos, não nos servem
para abordarmos a realidade do devir, múltiplo e mutável, que outro meio,
teremos para falar do ser?
Contra a petrificação que o devir sofre ao ser fixado numa categoria que
o costume converte em imutável, exalta-se o poder da imaginação
metafórica que o homem possui. A metáfora é uma verdadeira perspectiva,
porque com ela se consegue uma integração de diversidades; esta
«metaforicidade metafísica» dá-nos a possibilidade de não cairmos no
dogmatismo platónico, porque a metáfora se mantém aberta ao mundo e
não fechada, como acontece com o modelo simplificador do conceito. Na
realidade, uma boa metáfora actua como se fosse um véu através do qual
contemplamos o mundo; filtra os factos, suprimindo alguns e pondo outros
em destaque.
Pois bem, empregar uma metáfora não é o mesmo que ser empregue por
ela, isto é, utilizar um modelo e confundir este com a coisa representada.
Neste caso, a focalização particular considera-se a única perspectiva
possível. É um filósofo dogmático quem assim pensa: confundiu a máscara
com o rosto. Por isso, a ontologia nietzscheana estabelece uma diferença
entre o metafísico dogmático que confunde o conceito, a categoria ou o
modelo com o ser, do outro metafísico – ele próprio – que tem consciência
de que a sua classificação dos factos é arbitrária e podia ser diferente. O que
separa um e outro metafísico é o modelo ou maneira de abordar o mundo: o
primeiro baseia a sua metafísica no conceito que, segundo Nietzsche,
simplifica e levanta obstáculos ao devir do ser; ao passo que o segundo se
baseia na metáfora. Unicidade e pluralidade são as atitudes respectivas
destas duas classes de metafísicos.
Esta exaltação, teórica e prática, da metáfora obedece ao facto de não
existir qualquer relação de causalidade lógica entre o mundo do objecto e o
do sujeito. A única relação metafísica possível é a relação artística, a
música, por exemplo. Porém, não se trata de uma «formalização» da arte,
mas da exaltação do aspecto mais fundamental da vontade de poder do
homem: a sua criatividade. Definitivamente, a linguagem sobre a realidade
não pode ser a da lógica, a das matemáticas, a da moral ou a da religião,
porque estas são apenas ficções da razão.
Onde melhor se avalia o significado nietzscheano de vontade de poder –
para com isso desfazer certas cargas políticas atribuídas a esta teoria –, com
a sua beleza original, isto é, sem conceptualizar, é na obra de juventude A
Origem da Tragédia. Nela, através das metáforas de Apolo e Dioniso, se
expõe que o homem tem necessidade de criar um estatuto próprio perante o
incessante devir da realidade. Graças a Apolo, deus da individualidade, o
homem pode resistir aos avatares do movimento contínuo da vida, com a
criação do conceito ou categorias lógicas que travam aparentemente o
devir; graças a este princípio de individuação é que sobrevivemos face à
totalidade dionisíaca. A vontade de poder perfila-se nitidamente no jogo
apolíneo-dionisíaco, precisamente naquilo que estamos a analisar, isto é, no
campo do conhecimento. Por outro lado, este material deve servir-nos para
compreender melhor a teoria antropológica de Nietzsche.

2.3.4. Ateísmo. Transmutação dos valores

A afirmação do pluralismo manifesta, por outro lado, o radical ateísmo


de Nietzsche. O ser como vontade de poder, criação de novos valores, auto-
afirma-se na sua própria produção (Deus morreu). Ainda são possíveis
novos valores – superação do niilismo – porque se redescobriu a pluralidade
dos sentidos que o ser tem. Define-se assim um devir criativo das forças,
um triunfo da afirmação da vida, desta vida terrena múltipla e em constante
movimento, um triunfo da vontade de poder.
Esta transmutação dos valores só e possível após haver assumido e
superado o niilismo. A vontade de poder afirma a terra, a vida total, no seu
aspecto construtivo e destrutivo, isto é, no mesmo sentido em que era
recusado. O niilismo considerava que o devir devia ser absorvido pelo ser,
pelo uno, pelo Deus, e que o múltiplo era algo equívoco, injusto, que teria
de ser julgado pelo uno. Contudo, a transmutação de todos os valores eleva
o múltiplo e o constante devir, que se convertem em objecto de afirmação a
favor da vida. E essa afirmação revela-nos a alegria, como único móbil
principal da filosofia: fortalecer a alegria perante a vida. «Vós, homens
superiores, aprendei a rir...» (Assim Falava Zaratustra).

2.4. A ideia de super-homem

A nova meditação sobre o ser foi produzida pela vontade de poder:


exaltação da criatividade do homem enquanto afirmação desta vida terrena.
Esta afirmação é eterna, por isso a vontade de poder atinge o mais alto grau
de reflexão no eterno retorno: devemos amar a vida de forma a querer voltar
a vivê-la porque, efectivamente, tudo volta a repetir-se eternamente. Este
amor eterno para com a vida proporciona ao homem o meio de se superar
continuamente. O homem é apenas uma ponte para o super-homem; neste
se apresentarão novas virtudes, novos valores. Entretanto, somente nos resta
– a nós, niilistas do século XX – ir preparando a sua vinda mediante a
«grande política».
O que é a grande política? É a preparação que possibilita ao homem a
superação (superação da moral antinatural, entende-se), o adestramento
(não «domesticação») que nos conduzirá até ao super-homem.
Nietzsche apresenta claramente a intenção mas não os «meios» para
conseguir essa finalidade. Renitente em apresentar sistemas, não nos dá
uma orientação suficientemente clara. Não faltam alusões ao super-homem
ao longo de toda a sua obra, mas a conclusão fundamental a este respeito
ficou por fazer, pois foi vítima de um ataque de loucura catorze anos antes
de morrer.
O primeiro discurso de Zaratustra expõe três metamorfoses do espírito:
como o espírito se transforma em camelo, como o camelo se converte em
leão e como o leão se transfigura em menino. O camelo simboliza aqueles
que se contentam com obedecer cegamente; basta-lhe ajoelhar-se e receber
a carga, suportar as obrigações sociais, obedecer sem mais aos valores que
se apresentam como crenças. O camelo que quer ser mais transforma-se em
leão, isto é, no grande negador, e simboliza o niilista que recusa todos os
valores tradicionais. Mas também o leão tem necessidade de se transformar
em menino, de superar a sua auto-suficiência para poder viver livre de
preconceitos e criar uma nova tabela de valores.

DO HOMEM AO SUPER-HOMEM
Vou mencionar três transformações do espírito: como o espírito se
converte em camelo, o camelo em leão e, por fim, o leão em criança.
Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e
paciente habitado pela veneração: a sua força pede coisas pesadas,
mesmo as mais pesadas que há.
O que é pesado? É a pergunta do espírito paciente, que se ajoelha, tal
como o camelo, e quer ser bem carregado. O espírito paciente carrega
com todas estas coisas, com as mais pesadas: tal como o camelo que
corre para o deserto com a sua carga, também o espírito corre para o seu
deserto.
Mas no lugar mais ermo do deserto tem lugar a segunda
transformação: aí o espírito transforma-se em leão e quer conquistar a sua
liberdade, tal como se conquista uma presa, e ser senhor do seu próprio
deserto.
Aí procura o seu último senhor: quer converter-se em inimigo dele e
do seu último deus, quer lutar com o grande dragão para alcançar a
vitória.
Quem é o grande dragão ao qual o espírito não quer continuar a
chamar senhor nem deus? «Tu deves» chama-se esse grande dragão. Mas
o espírito do leão diz «eu quero».
O leão também não é capaz de criar valores novos: mas criar-se
liberdade para um novo criar, disso, sim, o poder do leão é capaz.
Criar-se liberdade e dizer um não puro inclusive perante o dever: para
isso, meus irmãos, precisamos do leão.
Mas, dizei-me, irmãos meus, o que é que a criança é capaz de fazer
que o leão não conseguiu? Por que razão o leão-rapaz tem de se converter
em criança?
A criança é inocência e olvido, um novo começo, um jogo, uma roda
que se move por si mesma, um primeiro movimento, é dizer um sim puro.
Se para o jogo de criar é necessário dizer um sim puro, então, meus
irmãos, o espírito quer agora a sua vontade, e aquele que estava fora do
mundo conquista agora o seu mundo.
Mencionei-vos três transformações do espírito: como o espírito se
converteu em camelo, o camelo em leão e, por fim, o leão em criança,
Nietzsche, Assim Falava Zaratustra.

A moral do homem superior propõe uma revolta contra a


degenerescência da humanidade resultante do facto de o cristianismo haver
domesticado o homem para o converter num animal aprisionado. A nova
moral pretende estar ao serviço do super-homem, ao serviço da recuperação
dos instintos vitais do homem; ou seja, quer transformar o homem que,
domesticado pelo cristianismo, se transformou em mesquinho, medíocre,
prudente, servil, indiferente, preguiçoso, dócil, esquecendo a sua verdadeira
essência existencial: a sua vontade de poder.
O homem superior não atende aos preconceitos das pessoas; não
acredita na «igualdade» que, afirma, é apenas uma artimanha dos débeis
de espírito, dos cristãos e dos socialistas. O homem superior diz sim às
hierarquias e à inalienável diferença que tem de existir entre os homens. A
igualdade só conduz a uma moral de rebanho de escravos. As características
do homem como animal de rebanho devem ser rejeitadas; a sua mansidão,
docilidade, a sua alienação espiritual. Devemos possuir uma sã
desconfiança em relação a tudo o que vem da plebe, do rebanho social,
porque «é muito difícil destruir com razões aquilo que noutro tempo ela
aprendeu a acreditar sem razões». Deve ainda duvidar-se dos «doutos», que
odeiam o homem superior porque odeiam a vida.
O homem superior, na sua liberdade, está para além da doutrinação; não
se deixa convencer pelos «oradores do mercado» nem pelo «partido». Ama
o homem para além das suas unilateralidades porque o vê não como é, mas
como o que é preciso superar. A vida transforma-se em experiência. Deus
morreu e só resta o homem como possibilidade aberta ao super-homem,
Nota-se aqui a influência de Darwin: porquê considerar o homem como a
última etapa na evolução das espécies? Mas o interesse de Nietzsche é
radicalmente diferente. A vida como experiência significa a existência de
possibilidades fundamentais para viver cada dia com mais força e amor à
vida.

Henri Bergson
Henri Bergson nasce em Paris em 1859 e morre em 1941, em plena ocupação nazi, quando
se desencadeavam em França as medidas anti-semitas. Foi professor no Colégio de França e
Prémio Nobel de literatura em 1928. Poucos filósofos, como Bergson, gozaram ainda em vida
de tanta popularidade e difusão das suas obras.
Por um lado, a filosofia de Bergson está em estreita relação com o positivismo do século
XIX e com o espiritualismo francês, por outro, tentando original simbiose com os dois
extremos. «Do positivismo à metafísica» poderia ser o lema desta filosofia que se evidencia no
seu problema último: Deus. A filosofia de Bergson será, quanto a este ponto, a busca e
possibilitação de uma experiência de Deus, uma superação do positivismo, no sentido mais
estrito da palavra.
O seu pensamento filosófico, profundamente enraízado na ciência do seu tempo, deve ser
entendido como uma tentativa de fundamentar com investigações metodológicas a necessidade
de compreender os princípios do conhecimento científico como funções de um grau
determinado da «vida» metafísica.
Por outras palavras, a filosofia de Bergson não é – como nunca é nos grandes pensadores –
um ex abrupto arbitrário à medida de um gosto particular. Bergson aborda o problema da
relação sistemática entre o conhecimento científico e a metafísica, num clima de efervescente
positivismo, de crítica científica, de polémica espiritualista, de reivindicações kantianas. Como
escreveu Zubiri, numa das suas Cinco Lições de Filosofia, «Bergson tem de recuar até à própria
raiz de onde emerge a ciência».
Para superar o positivismo cego, Bergson encontra o ponto de apoio na peugada do
positivismo evolucionista de Spencer: «o que me atraiu em Spencer» dirá em determinado
momento da sua vida, foi o seu desejo de unir o espírito ao terreno dos factos». Um esforço para
transferir os princípios positivos para o campo das ciências humanas e da cultura – entenda-se
com isso a religião – valendo-se da evolução para explicar toda a realidade – tal é a síntese
bergsoniana. Porquê assumir o princípio explicativo da evolução? Porque é no processo da
evolução que a matéria e a natureza espiritual do homem caminham harmonicamente integradas.
Bergson dá estrutura dorsal e consistência a tal síntese com a ideia matriz de que a realidade
é duração real. E a consciência é o lugar privilegiado de demonstração de que a realidade é
duração: é o meio onde se unem a experiência e a intuição ou, dito de outro modo, o lugar onde
se abre, por assim dizer, a verdadeira experiência, essa nova e mais radical forma de
experiência que Bergson concebe, que não deve ser entendida como a aproximação (externa)
das coisas e às coisas, mas como a captação das coisas a partir de dentro. A intuição é, por isso,
a «alma» da verdadeira experiência: o acto que nos coloca dentro das coisas. Não um acto
estático – seria uma contradição – a modo de comprovação, mas uma actividade viva que vive e
convive o processo, a própria duração da realidade.
A intuição, acompanhando de dentro o processo durativo da realidade, é ela mesma duração.
Por essa coincidência entre intuição e duração se aplica que Bergson contraponha a intuição à
inteligência, porque a inteligência, fria e abstracta, construtora de conceitos, analítica e imóvel,
considera desagregadamente a realidade. Daí que a ciência seja o seu domínio. Mas,
definitivamente, a raíz da inteligência, enquanto assim opera, analítica e cientificamente, é a
própria vida.
A intuição, no próprio interior da realidade, não é inimiga do conceito: apenas necessita da
singularidade única do conceito, essa hipotética singularidade que precede a generalização ou a
abstracção. A intuição, portanto, não se opõe estritamente à inteligência, antes neutraliza a sua
diferença e a faz recuar à própria fonte onde a verdade – a verdade científica – o é em toda a sua
plenitude e radicalidade.
Duas obras de Bergson apresentam sistematicamente estas ideias: em primeiro lugar,
Matéria e Memória (1896), cujo sentido é estabelecer a continuidade entre matéria e espírito;
em segundo lugar, A Evolução Criadora (1907). Finalmente, a grande obra As Duas Fontes da
Moral e da Religião (1932) extrai, por assim dizer, as consequências do sistema levando-o até
ao próprio tema de Deus. Moral e religião são, para Bergson, algo mais do que meros produtos
sociais, embora exista uma dimensão estática de moral e religião na qual ambas ficam reduzidas
ao horizonte conservador – dominado pela espécie – do mero apego à vida.
Para além disso, o homem – pelo menos alguns indivíduos – é capaz de superar o domínio da
inteligência e recolher o impulso criador, e continuá-lo, superando o nível estático da moral e
religião até transcender plenamente o impulso vital que, em definitivo, «é de Deus, ou é o
próprio Deus».
Os místicos simbolizam ou, mais exactamente, são os homens que converteram e convertem
num facto a aspiração do espírito a Deus. A moral e a religião dinâmicas não tiveram, segundo
Bergson, uma realização concreta na história. No entanto os profetas de Israel e os místicas
cristãos são, a seus olhos, exemplares protótipos do que a filosofia quer exprimir.
Em todo o caso seria errado qualificar esta filosofia como religiosa: o que deve entender-se é
que Bergson defendeu a metafísica como experiência humana plena e total.

O homem superior ri-se dos valores do mundo supra-sensível, sabe que


foi ele próprio quem os criou e que só a vida possui carácter de
obrigatoriedade. Por isso – diz Nietzsche – o homem superior é um menino
e um grande bailarino; porque o menino não tem preconceitos, é inocente,
joga apenas com a vida; quanto ao bailarino, fez do jogo um risco
permanente, passeia-se pela corda bamba do devir, faz da sua vida um
contínuo experimentar-se a si próprio. O homem superior é, em suma, o que
se afirma no devir da vida sem necessidade de criar subterfúgios ou outros
mundos com as quais consolar a angústia produzida por um espírito incapaz
de dominar a imagem trágica do mundo.
A moral do homem superior encerra dois perigos:

a) os seus critérios são fundamentalmente de ordem estética – isto a


nível formal;
b) a outro nível, Nietzsche via certa beleza nos «furores da besta
germânica».

Quanto a este ponto, não é de estranhar – apesar de algums


comentaristas incondicionais – que algumas ideologias políticas se tenham
sentido tão atraídas por semelhantes pensamentos.
Além disso, a moral do super-homem descura (de acordo com a sua tese
individualista) a preocupação pelas regras que permitem a sobrevivência da
comunidade e que asseguram a coexistência dos indivíduos.
Aprofundando mais poderia parecer que o homem superior é a imagem
profética de certos aspectos da sociedade pós-capitalista europeia. E no
entanto a questão é muito mais complexa porque: «Lá onde o Estado acaba,
olhai irmãos meus! Não vedes o arco-íris e os poentes do super-homem?».
3. O RACIOVITALISMO DE ORTEGA Y
GASSET

3.1. O conceito orteguiano de filosofia

A filosofia não surge por razão utilitária, nem por capricho. A filosofia é
«constitutivamente necessária ao intelecto» e tem como característica
radical o afã de procurar e capturar a verdade do todo como tal. Seria talvez
uma tarefa mais simples se lhe atribuíssemos um objectivo mais comum:
contentarmo-nos com o que, sem filosofar, encontramos perante nós. Isto é,
contentarmo-nos com o que tocamos, somos ou calculamos. Todavia a
razão da filosofia é apenas a rebeldia radical frente a essa pretendida
imediatez da consciência ingénua que unicamente se contenta com o que
está aí como patente e dado. Não há nada mais afastado dessa atitude do
que a filosofia, que toma o dado de forma problemática, pois que o filosofar
consiste em «dar ao mundo a sua integridade, completá-lo em Universo e
à parte construir-lhe um todo onde se aloje e descanse» (O Que é a
Filosofia, V).
O dado, que para outro tipo de conhecimento surge como suficiente em
si, é no entanto considerado pela filosofia como insuficiente e fragmentário;
e portanto há que remetê-lo a algo que não é ele próprio. Segundo Ortega, a
filosofia aspira a este «ser fundamental» do mundo.
Este ser fundamental, objecto de consideração filosófica, apresenta duas
características radicais: 1) que, por sua própria essência, não é um dado, não
é um presente para o conhecimento, mas precisamente o que falta a todo o
presente; 2) é radicalmente heterogéneo de todo o ser intramundano.
Filosofia é portanto «conhecimento do Universo ou de tudo quanto
existe». O filosofar tem para Ortega alguns traços característicos:

a) em primeiro lugar, filosofar é pôr-se um problema absoluto, isto é,


não partir tranquilamente de crenças prévias;
b) esta situação radical impõe ao pensamento do filósofo uma
característica que Ortega denomina imperativo de autonomia. Trata-se
de um princípio «metódico»: a recusa de se apoiar em algo anterior à
própria filosofia;

A FILOSOFIA, SABER RADICAL


A filosofia é um saber radical porque se debruça sobre os problemas
últimos e primeiros, ou seja;os problemas radicais: e porque se esforça
em pensá-los de modo radical. É este radicalismo do pensamento
filosófico que o distingue dos outros modos de conhecimento, sobretudo
das ciências porque estas, longe de se proporem problemas radicais, por
princípio só admitem problemas susceptíveis de solução, problemas
mansos, como animais domésticos, problemas que só o são na medida em
que já estão antecipadamente meio-resolvidos e que entram na
investigação como os leões amansados na pista de circo, ou seja,
previamente narcotizados. Os problemas da filosofia são os problemas
absolutos e são absolutamente problemas, sem qualquer limitação ao seu
terrível brio; são os problemas ferozes que oprimem e angustiam a
existência humana, que o homem carrega e sofre permanentemente, e que
não oferecem qualquer garantia de solução: por acaso não são
solucionáveis nem nunca o serão. Por isso a filosofia é o único
conhecimento que para ser o que tem de ser não precisa de encontrar a
solução dos seus problemas, e por isso não precisa de ser bem sucedida
em tal tarefa. Mesmo sendo um perpétuo fracasso, está perpetuamente
justificada como ocupação humana porque a força da filosofia,
contrariamente aos outros modos de conhecimento – ciência, técnicas,
sabedoria vital ou saber mundano, etc. –, não se baseia em encontrar
soluções mas na estabilidade dos seus problemas,
Ortega, Sobre a Razão Histórica.

c) junto com o anterior actua um outro princípio: o universalismo, o afã


intelectual para o todo, o que Ortega chama pantonomia. O filósofo
não pode ficar prisioneiro do imperativo de autonomia, de costas para o
mundo, mas tem de voltar-se «de frente para o Universo e conquistá-lo,
abarcá-lo por inteiro»,
d) finalmente, a filosofia é um conhecimento teórico, um conjunto de
conceitos e, neste sentido estrito, consiste em ser conteúdo mental
exprimível e intersubjectivo.

Sublinhar a teoricidade da filosofia tem uma finalidade clara e


proveitosa: assim como se delimitou o campo de acção entre a filosofia e as
outras ciências, é preciso também delimitá-lo em relação ao misticismo.
Para Ortega, o que não se pode dizer, o indizível ou inefável não é um
conceito: um conhecimento que consista em «visão inefável do objecto»
pode ser tudo menos filosofia. Se a hora do místico é a noite, a hora do
filósofo (que aspira a emergir do fundo para a superfície e não o contrário)
só poderia ser a do «pleno meio-dia».
Efectivamente, a filosofia é um enorme desejo de transparência, de
desvelamento (alétheia) ou manifestação de algo, isto é, de falar (logos).
Mas visto que a filosofia é alétheia e logos, muitos mais motivos haverá
para ser ontologia: uma fala que nos descubra o ser das coisas (O Que é a
Filosofia, V).

3.2. Crítica do realismo e do idealismo

No entender de Ortega, o desenvolvimento da filosofia, enquanto


necessidade de clarificação da realidade, exige antes de mais uma crítica do
realismo e do idealismo.
Abordaremos esta crítica a partir do problema da ciência. Diz Ortega em
História como Sistema (IV) que a ciência está em perigo porque a fé que o
homem moderno nela depusera foi esfriando ao longo das últimas décadas.
Viu-se na ciência a panaceia de todos os problemas, mas a realidade é
muito diferente. Em concreto, a ciência, que paradoxalmente quer abarcar
todo o Universo, nada tem para dizer sobre o ser humano. Ou seja, ao
tornar-se manifesta a urgência em tomar parte nos problemas mais
humanos, a ciência físico-matemática ou razão naturalista (realismo
exagerado) não soube o que dizer.

José Ortega Y Gasset


(1883-1955). Nasceu em Madrid. Durante a sua juventude estudou com os jesuítas de
Málaga. Foi catedrático de metafísica a partir de 1911, na Universidade Central. Jubilado em
1936, o seu ensino activo continuou até 1952. Discípulo de Hermann Cohen, em Marburgo e,
portanto, de uma sólida formação neokantiana, não se identificaria no entanto com esta escola.
Embora seja verdade que entre 1902 e 1910 defendeu uma tendência objectivista, que chegava a
afirmar o primado das coisas e das ideias sobre as pessoas, a partir de 1914 – de forma oficial –
o seu pensamento abandona estes estratos. Podemos destacar dois períodos: o período
perspectivista(1914-1923) e o chamado período raciovitalista de 1923 aos finais da sua vida.
Entre as suas obras «filosóficas» – sem esquecer a sua enorme produção literária, pois Ortega
era um grande escritor (Bergson afirmou que mais do que filósofo, era um grande jornalista) –
destacamos as seguintes: História como Sistema (1914), Verdade e Perspectiva, publicada em
El Espectador (1916), Em torno de Galileu (1933), A Ideia de Princípio em Leibniz (1958), O
que é a filosofia (1958); e os seus cursos universitários de 1910 a 1936, publicados sob o titulo
Algumas Lições de Metafísica (1966).

A razão naturalista ou realista detém-se ante a estranha realidade que é a


vida humana. A causa, profunda e radical – diz Ortega – é que o homem
não é uma coisa; é falso falar da «natureza humana». A vida humana não é
um objecto, não é uma coisa, e por isso não possui uma natureza. «O
homem não tem natureza, mas história» (História como Sistema, VIII).
Perante esta situação deficitária, o homem moderno viu-se desiludido
ante a ciência, porque se dá conta de que o humano «escapa à razão físico-
matemática como a água por uma peneira». É esse o único motivo por que a
fé nessa razão entrou em deplorável decadência.
Ora, isto quer dizer, desde já, que é preciso repensar a vida humana com
novas categorias ou conceitos radicalmente diferentes daqueles que
esclarecem os fenómenos da matéria. A razão naturalista ou realista serve
sempre e quando o seu objecto de conhecimento seja coisa; por exemplo, o
movimento dos astros. Mas se pretendemos abordar o tema da vida humana
com esses mesmos cálculos (os do naturalismo físico-matemático), estamos
a imaginar uma razão de continuidade entre dois objectos de conhecimento,
como se ao tratar da vida humana estivéssemos a investigar uma natureza.
Mas, como já se disse, isto é falso.
A alternativa histórica apresenta-se aos olhos de Ortega sob o nome de
«ciências do espírito». Efectivamente, os espiritualistas ou idealistas
arremetem contra a razão físico-matemática de investigar o humano
contrapondo o espírito à natureza. Mas isso é outro erro que começa na
interpretação eleática do ser e consiste em tratar as realidades (corpos ou
não) como se fossem ideias, conceitos. O idealismo ou espiritualismo cai no
mesmo equívoco do realismo: tratar as coisas ou as ideias como
identidades, isto é, como naturezas determinadas perenemente constituídas.
Ortega interroga-se (na lição XIV de Algumas Lições de Metafísica)
como foi que o idealismo – concretizado na figura de Descartes – pôde
cometer essa inconsequência com o seu próprio ponto de partida, que o
instava a reconhecer como radical realidade apenas o imediato. E a resposta
é que o idealismo conserva dentro de si, inconscientemente, a tendência
realista que consiste, como já se disse, em crer que o real, o
verdadeiramente existente, é o que existe fora de mim. Quando o idealismo
se vê obrigado a reconhecer que uma coisa existe porque depende de mim,
«porque está presente perante mim», acrescenta um raciocínio de recorte
realista: a sua realidade é algo independente (como diz o realista), mas
agora o independente é o meu pensamento, o sujeito pensante cartesiano,
que se interpreta aliás como res cogitans, como uma coisa que pensa.
Não é de estranhar, pois, que ambas as críticas (ao idealismo e ao
realismo) apareçam juntas, pois trata-se do mesmo erro. Mas também
porque Ortega explica a sua própria ideia sobre o assunto precisamente na
linha dessa dupla crítica: «A necessidade de superar e transcender a ideia de
natureza procede precisamente de que esta não pode valer como realidade
autêntica, pois é algo relativo ao intelecto do homem» (O Que é a Filosofia,
VI).
Ora, esta relatividade da natureza a respeito do intelecto do homem não
tem por sua vez realidade, considerada à parte (este é o erro específico de
todo o idealismo) a não ser «funcionando numa vida humana». Portanto, a
afirmação orteguiana pode ser formulada assim: tanto a natureza como o
intelecto são relativizados pela única realidade radical, que é a própria
vida humana.

3.3. O conceito de vida como realidade radical

Vimos que filosofia é apenas o «conhecimento do Universo ou de tudo o


que existe». Mas devemos dar outro passo em frente, o mais decisivo: que
realidade do Universo é a mais indubitável? Por outras palavras, o primeiro
problema filosófico consiste em determinar qual o elemento do Universo
que nos é dado de forma tal que escape a qualquer tipo de dúvida.
Ortega acha que essa realidade radical não é a consciência, o sujeito,
como pensava o idealista contra o realista, mas a vida, «que inclui – além
do sujeito – o mundo (O Que é a Filosofia, XI).
A realidade radical é pois a nossa vida, a de cada um em particular.
Não existe outra realidade mais indubitável, Nem o pensar é anterior à vida:
o pensamento é um fragmento de um sujeito determinado que simplesmente
vive. O próprio facto de «fazer» filosofia, o acto de filosofar, é apenas uma
«forma particular do viver que supere este próprio viver», pois sinto a
própria indagação filosófica como «um anseio da minha vida». Qualquer
tipo de realidade supõe sempre de antemão outra realidade que a
fundamenta: a nossa vida.
Reparemos no título desta secção: «o conceito de vida como realidade
radical». Com ele queremos destacar que Ortega não trata de potenciar
simplesmente a vida, como realidade radical, mas de potenciar um novo
conceito de realidade radical, distinto do antigo (realista) e do moderno
(idealista). É precisamente aqui que o pensamento orteguiano atinge as
alturas mais autênticas, pois, levando até as últimas consequências o
próprio sentido que a filosofia tem para ele (alétheia – logos – ontologia),
não se contenta com a mera descrição da vida (coisa que a fenomenologia,
que Ortega conhecia perfeitamente, já realizara), mas de formular uma
teoria sobre a vida como realidade radical e que pretende ser essencialmente
diferente da concepção ontológica tradicional.
Não resta a menor dúvida, pois, de que por detrás do conceito de vida
como realidade radical, se esconde uma teoria da realidade. A explicação
desta teoria esclarecer-nos-à, em última análise, porque é que a vida aparece
como realidade radical na filosofia de Ortega.

DO CONCEITO À RAZÃO VITAL


Revela-se pois oportuno perguntarmo-nos: quando é que temos o
conceito de algo, exceptuando a altura em que estamos a ver esse algo? O
que é que o conceito nos proporciona a mais do que a visão? Temos o
conceito do bosque quando sentimos o bosque à nossa volta como um
braço misterioso, mas o que é que ganhamos com isso? Na verdade, o
conceito apresenta-se-nos como uma repetição ou reprodução da própria
coisa, trasladada para uma matéria espectral. Faz-nos lembrar aquilo que
os Egípcios apelidavam de o duplo de cada ser, a duplicação alegórica do
organismo. Comparado com a própria coisa, o conceito não é mais do que
um espectro, ou menos ainda do que um espectro.
Por conseguinte, ninguém no seu perfeito juízo se lembrará de trocar a
sua fortuna em coisas por uma fortuna em espectro. O conceito não pode
ser como uma coisa nova e subtil destinada a suplantar as coisas
materiais. Deste modo, a missão do conceito não ajuda ao desalojamento
da intuição, não ajuda a impressão real. A razão não pode, não tem que
aspirar a substituir a vida.
Esta mesma oposição, hoje tão usada por aqueles que não querem
trabalhar, entre a razão e a vida é desde logo suspeita. Como se a razão
não fosse uma função vital e espontânea da mesma categoria que a visão
ou o tacto!
Ortega, Meditações do Quixote.

Ainda que fecundo, é hoje claro que foi um erro de Sócrates e dos
séculos posteriores. A razão pura não pode suplantar a vida: a cultura do
intelecto abstracto não é, perante a vida espontânea, outra vida que se
baste a si mesma e que possa desalojar aquela. É tão-somente uma breve
ilha flutuando sobre o mar da vitalidade primária. Longe de poder
substituir esta vitalidade, tem que apoiar-se e alimentar-se dela, tal como
cada um dos seus membros vive do organismo inteiro.
Isto não significa um regresso à ingenuidade primitiva como aquela
que Rousseau pretendia. A razão, a cultura more geométrico, é uma
aquisição eterna. Mas é preciso corrigir o misticismo socrático,
racionalista e culturalista que ignora os limites da razão ou não deduz
fielmente as consequências dessa limitação. A razão é apenas uma forma
e função da vida. A cultura é um instrumento biológico e nada mais.
Situada perante e contra a vida, representa uma subversão da parte contra
o todo. Urge reduzi-la ao seu lugar e função.
Ortega, O Tema do Nosso Tempo.

O ser do mundo, diz Ortega, não é alma nem matéria, mas


perspectiva. A perspectiva é uma condição gnosiológica do real, pois a
estrutura da realidade só se nos apresenta sob pontos de vista determinados,
os quais por sua vez precisam de se integrar sob múltiplos termos, faces ou
aspectos. A perspectiva, apesar de ser única e intransmissível (é a minha
perspectiva), não aspira de modo algum a absolutizar o mundo mas,
precisamente porque sabe que o mundo é pluralidade de perspectivas,
apenas se considera como um ponto de vista mais. A única forma de
abordar a realidade do mundo – que nos é dada em diferentes perspectivas –
será multiplicando os pontos de vista e assumindo essa irredutível
multiplicidade. Mas a perspectiva assim entendida seria tão absurda como a
idealista sobre o ser; daí que a perspectiva se encontre inelutavelmente
aparentada a uma determinada circunstância, que mais não é do que aquilo
que nos limita, a nossa própria peculiaridade dentro do mundo. Não se trata
de uma circunstância biológica, mas humana e sobretudo histórica, Por isso,
Ortega afirma que somos essencialmente circunstanciais e que o
conhecimento deste facto deveria fazer-nos esquecer os valores hieráticos
que ditam perspectivas eternas. Tanto aqueles como estas são impossíveis
para as que pensam e estão conscientes do que está ao seu redor.
Assim apresentada, a teoria orteguiana da realidade dificilmente
escaparia ao naturalismo da posição realista; mas junto à circunstância e à
perspectiva, surge uma outra realidade irrefutável: o eu.
O eu não é um ingrediente da circunstância: de modo algum sou nela um
elemento passivo, mas nela trabalho e elaboro a minha vida, o meu projecto
humano. A circunstância por si só não é nada; só adquire consistência e
radicalidade quando a aparentamos com o sujeito que a vive. É a
personagem quem confere carácter de mundo ao que, sem ele, apenas teria
o carácter de natureza. Portanto, o fulcro da teoria da realidade, o que dá os
diferentes sentidos sobre o real, só poderia ser a vida humana; qualquer tipo
de realidade se constitui como tal única e exclusivamente em relação a ela.
Por isso, a minha vida é a realidade radical, que conheço se noto que eu sou
eu e a minha circunstância.
Por que razão assumo a minha posição no mundo, a minha
circunstância, e sobretudo o meu ponto de vista como conjunto teórico-
prático que me aproxima da verdade? – pergunta Ortega em Verdade e
Perspectiva. Radicalmente porque o mundo é assim, a sua estrutura é-nos
dada de forma perspectivista e parcialmente verdadeira, Por isso dizíamos
anteriormente que o conceito de vida como realidade radical não apontava
para uma mera descrição de fenómenos vitais, mas para algo mais
profundo, mais metafísico se quisermos: uma teoria da realidade, que de
modo algum se revela à margem da vida, mas nela e por ela.

3.4. As categorias da vida

Se antes definimos a vida como uma nova realidade radical e fizemos


finca pé no sentido filosófico desta ideia, temos de abordar agora os seus
«atributos» – como diz Ortega (O Que é a Filosofia, XI). Trata-se de
procurar determinadas categorias com as quais, por fim, possamos definir
melhor a vida. Não a vida em geral, não a outra vida – quer seja a do físico
ou a do místico – mas esta, a minha, a humana. Ortega entende por
categorias da vida «os conceitos que exprimem o viver na sua exclusiva
peculiaridade».

a) Viver é, antes de mais, encontrar-se no mundo. Mundo não é aqui


natureza como acreditavam os antigos, mas o «vivido como tal». Esta é pois
a primeira categoria da vida: eu no mundo; «dou-me conta de mim no
mundo, de mim e do mundo – isto é, de imediato, viver» (O Que é a
Filosofia, XI).

b) Mas não nos encontramos no mundo de uma forma vaga, mas


concreta: estamos ocupados com algo. «Eu consisto em ocupar-me com o
que há no mundo e o mundo consiste em tudo aquilo de que me ocupo e em
nada mais.» Por isso «viver é conviver com uma circunstância».

c) Mas «todo o fazer é ocupar-se de algo para alguma coisa». Estamos


ocupados com algo para uma finalidade em vista da qual ocupamos a nossa
vida de uma forma determinada. A vida não está nunca pré-fixada. Não está
prevista; é imprevista. É possibilidade e problema.

d) Portanto, eu decidi fazer o que faço; fui livre ao decidir-me por este e
não por aquele trabalho. Nada se nos dá feito; por isso, a vida é mais decidir
do que fazer. Vida é antecipação e projecto.

e) Ora, se decido é porque tenho «liberdade para...», ou seja, posso


escolher. Isto é fundamental, pois o poder de decisão dependerá sempre de
haver ou não possibilidades face ao que tem de decidir-se. Com palavras de
Ortega, decidimos «porque viver é encontrar-se num mundo não-hermético,
que oferece possibilidades».

f) Mas essas possibilidades não são absolutamente ilimitadas. «Para que


haja decisão tem de haver simultaneamente limitação e liberdade,
determinação relativa. Isto exprimo com a categoria circunstâncias» (o. c.,
XI). Quer isto dizer que a vida se apresenta sempre concretamente ou, por
outras palavras, sob uma determinada disposição através da qual se perfilam
homens e coisas. O mundo vital é pois essencialmente circunstancial;
dentro da circunstância, terá de decidir-se o homem, isto é, assumindo
plenamente a «sua» circunstância.

g) E acabamos por abordar a última categoria: a temporeidade. «Se a


nossa vida consiste em decidir o que vamos fazer, quer dizer que na raíz
mesma da nossa vida há um atributo temporal: a vida é futurização» (o. c.,
X). Esta categoria desempenha um papel extraordinário e a dois níveis: um
nível ontológico (com o qual se traça totalmente a teoria da realidade); e um
nível gnosiológico.

1. Se, como vimos, a vida é essencialmente perspectiva, e toda a


perspectiva é móvel, dinâmica, porque a própria realidade o é, agora
podemos estabelecer claramente que a raiz dessa mobilidade é a
temporeidade da própria vida humana. A substância da vida é o tempo, a
mudança. Muda a perspectiva porque existe um irredutível desajuste entre o
passado e o futuro do homem, o que ocasiona no presente um contínuo
dinamismo.
Ortega afirma metaforicamente que a semente heraclitiana deu já o seu
maior fruto; o ser como perspectiva; «o ser não é estático, mas movimento
contínuo».

2. A consistência temporal da realidade especificamente humana obriga-


nos a desnaturalizar todos os conceitos referentes ao fenómeno integral da
vida humana para os submeter a uma radical historização.
A abordagem gnosiológica desta categoria da vida conduz-nos ao limiar
da última evolução do pensamento de Ortega. Nele veremos que todo o
conceito com pretensões de representar alguma realidade humana inclui
uma data ou, o que é o mesmo, que toda a noção referente à vida humana é
função do tempo histórico.

3.5. A vida e história: a razão vital

O conceito de razão vital (como o de razão vivente e de razão histórica)


não é um sintoma de concessão ao irracionalismo. A sua distinção do que
Ortega chama «razão pura» não é de modo algum uma redução dos limites
da razão, mas uma ampliação do seu horizonte cognoscitivo sob nova
forma. Esta filosofia não admite outro modo de conhecimento teorético;
Ortega não vai contra a razão, mas contra o racionalismo; e não por ser
racional, mas porque o é à margem da vida. A irracionalidade em que por
fim o racionalismo desagua deve-se a que entendemos por razão a «pura
razão», ou seja, a razão só e separada. Esta irracionalidade desaparece se
fundamentarmos essa razão pura na totalidade da razão vital. Por isso se
qualifica a atitude filosófica de Ortega como raciovitalismo.
A razão vital funciona a partir do sujeito na sua totalidade, dentro da sua
circunstância, numa determinada realidade social e histórica e nunca como
entendimento separado do sujeito; supera-se assim a posição realista dos
antigos. A razão vital aparece realizada na vida do homem, por isso
concretiza-se em razão histórica. Mas não se trata de duas razões diferentes;
sim que a razão vital – na sua exigência de explicar a vida do indivíduo e a
dos povos e nações – é simultaneamente razão histórica, porque a vida é
temporeidade e porque, consequentemente, compreende a realidade no seu
devir: «A razão histórica não aceita nada como mero facto, mas fluidifica
todo o facto no fieri de que provém: vê como se faz o facto» (História como
Sistema, IX).

O SER DO HOMEM E A RAZÃO HISTÓRICA


O homem passa e atravessa todas essas formas de ser; peregrino do
ser, vai sendo e não-sendo essas formas, ou seja, vai vivendo. O homem
não tem natureza, o que tem é história; porque história é o modo de ser
de um ente que é constitutivamente, radicalmente, mobilidade e
mudança. E assim, não será a razão pura, elástica e naturalista que poderá
entender o homem. Por isso, o homem tem sido um desconhecido até
agora. Pois a história é o modo de ser um ente radicalmente variável e
sem identificar. Não se pode identificar o homem. É um Arsène Lupin
metafísico.
O homem é «um desconhecido» e não é nos laboratórios que o vamos
encontrar. É a hora das ciências históricas! Em última instância, como
vimos, a pretensão da razão pura só conseguia deduzir o homem
inteiramente por pura lógica, acabando por se basear na narração de um
feito: o choque dos átomos. Assim, a razão pura tem que ser substituída
por uma razão narrativa. O homem é hoje o que é porque ontem foi outra
coisa. Ah! Então, para se entender o que é hoje, basta sabermos o que foi
ontem. Basta isso, e o que estamos fazendo hoje aparece e transparece. E
essa razão narrativa é «a razão histórica».
Ortega, Sobre a Razão Histórica.

A vida só se torna um pouco transparente perante a razão histórica. Não


uma razão extra-histórica que pareça cumprir-se na história, «mas
literalmente o que ao homem aconteceu, constituindo a substantiva razão»
(o. c., IX). Também não se trata de uma descrição ou narração qualquer,
mas de compreender a realidade mediante o esclarecimento de esquemas
intelectuais. A razão histórica não é pois uma descrição narrativa superficial
das res gestae, mas a busca do que a possibilita e a torna inteligível na
totalidade do seu ser histórico. A razão histórica também é «ratio, logos,
rigoroso conceito» (o. c., IX).
De qualquer modo, Ortega está longe de acreditar que a razão histórica
venha a constituir a panaceia do mundo, como se perante ela tudo se
tornasse compreensível, e desaparecesse qualquer forma de incompreensão
do e para o homem. O conceito tradicional de razão – afirma Ortega – é
abstracto, impreciso, utópico. Mas, como tudo o que é tem de ser concreto,
se existe razão ela terá de ser razão concreta.
Não é que toda a história seja racional e transparente. A racionalidade da
história continuará sempre a ser problema, porque abandonámos a razão a
priori, que possibilitaria a acomodação perfeita entre a interpretação e o
facto. A racionalidade da história é algo que devemos procurar
continuamente, refazendo esquemas sob o signo da prova e do erro.
O ser da vida, da nossa vida, ficou definido na sua categoria temporal
como movimento constante. É óbvio que a razão histórica jamais poderá ter
êxito abordando a realidade, a vida, com esquemas pré-estabelecidos;
«portanto» escreve Ortega, «a razão histórica é (...) uma razão a posteriori»
(História como Sistema, VIII).
Hegel já dera a entender este desajuste da vida humana na sua
concepção da filosofia da história: o destino humano avança
dialecticamente. Mas Ortega não compartilha do sentido hegeliano dessa
dialéctica. Por isso escreveu: «A realidade histórica, o destino humano,
avança dialecticamente, embora essa essencial dialéctica da vida não seja,
como pensava Hegel, uma dialéctica conceptual, de razão pura, mas a
dialéctica de uma razão muito mais ampla, funda e rica do que a pura – a
saber, a da vida, a da razão vivente» (Sobre Galileu).
A dialéctica da razão vivente consistirá em que o homem vá «sendo» e
«des-sendo»; o viver atinge, assim, uma nova perspectiva sob o ângulo da
razão histórica: o homem dá-se conta de que é um projecto inacabável ou,
por outras palavras, descobre que a vida consiste em ir descobrindo novos
horizontes. A «óptica» da razão histórica deve ser ela própria móvel como a
realidade que está tentando apreender. Isso só se consegue vivendo e
revivendo continuamente essa realidade, isto é, sendo uma razão vivente.
4. VIDA, TRAGÉDIA E HEROÍSMO: MIGUEL
DE UNAMUNO

Miguel de Unamuno e Ortega y Gasset são os filósofos espanhóis mais


importantes da primeira metade do século XX, embora as suas
sensibilidades sejam profundamente diferentes. Unamuno é um filósofo do
«trágico», ao passo que Ortega é antes um filósofo do «desportivismo» e da
jovialidade, desagradando-lhe qualquer tipo de radicalidade. Ortega opta
pela europeização de Espanha e Unamuno, pelo contrário, aposta no
encontro de Espanha consigo mesma, com o seu ser e os seus valores
tradicionais. Assim, a relação entre os dois e as reacções de um perante o
que o outro representa constituem um acontecimento de uma importância
muito singular.
É difícil classificar o Unamuno pensador em relação a determinada
escola ou corrente. Se bem que «anterior» a Husserl, muitos não hesitam
em considerá-lo existencialista, devido ao seu papel de precursor do
existencialismo em muitos dos seus temas e pela sua preocupação com a
existência concreta. Em certa medida, também é possível classificá-lo como
personalista (veja-se o capítulo 17, em especial as duas primeiras partes),
ou como vitalista, na medida em que o seu pensamento se baseia no
permanente conflito entre a razão e a vida.

4.1. A radicalidade do desejo

4.1.1. O homem de «carne e osso»


O homem é o tema central do pensamento de Unamuno. Poderia pensar-
se que neste aspecto Unamuno não revela qualquer originalidade: com
efeito, a filosofia sempre se interessou pelo ser humano, ocupando-se com
esclarecer a sua natureza e estrutura como animal racional, como animal
social ou económico, ou sob qualquer outra caracterização. No entanto,
quando Unamuno fala do homem, não se refere a nenhuma destas
conceptualizações gerais e abstractas. A sua filosofia tem como centro de
reflexão o homem concreto e individual: «Esse homem concreto, de carne
e osso, é simultaneamente o sujeito e o supremo objecto da filosofia, quer
certos pretensos filósofos o aceitem ou não» (O Sentimento Trágico da
Vida).

SINTO, LOGO EXISTO


E assim chega o cogito ergo sum já iniciado por Santo Agostinho, mas
o ego implícito no entimema ego cogito, ergo ego sum, é um ego, um eu
irreal ou seja ideal, e o seu sum, a sua existência, é também algo de irreal.
«Penso, logo existo» só poderá querer dizer «penso, logo sou pensante»:
esse ser que se deduz do pensamento não passa de um conhecimento; mas
se é conhecimento, não é vida. O mais primitivo não é «eu penso» mas
«eu vivo», porque os que não pensam também vivem, mesmo que esse
viver não seja um verdadeiro viver. Meu Deus, tantas contradições
quando queremos juntar a vida à razão!
A verdade é sum ergo cogito – sou, logo penso –, ainda que nem tudo
o que existe pense. A consciência de pensar não será antes do mais
consciência de ser? Será porventura possível que haja um pensamento
puro sem consciência de si e sem personalidade? Haverá por acaso um
conhecimento puro destituído de sentimento e sem essa espécie de
materialidade que o sentimento lhe empresta? Não se sente o pensamento
e não nos sentimos a nós próprios ao mesmo tempo que se conhece e se
ama? Será que o jardineiro não pode dizer «sinto, logo existo» ou «amo,
logo existo»? E sentir não será por acaso sentir-se imperecível? E amar
não será desejar a eternidade, ou seja, não querer morrer? Aquilo a que o
triste judeu de Amsterdão chamava a essência das coisas – o esforço em
querer manter o ser, o amor próprio e o desejo de imortalidade –, não será
por acaso a condição fundamental e primeira de todo o nosso
conhecimento reflexivo ou humano? Por isso, não será essa a verdadeira
base e ponto de partida da filosofia, ainda que os filósofos, pervertidos
pelo intelectualismo, não o reconheçam?
Miguel de Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida.

O homem concreto e individual é pois o objecto supremo da filosofia.


Mas também é igualmente o seu sujeito. Aquele que filosofa e se esforça
por pensar é sempre um indivíduo singular (seja ele René Descartes,
Immanuel Kant ou Miguel de Unamuno). Por detrás de cada sistema e de
cada doutrina filosófica há sempre um ser humano concreto: «A filosofia é
um produto humano de cada filósofo e cada filósofo é um homem de carne
e osso que se dirige a outros homens de carne e osso como ele. E faça o que
fizer, não filosofa apenas com a razão mas também com a vontade, com o
sentimento, com a carne e com os ossos, com a alma e com todo o corpo. É
o homem que filosofa» (ibidem).

4.1.2. O conflito entre a razão e a vida

Se o verdadeiro objecto da filosofia é o homem concreto e singular, não


é de estranhar que Unamuno insista na incapacidade da inteligência para
alcançar o autêntico conhecimento do humano. Com efeito, a
inteligência tende à abstracção universalizadora, trabalhando com conceitos
gerais que prescindem dos aspectos individuais e singularizadores. Escreve
Unamuno que «a inteligência é uma coisa terrível. Tanto tende para a morte
como para a estabilidade da memória. O que é vivo, o que é absolutamente
instável e absolutamente individual, é em rigor ininteligível» (ibidem).
Ao falar assim, Unamuno assume uma ideia amplamente divulgada
durante todo o século XIX e que encontrou expressão em autores como
Kierkegaard e Bergson: a ideia de que existe um conflito insuperável
entre a razão e a vida, entre o esquematismo e imobilismo da razão e a
riqueza e dinamismo da vida singular.
O conflito entre razão e vida é insuperável e permanente porque, ao
mesmo tempo que se excluem, cada uma necessita da outra. Unamuno
insiste constantemente na importância dos elementos não-racionais
(sentimento, desejo, vontade), ao ponto de lhes conceder prioridade sobre o
conhecimento, Deste modo, o velho ditado latino de origem aristotélica,
nihil volitum quin praecognitum (não se deseja nada que não conheçamos
antes), sofre uma inversão significativa, transformando-se em nihil
cognitum quin praevolitum (não se conhece nada que não seja desejado
antes).
É sob esta mesma perspectiva que Unamuno interpreta um outro ditado,
primum vivere, deinde philosophare (primeiro viver, em seguida filosofar):
não se trata da observação óbvia de que é necessário ter resolvido o
problema da substância material antes de se dedicar à filosofia; trata-se
antes da afirmação de que a filosofia radica na vida e que quem filosofa é o
homem como um todo – como vimos –, e não apenas uma inteligência
abstracta e descarnada.
Unamuno insiste também na anterioridade da acção relativamente à
norma racional: não actuamos para nos acomodarmos a preceitos
previamente conhecidos e aceites; pelo contrário, primeiro actuamos e
depois procuramos justificar o nosso comportamento excogitando as
normas apropriadas. Por conseguinte, a prioridade cabe: a) ao desejo
relativamente ao conhecimento; b) à vida relativamente à filosofia; c) à
acção relativamente à norma.

A REALIDADE E OS SONHOS
Na verdade, como é que podemos negar o que Dom Quixote viu na
gruta de Montesinos, sendo ele um cavalheiro incapaz de mentir, tendo
ele arremetido contra moinhos e bandoleiros, tendo lutado contra os seus
burlões para defender o do elmo, tendo vencido o Cavaleiro dos Espelhos
e envergonhado o leão? Ele, que levou a cabo estas e outras façanhas não
menos assombrosas, poderia muito bem ter visto na gruta de Montesinos
quanto se lhe oferecia ver. E se o viu, do que não devemos duvidar, que
poderemos dizer da realidade das suas visões ? Se a vida é sonho, por que
razão nos obstinamos a negar que os sonhos são vida? Tudo quanto é
vida, é verdade. O que chamamos realidade será algo mais do que uma
ilusão que nos leva a criar e a produzir obras? O efeito prático é o único
amparo da verdade de qualquer visão.
M. de Unamuno, Vida de Dom Quixote e Sancho, cap. 24

4.1.3. Uma ontologia do desejo

Visto que o desejo tem prioridade sobre o conhecimento, poderíamos


dizer que, de um modo geral, a concepção unamuniana do homem constitui
uma antropologia do desejo. O desejo mais radical, do qual surge a
filosofia e que mobiliza as nossas energias e a nossa acção, é o desejo de
viver, de continuar a viver, de existir ilimitadamente e «não morrer de
vez» como indivíduos.
A esta antropologia corresponde por sua vez uma ontologia do desejo.
Neste aspecto, Unamuno segue a doutrina de Espinosa segundo a qual
«cada coisa, enquanto é em si, esforça-se por perseverar no seu ser» e «o
esforço com que cada uma tenta perseverar no seu ser não é senão a
essência actual da própria coisa». A existência, não só a do homem mas a
de todos os seres, é a tendência e o esforço aplicados a continuar a
existir. Ora, se a realidade se mede pelo grau de permanência, se uma coisa
é mais real quanto mais nela se cumprir a tendência a perseverar no ser,
seremos forçados a concluir que o mais real é o mais duradouro:
«Eternidade! Eternidade! É este o desejo (...). O que não é eterno também
não é real» (ibidem, III).

Miguel de Unamuno
Miguel de Unamuno nasce em Bilbau em 1864. Faz o Liceu na sua cidade natal e depois
muda-se para Madrid (1880) para estudar na Faculdade de Filosofia e Letras. Em 1891 contrai
matrimónio com Concepción Lizárraga, obtendo nesse mesmo ano a cátedra de grego em
Salamanca, cidade à qual a sua vida permanecerá vinculada definitivamente. Depois de um
período de positivismo, inclina-se para o socialismo e filia-se no partido socialista em 1894.
Devido a uma profunda crise que sofre em 1897, as suas preocupações de carácter religioso
agudizam-se. Em 1924 é deportado para Fuerteventura pelo ditador Primo de Rivera e só
quando este cai (1930) é que regressa, sendo nomeado reitor da Universidade de Salamanca,
cargo que o governo republicano lhe retiraria em 1936 por causa da sua adesão ao movimento
do general Franco. Pouco depois teria um grave conflito com o general Millan Astray. Morre
nesse mesmo ano em Salamanca, no dia 31 de Dezembro, A sua forte presença, tanto no âmbito
da política como no do pensamento, foi sempre singular e frequentemente contraditória.
Escreveu inumeráveis artigos e ensaios, de entre os quais se destacam Vida de Dom Quixote e
Sancho (1905), Do Sentimento Trágico da Vida nos Homens e nos Povos (1913) e o posterior e
menos vigoroso A Agonia do Cristianismo (1926-1931). De entre as suas novelas merecem
destaque Niebla (1914), Abel Sánchez (1917) e San Manuel Bueno, Mártir (1933). Como poeta,
atinge o seu apogeu com O Cristo de Velázquez (1920).

O que é permanente é real; o que é transitório e perecível e está


destinado a desaparecer, é apenas ficção ou sonho. Em toda a sua obra,
novelas e ensaios, Unamuno recorreu repetidamente a esta ideia do sonho
como expressão da fugacidade e inconsistência do mortal: «Esta tremenda
visão do fluir das ondas da vida arrancou gritos às entranhas da alma dos
poetas de todos os tempos, desde “o sonho de uma sombra” de Píndaro até a
“a vida é um sonho” de Calderón e “somos feitos do material dos sonhos”
de Shakespeare; esta última frase é ainda mais trágica que a do castelhano,
que só declara a vida como sonho, enquanto o poeta inglês nos torna a todos
nós, sonhadores da vida, em sonhos, em sonho que sonha» (ibidem). O
homem é sonho que sonha; talvez seja um sonho de Deus. Em A Vida de
Dom Quixote e Sancho (cap. 64) lê-se esta exclamação isolada: «Nós,
sonhadores da vida, seremos sonho, um sonho. Teu? Se assim for, que será
de mim quando Tu, Deus da minha vida, despertares?»
4.2. O sentimento trágico da vida

4.2.1. Consciência, dor e amor

Como vimos, é essencial que todos os seres se esforcem por perseverar


na existência. Este esforço expressa-se na consciência como desejo de
imortalidade pessoal, como ânsia de não morrer, em choque directo com a
limitação da nossa existência. Ser consciente é ter consciência da própria
limitação; por isso Unamuno associa radicalmente a consciência à dor:
«A dor é o único caminho da consciência e é por ele que os seres vivos
chegam a ter consciência de si mesmos. Porque ter consciência de si
mesmo, ter personalidade, é saber-se e sentir-se diferente de todos os outros
e sentir que só se chega a essa distinção pelo choque, pela dor mais ou
menos intensa, pela sensação do próprio limite» (ibidem, III).
Por sua vez, a dor é a genuína fonte do amor, que surge e se
desenvolve no «compadecer», no sofrimento partilhado. Na comunidade do
sofrimento a consciência de cada um acrescenta-se e a consciência dos
outros sente-se aumentada, até chegar a Deus, consciência do Universo. É
este o profundo significado das reflexões teológicas de Unamuno: Deus,
não como criador nem como juiz ou garantia da ordem física e moral, mas
como personificação do Universo, como consciência que sofre por o ser:
«Talvez pareça uma blasfémia dizer que Deus sofre, pois o sofrimento
implica limitação. E no entanto, Deus, a consciência do Universo, está
limitado pela matéria bruta em que vive, pelo inconsciente de que tenta
libertar-se e libertar-nos. E também nós devemos tentar liberta-Lo dela.
Deus sofre em todos e em cada um de nós, em todas e em cada uma das
consciências prisioneiras da matéria transitória, e todos sofremos n’Ele.» (O
Sentimento Trágico da Vida, IX).

4.2.2. O sentimento trágico da vida


A concepção unamuniana de homem, que atrás denominámos de
antropologia do desejo, pode ser também considerada uma antropologia do
conflito: um conflito entre o desejo ou ânsia de imortalidade e a limitação
de que dolorosamente temos consciência, um conflito entre o que em nós há
de real (o esforço por permanecer existindo) e o que temos de sonho e
ficção.
Este conflito entre o facto de que morremos e o desejo de não morrer
radicaliza-se até ser angústia por causa da insuperável oposição entre a
razão e a vida (aspecto a que já nos referimos antes): «porque viver é uma
coisa e conhecer é outra e, como veremos, será que entre elas há uma tal
oposição que possamos dizer que tudo o que é vital é anti-racional, e não
apenas irracional, e que tudo o que é racional é anti-vital? É esta a base do
sentimento trágico da vida» (ibidem, II).
O sentimento trágico da vida provém do facto de o nosso desejo de
previvência e imortalidade ser contrário à razão: não só faltam argumentos
racionais válidos a favor da imortalidade da alma, como também a razão se
opõe positivamente à ideia de uma alma imortal. Não carecemos apenas de
argumentos racionais válidos para demonstrar a existência de um Deus que
garanta a nossa imortalidade, como também a razão refuta positivamente
tais argumentos. A razão conduz ao cepticismo: «Para onde quer que
olhemos, a razão opõe-se e contradiz sempre este nosso desejo de
imortalidade pessoal. Em rigor, a razão é inimiga da vida» (ibidem, V).

4.2.3. Acção moral e heroísmo

Dado que a oposição entre as demandas da razão e o desejo da vida é


insuperável, a nossa situação é irremediavelmente trágica. A proposta de
Unamuno é que todos nos coloquemos em tal situação: «É aqui, no fundo
do abismo, que o desespero sentimental e volitivo e o cepticismo racional se
encontram frente a frente, num abraço trágico, isto é, entranhadamente
amoroso, do qual irá brotar um manancial de vida, de uma vida séria e
terrível» (ibidem, VI).
Esta situação de esperança desesperada e de fé amalgamada com
cepticismo não deve levar-nos à inactividade e à indolência, Muito pelo
contrário, já que dela surgirá um comportamento generoso, virtuoso e
heróico, que nunca poderia surgir da mera racionalidade: «talvez a razão
ensine certas virtudes burguesas, mas não faz heróis nem santos» (ibidem,
XI). O heroísmo é feito de outro material que não a racionalidade (para
Unamuno, o exemplo mais excelso disto é Dom Quixote).
Numa perspectiva pragmática, Unamuno salienta que é precisamente a
acção, a conduta virtuosa e heróica, que irá constituir a prova moral da
validade do nosso desejo vital: «Qual é a nossa vida cordial e anti-racional?
É a da imortalidade da alma, a da persistência sem fim da nossa
consciência, a da finalidade do Universo. E qual é a sua prova moral?
Podemos formulá-la assim: actua de modo a mereceres a imortalidade
por julgamento próprio e por julgamento dos outros, de modo a seres
insubstituível, de modo a que não mereças morrer» (Do Sentimento
Trágico da Vida, XI). Este imperativo moral apoia-se na convicção de que
a verdade e a realidade se medem pela sua eficácia prática, que o real se
distingue do meramente ilusório (da mera ficção) pela sua capacidade de
criar obras que concretizem os nossos propósitos.

4.3. A filosofia e a expressão literária

Expusemos as ideias mais importantes do Unamuno filósofo a partir dos


seus ensaios mais significativos. Todavia, Unamuno não se expressou
apenas em ensaios mas também noutros géneros literários, como a novela, o
teatro e a poesia.
O recurso a estes géneros literários não é casual nem acessório: o teatro
e a novela são especialmente apropriados para abordar o indivíduo
concreto, para expressar a trama e os conflitos vitais, para revelar a tensão
entre realidade e ficção. Quanto à poesia, Unamuno estava consciente da
sua contiguidade com a filosofia e da sua capacidade para captar e exprimir
tudo aquilo que ultrapassa os limites do discurso racional.
17. FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

INTRODUÇÃO

A fenomenologia e o existencialismo constituem dois capítulos


importantes do pensamento contemporâneo. A fenomenologia – criada pelo
filósofo alemão E. Husserl – surge como uma tentativa de superar o
positivismo reducionista (que pretende reduzir a realidade aos dados das
ciências empíricas), o cepticismo e o psicologismo. A oposição ao
reducionismo, de qualquer tipo que seja, impõe como regra o tomar as
coisas em sua especificidade, tal como aparecem, e daí a frase husserliana:
vamos às próprias coisas! Isto implica uma concepção da filosofia como
essencialmente descritiva. Neste contexto se desenvolve a fenomenologia
como método e como pensamento.
O existencialismo procede, remotamente, da reação anti-hegeliana
levada a cabo por S. Kierkegaard, que insistiu no carácter primário da
singularidade e, portanto, na irredutibilidade do indivíduo a um mero
momento de uma totalidade ou processo. No seu desenvolvimento
contemporâneo (Heidegger, Sartre, Jaspers, Merleau-Ponty), o
existencialismo retoma esta afirmação de irredutibilidade do indivíduo, da
existência humana, baseando a sua análise no método fenomenológico de
Husserl. Os filósofos existencialistas são pois fenomenólogos, ainda que
heterodoxos, pois não aceitam a fenomenologia husserliana em todos os
seus aspectos e implicações.
Este capítulo divide-se do seguinte modo:
1. A fenomenologia e a crise das ciências.
2. O existencialismo; existência e liberdade.
1. A FENOMENOLOGIA E A CRISE DAS
CIÊNCIAS

1.1. A crise da existência e das suas formas

1.1.1. A crise da existência europeia

O título da obra póstuma de Husserl, A crise das ciências europeias e a


fenomenologia transcendental, sugere uma série de significados diversos;
assim a expressão «crise das ciências» pode tomar-se em dois sentidos:

a) Como expressão da crise dos finais do século XIX e princípios do


século XX. Seria colocar de novo o problema dos logros da ciência, do que
fez até esse momento e de como se levanta uma série de problemas aos
quais não pode responder, tanto pelos métodos de que dispõe como por uma
mudança de orientação quanto aos fins perseguidos.

b) Como expressão de uma crise, não própria da ciência, mas de uma


determinada interpretação (a positivista) da mesma, que levou a relegar a
questão principal para Husserl: «o sentido ou a ausência de sentido da
existência humana» (A crise das ciências europeias e a fenomenologia
transcendental, I, 2).

Husserl sempre reconheceu a sua dívida para com Descartes na medida


em que o seu projecto, tal como o cartesiano, situou o eu num primeiro
plano como ponto de partida para conseguir uma filosofia como ciência
rigorosa. Mas Husserl critica em Descartes o colocar o seu ideal científico
na física matemática, porque «este ideal exerceu durante séculos uma
influência nefasta» (Meditações Cartesianas, I, 3) e não resultou proveitoso
e aproveitável para a reflexão filosófica.

O QUE SIGNIFICA «EUROPA»?


Formulemos a pergunta: como se caracteriza a estrutura espiritual da
Europa? Europa não no sentido geográfico ou cartográfico, como se
quiséssemos circunscrever o âmbito dos homens que convivem aqui
territorialmente na qualidade de humanidade europeia. No sentido
espiritual, também as possessões britânicas ou os Estados Unidos
pertencem à Europa, mas não os esquimós nem os índios das exposições
de feiras, nem os ciganos que vagabundeiam permanentemente pela
Europa. Sob o nome Europa falamos aqui, evidentemente, da unidade de
um viver, produzir e criar espiritualmente com todos os fins, interesses,
preocupações e esforços, com os objectivos, as instituições, as
organizações. Neles actuam os indivíduos no seio de sociedades
múltiplas, de diferentes graus, em famílias, em linhagens e nações, onde
todos parecem estar espiritual e interiormente unidos e, como disse, na
unidade de uma estrutura espiritual. Deste modo, ter-se-á conferido às
pessoas, às associações de pessoas e a todas as suas criações culturais um
carácter de união total.
«A estrutura espiritual» – o que é isto? É mostrar a ideia filosófica
imanente à história da Europa (da Europa espiritual) ou, o que vem a dar
no mesmo, a tecnologia imanente a ela, que sob o ponto de vista da
humanidade universal se dá a conhecer em geral como o surgimento e o
começo do desenvolvimento de uma nova época da humanidade, da
época de uma humanidade que daí em diante só quer e pode viver na livre
formação da sua existência e da sua vida histórica a partir de ideias da
razão até chegar a tarefas infinitas.
Husserl, A Filosofia na Crise da Humanidade Europeia, in A Filosofia Como Ciência de Rigor.

Husserl quer fazer da filosofia uma ciência de rigor, bem fundamentada,


o que não significa que tenha de o estar à maneira das ciências da natureza.
A concepção positivista considera a ciência um mero «saber de factos» e
reduz a realidade à ordem dos fenómenos físicos e psíquicos,
condicionando a cosmovisão do homem e conduzindo-o a uma total
desumanização. As questões mais próprias da existência racional da
humanidade são subestimadas pelas ciências positivas, pois tais questões
não podem ser submetidas às condições de verificação requeridas pela
ciência. As ciências positivas reduzem a simples factos tudo o que diz
respeito ao sujeito, sem deixar qualquer âmbito ou aspecto do sujeito que
não seja redutível a simples dados.
A fenomenologia quer readquirir a originalidade do sujeito, o que a
humanidade tem de mais genuíno. Procura desaliená-la dessa facticidade,
desse «cientismo» em que se encontra submersa. E tentará realizá-lo
mediante uma redução que nos faça regressar ao originário, isto é, ao
estádio anterior à positivização e naturalização da razão e da existência
humana. A «humanidade racional» perdeu esse papel de condutor, de
protagonista principal da cultura humana; enquanto que «o positivismo
decapita, por assim dizer, a filosofia» (Crise, I, 3).
Face a esta perda de segurança, a fenomenologia propugna o radicalismo
do ponto de partida que nos permita atingir essa dimensão originária a que
Husserl chamou mundo da vida (Lebenswelt). Mas vida em que sentido?
Ouçamos Husserl: «A palavra vida não tem aqui sentido fisiológico,
significa vida que actua conforme a fins, que cria formas espirituais: vida
criadora de cultura no sentido mais amplo, numa unidade histórica».
O mundo da vida será atingido quando tivermos reduzido «o feiticismo
factualista das ciências»; no seu retorno ao mundo da vida, a fenomenologia
propõe-se um modo determinado de interpretar a razão e o saber e opõe-se à
exclusividade da matematização da natureza, pois no âmbito do «mundo da
vida» a matematização seria uma «práxis particular». O mundo da vida
substitui assim a matemática como paradigma único e originário na
concepção do mundo.

1.2.3. O naturalismo

a) Conceito de naturalismo
O naturalismo, «uma consequência da descoberta da natureza
considerada como unidade do ser espácio-temporal conforme com as leis
naturais exactas» (A Filosofia como Ciência de Rigor), é rejeitado por
Husserl devido ao uso que o naturalismo faz do método matemático, que
abstrai e selecciona a natureza, considerando o abstraído como a realidade
em si e absoluta; o naturalista tende a encarar tudo como natureza. Em seus
anseios por imitar as ciências da natureza, o naturalismo hipertrofia e
absolutiza o método experimental, o que implica a naturalização da
consciência e das ideias.

1. Naturalização da consciência. A consciência é considerada como


mais um facto da natureza; uma «coisa», arrastando consigo a perda da
função principal: a clarificação do sentido das coisas, «É a própria
consciência que deve tornar evidente e completamente inteligível o que é a
objectividade» – escreve Husserl (A Filosofia como Ciência de Rigor) –, o
que são os factos, como e a partir de quê ganham sentido, quais são os seus
limites e em que relação devem estar com os fins e exigências da
humanidade.

2. Naturalização das ideias. Estas são consideradas, e assim nos


referimos a elas, como simples abstracções de dados sensíveis. Mas a
naturalização das ideias significa também a redução de «todo o ideal e de
toda a norma absoluta» ao meramente fáctico, empírico, contingente, e
portanto, relativo. O filósofo naturalista fracassa na sua tentativa de
fornecer uma ideia do que é a filosofia, pois tem como modelo o das
ciências físico-matemáticas.
O naturalismo, como teoria do saber, recorta e reduz a ideia de ciência
pretendendo fixar de forma errada e exclusiva as características da ciência e
da filosofia de rigor. E na medida em que supõe e tematiza uma ideia de
realidade, para ele tudo é natureza física: «tudo o que existe é físico e como
tal pertence ao complexo unitário da natureza física; ou melhor, mesmo que
seja psíquico, não é mais do que uma variante que depende do físico» (A
Filosofia como Ciência de Rigor).

b) O psicologismo lógico e a sua crítica


O naturalismo tem consequências e expressões em diferentes campos da
realidade ou das ciências: por exemplo, na teoria axiológica ou ética, na
teoria sobre a beleza, etc.; de forma modelar, o naturalismo exprime-se é na
lógica, como psicologismo lógico.
A crítica de Husserl ao psicologismo lógico é radical, brilhante e
definitiva e dá uma ideia clara acerca do sentido da fenomenologia. Com
efeito, a crítica ao psicologismo lógico, enquanto forma do naturalismo
(segundo Husserl), é uma crítica ao conceito moderno de ciência e de razão,
e portanto um apelo para reconquistar o mundo pré-científico, o mundo da
vida. E, por outro lado, a crítica ao psicologismo deixa o caminho livre para
uma subjectividade pura e transcendental (uma consciência não físico-
psicológica) como princípio e origem da realidade e das ciências. Esta é a
tarefa que a filosofia de Husserl se propõe enquanto fenomenologia pura e
transcendental, como veremos mais adiante.

Edmund Husserl
(1859-1938). Nasceu no seio de uma família judaica em Prosznitz (Morávia), e morreu em
Friburgo de Brisgóvia. Na Universidade de Viena estudou matemáticas com Weiertrass e
psicologia com K. Stumpf e com Franz Brentano, de quem recebeu uma grande influência. Em
1883 defende a sua tese de doutoramento – Contribuição para a Teoria do Cálculo de
Variações – e em 1891 aparece a sua primeira obra importante, Filosofia da Aritmética, da qual
se publica apenas a primeira parte; nesta obra ocupa-se dos fundamentos científicos das
matemáticas e da filosofia. As Investigações Lógicas (1900) desenvolvem, entre outros temas, a
crítica ao psicologismo e ao empirismo. Em 1913 Husserl funda o «Anuário de Filosofia e de
Investigação Fenomenológica”, no qual apareceriam, entre outros, O Formalismo na Ética e a
Ética Material dos Valores (1913-1916) de Max Scheler e Ser e Tempo (1927) de Martin
Heidegger, obras fundamentais da corrente fenomenológica. Também em 1913 aparece o
primeiro volume de Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica; o
período que vai de 1900 a 1913 é o esplendor máximo de Husserl, que era professor em
Gotinga.
Em 1916 é nomeado professor titular da Universidade de Friburgo, onde desenvolveu toda a
sua actividade até à jubilação em 1928. Em 1929, aparece Lógica Formal e Transcendental, a
obra que articula todo o seu pensamento, estudando a lógica como teoria da ciência e tentando
aclarar a origem e significado dos conceitos lógicos básicos. Ainda em 1929 pronuncia duas
conferências na Sorbonne sobre «Introdução à Fenomenologia Transcendental», que serão
publicadas mais tarde com o título Meditações Cartesianas; nelas expõe a necessidade de um
corte radical com o passado para elaborar uma filosofia rigorosa, tomando como o ponto de
partida o mesmo de Descartes, ou seja, o Eu. Com a subida do nazismo ao poder, Husserl viu-se
relegado e inclusive proibido; a grande quantidade de inéditos (uns quarenta mil fólios) foram
transferidos para a Universidade de Lovaina para maior segurança. Em 1939 aparece
Experiência e Juízo e em 1954 A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia
Transcendental, na qual se aproxima do existencialismo na sua crítica a uma sociedade que a
existência humana privou de sentido, embora o faça sempre a partir dos pressupostos das suas
obras anteriores.

Ora, o psicologismo lógico consiste, em essência, em reduzir as leis,


princípios e actos do pensamento (de que se ocupa a lógica) a meros
acontecimentos e fenómenos psíquicos. Trata-se, como escreve Husserl, da
«discutida questão da relação entre a psicologia e a lógica. Há uma direcção
– justamente a dominante no nosso tempo – que tem resposta pronta para as
questões formuladas e diz: os fundamentos teoréticos essenciais da lógica
residem na psicologia; (...) não é raro que se fale como se a psicologia
proporcionasse o único e suficiente fundamento teorético da arte lógica»
(Investigações Lógicas, Prolegómenos à Lógica Pura).
O psicologismo lógico, por um lado, afirma que nada do lógico é alheio,
independente e autónomo relativamente ao psíquico; consequentemente,
todos os princípios, leis e actos lógico-racionais, «enquanto tais, estariam
inequivocamente determinados dentro das conexões gerais de causalidade
próprias do mundo real e explicar-se-iam segundo leis causais» (Husserl,
Lógica Formal e Transcendental).
Por outro lado, e em consequência, o psicologismo lógico empreende
uma redução (sob a forma de uma naturalização) da objectividade ideal da
lógica e da sua pureza formal de ordem natural, empírica e fáctica, à
realidade ou dimensão psíquica: «A equiparação das formações de juízo
(naturalmente também de todas as formações semelhantes de actos
racionais em geral) com fenómenos da experiência interna (...)
precisamente nesta concepção reside o psicologismo lógico» (o. c.).
As consequências do psicologismo são o relativismo e o cepticismo;
assim torna-se impossível obter um conceito de lógica pura, autónoma e
independente que fundamente as ciências (a lógica como um estudo formal
a priori da ciência enquanto tal) e encontrar uma racionalidade que
possibilite um progresso fundamental e definitivo da ciência e cultura
europeias. Além disso, a redução naturalista da lógica formal pura efectua
uma tergiversação dos diferentes modos de ser da realidade, forçando-os e
reduzindo-os a um só: o ser fáctico físico-natural, o ser enquanto dado
físico-naturalmente.
Neste sentido, o naturalismo (e a sua expressão lógica, o psicologismo)
contém e sustenta toda uma ontologia. O reducionismo naturalista torna-se
assim positivismo (ou objectivismo, entendendo por objecto o real dado no
modo fáctico-físico-natural).

1.1.3. O positivismo

O positivismo (ou objectivismo) substituiu (ou transformou) esse mundo


da vida (Lebenswelt) por alguns feiticismos que não permitem o regresso às
próprias coisas, ao seu princípio originário. O objectivismo é um
reducionismo feito por uma determinada concepção da ciência. «A ciência
objectivista toma o que denomina o mundo objectivo pelo universo de todo
o existente, sem considerar que a subjectividade criadora da ciência não
pode ficar encerrada em nenhuma ciência objectiva. Para quem se formou
na ciência natural parece evidente que deve ser eliminado tudo o que é
meramente subjectivo (A Filosofia na Crise da Humanidade Europeia.)
Como vemos, este objectivismo implica uma alienação, da qual o
subjectivo padece; a subjectividade transcendental coisificada, não pode
apresentar-se como aquilo que realmente é, como o verdadeiramente
originário. Degrada-se o sujeito em favor do objecto, em forma de coisa. E
implica também uma redução do real ao fáctico dado. Este tipo de ciência é,
pois, limitadora da humanidade plena e racional.
Toda esta crise é consequência da alienação do racionalismo que foi
absorvido pelo naturalismo e pelo objectivismo que assim vem a ser «uma
aberração do racionalismo» (ibid.). Os científicos naturais eliminam todo o
elemento subjectivo, pois apenas lhes interessam as «objectividades», sem
ter em conta que essas objectividades são produto de uma função subjectiva
que por sua vez assenta num mundo quotidiano (Lebenswelt) que é
«fundamento» de qualquer tipo de realização anterior, pelo que «a temática
científica do mundo circundante intuitivo, do factor meramente subjectivo,
esqueceu o próprio sujeito actuante, e o homem de ciência não se converte
em tema de reflexão» (ibid.).
Este novo projecto humanista e racional está latente em A Crise das
Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental sendo aliás o
aguilhão e o destino último da filosofia de Husserl, ao ponto de, como
escreveu certo autor, a obra dever antes ter por título: «A luta contra o uso
alienante das ciências para a reconquista do significado do homem, da sua
sociedade, da sua história» (E. Paci, Função das Ciências e Significado do
Homem). E só então, e com base neste novo fundamento, a filosofia pode
lançar mãos à tarefa que, no entender de Husserl, lhe compete, a saber:
«exercer constantemente, no seio da humanidade europeia, a sua função
como directora de toda a humanidade» (Husserl, ibid.).

1.2. Ideia e objecto da fenomenologia

A fenomenologia é uma alternativa ao cientismo positivista; com ela


poderemos abandonar a situação de crise. O pensamento husserliano requer
uma reforma radical da filosofia. A fenomenologia move-se «nas esferas da
intuição directa e o passo maior que o nosso tempo tem de dar é reconhecer
que com a intuição filosófica no seu verdadeiro sentido, com a captação
fenomenológica da essência, se abre um campo infinito de trabalho» (A
Filosofia como Ciência de Rigor).
Pode caracterizar-se fenomenologia com as seguintes notas:

a) A fenomenologia é um método, isto é, um modo de fazer da filosofia


uma ciência de rigor, face ao relativismo histórico e ao subjectivismo
psicológico. O primeiro passo para lograr esta filosofia será «uma crítica
positiva dos fundamentos e dos métodos» (como vimos no naturalismo e no
positivismo).

b) A fenomenologia é uma ciência descritiva, teorética e não


interessada, em oposição ao pragmatismo e utilitarismo da razão. A
fenomenologia é psicologia descritiva, descreve as essências assim que
estas se tenham intuído; descreve o dado, o manifesto enquanto fenómeno,
antes de qualquer pensar teórico.

c) A fenomenologia é ciência dos fenómenos, mas entendendo por


fenómeno algo diferente do que entendem Hume (estado psíquico) ou Kant
(o que se opõe à coisa em si). A palavra «fenómeno» em Husserl, significa
o mesmo que a palavra grega phainómenon: o que aparece à luz, que se
mostra e que consiste neste seu mostrar-se e com os traços ou aspectos
essenciais com que se mostra.

A FENOMENOLOGIA COMO FILOSOFIA PRIMEIRA


Mas como encontrar o ponto de partida justo? Com efeito, o ponto de
partida é aqui a situação insólita e o mais difícil. O novo campo não se
estende ante os nossos olhos com abundância de dados, de tal modo
destacados que podemos deitar-lhes facilmente a mão e estar seguros da
possibilidade de fazer deles objectos de uma ciência, nem tão pouco
estarmos seguros do método relativo ao seu proceder.
A essência da fenomenologia consiste em aspirar a ser a filosofia
«primeira» e oferecer os meios a toda a crítica da razão que se possa
fazer; por isso, postular uma absoluta evidência intelectual na reflexão
sobre si mesma requer que se prescinda o mais completamente possível
de pressupostos. A sua própria essência é encarnar a absoluta claridade
sobre a sua própria essência e, por isso, sobre os princípios do seu
método.
A fenomenologia quer ser uma ciência descritiva das essências das
vivências puras transcendentais em atitude fenomenológica; e, como
qualquer disciplina descritiva, não-construtiva e não-idealizante, tem o
seu próprio direito à existência. Tal como na intuição pura, é próprio dela
apreender tudo o que há para apreender em quaisquer vivências
reduzidas, quer seja ingrediente ou correlato intencional, sendo para ela
uma grande fonte de conhecimentos absolutos.
Husserl, Ideias Relativas a uma Fenomenologia Pura e a uma Filosofia Fenomenológica.

Isto é, a fenomenologia não é um saber de meros fenómenos enganosos


mas das próprias coisas, consideradas de tal modo que se apresentam como
realmente são, sem se deixar deformar por modos (métodos) acríticos de
estudo. A fenomenologia quer dar assim o sentido, preciso e essencial
(logos) das coisas, logo que estas se mostram (fenómenos), de maneira que
chegam a ser «reveladas» por aquilo que unicamente pode empreender
semelhante revelação do seu logos, a saber, a consciência pura.

d) A fenomenologia é transcendental, ou seja ciência fundamental e


filosofia primeira. Toda a estrutura da ciência assenta sobre o mundo da
vida (Lebenswelt), todas as ciências assentam no mundo quotidiano, de
carácter primigénio, pois aí é onde «a ciência tem a sua origem, a única a
partir da qual se pode obter uma inteligibilidade última».
A fenomenologia é ciência fundamental, na medida em que trata de
fornecer os fundamentos do fazer científico e da racionalidade da história e
da humanidade; é filosofia primeira na medida em que pertence oferecer
os princípios puros para levar a cabo essa fundamentação. Vê-se assim a
estreita relação entre a fenomenologia como ciência dos fenómenos e como
ciência fundamental e filosofia primeira: a fenomenologia oferece o
princípio puro e o fundamento da revelação do sentido essencial e
originário (logos), do que as coisas são na sua configuração e presença
(fenómeno) originária, E como a fenomenologia realiza esta função de ser
princípio e fundamento Husserl chama-lhe transcendental, termo com
profundas ressonâncias kantianas.

e) A fenomenologia é auto-reflexão da humanidade. Neste sentido a


filosofia tem uma «função de humanização do homem» e o filósofo é
«funcionário da humanidade» colaborando para que esta se desenvolva e
atinja essa razão com a qual o homem «se descobre responsável do seu
próprio ser». A filosofia rebela-se contra o mundo técnico, pois a «razão do
fracasso de uma cultura racional não se encontra – como já se disse – na
essência do próprio racionalismo, mas unicamente na sua alienação, na sua
absorção dentro do naturalismo e do objectivismo» (A Filosofia na Crise da
Humanidade Europeia).

1.3. O método fenomenológico

1.3.1. Sentido do método fenomenológico

A fenomenologia é um modo original e radical de fazer filosofia. Cria


um estilo novo de filosofar, ao mesmo tempo que investiga os pressupostos
da própria ciência; contribui com algo realmente revolucionário e que
facilita o desenvolvimento de um novo tipo de filosofia: o método
fenomenológico. Apesar das divergências no seu desenvolvimento e
aplicação, existe uma série de constantes, ou melhor dizendo, um estilo de
filosofia comum a todos os fenomenólogos (Heidegger, Scheler, Merleau-
Ponty).
O método fenomenológico é um método de acesso aos «fenómenos»
para procurar o seu fundamento; Husserl não se situa ao nível das ciências,
mas na dimensão originária do mundo da vida (Lebenswelt), que supõe a
ciência e é esquecida por esta.

1.3.2. Estrutura do método fenomenológico

As fases ou momentos do método fenomenológico, a partir da atitude


natural, são a epoché ou redução fenomenológica, a redução eidética e a
redução transcendental.

a) A atitude natural é uma «protocrença» que consiste em «crer na


realidade do mundo e de mim mesmo»; esta atitude ingénua será
abandonada mediante o acto de reflexão que é a epocbé.

ATITUDE NATURAL E ATITUDE FENOMENOLÓGICA


Esclareçamos isto detalhadamente. Na atitude natural efectuamos pura
e simplesmente todos os actos mediante os quais o mundo se nos oferece.
Vivemos ingenuamente por meio deste perceber e experimentar, por estes
actos téticos que nos fazem aparecer unidades de coisas do real, as quais
não só aparecem como também se dão com o carácter do «aí à frente».
Ao cultivarmos a ciência natural, efectuamos actos de pensamento
ordenados segundo a lógica da experiência, na qual estas realidades
(tomadas tal como se dão) são determinadas pelo pensamento, e sobre a
base de tais transcendências directamente experimentadas e determinadas
concluem-se novas. Com a universalidade de princípio, na atitude
fenomenológica retemos a execução de todas essas teses cogitativas, quer
dizer, «colocamos entre parênteses» as que foram efectuadas; «não
fazemos estas teses e tudo o resto» com vista a novas indagações; em vez
de vivermos nelas, de as efectuarmos, executamos actos de reflexão que
dirigimos a elas, e apreendemos estes actos como o ser absoluto que são.
Agora vivemos integramente nestes actos de segundo grau, no qual se dá
o campo infinito das vivências absolutas, o campo fundamental da
fenomenologia.
Husserl, Ideias Relativas a uma Fenomenologia Pura e a uma Filosofia Fenomenológica.

Adopta-se então a atitude reflectida, isto é, uma atitude não interessada;


a abstenção de juízo supõe, como nos diz Husserl em A ideia de
Fenomenologia, «um índice de indiferença, de nulidade gnosiológica que
afirma: a existência de todas estas transcendências quer eu acredite ou não,
não me concernem em nada».
Mediante esta mudança de atitude (da natural para a reflectida) que é
obra da nossa inteira liberdade, Husserl conseguiu separar o mundo de toda
a tese científica.

b) A redução tem um sentido de retorno ao mundo como sempre foi,


isto é, antes de haver sido parcelado e tematizado pelas ciências. O pôr uma
determinada existência entre parêntesis, o negar a sua validade nesse
momento, possibilitar-nos-á chegar ao já conhecido lema husserliano: «Às
próprias coisas!»
A redução pretende encontrar por detrás desse mundo reificado a série
de intencionalidades a partir das quais «se esboça o aspecto das coisas que
temos diante dos olhos». Com a redução, não perdemos nada do que é real,
mas simplesmente o seu carácter de realidade. Reduzimos o mundo ao que
aparece à minha consciência e, na medida em que aparece, fica reduzido à
minha consciência.
Por esta redução, o objecto que pertence ao mundo de que partimos
converte-se em objecto, em algo que se me contrapõe, em algo que existe
para a minha consciência. A redução afecta as ciências da natureza
(destruição do naturalismo e do objectivismo em todas as suas formas) e as
ciências do espírito (destruição do espiritualismo e do antropologismo).
1. Na epoché ou redução fenomenológica suspendemos a crença no ser
do objecto, colocamos entre parêntesis o mundo natural, as coisas como nos
aparecem na atitude natural, Husserl exprime-o dizendo que não tomamos o
mundo existente, que está dado perante nós de forma constante, como o
fazemos na vida prática natural.

2. Com a redução eidética pretende-se aceder ao campo da consciência


pura. Aplica-se aos factos, que são «esmiuçados» para poder captar aquilo
que verdadeiramente interessa a Husserl: o eidético. O que é o eidos
(essência)? «Antes de mais, designo por essência o que se encontra no ser
autónomo de um indivíduo e que constitui o que ele é». Graças à redução
eidética, obtêm-se essas essências universais que serão apreendidas por
meio da intuição pura.

3. Com o terceiro momento do método, a redução transcendental,


reduz-se o eidético a um nível superior para ver como se constitui a partir
das funções transcendentais do eu. Atinge-se o plano do eu e, paralelo a
este, o mundo da experiência transcendental ou da vida (Lebenswelt), que é
onde se realiza a fundamentação de todas as ciências. «A redução
transcendental é em primeiro lugar a desaprovação da ciência, a vontade
firmemente exercida de não encerrar a realidade do homem numa rede de
causalidades e de encontrar fora do mundo da ciência, o mundo da realidade
vivida que a ciência nos engendra a partir daquilo que é ela mesma.» A
redução situou-nos perante o mundo da vida quotidiana (Lebenswelt).

1.4. Consciência transcendental

1.4.1. Carácter intencional da consciência

A intencionalidade, que tem um carácter relacional e bipolar, significa


tender para um objecto. E o que se refere aos objectos é a própria
consciência.
Por consciência Husserl entende a totalidade dos actos ou vivências
intencionais, que constituem o seu conteúdo. A relação da consciência com
o objecto está mediatizada pelos distintos modos de intencionalidade, esse
sair fora de nós para dizer como vemos as coisas, para as descrever. A
intencionalidade não é um meio termo entre o eu e o objecto, pois é o
próprio eu na sua exteriorização, algo que pertence por completo ao pólo do
sujeito. Existe uma união essencial entre o eu e a intencionalidade. Nas
Meditações Cartesianas (II, § 14), Husserl afirma: «A palavra
intencionalidade não significa outra coisa a não ser esta particularidade
fundamental e geral que a consciência tem de ser consciência de qualquer
coisa, de levar, na qualidade de cogito, um cogitatum em si mesma.»
O modo genuíno da intencionalidade, que consiste essencialmente no
acto de dar sentido ao objecto, é a análise regressiva que parte do objecto
como dependente da consciência e recua ao momento da sua constituição
para aí ver como foi elaborado.

1.4.2. A estrutura da consciência

Para Husserl, a consciência está estruturada em ego-cogito-cogitatum; o


ego ou eu é o centro de toda a constituição, o cogito é o próprio acto de
representação, o acto constitutivo que dá sentido originário, e finalmente, o
cogitatum é o pólo objectivo da intencionalidade. A esta tríplice estrutura,
a que podemos chamar «via fenomenológica transcendental», estão unidas
as descrições mais diversas da fenomenologia; segundo esta via, o facto
acontece e configura-se a um modelo, isto é, à ideia: «o facto é a ideia
realizada e a ideia é o facto idealizado».
O ego (eu) é conseguido de imediato, pois possuímo-lo desde o primeiro
momento. A própria estrutura da consciência permite a Husserl distinguir
entre noese e noema. A noese é o acto intencional, «é o específico do nous,
no sentido mais amplo da palavra, cujas formas de vida actuais nos fazem
recuar a cogitações, e portanto a vivências intencionais em geral (...)»
(Husserl, Ideias). O noema é a objectividade do conteúdo do
conhecimento, e o conteúdo do acto intencional. Husserl chama intuição
ao acto da subjectividade pura, que capta de forma imediata e originária o
aspecto noemático, como correlato intencional da noese.

1.4.3. A fenomenologia como egologia pura

Nas Meditações Cartesianas (II, 13) Husserl chama à sua filosofia uma
egologia pura, visto que o ego ocupa o lugar central do seu pensamento.
Com Descartes passámos a um novo modo de abordar os problemas: o ego
é o único ponto de partida para uma filosofia radical. O eu puro obtém-se
como resíduo de consciência, graças à redução transcendental; o plano em
que se nos mostra o eu é o da experiência transcendental, que «é um modo
de consciência onde o objecto é dado como original». Este resíduo
fenomenológico, este ego, possibilita-nos um novo campo, o da
fenomenologia, e é o fundamento de todas as constituições; «a constituição
consiste numa operação cujo sentido é revelar o que já estava presente de
maneira oculta ou implícita». Mas esse eu fundador não é legitimado por
ninguém. O eu originário constitui a objectividade do mundo, a comunidade
humana e o eu mundano. Mas como se constituirá o eu? «O ego constitui-se
de algum modo na unidade de uma história (...) podemos dizer que na
constituição do ego estão contidas todas as constituições de todos os
objectos existentes por ele» (Meditações Cartesianas, IV, 37).

REALIDADE E CONSCIÊNCIA TRANSCENDENTAL


E deste modo se inverte o sentido usual do termo ser. O ser que para
nós é o primeiro torna-se assim em segundo, ou seja, só é em
«referência» ao primeiro. Não porque uma ordem cega de leis tornasse o
ordo et conexio rerum em ordo et conexio idearum. A realidade em
sentido rigoroso, tanto a da coisa tomada na sua singularidade como a do
mundo inteiro, carece essencialmente (no nosso sentido rigoroso) de
independência. Não é em si algo absoluto que se vincule secundariamente
a algo distinto, mas sim algo que em sentido absoluto não é, literalmente,
nada; não tem, literalmente, uma «essência absoluta», mas sim a essência
de algo que por princípio é somente intencional, somente para a
consciência; é algo representável, algo que aparece por/para uma
consciência.
A redução fenomenológica devolveu-nos o reino da consciência
transcendental como reino de um ser «absoluto» num sentido muito
preciso. Este ser é a categoria radical do ser em geral (ou, na nossa
linguagem, a região radical), no qual todas as outras regiões do ser têm as
suas raízes, a que referem por sua essência, e da qual dependem
essencialmente todas, portanto. Por conseguinte, a teoria das categorias
deve também, em absoluto, partir desta distinção do ser, que é a mais
radical de todas – o ser como consciência e como ser que se «dá a
conhecer» na consciência, o ser «transcendente»; como se vê, só o
método da redução fenomenológica oferece a possibilidade de alcançar e
apreciar o ser em toda a sua pureza.
Husserl, Ideias Relativas a uma Fenomenologia Pura e a uma Filosofia Fenomenológica

Portanto o ego husserliano deverá interpretar-se como um «eu puro e


transcendental». Serão estas características do eu ou, o que viria a ser o
mesmo, do homem, que o existencialismo questionará, pondo em causa que
essa pureza e transcendentalidade constituam a «essência» do homem ou da
existência humana.

Max Scheler
Nasceu em Munique em 1874 e morreu em Frankfurt em 1928. Foi discípulo de Eucken,
embora tenha sido Husserl quem realmente o influenciou. Scheler é um continuador da corrente
fenomenológica husserliana, mas com especial aplicação do método fenomenológico ao campo
da ética, no qual os valores aparecerão como entidades ideais; mais tarde, separar-se-ia da linha
de Husserl. Entre as suas obras mais importantes estão o Formalismo na Ética e a Ética
Material dos Valores (1913-16), Essência e Formas de Simpatia (1923), O Lugar do Homem no
Cosmos (1928).
A filosofia de Scheler é a prossecução de uma posição ética a priori na linha de Kant, se bem
que criticando o seu formalismo por vazio e abstracto; substitui uma ética formal a priori por
uma ética material a priori, isto é, uma ética cujo conteúdo é dado pelos valores como
entidades ideais. Valores que enquanto entidades ideais apresentam a universalidade e a
necessidade de uma ética a priori.
A atitude das pessoas frente ao valor é mediatizada por uma série de momentos:
1. Descoberta do valor. É atingida mediante uma intuição, que não é uma simples captação
intelectual, mas uma capacidade natural para poder aceder aos diferentes valores. É o que
Scheler chama «sentimento de valor»; já que não podemos aceder aos valores por meio do
raciocínio. Este sentimento de valor é individual. Há pessoas que não captam os valores, que
possuem uma certa cegueira perante eles: em certas épocas houve mesmo culturas que não
valoraram as coisas e as atitudes que tinham à sua volta.
2. Tomada de posição perante o valor: Perante o valor que já foi mostrado há que tomar
uma posição, não se pode ficar indiferente. Perante os valores há as seguintes atitudes: a) De
preferência, se nos defrontarmos com o valor pela primeira vez; b) De crítica, se os valores já
estão realizados; c) De realização, quando os valores não tenham sido realizados (e se crê que é
valioso fazê-lo).
Mas quem é o portador dos valores e os realiza? A pessoa será mais valiosa segundo o tipo
de valores que realize; se são éticos, será virtuosa; se científicos, sábia; se religiosos, santa, etc.
A pessoa é algo de dinâmico, a sua característica é actuar, a sua função é realizadora, dando
sentido a todas os nossos actos. Para a pessoa, esse est operari.
2. O EXISTENCIALISMO: EXISTÊNCIA E
LIBERDADE

2.1. Irredutibilidade e liberdade do indivíduo

Por «existencialismo» entende-se uma ampla corrente filosófica que


surge e se desenvolve principalmente na Europa entre as duas guerras
mundiais. A filosofia existencialista assenta as suas raízes fundamentais
numa situação cultural e política de crise; em certo sentido, é expressão da
desorientação e desenraizamento suscitada por uma mudança profunda da
cultura, dos valores e princípios, que configuraram e sustentaram a
sociedade durante uma determinada época histórica.
Mas a filosofia existencialista está igualmente enraizada na tradição
filosófica, muito especialmente no pensamento da modernidade e no modo
como este colocou os seus problemas fundamentais. O mais importante
desta conexão, a partir da qual se esclarece o sentido da filosofia
existencialista, pode resumir-se nos três pontos seguintes.

2.1.1. A irredutibilidade do indivíduo

O existencialismo é uma filosofia que afirma a originalidade da


existência individual. Neste sentido, está em continuidade com a crítica
que Kierkegaard fez do «sistema dialéctico nacionalista» hegeliano.
O verdadeiro e primário não é o todo, no qual a multiplicidade das
realidades singulares ficariam dissolvidas, mas o «singular» e
especialmente o singular que é a «realidade pessoal», a existência humana.
O sistema dialéctico engole o singular, desfaz e acaba por anular as
diferenças, o diferente por antonomásia, a saber, a realidade individual
única que é o meu eu: um eu que não pode ser reduzido a pensamento ou
razão, nem a um momento de uma razão universal, mas um eu que é
primariamente liberdade e que consiste na capacidade de «decidir-se» e
«escolher-se a si mesmo».

2.1.2. A existência como liberdade

A realidade individual única por antonomásia é a existência. O termo


«existência» não designa agora a facticidade ou o facto de existir de
qualquer coisa ou realidade, mas exclusivamente a realidade do eu; mas não
um «eu puro» (como o do cogito cartesiano, ou o eu transcendental
kantiano ou husserliano), mas um «eu concreto e mundano», cuja
estrutura e determinação será entendida de um modo peculiar em cada caso.
Para o existencialismo, a existência é o fenómeno fundamental, pois é
ela que decide e estabelece o significado e valor de toda a realidade: a
existência constitui-se assim no «princípio que funda» segundo a sua
estrutura. Porém, a estrutura originária da existência não é o «pensamento»
mas a liberdade; uma liberdade absoluta, isto é, que no seu exercício,
decisão e escolha, não está submetida ou ligada a nada que de alguma
maneira a determine ou dirija. Quando algum filósofo existencialista afirma
que «a existência precede a essência», o que essencialmente quer dizer é
que o homem não tem uma natureza ou essência que o fixe de algum modo
e que oriente a sua liberdade, mas que o homem é, ou melhor chega a ser,
«feitura» e «invenção» da sua absoluta liberdade. E esta relação de
fundamento conserva a existência como liberdade relativamente às restantes
coisas ou entes, que apenas recebem um sentido na sua «aparição» ante a
existência.
Como pode ver-se, o existencialismo depende em grande parte da
fenomenologia husserliana.
2.1.3. A fenomenologia como método

A análise da estrutura da existência e do sentido da realidade realiza-se a


partir da fenomenologia. Isto significa duas coisas: 1) a fenomenologia é o
método de análise usado pelos existencialistas, uma fenomenologia que,
aprendida em Husserl, será transformada em cada caso, com a consequente
reinterpretação dos dois pólos da relação intencional; 2) a fenomenologia é
além disso uma ontologia, isto é. estabelece o sentido do real de si mesma
na medida em que a teoria existencialista da realidade interpreta o ser como
fenómeno que «aparece ou se manifesta» ante a existência, cujo princípio
fundamental é a liberdade.

Sören Kierkegaard
Nasceu em Copenhaga em 1813 e morreu na mesma cidade em 1855. Fez estudos de
teologia, mas nunca chegou a exercer a profissão de pastor para a qual se preparara.
Em 1841-42 ouviu em Berlim as aulas de Schelling e ficou entusiasmado; mas o seu
entusiasmo pelo idealista alemão depressa esfriou. Voltou a Copenhaga e ali viveu sempre
dedicado a escrever e dependente dos seus livros e publicações.
Kierkegaard passa por ser o precursor do existencialismo. Esta afirmação baseia-se mais no
seu próprio talento pessoal, do que nas suas ideias, no seu sistema filosófico – que não existe
propriamente como tal. Os seus escritos tratam certamente temas como a fé, a angústia, etc.,
temas que terão eco no existencialismo posterior, mas que não constituem os conteúdos mais
centrais ou definidores desta corrente filosófica.
Uma profunda sensibilidade religiosa de raiz protestante e uma aguda e quase visceral recusa
do idealismo hegeliano, tal como aparecia cristalizado na atmosfera cultural em que vivia,
definem esta filosofia ao mesmo tempo que a sua própria biografia. Biografia e Filosofia
entrelaçam-se estreitamente em Kierkegaard; dele se poderia dizer que confirma na perfeição a
afirmação fichteana de que «a classe de filosofia que se escolhe depende da classe de homem
que se é».
O seu Diário confirma claramente a forte reivindicação do homem concreto, o qual é,
religiosamente, único perante Deus, e não pode ser dissolvido na razão.
O seu espírito dubitativo, temeroso e intimidado pela consciência da culpa, levou-o a um
comportamento social extremamente singular: rompe – sem razões aparentes – as suas relações
com Regina Olsen, regista com sensibilidade desproporcionada as críticas de que foi objecto na
imprensa, polemiza agudamente contra a igreja luterana do seu país e especialmente, no fim da
vida, contra o teólogo hegeliano Martensen.
As suas obras reflectem as suas preocupações e sobretudo o seu estilo e temperamento
pessoais: Ou isto ou aquilo (1843), Temor e Tremor (1843), O conceito de Angústia (1844), A
Enfermidade Mortal (1849).

A filosofia existencialista, integrada por numerosos filósofos, apresenta-


se com diversas variantes: existencialismo ateu, cristão, etc. Pela nossa
parte, estudaremos três egrégios representantes, Heidegger, Sartre e
Merleau-Ponty embora também acrescentemos algo sobre Jaspers.

2.2. Heidegger e a tradição filosófica

2.2.1. Sentido do pensamento heideggeriano

A obra filosófica de Heidegger é singularmente complexa. Embora no


entusiasmo e na moda (ambos pouco propícios a uma análise serena e
objectiva) que o existencialismo provocou nos seus começos Heidegger
fosse considerado um filósofo existencialista, a verdade é que apenas o seu
pensamento pode ser etiquetado como tal.

O EU COMO DEVIR E LIBERDADE


O eu é a síntese consciente de infinitude e finitude, que se relaciona
consigo mesma, e cuja tarefa consiste em chegar a ser si-mesma, coisa
que só se verifica se nos relacionarmos com Deus. Ora, chegar a ser si-
mesmo significa vir a ser concreto. Mas vir a ser concreto não significa
que se chegue a ser finito ou infinito, pois o que vem a ser concreto é
certamente uma síntese. Assim, a evolução consistirá em libertar-se
incessantemente de si-mesmo nesse vir a ser infinito do eu; mas, por
outro lado, sem deixar de retornar incessantemente a si-mesmo nesse vir
a ser finito do eu. Pelo contrário, se o eu não chega a ser si-mesmo, toma-
se então desesperado, quer o saiba ou não. Por conseguinte, um eu está
sempre em devir em todos e em cada um dos momentos da sua
existência, pois o eu kat£ dØnamin realmente não existe, é simplesmente
algo que deve vir a ser. Assim, o eu não é em si-mesmo enquanto não for
si-mesmo, e não ser si-mesmo é em definitivo o desespero.
Para que alguém seja – e o eu deve formar-se com toda a liberdade –
a possibilidade e a necessidade são igualmente essenciais. Tal como a
infinitude e a finitude pertencem à constituição do eu (£peiron-pôraj), o
mesmo acontece com a possibilidade e a necessidade. Por isso, é tão
desesperado o eu que carece de possibilidades como o eu que não tem
nenhuma necessidade.
Kierkegaard, A Doença Mortal.

Na sua obra, é certo, leva-se a cabo uma análise da existência, mas a


chamada «analítica existencial» heideggeriana é movida por um projecto
que ultrapassa toda a filosofia de escola, todo o estudo parcial
(antropológico, linguístico, ético, etc.); é movida pela necessidade de
empreender uma reflexão sobre a situação presente do mundo e da cultura
ocidental (nas suas diferentes expressões: linguagem, técnica, poesia, arte,
Deus, ciência, pensamento, humanismo...) na tentativa de recuperar o seu
sentido unitário, compreender mais a fundo tais fenómenos a partir da sua já
longa (e por isso quase esquecida) génese grega e assim fazer um «balanço
crítico» do nosso tempo.
Heidegger considera que a história do Ocidente, as suas manifestações
«culturais» e o modo como o homem se interpretou a si mesmo são
resultado da metafísica, isto é, de uma maneira peculiar e precisa de
interpretar a relação entre ser e pensar. O mundo ocidental fez uma ideia do
que é «ser» e do que é «pensar» e essa concepção determinou e configurou
o modo de entender os fenómenos culturais referidos anteriormente, cuja
expressão mais refinada, segundo Heidegger, é a técnica e a crescente
tecnicização do mundo e do homem.
A obra heideggeriana analisa e repensa os diferentes fenómenos e
expressões do mundo ocidental, tecnicizado e tecnológico, em diálogo com
os pensadores do passado para nesta repetição da história assistir à génese
do nosso tempo e assim descobrir o seu profundo e já esquecido sentido.
Este significado primigénio habilitar-nos-á, porventura em algum dia
vindouro (que pode tardar séculos), a iniciar uma nova experiência do ser
na sua relação com o pensar e, em consequência, a transformar o modo de
entender, viver e configurar (numa modelação prática social, política e
cultural) a linguagem, a comunicação intersubjectiva, a arte, o habitar na
terra, o divino, etc.
Heidegger não é de modo algum um pensador metafísico, se por
metafísica se entende o modo (unitário no essencial dentro das diferenças)
como se interpretou a relação entre ser e pensar desde Platão a Nietzsche.
Pelo contrário, Heidegger é um pensador antimetafísico, antitradicional
(pois em seu entender toda a tradição ocidental ressuma e está determinada
pela metafísica), «destruidor» da metafísica; não no modo pitoresco de um
«robinsonismo ingénuo e acrítico que, ignorando a história (e portanto o
que somos), procura estrear o mundo, mas sim pela reflexão sobre o que
temos sido e o modo como chegámos a sê-lo, pela reflexão «metafísica»
para assim poder promover uma interpretação «não-metafísica» do mundo;
o que não significa que advogue qualquer tipo de positivismo, cientismo,
irracionalismo, ateísmo, etc., pois tudo isto, no fundo, são apenas «formas e
sequelas» da maneira metafísica de pensar.

Martin Heidegger
Nasce em 1889 em Messkirch e morre em 1976. Não é ainda possível qualificar com
perspectiva suficiente o significado e a importância do seu pensamento.
A figura de Heidegger foi e é objecto de profundas discussões: a sua condição de professor
universitário alemão, em pleno auge do nazismo, originou que a sua vida não possa ser julgada
sem referência a essa triste experiência político-cultural que foi para a Europa o nacional-
socialismo alemão (com todos os seus derivados).
Heidegger foi professor em Marburgo e mais tarde, em 1928, em Friburgo, como sucessor de
Husserl, cuja filosofia teve influência no seu pensamento. Em 1933 é nomeado reitor da
Universidade de Friburgo, quando o regime hitleriano ascendia vertiginosamente. O discurso
que Heidegger pronuncia na ocasião da sua tomada de posse será sempre a pedra de escândalo
usada pelos seus detractores, Poucos meses depois, no entanto, Heidegger demite-se do cargo e
prossegue o ensino, embora levando uma vida discreta. Por volta de 1945, aquando da ocupação
aliada, é suspenso do seu emprego académico. A sua recondução na cátedra acontecerá em
1952, mas a sua actividade universitária não terá a intensidade de outrora e será intermitente.
Seja qual for o juízo definitivo – difícil – sobre esse ponto da sua vida, Heidegger foi uma
excepcional testemunha da história filosófica do Ocidente. Filho genuíno de uma tradição
metafísica que no século XX se viu ancorada no niilismo, Heidegger esforçou-se por pesquisar
nas raízes dessa cultura e por reencontrar e depurar, no meio desse drama do homem europeu, as
perguntas originárias que conduziram essa história. A sua linguagem, sob uma primeira camada
abstracta e esotérica, está agarrada aos temas mais concretos e mais cruciantes: a técnica, o
poder, a manipulação do homem na sociedade actual, a liberdade. Hoje em dia está superado o
lugar-comum de apresentar Heidegger como protótipo «metafísico», no sentido pejorativo de
que o seu pensamento é puro palavreado vão e sem sentido. O impacte heideggeriano em
pensamentos críticos, e até revolucionários, do presente – pense-se na Escola de Frankfurt – está
fora de qualquer dúvida.
Heidegger escreveu incontáveis obras e opúsculos. Apenas podemos apresentar algumas: Ser
e Tempo (1927); Kant e o Problema da Metafísica (1929); O que é a Metafísica (1929);
Doutrina de Platão sobre a Verdade (1947); Carta sobre o Humanismo (1946); Sendas
Perdidas (1950), etc.

A tentativa heideggeriana, simultaneamente «titânica» e «intempestiva,


inactual», consiste em tentar compreender o que significa «ser»:
perguntar pelo «sentido do ser», que não é unívoco nem fixo (e muito
menos no modo como o interpretou e o vive a modernidade e a sua
expressão mais fiel e depurada: a tecnologia), não dado de uma única vez
ou estático, mas pelo contrário, temporal e histórico.
Perguntar pelo sentido do ser é perguntar também pelo carácter
temporal ou histórico do ser, quer dizer, pela relação entre ser e tempo.
Não é por acaso que o seu primeiro grande livro se chama Ser e Tempo.
Mas a dilucidação do que significa «ser» na relação entre ser e pensar é
impossível sem uma prévia «analítica» do homem ou da existência (do
Dasein ou Ex-sistenz), escreve Heidegger, perante quem e para quem o ser
tem, revela e manifesta um sentido.
Não é em vão, pois, nem à margem de um claro projecto ontológico que
Ser e Tempo executa uma «analítica existencial do Dasein», utilizando o
método da fenomenologia e baseando-se na ideia de que a realidade tem
uma estrutura e um carácter fenomenológicos.

2.2.2. A ideia de uma ontologia fundamental


Na sua explicação do que entende por fenomenologia, Heidegger aponta
os significados de «fenómeno» e «logos». Fenómeno é o que se mostra em
si mesmo, o patente, o manifesto. Logos, no seu sentido originário grego,
significa não só linguagem ou razão mas também fazer ver, pôr a
descoberto. Por conseguinte, fenomenologia quer dizer fazer ver o que se
mostra e tal como se mostra em si mesmo: a sua função é mostrar e
desocultar aquilo que, embora não esteja facticamente dado e presente, é e
constitui o fundamento e sentido do presente. O fundamento último do real
foi pensado e dito na tradição filosófica com a palavra «ser»: daí que a
fenomenologia tenha por tarefa revelar o sentido do ser. A fenomenologia é
pois «ontologia».
A fenomenologia heidegeriana dista muito e essencialmente da
husserliana. Em última análise, e após os diferentes momentos redutivos.
Husserl desembocava num eu puro transcendental, desligado do mundo,
como princípio último e originário. Para Heidegger, este eu puro é
inaceitável por ser irreal, como inaceitável é também a redução
transcendental, a não ser que se violente «a própria coisa» (infringindo
assim o lema husserliano).
Pois o que existe na realidade não é uma subjectividade pura a priori
(esta é apenas a expressão consumada da interpretação metafísica do
homem como sujeito, iniciada por Descartes), mas um eu-no-mundo. Só
após esta purga do idealismo da fenomenologia husserliana, e numa
consideração mais objectiva e atenta da realidade tal como se apresenta,
tem Heidegger o caminho aberto (como fará Sartre mais tarde, de outro
modo) para o seu projecto ontológico.
E como neste projecto ontológico é precisa, pelas razões indicadas na
epígrafe anterior, uma análise da existência ou Dasein, a «analítica
existencial do Dasein» é propriamente uma ontologia fundamental, ou seja,
uma análise e interpretação do Dasein (Ser-aí) orientada para mostrar a
possibilidade e o sentido da ontologia como compreensão originária do
sentido do ser, para a partir dela compreender a destruição e a superação da
metafísica e da modernidade configurada por ela em todos os aspectos.
A analítica existencial heideggeriana é de uma tal complexidade,
minuciosidade nos matizes e extensão que nos parece impossível uma
apresentação simultaneamente breve e inteligível. Mencionaremos por isso
apenas três dos momentos estruturais em que se constitui o Dasein ou
existência: ser-no-mundo, cuidado (Sorge) e temporalidade.

a) O estar (sein, ser) da existência no mundo não é um «estar» como o


dos demais entes (quer consistam num «mero permanecer fechados e sem
possessão de si mesmos» – Vorhandene –, quer se esgotem numa pura
referencialidade e utilidade – Zuhandene), nem mundo quer dizer natureza
ou lugar: «Mundo» escreve Heidegger na Carta sobre o Humanismo, «não
significa de modo algum o ente terreno por oposição ao celeste, nem sequer
o ‘secular’ por oposição ao ‘espiritual’. Mundo não significa nessa
determinação nenhum ente nem nenhum âmbito do ente.» Estar no mundo
significa «estar aberto à compreensão do ser numa situação, ou encontrar-se
determinado e projectado a um número indefinido de possibilidades».

b) Esta estrutura complexa é retomada e explicitada no cuidado ou


Sorge, cujos momentos são: «pré-ser-se», «ser junto a» e «ser-já-no-
mundo». Importa reparar especialmente no primeiro, pois nele se indica o
carácter «antecipativo, projectante e de autotranscendência» que é o Dasein
(e que, enquanto transcendência ou ultrapassagem, Heidegger denomina
«ex-sistência»).

c) A condição de possibilidade de semelhante autotranscendência e


abertura projectiva é constituída pela temporalidade, na qual reside «a
unidade original da estrutura do Sorge». A essência da temporalidade é um
«fora de si», na unidade dos três momentos do tempo: futuro, presente e
passado, sendo o primeiro o mais importante.
A compreensão e revelação do sentido do ser opera-se em e através do
Dasein, o que não significa que o Dasein seja determinante e o fundamento
último do sentido do ser, dos entes, do mundo e do homem na sua vida e
história. Semelhante interpretação significaria cair no «subjectivismo», cuja
expressão mais fiel e reveladora é a técnica, e no «humanismo» da
modernidade que Heidegger se propõe superar. Neste ponto, podem-se
avaliar todas as radicais diferenças entre o existencialismo de Sartre e a
ontologia fundamental heideggeriana.

2.2.3. Técnica e mundo moderno

O mundo moderno, considerando como tal aquele que Descartes inicia e


pensa filosoficamente e está em vigor nos nossos dias, está determinado
pela metafísica: interpreta a realidade ou o ser como objectivo simples e
recortado (só o objecto é objectivável e, por ser «manipulável», deverá ser
tido como real); considera o homem como sujeito (princípio de
determinação absoluta, vontade de domínio e de poder); concebe a verdade
como certeza (em princípio «afirmação» e em última análise, «utilidade»);
caracteriza o pensamento e a linguagem como um puro conhecer
representativo e um significar empírico-reprodutivo ou figurativo.
Esta complexa «hermenêutica» heideggeriana é moldada na técnica,
considerada o «fenómeno» fundamental do mundo moderno, e na
tecnologia, que no dizer de Heidegger é «a metafísica da era atómica». A
filosofia moderna tem uma concepção «técnica» da realidade: por um lado,
considera o real como «material de exploração», redutível a mera
disponibilidade através da planificação e de cálculo que tudo converte em
puro meio e instrumento; e por outro, nessa sua redução do real vela e
oculta qualquer outro sentido da realidade e qualquer outro modo de a
encarar.
A técnica não é, simplesmente, a transformação instrumental-
tecnológica da realidade; nem sequer a submissão da realidade com seu
carácter «impositivo e dominador»; a técnica é, pensada filosófica e
originariamente, um modo de «manifestar, descobrir e interpretar» a
realidade, regido pela «calculabilidade, utilidade e rendimento».

O PRESENTE
Esta Europa, em atroz cegueira e sempre pronta para se apunhalar a si
mesma, jaz hoje sob a grande tenaz formada pela Rússia, de um lado, e
pela América, do outro. Todavia, e numa perspectiva metafísica, a Rússia
e a América são a mesma coisa: a mesma fúria desesperada da técnica e
da organização abstracta do homem. Quando o cantinho mais afastado do
globo tiver sido tecnicamente conquistado e explorado economicamente;
quando um acontecimento qualquer for rapidamente acessível em
qualquer lugar e em qualquer tempo; quando se puder «experimentar»
simultaneamente o atentado a um rei em França e um concerto sinfónico
em Tóquio; quando o tempo for apenas rapidez, instantaneidade e
simultaneidade, e quando o temporal, entendido como acontecer
histórico, tiver desaparecido da existência de todos os povos; quando o
boxeador lutar como o grande homem de uma nação; quando as massas
aos milhões triunfarem nas assembleias populares – então, precisamente
então, as perguntas «Para quê?», «Para onde?», «E depois disto?»
voltarão a atravessar todo este caos como fantasmas.
A decadência espiritual é tal que sobre os povos da Terra impende a
ameaça de se perder a última força do espírito, aquela que permitiria ver e
apreciar a decadência como tal (pensada em relação com o destino do
«ser»). Esta simples comprovação não tem nada a ver com o pessimismo
cultural, nem obviamente com o optimismo. Com efeito, o
obscurecimento do mundo, a retirada dos deuses, a destruição da Terra, a
massificação do homem e a insidiosa suspeita contra aqueles que criam e
são livres, alcançaram em todo o planeta tais dimensões que categorias
tão pueris como as do pessimismo e optimismo já se tornaram ridículas
há muito tempo.
Heidegger, Introdução à Metafísica.

Daí que para Heidegger a técnica represente um perigo, que na sua


extrema gravidade estaria não tanto na destruição atómica do mundo mas na
submissão do próprio homem (e de todas as suas expressões) ao domínio da
técnica, com a instrumentalização de si próprio e a aceitação da ideia
«técnica» do mundo como algo «natural».

2.3. O humanismo existencialista de Sarte

2.3.1. Ideia de uma ontologia fenomenológica

O pensamento existencial sartreano, como o de Heidegger, vincula-se à


fenomenologia num duplo sentido; em primeiro lugar, Sartre remete-se à
tese fenomenológica básica de que todo o real não só aparece como deve
consistir e esgotar-se na série completa das suas manifestações. Neste
ponto, Sartre pertence a uma época pós-moderna, que soube reduzir os
dualismos que estão contidos na básica oposição fenómeno-númeno
impostos por Kant a toda a filosofia posterior. Em segundo lugar, e em
estreita relação com a anterior, Sartre reconhece, em fidelidade à doutrina
fenomenológica husserliana, que a natureza do eu é intencional, isto é, que
o eu é uma realidade virada para o outro do qual recebe conteúdo e
realidade concreta. O eu consiste basicamente em abertura e intenção
(tendere in) de tal maneira que, à margem da sua relação com o objecto, ao
qual in-tende é puro vazio e nada.

Jean-Paul Sartre
Nasceu em Paris em 1905 e morreu na mesma cidade em 1980. Foi feito prisioneiro pelos
Alemães na II Guerra Mundial. Após a sua libertação volta a Paris, onde se envolveu
completamente na Resistência. No fim da Guerra, em 1945, funda a famosa revista Temps
Modernes. Foi um intelectual plenamente activo e engagé, presente em todas as manifestações
da vida cultural, social e política. É simultaneamente um grande filósofo, um consumado autor
literário e teatral que utilizou a literatura como meio de expressão (e compromisso) das ideias
filosóficas e políticas. Compartilhou a sua vida e os seus interesses intelectuais e políticos com a
famosa escritora Simone de Beauvoir, que personificou em tom feminino – promotora do
feminismo – as mesmas ideias e interesses.
O existencialismo de Sartre foi muito mal divulgado e até mal entendido.
Numa primeira época, tanto as suas obras filosóficas como as literárias expõem o seu
pensamento ontológico existencial propriamente dito: A Imaginação (1936), A Náusea (novela,
1938), O Ser e o Nada − Ensaio de Ontologia Fenomenológica (a sua primeira grande obra,
1943) e O Existencialismo é um Humanismo (1946) podem ser consideradas como muito
significativas. Crítica da Razão Dialéctica (1960), obra a que deveria seguir-se uma segunda
parte, que não foi publicada, marca a segunda época do pensamento sartreano na qual Sartre
tenta rever o pensamento marxista no sentido de lhe injectar – fruto da crítica – o pensamento
existencial ou a ontologia da liberdade que era o existencialismo, um pensamento «parasitário»
do marxismo, mas que em rigor estaria destinado a fermentá-lo criticamente. A funda
sensibilidade intelectual sartreana e a sua trajectória de homem comprometido com o ideal
revolucionário de uma sociedade de homens em liberdade não podiam deixar de o levar a
repensar criticamente o marxismo.
Os últimos anos da vida de Sartre constituem uma terceira etapa do seu pensamento, na qual
o existencialismo e o marxismo são transcendidos em novas conclusões e perspectivas.

A ontologia de Sartre apoiar-se-á nestes supostos e será – segundo as


suas próprias palavras – uma «ontologia fenomenológica», descritiva ou
analisadora da relação sujeito-objecto, que se revela na consideração da
consciência, na sua estrutura intencional. Objecto e sujeito – veremos em
seguida a sua caracterização – são pois os dois pólos desta ontologia.
O objecto é o ser-fenómeno que aparece à consciência. O fenómeno,
o que é dado à consciência, não é «o-que-aparece» de uma coisa que, além
do que mostra, ocultasse algo em si que fosse incognoscível, mas é o que se
mostra simplesmente. O que aparece é, e o ser é o que aparece.
Isto significa para Sartre o reconhecimento do carácter «absoluto»,
metafenoménico ou transfenoménico do ser que se mostra no fenómeno. «O
fenómeno do ser exige a transfenomenalidade do ser.» Por outras palavras,
o ser não se reduz a um mero conteúdo de consciência. Mas essa
transfenomenalidade também não quer dizer que o ser se encontre oculto
por detrás dos fenómenos. Este algo, fenómeno do ser, que é para a
consciência mas que não se reduz à consciência e não é consciência, é
denominado por Sartre ser-em-si (être-en-soi). O em-si descreve-se
analiticamente – e não pode sê-lo de outro modo – como «o ser que é o que
é», pura facticidade e opacidade.
O que é a consciência face ao em-si? Ser que é para-si (être-pour-soi).
Sartre analisa este pólo da relação sujeito-objecto advertindo, como no caso
do objecto, que temos de reconhecer a transformação transfenoménica do
eu. O eu que aparece é um fenómeno que se situa, ontologicamente falando,
ao mesmo nível dos fenómenos do mundo externo. E vimos a dimensão
transfenoménica do fenómeno. Poderia dizer-se, em princípio e de acordo
com isto, que o eu é também «o ser que é o que é». Mas o que é
exactamente este ser que ao mesmo tempo que é o pólo de origem da
relação intencional aos fenómenos do mundo também a eles se contrapõe?
O seu ser-em-si é, paradoxalmente, a negação do rigor em-si.
A consciência, âmbito das manifestações do ser, é relação ao fenómeno
e surge como resultado da negação (aniquilamento) do real (em-si) que
aparece à consciência. Mas isso significa ao mesmo tempo a presença da
consciência face a si mesma. Por isso, é para-si ou ser-para-si. Consiste no
seu puro aparacer e é precisamente sempre o que não é.
O ser-para-si é nada porque a consciência é sempre consciência de algo,
consciência que se dirige sempre a um ser que não é ela mesma. A
consciência é como uma dualidade ou cisão interior e isso é o que a
distingue fundamentalmente do ser-em-si. A opacidade e facticidade pura
do ser-em-si, a sua identidade cega por assim dizer, exclui a consciência.
Para Sartre, pelo contrário, o ser da consciência consiste no facto de existir
distanciada face a si mesma como autopresença e esta distância nula que
leva o ser no seu ser é o nada. Assim, para que exista um eu, a unidade
deste ser tem de admitir o seu próprio nada, como nulidade do idêntico.

2.3.2. Existencialismo e humanismo

A ontologia fenomenológica que acabamos de examinar conduz-nos à


seguinte afirmação; o eu ou a consciência é para Sartre mero projecto, uma
estrutura aberta (vazia e dividida) resolúvel sempre na pura indeterminação.
E além disto, logicamente, estrutura processual e temporal. Tudo isto é o
que Sartre designa com o nome de existência.
O ser-para-si é existência e, entendido bem o que significa o para-si,
pode compreender-se sem mistificação e sem lugares-comuns a afirmação
sartreana de que a «existência precede a essência». Com isso pretende-se
simplesmente a originalidade e a irredutibilidade da subjectividade, face à
facticidade e ao carácter compacto do ser-em-si. «O homem é antes de mais
um projecto que se vive subjectivamente, em vez de ser um musgo, uma
podridão ou uma couve-flor», disse expressivamente em O Existencialismo
é um Humanismo.
O preceder da existência é por um lado a afirmação positiva da
originalidade do projecto da subjectividade na concepção do homem e por
outro, consequentemente, a negação de um conceito da realidade humana
como produção técnica ou projecto de uma inteligência ou vontade
transcendentes, em cujo caso, a realidade humana estaria contida na
opacidade do dado e compartilharia da mera facticidade do en-soi.
Mas mesmo no caso de um pensar facticamente ateu, como acontece a
partir do século XVIII, o remeter a interpretação do homem para o conceito
de uma natureza ou essência humana – como fez o Iluminismo – acaba por
cair no mesmo erro de anular a originalidade da subjectividade, pensa
Sartre. O homem, o eu, antes de qualquer acto concreto da vontade
individual ou subjectivista, no sentido pejorativo da palavra, está no mundo
– existe – ajustado como subjectividade, à indeterminação total, isto é,
como projecto nu, sem determinações essenciais ou objectivas que o dirijam
ou o orientem.
Enquanto pura subjectividade, o homem está distanciado de tudo o mais
e não é nada senão essa estrutura em constante inadequação consigo
mesma, que consiste na sua constante «nadificação»; ou, por outras
palavras, que se põe a si-mesma constantemente em causa, sem vínculo
com natureza ou essência alguma. É isto precisamente a liberdade. A
liberdade, para Sartre, identifica-se com a própria estrutura da existência ou
do para-si.
Para Sartre é evidente que a liberdade assim interpretada não pode estar
determinada ou regida por fins ou por um mundo de valores. No meio da
liberdade, a existência constrói ou tenta determinar ou conquistar a sua
essência. Neste sentido, na medida em que a liberdade possibilita a auto-
realização de um ser, o projecto da existência humana é o empenho
constante em salvaguardar a distância ou inadequação entre o ser-para-si e o
ser-em-si. No sujeito está latente, por assim dizer, um projecto de
plenificação que tende a um ideal: a perfeita coincidência do em-si e do
para-si, como seria o caso de Deus. O homem quer ser Deus e é essa a
paixão da liberdade. Mas tal projecto é um fracasso e mais ainda um
absurdo porque as características do em-si e do para-si são contraditórias.
Por isso, o homem, enquanto é este projecto, é uma paixão inútil. Apesar
destas teses fundamentais, o existencialismo sartreano de acordo com
confissão própria, apaixonada e mesmo polemicamente defendida, é um
humanismo. Como se justifica e auto-explica tal humanismo?
Na medida em que este universo da subjectividade humana – o único
que existe – é o de uma realidade que «está fora de si», que projecta e existe
justamente na sua projecção, o homem é a única «transcendência» e não
tem outra lei senão a que se dá a si mesma; as demais coisas ordenam-se em
relação a esse rebaixamento ou transcendência do ser humano.
Esta centralidade do homem é humanismo e é o único possível;
humanismo que é evidentemente incompatível com a ideia de Deus e com
um mundo de essências. «O existencialismo nada mais é do que um esforço
para extrair todas as consequências de uma posição ateia coerente. Não
procura de modo algum submergir o homem no desespero (...). O
existencialismo não é um ateísmo, no sentido de se esgotar na
demonstração de que Deus não existe. Antes declara: mesmo que Deus
existisse, nada mudaria (...). É necessário que o homem se encontre a si
mesmo...» (O Existencialismo é um Humanismo).

2.3.3. Existencialismo e marxismo


Como se afirma na obra que acabamos de citar, e apesar das
reivindicações sartreanas quanto ao carácter comprometido da sua filosofia,
o pensamento existencial ou ontológico-fenomenológico de Sartre adoptava
uma óptica individualista ou subjectiva, que o catapultava para fora do
âmbito em que a filosofia é também capaz de encarar a dimensão social e
histórica do homem e do seu mundo. Falta a este pensamento existencialista
assumir explicitamente uma instância histórico-prática, necessidade esta
que Sartre viveu pessoalmente na sua própria vontade de homem
comprometido com os problemas do pós-guerra e com a Resistência
francesa em concreto.
A última grande obra de Sartre, Crítica da Razão Dialéctica, publicada
em 1960, é uma espécie de auto-superação do existencialismo, numa
tentativa de superar aquela carência. Nessa obra Sartre entra em diálogo
com o marxismo, num alarde ambicioso, que se situa na linha das grandes
filosofias críticas da modernidade.
A Crítica da Razão Dialéctica propõe um exame crítico da razão com
desejo de que esta reoriente a sua marcha. Mas é naturalmente um exame da
razão adequada ao seu tempo, uma época em que a filosofia, longe de se
contentar com pensar o mundo, o deve transformar, como afirma, segundo
vimos, a undécima (XI) tese de Marx sobre Feuerbach. Essa é a essência
insuperável da filosofia marxista ou, mais exactamente, da inversão
hegeliana – superação do idealismo – que a filosofia marxista pretende ser.
E com isso conta Sartre.
De acordo com isso, esta obra sartreana enquadra-se em duas
coordenadas ou teses fundamentais que muito resumidamente podiam
defini-la. Em primeiro lugar, e como hipótese, Sartre entende e defende que
o marxismo é a filosofia do seu tempo. Não existe uma única filosofia mas
várias, mas em cada tempo histórico uma e apenas uma pode ser filosofia
vivente na medida em que totaliza o saber da época e é «um certo modo de
tomar consciência de si por parte da classe ascendente».
Uma filosofia assim vivente é insuperável enquanto não se modificarem
as circunstâncias históricas que lhe deram vida. Se isso é assim, qualquer
outra filosofia coetânea da filosofia vivente é ideologia. Por conseguinte,
Sartre reconheceu que no seio de uma época interpretada de modo genuíno
pelo marxismo, o existencialismo só é e só funciona como ideologia. Sartre
distingue diversos existencialismos – o de Jaspers, grosso modo cristão, em
seu entender; o de Heidegger; o seu – e analisa a tessitura ideológica dos
mesmos em relação ao marxismo. Sartre entende que o seu existencialismo
– não nos interessam por agora os outros – se desenvolveu como uma
ideologia à margem do marxismo, mas não contra ele. Como ideologia
«parasitária», diz entre aspas.
Mas – e isto é decisivo como complemento desta primeira coordenada –
o marxismo está esclerosado ou em vias de esclerosar. O marxismo
cristalizou como uma teoria hermética e inflexível, ao mesmo tempo que a
sua práxis se tornou num praticismo sem princípios. É neste ponto que
Sartre entende – e esta é a segunda coordenada ou tese da obra – que temos
de conduzir o marxismo à sua condição de possibilidade; ou, dito de outra
maneira, que temos de estabelecer criticamente o princípio fundamental do
materialismo histórico. Este princípio não é senão a própria estrutura da
existência. A Crítica da Razão Dialéctica, ao estabelecer que a estrutura da
liberdade ou existência é a estrutura principal da dialéctica, sua condição a
priori de possibilidade, converte-se numa espécie de reconquista
antropológica ou humanista do marxismo. A obra, em determinado
momento, define-se a si mesma como «prolegómenos a toda a antropologia
futura...», reafirmando assim, uma vez mais, o seu paralelismo com a obra
kantiana.

PROJECTO E PRÁXIS
O homem define-se, por conseguinte, pelo seu projecto. Este ser
material supera perpetuamente a condição que se lhe põe; descobre e
determina a sua situação e transcende-a a fim de se objectivar pelo
trabalho, pela acção ou pelo gesto. O projecto não deve ser confundido
com vontade, que é uma entidade abstracta, embora ele possa revestir
uma forma voluntária em certas circunstâncias. Para além dos elementos
dados e constituídos, essa relação imediata com o outro diferente de nós
mesmos, esta perpétua criação de si mesmo pelo trabalho e pela práxis, é
a nossa própria estrutura; não é uma necessidade nem uma paixão, nem
tão-pouco uma vontade; pelo contrário, as nossas necessidades ou as
nossas paixões, mesmo o mais abstracto dos nossos pensamentos
participam desta estrutura: estão até sempre: fora deles mesmos (...). É
isto a que chamamos existência.
Assim, as significações provêm do homem e do seu projecto, mas em
todos os lados inscrevem-se nas coisas e na ordem das coisas. Em
qualquer momento, tudo é sempre significante e as significações revelam-
nos o homem e as relações entre os homens através das estruturas da
nossa sociedade. Mas essas significações só nos aparecem enquanto nós
próprios somos significantes. A nossa compreensão do outro nunca é
contemplativa: o que nos une a ele é um momento da nossa práxis, uma
maneira de viver, em luta ou em convivência, a relação concreta e
humana.
Sartre, Crítica da Razão Dialéctica.

Se a existência é a chave principal da razão dialéctica, isso significa que


a dialéctica não pode aparecer como razão histórica à margem do seu
fundamento; isso implica uma rejeição radical das teses do materialismo
dialéctico, tese que a Sartre parece puro dogmatismo. Uma dialéctica da
natureza é uma hipostaziação das relações dialécticas no âmbito da práxis
social humana, à margem da liberdade.
Talvez a melhor expressão deste projecto sartreano de unir
existencialismo e marxismo esteja nestas palavras que o próprio Sartre
dirigiu a Garaudy:
«Entendamo-nos: o marxismo, como quadro formal de todo o
pensamento filosófico actual, é insuperável. Eu entendo por marxismo o
materialismo histórico, que supõe uma dialéctica interna da história e não o
materialismo dialéctico, se por esta expressão se entende essa fantasia
metafísica que imagina descobrir uma dialéctica da natureza. Com efeito
esta dialéctica da natureza também pode existir, mas é preciso reconhecer
que não possuímos dela nem sequer a mais pequena prova. Assim, o
materialismo dialéctico reduz-se a um discurso vão, cheio de pompa e
debilidade, sobre as ciências físico-químicas e biológicas (...). Pelo
contrário, o materialismo histórico – enquanto afirma directamente a
origem de toda a dialéctica: a práxis dos homens governados pela sua
materialidade – é ao mesmo tempo a experiência que todo o mundo pode ter
(e tem) da própria práxis e da sua alienação e o método reconstrutivo e
construtivo, em simultâneo, que permite tomar a história humana como
totalização em curso. Assim, o pensamento da existência volta a encontrar-
se em seguida atirado para o processo histórico e não pode compreendê-lo
senão na medida em que o conhecimento dialéctico se revela como
conhecimento da dialéctica.»

2.4. A fenomenologia existencial de Merleau-Ponty

2.4.1. Natureza da filosofia

a) A expressão «fenomenologia existencial» envolve a intenção do


filósofo francês Merleau-Ponty (1908-1961) de compreender o mundo e o
homem.
Merleau-Ponty partiu da fenomenologia de Husserl e propôs-se
desenvolvê-la de acordo com o seu sentido mais genuíno e totalizador, de
modo a que os temas fenomenológicos (redução, intencionalidade da
consciência, constituição transcendental) exerçam o seu significado
intimamente entrelaçados com a vida, como matriz em cujo seio residem e
crescem tanto o mundo natural como o social, tanto o âmbito objectivo da
ciência como a subjectividade reflexiva que grande parte da filosofia
moderna cultivou, porventura em demasia. Só assim se revelará que «o
verdadeiro transcendental não é o conjunto de operações constitutivas peias
quais um mundo transparente, sem sombras e sem capacidade, se
desenvolveria perante um espectador imparcial, mas sim a vida ambígua»
(Fenomenologia da Percepção, 1945). Daí que ainda seja necessário
inquirir o que é a fenomenologia.

b) Merleau-Ponty põe em causa o imaginado carácter descarnado do


cogito enquanto essência do ser humano (Descartes), pensando-o antes
como aquilo que realmente é: ser-no-mundo. Isto não significa que negue
que o homem seja consciência e sujeito; apenas se afirma que o cogito se
revela falso quando se separa e rompe a nossa pertença ao mundo. Deste
modo, em Merleau-Ponty a fenomenologia adquire um cunho «existencial»
básico. «A filosofia existencial consiste em tomar por tema não só o
conhecimento da consciência, entendida como uma actividade que situa
objectos imanentes e transparentes em plena autonomia, mas também a
existência, ou seja: uma actividade que se dá a si mesma numa situação
natural e histórica, não podendo abstrair-se dela nem reduzir-se a ela»
(Sentido e Sem-Sentido, 1948).

Maurice Merleau-Ponty
Maurice Merleau-Ponty nasceu em Rochefort-sur-Mer em 14 de Março de 1908 e morreu em
Paris em 4 de Maio de 1961. Estudou na École Normale Supérieure de Paris e graduou-se em
Filosofia em 1931.
Dedicou toda a sua vida ao ensino e à investigação filosófica:sem nunca esquecer as questões
sociais e políticas que preocupavam os seus contemporâneos. Quando terminou os estudos,
ensinou filosofia em vários liceus até rebentar a II Guerra Mundial, obrigando-o a interromper
as suas tarefas docentes para servir como oficial. Depois da guerra foi nomeado professor da
Universidade de Lyon, onde se manteve de 1945 até 1949, altura em que é indigitado para
professor na Sorbonne, em Paris.
Entretanto colabora com Jean-Paul Sartre na edição da revista Les Temps Modernes, mas as
suas relações com este filósofo deterioraram-se aquando da guerra da Coreia: Sartre apoiava a
Coreia do Norte, enquanto Merleau-Ponty, que anteriormente havia defendido o comunismo da
Rússia soviética na sua obra Humanismo e Terror, se mostrava agora crítico para com os
comunistas, embora não renunciasse por completo às suas convicções marxistas.
Os seus méritos como professor e filósofo valeram a Merleau-Ponty a eleição como
catedrático de Filosofia no Collège de France em 1952.
De entre as suas obras cabe citar em primeiro lugar A Estrutura do Comportamento (1942) e
Fenomenologia da Percepção (1945), nas quais expõe a sua concepção de filosofia como
fenomenologia existencial, uma concepção que posteriormente completaria com Sentido e Sem-
Sentido (1948) e na obra póstuma O Visível e o Invisível (1964).
As relações entre filosofia e linguagem aparecem tratadas nas obras Signos (1960) e A Prosa
do Mundo (1969). As suas ideias políticas e o seu compromisso com a realidade histórica do seu
tempo reflectem-se em Humanismo e Terror (1947) e em As Aventuras da Dialéctica (1955).

O sujeito não é apenas, nem sequer primariamente, o sujeito


epistemológico ou gnosiológico, mas sim sujeito humano, dialecticamente
situado numa experiência histórica e social. Também não é um puro ser-
para-si (Sartre), mas um ser-com-outro e para-outro: ou seja, é
intersubjectividade. Devemos, pois, compreender o sujeito «não como uma
consciência constituinte e como um puro ser-para-si, mas sim como uma
consciência perceptiva, como sujeito de um comportamento, como ser no
mundo ou existência» (Fenomenologia da Percepção).

c) Por conseguinte, a expressão «fenomenologia existencial» exprime


com rigor o sentido da filosofia de Merleau-Ponty, que recolhe a
experiência da fenomenologia husserliana e do existencialismo, operando a
sua unificação. O feito mais importante desta fenomenologia existencial é
ter unido o subjectivismo e o objectivismo na noção de mundo. Tudo se
altera quando se propõe «explicar não o mundo ou descobrir as suas
condições de possibilidade, mas sim formular uma experiência do mundo
em contacto com o mundo que precede qualquer entendimento sobre o
mundo (...). Trata-se de dar voz à experiência do mundo» (Sentido e Sem-
Sentido): o mundo vivido e percebido por um sujeito encarnado. Nessa
experiência, a palavra representa um elemento básico, o que confere à
linguagem uma «posição central» como «reveladora do mundo» (Signos,
1960).
d) Nesta explicação da fenomenologia existencial já encontrámos
algumas questões fundamentais que convém considerar: primeiro, a
natureza da redução fenomenológica; segundo, o que é o «mundo
fenomenológico» e o cogito como «consciência encarnada num meio de
objectos humanos, numa tradição linguística» (Sentido e Sem-Sentido);
terceiro, a linguagem, a liberdade e a história como momentos estruturais
do mundo percepcionado.

2.4.2. A fenomenologia existencial

a) Natureza da fenomenologia
Como retorno às coisas em si, a fenomenologia pode ser caracterizada
pelos seguintes traços, que definem as coisas em si e o modo de aceder a
elas. A fenomenologia:

– é um estudo de essências. A essência, entendida em qualquer sentido,


constitui a coisa em si;
– é uma filosofia transcendental que regressa ao que é dado na atitude
natural e que se volta (reflexiona) para o que possibilita a compreensão
da essência;
– é uma ciência exacta e rigorosa que ultrapassa o mundo vivido;
– finalmente, propõe-se descrever a experiência tal e como se apresenta
imediatamente.

Reduzida a estas características, a fenomenologia ficaria no entanto


desfigurada na sua genuína pretensão e natureza, já que há ainda outros
quatro traços definidores que parecem ser o contrário dos anteriores. Com
efeito:

– a fenomenologia tem a ver com a facticidade, pois só na experiência


é que as essências são o que realmente são;
– a facticidade expressa que o mundo está sempre aí, anterior a toda a
reflexão transcendental, como objecto que ela se propõe compreender;
– o rigor e exactidão do saber só é alcançável através desse mundo
fáctico vivido e em relação com ele;
– por fim, uma descrição da experiência não pode alhear-se do seu
carácter histórico, mediato e acontecido; daí o momento genético da
fenomenologia.

Estes dois conjuntos de características só se revelarão contraditórios se a


fenomenologia for entendida (no âmbito do dualismo radical de grande
parte da filosofia moderna desde Descartes) como oposição entre:

l. a essência e a facticidade ou existência;


2. o puro transcendental e o empírico e dado;
3. a exactidão da objectividade científica, do mundo objectivo, e a
ambiguidade do vivido, do mundo da vida;
4. o imediato e intemporal e o tempo e a história.

Estas oposições provêm do dualismo radical entre mente ou espírito e


matéria, sujeito e objecto, interior e exterior, idealismo e realismo. Foi no
âmbito deste dualismo radical que a explicação científica e a análise
reflexiva idealista se desenvolveram. Ora, compreender as coisas em si não
requer explicar ou analisar, mas descrever, uma descrição pura, que se
enraíza no que é originário no mundo e que regressa à existência como
fonte absoluta. Com efeito, «todo o universo da ciência é construído sobre o
mundo vivido, e se quisermos pensar com rigor a própria ciência,
apreciando exactamente o seu sentido e alcance, devemos despertar
primeiro esta experiência do mundo, do qual a ciência é expressão
secundária» (Fenomenologia da Percepção, prólogo).
Por seu lado, a análise reflexiva idealista, que remonta a um sujeito puro
como condição última de possibilidade, enraíza-se numa estranha
«subjectividade invulnerável, mais próxima do ser e do tempo», e ao
construir o mundo a partir de uma série de sínteses subjectivas torna-o em
algo «artificial». Assim, e longe de ser um procedimento crítico, a análise
reflexiva idealista é «uma ingenuidade» porque se limita a ser a uma
«reflexão incompleta que perde consciência do seu próprio começo», do
vivido e do percepcionado (o. c.).
O real, aquilo que as coisas sugerem, não é algo que se construa ou
constitua, mas algo que devemos descrever como aquilo que é
verdadeiramente: «um tecido sólido», anterior aos nossos actos reflexivos e
aos nossos juízos; o mundo percebido, a percepção, não releva da ordem
da predicação, é antes o fundo prévio a todos os actos reflexivos; em suma,
o mundo não é um objecto cuja legalidade seja constituída pelo sujeito, mas
sim «o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos» (o.c.). Por
conseguinte, «regressar às coisas em si é regressar a este mundo anterior ao
conhecimento, do qual o conhecimento fala sempre e em relação ao qual
toda a determinação científica é abstracta, significativa e dependente (o.c.).

b) A redução fenomenológica
A finalidade da redução fenomenológica consiste em propiciar uma
descrição das coisas em si. É necessário apreender o verdadeiro sentido
desta redução, que foi mal entendida nos seus três momentos
característicos: o carácter reflexivo-transcendental, o carácter eidético e o
carácter intencional.

1. O momento reflexivo-transcendental não se propõe regressar a uma


subjectividade transcendental, fora do tempo, não incarnada numa natureza
e não comprometida com uma situação histórica. Essa pretensa
subjectividade não é o verdadeiro cogito mas antes a redução (em sentido
abstracto e distorcido) idealista do cogito que, desvalorizando a percepção e
convertendo o mundo em «mera significação» transparente, não nos revela
como realmente somos: ser-no-mundo.
LINGUAGEM E VIDA
A linguagem é vida, a nossa e a das coisas. Não porque a linguagem
se apodere da vida e a reserve para si: o que é que poderia ser dito se só
houvesse coisas ditas? É esse o erro das filosofias semânticas, que
fecham de tal modo a linguagem que esta fala só de si própria e vive
apenas do silêncio. Tudo o que lançamos aos outros germinou nesse
grande país mudo que nunca nos abandonou. Mas só o filósofo que sentiu
dentro de si a necessidade de falar – as palavras nascendo como bolhas
que ascendem do fundo da sua experiência muda – sabe melhor do que
ninguém que o vivido é vivido-falado e que a linguagem (nascida
naquelas profundezas) não é uma máscara que oculta o Ser mas sim (se
souber captá-lo com todas as suas raízes e folhagem) o mais valioso
testemunho do ser; sabe que não interrompe uma imediatez que sem ele
seria perfeita e sabe também que até a própria visão e pensamento estão,
como dissemos, «estruturadas como uma linguagem», que são articulação
na sua forma primitiva, que são a aparição de algo onde não havia nada.
Por conseguinte, o problema da linguagem não é mais do que um
problema regional, por assim dizer – isto é, se tivermos em consideração
a linguagem feita; a operação secundária e empírica de tradução,
codificação e descodificação; as linguagens artificiais; a relação técnica
entre um som e um sentido apenas unidos por uma convenção expressa,
sendo portanto idealmente isoláveis. Pelo contrário, se tivermos em
consideração a palavra falante; a aceitação natural das convenções da
língua por aqueles que a vivem; o visível que penetra neles e o vivido que
penetra na linguagem; a linguagem que penetra no visível e no vivido; os
intercâmbios entre as articulações da sua paisagem muda e as da sua
palavra; em suma, se tivermos em conta esta linguagem operante que não
precise de ser traduzida em significações e em pensamento, esta
linguagem-coisa que é arma, acção, ofensa e sedução, porque traz à
superfície todas as relações profundas do vivido onde se formou, e que é
o da vida e da acção, mas também o da literatura e da poesia, esse logos é
então um tema universal, o tema da filosofia. A própria filosofia é
linguagem e apoia-se na linguagem; mas isso não a impede de falar da
linguagem, da pré-linguagem ou do mundo silencioso que é o seu duplo:
pelo contrário, a filosofia é linguagem operante, uma linguagem que só se
conhece por dentro, pela prática, e que está aberta às coisas, requisitada
pelas vozes do silêncio e avançando na tentativa de articulação que é o
Ser de todo o ser.
M. Merleau-Ponty, O Visível e o Invisível.

Precisamente porque somos inteiramente relação com o mundo, a única


maneira de perceber e darmos conta dessa relação é suspendê-la, não para a
negar, mas para a fazer aparecer no seu genuíno ser. Ora, enquanto
pressuposto de todo o pensamento, «acontece por si» e passa despercebida.
«A reflexão não se retira do mundo para chegar à unidade da consciência
como fundamento do mundo, mas retrocede para ver surgir as
transcendências, distende os elos intencionais que nos ligam ao mundo para
os tornar visíveis, e é ela apenas que é consciência do mundo porque o
revela como estranho e paradoxal» (Fenomenologia..., prólogo). Assim, o
mundo está longe de ser construído, isto é, o mundo surge não-motivado e
sem porquê (le jaillissement inmotivé du monde), estranho, opaco e pré-
reflexivo, é sempre dado a pensar por ele próprio, reclamando que seja
novamente dito e trazido à luz da linguagem. Daí a impossibilidade de uma
redução completa, daí também o carácter inacabado da tarefa da
fenomenologia em revelar «o mistério do mundo» (Fenomenologia...,
prólogo).

2. O momento eidético da redução fenomenológica é tão necessário


como o reflexivo-transcendental, estando aliás intimamente ligados. Mas a
fenomenologia existencial não é uma filosofia das essências, entendidas em
sentido platónico. As essências não são algo separado e ideal (exceptuando
a separação providenciada pela linguagem); as essências são a
materialidade da existência e da experiência, mantendo com elas a relação
vivente que o mundo é.
Ora, a facticidade do mundo e o nosso compromisso efectivo
(engagement) com ele só se torna inteligível contornando o conceito, no
meio da linguagem, na significação que cada vez o expressa e interpreta.
«A necessidade de passar pelas essências não significa que a fenomenologia
as tome por objecto; pelo contrário, a nossa existência assenta estreitamente
no mundo para que se possa conhecer como tal no momento em que se
arroja nele, tendo necessidade do campo da idealidade para conhecer e
conquistar a sua facticidade» (o. c.).
Aquilo a que a redução eidética se propõe é, pois, fazer aparecer o
mundo tal como é antes de qualquer regresso a nós mesmos; é o desejo de
igualar a reflexão à vida reflexiva; é procurar aquilo que o mundo é antes de
qualquer sistematização. E sendo o mundo inesgotável, a redução eidética é
sempre incoativa, sempre inacabada, tal como a própria fenomenologia.

3. O momento intencional da redução fenomenológica adquire o seu


sentido pleno na relação com os outros dois. A intencionalidade da
consciência, ou mais originária e propriamente, a intencionalidade da vida,
exprime o rumo ao mundo, sempre retomado e no entanto nunca cumprido
plenamente, pois o mundo não se deixa abraçar nem possuir
completamente.
Longe de ser algo próprio e exclusivo dos nossos juízos e da nossa
vontade (o que Husserl denominava «intencionalidade do acto»), a
intencionalidade é operante, «constitui a unidade natural e pré-doutrinal do
mundo e da nossa vida (...) e oferece o texto do qual os nossos
conhecimentos tentam ser a tradução em linguagem exacta» (o.c.). Esta
tradução é inacabada e inacabável, e nisso radica a razão de a
fenomenologia ser um movimento, mais do que uma doutrina ou um
sistema filosófico. O próprio movimento da vida, da liberdade e da história,
no qual se exprime o ser selvagem do mundo: o invisível do visível.

LÓGICA E CONTINGÊNCIA DA HISTÓRIA


Ao contrário das filosofias teológicas ou do próprio idealismo
hegeliano, o que é próprio do marxismo é admitir que o regresso da
humanidade à ordem e à síntese final não são necessários e que
dependem de um acto revolucionário cuja fatalidade não é garantida por
qualquer decreto divino nem por nenhuma estrutura metafísica do mundo
(...).
O que é próprio do marxismo é, pois, admitir que existe ao mesmo
tempo uma lógica da história e uma contingência da história, que nada é
absolutamente fortuito, mas também que nada é absolutamente necessário
– o que podemos expressar dizendo que existem actos dialécticos. Mas
este carácter totalmente positivo e experimental do marxismo coloca de
imediato um problema: se se admite que o acontecimento (seja qual for a
sua probabilidade) pode abortar a qualquer momento, e dado que esta
ofensiva do acaso pode sempre renovar-se, deduz-se portanto que a lógica
e a história se divorciam e que a história empírica nunca realiza aquilo
que nos parecia ser a consequência lógica da história (...).
A noção de uma «lógica da história» comporta duas ideias: primeiro, a
ideia de que os acontecimentos (seja qual for a sua categoria, mas
particularmente os acontecimentos económicos) têm um significado
humano e de que a história, em todos os seus aspectos, é una e compõe
um só drama; e depois a ideia de que as fases deste drama não acontecem
sem uma ordem mas sim em direcção a um final e a uma conclusão.
Mesmo que as diversas categorias de acontecimentos não formem um
único texto inteligível, a contingência da história significa que eles não
estão rigorosamente ligados e que existe um jogo no sistema; que, por
exemplo, o desenvolvimento económico pode estar mais avançado que o
desenvolvimento ideológico; que a maturidade ideológica pode surgir
mesmo quando as condições objectivas não são (ou já não são) favoráveis
à revolução; e, por outro lado, que a dialéctica pode encaminhar-se ou
desviar-se para aventuras sem resolver os problemas que antes colocara.
Se abandonarmos resolutamente a ideia teológica de um fundo racional
do mundo, a lógica da história não é mais do que uma possibilidade entre
outras (...).
Assim, a história já não seria mais um discurso (com cada frase no seu
lugar necessário) sobre aquilo que se pode esperar com segurança no
final; seria antes uma ideia que se apaga logo, como as palavras de um
homem ébrio, para reaparecer e desaparecer de novo, sem chegar
necessariamente à plena expressão de si mesma (...).
M. Merleau-Ponty, Sentido e Sem Sentido.

c) A compreensão fenomenológica
A descrição fenomenológica pura é compreensão e não explicação
científica objectivista ou análise reflexiva idealizante. Compreender o
mundo é expressá-lo em todos os seus aspectos, não os tomando isolada e
abstractamente, pois isso torná-lo-ia num cadáver. Compreender o mundo é
ir recolhendo «o único núcleo de significação existencial que se explicita
em cada perspectiva» (o. c.). A compreensão é pois recolha de sentido,
reapreender a significação total, reassumir a intenção total. Estamos
condenados ao sentido.
Esta compreensão não pode ser levada a cabo apenas mediante o
agrupamento dos diferentes planos ou perspectivas do mundo, mas sim
atendendo também à sua gestação, à sua produção. Compreender é «captar
o sentido do mundo ou da história no estado nascente». Daí que a
fenomenologia existencial seja uma fenomenologia da génese: trata-se de
«voltar a encontrar muito antes da ideia de sujeito e da ideia de objecto (...)
o leito primordial donde nascem as ideias e as coisas» (o.c.).
A compreensão fenomenológica é assim uma «génese do sentido». Não
é a explicitação de um ser prévio, nem o reflexo de uma verdade anterior,
apresentando-se antes «como a arte, a realização de uma verdade»
(Fenomenologia..., prólogo).

2.4.3. Mundo, percepção e corpo


«Olho e descubro um mundo». Esta frase contém o verdadeiro e
irrenunciável legado da grande tradição cartesiana, que é a matriz
ontológica da fenomenologia existencial. Com efeito, há uma verdade
definitiva no retorno cartesiano das coisas ou das ideias ao eu; o cogito
como momento principal da verdade.
Mas a existência do cogito não é a existência de «um campo
transcendental sem dobras e sem exterior» (o.c.); o que o cogito descobre é
«o movimento profundo de transcendência que é o meu próprio ser, o
contacto simultâneo com o meu ser e com o ser do mundo» (o.c.). O seu ser
e a sua existência são os de um eu encarnado, um cogito corporal. O cogito
de raiz cartesiana desvaloriza aliás a percepção, ao passo que o verdadeiro
cogito deve descobrir-me em situação, no mundo, deve mostrar-me o
mundo percepcionado e revelar-me a mim mesmo como sendo corpo
nele.
A tarefa é pois descrever e compreender o fenómeno do mundo e a
essência da percepção. Mundo e percepção mostram-se-nos como o fulcro
ou matriz do ser e da verdade. A tradição cartesiana habituou-nos a
desprendermo-nos do objecto (no qual o positivismo e o objectivismo se
alimentam) e a recolhermo-nos no sujeito puro (o farol do idealismo), e por
isso pensamos que «há apenas dois sentidos para a palavra existir: se existe
como coisa ou se existe como consciência. Ora, a experiência do nosso
próprio corpo revela-nos um modo de existir ambíguo» (o.c.).
Ambíguo não significa confuso ou falso, mas mais complexo, mais real
e concreto, que vive crescendo em relação; em suma, algo que não é
falsificado e recortado pela abstracção da explicação científica ou da análise
reflexiva idealizante. A experiência do nosso próprio corpo, ou seja, do
cogito encarnado, opõe-se – tal como a vida se opõe à morte – ao
movimento reflexivo que separa e arranca o objecto do sujeito, ou o sujeito
do objecto, e que só nos entrega o pensamento do corpo ou o corpo em
ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade.
A tarefa será também descrever e compreender o fenómeno e a essência
do corpo. «Eu sou o meu corpo», afirma Merleau-Ponty, e na unidade do
corpo encontramos «a estrutura de implicação» (o.c.) que entrelaça o
mundo e a percepção; no corpo «aprendemos a conhecer este mundo da
essência e da existência». Deste modo, o corpo «é o nosso meio geral de ter
um mundo» (o.c.).

a) O mundo não é nada coisificado, nem sequer um conjunto ou


totalidade de coisas. O mundo fenomenológico é «a unidade primordial de
todas as nossas experiências no horizonte da nossa vida e o termo último de
todos os nossos projectos» (o.c.). Não é um âmbito vazio e hirto, nem tão-
pouco o ser puro, mas «o sentido que transparece na intersecção das minhas
experiências e na intersecção das minhas experiências e as de outro» (o.c.);
mundo vivido, pois, intersubjectivo, social e histórico.

b) A percepção não é primariamente um modo de conhecimento entre


outros, nem algo meramente gnosiológico, ou tão-pouco «um acto, uma
tomada de posição deliberada» (Fenomenologia..., prólogo). Constitui antes
o modo de existência pré-reflexiva do corpo, do cogito corporal no mundo,
e a presença imediata de tudo quanto integra o mundo. É «o fundo sobre o
qual se destacam todos os actos e é pressuposta por eles» (ibidem). Essa
modalidade existencial impede que se possa separar o acto de percepcionar
do que é percepcionado, o momento de consciência da coisa que é
percepcionada. Daí que, como já assinalara em A Estrutura do
Comportamento, a percepção seja «um tipo de experiência originária» que
«acede às coisas em si».

c) O corpo, considerado na perspectiva da fenomenologia, não é algo


primariamente fisiológico, «como se fosse uma massa material inerte ou um
instrumento exterior», nem tão-pouco é aquilo que a anatomia nos fez
conhecer e nos apresenta como o corpo real»: «um conjunto de órgãos»
(ibidem). A ciência habituou-nos a considerar o corpo como um conjunto de
partes; mas este corpo assim explicado cientificamente «não pode ser
habitado por uma consciência (Fenomenologia...), como Merleau-Ponty
assinala de modo acutilante. Devemos distinguir esse «corpo objectivo» do
corpo tal como nós o vivemos, o qual denomina «corpo fenomenal» (o.c.).
Além do carácter nuclear e ontológico já indicado, há outros aspectos
que manifestam que o «corpo fenomenal» é o fulcro do mundo:

1. O corpo é eminentemente um espaço expressivo, um espaço de


significação do mundo; não apenas um espaço de expressão entre outros,
mas «a origem de todos os outros, o próprio movimento de expressão». O
corpo é «um nó de significações vivas» (o.c.).

2. Enquanto lugar e ocorrência de fenómenos de expressão, o corpo é


simultaneamente «a textura de todos os objectos e o instrumento geral da
minha compreensão» (o.c.). Além disso, enquanto lugar da expressão e nó
de significações, o corpo é «que fala» (o.c.), mantendo um laço
estreitíssimo com a linguagem.

3. Por último, o corpo é a condição de possibilidade das obras e


aquisições que constituem «o mundo cultural» (o.c.). O corpo como força
expressiva e reveladora da riqueza invisível e infinita do mundo assemelha-
se a uma obra de arte: «não é com o objecto físico que o corpo deve ser
comparado, mas com a obra de arte» (o.c.). E a arte, tal como o
pensamento, não é «o reflexo de uma verdade prévia, mas a realização de
uma verdade» (o.c.), o desvendar de um mundo.

2.4.4. Linguagem, liberdade e história

a) Corpo e linguagem
O corpo, nó do mundo, como vimos, é um poder de expressão natural.
Toda a expressão, todo o gesto é significativo. O mundo, como mundo
vivido, está repleto de significações. A linguagem ocupa um lugar
fundamental entre os modos de expressão, pois não é um simples
instrumento ou meio, mas a manifestação privilegiada do ser e do mundo. E
se era decisivo não errar quanto à compreensão do fenómeno do mundo, o
mesmo se aplica no que respeita ao fenómeno da linguagem e da palavra.

1. «A palavra é um gesto e a sua significação é um mundo» (


Fenomenologia…). Na verdade, a linguagem e a palavra permitem-nos
superar definitivamente a dicotomia clássica do sujeito e do objecto, a cisão
entre um mundo material e cego e outro inteligível e pleno de sentido, a
divisão entre um mundo exterior mudo e outro interior e mental pleno de
significações. A palavra, como «região original», é a encruzilhada onde o
mundo desagua, recriando-se e renovando-se sempre para se manifestar
com outro rosto.
Vivemos num mundo em que a palavra está já instituída e tem já um
significado, como sedimentação da acção expressiva da fala. Mas esta
palavra constituída, que tem uma significação, pressupõe que o passo
decisivo da expressão e da fala – que é precisamente a significação –
estejam já cumpridos. «A linguagem» escreve Merleau-Ponty, «leva-nos às
coisas em si na medida em que antes de ter uma significação é já
significação» (A Prosa do Mundo).

2. Por conseguinte, tem sentido operar a distinção entre a palavra


falante (parole parlante) e a palavra falada (parole parlée). Esta é a
palavra já polarizada e plasmada num certo sentido e em significações já
instituídas e disponíveis, como se fosse uma forma adquirida e herdada. A
palavra falante é a acção que transfigura as significações disponíveis e
revela um novo sentido e significados novos. Daí a necessidade de
distinguir entre o uso empírico da linguagem já estabelecida (o uso
«oportuno de um signo pré-estabelecido») e o uso criador, do qual a
linguagem estabelecida é apenas um dos resultados. Na palavra falante «a
intenção significativa encontra-se em estado emergente»
(Fenomenologia...). A palavra falante é «a palavra verdadeira, aquela que
significa, aquela que actualiza a palavra ausente de todas as ramificações e
que liberta o sentido amordaçado» (Signos).

3. Instaura-se e funda-se assim um mundo, uma experiência do mundo.


Mediante o poder da linguagem operante e criadora manifesta-se o que
antes não se sabia, não se pensava nem se dizia.
Importa realçar agora a relação entre pensamento e linguagem. A
palavra não é o signo do pensamento, e este não é algo interior, fora do
mundo e das palavras. A palavra e o pensamento não existem numa relação
exterior, como se fossem coisas entre as coisas. Aparentemente, antes de
encontrar e revelar a palavra o pensamento surge como um texto ideal que a
linguagem deve transpor para o mundo; também pode parecer que, antes da
palavra, há um lago calmo de significações adormecidas no seio das coisas
que a linguagem revivifica e explicita. Mas isso não acontece assim. Não há
pensamento sem linguagem, mas apenas «um pensamento na palavra»
(Fenomenologia…). A palavra é a presença do pensamento. E se não há
nada parecido com um «texto original», então compreende-se que «a ideia
de uma expressão completa não tem sentido, que toda a linguagem é
indirecta ou alusiva, ou seja, é silenciosa» (Signos). Mas o silêncio não é
um puro nada; é antes «uma modalidade do mundo sonoro»
(Fenomenologia...).

4. Deste modo, a linguagem na sua acção expressiva:

– abre um mundo «na espessura do ser», um novo campo, uma nova


dimensão na nossa experiência;
– estabelece uma estruturação determinada da experiência por
intermédio de uma modulação da existência;
– é a tomada de posição do sujeito no mundo;
– é, por fim, o excesso da nossa existência em relação ao ser natural,
mas sem que isso signifique o abandono do mundo. É esse excesso que
permite que a linguagem se entrelace necessariamente com a liberdade.
b) Liberdade e história
«O laço que une o homem ao mundo é ao mesmo tempo o meio de
atingir a sua liberdade» (Sentido e Sem-Sentido). Tal como acontece com as
outras questões, tanto a explicação objectiva como a análise reflexiva
submeteram o fenómeno da liberdade a uma compreensão confusa e
errónea. Ou a liberdade é negada desde logo por um determinismo natural,
ou então é afirmada como liberdade absoluta que se mantém suspensa sobre
o vazio, plenamente determinada. É necessário, por conseguinte, entender o
fenómeno da liberdade no seu sentido autêntico.

1. «O homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural. Tudo o


que somos decorre de uma situação de facto: somos nós que a fazemos
nossa e a transformamos incessantemente por uma espécie de fuga que
nunca é uma liberdade incondicionada» (Fenomenologia...). A liberdade
consiste pois na ligação a uma situação de facto, a um mundo já constituído,
e na projecção e atribuição de um novo sentido, que transforme esse mesmo
mundo. Se é verdade que o mundo está já constituído, também é verdade
que nunca o está completamente, e por isso nunca há determinismo ou uma
escolha absoluta.
A liberdade concreta e efectiva acontece no movimento e no intercâmbio
entre o desenraizamento de uma dada situação e o compromisso no
mundo, entre a iniciativa de uma decisão e o novo enraizamento na
realidade. Somente neste enraizamento, nesta submissão ao mundo, é que
tal iniciativa e decisão podem transformar-se num fazer efectivo. E sem um
fazer efectivo não existe verdadeira decisão nem liberdade.
Por outro lado, só assim pode haver história: práxis que transforma a
ordem do mundo e confere sentido a uma situação na qual não reina a
necessidade estrita nem o que é meramente fortuito e casual, mas sim o que
é contingência.
2. «O metafísico no homem». Esta expressão, com a qual Merleau-
Ponty intitula um dos seus trabalhos, resume o seu pensamento filosófico:
entende a filosofia como fenomenologia existencial, ou seja, como
descrição pura de uma experiência do mundo. Na última página de
Fenomenologia da Percepção lê-se; «Trata-se de coisas ou situações
históricas e a função da filosofia é ensinar de novo a vê-las bem». E por vê-
las bem, então «a filosofia é com efeito e sempre uma ruptura com o
objectivismo, e o regresso dos constructa ao vivido, o regresso do mundo a
nós mesmos».
Efectivamente, este passo indispensável e característico não transporta a
filosofia para a atmosfera rarefeita da introspecção ou para um terreno
numericamente distinto do da ciência, ou seja, não a coloca em posição de
rivalizar com o saber, pois o interior para o qual nos transporta não é uma
«vida privada» mas uma intersubjectividade que progressivamente nos
vincula de novo à totalidade da história, mantendo-se como salvaguarda e
vigia da liberdade: «a filosofia como consciência da racionalidade na
contingência» (Signos).
A filosofia, distinta da ciência e inseparável dela, é metafísica. Mas a
metafísica «não é uma construção de conceitos», nem tão-pouco um
«sistema». Pelo contrário, a metafísica habita no mundo; «a contingência de
tudo o que existe e de tudo o que vale (...) é a condição de uma visão
metafísica do mundo». «A consciência metafísica só tem por objecto a
experiência quotidiana: este mundo, as pessoas, a história humana, a
verdade, a cultura. Mas em lugar de os receber já realizados, como
consequências sem premissas e como se surgissem sem qualquer razão
aparente, a metafísica revela-me de novo a sua estranheza fundamental e o
milagre da sua aparição» (Sentido e Sem-Sentido).
A fenomenologia existencial é o logos do ser do fenómeno. O ser na sua
aparição: reside aqui o metafísico no homem.

Karl Jaspers
Nasce em Oldenburgo em 1883 e morre em Basileia em 1969. A sua vocação para a filosofia
é tardia e surge depois de ter feito estudos jurídicos e médicos.
Nos anos do nazismo, fizeram-no sofrer os azares e angústias de uma perseguição que o
levou a viver «situações limite» nas quais se perguntou, inclusive, pelo sentido e conveniência
do suicídio. De facto, foi «jubilado» em 1937 e só pôde voltar a ocupar uma cátedra em 1945. A
partir de 1948 viveu em Basileia.
A sua obra mais importante tem por título Filosofia (1932) e contém as suas teses
fundamentais.
Considera-se Jaspers um existencialista, mas importa compreender a especificidade do seu
existencialismo: Jaspers tenta, antes de mais, tal como Heidegger, fazer uma teoria da
realidade. Ora, esta teoria diversifica-se, por assim dizer, segundo as três possibilidades em que
a realidade aparece e que são: a) o existente em geral, o objecto existente, o Dasein; b) o
existente para si, a Existenz ou consciência; c) o que é em si e não pode ser compreendido nas
anteriores categorias, isto é, a transcendência.
Qualquer dos três «apareceres» da realidade pode ser ponto de partida para descrever o ser.
Mas a descrição completa é sempre impossível. A tentativa desta descrição não cessa e é isso a
filosofia. As diferentes vias ou tentativas são diversas formas do transcender, que se
determinam (segundo os três possíveis pontos de partida) como: a) orientação no mundo; b)
esclarecimento da existência; c) metafísica ou leitura de enigmas.
A primeira forma de transcender, característica das ciências, é a que se centra nas coisas
existentes. A investigação científica não pode ser interrompida por princípio, nem sequer
concluída; nunca pode proporcionar uma imagem definitiva do mundo porque se move dentro
da cisão sujeito-objecto que a constitui estruturalmente. E o fracasso do conhecimento científico
é o «pressuposto», por assim dizer, da viragem do pensar que conduz para além da ciência em
geral, até ao esclarecimento da existência.
Foi a segunda forma de transcender, que se leva a cabo sobre a consciência, sobre o próprio
homem, que proporcionou as argutas análises jasperianas das situações existenciais. Mas o
esclarecimento da existência também não conduz a resultado algum porque tal aclaração carece
de objecto. «Nem sou o que conheço, nem conheço o que sou.» Cair na mera subjectividade,
autoconceber-se como puro ser-eu seria encerrar-se e afastar-se de modo solipsista e reduzir-se a
«Dasein que só quer ser isto». O homem não é mas devém. E o esclarecimento da existência
apela à liberdade.
A experiência do seu fracasso lança a existência para fora de si, projectando-a para a
transcendência do ser incondicionado. Esta é, por último, a forma do transcender correspondente
à metafísica, que se reduzirá em definitivo à tentativa de decifrar a impenetrável condição do em
si. Decifração, porque o incondicionado só fala por enigmas. E o próprio fracasso é o enigma de
todos os enigmas. Por isso a potência (ou carácter revelável) da origem transcendente do ser não
é nada se se vir desligada da existência. Entendê-la como conhecimento objectivo seria um erro
crasso.
É indubitável que a filosofia jasperiana está condicionada por uma vontade que poderia
dizer-se perscrutadora dos sinais do tempo histórico presente. Jaspers afirma que A Situação
Espiritual do Nosso Tempo (assim se denomina um escrito seu de 1931) vive uma completa
crise, criada por nós próprios através do conhecimento científico e da vontade de transformação
do mundo que se serve da ciência. Um esforço que apenas conduz o homem à nebulosa
consciência da sua impotência. Esta consciência, motor de arranque da filosofia jasperiana,
aparece claramente noutros escritos, tais como Nietzsche (1936), Origem e Meta da História
(1949), A Bomba Atómica e a Origem do Homem. São além disso, obras sistemáticas
importantes: Razão e Existência (1935), A Fé Filosófica (1948) e Filosofia e Mundo (1958).
18. O PERSONALISMO CRISTÃO

INTRODUÇÃO

O personalismo constitui por um lado uma orientação filosófica de


contornos mais ou menos precisos e, por outro, um conjunto de filosofias
mais ou menos afins surgidas no nosso século.
Enquanto orientação filosófica, o personalismo encontra-se presente ao
longo de toda a história do pensamento ocidental e a sua fonte última de
inspiração deve procurar-se na concepção cristã do homem, que confere a
este um valor absoluto enquanto indivíduo pessoa.
Enquanto conjunto de filosofias surgidas no nosso século, uma primeira
classificação das mesmas obrigar-nos-ia a distinguir o personalismo
americano, por um lado, e o personalismo ou personalismos europeus, por
outro. Dentro deste último grupo, a figura mais destacada e conhecida é a
do pensador francês Emmanuel Mounier. Na nossa exposição
procuraremos sublinhar os caracteres e ideias fundamentais da corrente
personalista, dedicando uma atenção especial a Mounier e ao movimento
personalista surgido à sua volta.

O capítulo está dividido em três partes:


1. Correntes personalistas contemporâneas.
2. Contributos históricos para a orientação personalista.
3. O personalismo de Mounier.
1. CORRENTES PERSONALISTAS
CONTEMPORÂNEAS

1.1. Os personalismos americano e europeu

Embora o termo «pessoa» possua uma longa tradição filosófica, a


palavra «personalismo» é de uso relativamente recente. Utilizada pela
primeira vez em meados do século passado, foi nos primeiros anos do nosso
século que começou a ser usada de forma sistemática, primeiro por C.
Renouvier, autor de uma obra intitulada O Personalismo (1903) e pouco
depois pelos filósofos americanos M. Calkins e B.P. Bowne.
De um modo geral, o personalismo poderia definir-se como a atitude
filosófica que reconhece a importância da pessoa, ou então como a atitude
filosófica que considera a pessoa como princípio ontológico e, portanto, faz
dela um princípio fundamental para a explicação da realidade.
É óbvio que tais definições, por sua excessiva generalidade, são
aplicáveis a múltiplas correntes filosóficas de todos os tempos, quiçá à
maioria dos sistemas filosóficos produzidos no Ocidente. Seria inclusive
possível um personalismo ateu, como acontece no caso do filósofo inglês
Mc Taggart (1866-1925). Este filósofo constitui no entanto uma verdadeira
excepção, pois as filosofias personalistas em rigor não costumam ser ateias.
Não é arbitrário o grau de generalidade com que caracterizámos o
personalismo: na realidade, tal é exigido tanto pela assistematicidade, que
caracteriza a orientação personalista, como pela disparidade de correntes
filosóficas que reclamam para si tal denominação. Entre as correntes que se
denominam a si próprias personalistas, vale a pena distinguir duas
fundamentais: o personalismo americano e o personalismo europeu,
particularmente florescente em França.

a) O personalismo americano mostra-se em geral vinculado a


posições filosóficas idealistas. Nalguns filósofos trata-se de um idealismo
absoluto, de tipo hegeliano, em cujo caso seria possível falar de um
personalismo absoluto: o princípio último explicativo da realidade é pessoal
– mente ou espírito –, daí que todo o real não é mais do que manifestação
ou determinação (J. Royce, M. W. Calkins).
Noutros casos, trata-se de um idealismo pluralista, cujo antecedente
filosófico mais caracterizado é Leibniz com a sua concepção monadológica
da realidade: todo o real é pessoal, o conjunto do real constitui uma
«sociedade» pessoal, e o princípio pessoal supremo é Deus, o
supremamente real (G. H. Howison, B. P. Bowne e os discípulos deste, A.
C. Knudson e R.T. Flewelling). O personalismo americano teve o seu
meio de expressão na revista The Personalist, fundada por R.T. Flewelling.

FACE AO MATERIALISMO MARXISTA


Com efeito, há na base do marxismo uma negação fundamental do
espiritual como realidade autónoma, primeira e criadora. Esta negação
adopta duas formas. Em primeiro lugar, o marxismo refuta a existência de
verdades eternas e valores transcendentes ao indivíduo, no espaço e no
tempo: quer dizer, refuta essencialmente, e em função do seu primeiro
postulado, não só o cristianismo e a crença em Deus como qualquer
forma de realismo espiritual. Na realidade espiritual não vê mais do que
«reflexos ideológicos» ou, no melhor dos casos, um estado secundário do
ser. Em segundo lugar, a sua visão ou organização do mundo não faculta
qualquer espaço para esta última forma da existência espiritual, que é a
pessoa e os seus valores próprios: a liberdade e o amor.
F. Mounier, Manifesto ao Serviço do Personalismo
b) Diferentemente do americano, o personalismo europeu não se vincula
em absoluto a posições filosóficas idealistas. Não há possivelmente algo
mais alheio a estas correntes personalistas do que os sistemas filosóficos de
Leibniz e Hegel. A sua inspiração última encontra-se na concepção
cristã do homem, bem como no valor absoluto que o cristianismo
reconhece e confere à pessoa humana.
A corrente personalista francesa nasceu e desenvolveu-se como tal (à
excepção de certos precedentes imediatos como H. Bergson, M. Blondel e
G. Marcel, que por vezes são considerados personalistas) ao redor da
revista Esprit (fundada em 1932) e à volta da figura do seu fundador
Emmanuel Mounier (1905-1950). As suas influências filosóficas próximas
devem procurar-se na filosofia europeia contemporânea, especialmente na
fenomenologia, na filosofia dos valores e no existencialismo, no quadro das
circunstâncias sociopolíticas europeias e na presença activa e desafiante do
marxismo. A esta corrente se encontram vinculados – embora as suas
posições e interesses filosóficos estejam longe de ser uniformes –
pensadores como J. Lacroix, P. Ricoeur e M. Nédoncelle.
Além do personalismo francês (aglutinado pela revista Esprit) merece
também destaque o personalismo italiano, mais directamente entroncado na
tradição augustiniana. A esta corrente pertence L. Stefanini (1891-1956),
autor de uma obra intitulada Metafísica da Pessoa (1950).

1.2. Caracterização do personalismo

A primeira caracterização, de tipo geral, que apresentamos antes (a


pessoa como princípio ontológico e sua importância no conjunto do real)
deverá ser necessariamente concretizada, a fim de que, na medida do
possível, evitemos diluir o personalismo numa vaga atitude susceptível de
ser atribuída a qualquer sistema filosófico, seja o de Platão, o de Leibniz, o
de Hegel ou, inclusive, o de algum marxismo que se autocaracterizasse
como humanista. Para isso, talvez seja esclarecedor destacar as filosofias a
que o personalismo se opõe.

1.2.1. Personalismo face ao materialismo

O personalismo opõe-se, em primeiro lugar, a toda a forma de


materialismo, pois este, ao declarar que a matéria constitui o princípio e
substrato de todo o real, não deixa lugar para qualquer princípio pessoal
irredutível àquela.

O SER DA PESSOA E A VOCAÇÃO


Sou um ser singular, tenho um nome próprio. Esta unidade não é a
identidade morta da pedra, que não nasce, não muda nem envelhece. Não
é a realidade de um todo que possa ser abarcado por uma fórmula (...).
Não se me apresenta como algo dado, tal como a minha hereditariedade
ou as minhas aptidões, nem como aquisição pura. Não é evidente. Mas
também não é, à primeira vista, a unidade de um quadro, de uma sinfonia,
de uma nação, de uma história. É preciso descobrir em si, sob a
amálgama das distracções, o próprio desejo de procurar esta unidade
vivente, escutando atentamente as sugestões que nos sussurra, e
experimentá-la no esforço e na obscuridade, embora nunca estejamos
seguros de a possuirmos. Assemelha-se sobretudo a um apelo silencioso,
a uma língua cuja tradução seria a nossa vida. Deste modo, o termo
vocação é mais adequado do que qualquer outro, já que tem um sentido
pleno para o cristão que crê no apelo envolvente de uma pessoa. Mas para
definir uma posição personalista basta pensar que toda a pessoa tem um
tal significado que não pode ser substituída no lugar que ocupa no
universo das pessoas. É esta a magistral grandeza da pessoa, que a dota
com a unidade de um universo; mas é também a sua humildade, pois toda
a pessoa lhe equivale nesta dignidade, e as pessoas são mais numerosas
que as estrelas, É evidente que isso não tem nada a ver com as «pseudo-
vocações» profissionais, que muito frequentemente seguem a tendência
do temperamento ou do meio.
E. Mounier, O Personalismo.

O RACIONALISMO ESQUECE-SE DA PESSOA


O pensamento também pode cometer este pecado. Por exemplo,
quando postula problemas do homem (estilo «tem interesse no seu todo»)
em termos objectivos, imitando assim a impersonalidade dos problemas
científicos. Poderíamos ser levados a crer que o contributo da
antropologia e da teologia cristãs para o pensamento ocidental tinha
impossibilitado essa atitude do espírito. Mas a impregnação dos modos de
pensar herdados da Antiguidade e, mais tarde, a polarização da reflexão
moderna pelas técnicas científicas e sobretudo o racionalismo das Luzes
(bastardo desses dois impessoais) constituíram sólidos bastiões de
resistência ao impulso cristão, até mesmo no próprio coração das
filosofias de nome cristão. De todos os lados, «idealismo» e
«materialismo» fazem convergir em todas as iniciativas do pensamento
moderno as suas ameaças contra a pessoa, quer elas sejam a «matéria»,
dispondo necessariamente as suas medidas impassíveis; a «vida»,
transtornando as espécies e os indivíduos no seu rio sem margens; o
«económico», determinando surdamente as vontades humanas: ou o
«espírito», desenvolvendo os seus processos lógicos; o «ideal», fazendo
um discurso sobre o acontecimento; ou os «princípios», esmagando uma
alma inquieta. E não são apenas ameaças ideológicas. Todas as ditaduras
modernas nasceram delas: as da deusa razão em França, em 1793, ou as
mais recentes da raça e da economia ou do Estado. Todas as debilidades
dos seus adversários idealistas são ainda consequências disso.
E Mounier, Manifesto ao Serviço do Personalismo.

O personalismo defende a irredutibilidade da pessoa à matéria,


afirmando-se numa concepção espiritualista do ser humano. O personalismo
contemporâneo não costuma exprimir-se na linguagem filosófica clássica
(grega, medieval, racionalista), cuja ideia central é o conceito de substância;
daí que não recorra à noção de alma como substância, nem se coloque – na
base do conceito de substância – o problema igualmente clássico da relação
alma-corpo.
O personalismo do século XX utiliza o conceito de pessoa numa
perspectiva basicamente unitária e dinâmica: a concepção unitária da pessoa
leva a prescindir das distinções excessivamente intelectualistas e
desagregadoras em que se exprimia a antropologia clássica; a concepção
dinâmica da mesma leva a considerar a pessoa em suas estruturas de
intencionalidade, interrelação pessoal, práxis, etc., à margem da sua
consideração substancialista. A pessoa revela-se, escreve Mounier, não «na
experiência imediata de uma substância, mas na experiência progressiva de
uma vida, a vida pessoal» (Manifesto ao Serviço do Personalismo).
É evidente a influência exercida pela psicologia e pelo pensamento
europeu contemporâneos (muito especialmente a fenomenologia) sobre este
modo de considerar a pessoa. Em qualquer caso, o personalismo assume a
tradição espiritualista cristã face à redução materialista do ser humano à
matéria.

1.2.2. Personalismo face ao idealismo

A caracterização do personalismo como espiritualista fecha um círculo


do qual apenas fica excluída a filosofia materialista. Este círculo é no
entanto excessivamente amplo, pois nele caberia qualquer filosofia
espiritualista, inclusive o idealismo panteísta. O personalismo não só afirma
a irredutibilidade da pessoa à matéria, como também a irredutibilidade da
pessoa individual ao todo.
A afirmação do valor absoluto do indivíduo humano, que não pode ser
reduzido a um mero momento ou manifestação de um princípio absoluto,
como pensara Hegel, tem a sua origem última na concepção cristã do
homem e sua origem imediata no existencialismo a partir de Kierkegaard
(1813-1855).
Kierkegaard reagiu contra o sistema hegeliano que havia «engolido» a
pessoa individual, insistindo, contra Hegel, na categoria de
«singularidade». É certo que a consideração kierkegaardiana da
singularidade, da existência humana pessoal (categoria inadmissível pelo
sistema hegeliano), está eivada de uma concepção luterana e pessimista da
existência e liberdade humanas (a singularidade anda unida ao pecado, à
culpa) e isso contrasta com o personalismo do século XX, católico e
optimista. No entanto, a partir de Kierkegaard e através do existencialismo,
o personalismo acolheu esta ideia do valor absoluto do indivíduo humano,
da pessoa como ser irrepetível e irredutível a mero momento de um
processo ou de um todo.

1.2.3. Personalismo face ao intelectualismo

A demarcação do personalismo terá de ser mais acentuada já que, no


círculo descrito na alínea anterior, cabem múltiplos sistemas filosóficos
(Platão e Leibniz, para citar apenas dois exemplos) que nada ou muito
pouco têm a ver com o personalismo contemporâneo. Outra nota
característica do personalismo é, segundo L. Stefanini, a sua oposição ao
intelectualismo, seja qual for o sistema em que tal intelectualismo se
concretize.
Esta oposição deve ser graduada cuidadosamente, pois o personalismo
não pretende adoptar posições irracionalistas. O intelectualismo negado
pelo personalismo pode ser caracterizado como uma atitude (generalizada
na cultura ocidental, a partir dos Gregos) cujos traços mais importantes são
os seguintes:

a) O intelectualismo tende a desvincular o pensamento, separando-o da


pessoa, do indivíduo humano, sem ter em conta que o pensamento é
fundamentalmente um modo de mediação da pessoa humana com os
restantes indivíduos e com o seu meio;
b) Uma vez separado do seu princípio (a pessoa), o pensamento – suas
leis e conteúdos – hipostasiam-se, objectivam-se, convertendo-se em
realidade e princípio; tal ocorre desde as ideias de Platão até à lógica de
Hegel;
c) O pensamento, desvinculado do seu princípio pessoal e convertido
ele próprio em princípio, contrapõe-se à pessoa, convertendo esta em
algo individual e irracional: desde o platonismo até à prática científica,
que procura a descoberta de hipóteses e leis gerais, o particular foi
sempre considerado como o mais afastado da claridade ou clarificação
racional; e é a esta posição que se encontra relegada a individualidade
pessoal;
d) Como consequência, o intelectualismo traz consigo o gérmen do
irracionalismo no que se refere à pessoa: com efeito, as filosofias que
«defenderam» a individualidade pessoal, muitas vezes o fizeram
aceitando a irracionalidade da mesma (por exemplo, Kierkegaard), e
portanto, aceitando os pressupostos intelectualistas que estamos a
assinalar.

Das considerações anteriores ressalta que o personalismo se pretende


situar longe de todo o irracionalismo e instaurar uma racionalidade integral
e concreta, cujo centro é a pessoa.
2. CONTRIBUTOS HISTÓRICOS PARA
ORIENTAÇÃO PERSONALISTA

E. Mounier escreveu, no começo do seu Manifesto ao Serviço do


Personalismo: «Por outro lado, as verdades de base sobre as quais vamos
apoiar as nossas conclusões e a nossa acção não foram inventadas ontem.
Apenas deve ser nova a sua inserção histórica sobre novos dados.» O
personalismo contemporâneo, portanto, aparece como o último elo de uma
cadeia em que se assume e actualiza uma trajectória histórica personalista.

2.1. O pensamento grego

As considerações tecidas no ponto 1.2.3 são suficientes para adiantar


que o contributo da filosofia grega para a perspectiva personalista foi
escasso, para não dizer nulo. Com efeito, os Gregos foram os criadores e
impulsionadores da atitude que acabamos de caracterizar, de acordo com
Stefanini, como «intelectualista».
Para a ausência do conceito de pessoa na filosofia grega contribuiu o seu
intelectualismo, juntamente com uma particularidade do pensamento grego,
estreitamente relacionada com aquele: a ausência de um princípio supremo
(Deus) de carácter pessoal. Os filósofos que mais se aproximam do
cristianismo, como Platão e Plotino, estipularam como princípio uma
realidade carente de qualquer aributo ou vida pessoal: as ideias e o uno,
respectivamente.
Quanto aos filósofos (como Anaxágoras, Aristóteles ou os estóicos) que
propuseram um princípio racional (o entendimento, o pensamento de si
mesmo, a razão cósmica), também não o conceberam como um ser pessoal,
susceptível de relações pessoais. A conexão existente entre a teologia e a
antropologia é inegável e, por isso esta imagem de Deus comum aos
filósofos gregos corresponde a uma imagem não personalista do homem.
Platão constitui em certa medida uma excepção a esta afirmação geral.
Com efeito, Platão insistiu no amor, no eros, como força que leva o homem
a elevar-se acima de si próprio, como atracção e como impulso para o
mundo das ideias. No entanto, o amor da antropologia platónica, este eros
que move o homem, também não é a força susceptível de unir uma pessoa
com outra, mas uma força que impele o homem para as ideias: o objecto do
eros platónico não é pessoal.

2.2. A antropologia cristã

Em mais de uma ocasião assinalámos que a inspiração última do


personalismo («personalismo cristão») mergulha as suas raízes na
antropologia cristã. O cristianismo – como tivemos ocasião de expor no
capítulo quarto – trouxe consigo uma nova imagem de Deus e uma nova
imagem do homem:

a) Deus não é concebido como uma inteligência abstracta, mas como um


ser pessoal, capaz de comunicar com os homens.

b) Esta capacidade de comunicação com os homens transforma Deus em


pólo de uma relação social com o homem: Deus é o Tu, o Tu absoluto para
o diálogo humano, assim como o homem é igualmente o tu a que se dirige a
palavra de Deus.

c) A relação pessoal é primeiramente uma relação de amor: o amor só é


possível entre pessoas, como comunicação e entrega, que não faz do outro
um objecto mas algo de pessoal e valioso em si. Esta concepção do amor
afasta-se da concepção platónica do eros e aponta para uma comunidade de
pessoas.

d) O homem é criado à imagem de Deus, o que confere à pessoa um


valor absoluto. Além desta fundamentação religioso-teológica, o valor
absoluto da pessoa reconhece-se na relação e comunicação pessoal.

e) A pessoa caracteriza-se pela sua transcendência. Face ao


enclausuramento do indivíduo dentro de si mesmo, a pessoa encontra-se
essencialmente aberta a outras pessoas e, em última análise, ao ser pessoal
supremo.

O CRISTIANISMO, PERSONALISMO UNIVERSALISTA


Para aqueles que só o conhecem de fora, o cristianismo parece
desesperadamente complicado. Na realidade, e considerado nas suas
linhas-mestras, ele contém uma solução do mundo extremamente simples
e espantosamente ousada.
No centro, e de tal modo aparente que nos desconcerta, temos a
afirmação intransigente de um Deus pessoal: um Deus-Providência, que
conduz o Universo com solicitude, e um Deus-Revelação, que se
comunica ao homem no plano e pelas vias da inteligência. Do que ficou
dito anteriormente, ser-me-á fácil fazer sentir daqui a pouco o valor e a
actualidade deste personalismo tenaz, que ainda não há muito era olhado
como obsoleto e condenado. O que importa assinalar neste momento é
como, no coração dos fiéis, tal atitude se alia sem esforço e dá lugar a
tudo o que há de grande e de são no universal.
No decurso da sua fase judaica, o cristianismo acreditou ser a religião
particular de um povo. Submetido mais tarde às condições gerais do
conhecimento humano, imaginou que o mundo era pequeno de mais à sua
volta. Na verdade, logo que se constituiu, tendeu sempre a englobar nas
suas construções e nas suas conquistas a totalidade do sistema que ele
próprio concebia.
P. Teilhard de Chardin, O Fenómeno Humano.

2.3. A filosofia medieval

No que se refere à problemática da pessoa, o pensamento medieval


ocupa-se mais em precisar o seu conceito a partir das coordenadas de uma
ontologia do que em desenvolver as implicações da antropologia cristã. Isto
não quer dizer que os pensadores medievais, especialmente os de maior
craveira como Tomás de Aquino, não tivessem contribuído para uma
concepção ontológico-axiológica da pessoa. Assim, na Suma Teológica
Aquino afirma que «pessoa significa o que é maximamente perfeito em toda
a natureza, isto é, o subsistente de natureza racional».
Nesta linha, pode também considerar-se como contributo de Aquino a
sua defesa da individualidade pessoal face à sua dissolução num
entendimento impessoal e único como o aristotelismo averroísta fazia. Nada
tem de estranho que neotomistas contemporâneos (e de modo muito
especial J. Maritain) sejam considerados inspiradores ou integrantes do
movimento personalista.
As discussões medievais acerca da pessoa foram fundamentalmente
motivadas por exigências teológicas relativas à Trindade cristã e giraram
em torno da célebre e clássica definição de pessoa proposta por Boécio:
Naturae rationalis individua substantia, isto é, substância individual de
natureza racional. De acordo com esta definição, a personalidade só
pertence a realidades substanciais, isto é, subsistentes em si mesmas,
autónomas em seu ser; entre tais realidades substanciais, a personalidade
pertence apenas àquelas que possuem natureza racional.
Assinalámos anteriormente o facto de o personalismo cristão actual ter
abandonado em grande medida a linguagem filosófica medieval, e com ela
o conceito de substância, para adoptar uma linguagem mais de acordo com
as correntes fenomenológicas e antropológicas actuais. Certamente, a
utilização boeciana do conceito de substância para definir a pessoa pode
favorecer a imagem de uma realidade estática, bem como a utilização do
termo «racional» pode favorecer o esquecimento de aspectos importantes da
pessoa (dimensão comunitária, práxis, etc.).
No entanto, na medida em que o conceito de substância envolve a
autonomia no ser e o conceito de «racional» conota vontade, liberdade,
sociabilidade e autoconsciência, não nos parece muito justificada a
insistência com que alguns personalistas se apressam a desqualificar a
definição de Boécio.

2.4. O pensamento moderno

A antropologia cristã, que deixou uma marca profunda na interpretação


ocidental do ser humano, mesmo nas suas formas mais secularizadas, não é
meramente descritiva: conceitos como o de valor absoluto da pessoa
humana, dignidade da pessoa, etc., não são descritivos mas avaliativos, isto
é, não indicam ou descrevem traços ou propriedades do ser humano, mas
introduzem valorações. Nalguns dos conceitos utilizados, por exemplo, nos
de racionalidade e perfeição, dão-se ambos os factores descrição e
avaliação. Outros conceitos, como os citados de valor absoluto e dignidade,
são genuinamente avaliativos.
O conceito de dignidade (e outros que lhe andam associados) adquiriu
na idade moderna uma importância decisiva, embora em circunstâncias
históricas muito secularizadas. Do ponto de vista filosófico-metafísico, é
oportuno recordar a antropologia de Kant (ver capítulo doze), bem como a
sua formulação do imperativo categórico que obriga a agir «de tal modo
que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre com um fim e não meramente como um meio».
EXISTENCIALISMO E PERSONALISMO
Há uma solidariedade estreita entre as preocupações existenciais e as
preocupações personalistas. Encontramos esta aproximação não só em
Gabriel Marcel mas também em Berdiaeff: «A filosofia existencial é uma
filosofia personalista: o sujeito do conhecimento é a pessoa humana».
Com efeito, o existente humano apresenta-se como uma estrutura que o
constitui em ser pessoal perante a inércia ou a impessoalidade das coisas.
Os pensadores existencialistas são unânimes neste último ponto e foram
eles que deram o sinal do despertar personalista na reflexão
contemporânea.
Posto isto, o existencialismo apresenta em geral a imagem de um
personalismo um pouco crispado. Vimos já a vivacidade com que reage
perante o impessoalismo das filosofias idealistas ou materialistas e como
tentou por vezes encerrar o indivíduo na solidão da sua investigação
apaixonada. Este perigo acarreta um problema mais geral que
estudaremos mais adiante. Se não há sistema da existência, mas apenas
existentes singulares e opções irredutíveis a qualquer generalidade ética,
o universo do existente ameaça romper-se irremediavelmente numa
dispersão de indivíduos isolados; e o indivíduo, por sua vez, numa
dispersão de decisões arbitrárias e incomunicáveis. No limite, uma
descontinuidade absoluta tornaria o mundo simultaneamente impensável
e invisível. Este limite talvez não tenha sido ainda alcançado, mas não há
dúvida de que os pensadores existencialistas se aproximaram
perigosamente dele. O existencialismo não é definido pela estupidez da
objectivação total, mas sim pelo seu perigo lateral, o qual ameaça de
flanco a organização material e social, mas nem por isso é uma
consequência fatal. Por essa razão, o existencialismo foi mais de uma vez
tentado a negar a noção de espécie ou de natureza humana.
E. Mounier, Introdução aos Existencialismos.
Do ponto de vista político, as declarações de direitos insistiram
igualmente na dignidade humana, A proclamação enfática de direitos
humanos prolongou-se até aos nossos dias e a declaração da ONU fala, nos
dois primeiros artigos, de liberdade e igualdade, de comportamento
fraternal e diz que «toda a pessoa tem todos os direitos e liberdades
proclamadas nesta declaração».
É possível que estas declarações se assinem com o propósito
inconfessado (por parte dos assinantes) de não as levar à prática, mas isso
não impede que constituam um horizonte e um ponto de referência. Mais
grave será talvez o espírito individualista que as enforma como
consequência das circunstâncias sociopolíticas a que a sua proclamação
corresponde. Este individualismo é talvez o elemento que uma filosofia
personalista se negaria, com mais força, a aceitar.

2.5. O existencialismo

Também o existencialismo contribuiu com alguns elementos valiosos


para o pensamento personalista. A meditação existencialista sobre a
liberdade e sobre a existência humana como projecto, a sua distinção entre
existência autêntica e inautêntica, etc., constituem outros tantos aspectos
integráveis numa reflexão personalista.
Entre os existencialistas, merecem especial realce, quanto a este assunto,
as figuras de M. Blondel e de G. Marcel, os quais poderiam perfeitamente
ser considerados filósofos personalistas.
No que se refere a Blondel, o personalista J. Lacroix (com Mounier
fundador da revista Esprit) não só dedicou um livro ao estudo do seu
pensamento como o proclamou expressamente como o mestre da sua
juventude.
Por seu lado, G. Marcel insistiu em que o caminho para compreender a
realidade humana não é outro senão a consideração das relações pessoais
nas quais o outro aparece como um «tu». Estas relações são criadoras e
educadoras num sentido profundo, na medida em que eu me crio por meio
delas, ao mesmo tempo que ajudo o outro a realizar a sua própria liberdade.
Fidelidade e esperança encontram-se no cerne deste tipo de relação pessoal.
A relação entre pessoas pode no entanto degenerar, de modo que o «tu» seja
objectivado, convertido num «ele». Mais além – ou mais fundo – encontra-
se o «Tu» absoluto, que não se deixa captar como objecto (Deus).

A DEFINIÇÃO DE «PESSOA» DE BOÉCIO


Embora o universal e o particular acometam em todos os géneros, a
individualidade só se dá de um modo especial no género da substância.
Com efeito, a substância individualiza-se por si mesma, ao passo que os
acidentes se individualizam pelo seu sujeito que é a substância: assim,
diz-se «esta» brancura, enquanto parte «deste sujeito». Daí que, com
razão, os indivíduos que são substâncias tenham uma denominação
especial: denominam-se «hipóstases» ou substâncias primeiras.
Mas o particular, a individualidade, dá-se de um modo mais especial e
ainda mais perfeito nas substâncias que são racionais, que dominam os
seus actos e que não são apenas actuadas, como as outras substâncias,
mas que também actuam por si mesmas: e as acções estão nos indivíduos.
Por conseguinte, os indivíduos de natureza racional recebem uma
denominação especial, a denominação de «pessoas».
Deste modo, na definição de «pessoa» inclui-se a expressão
«substância individual», na medida em que é relativa a um singular
dentro do género da substância: por sua vez, acrescenta-se a expressão
«de natureza racional», enquanto referente a um singular dentro das
substâncias racionais.
São Tomás, Suma Teológica l, questão 29, art. l.
3. O PERSONALISMO DE MOUNIER

3.1. Sentido do movimento personalista

A exposição que apresentámos na secção anterior sobre as linhas


fundamentais que integram o personalismo ou nele confluem tornam
impossível considerá-lo como um sistema filosófico ou uma doutrina
coerentemente articulada. O personalismo deve considerar-se antes:

a) como uma constante histórica, como uma linha mais ou menos


identificável, cuja origem se encontra na antropologia cristã e que recebeu
pontos de vista, teorias, sistemas e formulações várias, das mais diversas
filosofias;

b) como uma herança cultural constituída por este conjunto de ideias e


formulações, herança que veio a ser retomada e desenvolvida no segundo
quartel do nosso século.

A aceitação desta herança por parte de Mounier não foi meramente


passiva nem teórica, mas uma tentativa de projectar activamente um modelo
(profundamente utópico) capaz de incidir na práxis, na história e na
estruturação da sociedade. As circunstâncias em que Mounier escreveu o
Manifesto ao Serviço do Personalismo (1936) e em que fundou a revista
Esprit estavam marcadas na Europa pelo predomínio de um capitalismo
degradante, de fascismos autoritários e de um comunismo
despersonalizador. Daí que o personalismo possa ser considerado também:
c) uma plataforma para a acção comum, baseada num consenso
doutrinal mínimo: «Para nós, o personalismo não é mais do que um santo-e-
senha significativo, uma cómoda designação colectiva para doutrinas
diferentes, mas que, na situação histórica em que estamos, se podem pôr de
acordo nas condições elementares, físicas e metafísicas de uma nova
civilização. O personalismo não anuncia pois a criação de uma escola, a
abertura de uma confraria, a invenção de um sistema fechado. Testemunha
uma convergência de vontades e coloca-se ao seu serviço, sem afectar a sua
diversidade, para procurar os meios de pesar eficazmente sobre a história»
(Manifesto).
Este consenso mínimo é determinado pela afirmação do «primado da
pessoa humana sobre as necessidades materiais e sobre os mecanismos
colectivos que sustentam o seu desenvolvimento» (ibid).

Emmanel Mounier
Máximo representante e promotor do personalismo cristão contemporâneo. A sua formação
filosófica recebeu uma notável influência de Descartes e Pascal, entre os filósofos franceses
clássicos, e de Bergson e Blondel, entre os contemporâneos. A estas influências devem
acrescentar-se os seus contactos posteriores com Marcel e Maritain. A reflexão sobre a situação
sociopolítica europeia levou-o a abandonar o ensino académico em 1932 para fundar a revista
Esprit. Tanto a sua obra escrita como a sua própria vida constituem uma tentativa de lançar uma
ponte entre a teoria (as suas convicções cristãs, personalistas) e a acção.
Entre os seus escritos merecem destaque: o Manifesto ao Serviço do Personalismo (1936),
Introdução aos Existencialimos (1946) e O Personalismo (1949). Nasceu em Abril de 1905 e
morreu em Março de 1950.

Ao autodefinir-se desta maneira, o personalismo não pode deixar de


parecer ecléctico. A consciência deste eclectismo levou alguns membros da
corrente personalista a insistir em que o personalismo não só não é doutrina,
como nem sequer é uma filosofia. Assim, M. Nédoncelle, em Pessoa
Humana e Sociedade escreveu: «O personalismo tornou-se excessivamente
vago e publicitário. Está incluído numa política bem pensante cujas
intenções são respeitáveis, mas que nada tem a ver com a investigação
filosófica. O espírito de investigação morreu nele: não passa de um slogan.
Por vezes, desejo furiosamente renunciar a uma etiqueta tão decepcionante
e encontrar-me só, o que, por outro lado, em nada mudaria a minha
situação, pois sempre me situei um pouco à margem das escolas com as
vantagens e inconvenientes que isto pode implicar.»
Quanto a J. Lacroix, na sua obra O Personalismo como Anti-Ideologia,
disse que esta corrente não é uma ideologia, embora sob o ponto de vista
marxista pudesse ser caracterizada como tal; também não se trata de uma
filosofia, apesar de muitos dos seus defensores afirmarem que o é; pode por
fim, ser considerada como uma anti-ideologia; por conseguinte, não se trata
de uma doutrina, embora existam doutrinas de inspiração personalista,
doutrinas que se centram na pessoa.

3.2. O conceito de pessoa

Os contributos históricos que apresentámos são um apanhado dos traços


fundamentais da concepção personalista do homem. No Manifesto...,
Mounier propõe a seguinte definição de pessoa:
«Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por uma forma de
subsistência e de independência em seu ser; mantém esta subsistência
mediante a adesão a uma hierarquia de valores livremente adoptados,
assimilados e vividos num compromisso responsável e numa constante
conversão; unifica assim toda a sua actividade na liberdade e desenvolve,
por acréscimo, e por impulsos de actos criadores, a singularidade da sua
vocação.»
Mounier fez notar que esta caracterização não deve ser considerada
como uma verdadeira definição: a pessoa não é susceptível de definição em
sentido estrito, já que em última análise a pessoa não é senão «a própria
presença do homem». Os traços reunidos nesta caracterização são no
entanto significativos da orientação filosófica de Mounier:

a) Em primeiro lugar, destaca-se a espiritualidade do ser pessoal. O resto


da definição tornará manifesto que a espiritualidade não é uma propriedade
ou característica passiva.

PESSOA E COMUNIDADE HUMANA


A categoria da pessoa aparece-nos agora em tensão fundamental. É
constituída por um movimento duplo – aparentemente contraditório mas
na realidade dialéctico – que tende para a afirmação de absolutos pessoais
que resistem a qualquer redução e para a edificação de uma unidade
universal do mundo das pessoas.
Esta unidade não pode ser uma unidade de identidade: a pessoa é, por
definição, o que não pode ser repetido duas vezes. E, com efeito, há um
autêntico mundo de pessoas (...).
Deste modo, uma das ideias-chave do personalismo é a afirmação da
unidade da humanidade no espaço e no tempo, uma unidade que foi
pressentida por algumas escolas do fim da Antiguidade e afirmada pela
tradição judaico-cristã (...). A ideia de um género humano que tem uma
história e um destino colectivo, do qual nenhum destino individual pode
ser excluído, é uma ideia-chave dos padres da Igreja. Quando se tornou
laica, esta ideia animou o cosmopolitismo do século XVIII e depois o
marxismo. Ela não se opõe à hipótese de uma descontinuidade absoluta
entre as liberdades (Sartre) ou entre as civilizações (Malraux, Frobenius).
Mas opõe-se a qualquer forma de racismo e de divisão em castas, à
submissão dos deficientes, ao desprezo pelo estrangeiro, à negação
totalitária do adversário político; em suma, opõe-se à fabricação de
rejeitados: por muito diferente que seja, e por muito envilecido que esteja,
um homem continua a ser sempre um homem, e devemos permitir-lhe
levar uma vida de homem.
E. Mounier, O Personalismo.

b) Em segundo lugar, a realidade pessoal é constituída «por uma forma


de subsistência e de independência no seu ser». Estas duas características
recordam a definição de Boécio, a sua exigência de substancialidade. Esta
necessidade de «independência no seu ser» é essencial a toda a filosofia
personalista, pois constitui o fundamento ontológico da concepção da
pessoa como foco de acção e como realidade absolutamente valiosa. A
negação desta substância reduziria a pessoa humana a um produto das
relações sociais e das forças infra-estruturais em que se apoia. Tal como a
espiritualidade, a subsistência não é algo meramente dado, uma espécie de
propriedade natural, mas algo que deve ser mantido e conquistado; daí que
seja mais oportuno falar de processo de personalização do que
simplesmente de pessoa. A manutenção da subsistência pessoal realiza-se
num processo que, de acordo com a definição proposta, inclui:

– a adesão a uma hierarquia de valores. Sem a aceitação de um sistema


responsável de valores, não existe pessoa. A permanência dos valores
aceites é necessária para a auto-identificação como pessoa;
– esta adesão a uma escala de valores deve ser livremente adoptada, e
não meramente recebida do contorno social, da ideologia dominante;
– os valores a que a pessoa adere devem ser vividos num compromisso
responsável, isto é, a adesão aos mesmos não deve ser puramente
estética, nem meramente teórica: os valores, na medida em que são
vividos como tais, exigem a sua realização;
– o compromisso livre e responsável exige uma continuidade de
projecto e de actuação, essencial na manutenção da subsistência pessoal.
Daí que exija um processo contínuo de conversão, que se manifesta
num duplo momento de recolhimento reflexivo e de exteriorização.

c) Na última parte da definição explicitam-se por fim duas


características essenciais da subsistência pessoal ou da autonomia no ser: a
unidade de projecto, de experiência e de vida, face a toda a desintegração e
carência de identidade pessoal e a singularidade da vocação, a
irrepetibilidade da pessoa na medida em que se sente chamada a realizar
uma tarefa que é a sua.
3.3. Personalismo e compromisso político-social

Na nossa explicação da definição mounieriana de pessoa não insistimos


(Mounier também não o faz explicitamente) na comunicação interpessoal
como estrutura essencial ao processo de personalização. No entanto, as
ideias de compromisso e de conversão devem ser interpretadas numa
perspectiva comunitária, numa exigência de solidariedade.
A relação entre pessoas e compromisso político-social pode ser
considerada dialéctica. Por um lado, não é possível a pessoa, nem é possível
o processo de personalização, senão através de um compromisso solidário
com outras pessoas, através de um processo de realização comunitária: a
realização pessoal exige o compromisso político. Por outro, o compromisso
e a práxis devem orientar-se no sentido da realização de uma sociedade em
que os valores da pessoa sejam reconhecidos e promovidos: o compromisso
político visa a realização pessoal. Se no terreno filosófico o personalismo se
revela uma posição ou atitude inclinada ao ecletismo, no terreno político
pode talvez ser acusado de indefinição e de idealismo. O próprio Mounier
(Manifesto...) salientava que o personalismo agrupa «aspirações
convergentes que procuram hoje um caminho para além do fascismo, do
comunismo e do mundo burguês decadente». Não é de admirar que alguns
sectores do movimento personalista – incluindo o próprio Mounier – se
considerem próximos do anarquismo.
A componente utópica do personalismo é alvo de acusações. Se Mounier
escreveu: «além disso, as verdades de base sobre as quais apoiamos as
nossas conclusões e a nossa acção não foram inventadas ontem. Apenas
pode e deve ser nova a sua inserção na história com base em novos dados»,
parece razoável supor que cabe aos personalistas manter uma atitude deste
tipo.
19. O NEOPOSITIVISMO E A FILOSOFIA
ANALÍTICA

INTRODUÇÃO

Neste capítulo ocupar-nos-emos de um amplo movimento filosófico que


pode denominar-se analítico e que se prolonga por todo o século vinte até
aos nossos dias, especialmente na área cultural anglo-saxónica. A tradição
analítica desenvolveu-se através de três correntes filosóficas, em grande
parte sucessivas:
1. A primeira corresponde ao atomismo lógico, cujo máximo
representante é B. Russell, filósofo e prémio Nobel, a cujo nome é oportuno
associar o de L. Wittgenstein e a sua obra Tractatus Logico-Philosophicus.
2. A segunda é o neopositivismo lógico, originado por um grupo de
filósofos e cientistas conhecidos sob o nome colectivo de «Círculo de
Viena», que se inspiraram em grande medida na citada obra de
Wittgenstein, o Tractatus.
3. A última corrente deste movimento é a denominada filosofia
analítica, impulsionada pela obra de L. Wittgenstein Investigações
Filosóficas, obra em que este fez uma viragem importante na sua concepção
da filosofia, a ponto de ser habitual falar de «dois Wittgensteins»: o do
Tractatus, e o das Investigações Filosóficas. A filosofia analítica continua
na actualidade, se bem que dentro dela ainda se possam distinguir diferentes
correntes e subcorrentes.
Em linhas gerais, todo o movimento analítico – e portanto as três
correntes que sucessivamente o constituem – caracteriza-se pelos seguintes
traços: a) uma atitude filosófica de clara tendência empirista, que em
maior ou menor medida remonta e remete para o empirismo de Hume; b)
uma atenção especial ao estudo da linguagem, ainda que a concepção
desta não seja a mesma nas três correntes citadas: c) a convicção de que a
análise da linguagem constitui o método e a tarefa específicos da
filosofia, embora essa análise não se pratique do mesmo modo nas
diferentes correntes, precisamente por causa da desigual concepção de
linguagem que professam.

Este capítulo divide-se em três partes, uma para cada corrente do


movimento analítico:
1. O atomismo lógico: Russell.
2. O neopositivismo lógico.
3. A filosofia analítica.
1. O ATOMISMO LÓGICO: RUSSELL

1.1. Pluralismo, realismo e análise

Na sua juventude, Bertrand Russell foi profundamente influenciado pelo


idealismo hegeliano, através do idealista inglês Bradley. Para esta forma de
idealismo a totalidade do real constitui uma única substância ou realidade
(monismo), que não é distinta do pensamento (idealismo). Os primeiros
esforços filosóficos de B. Russell (levados a cabo conjuntamente com G. E.
Moore, 1873-1958), foram no sentido de se libertarem deste sistema e
substituir o monismo pelo pluralismo e o idealismo pelo realismo.

a) No entender de Russell, o idealismo tem a sua origem numa


concepção inaceitável das relações existentes entre os diferentes seres que
compõem o Universo. Esta concepção deficiente (denominada por Russell
teoria das relações internas) afirma que as relações que existem entre os
indivíduos pertencem à natureza destes, são internas a ela.
(Recorde-se o monismo de Espinosa ou Hegel, segundo o qual cada
coisa particular é o que é em virtude do lugar que lhe corresponde dentro da
realidade total; a totalidade, com efeito, constitui um sistema de relações
que determina o ser de cada indivíduo como membro ou momento do todo).
E visto que, por seu turno, a totalidade do real mantém uma relação
essencial com o pensamento, com a consciência, o monismo hegeliano é
idealista. Russell abandonou esta concepção adoptando outra que
denominou teoria das relações externas. Segundo esta, as relações são
independentes dos termos relacionados; assim, que uma coisa seja maior ou
menor do que outra não é algo que pertença à natureza das mesmas, não é
algo que lhes é interno, já que uma coisa é o que é, independentemente de
ser maior ou menor do que outras. Partindo de relações deste tipo («maior
do que», etc.), Russell conclui que as relações são externas e não
constituem o ser das coisas relacionadas, nem uma propriedade das
mesmas.

b) O abandono da teoria das relações internas permitiu a Russell


abandonar o idealismo e o monismo. Assim:

1) uma vez rejeitado que o real é constituído pela sua relação essencial
ao pensamento (idealismo), Russell pode afirmar a existência de factos
cuja facticidade, cuja realidade é independente de que sejam conhecidos
ou não; os factos dão-se, são como são, independentemente de uma
mente ou pensamento os conhecer: realismo;
2) uma vez rejeitado que os diferentes indivíduos e factos do Universo
constituem um sistema unitário (monismo), Russell pode afirmar que
existe uma pluralidade de factos cuja verdade não depende da suposta
totalidade nem sequer da verdade de outros factos: pluralismo.

ATOMISMO LÓGICO
A lógica que vou defender é atomista, ao contrário da lógica monista
daqueles que mais ou menos seguem Hegel, Quando digo que a minha
lógica é atomista, quero dizer que partilho da crença comum de que há
uma multidão de coisas diferentes; longe de mim considerar que a
aparente multiplicidade do Universo se reduz a uma simples diversidade
de aspectos ou divisões irreais de uma única realidade indivisível (...). A
razão de eu denominar a minha doutrina de atomismo lógico tem a ver
com o facto de que os átomos, aos quais quero chegar como o último
resíduo na análise, são átomos lógicos e não átomos físicos. Alguns serão
o que eu chamo «particulares» – coisas como pequenas manchas de cor
ou sons, coisas fugazes e momentâneas –, outros seriam predicados ou
relações e entidades pelo estilo. O importante é que o átomo em questão
seja o átomo da análise lógica e não da análise física.
B. Russell, A Filosofia do Atomismo Lógico.

Este duplo ponto de partida – pluralismo, realismo – abriu por fim o


caminho à análise como método da filosofia: visto que o Universo consta de
múltiplos elementos, o caminho mais adequado para o seu conhecimento
consistirá em decompor os factos complexos até chegar aos elementos e
factos mais simples: atomismo.

1.2. Linguagem ideal e análise

A ontologia de Russell, a descoberta da estrutura e dos elementos do real


baseava-se em duas teses ou afirmações, presentes também (embora com
certas diferenças de matiz) no Tractatus de Wittgenstein. São as seguintes:

1.2.1. Linguagem e realidade

A primeira afirmação é que existe uma correspondência isomórfica entre


a linguagem e a realidade, o que significa que os factos possuem uma
estrutura lógica-linguística, que a estrutura dos factos corresponde à
estrutura da linguagem. Esta tese é conhecida pelo nome de teoria da
linguagem-retrato porque a linguagem representa ou retrata a realidade: «a
proposição é uma pintura da realidade» (Tractatus, 4.01). Pois bem, se a
realidade está configurada de acordo com as estruturas da linguagem, a
descoberta das estruturas desta permitir-nos-á descobrir as estruturas do
real.

1.2.2. A linguagem ideal


A linguagem que retrata a realidade não é a linguagem corrente, cheia
de imprecisões e de deficiências, mas uma linguagem ideal, logicamente
perfeita. Esta linguagem constará de dois elementos: termos do vocabulário
primitivo (assim, na lógica proposicional as três letras minúsculas: p, q, s) e
constantes lógicas (no caso proposto da lógica proposicional, as
conectivas).
Em virtude da primeira afirmação o estudo da linguagem lógica permitiu
a Russell distinguir os seguintes elementos, tanto da linguagem como da
realidade:

a) Em primeiro lugar, na linguagem há nomes próprios que designam


objectos individuais. O significado dos nomes, segundo Russell, é o objecto
ao qual se referem (o significado de «Pedro» é Pedro, etc.). Esta afirmação
de que o significado de um nome é o objecto ao qual se refere, denomina-se
teoria referencial do significado e foi defendida por Russell e por
Wittgenstein no Tractatus.

b) Em segundo lugar, estes objectos individuais possuem qualidades


(Pedro é ambicioso) e entram em relações com outros objectos particulares
(João ama Pilar). Trata-se de factos e os factos exprimem-se em
proposições («Pedro é alto», «João ama Pilar»).

c) As proposições podem ser atómicas ou moleculares; estas últimas


compõem-se de proposições atómicas unidas por conectivas lógicas: «Pedro
é alto e João ama Pilar». A elas correspondem, respectivamente, dois tipos
de factos: atómicos e moleculares.

A análise formal levou Russell a estabelecer como últimos tipos de


proposições e factos os seguintes: atómicos («isto é amarelo»), moleculares
(«isto é ou verde ou amarelo»), existenciais («há coisas amarelas»), gerais
(«todos os limões são amarelos»), completamente gerais (proposições da
lógica e das matemáticas) e negativos («Filipe II não era Italiano»).

A COISA E AS SUAS APARÊNCIAS


Uma vez que a «coisa» não pode ser identificada unicamente com
uma das suas aparências, a não ser que caíssemos numa parcialidade
insustentável, chegou-se a pensar que o substrato era diferente em todas
elas. Mas, e de acordo com a navalha de Ockham, se a classe das
aparências pode desempenhar o papel para o qual a coisa foi inventada
pelos metafísicos pré-históricos (dos quais deriva o sentido comum), a
economia exige que identifiquemos a coisa com a classe das suas
aparências. Não é preciso negar a substância ou o substrato que está sob
essas aparências; basta simplesmente abster-se de afirmar esta entidade
desnecessária.
B. Russell, A Relação dos Dados Sensíveis com as Físicas.

Bertrand Russell
Filósofo, matemático, reformador social e prémio Nobel de Literatura, Russell nasceu em
1872, no País de Gales. Se tivéssemos de o comparar com algum intelectual do passado, vir-nos-
ia imediatamente à mente o nome de Voltaire. Conhecido pela sua militância pacifista, foi preso
por duas vezes durante a sua vida, em 1918 e em 1961 (com a idade de oitenta e nove anos) por
causa de uma campanha em favor do desarmamento nuclear. Em l940 teve de suportar um
julgamento (que alguns compararam com o de Galileu) na cidade de Nova Iorque com base num
convite que lhe foi formulado pelo Departamento de Filosofia do City College. Nessa ocasião,
as forças conservadoras, zelosas na defesa da «saúde segurança e moral públicas», opuseram-se.
A sua vida decorreu entre o estudo, as conferências e docência universitária e uma actividade
política; no seu país, nunca obteve qualquer cargo político institucional, pois por três vezes foi
candidato no Parlamento e nas três ocasiões foi derrotado nas urnas. Morreu em 1970, quase
centenário.
No campo da lógica e das matemáticas, escreveu a obra Principia lógico-mathematica em
colaboração com A. N. Whitehead, bem como uma Introdução à Filosofia Matemática (1919).
Outras obras filosóficas notáveis são: O nosso Conhecimento do Mundo Externo (1914), A
Filosofia do Atomismo Lógico (1918), A Análise da Mente (1921) e Análise da Matéria (1927),
bem como Acerca da Educação, especialmente na Primeira Infância (1926) e A Educação e a
Ordem Social (1932).
1.3. Análise e empirismo

A análise da estrutura da realidade a partir da forma lógica obrigava


Russell a admitir a existência de objectos individuais (Pedro, esta árvore,
etc.), juntamente com qualidades e relações. «Quando falo de um ‘facto’ –
escreve cm O Nosso Conhecimento do Mundo Externo –, «não me refiro a
nenhuma das coisas simples do Universo; refiro-me a que uma coisa
determinada tem uma qualidade determinada, ou melhor, que certas coisas
possuem uma certa relação. Assim, por exemplo, eu não diria que Napoleão
é um facto, mas diria que é um facto ele ser ambicioso e que casou com
Josefina.» As exigências da análise da estrutura lógica obrigavam, pois,
Russell a considerar os objectos do mundo físico (Napoleão, por exemplo)
como coisas simples, apesar da sua complexidade real.
Russell não se limitou no entanto a praticar a análise a este nível, mas
tratou de reduzir o real aos seus últimos elementos constitutivos. Nesta
análise reductiva (redução do complexo ao simples), adoptou um ponto de
vista empirista, chegando a conclusões fenomenistas semelhantes às que
Hume atingiria: a) os últimos elementos são os dados sensíveis; b) as coisas
ou substâncias são apenas o conjunto ou «classe de suas aparências».

1.4. Os limites do atomismo lógico

Entre as afirmações fundamentais em que o atomismo lógico se baseia,


existem duas que se tornam problemáticas e difíceis (senão impossíveis) de
justificar; a tese de que as estruturas da linguagem correspondem às
estruturas da realidade e o pressuposto de que é possível reduzir o
complexo ao absolutamente simples, para reconstruir posteriormente aquele
a partir deste.
A primeira destas afirmações, a teoria da linguagem-retrato, não parece
possível de justificar, como o próprio Wittgenstein reconhecia no Tractatus.
Não é nem sequer possível expressá-la por meio da linguagem. Com efeito,
se é verdade que todo o retrato se assemelha à realidade retratada e mostra
ou exibe esta semelhança, é igualmente verdade que é impossível retratar a
semelhança existente entre um retrato e a realidade que representa: esta
semelhança não se deixa retratar. E visto que a linguagem é um retrato da
realidade, a relação entre ambas pode ser «mostrada» e é mostrada pela
proposição, mas não pode ser dita numa proposição. As proposições acerca
da relação entre a linguagem e a realidade carecem, pois, de sentido.
Quanto ao pressuposto (essencial ao atomismo lógico) de que é possível
reduzir o complexo ao absolutamente simples, tropeça com uma dificuldade
insuperável: os termos «complexo» e «simples» não são absolutos, mas
relativos. O que em cada caso se considera simples ou complexo depende
das circunstâncias e dos interesses da investigação que se leva a cabo.
Como veremos mais adiante, o próprio Wittgenstein reconheceu
posteriormente, nas suas Investigações Filosóficas, a impossibilidade de
manter este pressuposto.

CONHECIMENTO E VERDADE
Qualquer teoria que procure descobrir a natureza da verdade deve
satisfazer três pontos ou requisitos:
l.oA nossa teoria da verdade deve poder admitir o seu oposto, a
falsidade. Muitos filósofos fracassaram porque não satisfizeram
completamente esta condição, tendo construído teorias para que o nosso
pensamento fosse verdadeiro, mas logo depararam com uma grande
dificuldade para admitir o falso (...).
2.oTorna-se óbvio que se não houvesse crenças nunca poderia haver
falsidade, ou verdade, no sentido de que a verdade é correlativa da
falsidade. Se imaginarmos um mundo de matéria pura, a falsidade nunca
caberia nele, e mesmo que contivesse aquilo que podemos denominar
«factos», não conteria algo verdadeiro, no sentido de que o verdadeiro é
da mesma espécie que o falso. Com efeito: a verdade e a falsidade são
propriedades das crenças e das afirmações; por conseguinte, dado que um
mundo de matéria pura não conteria crenças nem afirmações, não
conteria sequer verdade ou falsidade.
3.oNo entanto, e contra tudo o que acabamos de dizer, é preciso
salientar que a verdade ou falsidade da crença depende sempre de algo
que é exterior à própria crença. Se eu creio que Carlos I morreu no
cadafalso, a minha crença é verdadeira, não por causa de qualquer
qualidade que lhe é intrínseca e que pudesse ser descoberta pelo simples
exame das crenças, mas por causa de um acontecimento histórico que
ocorreu há cerca de dois séculos e meio (...). Assim, e ainda que a
verdade ou a falsidade sejam propriedades das crenças, são propriedades
que dependem da relação das crenças com outras coisas, e não de certas
qualidades internas das crenças.
B. Russell, Os Problemas da Filosofia.
2. O NEOPOSITIVISMO LÓGICO

2.1. A linguagem e a actividade filosófica

O neopositivismo lógico – também chamado empirismo lógico – teve a


sua origem e esplendor no período compreendido entre as duas guerras, sob
o impulso de um grupo de filósofos e cientistas denominado Círculo de
Viena: M. Schlick, O. Neurath, R, Carnap, etc. Em linhas gerais, a sua
atitude filosófica é muito próxima da de Hume, pelo seu empirismo radical
e a sua recusa da metafísica entendida como um sistema de conhecimentos
situados para além da experiência sensível. Distinguem-se de Hume, no
entanto, pela importância concedida à linguagem como objecto exclusivo
da actividade filosófica. A preponderância concedida à linguagem
manifesta-se nas seguintes afirmações.

2.1.1. Alcance e limites da linguagem

A discussão acerca da possibilidade e limites do nosso conhecimento


(característica do empirismo clássico e de Kant) deve pôr-se como o
problema da possibilidade e limites da nossa linguagem. Em vez de nos
perguntarmos – como fizeram os empiristas clássicos e como fez Kant – «o
que podemos conhecer?», é mais adequado perguntarmo-nos: «o que
podemos dizer, de modo que as nossas afirmações tenham sentido,
significado?». Ao centrar o problema na linguagem, os neopositivistas
evitam cair numa posição psicologista como a dos empiristas do século
XVIII (Locke, Hume).
2.1.2. Tipos de proposições científicas

Visto que a linguagem científica – a linguagem enunciativa em geral –


se exprime através de proposições, é conveniente determinar que tipos de
proposições científicas existem. Os neopositivistas põem desta forma o
antigo problema da classificação das proposições, um problema já colocado
por Leibniz (verdades de facto e verdades de razão), por Hume (juízos que
exprimem relações de ideias ou juízos que exprimem factos) e por Kant
(juízos analíticos, juízos sintéticos a posteriori e juízos sintéticos a priori).
Os neopositivistas seguem Hume neste ponto, distinguindo unicamente
dois tipos de proposições; as proposições formais, analíticas (relações de
ideias, de Hume), que são próprias das ciências formais (lógica e
matemáticas), e as proposições empíricas (juízos de facto, de Hume), que
são próprias das ciências não formais, empíricas.

a) As proposições da lógica e das matemáticas caracterizam-se por não


dar informação alguma acerca de factos, acerca do que há ou acontece no
Universo. Portanto, a sua verdade não depende em absoluto dos factos; são
tautologias.

PROPOSIÇÕES ANALÍTICAS E SINTÉTICAS


Penso que podemos manter o conteúdo lógico da distinção de Kant
entre proposições analíticas e sintéticas, desde que evitemos as confusões
que arruinariam a descrição real de Kant e se dissermos que uma
proposição é analítica quando a sua validade depende somente da
definição dos símbolos que contém, ou que uma proposição é sintética
quando a sua validade é determinada pelos factos da experiência (...).
Note-se que a proposição «ou algumas formigas são parasitas ou
nenhumas o são» não fornece qualquer informação sobre o
comportamento das formigas, nem na verdade sobre qualquer questão
factual. E isto aplica-se a todas as proposições analíticas, pois nenhuma
delas fornece qualquer informação sobre questões factuais. Dito de outro
modo, são inteiramente desprovidas de conteúdo factual, e por essa razão
não podem ser refutadas por nenhuma experiência.
A. J. Ayer, Linguagem, Verdade e Lógica.

A ACTIVIDADE FILOSÓFICA
4.1. A proposição representa a existência e a não-existência de estados
de coisas.
4.11. A totalidade das proposições verdadeiras é a ciência natural total
(ou totalidade das ciências naturais).
4.111. A filosofia não é uma das ciências naturais. A palavra
«filosofia» deve significar algo que esteja sob ou acima, mas nunca junto,
das ciências naturais.
4.112. O objecto da filosofia é a clarificação lógica do pensamento. A
filosofia não é uma teoria mas uma actividade.
Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações. O
resultado da filosofia não são «proposições filosóficas» mas o
esclarecimento das proposições.
A filosofia deve esclarecer e delimitar com precisão os pensamentos
que de outro modo seriam opacos e confusos, por assim dizer.
Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus.

b) As proposições das restantes ciências (física, química, história, etc.)


caracterizam-se por fornecer informação acerca do que há ou acontece no
Universo. A sua verdade, portanto, dependerá do que acontece, dos factos.
E visto que a única fonte de conhecimento acerca dos factos é a experiência
sensível, a sua verdade dependerá da comprovação empírica do que
enunciam.
2.1.3. A filosofia

Segundo o neopositivismo, a filosofia não é uma ciência ao lado das


outras ciências ou acima delas. Não pode ser considerada uma ciência como
as outras, já que não tem objecto próprio de investigação comparável ao das
restantes ciências: não compete ao filósofo investigar acerca da matéria, já
que esta é da competência do físico; não compete ao filósofo falar acerca da
sociedade, já que essa competência é do sociólogo, etc. Em geral e
concisamente, podemos dizer que não existem problemas filosóficos que
devam ser investigados por métodos filosóficos e, portanto, a filosofia não
pode consistir num conjunto de doutrinas acerca da realidade, nem num
conjunto de proposições explicativas da realidade.
Pois bem, se a filosofia não é um corpo doutrinal, em que consiste a sua
incumbência? No entender dos neopositivistas, a filosofia não é um
sistema, mas uma actividade que tem por objecto a linguagem; a sua
tarefa consiste em procurar, analisar ou esclarecer o significado das
proposições: «Não há verdades estritamente filosóficas, susceptíveis de
proporcionar as soluções dos problemas especificamente filosóficos; pelo
contrário, a filosofia tem por missão encontrar o significado de todos os
problemas e as suas soluções. Deve ser definida como actividade de procura
do significado» (M. Schlick, O Futuro da Filosofia).

2.2. O princípio de verificação

2.2.1. Verificação e significado

No entender dos neopositivistas, a tarefa exclusiva da filosofia consiste


em determinar o significado das proposições. Para o fazer é necessário
contar com um critério geral sobre isso: quando e sob que condições uma
proposição é significativa? Qual é o significado de uma proposição?
(Evidentemente, esta questão não afecta as proposições formais, já que não
oferecem informação acerca da realidade; a questão afecta apenas as
proposições com conteúdo informativo.)
O critério para decidir quando uma proposição tem significado e qual é
este, no caso de o ter, foi expresso pelos neopositivistas através do seu
famoso princípio de verificação ou de verificabilidade, que pode ser
formulado de modo geral da seguinte maneira: só se conhece o significado
de uma proposição quando se conhece como pode ser verificada.
Este critério decisório de quando uma proposição é significativa e
quando não o é, tem como consequência imediata a desqualificação global
de toda a proposição metafísica. Tomemos, por exemplo, a proposição
«Deus existe». Conhecemos o modo como esta proposição poderia ser
verificada empiricamente? Entendida a verificação deste modo, é inegável
que a proposição «Deus existe» não pode ser verificada, pois não é possível
estabelecer nenhuma observação ou experiência que a confirme como tal.
Esta proposição carece portanto de significado, segundo os neopositivistas.
Observe-se que não se trata de que estas proposições ou outras
semelhantes sejam falsas, mas de algo muito mais radical e previdente.
Efectivamente, uma proposição só pode ser falsa se afirma alguma coisa, se
tem significado. As proposições metafísica, no entender dos neopositivistas,
não têm significado, e portanto é descabido perguntar se são verdadeiras ou
falsas. Não, são na realidade, proposições, mas pseudoproposições.

2.2.2. A crítica à metafísica

Entre os textos neopositivistas que levaram a cabo esta crítica


antimetafísica há dois que se destacam: o artigo de R. Carnap, «A
Superação da Metafísica mediante a Análise Lógica da Linguagem» (1932),
e o que foi escrito por A. J. Ayer, «A Eliminação da Metafísica», que
constitui o primeiro capítulo do seu conhecido livro Linguagem, Verdade e
Lógica (1936, 1946). Em ambos os textos, a atitude neopositivista aparece
vinculada à tradição empirista, em particular a Hume, e também à crítica
kantiana da metafísica.
No capítulo décimo ocupámo-nos do empirismo inglês dos séculos XVII
e XVIII e expusemos a crítica de Hume sobre as noções de substância e de
causa, que são fundamentais na metafísica tradicional. Entre a posição de
Hume e a destes empiristas do século XX existe no entanto uma diferença
de matiz. Na sua crítica sobre as noções de causa e substância, Hume partia
de uma análise do conhecimento, distinguindo nele as impressões das
ideias: como vimos, uma ideia é verdadeira quando pode ser referida à
impressão ou impressões correspondentes, o que se revela impossível no
caso das ideias de substância e causa, às quais não corresponde qualquer
impressão.
Por seu lado, os críticos contemporâneos da metafísica não colocam a
tónica na análise do conhecimento mas na análise da linguagem; a sua
crítica não se dirige directamente às ideias de Deus ou de substância, mas às
proposições em que aparecem as palavras «Deus», «substância» e outras
que habitualmente fazem parte do vocabulário tradicional da metafísica.

O FISICALISMO
Os principais problemas relativos à linguagem de uma determinada
área da ciência são as questões relacionadas com o carácter dos termos
nela contidos, com o carácter das orações e, sobretudo, com as regras de
transformação ou tradução que ligam essa linguagem às outras linguagens
especiais, ou seja, aos outros sistemas parciais de todo o conjunto da
linguagem da ciência. O mais importante destas linguagens é o físico ou
aquilo através do qual falamos sobre as coisas físicas na física ou na
linguagem comum. Nas nossas discussões do Círculo de Viena chegámos
à conclusão de que essa linguagem física é a linguagem básica de toda a
ciência, a linguagem universal que engloba os conteúdos de todas as
outras linguagens. Por outras palavras, qualquer oração de qualquer ramo
da linguagem científica é equivalente a qualquer oração da linguagem
física, pelo que pode ser traduzida na linguagem física sem que o seu
conteúdo se altere. O doutor Neurath, que deu um grande contributo às
considerações que levam a esta tese, propôs chamar-lhe a tese do
fisicalismo.
R. Carnap, Filosofia e Sintaxe Lógica.

Todavia, e apesar desta diferença de matiz, o fundamento último da


crítica à metafísica é o mesmo em Hume e nos neopositivistas: o princípio
tipicamente empirista segundo o qual não é possível passar para além da
nossa experiência sensível; segundo Hume, para além da experiência
sensível não há conhecimento autêntico; segundo os neopositivistas, para
além da experiência sensível não há linguagem significativa, não há
palavras às quais se possa conferir um significado. O metafísico, ao crer
que a sua linguagem possui significado, é vítima de confusões de carácter
linguístico.
Mas se a linguagem usada nos textos dos metafísicos não é significativa,
se não expressa factos, então como devemos caracterizá-la? Carnap é
acutilante a este respeito: as pseudoproposições da metafísica não
expressam factos mas emoções. Carnap considera que a metafísica é a
«expressão de uma atitude emotiva perante a vida». O metafísico não é
realmente um teórico mas um poeta que exprime a sua atitude emocional
perante o Universo, a vida, etc. E o próprio poeta também não pretende
descrever factos nem teorizar sobre o mundo, mas apenas exprimir emoções
e vivências. Naturalmente que o poeta o fez melhor, com mais beleza e
maior êxito do que os filósofos, empenhados em construir discursos de tipo
metafísico.
Ayer é mais peremptório em relação à natureza da linguagem metafísica,
já que considera que a equiparação carnapiana da metafísica com a arte e a
poesia é muito benévola. Na sua opinião, entre o metafísico e o poeta
existem grandes diferenças. Assim, as expressões produzidas pelos poetas
costumam ter um significado literal na maioria dos casos, mesmo quando
tais expressões poéticas, entendidas de modo literal, possam ser falsas; por
seu lado, as expressões do metafísico carecem sempre de significação
literal. Além disso, nos casos em que as expressões do poeta carecem de
significado, sendo portanto absurdas, o poeta tem consciência disso; já o
metafísico, pelo contrário, crê que as suas expressões têm pleno sentido,
não tendo consciência de que o seu discurso não diz absolutamente nada.
A invectiva dos neopositivistas contra a metafísica chegou a este grau de
radicalismo e virulência.

AS CONFUSÕES LINGUÍSTICAS, FONTE PRIMEIRA DA


METAFÍSICA
O emprego do termo «substância», ao qual já nos referimos,
proporciona-nos um bom exemplo do modo como se escreve a maior
parte da metafísica. Na nossa linguagem, não podemos referir-nos às
propriedades sensíveis de uma coisa sem introduzir uma palavra ou frase
que parece representar a própria coisa como oposta a algo que pode ser
dito acerca dela. Como resultado, quem está influenciado pela superstição
primitiva de que a cada nome deve corresponder uma entidade real, supõe
que é necessário fazer uma distinção lógica entre a própria coisa e alguma
ou todas as suas propriedades sensíveis. E assim empregam o termo
«substância» para se referir à própria coisa. O hábito de empregarmos
uma única palavra para nos referirmos a uma coisa, e fazermos dessa
palavra o tema gramatical das frases pelas quais nos referimos às
aparências sensíveis da coisa, não significa de modo algum que a própria
coisa seja uma «entidade simples» ou que não possa ser definida em
termos da totalidade das suas aparências. É certo que, ao falar das «suas»
aparências, parece que distinguimos a coisa das aparências, mas isto não
é mais do que um acidente dos hábitos linguísticos. A análise lógica
demonstra que o que torna essas «aparências» nas «aparências» da
própria coisa não é a sua relação com uma entidade distinta de si mesma
mas as suas relações recíprocas. O metafísico não chega a ver isto,
porque está enganado por um indício gramatical superficial da sua
linguagem.
A J. Ayer, «A Eliminação da Metafísica», in Linguagem, Verdade e Lógica.
UMA VERSÃO DO PRINCÍPIO DE VERIFICAÇÃO
Nesta versão, o princípio baseia-se em que uma declaração é
verificável, e por conseguinte significativa, se dela pudermos deduzir
alguma declaração-observação em conjunto com outras premissas, sem
ser deduzida dessas outras premissas apenas.
Este critério «parece-me ser bastante liberal», mas, na realidade, é
demasiado liberal, pois admite significações em qualquer declaração. E
isto porque, dada uma declaração «S» e uma qualquer declaração-
observação «O», «O» resulta de «S» e de «se S, logo O», sem derivar daí
que «se S, logo O» apenas. Assim, as declarações «o absoluto é
preguiçoso» e «se o absoluto é preguiçoso, isto é branco» implicam
conjuntamente a declaração-observação «isto é branco», e como «isto é
branco» não resulta de nenhuma dessas premissas, ambas satisfazem o
meu critério de significação (...).
Note-se que a mesma objecção se aplica à proposta de considerarmos
a possibilidade de falsificação como critério nosso. E isto porque, dada
uma declararão «S» e uma declaração-observação «O», «O» será
compatível com a conjunção de «S» e «se S, logo O». Na realidade,
poderíamos evitar a dificuldade em ambos os casos se excluíssemos a
estipulação acerca das outras premissas. Mas como isto implicaria a
exclusão de todas as proposições hipotéticas empíricas, evitaríamos que
os nossos critérios fossem demasiado liberais se os tornássemos mais
rigorosos.
A. J. Ayer, Linguagem, Verdade e Lógica.

2.2.3. Teoria neopositivista do significado

Apesar de a formulação geral do princípio de verificação que


propusemos («só se conhece o significado de uma proposição quando se
conhece como pode ser verificada») parecer clara e coerente, a
determinação concreta deste princípio foi sumamente difícil e deu lugar a
múltiplas formulações e reformulações, nenhuma delas satisfatória e
unanimemente aceite.
Para que o princípio possa ser utilizado, é necessário com efeito
estabelecer claramente o que se entende por verificação e o que pode ser
verificado.

a) O verificado por mim: solipsismo


Na primeira interpretação dos neopositivistas, a verificação ficava
reduzida ao verificado por mim: «eu vejo agora um quadrado vermelho
com um ponto branco nele» é o tipo genérico de afirmação a que se reduz
toda a afirmação possível. «Eu vejo um ponto reluzente sobre uma linha
negra num instrumento metálico» é tudo quanto a astronomia pretende dizer
e «não pode dizer mais, simplesmente porque seria impossível»
(Reichenbach). Estabelecia-se assim uma posição solipsista presente
igualmente no Tractatus de Wittgenstein.

b) O verificável por mim: fisicalismo


Uma interpretação tão restrita do princípio de verificação teve de ser
rapidamente corrigida, pois levava a considerar que careciam de significado
todas as proposições que afirmam algo não verificado por mim (por
exemplo, a proposição «César passou o Rubicão» careceria de significado,
já que não foi verificada por mim. nem poderá sê-lo). Deste modo, num
processo de ampliação sucessiva do princípio de verificação, optou-se por
considerar significativas todas as proposições que exprimiam não apenas o
verificado por mim, mas o que é em princípio verificável por mim, em
conexão com uma teoria fiscalista do significado.
O fisicalismo estabelece que todas as proposições empíricas podem ser
transformadas (traduzidas) sem perda de significado em proposições que
exprimam atributos ou propriedades físicas observáveis empiricamente.
Assim, uma proposição como «fulano está triste» – bem como a afirmação
de fulano: «estou triste» – deverá traduzir-se noutra proposição que exprima
o seu comportamento físico observável (gestos corporais, comportamento
do seu organismo, etc.) de modo a que o significado da proposição «fulano
está triste» é equivalente a «o organismo de fulano revela tais e tais
manifestações físicas observáveis». Trata-se de uma manobra reducionista
que mais tarde teve de ser matizada.

c) O princípio da falsificabilidade
Para além das dificuldades que o reducionismo fisicalista pretende
resolver, o princípio de verificação deparou com o problema colocado pela
exigência de que toda a proposição significativa deve permitir uma
verificação concludente e total. Com efeito, depressa se observou que
muitas proposições das ciências não são susceptíveis deste tipo de
verificação, e no entanto ninguém se dispôs a declará-las insignificantes.
Tal é o caso das proposições gerais afirmativas. Nenhuma proposição
geral (universal) afirmativa pode ser verificada em sentido estrito, pois para
isso seria necessário observar todos e cada um dos casos ou objectos a que
se refere. Assim, a proposição «todos os limões são amarelos» não teria
sentido, pois é impossível comprovar todos e cada um dos exemplares a que
o sujeito da mesma se refere. Curiosamente, a particular negativa («há pelo
menos um limão que não é amarelo») seria significativa, dado que é
susceptível de verificação. (Com efeito, bastaria encontrar um limão que
não fosse amarelo para que tal proposição fosse verificada).
Esta interpretação do princípio de verificação implica pois que a maioria
das proposições das ciências carecem de sentido, conclusão que os
neopositivistas não estavam dispostos a aceitar.
K. Popper pensou solucionar o problema transformando o princípio da
verificabilidade em princípio de falsificabilidade: uma proposição possui
significado (científico, pertencente à linguagem científica) quando o que
afirma pode ser falseado empiricamente. De acordo com esta inversão do
princípio, as proposições universais afirmativas têm significado, desde que,
embora não verificáveis, sejam falseáveis: continuando com o exemplo
anterior, a proposição «todos os limões são amarelos» tem significado, pois
é falseável. (Efectivamente, para falseá-la bastaria encontrar um limão que
não fosse amarelo).
A proposta de Popper resolve certamente o problema da
significatividade das proposições gerais afirmativas, diferentemente do
princípio de verificação. No entanto, a sua aceitação implica a ausência de
significado das proposições particulares negativas, que são verificáveis mas
não falseáveis: a proposição «há pelo menos um limão que não é amarelo»
não é falseável, pois a acumulação de observações de limões amarelos não
equivale a falsear aquela. A correcção introduzida por Popper deixa pois as
coisas como estavam.

d) Verificação em sentido débil


As considerações que fizemos (juntamente com outras de carácter mais
técnico que conduziriam a conclusões semelhantes) obrigaram a abandonar
a verificação em sentido forte. «O princípio de que uma proposição só tem
significado actual se exprime algo verificável concludentemente auto-
invalida-se como critério de significação, pois leva à conclusão de que é
absolutamente impossível fazer qualquer afirmação actual.» (A. Ayer,
Linguagem, Verdade e Lógica).
Contra a verificabilidade sem sentido forte (assim se dominou a
exigência de verificabilidade concludente a que nos referimos no parágrafo
anterior), alguns neopositivistas propuseram a verificalidade em sentido
débil. Na obra citada escreveu Ayer: «Diz-se que uma proposição é
verificável em sentido forte se e só se a sua verdade pode ser estabelecida
pela experiência. Ao contrário, é verificável em sentido débil se é possível
que a experiência lhe conceda probabilidade» e «afirmamos que a pergunta
que devemos fazer acerca de qualquer suposta afirmação de facto não deve
ser: «poderá algum tipo de observação converter a sua verdade em
logicamente certa?» mas apenas: «algum tipo de observação será relevante
para a determinação da sua verdade ou falsidade?»; e só se a resposta a esta
segunda pergunta for negativa é que concluiremos que a proposição em
questão carece de sentido.»
O critério de verificação em sentido débil é demasiado impreciso, além
de que a sua aplicação − como as discussões acerca do mesmo tornaram
evidente − permite considerar significativas muitíssimas proposições que os
neopositivistas, dada a sua actividade radicalmente empirista, teriam
preferido considerar carentes de significado.

e) Expressabilidade numa linguagem empirista ideal


Outra tentativa (a última) de formulação do princípio de verificabilidade
pretendeu condicionar a significatividade de uma proposição à
possibilidade de a exprimir numa linguagem ideal empirista. Segundo
esta formulação, uma proposição é significativa se e só se é traduzível numa
linguagem empirista ideal.
Esta linguagem empirista ideal deve ser integrada por um vocabulário
composto exclusivamente de termos relativos a objectos observáveis, isto é,
sensíveis. Torna-se assim claro o pressuposto empirista em que o
neopositivismo se apoia. Com efeito, para construir essa linguagem ideal é
necessário utilizar algum critério que possibilite decidir que termos devem
ser aceites e que termos devem ser afastados do seu vocabulário.
Sem entrar noutro tipo de considerações – como a questão tantas vezes
levantada acerca da natureza da proposição que exprime o princípio de
verificação – é verificável tal proposição?, que estatuto se deve atribuir-lhe?
– pode-se dizer que o fracasso em conseguir uma formulação aceitável do
princípio de verificação provém de uma apresentação defeituosa do
problema do significado. Com efeito, o significado de uma proposição não
depende da sua verificabilidade ou verificação; pelo contrário, a sua
possibilidade de verificação pressupõe que a proposição possui significado
e que este nos é conhecido.
3. A FILOSOFIA ANALÍTICA

Se o neopositivismo foi praticamente abandonado (pelo menos na sua


forma radical), o mesmo não acontece com a filosofia analítica. Esta
terceira corrente do movimento analítico continua em vigor em importantes
áreas culturais do mundo ocidental. A exposição da filosofia analítica no
seu conjunto torna-se notavelmente difícil pelas seguintes circunstâncias: a)
não apresenta a uniformidade de bloco que o neopositivismo apresentava;
b) uma parte notável da sua produção filosófica é constituída por artigos
dispersos em múltiplas revistas especializadas; c) trata-se de uma corrente
filosófica em constante processo de auto-revisão. Estas circunstâncias
aconselham que, nesta exposição, nos limitemos aos seus pressupostos
gerais, embora à custa da renúncia a desenvolvimentos particulares de
penúltima ou última hora.

3.1. Investigações Filosóficas de Wittgenstein

3.1.1. A nova concepção da linguagem

As Investigações Filosóficas supõem – como salientámos na introdução


a este capítulo – uma ruptura definitiva com o projecto e doutrinas contidas
no Tractatus. Todavia, as duas obras têm algo – e algo de muito importante
– em comum: o protagonismo atribuído à linguagem como objecto de
«actividade filosófica». Não obstante, e como consequência da mudança
operada na concepção da linguagem, a natureza da actividade filosófica é
concebida de forma completamente diferente.
A diferença radical entre as concepções da linguagem do primeiro e
segundo Wittgenstein pode explicar-se como resultado do abandono das
três teses que em seguida se expõem, todas elas fundamentais na teoria da
linguagem contida no Tractatus.

a) Os factos têm forma lógica


A afirmação de que os factos possuem forma lógica, de que estão
configurados logicamente (isto é, tal configuração existe
independentemente da nossa manipulação linguística dos mesmos),
constitui o pilar fundamental da teoria do isomorfismo, da «linguagem-
retrato» da realidade. Desconhecemos a razão particular (se acaso houve
alguma) que determinou o abandono desta tese por parte de Wittgenstein. O
certo é que o seu abandono implicava a retirada geral das posições
defendidas no Tractatus.

b) Os factos elementares (atómicos) constam de elementos simples.


Esta tese, essencial no atomismo lógico, era uma exigência lógica do
próprio conceito de facto elementar ou atómico e do seu correlato
linguístico, a proposição elementar ou atómica, cujos componentes
designam elementos simples e não analisáveis ulteriormente. Nas
Investigações Filosóficas, Wittgenstein afirma que o conceito de elemento
simples não é um conceito absoluto, mas relativo a determinados contextos.
É o contexto (o «jogo linguístico») que determina o que se deve considerar
simples ou complexo: «À interrogação filosófica: “será composta a imagem
visual desta árvore e quais são as partes que a compõem?”, a resposta
correcta é: “depende do que você entenda por composto” (e isto não é
certamente responder mas afastar a pergunta)», (Wittgenstein, Investigações
Filosóficas, secção 47.)

c) O significado de um termo é o seu referente extralinguístico, isto


é, aquilo a que o termo se refere.
A interpretação referencial ou denotativa do significado era também
doutrina básica do atomismo lógico.

Ludwing Wittgenstein
Austríaco, nascido em 1889, é simultaneamente o filósofo de maior influência e de mais
estranha personalidade do nosso século. Dedicado inicialmente à engenharia, aos vinte e três
anos optou pela filosofia e pela lógica, sob a influência e direcção de B. Russell.
O seu temperamento era irritável, nervoso e depressivo (pensara muitas vezes na
possibilidade de se suicidar). Difícil na convivência social e com escassa estima pela bondade e
qualidades do ser humano, sentiu muitas vezes a necessidade de isolar-se das pessoas (por duas
vezes partiu para a Noruega para viver completamente isolado: em 1913, até ao começo da
primeira Grande Guerra, e em 1936; em 1947 retirou-se definitivamente para viver em completa
solidão, renunciando à sua cátedra em Cambridge).
Dotado de sensibilidade artística e musical, foi sempre austero e generoso (em 1914, tendo
recebido uma herança, deu elevada soma de dinheiro para auxiliar poetas e artistas pobres: deste
dinheiro beneficiou o poeta Rilke, entre outros). Participou nas duas guerras mundiais. Na
primeira como soldado voluntário, sendo feito prisioneiro pelos Italianos, e na segunda como
enfermeiro.
O seu primeiro contacto com Russell e a sua dedicação à lógica e às matemáticas (1912)
produziram em Wittgenstein grande entusiasmo. Desde então surgiram e desenvolveram-se as
suas reflexões que cristalizariam no Tractatus lógico-philosophicus. Esta obra foi redigida em
campanha, durante a Primeira Guerra Mundial, e acabada em 1918, pouco antes de cair
prisioneiro dos Italianos.
Concluído o conflito, Wittgenstein decidiu abandonar a filosofia e fez-se mestre-escola,
permanecendo nesta ocupação desde 1920 a 1926. Três anos mais tarde, no entanto, regressou a
Cambridge, onde permaneceu como professor até 1947, com as interrupções mencionadas do
seu isolamento na Noruega (1936) e da sua colaboração como enfermeiro na Segunda Guerra
(1941-44). A partir desta data sentiu-se cada vez mais desinteressado pelo ensino e pela vida
académica, renunciando à sua cátedra em 1947. Aos últimos anos da sua vida correspondem as
Investigações Filosóficas. Morreu de cancro em 1951 e as suas últimas palavras foram: «Dizei-
lhes que a minha vida foi maravilhosa.»

Que o significado de um nome não é o objecto nomeado parece agora


evidente a Wittgenstein e a isso se refere em diversas passagens das
Investigações Filosóficas. Talvez o argumento mais decisivo contra esta
teoria seja que, se o significado fosse efectivamente a realidade nomeada, as
propriedades desta realidade deveriam sê-lo do significado do termo: ora,
suponhamos que Pedro passa por dificuldades económicas; daí não
aceitaremos facilmente que o significado do nome «Pedro» passa pela
citada penúria. Wittgenstein formula o argumento da seguinte maneira: «É
importante observar que a palavra “significado” se utiliza ilicitamente
quando se usa para significar a coisa que “corresponde” à palavra. Isto é
confundir o significado de um nome com o “portador” do mesmo. Quando
o senhor N. W. morre, dizemos que morreu o portador de tal nome, não que
o significado deste morreu. E seria absurdo fazer esta última afirmação,
pois se o nome deixasse de ter significado, não faria sentido dizer: “o
senhor N. W. morreu”.») (Investigações Filosóficas, sec. 40).
Se é absurdo procurar o significado de um nome no seu portador ou
referente extralinguístico, onde procurá-lo e localizá-lo? A questão é
especialmente instrutiva no caso daqueles termos que carecem de referente
preciso. Na secção l das Investigações, Wittgenstein utiliza o exemplo de
alguém que vai a uma frutaria com um bilhete que diz: «cinco maçãs
vermelhas». Embora seja inexacto, deixemos passar que o significado de
«vermelho» e «maçã» é dado pela sua referência. Mas onde está a
referência de «cinco»? Perguntar sobre o significado de «cinco» (no sentido
de perguntar pelo seu referente) carece de sentido. Segundo Wittgenstein, é
melhor observar o que acontece na frutaria: o vendedor começa certamente
por ir às caixas em que coloca «maçãs», escolherá a que contém as
vermelhas; por último, começará a recolher sucessivamente uma maçã,
depois outra, até chegar a cinco. Wittgenstein conclui: «mas como sabe (o
vendedor) onde e de que maneira há-de procurar a palavra “vermelho” e o
que deverá fazer com a palavra “cinco” Bom, suponho que ele actue da
forma descrita. Mas qual é o significado da palavra “cinco”? Não era isto o
que se perguntava neste caso, mas apenas como se usa a palavra “cinco”».

3.1.2. A pluralidade de usos linguísticos

Uma vez introduzida a ideia de uso como critério (deveria dizer-se,


como substituto) do significado, está aberta a porta à pluralidade de usos
linguísticos, pois o uso de uma expressão é apenas o jogo linguístico em
que se insere e funciona. Por sua vez, o jogo linguístico ou os jogos
linguísticos, pois Wittgenstein insiste na pluralidade, não são mais do que
as palavras e acções com as quais aquelas andam unidas.
Esta nova concepção linguística supõe a negação total da teoria do
primeiro Wittgenstein, segundo a qual a essência da linguagem reside na
sua função descritiva. No Tractatus, no atomismo lógico e igualmente no
neopositivismo lógico, atendera-se exclusivamente à linguagem
enunciativa, descritiva, tomando-a como único paradigma da linguagem (da
ciência, em suma).
É certo que a linguagem se usa para descrever, mas usa-se também para
muitas outras actividades.
«Quantos tipos de frases há? Diremos que as há declarativas,
interrogativas, imperativas? Há inumeráveis tipos: inumeráveis tipos de
usos do que denominamos “símbolos”, “palavras”, “frases”. E esta
multiplicidade não é algo de fixo, dado de uma vez por todas...»
(Wittgenstein, Investigações Filosóficas).
Como consequência, à concepção da linguagem-retrato da realidade
opõe-se agora a teoria da linguagem como um conjunto de múltiplos e
variados instrumentos ou ferramentas utilizáveis nas mais variadas formas:
«pense-se» – nota Wittgenstein a este respeito – «nos instrumentos contidos
numa caixa de ferramentas: há um martelo, alicates, uma serra, chaves de
fendas, uma régua, um frasco com cola, pregos, parafusos. As funções das
palavras são tão díspares como as funções destes objectos. (E em ambos os
casos há semelhanças.) Por certo, o que nos confunde é a aparente
uniformidade das palavras quando as ouvimos ou as encontramos escritas e
impressas. Em tal caso a sua aplicação não se nos apresenta com tanta
claridade. Especialmente quando estamos fazendo filosofia!» (o.c., secção
23.)

3.1.3. A função elucidativa da filosofia

Isto conduz-nos à questão decisiva do papel da filosofia relativamente à


linguagem assim descrita, É óbvio que a tarefa da filosofia já não pode ser a
da descoberta da forma lógica correcta das proposições. Esta tarefa
pressupõe que existe uma forma lógica correcta para a qual devem ser
traduzidas as proposições deficientes (linguagem ideal do atomismo lógico
e do neopositivismo lógico), o que por sua vez só tem sentido se se admitir
que os factos possuem certa forma lógica correlativa à linguagem ideal.

LINGUAGEM IDEAL E LINGUAGEM COMUM


É um erro afirmar que em filosofia consideramos uma linguagem ideal
em contraste com a nossa linguagem comum. Isto poderia levar-nos a
crer que podíamos melhorar a nossa linguagem comum. Mas a linguagem
comum é perfeita. Sempre que produzimos «linguagens ideais» não é
para substituir a nossa linguagem comum por elas, mas apenas para
eliminar alguns problemas que decorrem do facto de alguém pensar que
entrou na posse do uso exacto de uma palavra vulgar. É também por esse
motivo que o nosso método não consiste apenas na enumeração de usos
efectivos de palavras, mas antes na invenção deliberada de novos usos,
alguns dos quais por causa da sua aparência absurda.
Wittgenstein, O Livro Azul, Lisboa, Edições 70, 2008, p. 61.

Nada disto se encontra, como já acentuámos, no segundo Wittgenstein.


A linguagem, os diferentes jogos linguísticos, estão bem como estão e
funcionam bem como funcionam. «Por um lado» salienta Wittgenstein a
propósito, «é claro que toda a frase da nossa linguagem “está em regra tal
como está”. O que quer dizer que não andamos empenhados na procura de
um ideal, como se as nossas vagas expressões não tivessem ainda atingido
um sentido totalmente irrepreensível e nos esperasse uma linguagem
perfeita a construir. Por outro lado, parece claro que onde há sentido deve
estar tudo em regra. Portanto, inclusive a frase mais vaga deve estar
perfeitamente em regra.» (o.c., secção 98.)
Não se trata, pois de corrigir as frases, mas de as compreender
simplesmente, pois que por mais que estejam em regra (e não deixa de ser
surpreendente) certas expressões linguísticas podem ser mal interpretadas.
A filosofia está essencialmente ligada a tais mal-entendidos da seguinte
forma:

a) Em primeiro lugar, os problemas filosóficos surgem do mau-


entendimento de certos usos linguísticos, quer por confundir um jogo
linguístico com outro (por exemplo, acreditar que a linguagem religiosa é
do mesmo tipo que a linguagem da ciência, ou então que as afirmações da
moral – «a conduta X é imoral» – são do mesmo tipo que as descrições de
objectos físicos – «o líquido X é incolor» – etc.), quer por considerar algum
jogo linguístico particular como o único legítimo existente (assim, o próprio
Wittgenstein teria caído neste erro no Tractatus, ao considerar só a
linguagem descritiva ou, se preferirmos, o uso descritivo da linguagem).

b) A tarefa da filosofia consiste em resolver, ou melhor, em dissolver


os problemas filosóficos através desta compreensão dos usos
linguísticos. Esta tarefa é puramente descritiva. «A filosofia» – escreve
Wittgenstein – «não pode de modo algum interferir com o uso efectivo da
linguagem. Em última análise, a única coisa que faz é descrevê-la.» E na
secção 116 das Investigações: «Quando os filósofos utilizam palavras tais
como “conhecimento”, “ser”, “objecto”. “eu”, “proposição”, “nome” e
tentam captar a essência da coisa em questão, devemos perguntar-nos: será
que esta palavra é bem usada desta forma no jogo linguístico que constitui o
seu lugar de origem? O que nós fazemos é devolver as palavras do seu uso
metafísico ao seu uso diário.»
Entendida deste modo, a actividade filosófica faz com que os problemas
filosóficos desapareçam, mostrando a causa da sua aparição, que não é mais
do que uma confusão linguística. Sobre este assunto, a formulação mais
incisiva, mais lapidar e mais conhecida de quantas aparecem nas
Investigações Filosóficas é a seguinte: «Qual é o teu objectivo em filosofia?
Mostrar à mosca o buraco para sair da garrafa». Tal como à mosca metida
numa garrafa, convida-se os problemas filosóficos a sair, mostrando-lhes a
abertura por onde entraram: o mal-entendido e a confusão dos usos
linguísticos.

c) Esta tarefa terapêutica (Wittgenstein compara o tratamento dos


problemas filosóficos com o tratamento de uma enfermidade, embora nem
todos os filósofos analíticos tenham adoptado esta perspectiva) exige a
comparação de umas expressões com outras, de uns jogos linguísticos com
outros, a fim de esclarecer as suas semelhanças e dissemelhanças. «Os
nossos jogos linguísticos, simples e claros» escreve Wittgenstein, «não são
estudos preparatórios com vista a uma regularização futura da linguagem,
como se se tratasse das primeiras tentativas aproximativas, quando ainda se
ignora a fricção e resistência do ar. Os jogos linguísticos foram propostos,
isso sim, como termos de comparação que pretendem lançar luz sobre os
factos da nossa linguagem, não só por via de semelhanças, mas também de
dissemelhanças,» (o.c., secção 130).
Na sua função clarificadora, a filosofia deverá ter em conta a
comparação de uns usos linguísticos com outros. Utilizamos anteriormente
duas expressões aparentemente iguais: «a conduta é imoral» e «a substância
é incolor». A análise atenta permitirá talvez descobrir que a palavra
«incolor» se usa para descrever, para indicar uma propriedade de um
objecto, ao passo que o termo «imoral» não se usa para descrever uma
propriedade da acção a que se aplica: este procedimento, aparentemente tão
asséptico e objectivo, talvez também permita resolver um ou outro
problema de filosofia moral.

3.2. Ryle e o conceito do mental

A tarefa de comparar uns usos linguísticos com outros com o fim de os


esclarecer e resolver certos problemas filosóficos, foi posta em prática por
diversos filósofos analíticos em múltiplos campos do pensamento,
nomeadamente no campo da linguagem moral e no da linguagem religiosa.
Neste parágrafo não apresentaremos nenhum exemplo de elucidação
conceptual (apesar de haver muitos e muito importantes) de entre os
apresentados pelos discípulos de Wittgenstein. Em seu lugar
apresentaremos como amostra uma notável análise de G. Ryle sobre a
linguagem psicológica e, mais concretamente, sobre a distinção tradicional,
cartesiana, entre o mental e o físico.
As razões para propor esta análise de Ryle são fundamentalmente duas:
em primeiro lugar, o impacte e originalidade da sua obra O Conceito do
Mental; em segundo lugar, porque apesar de esta haver sido publicada antes
das Investigações Filosóficas de L. Wittgenstein, a sua orientação é
extraordinariamente afim ao segundo Wittgenstein, tanto na sua concepção
da actividade filosófica, como na sua convicção de que a origem dos
problemas filosóficos é algum mal-entendido relativo ao funcionamento
lógico da linguagem.
Ryle não fala de usos ou jogos linguísticos mas de erros ou confusões
categoriais. Em geral, um erro ou confusão categorial consiste em incluir
um termo ou conceito numa categoria distinta daquela a que logicamente
pertence.

O FÍSICO E O MENTAL
Quando dois termos pertencem à mesma categoria, é correcto
construir proposições conjuntivas que os incluam a ambos.
Deste modo, uma pessoa pode dizer que comprou uma luva da mão
esquerda e outra da mão direita, mas não que comprou uma luva da mão
esquerda, uma luva da mão direita e um par de luvas (...). Com efeito, é
isso o que o dogma do «espírito na máquina» precisamente faz: sustenta
que existem corpos e mentes: que ocorrem processos físicos e processos
psíquicos; que há causas mecânicas dos movimentos corpóreos e causas
mentais dos movimentos corpóreos. Ora, estas e outras conjunções
análogas são absurdas. Mas note-se que a minha argumentação não
pretende mostrar que estas proposições – cuja conjunção é ilegítima – são
absurdas em si mesmas, cada uma por si (...). O que afirmo é que a frase
«acontecem processos mentais» não significa o mesmo que «acontecem
processos físicos» e, por conseguinte, a conjunção ou disjunção de ambas
carece de sentido.
G. Ryle, O Conceito de Mental.

A teoria dualista – o cartesianismo oficial ou doutrina do «espírito na


máquina», como frequentemente Ryle a denomina – tem a sua origem em
certos erros categoriais, a cuja análise Ryle dedica o seu livro. De entre
estes equívocos há um que é capital e que está subjacente à concepção do
mental e do físico como duas realidades distintas, ilustrado por Ryle com
diversos exemplos, entre eles o cometido por alguém que, ao visitar a
universidade de Oxford, pergunta depois de haver visitado todos os
edifícios e dependências: onde está a universidade? Tal indivíduo comete o
erro categorial de considerar que a universidade pertence à mesma categoria
que as dependências visitadas, quando, na realidade, ela é apenas a forma
como está organizado tudo aquilo que acaba de visitar. Ou como o menino
que assiste a um desfile militar e depois de ver passar soldados e máquinas
de guerra, pergunta; quando passa o regimento?, cometendo o erro
categorial de considerar que o regimento pertence à mesma categoria dos
soldados e do material.
Segundo Ryle, o dualismo cartesiano comete um erro semelhante ao
considerar que as palavras da linguagem «física» e as da linguagem
«psíquica» pertencem à mesma categoria. Uma vez cometido este erro, a
duplicação de entidades aparece como logicamente aceitável, pois quando
dois termos pertencem à mesma categoria é correcto construir proposições
em que ambos apareçam unidos por uma conjunção; «assim», escreve Ryle,
«um comprador pode dizer que comprou uma luva da mão direita e uma
luva da mão esquerda, mas não que comprou uma luva da mão direita; uma
luva da mão esquerda e um par de luvas» (O Conceito do Mental, c. 1).
O esclarecimento de que os termos relativos ao psíquico e ao físico
pertencem a distintas categorias resolve, no entender de Ryle, o problema
filosófico da relação entre o físico e o mental. «O contraste entre mente e
matéria dissipa-se; mas não se dissipa por algum dos dois procedimentos
absorver a matéria na mente ou a mente na matéria, mas de uma forma
totalmente distinta: tornando evidente que o aparente contraste entre ambos
é tão ilegítimo como seria o contraste entre «fulana voltou a casa num mar
de lágrimas» e «fulana voltou a casa numa carroça». (Ibid.) O idealismo e o
realismo respondem, pois, a uma pseudoquestão. Ambos pressupõem a
legitimidade da disjunção «ou alma ou corpo». Ora, esta disjunção é
ilegítima: a sua origem deve procurar-se no erro categorial que consiste em
crer que os seus dois membros pertencem à mesma categoria.

3.3. Os pressupostos da filosofia analítica

Ainda que este tipo de análise não seja o único proposto por Ryle (e
alguns pensarão talvez que nem sequer é o mais valioso), a sua orientação
geral permite-nos pôr o problema da pretensa neutralidade filosófica da
análise. (Anteriormente referimo-nos de passagem ao carácter
aparentemente asséptico e objectivo da filosofia analítica.) Perante a análise
de Ryle, importa efectivamente fazer a seguinte pergunta: Descartes caiu
num erro categorial e como consequência deste erro, começou a falar de
uma substância espiritual? Ou, ao contrário, parte-se de que não existe tal
substância espiritual e, como consequência disso, se afirma que a
linguagem de Descartes é categorialmente aberrante? Com efeito, por um
lado parece ingénuo supor que a filosofia dualista (e igualmente a
monista) provenha de um mero erro linguístico; por outro, só se pode
afirmar que a linguagem dualista é categorialmente errada se se parte
do pressuposto de que a realidade não corresponde às categorias nela
utilizadas.
A análise de Ryle não é certamente neutral. De facto, pode-se dizer que
a análise até agora praticada não foi neutral em nenhum caso, mas sempre
realizada com base em pressupostos filosóficos fundamentalmente
empiristas. Isto leva-nos a colocar duas dúvidas relativamente à filosofia
analítica; em primeiro lugar, a justificação dos pressupostos de que se parte;
em segundo, a questão mais grave e de fundo, saber se é possível uma
análise que seja simultaneamente carente de pressupostos e capaz de dizer
algo importante acerca dos problemas filosóficos.
20. NATUREZA E CIÊNCIA NO
PENSAMENTO ACTUAL

INTRODUÇÃO

Torna-se muito difícil delimitar, com um critério rigorosamente


cronológico e em certa medida também filosófico, quando começa a época
actual e que filosofias se devem considerar actuais; entre outras razões
porque a «actualidade» no pensamento pode ter uma raiz e vigência
bastante anteriores à eventual data que assinala o seu começo. Assim,
abordámos filosofias que com toda a razão devem considerar-se, em maior
ou menor grau, segundo os casos, como configuradoras do pensamento
actual: por exemplo, o marxismo, a filosofia analítica e o personalismo.
Por isso, neste capítulo e no próximo apenas mencionaremos estas correntes
filosóficas, ou melhor, o desenvolvimento das ideias matrizes estabelecidas
pelos seus «clássicos».
Em consequência e tendo em conta os limites impostos pelo carácter
deste livro, a abordagem da filosofia actual centrar-se-á naquilo que,
segundo a nossa opinião, configura o pensamento filosófico dos nossos
dias. Esta abordagem é dividida em duas partes; a primeira considera, antes
de mais, o novo conceito de natureza enriquecido pela física moderna.
Para a adequada compreensão deste conceito torna-se necessário relacioná-
lo com o conceito newtoniano da natureza estudado no capítulo onze; em
segundo lugar, este capítulo trata das principais reflexões sobre a natureza
da ciência e do seu método, isto é, da filosofia da ciência.
Assim, o capítulo ficará estruturado da seguinte maneira:
1. A física moderna: novo conceito de natureza.
2. Desenvolvimentos actuais na filosofia da ciência.
1. A FÍSICA MODERNA: NOVO CONCEITO
DE NATUREZA

1.1. Falhas na máquina newtoniana

O sistema do mundo proposto nos Principia de Isaac Newton conseguiu


ser aceite sem restrições, ao longo dos séculos XVIII e XIX, graças a três
factores: a sua divulgação entre o público culto mas não especialista
(através de filósofos como Voltaire), a sua fundamentação teórico-filosófica
(no pensamento de Kant) e a sua confirmação científica, tanto a nível
empírico como matemático.
A validade do sistema seria impressionantemente corroborada em
astronomia (e também noutros sectores). Com efeito, em 1846 Adams e
Leverrier, baseando-se em ligeiras aberrações da órbita de Urano (planeta
descoberto em 1781), calcularam teoricamente a órbita de um novo planeta.
Pois se a teoria da gravitação falhava no caso de Urano, a culpa – pensaram
– não podia encontrar-se na teoria mas num facto ainda oculto. Adams e
Leverrier confiaram os seus cálculos ao astrónomo alemão Johann
Gottfried Galle, que focou o seu telescópio para o ponto de antemão
designado, descobrindo efectivamente um novo planeta: Neptuno. Aqui a
teoria – como já Kant acentuara – caminhava à frente da experiência,
fazendo com que os fenómenos se ativessem a uma lei pré-estabelecida.
No aspecto puramente matemático, homens como Leonhard Euler
(1707-1783) e Pierre Simon de Laplace (1749-1827) levaram a tal grau de
perfeição essa nova e poderosa teoria que Laplace pôde simular o seu
famoso «demónio» substituto laico e mecânico do Deus cristão:
«Um intelecto que, num instante dado, conhecesse todas as forças que
actuam na natureza e a posição de todas as coisas de que se compõe o
mundo – supondo que o referido intelecto fosse suficientemente grande
para submeter todos estes dados a análise – abarcaria na mesma fórmula os
movimentos dos corpos maiores do Universo e os dos átomos mais
diminutos; para ele, nada seria incerto, e o futuro, bem como o passado,
estaria presente perante os seus olhos.» (P. S. Laplace. Introdução à Teoria
Analítica das Probabilidades).
Espaço, tempo, matéria e movimento, conceitos básicos do esquema
cinético-corpuscular (continuidade do âmbito, descontinuidade da matéria)
enlaçavam-se assim num férreo determinismo; o conceito de tempo diluía-
se no sistema fechado e reversível (daí os princípios da conservação da
massa, da energia e da quantidade do movimento).
É certo que, paralelamente, se ia desenvolvendo um movimento de
grande alcance: a revalorização da história, e por conseguinte do tempo
como magnitude acumulativa e irreversível (caso do romantismo). Mas esta
nova perspectiva permaneceria alheia ao afazer científico até à eclosão da
teoria evolucionista de Charles Darwin (A Origem das Espécies, 1859) e
ao nascimento da termodinâmica, graças a cientistas como Rudolf Clausius
(1822-1888) e Ludwig Boltzmann (1844-1906).
Também nesta época o grande físico alemão Ernst Mach (1838-1916)
punha em dúvida o valor absoluto do espaço (substituindo-o pelo sistema
das estrelas fixas) e o carácter atomístico da matéria (substituindo-o por
fluxos de sensações).
No entanto, todos estes novos esforços não se dirigiam tanto a derrubar
o reino absoluto de Newton como a modificá-lo no sentido de lhe conferir
uma maior flexibilidade para abarcar fenómenos tão díspares como os da
vida (biologia evolucionista), o calor (termodinâmica) ou a estrutura da
matéria (química).
Com a teoria atomista, iniciada por John Dalton (1766-1844) e
sistematizada teoricamente com a classificação periódica dos elementos de
Dimitri L. Mendeleiev (1834-1907), todo o edifício da ciência natural
parecia tão acabado e perfeito há cerca de oitenta anos que os grandes
professores universitários da época orientavam os futuros investigadores
para campos afastados da mecânica: sobretudo para o electromagnetismo. E
faziam-no com razão, pois esse sector, nunca inteiramente dominado pelo
esquema mecanicista, acabaria por desbaratar este último quase por
completo.

1.2. O problema da luz

1.2.1. Nascimento do electromagnetismo

Os antigos pensavam que a luz se deslocava de modo instantâneo.


Naturalmente, os nossos sentidos acreditavam que se passasse assim. No
entanto, o dinamarquês Olaf Römer conseguiu em 1672 medir pela
primeira vez a velocidade da luz, atendendo à diferença de posição orbital
dos dois satélites de Júpiter quando são eclipsados por este planeta. Römer
obteve um valor de 225 000 km/s. Hoje sabemos que a luz se desloca no
vazio a 229.792,7 km/s, diminuindo a sua velocidade conforme a densidade
do meio que atravessa.
Newton também realizava desde 1666 experiências para elucidar a
estrutura da luz; os resultados (a teoria corpuscular) seriam expostos na sua
Óptica de 1704. Fiel ao seu atomismo, o cientista inglês postulava uma
estrutura descontínua, emitida pelos objectos luminosos. Esta teoria, que
explicava factos tão evidentes como a propagação em linha recta, a reflexão
e a retracção, seria admitida durante um século.
No entanto, restavam bastantes pontos obscuros: fenómenos que hoje
conhecemos como mudança de retracção, polarização e interferência
ficavam por explicar. Por isso, em 1690 o holandês Huyghens proporia no
seu Tratado da luz uma teoria alternativa: a luz seria composta de pequenas
ondas de diferente longitude, propagando-se transversalmente. A teoria
acabaria por se impor graças aos esforços de Thomas Young (1773-1829) e
Agustin Jean Fresnel (1788-1827). Um ramo inteiro da física separava-se
de Newton.
Ora, se a luz era uma oscilação, tornava-se claro que devia tratar-se da
oscilação de um meio: é impensável uma agitação sem algo que se agite. De
novo, como o haviam feito Descartes e Newton, se recorreu à hipótese de
um éter (com a esperança de poder identificar o éter luminífero com o
gravitatório).
No entanto, a entidade do éter, utilizada como hipótese ad hoc,
apresentava caracteres contraditórios: segundo a teoria física, só um meio
sólido pode propagar ondas transversais; além disso a sua rigidez deveria
ser superior à do aço para suportar a propagação da luz na sua enorme
velocidade. Mas acontece que deveria ser simultaneamente tão subtil que
penetrasse tanto os espaços interestelares como os corpos; mais ainda, não
poderia ter massa (resistência inercial), pois então travaria os astros nas
suas órbitas. Por último, escapava a toda a comprovação experimental.
No entanto, o éter manter-se-ia durante todo o século XIX, pois,
aceitando a sua existência, os fenómenos da electricidade e do magnetismo
conseguiram ser explicados por uma nova e brilhante ciência: o
electromagnetismo, cujo tratamento empírico foi realizado por Michael
Faraday (1791-1867) e a sua sistematização – mediante as famosas quatro
equações – por James Clerk Maxwell (1831-1879). Tem interesse fornecer
uma resenha, ainda que breve, das consequências filosóficas desta nova
disciplina física:

1. a hipótese do éter supõe uma vitória do continuismo sobre as teorias


descontínuas;
2. a manifestação das ondas de luz e de fenómenos magnéticos dá-se
num campo de influência e não numa coisa concreta. A energia tem
aqui primazia sobre a massa. Pela primeira vez, a física reivindica algo
que, em vez de ocupar passivamente um espaço, o enche activamente e
podemos mesmo dizer que o constitui (não se deve esquecer aqui o
grande precedente de Leibniz, se bem que este insistisse em pontos de
força). Os corpos já se não deixam ordenar extrinsecamente num
esquema de referência, mas é este esquema que cria o corpo (entendido
como a abstracção resultante da interacção de diversos campos de
forças);
3. fenómenos diferentes como as ondas de rádio, a luz, ondas hertzianas
e radiações atómicas, por um lado, e manifestações magnéticas, por
outro, são entendidas como a mesma coisa a partir do momento em que
são iguais as equações matemáticas que as descrevem. Contrariamente
ao que se passa com Newton, e voltando à velha e profunda ideia
cartesiana, a matemática não ordena uma realidade estranha ao seu
âmbito, mas decide de antemão sobre o que é a realidade. A observação
é guiada de antemão pelo projecto matemático. É desnecessário insistir
na projecção técnico-política desta cosmovisão, que coincide com a
revolução industrial. A ciência coloca-se ao serviço da técnica: a
realidade vai sendo descoberta à medida das necessidades de dominação
do homem sobre a natureza;
4. no entanto, a manutenção a todo o transe da hipótese contraditória do
éter mostra por um lado como o cientista do século dezanove se agarra à
ilusão de uma imagem unitária e omnicompreensiva do Universo (se se
conseguiam identificar os éteres luminífero e newtoniano também se
uniriam as duas grandes ordens da realidade: matéria e radiação); por
outro, continua-se a insistir na necessidade de «imaginar» um modelo
mecânico: da mesma maneira que as partículas podiam ser entendidas
como conceitos limites de um meio pulsante, esta agitação podia
explicar-se pelo choque de partículas subtis (não se deve esquecer que
Maxwell foi também co-fundador da teoria cinética dos gases).

1.2.2. À procura do éter

O problema estimulante consistia em verificar de algum modo a


presença fugidia do éter. Cabe a Albert Abraham Michelson (1852-1935)
a honra dessa tentativa... e de ter acabado, bem contra sua vontade, com a
mecânica clássica.
A ideia de Michelson era a seguinte: o éter pode identificar-se com o
espaço absoluto e imóvel de Newton através do qual a Terra se move como
um barco. Seria então possível medir o movimento absoluto da Terra do
seguinte modo: um raio luminoso projectado na direcção do movimento do
planeta e reflectido para o ponto de partida percorrerá uma distância maior
do que outro projectado em direcção perpendicular. O tempo que a luz
demorará a regressar, neste último caso, será menor do que no primeiro,
pois aqui a luz terá de vencer a resistência do éter, devendo acrescentar-se
além disso o caminho percorrido pela Terra (30 km/s).
Os resultados foram desanimadores. Em todos os casos o tempo era
exactamente o mesmo. Isto era algo de absolutamente inexplicável: mesmo
admitindo que não existisse o éter (seria o caso de um vazio perfeito), a luz
devia demorar mais a regressar longitudinalmente – pois a Terra avançou –
do que transversalmente (o caminho percorrido é a hipotenusa de um
triângulo rectângulo):

Ora, (L)OAO' > (T)OAO'; pois (L)AO' > (T)AO'.


Com efeito, no primeiro caso: (L)AO' = O'O+OA.
No segundo, por Pitágoras: [(T)AO']2= O'O2+OA2.
Ao não acontecer o previsto, não era só o enigmático éter que se tornava
inexplicável, mais grave era a verificação de que a velocidade da luz é
constante, independentemente do movimento do emissor, o que contradiz o
princípio da relatividade de Galileu, que possibilita a passagem de um
sistema de coordenadas a outro mediante a subtracção de velocidades;

Se pretendermos saber a posição relativa em xyz de um móbil ao longo


de x’:

x’ = x – vt; z' = z; y' = y; t'= t.

Ora, isto já não é possível, pois a velocidade da luz intervém como


constante. A verdade é que não se encontrava a solução possível dentro do
sistema newtoniano.

1.3. A teoria da relatividade

1.3.1. Salvar de novo as aparências

Na sua IV regra do filosofar, Newton salientara que uma teoria deve ser
mantida enquanto se adequar aos fenómenos. Agora o resultado negativo de
uma experiência crucial parecia exigir a aplicação da metodologia
newtoniana contra a sua própria teoria física. No entanto, e como nos casos
de Ptolomeu e Belarmino, o crítico de Galileu, também aqui se começou
por recorrer a uma hipótese ad hoc, dentro do que denominámos esquema
positivista da ciência. Assim, o físico irlandês G. F. Fitzgerald sugeriu uma
diminuição de longitude dos corpos na direcção em que se movem, numa
quantidade igual a , sendo c a velocidade da luz.
À velocidade da luz, todo o corpo tem uma massa infinita e uma
longitude nula, Do ponto de vista filosófico, o interessante deste caso é que
Lorentz (como Michelson) se negou a ver nas suas equações mais do que
hipóteses para salvar as aparências. E mais, Lorentz colocou aos ombros do
velho éter a tarefa de dar uma explicação física:

«Por mais surpreendente que esta hipótese possa parecer à primeira


vista, deveremos admitir que não é de modo algum descabida, desde que
suponhamos que as forças moleculares também se transmitem através do
éter, tal como as forças eléctricas e magnéticas (...) Se aquelas forças se
transmitem deste modo, é muito provável que a translação afecte a acção
entre duas moléculas ou átomos de uma forma semelhante à atracção ou
repulsão entre partículas carregadas.» («A Experiência de Michelson», in
Lorentz e outros, O Princípio de Relatividade.)

Também neste caso será a metodologia de Newton (que nisto seguia


claramente Copérnico) que conduzirá ao derrube do seu próprio sistema.
Com efeito, o primeiro grande princípio assente pelo grande físico inglês
era o da simplicidade. Como no caso da multiplicação dos epiciclos, nos
finais da Idade Media, a acumulação de modificações tornava necessária
uma revolução científica: uma mudança nas próprias bases da interpretação
da realidade física. O grande revolucionário foi o alemão de origem judaica
Albert Einstein (1879-1955). O seu efeito na física é magnificamente
sugerido pela apostila que John Collings Squire faria no famoso epitáfio de
Alexander Pope em honra de Newton:
«Não durou muito: ululou o diabo. Uh!
Faça-se Einstein! E restaurou o status quo.»

1.3.2. A antítese de Newton

Com efeito, Einstein não só é o sucessor de Newton como a sua imagem


antitética. O inglês encerrou esplendidamente num sistema todos os
esforços do século XVIII. Einstein, ao contrário, abre um mundo novo no
qual as teorias e hipóteses proliferam por todo o lado, para não falar das
doutrinas filosóficas que tentam justificar a nova ciência.
Newton insiste constantemente no valor do raciocínio indutivo e na
rejeição das hipóteses mas estabelece paradoxalmente um sistema altamente
metafísico. Einstein insiste no valor autónomo, lógico, de conceitos e
enunciados, e no papel mediador da intuição para abraçar o mundo da
lógica e da experiência, guiado pelos princípios racionais da completude,
independência e simplicidade:
«O sistema de conceitos é uma criação do homem juntamente com as
regras da sintaxe, que constituem a estrutura dos sistemas conceptuais.
Embora do ponto de vista lógico os sistemas conceptuais sejam
inteiramente arbitrários, estão submetidos à exigência de possibilitar a
coordenação mais certa (intuitiva) e completa possível com a totalidade das
experiências sensoriais; em segundo lugar, tais sistemas propõem-se atingir
a maior parcimónia possível de elementos logicamente independentes
(conceitos fundamentais e axiomas), isto é, conceitos não definidos e
enunciados não derivados (postulados).» («Notas autobiográficas», em P.
A. Schilpp, Albert Einstein: filósofo e cientista.)
E no entanto, Einstein parte paradoxalmente de um facto físico
irredutível à teoria anterior: a constância da velocidade da luz. Por último,
Newton – consequente com o seu empirismo – permite a contínua
degradação do sistema (verosimilhança em vez de exactidão), para nele
introduzir uma divindade providente, ao passo que Einstein afirma
enfaticamente que «Deus não joga aos dados», acentuando assim a sua
crença num determinismo rigoroso. E no entanto, nesse contínuo paradoxo
implicado na obra dos dois grandes homens, o sistema newtoniano vai
permitir o aparecimento, no Iluminismo, de um férreo determinismo,
enquanto as consequências da obra einsteiniana apresentam, como veremos,
um quase inevitável indeterminismo.

1.3.3. Teoria especial da relatividade

Em 1905 aparece nos Anais de Física um pequeno artigo, de título


inofensivo: «Sobre a electrodinâmica dos corpos em movimento». Nele se
lançam as bases da teoria especial da relatividade. São estes os axiomas
da nova física:

1. A velocidade da luz não depende da velocidade da fonte luminosa


nem da velocidade do observador. O seu valor (no vazio) é constante:
299.792,7 km/s.

2. Não existe um éter portador de ondas electromagnéticas nem de


forças gravitacionais. Por consequência, não há um sistema de coordenadas
absoluto para os fenómenos do movimento.

3. A transformação de Galileu não é válida, devendo ser substituída pela


de Lorentz: o resultado de uma medição depende do estado de movimento
do observador.

Albert Einstein
Nasce em Ulm em 1879 e morre em Princeton (New Jersey) em 1955. Alemão de origem
judaica, nacionaliza-se suíço em 1900 e norte-americano em 1940. Casado com uma estudante
húngara, pode dizer-se que foi realmente «cidadão do mundo». Mau estudante, salvo em
matemáticas, apaixonavam-no Schiller, Goethe e o violino. Termina os seus estudos no ETH
(Politécnico) de Zurique e emprega-se como administrativo na Repartição de Registo de
Patentes de Berna. Em 1905 assombra o mundo científico com três curtos trabalhos, publicados
nos Anais de Física: um sobre o movimento browniano, outro sobre o efeito fotoeléctrico
(primeira aplicação, e por conseguinte justificação, da hipótese quântica de Planck), pelo qual
receberia o Prémio Nobel em 1921 e outro com o título de Electrodinâmica dos Corpos em
Movimento, que lançava as bases da teoria especial da relatividade. A partir de então é
convidado pelas melhores universidades europeias: ensina em Zurique, Praga, Berlim, Leyden,
e, em 1914, é nomeado director do Instituto Kaiser Wilhelm, de Berlim. Nesse mesmo ano
destaca-se por se negar a apoiar a intervenção alemã contra a Bélgica. No advento do nazismo,
teve de fugir da Alemanha, trabalhando nos Estados Unidos (Universidade de Princeton).
A pedido de Fermi, Szilard e Wigner assina um documento de transcendência ainda não
esgotada: a petição ao Presidente Roosevelt para a construção de uma bomba atómica (também
Heisenberg estava a construir uma, na Alemanha). Em 1952 é-lhe oferecida a presidência do
Estado de Israel, cargo que Einstein recusa para continuar a trabalhar no sonho – vão – da sua
vida: a unificação das teorias electromagnética e gravitacional (teoria geral da relatividade).
Acérrimo defensor do determinismo («Deus não joga aos dados», disse), antibelicista incurável,
e crente no Deus de Espinosa (ordem matemática do Universo), abriu com Planck um novo
mundo, simultaneamente hostil e sedutor: o nosso.

Einstein aceita a contracção de Fitzgerald e o aumento da massa com a


velocidade, postulado por Lorentz, Mas o significado é agora distinto: essa
contracção e esse aumento não são hipóteses positivistas para salvar as
aparências, mas também não são reais no sentido de serem objectivamente
independentes. São reais segundo o sistema de referência usado. Assim,
Einstein salva os esquemas positivista e realista para introduzir o que
podemos chamar de esquema operacionalista: a definição de um fenómeno
físico é dada por um conjunto de operações realizadas adequadamente.
As implicações do novo esquema são sobremaneira graves; já não se
pode falar do homem e da natureza, pois os dois âmbitos estão imbricados.
Para além do materialismo mecanicista e do idealismo subjectivo, a nova
física postula uma natureza humanizada e um homem naturalizado (não em
vão, e na mesma época de Einstein, Edmund Husserl realiza a crítica das
ciências positivas afirmando a intencionalidade, quer dizer, a
relacionalidade, como princípio construtor da realidade).
É também lógico pensar que o grande ausente da física clássica – o
conceito de tempo – vai ter agora um papel primordial. Com efeito, de
acordo com a fórmula de Lorentz o tempo medido depende da velocidade
do sistema, da trajectória e da velocidade da luz.
Isto significa que não existe um tempo único, absoluto, mas dependente
da velocidade do sistema em que tem lugar a medição, Num móbil, o tempo
decorre mais lentamente para o observador à medida que este aumenta a sua
velocidade, até chegar a ser de valor nulo ao atingir a velocidade da luz.
Ora, o tempo depende também de um eixo especial (e vice-versa, claro
está). Tempo e espaço formam um contínuo tetradimensional inextricável:
os conceitos de repouso e de movimento deixam de ser antitéticos.
Podemos dizer que não existe nada em repouso porque assim o
comprovamos empiricamente: mas é possível a escolha arbitrária de um
sistema inercial como se estivesse em repouso.
A hipótese heliocêntrica de Copérnico, que tantas lutas custara, deixa de
ter sentido aqui. Mas não seria correcto conceder apressadamente a vitória
ao esquema positivista belarminiano: foi necessário passar por Copérnico e
Newton para chegar a Einstein.
Voltemos ao problema da lentidão relativa do tempo, entrando no
famoso «paradoxo dos relógios»: longitude e massa são recuperáveis; um
corpo pode diminuir ou aumentar de volume para em seguida voltar ao
estado inicial. Um reajustamento na aceleração do sistema permite restaurar
a familiar «ordem das coisas». Mas o tempo é irreversível, acumulativo.
Os ponteiros de um relógio numa nave espacial a 262 000 km/s avançam
metade do que avançariam se estivesse em repouso. Quando a nave
regressar à Terra, o relógio andará de novo «bem» (para nós, na realidade,
andou sempre com a mesma marcha). Mas o atraso acumulado pelo relógio
é irrecuperável (e o próprio corpo humano é um relógio). O viajante teria
metade da idade que tinha quando abandonou a Terra, segundo os nossos
cálculos. E se o viajante tivesse andado à velocidade da luz, vê-lo-íamos
chegar no mesmo instante em que partiu, por muito longe que tivesse ido no
espaço. Mas nunca antes, pois é impossível acelerar um corpo para além da
velocidade da luz.
Este ponto é importante;pois a causalidade repousa sobre a prioridade da
causa sobre o efeito. Todo o nosso sistema de ideias e crenças se
desmoronaria se se pudesse alterar a ordem do tempo. Mas só podemos
modificar a lentidão relativa de uma ordem irreversível (por isso, a
propósito, podemos dizer que é pensável uma viagem ao futuro, mas não ao
passado).
Deve ainda destacar-se um outro ponto importante na teoria
einsteiniana: a conversão da massa em energia, o que implica a queda do
princípio da conservação da massa (postulado por Lavoisier), abrindo as
portas à física atómica – e à bomba.
A equação de Einstein, que revolucionou a física actual, afirma a
conversão da matéria em energia quando aquela se move ao quadrado da
velocidade da luz. Surge assim um novo princípio de conservação: o da
massa-energia. Ora, pode-se afirmar que o movimento não é uma qualidade
extrínseca aos corpos, mas a sua própria essência. Este movimento não
descreve deslocações de massas inertes num espaço infinito: as massas
configuram o espaço.
O dinamismo monádico de Leibniz está mais próximo da visão actual do
que o limitado empirismo newtoniano. É certo que também aqui a
geometria se transforma numa ciência física: o espaço e a sua configuração
dependem das massas que o povoam. Mas o sentido último é radicalmente
oposto ao newtoniano. No sistema clássico, a matemática é uma ciência
auxiliar porque se acredita num mundo repleto de fenómenos dados de uma
vez para sempre (o Deus especializado de Newton e o demónio de Laplace
são garantes desta omnicompreensão). No sistema einsteiniano, a geometria
é uma ciência física porque as suas leis derivam de um facto prévio: a
constância da velocidade da luz, e por conseguinte a temporalização do
espaço.
Ora, se recordarmos que massa e energia são aspectos de uma realidade
dinâmica, que a energia conhecida na época clássica se apresentava como
força gravitacional, eléctrica e magnética, e que a teoria especial da
relatividade surgira de uma sistematização harmónica das equações de
Maxwell (electromagnetismo) e das de Fitzgerald-Lorentz, torna-se claro
que o passo seguinte a dar seria a conciliação das teorias do campo
unificado com a teoria gravitacional.
1.3.4. Teoria geral da relatividade

A partir de 1915, todos os esforços de Einstein vão orientar-se para a


consecução de um sistema unificado. Embora lamentavelmente não o
tivesse conseguido, a teoria generalizadora da relatividade é um marco
importante na história do pensamento, A teoria especial (restrita) estudava
sistemas em movimento uniforme e rectilíneo (inerciais). Mas o espírito
genuinamente científico de Einstein induzia-o a procurar uma lei
universalmente válida para qualquer sistema em referência, qualquer que
fosse o seu movimento.
Falámos anteriormente da descoberta de Neptuno e da consequente
implicação para o sistema newtoniano. No entanto, persistia uma anomalia
astronómica irredutível. Como no caso de Urano, também Mercúrio
apresenta um leve desvio do seu periélio: 48 segundos de arco por século.
Igualmente se postulou aqui um novo planeta, ainda mais próximo do Sol
(tinha inclusive já nome escolhido: Vulcano), mas não se encontrou
nenhum planeta. Pois bem, a teoria geral de Einstein dava a explicação
deste facto, prevendo um desvio adicional produzido pela proximidade da
grande massa do Sol.
A teoria previu igualmente dois factos que, ao serem confirmados,
asseguram a sua validade. Em primeiro lugar, defendia-se que um campo
gravitacional intenso deve travar as vibrações dos átomos. Os astrónomos
viram confirmada tal hipótese ao analisarem o espectro das estrelas anãs
brancas. Em segundo lugar, dizia-se que um campo gravitacional faz curvar
os raios luminosos (contra a teoria newtoniana da propagação rectilínea da
luz). Um eclipse do Sol em 1919 permitiu que a previsão fosse quase
exactamente verificada por uma expedição científica dirigida pelo
astrofísico inglês Arthur S. Eddington (1882-1944). A teoria einsteiniana
provou, pois, empiricamente, a sua validade até limites admissíveis.
Pareceu-nos conveniente avançar a ratificação empírica antes de entrar,
ainda que brevemente, no sentido da teoria generalizada, que agora
passamos a expor.
Até ao século XIX, espaço em geral, espaço físico e espaço euclideano
eram uma e mesma coisa. Mas nessa época, um renascer do interesse pela
sistematização formal (presente tanto na absoluta matematização de
disciplinas físicas como na aparição da lógica simbólica) leva os geómetras
a tentar a conversão dos Elementos de Euclides num sistema axiomático.
Nessa obra, o postulado V não podia deduzir-se logicamente dos
princípios gerais. O postulado afirma que por um ponto exterior a uma recta
não pode traçar-se senão uma paralela (ou, dito de outra maneira, que os
ângulos de um triângulo valem dois rectos). Tentou-se demonstrar o
postulado por redução ao absurdo: negando-o, chegar-se-ia à contradição
com os princípios. Mas não se chegou a tal contradição. O postulado
baseava-se num facto psicofísico: a nossa percepção do espaço como
tridimensional (devida mais aos canais semicirculares do ouvido do que à
vista, que percebe os objectos em perspectiva; mais adiante abordaremos
resumidamente este ponto).
De entre as múltiplas teorias surgidas como possíveis, podemos assinalar
dois grupos: num deles, é possível traçar infinitas paralelas a outra dada
(hipótese do ângulo agudo: um triângulo mede aqui menos de dois rectos).
É a geometria de Nicolai L. Lobachevsky (1793-1856). No outro grupo,
não é possível traçar nenhuma paralela a outra dada (hipótese do ângulo
obtuso: um triângulo mede aqui mais de dois rectos). É a geometria de
Bernhard Riemann (1826-1866). Nesta geometria o espaço descreve uma
curva geradora de ângulos obtusos, sendo a linha recta a distância mais
longa entre dois pontos.
Ambas as geometrias foram no início consideradas como meras
especulações matemáticas. No entanto, é a euclideana que hoje parece
realmente ameaçada. Com efeito, estudos recentes sobre a visão binocular,
realizados na Universidade de Princeton, inclinam-se para a geometria
lobachevskyana como aquela que se encontra mais próxima da visão
psicofísica de uma pessoa normal.
Mas tem maior interesse a geometria riemanniana, por ter sido a
escolhida por Einstein (sob a influência de seu mestre Hermann
Minkowski) para explicar matematicamente a sua teoria generalizada. A
união desta geometria e das doutrinas einsteinianas dão-nos a imagem de
um espaço-tempo contínuo e tetradimensional (inclui-se o tempo, não como
mais uma dimensão, mas alterando as outras), finito, mas ilimitado (como
não haveria limites para o habitante bidimensional de uma superfície
esférica), e não uniforme: o espaço – e a sua curvatura – varia segundo as
massas que o constituem.
Deste modo, a atracção dos corpos pode explicar-se por uma força
gravitacional ou, segundo Einstein, pela curvatura do espaço, que obriga os
raios luminosos que atravessam a região a arquear-se. Assim, a força (um
facto físico) explica-se por uma configuração geométrica, mas esta última,
por sua vez, é utilizada pela necessidade de explicar um facto físico: a
velocidade da luz. Observe-se que deste modo deixa de ter sentido
interrogarmo-nos acerca do centro do Universo e de uma ordenação
racional das massas em sua volta.
Deve dizer-se que, por muito que custe à confirmação experimental, a
ideia de um espaço protuberante (aumentando e diminuindo constantemente
conforme as massas se concentram numa região dada), tetradimensional,
curvo e finito em volume (sem centro) mas ilimitado, é tão estranha que
ainda espera uma confirmação plena. É possível que quando esta chegar –
se chegar – tenhamos de mudar as nossas crenças sobre o espaço num grau
até agora apenas conjecturável.

1.4. A natureza dá saltos

1.4.1. O quanto de acção

Se a teoria da relatividade acaba com as nossas mais firmes concepções


de «senso comum» quanto ao espaço, ao tempo e à massa (produtos da
secular divulgação das teorias clássicas), ainda nos podemos refugiar no
determinismo rigoroso da nova ordenação e no carácter contínuo do âmbito
espácio-temporal. Os princípios de simplicidade e continuidade ainda
mandam no mundo einsteiniano.
Mas nos fins do século XIX uma nova ciência, a que já aludimos, a
termodinâmica, e as suas investigações sobre os fenómenos do calor,
prometia uma frutífera união com o pujante electromagnetismo, no penoso
(e ainda hoje desejado) processo de unificação das ciências da natureza.
Que o calor era uma forma de energia havia já sido estabelecido por
pioneiros como o conde de Rumford (1753-1814) e Julius Robert Mayer
(1814-1878). De facto, o primeiro princípio da termodinâmica não é mais
do que o da conservação da energia, na clássica formulação de Herman
Helmholtz (1821-1894).
O problema com que se confrontava a nova disciplina era o da radiação
emitida pela matéria sob a acção do calor. Entre os diversos emissores, os
ideais são os corpos negros, capazes de absorver e irradiar por completo a
luz sem reflecti-la (o que suporia, justamente, a aparição do corpo
colorido). Curiosamente, o problema havia-se resolvido por partes:
conhecia-se a distribuição energética na zona violeta do espectro, mas não
na vermelha. E, por outro lado, conceberam-se experiências que descreviam
a distribuição na zona vermelha, ficando a zona violeta por explicar.
A solução (em princípio puramente empírica, sem teoria que lhe desse o
aval) foi encontrada por Max Planck (1859-1947) e era tão assombrosa que
pode dizer-se que o seu autor dedicou quase o resto da sua vida a tentar
auto-refutar-se, ou pelo menos a evitar as consequências que resultavam da
sua descoberta. Não era para menos. Pela primeira vez na história tinha-se
uma prova irrefutável da descontinuidade do real, precisamente no coração
do continuismo: as teorias electromagnéticas, que estudam ondas de
energia.
A descoberta abria o século (Planck comunicou-a em 1900) e uma nova
era da ciência. A radiação compõe-se de «pacotes energéticos»
descontínuos. Planck deu o nome de quantos a estes pacotes ou unidades
mínimas de radiação. O quanto relaciona harmonicamente o comprimento
de onda (λ) a frequência (v) e a energia contida. Junto a G (constante de
gravitação) e c (velocidade da luz), aparecia uma nova constante em física:
h, a chamada «constante de Planck» ou quanto de acção (valor: h = 6,626
× 10-34 joules por seg.). A fórmula que abria o mundo do descontínuo era:
E = hv.
Assim tanto a matéria (átomos) como a energia (quantos) constavam de
unidades discretas. A teoria prometia mudanças tais que não foi aceite até
1905. É de novo Albert Einstein quem aceita o repto e, generalizando a
descoberta de Planck, consegue explicar o «efeito fotoeléctrico» (emissão
de electrões de superfícies metálicas pela força da luz). Paradoxalmente,
Newton caía do seu pedestal em mecânica ao mesmo tempo que se
reivindicava, de algum modo, a sua teoria corpuscular da luz. Só que neste
caso não havia meio etéreo algum que sustentasse os fotões (quantos de
luz).
Ainda não se havia assimilado bem as consequências deste atomismo
energético quando em 1923 Luis-Victor, príncipe de Broglie (nascido em
1892), demonstra que se a radiação tem em alguns casos caracteres
corpusculares também os electrões apresentam características ondulatórias,
num jogo de ocultação e de desvendamento que recorda a profunda
sentença de Heraclito:

«o que sai à luz (a physis) entrega-se ao ocultamento» (frag. B 123).

Os electrões têm um comprimento de onda inversamente proporcional


ao seu momento (quantidade de movimento: mv) e pela sua frequência
aproximam-se da região dos raios X. O grande físico austríaco Erwing
Schrödinger (1876-1961) lançaria depois os fundamentos matemáticos da
novíssima «mecânica ondulatória», substituindo o esquema planetário que
Niels Bohr (1885-1962) havia construído para os átomos por uma onda (o
electrão) curvada em torno do núcleo, de modo que se encontrava ao
mesmo tempo em todas as partes da sua órbita.
Esta ideia implica nada menos do que a destruição do conceito de
«indivíduo» e a sua substituição por uma «nuvem de probabilidades». Não
significa que a matéria seja umas vezes partícula e outras onda, mas que é
as duas coisas ao mesmo tempo. Como diz o próprio Schrödinger, hoje
«somos obrigados a negar à partícula a dignidade de um indivíduo
absolutamente identificável (...). O átomo carece da propriedade mais
elementar que associamos a um pedaço de matéria na vida ordinária.
Alguns filósofos de outrora, se se lhes pudesse colocar o caso, diriam: os
vossos átomos modernos carecem de substância e não são mais do que
forma» («Que é uma Partícula Elementar?» in O que é uma Lei da
Natureza?).

1.4.2. Ressurgimento do pitagorismo

Deste modo, a mecânica quântica parecia apoiar-se perigosamente num


idealismo de novo tipo, quase um pitagorismo, como se pensou quando
apareceu em cena talvez o maior dos novos físicos: Werner Heisenberg
(1901-1976).
Com efeito, Heisenberg actualizou e aperfeiçoou o chamado cálculo
matricial (para o qual não é válida, por exemplo, a comutatividade: ab ≠ ba)
sobre bases estritamente probabilísticas, com a especial circunstância de
que a matéria parecia reduzir-se ao mero cálculo matemático – é patente a
influência de Platão em Heisenberg: em jovem conhecia quase de memória
o Timeu.
Pela primeira vez, a imagem era absolutamente varrida da física. Com o
cálculo de matrizes, a matéria não é já partícula ou onda, nem nenhuma
outra coisa descritível, mas aquilo que cumpre um puro esquema de
simetria. É sintomático – e doloroso – que os «velhos» Einstein e Planck se
tivessem oposto com todas as suas forças aos novos caminhos. Séculos de
luta pelo objectivismo e pela asséptica descrição do «em si» pareciam
entregar-se agora a um subjectivismo desenfreado que, no entanto,
funcionava.
Em 1927, Heisenberg, enfant terrible da nova física, rompe com outro
princípio sagrado: o da determinação. No entanto, esta ruptura resulta
naturalmente das novas fórmulas. Se E = mc2e simultaneamente E = hv,
então a iluminação de qualquer objecto, com fins de observação, dispersa
necessariamente os seus electrões, já que a luz com que se observa é
também ela composta de partículas (fotões) que pressionam os átomos
observados. O princípio de indeterminação diz que quanto mais claramente
é especificada a posição (q) de uma partícula, menos claramente se pode
fixar a quantidade de seu movimento (p), e, ao contrário, sendo o
coeficiente de indeterminação: pq – qp = h / 4π
Ou, dito de outra maneira; ∆p ·∆q = ∆h / 4π. Quando ∆p tende para zero,
∆q tende para o infinito, e vice-versa.
Até que ponto estas novas conquistas repugnavam à mente «clássica» de
Einstein está patente na sua carta a Max Born, em 1926:

«A mecânica quântica merece muito respeito; mas uma voz me diz que
no entanto não está aqui o nó da questão (...) Atormento-me por deduzir das
equações diferenciais da relatividade geral as fórmulas do movimento dos
pontos materiais concebidos como individualidades.»

São escrúpulos tão justificados, pode dizer-se, como vão é o tormento.


Pois o triunfo indiscutível da mecânica quântica mostra claramente que já
não se trata apenas de fazer ciência: trata-se de adquirir um novo modo de
pensar, uma nova filosofia, em cujos alvores nos encontramos ainda.
O esquema do mecanismo desapareceu mas atormenta-nos ainda, como
velhos fantasmas. Que pensar de um mundo onde o espaço aumenta ou
diminui por capricho, o tempo acelera ou desacelera segundo a velocidade
do móbil, a massa se anula ou se torna infinita, a energia se desfaz em
fragmentos, a matéria «dura» se apresenta em forma de ondas que no fundo
não o são, sendo sim nuvens de probabilidades regidas por matrizes nas
quais não são válidos os princípios da matemática «de sempre»?
No entanto, é este o nosso mundo. Teremos de nos acostumar a viver
nele. Se recordarmos que Kant conseguiu fundamentar a física clássica,
seria possível terminar este subcapítulo parafraseando a famosa exortação
de Ortega, que procurava um Goethe a partir de dentro. A nossa época sente
também a urgente necessidade de procurar um Kant a partir do seu interior.
2. OS DESENVOLVIMENTOS ACTUAIS NA
FILOSOFIA DA CIÊNCIA

2.1. O racionalismo crítico de Karl Popper

No capítulo anterior, consagrado à filosofia analítica contemporânea,


ocupámo-nos do positivismo lógico (Círculo de Viena) e das suas teses
fundamentais. Na perspectiva da filosofia da ciência, as duas teses mais
importantes são as seguintes:

a) A divisão exaustiva e excluidora de todos os enunciados em analíticos


e sintéticos. A verdade ou falsidade dos primeiros é comprovada por
procedimentos lógicos e o valor de verdade dos segundos comprova-se
recorrendo à experiência.

b) A verificação é o único critério de significado e de demarcação entre


enunciados significativos e não-significativos e também entre enunciados
científicos e não-científicos. Para o positivismo, os âmbitos da ciência e do
significado (significatividade) coincidem. É esta a força do critério
positivista de verificação em qualquer das suas formulações.

2.1.1. O critério de falsificabilidade

Karl Popper escreveu A Lógica da Investigação Científica (1935) como


resposta à concepção verificacionista do significado e da cientificidade. Em
rigor, Popper não pertence ao Círculo de Viena pois negou sempre a sua
adesão à filosofia do positivismo lógico. Contudo, pode ser considerado um
positivista lógico, se entendermos o positivismo lógico como a expressão de
uma atitude geral perante o conhecimento científico – uma atitude de
confiança na lógica e na experiência. Assim, este confronto entre Popper e
o Círculo de Viena não é radical mas deve-se sobretudo a questões de
pormenor. Ambos falam a mesma linguagem e as suas teses básicas são as
mesmas.
Como vimos no capítulo anterior, Popper opôs-se ao critério de
verificação e propôs que seria mais adequado um critério falsificacionista:
os enunciados científicos (empíricos) serão os susceptíveis de
falsificabilizacão; um enunciado é científico se em teoria puder ser
falsificabilizado, ainda que nunca encontremos uma instância
falsificabilizadora.
Os aspectos mais importantes que afastam Popper das teses concretas do
Círculo de Viena são os seguintes:

a) A falsificabilidade não se apresenta como critério de significado mas


como critério de demarcação entre ciência e pseudociência. Para Popper,
a ciência não esgota o âmbito do que pode ser dito com sentido. A
metafísica não é científica, porque os seus enunciados não são
falsificabilizáveis, mas nem por isso carece de significado, como
pretendiam os positivistas lógicos.

b) Os enunciados de observação não são infalíveis. Neste aspecto,


Popper é muito mais actual do que os seus colegas neopositivistas. Para ele,
a verdade ou falsibilidade de tais enunciados (protocolares) depende em
última instância de uma decisão da comunidade científica, Com esta tese,
Popper adianta-se às críticas ao positivismo decorrentes da psicologia da
forma (Gestalt): os nossos sentidos podem enganar-nos e por isso não
existem enunciados puros de observação, pois qualquer enunciado contém
uma teoria. (Todavia, Popper é ambíguo neste aspecto: em alguns textos
parece aproximar-se das posições de Kühn – de quem falaremos mais
adiante –, ao passo que noutros se exprime como se fosse um membro do
Círculo de Viena.)

c) Enquanto que os neopositivistas manifestam optimismo quanto à


possibilidade de se alcançar um conhecimento certo e definitivo (os
enunciados verificados são certos), Popper caracteriza-se por um certo
cepticismo: se os enunciados falsificabilizados são inquestionavelmente
falsos, já os enunciados não-falsificabilizados poderão ser verdadeiros,
embora nunca se possa saber isso com total segurança.

Não há enunciados (universais) verificados; as hipóteses observáveis de


nível inferior estão sujeitas a revisões; além disso, se um conjunto de
enunciados, uma teoria, não deparar no momento com casos que mostram a
sua falsificabilidade, isso não significa que esses casos não possam surgir
no futuro. Não há aquisições científicas definitivas mas apenas provisórias,
ou seja, são aceites provisoriamente dado que não foram falsificabilizadas
até ao momento.

TEORIA EMPÍRICA E FALSIFICABILIDADE


Uma teoria é «empírica» ou «falsificabilizável» quando, de modo
inequívoco, divide a classe de todos os possíveis enunciados básicos nas
duas seguintes subclasses não-vazias: primeiro, a classe de todos os
enunciados básicos com os quais a teoria é incompatível (ou que os
excluí ou proíbe), que chamaremos a classe dos possíveis
falsificabilizadores da teoria; e em segundo lugar, a classe dos enunciados
básicos nos quais a teoria não está em contradição (ou que a
«permitem»). Podemos expressar esta definição de uma forma mais
sumária, dizendo que uma teoria é falsificabilizável se a classe dos seus
possíveis falsificabilizadores não for uma classe vazia.
Pode acrescentar-se, talvez, que uma teoria faz afirmações unicamente
acerca dos seus possíveis falsificabilizadores (afirma a sua
falsificabilidade); mas acerca dos enunciados básicos «permitidos» não
diz nada: em particular, não diz que sejam verdadeiros.
K. Popper, A Lógica da Investigação Científica.

2.1.2. A teoria dos três mundos

Esta concepção popperiana das teorias como hipóteses que precisam de


ser confrontadas por meio do critério falsificacionista está intimamente
ligada à sua noção do mundo e à sua interpretação da racionalidade. Neste
sentido, a sua concepção filosófica geral pode ser encarada como um
realismo e um racionalismo críticos.
O seu realismo parte da existência indubitável e inquestionável do
mundo. Contrariamente à tese monista, que afirma a existência de um único
mundo, de natureza idêntica em todos os seus fenómenos (geralmente
seguindo o modelo físico), Popper defende um pluralismo ontológico, a
realidade de três mundos: «O mundo é formado pelo menos por três
submundos ontologicamente distintos: o primeiro é o mundo físico ou dos
estados físicos; o segundo é o mundo mental ou dos estados mentais; o
terceiro é o dos estados inteligíveis ou das ideias em sentido objectivo, o
mundo dos objectos de pensamento possíveis» (Conhecimento Objectivo).
Também os designa por «mundo l» ou físico; «mundo 2» ou psicológico; e
«mundo 3» ou abstracto, constituído por teorias, pela linguagem e, de um
modo geral, pela cultura. Popper estabelece as seguintes teses fundamentais
sobre a natureza e relação destes mundos:

a) Cada um destes mundos é real e existe. Entende que «algo existe ou é


real se, e apenas se, pode receber um pontapé e pode devolvê-lo» (O
Universo Aberto). O mundo l ou físico é o exemplo típico da realidade ou
da existência: é ele que governa a realidade.
b) Estes mundos diferentes podem interagir entre si, e assim acontece.
Esta afirmação pode parecer estranha no que se refere ao mundo 3 e ao seu
pretenso carácter «real». Ora, Popper afirma que o mundo 3 também é real,
independente dos processos psicológicos e subjectivos, sendo constituído
por objectos autónomos e, por isso, pode interagir com o mundo 2 e, através
deste, com o mundo 1.

c) O ser humano tornou o mundo 3 objectivo através de duas funções


superiores da linguagem; a função descritiva, com o valor de verdade que a
acompanha; e a função argumentativa, com o consequente valor de validez.

d) Contrariamente à hipótese de um universo fechado, a interacção entre


os mundos l, 2 e 3 pressupõe que o universo é aberto: refere Popper que
«por sistema fisicamente fechado entendo um conjunto ou sistema de
entidades físicas como átomos, partículas elementares, forças físicas ou
campo de forças que interagem entre si – e apenas entre si – de acordo com
leis precisas de interacção que não permitem interacções ou interferências
com nada exterior a esse conjunto ou sistema fechado de entidades físicas»
(Conhecimento Objectivo). De acordo com esta tese, o mundo é no seu
conjunto um imenso maquinismo e os seres humanas são submaquinismos
seus, uma espécie de pequenas engrenagens.
A interpretação popperiana da natureza indeterminista do mundo físico
contraria esta hipótese de um universo fechado, a qual também é
contrariada pela liberdade, entendida em princípio e basicamente como
liberdade de avaliar razões, argumentos e teorias e como liberdade de criar.
«O nosso mundo é em parte causal, em parte probabilista e em parte aberto;
é emergente» (O Universo Aberto).

e) Deste modo, o universo aberto inclui o indeterminismo e alberga a


liberdade e a criatividade. O determinismo científico ou físico afirma que
«é tal a estrutura do mundo que qualquer acontecimento pode ser
racionalmente previsto com o grau de precisão que desejarmos, se tivermos
em conta uma descrição suficientemente precisa dos acontecimentos
passados e de todas as leis da natureza» (O Universo Aberto). O
determinismo metafísico sustenta que este carácter determinista atinge
«todos os acontecimentos» do mundo. Mas o indeterminismo afirma que
«nem todos os acontecimentos do mundo físico estão predeterminados com
absoluta precisão em todos os seus infinitos pormenores» (Conhecimento
Objectivo).

2.1.3. Teoria das ciências sociais

Popper também aplicou a sua reflexão epistemológica às ciências


sociais, sobretudo em dois aspectos: a sua crítica do historicismo como
teoria sobre o método e a sua concepção sobre a tarefa das ciências sociais.

Karl R. Popper
Filósofo britânico de origem austríaca, nasceu em Viena em 1902 e morreu em 1994. Foi
professor na universidade da Nova Zelândia e depois, de 1945 a 1969, na London School of
Economics, As suas investigações lógicas e epistemológicas aproximam-se muito das do
Círculo de Viena, apesar de não ter pertencido a ele. Em vez da teoria da verificação do
neopositivismo, Popper propõe a sua teoria da falsificabilidade, que constitui o cerne do seu
racionalismo crítico. Põe de lado a noção de probabilidade estatística e postula antes uma
probabilidade lógica (não baseada no conceito de indução). Também se debruçou sobre a
filosofia social, e a esse respeito manifestou uma franca oposição ao marxismo.
As suas obras mais importantes são:
– A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (1945).
– A Miséria do Historicismo (1936).
– A Lógica da Investigação Científica (1962).
– O Desenvolvimento do Conhecimento Científico. Conjecturas e Refutações (1963).

a) Popper chama historicismo a uma interpretação precisa das ciências


sociais. O historicismo pensava que a tarefa das ciências sociais era fazer
previsões históricas, seguindo em parte o erro do naturalismo ou
cientificismo metodológico (a imposição do método indutivo das ciências
da natureza às ciências sociais) e em parte o modelo da previsão científica
(por exemplo, de um eclipse solar). Tal teoria pressupõe que a história é
regida por leis específicas, Segundo o historicismo, as principais funções
das ciências sociais são as seguintes:

1. Descobrir e compreender o significado e as leis que regem o


desenvolvimento histórico.

2. Predizer, à luz deste conhecimento, a futura evolução da humanidade.

3. Conferir uma base sólida à política e fornecer conselhos práticos


sobre as decisões políticas (A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, capítulo
I).

Segundo a concepção historicista, as ciências sociais estudam o


comportamento de conjuntos sociais (grupos, nações, classes, civilizações,
etc.), tal como a biologia estuda animais ou plantas; além disso, não
estabelece a distinção entre «previsão científica» e «profecias
incondicionais». Ora, as previsões científicas só se aplicam a sistemas
«isolados», «estacionários» e «recorrentes». E não é isso o que se passa na
história. (O Desenvolvimento do Conhecimento Científico).

RACIONALISMO CRÍTICO E LIBERDADE DE


PENSAMENTO
A liberdade de pensamento e a discussão livre são valores liberais
supremos e não precisam de qualquer justificação posterior, já que podem
ser justificados de forma pragmática com base no papel que
desempenham na procura da verdade.
A verdade não é manifesta e não é fácil de alcançar, pois a sua procura
exige pelo menos:
a) imaginação;
b) ensaio e erro;
c) a descoberta gradual dos nossos preconceitos através de a) e de b) e
da discussão crítica.
A tradição racionalista ocidental, que deriva dos Gregos, é a tradição
da discussão crítica, do exame e verificação de proposições ou teorias por
meio de tentativas para as refutar. Este método crítico racionalista não se
confunde com um método de comprovação, ou seja, com um método para
estabelecer definitivamente a verdade, e também não é um método que
assegura sempre a concordância. O seu valor reside antes no facto de que
os intervenientes numa discussão em certa medida mudam de opinião e
quando ela acaba ficam um pouco mais sábios.
É frequente afirmar-se que a discussão só e possível entre pessoas que
possuem uma linguagem comum e que aceitam suposições básicas
comuns. Ora, isso é um erro, pois basta ao interlocutor de uma discussão
ter disposição para aprender e um desejo genuíno de compreender o que
os outros querem dizer. Havendo esta disposição, a discussão será tanto
mais profícua quanto maior for a diferença dos pontos de partida dos
interlocutores. Deste modo, o valor de uma discussão depende em grande
parte da variedade de opiniões contrárias. Se não tivesse havido uma
Torre de Babel, seria preciso inventá-la. O liberal não sonha com uma
concordância perfeita das opiniões; deseja apenas a fecundação mútua
das opiniões e o consequente desenvolvimento das ideias. Mesmo quando
estamos a resolver um problema com muita satisfação, criamos novos
problemas dos quais talvez venhamos a discordar. Mas isso não é motivo
para preocupações.
Apesar de ser um assunto público, a opinião pública (o que quer que
isto signifique) não resulta da procura da verdade através da discussão
livre tradicional. A opinião pública não resulta da discussão científica,
embora possa julgar a ciência e sofrer influências dela.
No campo político, todavia, a tradição da discussão cria a tradição de
governar pela discussão e, como consequência, propicia o hábito de
escutar o ponto de vista dos outros, o desenvolvimento do sentido da
justiça e a predisposição para o compromisso.
Por conseguinte, a nossa esperança é que as tradições possam
substituir em grande parte aquilo que habitualmente se designa por
«opinião pública» e que assumam as funções que esta supostamente
cumpre, através das mudanças e desenvolvimentos sob a influência da
discussão crítica e em resposta aos desafios colocados pelos novos
problemas.
K. Popper, O Desenvolvimento do Conhecimento Científico.

b) Pelo contrário, o método das ciências sociais baseia-se no ensaio de


soluções possíveis para os problemas, prolongando criticamente o método
do ensaio e do erro. A sua tarefa principal consiste em «distinguir entre as
repercussões sociais inesperadas e as acções humanas intencionais» (O
Desenvolvimento do Conhecimento Científico). Deste modo, formula
«regras tecnológicas práticas» que indicam o que pode ou não ser feito
numa dada situação. Assim, a compreensão das consequências de acções
possíveis faz com que seja mais fácil optar por medidas de acção.
Relativamente a este aspecto, é muito importante a afirmação
popperiana do «dualismo de factos e decisões: os factos por si carecem de
significado e só o adquirem através das nossas decisões» (A Sociedade
Aberta e os seus Inimigos). A ciência não consegue deliberar ou orientar a
decisão ou disputa sobre fins. Não há lugar para um racionalismo
dogmático e a violência não é o caminho para obter ou impor decisões. Por
conseguinte, só se pode chegar à decisão por meio da argumentação
racional ou «atitude de racionabilidade», a qual não consta sequer dos
propósitos persuasórios da propaganda. No seu conflito com Adorno.
Popper referiu com clareza e precisão o espírito do seu racionalismo crítico:
«Nunca conseguiremos justificar racionalmente as nossas teorias. Mas (...)
mesmo que não possamos justificar racionalmente as nossas teorias, nem
sequer evidenciar a sua probabilidade, pelo menos podemos criticá-las
racionalmente. E podemos distinguir o que é melhor e o que é pior» (A Luta
do Positivismo na Sociologia Alemã).

2.1.4. O fracasso do positivismo

O positivismo esgotou-se definitivamente por si próprio, por causa da


dificuldade dos seus defensores em clarificar as suas teses fundamentais.
Relativamente à sua classificação geral dos enunciados, não conseguiram
delinear uma separação nítida entre os que são analíticos e os que são
sintéticos (o filósofo americano W. V. O. Quine foi o crítico mais brilhante
e ilustre desta distinção, com o seu célebre ensaio Dos Dogmas do
Empirismo, publicado em 1951). Como vimos já no capítulo anterior,
também não foram capazes de formular o princípio de verificação de um
modo completamente adequado e satisfatório.
A estas dificuldades internas somou-se ainda uma demolidora crítica
vinda do exterior, proveniente dos resultados da psicologia da forma
(Gestalt): não há percepções puras; em qualquer percepção há uma
mistura de observação e de teoria. Daí que os enunciados de observação
sejam tão falíveis quanto as teorias que os fundamentam.

A ACEITAÇÃO DOS ENUNCIADOS BÁSICOS


Quando submetemos uma teoria a contrastação, quer daí resulte a sua
corroborarão ou falsidade, esse processo tem de partir de um enunciado
básico que decidamos aceitar: a contrastação não leva a nenhum lado se
não chegarmos a uma decisão a este respeito e se não aceitarmos um
enunciado básico. Mas sob o ponto de vista lógico, a situação nunca
chega a obrigar-nos a fixarmo-nos neste enunciado básico em vez de
outro ou a abandonar por completo a contrastação. É por isso que
qualquer enunciado básico pode ser submetido a contrastação, utilizando-
se como pedra-de-toque qualquer dos enunciados básicos que possam ser
deduzidos dele por meio de uma teoria, quer seja a que está sendo
contrastada ou outra qualquer e um processo cujo final não deriva da sua
própria natureza. Assim, e no caso de a contrastação nos levar a algum
lado, só nos resta debruçarmo-nos sobre este ou aquele ponto e dizer que
estamos satisfeitos por agora.
K. Popper. A Lógica da Investigação Científica.

Por fim, há a acrescentar ainda que a lógica não se comportou como o


veículo apropriado para expressar os enunciados científicos e eliminar a
ambiguidade, e o resultado final foi uma perda substancial de confiança na
lógica e nos sentidos, isto é, foi a ruína da atitude neopositivista em relação
à ciência.

2.2. Historicismo ou irracionalismo?

2.2.1. Kühn e as revoluções científicas

O físico e historiador Thomas S. Kühn publicou em 1962 um ensaio


sobre a filosofia da ciência, intitulado A Estrutura das Revoluções
Científicas, que marcou o fim da era positivista. Um dos seus méritos foi
mostrar que, na verdade, a ciência e o seu desenvolvimento não se pautam
pelo positivismo.
Por um lado, a obra de Kühn desenvolve as ideias popperianas sobre a
importância das decisões da comunidade científica no desenvolvimento,
aceitação e refutação das teorias; por outro lado, assimila os resultados da
psicologia da forma: não há observação sem teoria, a teoria precede a
observação. Mas introduz ainda as seguintes ideias:

a) O avanço científico não é acumulativo


Nenhuma época conserva todas as «verdades» descobertas ao longo da
história, produzindo-se antes aquilo que Kühn designa por «revoluções»:
mudanças bruscas do modelo teórico e da concepção do mundo que se
mantiveram durante algum tempo.
– Kühn chama «paradigmas» (em sentido lato) a estas concepções do
mundo, as quais incluem teorias, metodologia da investigação científica,
técnicas e parafernália de experimentação, crenças gerais acerca do mundo,
conjuntos de problemas científicos e ideias sobre as soluções apropriadas
para eles, etc.
– A época dominada por um paradigma é denominada «período da
ciência normal». Durante estes períodos os cientistas têm uma visão clara
do mundo: essa visão corresponde ao paradigma (um exemplo de
paradigma seria a visão aristotélica; a divisão do Universo em duas regiões,
a sublunar e a celeste, cada qual com leis diferentes quanto ao
comportamento dos corpos. Outro exemplo seria a física de Newton: não há
diferença entre as duas regiões e ambas são regidas pelas mesmas leis).
O que caracteriza um período da ciência normal é a confiança absoluta
dos cientistas no seu paradigma. Nestas épocas, os cientistas dedicam-se à
resolução de problemas rotineiros conforme os ditames da sua teoria: é esta
que lhes dita quais as coisas problemáticas, que caminhos seguir para
chegar às soluções pertinentes e o que é que pode ser considerado solução.
– Uma revolução consiste na substituição de um paradigma por outro
incompatível com ele. As revoluções costumam originar uma mudança, não
só na teoria mas também na ontologia (que coisas existem no mundo), no
tipo de problemas que devem ser resolvidos e no que constitui ou não uma
solução. Além disso, serão excluídas da comunidade científica as pessoas
que trabalhavam no paradigma destronado que não conseguiram reciclar-se
nem adaptar-se ao novo paradigma.

b) A revolução não se produz por raciocínio lógico


Quando um paradigma é substituído por outro, não prevalece aquele que
tem razão, simplesmente porque nenhum dos oponentes a tem. Com efeito,
cada paradigma contém a sua própria escala de valores e por isso cada um
se perspectiva como o «melhor»; e não há qualquer instância de apelação
superior que venha decidir imparcialmente sobre qual é preferível.
A mudança de um paradigma por outro ocorre do seguinte modo: o
paradigma vigente começa a não saber dar resposta a certos problemas,
quer porque estes são mais numerosos, quer porque são muito conhecidos
ou por outras razões, e entre os cientistas começa então a propagar-se o
desânimo e a falta de confiança no paradigma. Estes períodos designam-se
por «crises».
Contudo, um período de crise (desconfiança no paradigma vigente e
emergência de um paradigma novo) não ocorre sempre que há anomalias,
pois qualquer paradigma tem sempre problemas por resolver, Não se
consegue explicar de maneira exclusivamente lógica os períodos de crise
nem as mudanças de paradigmas. Os argumentos racionais têm geralmente
pouca relevância na mudança de paradigmas, já que a decisão a favor deste
ou daquele depende em última instância da visão do mundo, crenças,
educação, gostos, influências, etc. Por isso, segundo Kühn, não é tanto à
lógica que cabe estudar a decisão de escolha de um paradigma, mas mais à
psicologia ou à sociologia.

c) A ciência não visa um fim pré-estabelecido


Se, como dissemos, ninguém tem razão quanto ao conflito entre
paradigmas, pode perguntar-se se tem sentido afirmar que a ciência avança
ou se se pode falar de progresso na história da ciência.
A resposta de Kühn é clara: não tem sentido afirmar que a ciência
progride, se por «progresso» se entender uma aproximação continua à
verdade. Isso não existe, o desenvolvimento da ciência não é teleológico.
Todavia, tem sentido falar de progresso numa visão retrospectiva: se se
olhar para a história da ciência, comprovar-se-á que cada vez dominamos
mais a natureza.
Por conseguinte, há progresso sempre que nos afastamos do ponto de
partida, e não porque nos aproximamos de um hipotético ponto de chegada.
A negação do progresso como aproximação à verdade levou a que
acusassem o pensamento de Kühn não só de relativismo mas também
(injustificadamente) de irracionalismo.

2.2.2. Lakatos: os programas de investigação

Imre Lakatos, um discípulo de Popper, serve-se das críticas de Kühn


para melhorar as ideias do seu mestre. Assim, já não fala em teorias
isoladas – como faziam Popper e os neopositivistas – mas de programas de
investigação.

a) Programas de Investigação e troca de teorias


Os programas de investigação podem ser encarados como cadeias de
teorias que se relacionam intimamente entre si do seguinte modo: cada
programa de investigação define-se por um conjunto de enunciados básicos
que se mantém inalterável nas teorias da cadeia; para além deste núcleo-
duro, cada teoria conta também com outros enunciados, que Lakatos
denomina cintura-de-protecção, que é o que muda de teoria para teoria
dentro do mesmo programa.

PARADIGMAS E CRISES
Suponhamos portanto que as crises são uma condição prévia e
necessária para que surjam novas teorias, e perguntemo-nos então como é
que os cientistas as encaram. Uma parte evidente e importante da resposta
radica em primeiro lugar naquilo que os cientistas nunca fazem, nem
sequer quando se confrontam com anomalias graves e prolongadas.
Mesmo quando começam a perder a sua fé e, por conseguinte, quando
tomam em consideração outras alternativas, não renunciam ao paradigma
que os conduziu à crise. Ou seja, não tratam as anomalias como exemplos
contrários, embora no vocabulário da filosofia da ciência sejam
precisamente isso (...); e assim, logo que uma teoria científica alcança o
estatuto de paradigma, ela só se torna inválida quando há um candidato
alternativo para ocupar o seu lugar. Até hoje, não se vislumbrou ainda
nenhum processo descoberto pelo estudo histórico do desenvolvimento
científico que seja parecido com o estereótipo meteorológico da
demonstração de falsificabilidade por meio da comparação directa com a
natureza.
Thomas S. Kühn, A Estrutura das Revoluções Científicas.

Suponha-se, por exemplo, que T1é uma teoria que pretende explicar
certos fenómenos físicos; devemos refutar T1se estivermos perante um facto
(um contra-exemplo) que contradiz as consequências de T1. Até aqui,
Popper tem toda a razão. Mas refutar T1não significa refutar todos e cada
um dos enunciados de T1, mas apenas alguns, aqueles que são responsáveis
pelo fracasso da teoria.
Para sabermos a que enunciados devemos renunciar, os programas de
investigação lançam mão de uma heurística negativa, que consiste
basicamente na proibição de eliminar ou modificar o núcleo-duro do
programa; e também a uma heurística positiva, que fornece uma série de
indicações sobre os enunciados que se devem sacrificar primeiro, sobre os
problemas que devem ser resolvidos em primeiro lugar e qual o sentido de
desenvolvimento do programa. A heurística positiva diz-nos o que devemos
modificar e também em que direcção devem produzir-se as mudanças.
Para Lakatos, tanto Kühn como Popper têm parte da razão no que se
refere aos contra-exemplos: segundo Kühn, nenhum contra-exemplo é
suficiente para acabar com um paradigma, dado que todos os paradigmas
padecem de contra-exemplos. E assim acontece com efeito, se por
«paradigma» entendermos o núcleo de um programa; segundo Popper, a
aparição de um contra-exemplo (falsificabilidade) pressupõe a refutação da
teoria. E assim é com efeito, se por «teoria» entendermos as hipóteses
pertencentes à cintura-de-protecção.
Retomemos o caso de T1. Os contra-exemplos encontrados obrigar-nos-
ão a abandonar algumas hipóteses da cintura-de-protecção, que serão
substituídas por outras que em princípio parecem capazes de solucionar o
problema e se ajustam às directrizes da heurística positiva. Estas mudanças
farão com que T1se converta em T2com o mesmo núcleo básico da
antecessora T1.
Por sua vez, presumivelmente T2terá problemas, que deverão ser
neutralizados por meio de mudanças na sua cintura-de-protecção. Estas
mudanças darão lugar a T3e assim sucessivamente. A sucessão de T1, T2,
T3, etc., é o programa da investigação, um programa que pode sobreviver
indefinidamente se os seus defensores forem tão rápidos e afortunados que
de vez em quando consigam fazer ajustes com êxito, ou seja, que consigam
predizer algo acertadamente. Não é preciso mais nada para manter um
programa vivo. Basta que as hipóteses introduzidas não sejam ad hoc, que
não contradigam o núcleo e que tenham êxito intermitentemente.

b) Lakatos e Kühn
Num certo sentido, os programas de Lakatos parecem-se com os
paradigmas de Kühn: nem uns nem outros são falsificabilizáveis. Nenhuma
dificuldade empírica consegue acabar com um programa nem com um
paradigma: só morrem quando os seus defensores perdem a confiança neles.
Kühn e Lakatos também partilham a mesma opinião sobre a ideia de
progresso: os paradigmas – ou programas – rivais não podem ser
comparados em sentido estrito. Não ganha o melhor, mas o que ganha
converte-se automaticamente no melhor. Em conclusão, há progresso para
ambos desde a origem, mas não há progresso com vista a uma determinada
meta.
Os dois pensadores divergem no entanto, sobretudo porque os
paradigmas de Kühn são quase «visões do mundo» que não podem conviver
pacificamente, ao passo que os programas de Lakatos são algo mais restrito
(são sistemas de teorias acerca de determinado domínio) e pode haver
coexistência entre dois ou mais programas que tratem das mesmas questões
(pode haver escolas diferentes).

2.2.3. Feyerabend: anarquismo epistemológico

O relativismo que se respira nas teses de Kühn e de Lakatos chega às


suas últimas consequências com Paul Feyerabend no que diz respeito à
impossibilidade de julgar programas ou paradigmas do exterior.

VALE TUDO
Deste modo, é óbvio que a ideia de um método fixo, ou a ideia de uma
teoria fixa da racionalidade, se baseia numa concepção excessivamente
ingénua do homem e do seu âmbito social. Aqueles que têm em
consideração o rico material que a história proporciona, e não tentam
empobrecê-lo para satisfazer os seus instintos mais baixos ou o seu desejo
de segurança intelectual sob o pretexto de clareza, precisão,
«objectividade» e «verdade», a essas pessoas parecerá que, em qualquer
circunstância ou etapa do desenvolvimento humano, só se pode defender
um princípio. Refiro-me ao princípio do vale tudo.
P. Feyerabend, Tratado Contra o Método.

Feyerabend comungou inicialmente do positivismo e das doutrinas de


Popper, mas logo divergiu para um relativismo extremo que é conhecido
como anarquismo epistemológico A sua obra Tratado Contra o Método
(1975) leva até ao limite a ideia de Lakatos e de Kühn de que nenhum ponto
de vista é intrinsecamente superior aos seus rivais, porque não há sistemas
de valores universais para se poder estabelecer uma comparação.
Tornou-se famosa a expressão «vale tudo», contida na obra citada.
Segundo Feyerabend, as grandes teorias científicas saíram vitoriosas porque
se impuseram às suas rivais por meio de propaganda intencionada e de
equívocos. Copérnico e Galileu foram grandes mentirosos, entre outros.
Mas Feyerabend considera que estes métodos, que aliás foram muito
frequentes, são tão válidos como quaisquer outros. Deve-se à propaganda o
facto de a ciência ocidental ter vencido a bruxaria e o mito, embora isto não
signifique que este triunfo dependa de motivos objectivos.
O interesse das teses de Feyerabend é mostrar a outra face da história da
ciência e revelar que tudo quanto é levado ao extremo derive do
relativismo. Com efeito, esta posição epistemológica torna-se insustentável
porque não deixou seguidores.

2.3. A concepção estrutural das teorias

Depois dos trabalhos de Kühn e Feyerabend, poderia parecer que na


história da ciência só houve lugar para a razão e que é impossível oferecer
uma visão sistemática das teorias científicas e do seu desenvolvimento. Mas
actualmente uma nova concepção das teorias científicas tem contribuído
para devolver a confiança na racionalidade e na lógica no âmbito da
filosofia da ciência.
A origem desta nova concepção deve-se ao trabalho A Estrutura Lógica
da Física Matemática, de 1971, da autoria do americano J. C. Sneed; para
além de Sneed, os seus principais defensores são W. Stegmuller e C. U.
Moulines.
Ainda não se conhece com exactidão o valor desta nova perspectiva,
mas as suas propostas são prometedoras: desenvolver o nosso conhecimento
da ciência axiomatizando teorias através do uso da teoria de conjuntos, sem
perder de vista os resultados de Kühn, que os estruturalistas consideram um
extraordinário historiador da ciência (talvez o único mérito que lhe
reconheçam).
A hipótese central dos estruturalistas é que as teorias não são conjuntos
de enunciados, como acreditavam os positivistas e Popper (representantes
daquilo que eles chamam «concepção enunciativa da ciência»). As teorias
científicas seriam antes estruturas abstractas que não são verdadeiras nem
falsas em si mesmas (por exemplo, o predicado «ser uma mecânica clássica
das partículas» define-se como uma estrutura abstracta mediante a teoria de
conjuntos).
Se as teorias não são enunciados e se só os enunciados podem ser
verdadeiros ou falsos, então não se pode falar da verdade ou
falsificabilidade das teorias que a priori não podem ser verificadas nem
falsificabilizadas. Os estruturalistas dão portanto razão a Kühn e a Lakatos,
no sentido de que nenhum facto pode falsificabilizar uma teoria, ao mesmo
tempo que eliminam a aparente irracionalidade de tal afirmação.
Embora a perspectiva estrutural, também denominada «concepção não-
enunciativa das teorias», tenha tido êxito quando se procedeu à
axiomatização das teorias físicas, talvez ainda seja cedo para entender o seu
valor como nova filosofia da ciência.
21. A CRISE DA CONSCIÊNCIA: NOVO
CONCEITO DE RAZÃO

INTRODUÇÃO

Na apresentação do capítulo precedente indicamos já que o pensamento


filosófico actual seria estudado em dois núcleos temáticos. Um deles foi já
abordado no capítulo anterior: o conceito de natureza à luz da física
moderna, e as diferentes teorias da ciência, conferindo uma atenção quase
exclusiva às chamadas ciências da natureza.
O outro núcleo temático é estudado neste capítulo: o pensamento
filosófico que surgiu em relação com as diversas ciências humanas. Na sua
significação fundamental, esta filosofia pode ser considerada uma análise
crítica, e ao mesmo tempo como que um balanço, das ideias centrais do
pensamento moderno e do projecto posto em marcha pelo Iluminismo.
Algumas das chamadas ciências humanas, como a psicanálise, a
linguística e a história, juntamente com a experiência de fenómenos
sociopolíticos da sociedade industrial avançada, propiciaram um
pensamento – sobretudo enraizado em Hegel, Marx e na fenomenologia
hermenêutica de Heidegger – que se esforça por desvendar um novo
conceito de razão, que sirva de orientação no estado actual da sociedade e
da cultura.

Este capítulo está pois estruturado da seguinte maneira:


1. Freud e a interpretação da cultura.
2. O estruturalismo e a crise do humanismo.
3. Razão e sociedade na Escola de Frankfurt.
4. Hermenêutica e crítica das ideologias.
1. FREUD E A INTERPRETAÇÃO DA
CULTURA

1.1. Psicanálise e estudo dos fenómenos sociais

1.1.1. Freud, Marx e Nietzsche

A psicanálise constitui um dos contributos mais importantes do nosso


século para o estudo do ser humano e foi fundada por Freud como método
para curar determinadas perturbações psíquicas.
A busca de um método adequado para curar as neuroses, juntamente
com o estudo da sintomatologia e etiologia das mesmas, levou Freud à
formulação de uma teoria completa acerca da estrutura dinâmica da vida
psíquica. O próprio Freud apercebeu-se de que seria interessante aplicar os
conceitos básicos da psicanálise ao esclarecimento de fenómenos colectivos
como a religião, a cultura e a sociedade, e acabou por dedicar a estes uma
atenção especial através de ensaios como Totem e Tabu (1912), O Futuro
de uma Ilusão (1927) e O Mal-Estar da Civilização (1930), entre outros.
Do ponto de vista do seu contributo para a compreensão do ser humano,
Freud tem algo em comum com Marx e com Nietzsche. Com efeito, os três
podem ser considerados filósofos do desmascaramento, pois pretendem
tornar manifestos os condicionamentos ocultos que determinam múltiplos
comportamentos e formações ao nível da consciência: a vontade de poder
em Nietzsche, a infra-estrura económica em Marx, os impulsos e
mecanismos inconscientes na psicanálise.
Freud não estudou profundamente o pensamento de Nietzsche nem o
marxismo, embora haja na sua obra referências a ambos. Refere-se a
Nietzsche como «um filósofo cujos presságios e opiniões coincidem com
frequência, de um modo surpreendente, com os laboriosos resultados da
psicanálise» (Autobiografia).
Quanto ao marxismo, a sua atitude é basicamente céptica. Com efeito,
Freud acusa o marxismo de desconhecer a natureza humana, o que faz dele
uma teoria excessivamente ingénua e optimista: «Também eu considero que
uma modificação objectiva das relações do homem com a propriedade seria
neste sentido mais eficaz do que qualquer preceito ético; mas os socialistas
falham em tão justo reconhecimento ao desvalorizá-lo na sua realização e
ao incorrer num novo desconhecimento idealista da natureza humana.» (O
Mal-Estar da Civilização).
A mútua incompreensão entre marxismo e psicanálise deu
posteriormente lugar a uma aproximação e diálogo entre as duas correntes
de pensamento.

OS FILÓSOFOS DA SUSPEITA
Para quem se formou na fenomenologia, na filosofia existencial, na
renovação dos estudos hegelianos, e nas investigações de tendência
linguística, o encontro com a psicanálise constitui um abanão
considerável. O que é posto em questão não é este ou aquele tema de
reflexão filosófica mas sim todo o conjunto do projecto filosófico. Para o
filósofo contemporâneo, Freud, Nietzsche e Marx apresentam-se-lhe do
mesmo modo: os três erguem-se diante dele como os protagonistas da
suspeita, como aqueles que arrancam as máscaras. Nasceu um problema
novo: o da mentira da consciência, o da consciência como mentira. Este
problema não pode figurar como um problema particular no meio de
outros, pois o que é posto em questão de maneira geral e radical é aquilo
que, a nós, bons fenomenólogos, nos aparece como o campo, o
fundamento e a própria origem de toda a significação: refiro-me à
consciência.
P. Ricoeur, Hermenêutica e Psicanálise.

1.1.2. O individual e o social

É necessário pois distinguir, na obra de Freud, dois planos ou níveis de


investigação, mesmo quando as fronteiras entre ambos não sejam fáceis de
traçar: por um lado, temos a sua investigação sobre as neuroses e o sistema
teórico correspondente, plano que se pode considerar como investigação
científica, pelo menos na medida em que se apoiou constantemente na
prática clínica e nos seus resultados; por outro, temos a sua especulação
filosófica acerca da sociedade e da cultura.
A validade desta última é notoriamente questionável em múltiplos
aspectos e a própria atitude de Freud perante ela é realmente ambivalente.
Muitas vezes julga-a com dureza, insistindo em que as suas especulações
acerca da religião, da cultura e da sociedade não passam disso: de
especulações. Tal atitude negativa perante a sua própria especulação deve-
se pelo menos em parte ao seu interesse em não prejudicar a imagem da
psicanálise: daí o seu empenho em separar taxativamente da psicanálise
verdadeira e racional a sua especulação filosófica, incerta e imaginativa. E
no entanto, Freud confessou em muitas ocasiões, desde a juventude, que a
sua verdadeira vocação e desejo era a filosofia e não a medicina. (Cf. carta
a W. Fliess, em 1896, Epistolário.) Embora deva distinguir-se a psicanálise
da teoria freudiana da cultura, esta última é ininteligível sem a primeira.
Com efeito, nela se transpõem constantemente os esquemas e conceitos
correspondentes ao psiquismo individual, aplicando-os às comunidades e
aos fenómenos culturais. As estruturas sociais são interpretadas em analogia
com as neuroses individuais: assim, a religião é descrita e analisada a partir
do modelo das neuroses obsessivas e a filosofia acaba por ser equiparada a
um delírio paranóico.
Além disso, é oportuno assinalar que Freud não é o primeiro a utilizar o
método da analogia entre o individual e o social. Recorde-se, como
exemplo esclarecedor, a teoria platónica da justiça, baseada no paralelismo
entre as partes da alma individual (concupiscível, irascível, racional) e as
classes ou grupos integrantes de uma sociedade (trabalhadores, guerreiros,
governantes).

1.2. Conceitos básicos da análise freudiana

1.2.1. Teoria dos instintos

Entre os conceitos de tipo dinâmico utilizados por Freud, o mais


importante é sem dúvida o de instinto. Todo o instinto se caracteriza por
possuir um objectivo – que não é outro senão a sua própria satisfação e a
consequente descarga de energia acumulada – e um objecto relativamente
ao qual possa cumprir tal intenção.
O não cumprimento do seu objectivo, isto é, a falta de satisfação
instintiva (infelizmente a situação mais comum) produz uma frustração,
que está relacionada com a angústia, com os mecanismos de defesa, com
transformações e desvios dos instintos e, definitivamente, com a génese de
múltiplas pertubações psíquicas. (De início Freud pensou que a frustação
produzia angústia, mas posteriormente chegou a uma conclusão oposta: é a
angústia que impede a satisfação dos instintos e, por isso, que produz a
frustação.)

EROS E THANATOS
Foi com base em reflexões teóricas apoiadas na biologia que
supusemos a existência de um instinto de morte, cuja missão é fazer com
que o orgânico animado regresse ao estado inanimado, em contraposição
com o eros, cujo fim é complicar a vida e conservá-la assim, por meio de
uma síntese cada vez mais ampla da sua substância viva:dividida em
particular. Estes instintos pautam-se por uma conduta muito conservadora
e tendem à reconstituição de um estado perturbado pela génese da vida,
génese essa que seria a causa da continuação da vida e da tendência para
a morte. Por sua vez, a vida seria um combate e uma transacção entre as
duas tendências. Por conseguinte, a questão da origem da vida seria de
natureza cosmológica, e a questão relativa ao objecto e fim da vida
receberá uma resposta dualista.
S. Freud, O Ego e o Id.

Freud insistiu sempre numa concepção dualista dos instintos. Distinguiu


a princípio dois, o sexual e o de conservação, embora dedicasse a sua
atenção exclusivamente ao primeiro. A escassa atenção concedida ao
instinto de conservação provém de que, no entender de Freud, este instinto
não pode dar lugar a perturbações neuróticas, pois não pode ser ignorado
nem deixar de ser atendido.
Sem abandonar uma concepção dualista da vida instintiva, Freud alterou
posteriormente o esquema, considerando como primários o instinto sexual
(eros) e o instinto de autodestruição, de morte (thanatos).
Esta transformação da teoria foi uma consequência do estudo da
agressividade e das neuroses traumáticas. Na teoria primitiva dos instintos,
a agressividade explicava-se em função da sexualidade na «fase anal» e a
agressividade contra si próprio (masoquismo) explicava-se como uma
inversão do sadismo. A partir da sua segunda formulação, a explicação é a
oposta: a agressividade ou agressão contra os outros é uma inversão da
agressividade contra si próprio. A agressividade passa assim a primeiro
plano, como instinto primário, o que terá importantes repercussões nas
considerações freudianas acerca da cultura e da sociedade.

1.2.2. O complexo de Édipo


As investigações levadas a cabo relativamente ao instinto sexual
induziram Freud a estudar a sexualidade infantil e o seu desenvolvimento,
distinguindo nele três fases sucessivas: oral, anal e genital.

Sigmund Freud
Fundador da psicanálise, nasceu em 1856 em Freiberg, Morávia (actualmente República
Checa). A sua família transferiu-se muito cedo para Viena, em cuja Universidade Freud estudou
medicina, especializando-se em neurologia. Os seus interesses orientaram-se rapidamente para
os aspectos psicológicos da neurologia. Numa sociedade puritana e hipócrita, a decisão com que
se embrenhou nos problemas da sexualidade, a descoberta de conflitos de tipo sexual sob
sintomas e condutas aparentemente inocentes, a sua interpretação dos sonhos e a afirmação de
que as crianças desenvolvem uma intensa vida sexual acarretaram-lhe a repulsa e o isolamento
por parte da sociedade bem-pensante. Isso não foi obstáculo ao crescimento do movimento
psicanalítico, em cujo seio se produziram a partir de 1911 cisões como a de A. Adler e C. Jung,
entre outros. Enquanto a sua obra atingia renome e reconhecimento internacional, teve de passar
os últimos dias da sua vida exilado em Londres, após a ocupação da Áustria pelos nazis, que
assassinaram quatro das suas filhas. A mais nova, Anna, chegou a ser uma psicanalista notável.
Freud morreu de cancro em 1939.
As suas obras mais notáveis são: Estados sobre a Histeria (1895), escrita em colaboração
com J. Breuer; A Interpretação dos Sonhos (1899); Três Ensaias sobre a Sexualidade (1901-
1905); O Ego e o Id (1923), etc. Aplicou os conceitos da psicanálise ao estudo de fenómenos
sociais em ensaios como Totem e Tabu (1913); O Futuro de uma Ilusão (1927) e O Mal-Estar
da Civilização (1930).

O desenvolvimento da sexualidade infantil culmina no complexo de


Édipo e no posterior período de latência. A situação edípica corresponde ao
momento em que a mãe da criança aparece como objecto libidinal e o pai
como rival, de modo que a criança não pode vir a satisfazer o seu desejo,
nem pode sequer considerá-lo inocente. Esta situação caracteriza-se por
uma atitude ambivalente perante o pai; amor e ódio, desejo de matá-lo e
medo de ser castigado por ele.
Freud considerou sempre – e sempre com maior convicção – que o
complexo de Édipo é um momento necessário e fundamental no
desenvolvimento do indivíduo humano. A imagem do pai e a ambivalência
dos sentimentos perante si próprio constituirão uma peça essencial nas
explicações freudianas acerca da sociedade e da religião.
1.2.3. Esquema do aparelho psíquico

Para explicar os fenómenos psíquicos na sua totalidade, Freud propôs


um modelo estrutural-topográfico do aparelho psíquico, distinguindo nele
três elementos: o id, o ego e o superego.
O id constitui a parte mais antiga do psiquismo e inclui tudo o que é
hereditário, especialmente os instintos. O ego surge a partir do id sob a
influência da realidade exterior. A tarefa fundamental do ego é a
autoconservação: «aspira a substituir o princípio do prazer, que reina sem
restrições no id, pelo princípio de realidade. A percepção é para o ego o que
o id é para o instinto. O ego representa o que poderíamos chamar a razão ou
reflexão, em oposição ao id, que contém as paixões» (O Ego e o Id).
O crescimento, finalmente, dá lugar à formação de uma terceira
instância, o superego, que constitui uma instância moral (ideias e
proibições) procedente da interiorização da imagem dos progenitores:
«quando crianças, conhecemos, admirámos e tememos tais seres elevados e
imediatamente os acolhemos em nós mesmos» (ibid.).
Este esquema torna manifesto a precária e conflituosa situação em que o
ego se encontra: com efeito, encontra-se permanentemente acossado pelas
solicitações imperiosas do id, pelas imposições iniludíveis da realidade e
pelas exigências morais excessivas do superego.

1.3. A religião e a origem da sociedade

Para além de numerosas referências em várias obras, Freud dedicou


expressamente três ensaios ao tema da religião: Actos Obsessivos e Práticas
Religiosas (1907), Totem e Tabu (1912) e O Futuro de uma Ilusão (1927).

1.3.1. Religião e tendências anti-sociais


No primeiro dos trabalhos citados, Freud põe em destaque a enorme
semelhança entre as práticas religiosas estabelecidas e o comportamento
típico das neuroses obsessivas. Este paralelismo mostra-se tanto na angústia
que acompanha as duas como na precisão meticulosa com que os rituais
religiosos e os actos obsessivos são realizados.
O importante deste paralelismo não é no entanto a semelhança externa
no comportamento, mas o facto de, no entender de Freud, uma e outra
corresponderem às mesmas necessidades: supressão das tendências egoístas
e anti-sociais.

1.3.2. Religião e desamparo infantil

Juntamente com esta caracterização da religião, na obra de Freud repete-


se constantemente a vinculação daquela com o sentimento de desamparo
infantil, o que a relaciona directamente com a imagem do pai. «A
psicanálise revelou-nos uma íntima conexão entre o complexo do pai e a
crença em Deus, e mostrou-nos que o Deus pessoal é, psicologicamente,
apenas a superação do pai (...) A religiosidade refere-se, biologicamente, à
impotência e à necessidade de protecção da criança durante longos anos.»
(Psicanálise da Arte.)
Este sentimento de impotência não só se conserva como se reanima sem
cessar ao longo da vida: «Quanto às necessidades religiosas, considero
irrefutável a sua derivação do desamparo infantil e da nostalgia pelo pai que
aquele suscita, tanto mais que este sentimento não se mantém simplesmente
desde a infância mas é reanimado sem cessar pela angústia perante a
omnipotência do destino.» (O Mal-Estar da Civilização.)

1.3.3. Religião, moral e sociedade

Os dois aspectos da religião tratados nos dois pontos anteriores são


amplamente retomados na obra Totem e Tabu. Neste trabalho, Freud tenta
apresentar uma explicação compreensiva da origem da religião, da moral e
da sociedade,
Freud parte da ambivalência dos sentimentos do clã relativamente ao
animal totémico: por um lado, sentimentos positivos, reflectidos no
respeito, homenagem, identificação com ele (utilização de peles e signos
externos do totem), por outro, agressividade contra ele reflectida no
cerimonial de o matar e comer (sendo este último acto igualmente
ambivalente na medida em que revela simultaneamente a intenção de o
destruir e de se identificar, com ele). Esta ambivalência dos sentimentos a
respeito do animal totémico é referida por Freud na situação edípica e na
atitude da criança relativamente ao pai.
Esta suposição – juntamente com a vinculação cultural existente entre
totemismo e proibições, bem como com a suposição darwiniana de que os
homens primitivos viviam em bandos – levou Freud à seguinte explicação:
originalmente havia bandos nos quais o pai, autoritário e exclusivista,
monopolizava as fêmeas; os filhos juntaram-se e assassinaram o pai; uma
vez consumado o parricídio, os filhos foram tomados do sentimento de
culpabilidade e do desejo de expiação. O totem veio assim ocupar o lugar
da imagem do pai assassinado. Entre os filhos teve lugar um pacto de
renúncia à agressão mútua e instituiu-se a proibição do incesto. «O que o
pai impedira anteriormente, pelo simples facto da sua experiência,
proibiram-no de imediato a si mesmos os filhos, em virtude da “obediência
retrospectiva” característica de uma situação psíquica que a psicanálise nos
tornou familiar. Desautorizaram o seu acto, proibindo a morte do totem,
substituição do pai, e renunciaram a recolher os frutos do seu crime,
recusando o contacto sexual com as mulheres que lhes ficavam acessíveis.
É deste modo que a consciência de culpa do filho engendrou os dois tabus
fundamentais do totemismo, os quais iriam assim coincidir com os dois
desejos reprimidos do complexo de Édipo. Aquele que infringia estes tabus
tornava-se culpável dos dois únicos crimes que preocupavam a sociedade
primitiva.» (Totem e Tabu.)
Esta explicação nunca foi abandonada por Freud; foi sim
constantemente reafirmada ao longo da sua vida. Sentiu-se sem dúvida
profundamente satisfeito por fazer convergir no complexo de Édipo as
origens da religião, da moral e da sociedade.

SUPEREGO, MORAL E AUTO-AGRESSÃO


Na perspectiva da restrição dos instintos, isto é, da moralidade,
podemos afirmar o seguinte: o id é totalmente amoral; o ego esforça-se
por ser moral; e o superego pode ser «hipermoral» e tornar-se então tão
cruel quanto o id. Singularmente, quanto mais o homem limita a sua
agressão em relação ao exterior, mais severo e agressivo se torna no seu
ideal de ego, como se deslocasse a agressão e a voltasse contra o ego. A
moral geral e normal tem já um carácter severamente restritivo e
cruelmente proibitivo, do qual procede a concepção de um ser superior
que castiga impecavelmente.
Torna-se imperioso introduzir aqui uma nova hipótese a fim de
continuarmos a explicar estas circunstâncias. O superego nasceu de uma
identificação com o modelo paterno, e cada uma destas identificações tem
um carácter de dessexualização e até de sublimação. Ora, parece que essa
transformação acarreta sempre uma dissociação de instintos Uma vez
realizada a sublimação, a componente erótica fica despojada da energia
necessária para encadear toda a destruição agregada, e esta liberta-se em
qualidade de tendência à agressão e à destruição. Desta dissociação, o
ideal extrairia o dever imperativo, rigoroso e cruel.
S. Freud, O Ego e Id

1.3.4. A religião como ilusão

Em O Futuro de uma Ilusão, Freud mostra perante a religião uma


atitude diferente. Nesta obra desaparece, em grande medida, o interesse
apaixonado em descobrir não só as motivações profundas, mas ainda o
significado histórico-antropológico da religião, dando lugar a uma atitude
muito próxima dos ideais de razão e progresso típicos do Iluminismo.
A religião é caracterizada aqui como ilusão. O termo «ilusão» adquire
um significado técnico e alude não apenas a que certas representações são
erradas, como a que têm «o seu ponto de partida em desejos humanos dos
quais derivam» (O Futuro de uma Ilusão).
Sendo ilusão, a religião deveria ser abandonada, embora Freud
reconheça resignadamente que a maior parte da humanidade não está
preparada para prescindir dela.

1.4. Civilização e infelicidade em Freud

Em O Mal-Estar da Civilização. Freud analisa a natureza desta e das


suas consequências para o indivíduo. Já em Totem e Tabu especificava que
a vida em comum pressupõe uma notável renúncia às tendências sexuais e
hostis. Em O Mal-Estar da Civilização insiste neste ponto, dando mais
importância, curiosamente, à renúncia e à agressividade do que às renúncias
sexuais.
O caminho seguido pela civilização para impor esta renúncia consiste
em dirigir para si mesma a agressividade por meio da consciência moral, do
superego exigente e cruel: «Chamamos sentimento de culpa à tensão criada
entre o severo superego e o ego subordinado a ele, e esse sentimento
manifesta-se sob a forma de necessidade de castigo. Por conseguinte, a
civilização domina a perigosa inclinação agressiva do indivíduo,
debilitando-o, desarmando-o e vigiando-o através de uma instância alojada
no seu interior, como uma guarnição militar na cidade conquistada.» (O
Mal-Estar da Civilização).
Mais adiante, Freud põe em relevo que «o preço pago pelo progresso da
civilização reside na perda de felicidade devido ao aumento do sentimento
de culpa» (ibid.).
Esta situação é «fatal» e substancialmente inevitável. Talvez fosse
possível minorar a situação até certo ponto diminuindo as exigências da
civilização (do superego severo) e introduzindo certos reajustamentos
(Freud pensa na possibilidade futura de um tratamento psicanalítico da
colectividade), mas a civilização tornará o homem sempre infeliz. O
pessimismo impõe-se, uma vez aceite a impossibilidade de eliminar
qualquer das três instâncias do aparelho psíquico: id, ego e superego.
As consequências sociopolíticas que é possível extrair desta estruturação
do psiquismo são muito diferentes, segundo a instância que se considere
que deve ser reforçada ou debilitada. Se o juízo negativo recai sobre o id
colocámo-nos ao lado do totalitarismo e da repressão. Se, pelo contrário, o
juízo negativo recai sobre o superego, a atitude que se pretenderá impor
será do tipo libertário e anarquista.
2. O ESTRUTURALISMO E A CRISE DO
HUMANISMO

2.1. Os diferentes estruturalismos

Sob a designação de «estruturalismo» inclui-se um conjunto de autores e


a sua respectiva produção teórica, que versa sobre o que costuma designar-
se por «ciências humanas», o seu estatuto epistemológico e as implicações
ou consequências («filosóficas») que as referidas ciências implicam.
«Ciências humanas» é o nome mais moderno e adequado para designar
aquilo que Dilthey denominou «ciências do espírito» em contraposição às
ciências da natureza, embora as «ciências humanas» abarquem além disso
as ciências sociais plenamente constituídas e desenvolvidas
«cientificamente» no nosso século, como por exemplo a linguística, a
antropologia social, a etnografia ou a psicanálise.
O estruturalismo é um método, uma metodologia com a qual se leva a
cabo o estudo das ciências humanas e que tem como ponto de partida e
como modelo os princípios gerais estabelecidos por Ferdinand de
Saussure e desenvolvidos na fonologia da Escola de Praga (Trubetzkoy e
Jakobson). O estruturalismo tem, pois, uma dimensão epistemológica.
Mas o estruturalismo não se ficou por uma mera «epistemologia», antes
produziu uma série de teses ou doutrinas de indiscutível carácter filosófico
acerca do homem, da história, da civilização e cultura, das relações e
diferenças entre cultura e natureza, etc. Neste sentido, o estruturalismo é
uma doutrina, uma filosofia. E enquanto tal, veio a interpretar, quer o
desejasse expressamente quer não, um conjunto de problemas de que a
filosofia moderna se tinha vindo a ocupar.
A diversidade de autores englobados sob a denominação de
«estruturalismo» está em estreita relação com a diversidade de ciências
humanas às quais se aplicou a metodologia estrutural, com base na
linguística estrutural que lhe serviu de modelo.
Assim, pode falar-se do estruturalismo etnológico de Lévi-Strauss,
que aplica o método estrutural à etnografia e à antropologia social; do
estruturalismo psicanalítico de Jacques Lacan, numa releitura da obra de
Freud; do estruturalismo marxista de Louis Althusser que reinterpreta o
marxismo não tanto como um humanismo (recorde-se o que se disse sobre
o assunto no capítulo 15), mas como uma teoria científica acerca da história
e da infra-estrutura económica como princípio determinativo e explicativo
em última instância; finalmente, o estruturalismo epistémico de Michel
Foucault que ao longo de diferentes épocas históricas (Renascimento,
época clássica e época moderna), estuda a disposição e estruturação do
saber ou «episteme» a partir das três positividades, como ele as denominou:
trabalho, vida e linguagem.
No seu estudo, Foucault tenta estabelecer a «ordem» e «relação» entre as
palavras e as coisas, assim como o princípio (arqueologia) que configura tal
ordem e relação (o título da sua obra quiçá mais brilhante reza assim: As
Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas) e
procura mostrar como nesta ordem epistémica pode surgir a preponderância
e relevância do homem e como numa nova disposição do saber – em fase de
cumprimento e consumação – desaparecerá essa relevância significativa do
homem: em tal caso, «pode apostar-se que o homem se desvaneceria, como
à beira do mar um rosto de areia» (M. Foucault, As Palavras e as Coisas,
Lisboa, Edições 70, 2014, p. 497).
Ante a impossibilidade de indicar, ainda que resumidamente, as ideias
fundamentais de cada um destes «estruturalismos», vamos considerar no
essencial o pensamento de Lévi-Strauss, no qual é possível reconhecer as
teses gerais e o «espírito estruturalista» e que pode considerar-se como
modelo.

2.2. Pressupostos do estruturalismo

Para uma adequada compreensão do estruturalismo de Lévi-Strauss, é


preciso ter em conta pelo menos estes três pontos: o carácter principal da
subjectividade e do «cogito» com que se inicia o pensamento moderno; a
relação da obra de Lévi-Strauss com o que ele chamou «os meus três
amantes» (Freud, Marx e a geologia); o modelo linguístico estrutural da
fonologia.

A LÍNGUA COMO MODELO


É preciso colocarmo-nos em primeiro lugar no terreno da língua e
tomá-la como norma para todas as outras manifestações da linguagem.
Com efeito, e no meio de tantas dualidades, só a língua parece ser
susceptível de uma definição autónoma, só ela fornece um ponto de apoio
satisfatório para o espírito.
Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem;
é antes uma parte determinada, essencial, da linguagem. É ao mesmo
tempo um produto social da faculdade da fala e um conjunto de
convenções necessárias, adoptadas pelo corpo social para permitir aos
indivíduos o exercício desta faculdade. No seu todo, a linguagem é
multiforme e heteróclita; estende-se simultaneamente sobre vários
domínios: físicos, fisiológicos e psíquicos, individuais e sociais; não é
classificável em nenhuma categoria de factos humanos, pois não sabemos
onde está a sua unidade.
A língua, pelo contrário, é um todo em si e um princípio de
classificação. Dando-lhe o primeiro lugar entre os factos da linguagem,
introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a
qualquer outra classificação (...).
Separando a língua da fala (langue e parole), separamos de uma só
vez: 1.o) o que é social do que é individual; 2.o) o que é essencial do que
é acessório e mais ou menos acidental.
A língua não é uma função do sujeito falante, é o produto que o indivíduo
regista passivamente; ela nunca supõe premeditação e a reflexão só
intervém na actividade de classificação de que falaremos mais adiante.
Pelo contrário, a fala é um acto individual da vontade e da
inteligência, no qual convém distinguir: 1.o) as combinações pelas quais o
sujeito falante utiliza o código da língua em ordem a expressar o seu
pensamento pessoal; 2.o) o mecanismo psicofísico que lhe permite
exteriorizar essas combinações.
Saussure, Curso de Linguística Geral.

2.2.1. A principalidade da consciência

Conforme já tivemos ocasião de ver, a filosofia moderna inicia-se com o


estabelecimento da subjectividade («cogito» cartesiano, «mens» leibniziana,
natureza humana esclarecida, consciência ou eu transcendental kantiano)
como princípio que estabelece, constitui e determina, e em qualquer caso
explica, o sentido, a ordem e a hierarquia de toda a realidade.
A consciência (ou o eu da subjectividade humana), a consciência
racional, constitui-se como princípio comum, e neste sentido a filosofia
moderna é tácita ou expressamente uma filosofia transcendental,
entendendo este termo na acepção genuína que Kant lhe atribuiu. A
fenomenologia transcendental de Husserl e o seu carácter último de
«egologia pura» pode ser considerada como modelo e expressão última e
mais depurada desta «primazia, autofundamentalidade e carácter originário
do sujeito enquanto consciência pura e eu racional» da filosofia moderna.
Esta primazia do sujeito (especialmente do sujeito individual) e dos
aspectos ou instâncias «conscientes» do eu começou a ser atenuada por
Hegel («o verdadeiro é o todo», carácter sistemático do real e do saber,
admissão de um sujeito e de uma racionalidade supra-individuais, etc.) e
por Marx (o homem como conjunto de relações sociais, infra-estrutura
como factor determinante da configuração da sociedade e da história, etc.) e
por Freud (principalidade, do inconsciente relativamente à consciência ou
ao eu, etc.).
Pois bem, o estruturalismo de Lévi-Strauss (o estruturalismo em geral)
mantém por um lado o carácter transcendental (na medida em que dá uma
explicação dos fenómenos a partir dos princípios, instâncias ou estruturas
que lhes dão sentido) e, por outro, a negação da primazia e
fundamentalidade do sujeito individual e consciente nessa «explicação».
Por outras palavras, o estruturalismo conserva a instância transcendental,
mas transposta para outra ordem e nível: uma ordem sistemático-relacional
e inconsciente, o nível das estruturas, em cujo tecido ou rede se configura,
como um precipitado, o que noutra ocasião se denominou «sujeito» e
«consciência».

2.2.2. Psicanálise, marxismo e geologia

Quanto aos seus «amantes», o que fizeram foi iluminar e orientar o


sentido da investigação etnográfica de Lévi-Strauss.

a) O marxismo proporcionou-lhe uma ideia precisa do que deve


entender-se por «conhecer» ou «compreender» (ideia, em última análise, de
raiz hegeliana); além disso, e em estreita relação com esta tese
epistemológica, o marxismo proporcionou-lhe uma ideia acerca do que é o
mais real da realidade (uma tese ou atitude ontológica implícita, e em
última análise explícita). Com efeito, o marxismo mostrou-lhe «que
compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outra; que a
realidade verdadeira nunca é a mais manifesta; e que a natureza do
verdadeiro resplandece já no cuidado que põe em ocultar-se».

b) A psicanálise ensinou-lhe, como escreve na sua obra Tristes


Trópicos, que «acima do racional havia uma categoria mais importante e
mais válida, a do significante, que é a maneira de ser mais elevada do
racional», e que «as condutas aparentemente mais afectivas, as operações
menos racionais, as manifestações declaradamente pré-lógicas são, ao
mesmo tempo, as mais significantes».

c) A geologia mostrou-lhe que sob a aparente desordem e multiplicidade


de formas singulares da superfície e da paisagem está subjacente uma
estratificação («estrutura») que lhe serve de sustentáculo, consistência e
unidade, que nos permite recompor o sentido e a génese dos fenómenos
geológicos e das formas ou figuras da superfície; a investigação geológica
permite «recuperar o seu sentido geral, sem dúvida obscuro, mas do qual
cada um dos restantes é transposição parcial ou deformada».
Nestas últimas palavras («transposição parcial ou deformada») é
possível reconhecer a íntima unidade epistemológica entre a geologia, a
psicanálise e o marxismo: nos sonhos, manifesta-se ou exprime-se o
inconsciente, mas tal manifestação constitui uma transposição,
transformação ou transfiguração (denominada por Freud Verstellung), em
virtude da qual o inconsciente fica obnubilado e mascarado perante a
consciência; quanto ao marxismo, como já vimos, «a consciência
ideológica» é uma consciência deformada, irreal ou que, pelo menos, não
exprime a verdadeira realidade da estruturação e configuração social.
Assim, o estruturalismo de Lévi-Strauss que investiga a antropologia
social e a etnografia pretende ser um estudo «geológico» dos factos sociais
e das relações de intercâmbio que constituem a vida social dos homens.

2.2.3. O modelo linguístico


Nas suas investigações etnológicas e antropológicas, Lévi-Strauss
empreende uma aplicação dos princípios gerais da linguística estrutural.
Mencionaremos apenas os mais relevantes sobre o assunto, pois as suas
implicações e alcance são conhecidos através da linguística.

a) Saussure distingue entre língua (langue) e fala (parole). Fala indica o


uso que cada falante faz da sua língua, segundo um modo determinado e
peculiar e numa determinada situação. Língua significa o sistema ou
código de signos impessoal, anterior à fala, à qual o falante recorre e do
qual a fala não é mais do que uma determinada realização dentro do código,
sistema ou «estrutura» que a língua impõe.

b) A língua é uma forma e não uma substância, isto é, não é só um


conjunto de elementos fixos e autónomos mas também um sistema de
relações entre tais elementos.

c) A língua é um sistema que apenas conhece a sua própria ordem.


A língua forma um sistema, e só nele os elementos ganham sentido e se
articulam segundo determinados princípios de estrutura. A partir de um
número reduzido de elementos de base tem lugar na língua, segundo
determinados princípios, um grande número de combinações, de facto
sempre mínimo relativamente às suas possibilidades teóricas.

d) A linguística estrutural estuda não só as mudanças que se operam na


língua (diacronia), como o estado do sistema da língua (sincronia).

Lévi-Strauss transpõe estes princípios (especialmente tal como foram


articulados pela fonologia) para «outra ordem de realidade», a ordem dos
fenómenos sócio-antropológicos. Com efeito, escreve no seu livro
Antropologia Estrutural: «Trubetzkoy reduz, em suma, o método
fonológico a quatro passos fundamentais: em primeiro lugar, a fonologia
passa do estudo dos fenómenos linguísticos “conscientes” para a sua
estrutura “inconsciente”; recusa tratar os “termos” como entidades
independentes e toma, pelo contrário, como base da sua análise as
“relações” entre os termos; introduz a noção de “sistema”...; por fim
procura descobrir “leis gerais”, quer as encontre por indução quer
“deduzindo-as logicamente, o que lhes confere um carácter absoluto”. Deste
modo e pela primeira vez, uma ciência social logra formular relações
necessárias.» (Antropologia Estrutural).

2.2.4. O inconsciente estrutural

O estruturalismo etnológico de Lévi-Strauss (e em geral o estruturalismo


nas suas diferentes formas) propõe-se com efeito formular e encontrar
relações necessárias e leis na antropologia social (nas diversas ciências
humanas e sociais).
Considera a antropologia social como uma semiologia (de seméion =
signo) cujo objecto é «a vida dos signos no seio da vida social»
(Antropologia Estrutural). O seu objecto, as diferentes formas de
comunicação e intercâmbio em que a vida social consiste, tem pois uma
natureza simbólica. E o que o estruturalismo procura é remontar (retrotrair,
reduzir) os fenómenos sociais, enquanto relações simbólicas, até às
condições do seu significado, condições de carácter estrutural-inconsciente.
Segundo declaração expressa de Lévi-Strauss, o estruturalismo tende a
«centrar-se preferentemente nos fenómenos que se elaboram fora das
ilusões do pensamento consciente», procura encontrar as condições últimas
de inteligibilidade. Esta inteligibilidade – e a explicação pertinente – não
consiste na passagem do complexo ao simples (recorde-se por exemplo a
segunda das regras do método de Descartes), mas na substituição de uma
complexidade menos significante por outra (estrutura) que seja originária e
princípio de significação: «A explicação científica não consiste na
passagem da complexidade à simplicidade, mas na substituição de uma
complexidade menos inteligível por outra mais inteligível.» (Lévi-Strauss,
O Pensamento Selvagem.)
Esta intenção redutiva representa, em primeiro lugar, uma redução
epistemológica e própria do estruturalismo etnológico, e de singular
importância na ordem da explicação científica, do consciente para o
inconsciente, da superfície para a estrutura, do menos significante para o
mais significante, etc. Neste sentido, Lévi-Strauss propõe-se ainda libertar
completamente a antropologia da falsa oposição – estabelecida por Dilthey
– entre as explicações próprias das ciências físicas e as próprias das ciências
humanas, incluindo estas, em última análise, entre as ciências naturais.
Ora, em estreita relação com esta redução epistemológica dá-se em
segundo lugar o que se poderia chamar redução ontológica. Esta redução
ontológica aparece duplamente:

a) Por um lado a oposição entre «natureza» e «cultura» – escreve Lévi-


Strauss «parece-nos oferecer hoje sobretudo um valor epistemológico»; ora,
à margem e sob esta posição de tipo metodológico, trata-se de «reintegrar a
cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto das suas condições
físico-químicas» (O Pensamento Selvagem).

ESTRUTURA E INCONSCIENTE
Em relação ao acontecimento ou à particularidade histórica, estas
estruturas – ou, mais exactamente, estas leis de estrutura – são
verdadeiramente intemporais. No psicopata, toda a vida psíquica e todas
as experiências posteriores organizam-se em função de uma estrutura
exclusiva ou predominante, sob a acção catalisadora do mito inicial. Mas
esta estrutura (e todas as outras que no mito são relegadas para um lugar
subalterno) encontram-se também no homem comum, primitivo ou
civilizado. O conjunto dessas estruturas formaria o que denominamos de
inconsciente e assim dissipar-se-ia a última diferença entre a teoria do
xamanismo e a teoria da psicanálise. Deste modo, o inconsciente deixa de
ser o refúgio inefável das particularidades individuais e o depositário de
uma história única que faz de cada um de nós um ser insubstituível. O
inconsciente reduz-se a um termo pelo qual designamos uma função: a
função simbólica, que é sem dúvida especificamente humana, mas que
em todos os homens se exerce segundo as mesmas leis. De facto, o
inconsciente reduz-se ao conjunto destas leis.
Se esta concepção for exacta, isso implicará o estabelecimento de uma
distinção mais acentuada do que a habitual na psicologia contemporânea
entre inconsciente e subconsciente. Na verdade, como reservatório de
recordações e de imagens coleccionadas ao longo de cada vida, o
subconsciente torna-se num simples aspecto da memória, pois, ao mesmo
tempo que afirma a sua perenidade também dita as suas limitações, visto
que o termo subconsciente se refere ao facto de as recordações, se bem
que conservadas, nem sempre estarem disponíveis. O inconsciente, pelo
contrário, está sempre vazio ou, mais exactamente, é tão estranho às
imagens quanto o estômago aos alimentos que o atravessam. É um órgão
de uma função específica, limitando-se a impor leis estruturais a
elementos inarticulados que provêm de outra parte: pulsões, emoções,
representações, recordações (e nisto se esgota a sua realidade). Por
conseguinte, poderia dizer-se que o subconsciente é o léxico individual
onde cada um de nós acumula o vocabulário da sua história pessoal, mas
este vocabulário só adquire significação (para nós próprios e para os
outros) à medida que o inconsciente o organiza segundo as suas leis e o
torna assim num discurso. Como estas leis são as mesmas para todos os
indivíduos e em todas as ocasiões em que o inconsciente actua, o
problema colocado no parágrafo precedente pode ser resolvido
facilmente: o vocabulário tem menos importância que a estrutura. Quer o
mito seja recriado pelo sujeito ou tomado de empréstimo à tradição, o
inconsciente só absorve das suas fontes, individual ou colectiva (há
constantes interpenetrações e trocas entre as duas), o material de imagens
que usa; mas a estrutura é sempre a mesma, e é por ela que a função
simbólica se realiza.
Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural.

b) Por outro lado, relativamente ao espírito humano (ou ao pensamento


ou à mente, denominações utilizadas pelo próprio Lévi-Strauss) o
estruturalismo realiza uma redução do espírito consciente ao «espírito»
inconsciente; numa palavra, trata-se de «empreender a mudança do humano
em não-humano» em consonância com a taxativa afirmação de que «a
mente também é uma coisa» (O Pensamento Selvagem). O estruturalismo
transforma-se assim, como é óbvio, numa doutrina ou numa filosofia: Lévi-
Strauss definiu-se a si próprio como materialista.
A estrutura inconsciente converte-se assim na base do estruturalismo
etnológico: o inconsciente é o carácter comum e específico dos factos
sociais. «O inconsciente» – lê-se na Antropologia Estrutural – «reduz-se a
um termo por meio do qual designamos uma função: a função simbólica
especificamente humana, sem dúvida, mas que se exerce em todos os
homens segundo as mesmas leis.» O inconsciente que é uma forma vazia,
limita-se pois a impor leis estruturais a elementos inarticulados que provêm
de outro lado e que somente chegam a ser o que são e a ser significativos
em virtude da sua articulação nestas leis estruturais, inconscientes. A partir
deste inconsciente estrutural, consegue-se a explicação de todos os
diferentes factos ou fenómenos sociais, humanos.
O inconsciente estrutural pode considerar-se transcendental no duplo
significado deste termo: na medida em que transcende ou ultrapassa a
diversidade singular dos indivíduos e das significações das relações de
troca, sendo o mesmo para todos, e na medida em que é a condição de
possibilidade e o princípio de significação de todos os fenómenos culturais
e sociais.
O seguinte texto da Antropologia Cultural afirma-o clara e
concisamente: «A actividade inconsciente do espírito consiste em impor
formas a um conteúdo, e se estas formas são fundamentalmente as mesmas
para todos os indivíduos, antigos e modernos, primitivos e civilizados (...) é
necessário e suficiente atingir a estrutura inconsciente subjacente a cada
instituição ou a cada costume para obter um princípio de interpretação
válida para outras instituições e para outros costumes.» Com razão, e de
forma clara e precisa, Lévi-Strauss qualificou a sua filosofia como «um
kantismo sem sujeito transcendental» ou, o que vem a ser o mesmo, com
um sujeito certamente transcendental mas colectivo e inconsciente.

2.2.5. A crise do humanismo

O estruturalismo implica uma crise indiscutível do humanismo. O


sujeito humano dissolve-se em favor de estruturas que explicam realmente
os fenómenos culturais e sociais. Para terminar recordemos – como prova
irrefutável desta crise e dissolução do homem, da liberdade e da finalidade
conscientes – estas palavras de O Pensamento Selvagem «Cremos que o fim
último das ciências humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo.»
3. RAZÃO E SOCIEDADE NA ESCOLA DE
FRANKFURT

3.1. O objectivo da Escola de Frankfurt

A Escola de Frankfurt abarca um grupo de pensadores ou filósofos


surgidos em torno do «Instituto de Investigação Social» da Universidade de
Frankfurt, que se propõe principalmente uma reflexão crítica sobre a
sociedade pós-industrial e sobre o conceito de razão.
O Instituto constituiu-se sob a ideia e direcção de Max Horkheimer,
cuja produção teórica não é das mais importantes. São de destacar os seus
livros Teoria Crítica e Crítica da Razão Instrumental. De mais dimensão
teórica, profundidade e influência são as obras de Adorno e Marcuse (os
três pensadores formam a primeira geração da Escola). De Adorno, autor
polifacetado e difícil, são especialmente importantes os seguintes livros:
Dialéctica do Humanismo (escrito em colaboração com Horkheimer),
Minima Moralia e Dialéctica Negativa. De entre as obras de Marcuse
importa destacar Eros e Civilização, Cultura e Sociedade e O Homem
Unidimensional.
Por fim, referimos Jürgen Habermas, que encabeça brilhantemente
uma segunda geração da Escola e cuja obra é de singular interesse e
importância. Mencionaremos, entre os seus livros, Conhecimento e
Interesse, Técnica e Ciência como «Ideologia», Teoria e Práxis e Teoria da
Acção Comunicativa.
Como pode adivinhar-se pelo título das suas obras, a Escola de Frankfurt
pretendeu apresentar uma clarificação racional («teoria») da estrutura da
sociedade industrializada e das consequências que trouxe para a vida do
homem e para a cultura, tudo isso explicável a partir do conceito de razão
vigente (razão técnico-instrumental).
Essa teoria critica a configuração da sociedade actual por considerá-la
inadequada e contrária às exigências e fins da razão: o que supõe contar de
antemão, ainda que de um modo projectivo, com um conceito de razão
originária e fundamental que permita verificar e estabelecer as deficiências
da sociedade industrializada e projectar outra estruturação social mais
compatível com a vida humana.
Para mostrar a génese dessa razão técnico-instrumental, a Escola de
Frankfurt remete-se para o ideal de razão e progresso surgido nos séculos
XVII e XVIII; uma razão que, contando com os serviços da ciência positiva
e das suas aplicações técnicas ou tecnológicas, se propunha emancipar o
homem da opressão da natureza e instaurar uma ordem político-social que
realizasse os ideais de justiça e de liberdade.
O projecto da razão esclarecida é claro ponto de partida para a Escola de
Frankfurt. «O Iluminismo», lê-se no livro Dialéctica do Iluminismo «no
sentido mais amplo de pensamento em contínuo progresso, perseguiu
sempre o objectivo de tirar aos homens o medo e de os converter em
senhores (...) O programa do Iluminismo consistia em libertar o mundo da
magia. Propunha, mediante a ciência, desfazer os mitos e refutar a
imaginação.» Compreende-se pois que a Escola de Frankfurt reflectisse o
seu projecto e tarefa na expressão «teoria crítica».

3.2. Teoria tradicional e teoria crítica

Para a plena compreensão do que significa «teoria crítica» é preciso ter


presente a estreita relação e dependência da Escola com a tradição
hegeliana e marxista. Daí que considerasse muito importante distinguir
claramente entre a teoria tal como foi concebida tradicionalmente e a sua
nova concepção como surge na expressão «teoria tradicional e teoria
crítica». No entender de Horkheimer a concepção tradicional pode
resumir-se em três pontos: a) a teoria é entendida como a formulação de
«princípios gerais e últimos» que descrevem e interpretam o mundo; b) é
uma teoria «geral» e «abstracta», que se considera autónoma e
independente do enquadramento histórico e social em que surge; c) é uma
teoria «pura», no sentido de «mera» teoria.
A teoria crítica, pelo contrário, é caracterizada do seguinte modo:

a) prossegue uma posição básica hegeliano-marxista, de modo que a


teoria está enraizada no enquadramento e conteúdo social do
pensamento e interrelacionada com a instância material-económica;

FORMALIZAÇÃO DA RAZÃO E CONTROLO SOCIAL


A razão converteu-se em instrumento ao abandonar a sua autonomia.
Tal como o positivismo o destaca, no aspecto formalista da razão
subjectiva torna-se mais acentuada a sua falta de relação com um
conteúdo objectivo; e tal como o pragmatismo o destaca, no seu aspecto
instrumental torna-se mais acentuada a sua capitulação face a conteúdos
heterónomos. A razão surge totalmente sujeita ao processo social e o seu
valor operativo, o papel que desempenha no domínio dos homens e da
natureza, converteu-se em critério exclusivo (...).
As noções converteram-se em meios racionalizados, que não oferecem
resistência e que poupam trabalho. É como se o próprio pensar se tivesse
reduzido ao nível dos processos industriais, submetendo-se a um plano
exacto; em suma, como se se tivesse convertido num elemento fixo da
produção.
-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–
Quanto mais as ideias se tornam automáticas e instrumentalizadas,
menos se descobre nelas a subsistência de pensamentos com sentido
próprio. São consideradas coisas, máquinas. No gigantesco aparelho de
produção da sociedade moderna, a linguagem reduziu-se a um
instrumento entre outros. Todas as frases que não constituam o
equivalente de uma operação dentro desse aparelho apresentam-se ao
profano tão desprovidas de significado como efectivamente acontece
segundo os semânticos contemporâneos: para estes, a frase que denote
um sentido é puramente simbólica e operacional, o que equivale a dizer
que é totalmente desprovida de sentido. A significação é deslocada pela
função ou efeito que as coisas e os acontecimentos têm no mundo. Na
medida em que as palavras não são utilizadas de um modo evidente a fim
de valorar probabilidades tecnicamente relevantes ou ao serviço de outros
fins práticos, entre os quais se deve incluir mesmo a recreação, elas
correm o perigo de se tornarem em pura tagarelice, pois a verdade não é
um fim em si mesma.
-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–
Tal como frequentemente e com justiça se sustentou, a vantagem da
matemática – o modelo de todo o pensamento neopositivista – consiste
precisamente nesta «economia de pensamento». Realizamos operações
lógicas complexas sem que realmente se efectuem todos os actos mentais
nos quais os símbolos matemáticos e lógicos se baseiam. Esta
mecanização é um efeito essencial para a expansão da indústria; mas
quando se torna marca característica do intelecto, quando a própria razão
se instrumentaliza, passa a adoptar uma espécie de materialidade e
cegueira, tornando-se num feitiço, numa entidade mágica, com mais
aceitação do que experimentação espiritual. Quais são as consequências
da formalização da razão? Noções como as de justiça, igualdade,
felicidade ou tolerância, que, segundo dizemos, em séculos anteriores
eram consideradas inerentes à razão ou dependentes dela, perderam as
suas raízes espirituais. São todavia metas e fins, mas não há nenhuma
instância racional autorizada a outorgar-lhes um valor e a vinculá-las a
uma realidade objectiva.
Horkheimer, Crítica da Razão Instrumental.
b) consciente do risco de se transformar numa «forma ideológica» da
estrutura básica da sociedade, como aconteceu com o pensamento
filosófico moderno (que, no entender da Escola se transformou em
expressão ideológica do último capitalismo), a teoria deve ter a força, o
valor e a liberdade para «criticar-se» a si própria e evitar a sua
transformação em ideologia;
c) a «teoria crítica» destaca a estreita relação entre conhecimento e
acção, entre teoria e práxis, entre razão teórica e razão prática (que toma
em consideração os fins últimos e não apenas as meios, como faz a
razão instrumental). Neste sentido, a Escola mostrou a falsidade da
pretensa neutralidade valorativa – com origem na obra de Max Weber
– da teoria e da ciência. A teoria crítica deve estar ao serviço da
transformação prática da sociedade.

3.3. Razão e sociedade

Com tal conceito de teoria, a Escola de Frankfurt enfrenta a


irracionalidade da sociedade industrializada e a submissão do homem e
critica a estrutura repressiva da sociedade, que leva a desumanização ao
extremo de o homem ser inconsciente acerca do seu estado de alienação e
de falta de liberdade. As suas análises da sociedade orientam-se
principalmente no sentido de definir o conceito de razão que se realizou ou
materializou na sociedade actual. A teoria crítica (a partir do já salientado
enraizamento no Iluminismo, concebe a história como progresso na
libertação do homem, como abandono da sua menoridade, como plena
emancipação; numa palavra, como o desenvolvimento da razão até à sua
auto-realização. A razão é histórica e a história pugna por ser plenamente
racional.
A relação, ou melhor, a dialéctica entre razão e história é completada e
conjuga-se com a natureza. Dá-se pois uma complexa relação dialéctica
entre a opressão que a natureza significa para o homem e o domínio técnico
da mesma, e entre a opressão da sociedade e a exigência de racionalidade
da realidade social. O conceito de razão deverá proporcionar o fundamento
para uma organização não repressiva da sociedade e para o domínio da
natureza.

3.4. Dialéctica do Iluminismo

O processo histórico emancipativo, interpretado especialmente por


Horkheimer e Adorno, a partir do século XVII estava projectado, pré-
ordenado e regido pela razão que aqui significa Iluminismo. Ora, o
Iluminismo significa a aniquilação do animismo e do mito e, ajudada pelas
nascentes ciências da natureza, propõe-se a desmitologização do mundo, o
domínio da natureza e a realização da liberdade. Isto é, o exercício crítico e
negativo da razão tem um carácter progressivo e esclarecido.
No entanto, na sociedade industrializada, acção e resultado daquele
processo progressivo esclarecido, reina um generalizado irracionalismo
destrutivo no qual o homem, exterminador dos espíritos dos mitos e dos
deuses, se vê escravo, a ponto de ser submetido pelo desenvolvimento
científico-técnico.
Além disso, aquela razão negativa e crítica, aquela razão prática que
estabelecia fins últimos e objectivos («razão objectiva», chamou-lhe
Horkheimer), transformou-se numa razão técnico-instrumental, numa razão
positiva que se limita a afirmar e a manter o dado, apesar da sua
irracionalidade («razão unidimensional», chama-lhe Marcuse); uma razão,
enfim que não sabe, pode, ou quer encontrar na sociedade actual algo
negativo para rejeitar («razão identificante», chama-lhe Adorno), isto é,
uma razão que não vê diferenças, desajustes ou aspectos negativos na
realidade social.
Deste modo, a razão (o Iluminismo) tornou-se no contrário do que
acreditou e se propôs realizar: ser uma função libertadora e progressiva. A
razão fez-se repressiva, totalitária, reificante. «Dialéctica do Iluminismo»
significa assim o devir repressivo da natureza progressiva da razão.
A razão, e a sua forma, modélica e prepotente, a saber, a razão técnica
ou tecnológica, torna-se assim na ideologia por antonomásia, já que na
redução e, em última análise, negação da razão objectiva desvirtua o
conceito genérico de razão e além disso, pela sua exclusividade e
prepotência, propícia e mantém as restantes desfigurações ideológicas da
realidade social. Como escreveu Horkheimer «quanto mais o conceito de
razão perde a sua força, tanto mais facilmente fica à mercê de manipulações
ideológicas» (Crítica da Razão Instrumental).
Face a esta realização técnica da razão que aparece como ideologia e
novo mito, a Escola de Frankfurt lutou por esclarecer novamente, numa
nova configuração, um conceito positivo de Iluminismo. E o seu grande
contributo consistiu em ter exercido a função crítico-negativa da sociedade
industrializada e em ter apontado claramente a necessidade da imaginação e
da utopia na tarefa da transformação social. «A esperança» – escreveu
Adorno em Minima Moralia, – «é a única categoria na qual a verdade se
manifesta. Sem a esperança, a ideia de verdade seria dificilmente
concebível e é falsidade capital apresentar como verdade a existência
reconhecida.»

LIBERDADE E SOCIEDADE
Desde o século XVII que a grande filosofia determinou a liberdade
como o seu interesse mais privado, tendo-se dedicado a fundamentá-la
com evidência sob as ordens tácitas da classe burguesa. Mas esse
interesse é antagónico em si mesmo, pois dirige-se contra a antiga
opressão e fomenta a nova, contida no próprio princípio da racionalidade.
Trata-se de encontrar uma fórmula comum para liberdade e opressão. A
liberdade é cedida à racionalidade, que a limita e a afasta do empirismo
porque não a quer ver realizada aí de modo algum. Tal dicotomia refere-
se também ao crescente cientificismo.
-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–
As considerações sobre liberdade e determinismo soam a arcaicas,
como se viessem dos tempos primitivos da burguesia revolucionária. Mas
não há motivo para aceitar que a liberdade envelheça fatalmente sem se
realizar. Esta fatalidade deve ser explicada com a resistência. As razões
de a ideia de liberdade ter perdido o seu poder sobre os homens devem-
se, entre outras coisas, ao facto de ter sido antecipadamente concebida de
modo tão subjectivo e abstracto que a tendência social objectiva não
precisou de se esforçar para a abater sob os seus pés.
A integração social impõe-se aos sujeitos de modo irresistível, e é ela
a causa da indiferença perante a liberdade como conceito e até como
coisa. O interesse dos sujeitos em serem atendidos paralisa tudo o que
seja interesse por uma liberdade cujo desamparo temem. Invocar a
liberdade ou apenas nomeá-la soa a retórica. O nominalismo intransigente
também concorre para esta situação: ao relegar, segundo um cânone
lógico, as antinomias objectivas para o terreno dos pseudoproblemas,
cumpre por seu lado a função social de encobrir as contradições à força
de as negar. Devemos ater-nos aos dados, ao seu herdeiro moderno: o que
as notícias dizem. Deste modo, a consciência é aliviada do que a
contradiz no exterior. Segundo as regras de uma tal ideologia, o que há a
fazer é simplesmente descrever e classificar os comportamentos dos
homens em diversas situações em vez de falar de vontade ou liberdade
com feiticismo conceptual.
Adorno, Dialéctica Negativa.

3.5. A dialéctica negativa de Adorno

3.5.1. Alienação e o mundo científico-técnico

No âmbito do pensamento básico hegeliano-marxista dos seguidores da


teoria crítica, Adorno é quem revela uma maior influência de Hegel,
sobretudo patente na sua concepção da dialéctica negativa, no uso que faz
da categoria da identidade para a compreensão do «mundo administrado»
da sociedade industrial e na importância que dá à categoria de alienação.
A sociedade capitalista industrializada não só oferece uma nova forma
de alienação (a juntar às que Marx já criticara) mas também uma estrutura
que impede o pensamento de se dedicar à sua tarefa mais genuína: a crítica.
Essa estrutura é formada pelo mundo científico-técnico que constitui o
esqueleto da sociedade pós-industrial. Nela, o pensamento é interpretado e
realizado como razão analítico-científica, o qual identifica o mundo
técnico-científico e respectiva organização social e económica com o ideal
iluminista de realização racional e livre dos seres humanos, É esta
identificação que parece proporcionar a liberdade sonhada.
Por outro lado, a conversão e redução do pensamento a uma razão
positiva instrumental provocou a sua assimilação e submissão a esse mundo
e respectivo sistema social, o que desde logo impede qualquer crítica aos
mesmos.

3.5.2. Ideologia e filosofia

Nesta ordem de ideias, poderá perguntar-se: para que serve a filosofia?


O «espírito de época» suprime e nega a reflexão filosófica, tida como
supérflua. Não tem mais nada a fazer, pois já cumpriu a sua missão:
explicar e justificar a actual ordem das coisas. É agora o momento de se
«aposentar».
No entanto, a vitalidade da filosofia consiste em resistir a todas as
formas de realidade que imponham a heteronomia, que incarnem a dor e o
sofrimento dos homens e que obstem à liberdade. E resistir também a todas
as formas de pensamento que possam justificar essa realidade pela sua
assimilação, ou afastando-se dela e sonhando com outra realidade diferente.
Num mundo assim alienado, a filosofia, longe de ser supérflua e inútil,
revela-se fulcral e premente. Deste modo, e como pensamento crítico que é,
tenta dissipar a aparência de liberdade para mostrar a coisificação reinante,
de modo a criar uma consciência progressiva e preservar um refúgio para a
liberdade. E para isso serve-se apenas das armas da teoria: «Na exaltação do
binarismo teoria-prática, a teoria perdeu» – escreve Adorno – «e a partir daí
a prática tornou-se irracional, assim como parte dessa política que queria
superar; ou seja, ficou à mercê do poder. A dogmatização e proibição do
pensamento contribuiu para a morte da teoria e para a prática viciada»
(Dialéctica Negativa).
Nesta perspectiva, a filosofia critica a ideologia. Adorno entende
ideologia como a forma de pensamento que: a) glorifica o que existe; b)
impede o afastamento em relação ao que simplesmente existe, e por isso
impõe a conformação; c) conduz a falsa consciência a uma consciência
falsa da realidade (Terminologia Científica). E hoje, assinala Adorno, «a
ideologia impele cada vez mais o pensamento a ser positivo» (Dialéctica
Negativa). Mas, por natureza, o pensamento oferece resistência ao que se
lhe impõe e leva a filosofia a criticar as formas de pensar alienadas e falsas:

a) do positivismo, que mais não é do que «consciência que se coisifica»,


dado que é «respeito pelo coisificado» e «negação da especulação»;
b) das correntes ontológicas, «dado que desprezam a participação
humana nos conceitos» e os divinizam;
c) do idealismo que afirma o sujeito absoluto com as suas categorias de
totalidade, síntese final e identidade, e entronca na «apologética», que é
a afirmação da racionalidade do real. Perante tal racionalidade, Adorno
assinala que «qualquer filosofia da identidade é logo desmentida pelo
menor sinal de sofrimento absurdo no mundo em que vivemos» (o.c.);
d) do materialismo, devido à sua interpretação teórica da realidade e à
sua prática política. Com efeito, e «apesar da prioridade do objecto, o
carácter coisificante do mundo é também aparência e leva os sujeitos a
atribuir às coisas em si a relação social da sua produção». Quanto à sua
prática política, escreve Adorno que «ao alcançar o poder político, o
materialismo escravizou a consciência em vez de a transformar» (o.c.).

MATERIALISMO E DIALÉCTICA
«(...) Dado que no materialismo se ensina a preponderância das
matérias ou das condições materiais da vida, uma das suas interpretações
essenciais e falsas consiste em crer que essa preponderância exige que a
matéria seja apenas aquilo que é autenticamente positivo.(...) O telos, a
ideia do materialismo marxista, consiste na negação do materialismo,
quer dizer, na procura de uma situação que derrube a força cega das
condições materiais sobre os homens, e na qual a pergunta pela liberdade
tenha verdadeiramente sentido.(...) Quando se ensina uma dialéctica
materialista como uma espécie de princípio absoluto e metafísico, surge
uma grande dificuldade: a dialéctica é um mover-se entre opostos. Tudo
isto se torna impensável sem o momento da reflexão, ou seja, sem o
momento no qual uma coisa se torne na sua alteridade graças à sua
consciência. Mas como o reflexo na sua alteridade só se pode dar numa
consciência, por conseguinte não se pode separar da dialéctica o
momento da subjectividade ou da reflexão».
Adorno, Terminologia Filosófica.

3.5.3. Dialéctica negativa

O exercício do pensamento crítico é negativo e dialéctico, tal como o


próprio mundo:

a) A dialéctica não é apenas das coisas, espécie de dialéctica da matéria


(materialismo dialéctico): «atribuir cegamente a dialéctica a uma matéria
sem sujeito seria como voltar a acreditar primitivamente nos espíritos»
(Terminologia Filosófica). Também não é uma mera dialéctica da
consciência, algo de puramente conceptual e sem outra diferença e
contradição que a puramente pensada. Deste modo, a dialéctica real não é
uma lei do pensamento, uma vez que não pode existir sem sujeito. «O ponto
de viragem da dialéctica negativa consiste em alterar este rumo do
conceptual e torná-lo diferente.» (Dialéctica Negativa.)
b) A dialéctica não expressa a verdade do todo (objecto e sujeito) numa
presumível síntese final de reconciliação e identificação, pois «revela o que
há de falso na identidade e na adequação do concebido com o conceito»
(o.c.). A dialéctica exprime a dor do mundo dos homens: «A dialéctica é a
dor transformada em conceito devido à pobreza deste mundo». A dor e a
negatividade constituem assim «o motor do pensamento dialéctico».

c) Deste modo, a dialéctica negativa reflecte a estrutura contraditória e


injusta do mundo histórico-social. Mas o negativo também fortalece o
desejo e o ideal de liberdade. De facto, segundo Adorno, «a dialéctica não é
apenas um método nem sequer algo real entendido de modo ingénuo. Não é
um método, pois a coisa reconciliada, que carece precisamente dessa
identidade fornecida pelo pensamento, está cheia de contradições e obsta a
qualquer tentativa de interpretação unânime. No entanto, é a coisa que
motiva a dialéctica, e não o impulso organizador do pensamento. Tão-
pouco é algo simplesmente real dado que a contradição é uma categoria
reflexiva, é o confronto pensante entre coisa e conceito. Como
procedimento, a dialéctica significa pensar em contradições devido à
contradição experimentada na coisa e contra ela. Ora, sendo contradição na
realidade, é também contradição da realidade» (o.c.).

3.6. Sociedade unidimensional e utopia: Marcuse

A obra de Marcuse compartilha das ideias fundamentais e do


enquadramento social e teórico da Escola de Frankfurt (veja-se as alíneas
3.1., 3.2. e 3.3. deste capitulo), e enriqueceu-se por meio de um diálogo
estreito e crítico com a filosofia fenomenológico-existencialista de
Heidegger, com a obra de Freud e a sua interpretação do carácter repressivo
da cultura e da sociedade, e com o positivismo lógico e a filosofia analítica.
A fim de melhor compreendermos o seu pensamento, devemos ter ainda
em conta a sua estadia nos Estados Unidos e a reflexão que levou a cabo
sobre o capitalismo americano, bem como a experiência que ali teve de
diferentes movimentos críticos contra a organização das sociedades
industriais avançadas e o seu sistema de valores.
Os factores fundamentais do significado crítico da obra de Marcuse
foram o progressivo predomínio da técnica e a organização tecnológica da
sociedade, bem como a função ideológica opressiva e redutora dos meios de
comunicação de massas. Verifica-se assim que, no âmbito da sociedade
industrial avançada, Marcuse completa e enriquece a teoria da sociedade da
Escola de Frankfurt, pois dedica-se a tarefas inevitáveis do pensamento
filosófico, como sejam o seu caracter crítico e a sua função utópica.

3.6.1. Civilização repressiva e sociedade

Para compreender e diagnosticar a sociedade, Marcuse recorre a certas


teses de Freud (veja-se a primeira parte deste capítulo).
Segundo Freud, a história do ser humano é marcada pela repressão. O
princípio do prazer aspira à satisfação imediata e plena dos instintos mas é
reprimido pelo princípio da realidade, o que dá origem: a) a uma inibição
ou supressão da satisfação integral dos instintos; b) a uma sublimação ou
desvio da força pulsional para um novo objecto, não-sexual, reconhecido e
valorizado socialmente; c) à organização da razão como mundo consciente
de normas e valores.
A função repressiva do princípio da realidade é reforçada pela falta de
meios para uma satisfação plena e geral e as restrições que impõe não
interferem apenas na dimensão biológica e psíquica mas também na
existência social.
Marcuse pôs em questão duas teses fundamentais de Freud; a) a
impossibilidade de haver uma civilização não-repressiva; b) e, em última
instância, a redução do princípio repressivo a uma base biológica e a
categorias psicológicas.
Perante tais afirmações, Marcuse contrapõe: a) que a civilização
tecnológica contemporânea dispõe dos meios para formar uma sociedade
não-repressiva; b) que o estado repressivo e alienado da sociedade
industrial avançada não obedece apenas e imediatamente a estruturas
biológicas ou psíquicas, mas sobretudo a estruturas sociopolíticas: porque
«na época contemporânea as categorias psicológicas passaram a categorias
políticas» e porque na civilização repressiva actual há «uma componente
sócio-histórica específica» (Eros e Civilização).

Herbert Marcuse
Herbert Marcuse nasceu em Berlim em 1898 e morreu em Stamberg, na Baviera, em 1979.
Formou-se nas universidades de Berlim e Friburgo e, sob a orientação de Heidegger, doutorou-
se com um trabalho sobre Hegel (muito importante no âmbito dos estudos hegelianos e de
grande relevo para a compreensão da sua própria filosofia). A esta linha fenomenológico-
existencialista hegeliana aliou a tradição marxista, tendo participado também na edição crítica
dos trabalhos de juventude de Marx. Foi um notável membro da Escola de Frankfurt,
destacando-se pela sua interpretação da sociedade pós-industrial à luz da teoria freudiana. Foi
forçado ao exílio durante o regime nazi, primeiro em Genebra e mais tarde nos Estados Unidos,
onde foi membro do Instituto de Investigação Social da Universidade de Columbia e também
professor nas universidades de Harvard e Califórnia. O seu pensamento e interpretação da
cultura foram aproveitados pelas reivindicações sociais e culturais do Maio de 68 e dos
movimentos estudantis, circunstância que conferiu a Marcuse uma singular notoriedade.
De entre as suas obras, destaca-se A Ontologia de Hegel e a Fundamentação de uma Teoria
da Historicidade (1932); Hegel e a Origem da Teoria Social (1942); Eros e Civilização (1957);
O Marxismo Soviético (1958) e O Homem Unidimensional (1964).

Marcuse refere que o modelo capitalista avançado de produção e a


organização sociopolítica dão origem a uma civilização repressiva e a uma
sociedade fechada. Por «sociedade fechada» entende a sociedade que
«disciplina e integra todas as dimensões da existência, privada ou pública».
Deste modo, todas as forças e interesses da existência são assimilados pelo
sistema vigente, que mobiliza e administra de forma metódica os instintos
humanos; além disso, torna-se assim mais fácil manipular e utilizar
socialmente os poderes negativos que existem na sociedade, e para tal
serve-se de novas formas de controlo social.
Marcuse designa estes aspectos repressivos da sociedade como
«repressão excedente» e «princípio de actuação». A primeira expressão
refere-se às restrições provocadas pela dominação social, cuja função
repressiva está localizada nas «instituições e relações que constituem o
“corpo” social do princípio da realidade» (Eros e Civilização). O «princípio
de actuação» corresponde à forma histórica dominante do princípio da
realidade (própria de uma sociedade que se estratifica de acordo com a
produção económica competitiva), na qual a produção e o consumo
reproduzem e justificam a dominação e a repressão.
Na sociedade repressiva contemporânea há um antagonismo entre a
felicidade (isto é, a satisfação plena das necessidades) e a liberdade; entre o
desejo (ou dimensão sensível do homem) e a razão.
Por um lado, a razão foi demasiado «espiritualizada» e, por outro,
converteu-se num mero instrumento de cálculo científico-técnico e de
repressão social.
Todavia, Marcuse acha que é possível superar este antagonismo e a
sublimação repressiva imposta pelo princípio da realidade (associado ao
modelo capitalista da organização social do trabalho), porque as
possibilidades da técnica podem oferecer os meios de satisfação das
necessidades humanas, aliviar o peso do trabalho e aumentar o tempo livre,
dado que a técnica contém em si «as condições prévias para um princípio de
realidade qualitativamente diferente e não-repressivo» (Eros e Civilização).
É possível entrever assim a ideia de uma civilização não-repressiva.

3.6.2. Cultura e linguagem unidimensional

a) Civilização e cultura
As manifestações da sociedade repressiva são, entre outras, a
interpretação afirmativa da cultura e a redução da linguagem e do
pensamento a uma única e exclusiva dimensão. A cultura e a linguagem,
assim falseadas, são decisivas para a manutenção e reprodução da repressão
e alienação sociais.
O sistema capitalista de produção e a progressiva redução da razão a
uma dimensão tecnológica acabam por opor o mundo material ao espiritual,
originando uma distinção radical entre civilização e cultura.
A cultura constitui o reino dos valores e o campo da verdadeira
liberdade, ao passo que a civilização representa o mundo da utilidade e da
miséria corporal. A cultura surge como no mundo nobre, não tendo nada a
ver com o nível material da vida, com as necessidades ou com o trabalho.
Segundo Marcuse, «por cultura afirmativa entende-se a cultura que
pertence à época burguesa e que durante o seu desenvolvimento conduziu à
separação e à supremacia da civilização sobre o mundo anímico-espiritual
(entendendo-se este como reino independente dos valores). A sua
característica fundamental é afirmar a formação incondicional de um
mundo valioso e superior obrigatório para todos, diferente do mundo da luta
quotidiana pela existência, o que qualquer indivíduo pode transformar por si
mesmo “a partir do seu interior”, mas sem modificar aquela situação fáctica
(...). A cultura afirma e oculta as novas condições sociais de vida.» (Cultura
e Sociedade.)

DESSUBLIMAÇÃO DA RAZÃO E CULTURA LIVRE


O pré-requisito de uma sociedade livre é a posse e abastecimento das
necessidades da vida e não o seu conteúdo. O campo da necessidade, do
trabalho, é um campo de ausência de liberdade porque nele a existência
humana está determinada por objectivos e funções que não lhe são
próprios e que não permitem o jogo livre das faculdades e dos desejos
humanos. Por conseguinte, o óptimo neste campo deve ser definido por
níveis que se referem mais à razão do que à liberdade: organizar de tal
maneira a produção e a distribuição de modo a empregar-se o menor
tempo possível para colocar todas as necessidades ao alcance de todos os
membros da sociedade. O trabalho necessário é um sistema de
actividades essencialmente inumanas, mecânicas e monótonas: dentro de
tal sistema, a individualidade não pode ser um valor nem um fim em si
mesmos. Uma organização racional do sistema de trabalho social
permitiria poupar tempo e espaço para o desenvolvimento da
individualidade fora do mundo do trabalho, que é inevitavelmente
repressivo. Como princípios da civilização, o jogo e o desenvolvimento
não implicam somente a transformação do trabalho mas a sua completa
subordinação às potencialidades, livremente envolventes, do homem e da
natureza. As ideias do jogo e do desenvolvimento revelam-se hoje
totalmente afastadas dos valores da produtividade e da actuação: o jogo é
improdutivo e inútil, precisamente porque anula as formas repressivas
que tendem para a exploração do trabalho e do ócio; «só joga» com a
realidade. Mas também anula as suas formas sublimes: «os altos valores».
A dessublimação da razão é um processo tão essencial no surgimento de
uma cultura livre quanto a sublimação pessoal da sensualidade. No
sistema de dominação estabelecido, a estrutura repressiva da razão e a
organização repressiva das faculdades dos sentidos unem-se e apoiam-se
mutuamente. Em termos freudianos, a moral civilizada é a moral dos
instintos reprimidos e a sua libertação implica a «destruição» dos altos
valores. No entanto, esta destruição pode fazer com que os altos valores
regressem à estrutura orgânica da existência humana de que se separaram,
e a reunião pode transformar esta mesma estrutura. Se os altos valores
perdem a sua distância e a sua separação de e contra as faculdades
inferiores, estas últimas podem tornar-se livremente susceptíveis à
cultura.
Marcuse, Eros e Civilização.

b) Pensamento e linguagem
A mesma hesitação acontece relativamente ao pensamento e à
linguagem. A redução unidimensional do pensamento só admite como
genuína e verdadeira a forma de pensar que se submete ao sistema
estabelecido pelo mundo técnico-produtivo, encarando qualquer outra
função sua como espúria ou não-verdadeira. A característica comum deste
pensamento unidimensional é «um empirismo total no tratamento dos
conceitos» e o «positivismo» é entendido como «negação dos elementos
transcendentes da razão» (O Homem Unidimensional).
Tal como o pensamento, também a linguagem (que é a sua expressão
mais completa) é reduzida ao serviço da administração e da dominação
total. De entre as características da linguagem unidimensional destacam-se
as seguintes: 1) a sua natureza operacional ou funcional – a linguagem e as
palavras identificam as coisas e as suas funções, conforme o seu uso
comum e geral. Cada coisa é a sua função e nela se esgota; 2) a linguagem
assim unificada serve de veículo de coordenação e subordinação e torna-se
anticrítica e antidialéctica, cega aos aspectos negativos da realidade; 3) é
uma linguagem radicalmente anti-histórica, sem espaço e acolhida pela
razão histórica: quer quanto ao passado da sociedade, quer quanto ao seu
futuro como negação do presente; 4) Por tudo isto, «a linguagem está
privada das mediações que formam as etapas do processo de conhecimento
e de avaliação (O Homem Unidimensional).
Numa palavra, é uma linguagem «purificada» e «fechada» na ordem
estabelecida: «A análise linguística só atinge a exactidão empírica que as
pessoas extraem do estado das coisas e apenas alcança a claridade que é
permitida neste estado de coisas; ou seja, permanece dentro dos limites do
discurso mistificado e equívoco» (O Homem Unidimensional).

c) A racionalidade tecnológica
Para Marcuse, é muito importante assinalar que esta redução
unidimensional da linguagem é um dos modos de expressão e exercício da
racionalidade tecnológica instrumental. Com efeito, «o logos correcto é
tecnologia» porque «projecta e responde à realidade tecnológica», ou seja, a
uma interpretação tecnológica da realidade. Por seu lado, a racionalidade
tecnológica «revela o seu carácter político à medida que se converte no
veículo por excelência de uma dominação total» (O Homem
Unidimensional). O a priori tecnológico é um a priori político.

3.6.3. Pensamento crítico-utópico


Como dissemos atrás, e contrariamente à tese de Freud, Marcuse
acredita na possibilidade de uma civilização ou cultura não-repressiva,
recorrendo para tal a aspectos importantes do pensamento de Freud,
especialmente aos pressupostos ontológicos contidos na sua teoria
metapsicológica.
A racionalidade tecnológica é o ponto mais elevado da interpretação do
ser em termos «lógicos», como logos, o que aliás é muito comum na
história da filosofia. O processo histórico é encarado como luta entre «a
lógica da dominação» e «o desejo ou vontade de satisfação». Ora, quando
Freud entende a essência do ser como eros, opõe-se à tradição que o
pensava como logos e regressa assim «ao primeiro estado da filosofia de
Platão, que concebia a cultura não como uma sublimação repressiva mas
como o desenvolvimento livre do eros» (Eros e Civilização). É a partir
desta consideração da realidade que Marcuse concebe uma cultura não-
repressiva que, mediante o surgimento de um novo princípio da realidade,
estabeleça uma nova relação entre os instintos e a razão e concilie a
felicidade e a liberdade.
A imaginação e uma maior compreensão do pensamento são
preponderantes para levar a cabo tal tarefa. O próprio Freud tinha já
referido a ligação essencial entre a imaginação e o princípio do prazer, entre
fantasia e desejo. Por seu lado, Marcuse destaca os pontos seguintes:

a) A capacidade produtiva da imaginação projecta e dá a pensar a


realização não-repressiva do desejo e a conjugação da felicidade e razão.

b) O valor genuíno da imaginação não está no passado (a imaginação


reprodutiva) mas no futuro: na sua capacidade para inventar o que pode
ser, sobrepondo-se ao princípio da realidade e possibilitando assim que o
real se liberte das suas amarras factuais e repressivas.
c) Esta função da imaginação pode ser considerada «irreal» e o mundo
por ela projectado uma mera «utopia». Mas estas considerações são o
produto do princípio da realidade estabelecido: é o princípio da actuação e
de produtividade que relega os mundos projectados pela imaginação «para
essa terra de ninguém que é a utopia».

d) A imaginação poética e a arte são um dos modos de esclarecimento e


realização de uma cultura e de uma sociedade não-repressivas, que
«preservam a verdade dos sentidos e reconciliam – na realidade da
liberdade – as faculdades “inferiores” e “superiores” do homem: a
sensualidade e o intelecto, o prazer e a razão» (Eros e Civilização).

Tudo se encaminha para uma «dessublimação da razão» (entendida esta


como mundo separado, como domínio e repressão) e para uma «razão
sensual», no sentido de que a esfera espiritual se torne objecto «directo» do
eros.
Por outro lado, para isso é preciso recuperar a natureza verdadeira e a
função crítico-utópica do pensamento, cujo carácter genuíno se revela,
segundo Marcuse, na teoria dos universais: «a questão do status dos
universais é o verdadeiro centro do pensamento filosófico, porque o seu
tratamento revela a posição e a “função histórica” de uma filosofia na
cultura intelectual» (O Homem Unidimensional). Referiremos apenas os
aspectos essenciais:

a) O pensamento conceptual exprime a diferença e a tensão entre o que é


e o que pode ser, entre a realidade factual e a possibilidade que contém e
ainda não realizou. Neste sentido, o pensamento conceptual manifesta um
momento negativo no que é, e por conseguinte exerce a sua negação: «o
conceito particular denota aquilo que a entidade particular é e não é».
b) Como instrumentos de compreensão das potencialidades e
possibilidades das coisas e da realidade, os conceitos e o pensamento são ao
mesmo tempo históricos e supra-históricos: com efeito, abrem na realidade
o espaço do possível, da transcendência ou superação dessa realidade.

c) O pensamento possibilita uma transcendência intramundana que está


estreitamente ligada à liberdade entendida como libertação do poder
opressivo dos factos. É o pensamento que afirma a união da teoria e prática.

CARÁCTER SUBVERSIVO E CRIADOR DA LINGUAGEM


POÉTICA
A arte contém a racionalidade da negação (...). E dado que a
contradição é obra do logos – a confrontação racional «daquilo que não
é» com «aquilo que é» –, deve haver um meio de comunicação. A
vanguarda luta para encontrar este meio, ou melhor, luta contra a sua
absorção no mundo unidimensional predominante, revela-se nos esforços
da vanguarda por criar um distanciamento que tornaria a verdade artística
comunicável de novo (...). Paul Valéry insiste no compromisso inelutável
da linguagem poética com a negação. Os versos desta linguagem «só
falam de coisas ausentes» (...). Deste modo, a linguagem poética fala
daquilo que é deste mundo, que é visível, tangível e audível no homem e
na natureza, e daquilo que não é visto, tocado ou escutado.
A linguagem poética é uma linguagem de conhecimento, pois foi
criada e posta em movimento num meio que apresenta o ausente; mas é
um conhecimento que subverte o positivo. Na sua função cognitiva, a
poesia realiza a grande tarefa do pensamento: o trabalho que faz viver em
nós aquilo que não existe.
Nomear as «coisas que estão ausentes» é romper o encanto das coisas
que são; mais, é a introdução de uma diferente categoria de coisas no
estabelecido: «o começo de um mundo».
Marcuse, O Homem Unidimensional

Na sequência desta concepção da imaginação e do pensamento, a utopia


está longe de ser «a terra de ninguém»; pelo contrário, enraiza-se e cresce
como reino deste mundo. Em O Fim da Utopia, Marcuse escreve: «Porque
as chamadas possibilidades utópicas não são absolutamente utópicas (...) a
tomada de consciência dessas possibilidades e das forças que as impedem e
as negam exige de nós uma oposição muito realista e pragmática. Uma
oposição livre de ilusões mas também de derrotismos, cuja mera existência
atraiçoa desde logo as possibilidades da liberdade para beneficiar o que
existe.»

O PENSAMENTO CRÍTICO E OS SEUS LIMITES


O pensamento crítico deve esforçar-se por definir o carácter irracional
da racionalidade vigente (que é cada vez mais manifesto) e definir as
tendências que levaram esta racionalidade a engendrar a sua própria
transformação. Dizemos «a sua própria» transformação porque, como
totalidade histórica, desenvolveu forças e capacidades que por si mesmas
se convertem em projectos que ultrapassam a totalidade estabelecida. São
possibilidades da racionalidade avançada e, como tal, comprometem toda
a sociedade. A transformação tecnológica é ao mesmo tempo uma
transformação política, mas essa mudança política só se converterá em
mudança social e qualitativa se alterar a direcção do progresso técnico, ou
seja, se desenvolver uma nova tecnologia, porque a tecnologia vigente
converteu-se num instrumento da política destrutiva.
Essa mudança qualitativa seria uma transição para um estádio mais
alto de civilização se as técnicas fossem destinadas e utilizadas na
pacificação da luta pela existência. De modo a assinalar as perturbantes
implicações desta afirmação, diga-se que esta nova orientação do
progresso técnico constituiria uma catástrofe para a orientação actual; não
seria uma evolução quantitativa da racionalidade dominante (científica e
tecnológica) mas uma transformação catastrófica desta racionalidade.
Seria a aparição de uma nova ideia de razão, teórica e prática (...).
Ao compreender os factos fornecidos, é indubitável que o conceito
dialéctico os transcende. É este o sinal da sua verdade. Define as
possibilidades históricas, e até mesmo as necessidades; mas a sua
realização só pode radicar na prática que corresponda à teoria e, no
presente, a prática não fornece essa resposta (...).
A teoria crítica da sociedade não possui conceitos que possam lançar
uma ponte sobre o abismo entre o presente e o seu futuro: continua a ser
negativa, pois não faz qualquer promessa nem apresenta qualquer êxito.
Marcuse, O Homem Unidimensional.
4. HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS
IDEOLOGIAS

4.1. A revolução ontológica da hermenêutica: Gadamer

A hermenêutica é uma questão antiga mas também um dos problemas


fundamentais da filosofia contemporânea. É um problema muito complexo,
não só devido às diferentes interpretações da sua natureza e procedimentos
(desde Dilthey, Nietzsche e Heidegger, até Gadamer, Apel e Ricoeur), mas
também por causa da sua relação estreita com outras correntes do
pensamento contemporâneo, tais como a filosofia analítica, a psicanálise e a
teoria crítica da sociedade.
Por hermenêutica entende-se a teoria ou arte da interpretação, ou seja, o
método adequado para uma interpretação correcta de um texto.
Em finais do século XIX, a hermenêutica era considerada a metodologia
das «ciências do espírito», por oposição à metodologia das «ciências da
natureza». Nesse sentido, o âmbito da hermenêutica era muito particular,
restringindo-se a algumas ciências, e a sua significação era basicamente
«metodológica»: consistia na observação precisa de uma série de regras que
permitissem a interpretação correcta em determinadas ciências.
Foi a crise radical da cultura (Nietzsche) e a procura das condições
ontológicas que instituem a compreensão como um modo de ser do homem
(Heidegger) que conferiram à hermenêutica o carácter de universalidade, e
a tarefa de radicalidade e de fundamentação. Foi esta a diligência a que
Gadamer se propôs. Usando a sua terminologia, falaremos da
«universalidade da hermenêutica» e da sua «revolução ontológica».

4.1.1. A tarefa da hermenêutica

Dos traços que caracterizam o nosso tempo, Gadamer assinala os


seguintes:

a) O mundo da indústria e do trabalho foi determinado pela moderna


ciência natural físico-matemática. A primazia e critérios desta ciência
moderna regem a determinação dos conceitos de conhecimento e verdade.

b) A essência e até a própria possibilidade desta ciência consiste no


carácter fundamental do método como conjunto de regras, desprovidas de
pressupostos, que fundam e estabelecem o objectivismo com pretensões de
universalidade.

c) Assim considerada, a voz da ciência constitui a autoridade intangível


e anónima, estabelecendo também o que deve ser considerado como
«mundo» e oferecendo a correcta «experiência do mundo».

d) Além disto, a nossa época assiste ainda a uma nivelação crescente de


todas as formas de vida e, por conseguinte, a uma homogeneização da
linguagem, decorrentes das pretensões de universalidade da metodologia
científica.
Segundo Gadamer, a questão fundamental da nossa época consiste em
saber (e ajuizar criticamente) como é que a nossa imagem natural do mundo
se refere a essa autoridade intangível e anónima que é a ciência. Na
verdade, o facto e fenómeno da compreensão (de que a hermenêutica se
ocupa) estão longe de se reduzirem à razão científica, e muito menos de
verem o seu âmbito genuíno regido e determinado pela própria ciência. A
compreensão é o momento essencial e ontologicamente definidor do
homem, orientando a experiência humana do mundo, seja ela científica,
pré-científica, estética, histórica, etc.
A linguagem é, antes do mais, o modo fundamental pelo qual se opera o
nosso ser-no-mundo, é a forma que engloba e orienta toda a experiência e
constituição do mundo. Comparativamente com esta estrutura prévia e
ontológica de compreensão (na qual a linguagem é a matriz de uma
experiência rica e complexa do mundo), a ciência está sempre sujeita às
condições de uma determinada abstracção metódica e só tem êxito se
puser de lado outras questões possíveis, outros modos de compreensão e
outras maneiras de significar e descobrir a verdade. A hermenêutica
pretende superar a «abstracção» da ciência e o seu metodologismo peculiar,
o que obviamente não significa opor-se à ciência ou erigir uma espécie de
anticiência; quer sobretudo ultrapassar essa concepção da hermenêutica
como uma metodologia de compreensão nas chamadas ciências do espírito,
também submetida a essa peculiar abstracção ou mutilação epistemológica.
Dito de modo mais rigoroso, mais do que superar, a hermenêutica
propõe-se recuar ao tempo anterior a essa estrutura prévia de compreensão
que, constituindo o carácter essencial linguístico, histórico e finito do
homem fundamenta e justifica a sua pretensão e alcance universal e abarca
todas as formas de experiência humana do mundo, desde a que é
estritamente científica até à estética, a ética, etc.
Para Gadamer, a hermenêutica não é apenas um problema de
metodologia das ciências humanas nem tão-pouco uma questão resultante
das discussões actuais sobre os modos científicos de pensar e de filosofar; é
antes um problema sobre a própria possibilidade da existência humana, na
medida em que a dimensão hermenêutica é fundamental para a nossa
compreensão do mundo em todas as suas formas: desde a comunicação
inter-humana até à manipulação social; desde a vida do indivíduo em
sociedade até às formas de experiência como o direito, a arte e a religião.
Em conclusão, a hermenêutica também quer ser uma experiência da
verdade: não porque o âmbito científico seja desprovido de verdade, mas
sobretudo porque o fenómeno da verdade ultrapassa esse âmbito, pois tem
outros modos de se expressar e mostrar; em todo o caso, é também
necessário justificar por que razão é possível existir algo como a verdade.

O PROBLEMA HERMENÊUTICO
O fenómeno da compreensão e da interpretação correcta do
compreendido não é somente um problema específico da metodologia das
ciências do espírito. Desde há muito que existem também uma
hermenêutica teológica e uma hermenêutica jurídica, embora o seu
carácter diga menos respeito à teoria da ciência do que ao comportamento
prático do juiz ou sacerdote formados numa ciência posta ao seu serviço.
Deste modo, desde a sua origem histórica que o problema da
hermenêutica ultrapassa as fronteiras impostas pelo conceito de método
da ciência moderna. Compreender e interpretar textos não é somente uma
instância científica mas também algo que, com toda a evidência, pertence
à experiência humana do mundo. Na sua origem, o problema
hermenêutico não é de modo algum um problema metódico, não se
interessando por um método da compreensão que permita submeter os
textos (tal como qualquer outro objecto da experiência) ao conhecimento
científico; também não se ocupa em constituir basicamente um
conhecimento seguro e de acordo com o ideal metódico da ciência. E no
entanto trata de ciência, e também de verdade. Quando se compreende a
tradição, não se compreende textos mas adquire-se perspectivas e
conhece-se verdades. Que espécie de conhecimento é este e qual é a sua
verdade? Ora, tendo em conta a primazia da ciência moderna no âmbito
do esclarecimento e justificação filosófica dos conceitos de conhecimento
e verdade, esta pergunta não parece realmente legítima. Aliás, nem sequer
no âmbito das ciências é possível iludi-la totalmente. O fenómeno da
compreensão não só está presente em todas as referências humanas ao
mundo mas também tem validade própria dentro da ciência, e resiste a
qualquer tentativa de o transformar em método científico. Aliás, a
investigação actual insiste nesta resistência, que se afirma dentro da
ciência moderna perante a pretensão de universalidade da metodologia
científica. O seu objectivo é rastrear a experiência da verdade, que
transcende o âmbito do controlo da metodologia científica, onde quer que
se encontre, e indagar sobre a sua legitimação. Deste modo, as ciências
do espírito confluem com formas da experiência que estão fora da
ciência: com a experiência da filosofia, com a da arte e com a da própria
história. São formas de experiência nas quais se expressa uma verdade
que não pode ser verificada com os meios de que a metodologia científica
dispõe.
Gadamer, Verdade e Método.

4.1.2. A estrutura da hermenêutica

A condição de possibilidade da metodologia da compreensão científica


(e do objectivismo que ela procura e que a caracteriza) pressupõe aquilo
que Gadamer designa como distanciação alienante (Verfremdung), ou
seja, pôr à distância aquilo que se pretende conhecer. Só essa distanciação
pode possibilitar o juízo e a compreensão justa e verdadeira que dá origem à
objectividade (o referido «objectivismo»), na medida em que nos
libertamos de pré-supostos e de pré-conceitos que dificultariam a
compreensão; só assim é que a compreensão se liberta do peso da tradição e
de todas as suas mediações e intermediários.
Neste sentido, Descartes traçara já um caminho nítido: «evitar
cuidadosamente a precipitação e a prevenção». A compreensão científica e
a própria filosofia moderna (fundada sobre a experiência e o modelo da
ciência) apoiam-se nessa distanciação alienante para transformarem a
subjectividade abstracta e o juízo desinteressado e isento de qualquer
pressuposto na situação e na exigência fundamentais da compreensão.
Face a isto, segundo Gadamer, a compreensão e a experiência
hermenêutica possuem uma estrutura cujos momentos principais são:
a) Toda a compreensão está de algum modo previamente orientada para
uma pré-compreensão, isto é, para determinados pré-juízos. Diz Gadamer
que «são os nossos pré-juízos e não tanto os nossos juízos que constituem o
nosso ser». O prejuízo não tem que ser necessariamente injustificado ou
erróneo. A bem dizer, «a historicidade da nossa existência implica que os
prejuízos (no sentido etimológico da palavra) constituam as linhas de
orientação prévias e provisórias que possibilitam a nossa experiência».
No sentido indicado, estes prejuízos não são apenas os da nassa presente
situação particular mas também os de uma tradição passada, que nos fazem
pertencer a ela. Esta pertença deriva da historicidade da nossa existência e
vincula-nos a uma história que nos precede, nos marca e nos ultrapassa. Daí
pois a reabilitação da tradição e da autoridade que possa corresponder
criticamente à dita tradição.

b) Como a compreensão está previamente orientada por prejuízos e se


reporta à tradição para participar numa comunidade de sentido, possui por
isso uma estrutura circular e acontece num movimento circular. Neste
sentido, fala-se de «círculo hermenêutico»; este círculo é, no entanto,
singular pois permanece sempre aberto.

c) Por conseguinte, e longe de ser imediata, a compreensão encontra-se


submetida a uma complexa rede de mediações. Neste contexto, é relevante
o que Gadamer designa por «história efectual» (Wirkungsgeschichte) ou,
mais precisamente, «consciência da história efectual» ou «consciência
exposta aos efeitos da história» (wirkungsgeschichtliche Bewusstsein).

TRADIÇÃO E LINGUISTICIDADE
O facto de a essência da tradição se caracterizar pela sua linguagem
também acarreta consequências hermenêuticas. Perante qualquer outra
forma de tradição, a compreensão da tradição linguística mantém uma
primazia particular. A tradição linguística poderá muito bem estar por
detrás dos monumentos das artes plásticas no que se refere à contiguidade
e conspicuidade. Na verdade, a falta de contiguidade não é neste caso um
defeito; na aparente deficiência ou estranheza abstracta dos «textos», a
pertinência prévia de tudo o que é linguístico expressa-se de uma maneira
peculiar ao âmbito da compreensão. A tradição linguística é tradição no
verdadeiro sentido da palavra, o qual quer dizer que não é apenas um
resíduo que foi preciso investigar e interpretar na sua qualidade de
relíquia do passado. O que chega a nós pelo caminho da tradição
linguística não é o que restou mas sim algo que se transmite, algo que se
nos diz a nós: quer sob a forma do relato directo, na qual o mito, a lenda,
os usos e os costumes têm a sua vida; quer sob a forma da tradição escrita
cujos sinais estão imediatamente destinados a qualquer leitor em
condições de os ler. O facto de a tradição se caracterizar pela sua
linguisticidade adquire o seu significado hermenêutico pleno no momento
em que a tradição se torna escrita. Na escrita, a linguagem liberta-se
relativamente à sua realização. Sob a forma de escrita, tudo o que é
transmitido dá-se simultaneamente para qualquer presente. Dá-se nela
uma coexistência, única no seu género, de passado e presente, pois a
consciência presente tem a possibilidade de aceder livremente a tudo
quanto foi transmitido por escrito.
Gadamer, Verdade e Método.

O CÍRCULO HERMENÊUTICO
Por conseguinte, o círculo não é de natureza formal; não é subjectivo
nem objectivo, mas descreve antes a compreensão como a interpretação
do movimento da tradição e do movimento do intérprete. A antecipação
de sentido que guia a nossa compreensão de um texto não é um acto da
subjectividade mas é determinada a partir da comunidade que nos une à
tradição. Mas na nossa relação com a tradição, esta comunidade está
submetida a um processo de formação contínua. Não é simplesmente um
pressuposto sob o qual nos encontramos sempre; somos nós próprios que
o instauramos na medida em que compreendemos e participamos do
acontecer da tradição, e continuamos a determiná-lo assim a partir de nós
próprios. Neste sentido, o círculo da compreensão não é um círculo
«metodológico» mas algo que descreve um momento estrutural
ontológico da compreensão.
Gadamer, Verdade e Método.

Isto significa que não podemos fugir nem distanciarmo-nos do devir


histórico até tornarmos o passado em mero «objecto»; a nossa própria
consciência sofre as determinações de um acontecer histórico efectivo que
não lhe permite situar-se perante o passado; ao inserir-se no devir histórico,
a consciência recebe a acção que se exerce sobre si, fica submetida a ela e,
de certo modo, assume a verdade dessa acção.

d) De qualquer modo, a compreensão acontece na e a partir da nossa


situação presente, no horizonte que a define; a essa situação aplicamos o
compreendido e transmitido (tradição) na «história efectual», ao mesmo
tempo que dele nos apropriamos (ou seja, fazemos do assim aplicado algo
próprio e apropriado para nós na nossa situação particular). Deste modo, a
compreensão cumpre-se em e mediante uma fusão de horizontes.

4.1.3. Linguagem e mundo

Assim, perante a «distanciação alienante» e uma compreensão livre de


prejuízos, Gadamer mostra o carácter circular da compreensão e a «relação
primordial de pertença» a uma tradição e a uma comunidade de sentido.
Todos estes momentos da compreensão (Verständnis), inclusive a
própria possibilidade de uma compreensão errada (Missverständnis),
pressupõem «um acordo sustentador e guia» (tragendes Einverständnis)
que, além disso, fundamenta a pretensão de universalidade da experiência
hermenêutica.
A linguagem é o medium e o elemento universal, o pressuposto
fundamental da compreensão. Compreender é estar de acordo com a coisa
ou assunto tratado e o processo da compreensão é um processo linguístico:
«a linguagem é o meio em que se realiza o acordo dos interlocutores e o
consenso sobre a coisa». Daí a relação interna e muito próxima entre
linguagem, compreensão e experiência do mundo. «A linguagem não é
apenas uma mera faculdade do homem que está no mundo mas é nela que
se baseia, e e nela que é representado aquilo que os homens entendem por
mundo. Para o homem, o mundo surge-lhe como mundo, numa forma que
não tem existência para mais nenhum outro ser vivo a não ser para ele. E
esta existência do mundo constitui-se linguisticamente (...). O mundo só é
mundo quando acede à linguagem: a linguagem só tem verdadeira
existência porque representa o mundo.» (Verdade e Método.)
A dimensão ontológica da hermenêutica e a sua pretensão e carácter de
universalidade funda-se no carácter linguístico da compreensão e na
aceitação do mundo que a linguagem comporta.

4.2. A teoria crítica de Habermas

Ao contrário da teoria tradicional (como assinalamos quando falámos da


Escola de Frankfurt, da qual Habermas é o último e o mais destacado
representante), o objectivo da teoria crítica é fazer uma clarificação
racional da sociedade e uma auto-reflexão crítica da tradição no âmbito das
ciências e da organização social e política, e esta intenção é claramente de
emancipação.
Mas o processo do Iluminismo (a referida «dialéctica do Iluminismo») e
o predomínio da ciência e da técnica levaram a um progressivo abandono
dessa permanente auto-reflexão por via de um «objectivismo» e
«positivismo» crescentes, que transformaram a ciência e a técnica em
ideologia ao serviço da legitimação social e política. Na sua singular
riqueza e complexidade, a teoria crítica de Habermas pode ser encarada
como uma crítica às ideologias, visando sempre a emancipação dos seres
humanos e a instauração de uma comunidade racional e de uma ética,
fundadas numa teoria da verdade e da acção comunicativa.

4.2.1. Sociedade, ciência e técnica

Habermas refere que nas sociedades capitalistas avançadas «até a ciência


e a técnica se convertem em ideologias». Para se compreender o sentido e o
alcance deste facto, é necessário perceber o seguinte:

a) A distinção fundamental entre trabalho e interacção. «Por trabalho


ou acção racional que visa um fim, entendo quer a acção instrumental
quer a escolha racional, ou uma combinação das duas. A acção instrumental
orienta-se por regras técnicas que se apoiam no saber empírico (...). O
comportamento da escolha racional orienta-se segundo estratégias que
dependem de um saber analítico.»
«Por acção comunicativa entendo uma interacção simbolicamente
mediada que se orienta segundo normas inter-subjectivamente vigentes
que definem expectativas recíprocas de comportamento, e que devem ser
entendidas e reconhecidas pelo menos por dois sujeitos agentes.»
(Habermas, Técnica e Ciência como «Ideologia»). A acção comunicativa
tem a ver com as normas morais que regem uma determinada sociedade, ao
passo que a acção instrumental se refere à resolução de questões empíricas
no âmbito das ciências da natureza.

b) Relativamente a estes dois tipos de acção, importa ainda referir a


seguinte distinção na sociedade: por um lado, o enquadramento
institucional, composto de «normas que regem as interacções
linguisticamente mediadas»; por outro lado, subsistemas, como a
organização económica ou o aparelho estatal, e por isso o que se torna
fundamentalmente institucionalizado são «acções racionais com vista a um
fim» (o.c.).
c) Por último, a distinção entre sociedades tradicionais e sociedades
modernas. São consideradas sociedades tradicionais aquelas em que «os
subsistemas da acção racional com vista a um fim se mantêm dentro dos
limites da eficácia legitimadora das tradições culturais» (o.c.). Estamos no
limiar de uma sociedade moderna quando o enquadramento institucional é
atacado e vai perdendo o seu poder de legitimação a favor dos subsistemas:
os conteúdos práticos são eliminados, a diferença entre trabalho e
interacção desaparece da consciência dos seres humanos e o próprio
progresso científico-técnico torna-se no fundamento da legitimação.
A acção instrumental e a racionalidade técnica convertem-se assim no
critério e no poder decisório da organização social e política, e em última
instância de toda a vida humana. É ainda requerida uma subtil, progressiva
e profunda despolitização dos homens de modo a atingir-se uma completa
organização científico-tecnocrática da vida e o predomínio da racionalidade
técnica, esquecendo-se a razão prática.

4.2.2. O positivismo

O desmoronamento da acção comunicativa e as consequências daí


advenientes estão ligados à progressiva dissolução da filosofia nas ciências
ou, por outras palavras, estão ligados à redução da filosofia (como teoria
crítica da sociedade) a uma simples metodologia científica ou teoria da
ciência, ela própria submetida ao domínio tecnocrático da sociedade
industrial avançada.
Para Habermas, o «positivismo» é esta dissolução da filosofia (como
teoria do conhecimento) em metodologia e teoria da ciência, o que ele
critica acerbamente. «O positivismo significa o fim da teoria do
conhecimento, que foi substituída por uma teoria da ciência. Enquanto a
problemática lógico-transcendental acerca das condições do conhecimento
possível aspirava também à explicação do sentido do conhecimento em
geral, já o positivismo, pelo contrário, elimina esta questão porque já não
faz sentido devido à existência das ciências modernas.» (Habermas,
Conhecimento e Interesse.)
Nas alíneas seguintes passamos a referir alguns aspectos da crítica de
Habermas:

a) O positivismo não só põe de lado a questão do problema e do sentido


do conhecimento como também a julga de antemão. Daí o seu dogmatismo
e a sua conversão em «cientificismo», ou seja, «a convicção de que já não
se pode emendar a ciência como uma forma de conhecimento possível, e
por isso há que identificar o conhecimento com a ciência» (o. c.).

b) O positivismo prescinde do sujeito do conhecimento como sistema de


referência que confere sentido e funcionalidade a qualquer forma de
conhecimento, tendo-o substituído pelo método abstracto.

c) O positivismo oculta a problemática da constituição do mundo e


coloca-se na posição ingénua de um «objectivismo» erróneo que crê
descrever a realidade numa relação isomórfica com ela.

d) Além disso, esquece que a constituição e desenvolvimento das


próprias ciências estão intimamente ligadas ao processo objectivo de
formação da espécie humana.

e) Devido ao seu carácter abstracto e à sua a-historicidade, o positivismo


suprime as velhas tradições de um modo tão eficaz que só ele permanece
como instância de apreciação e critério, embora desconheça a sua própria
história.

f) O Em suma, o positivismo renega a reflexão, vendo-se assim


impedido de aceder a essa necessária auto-reflexão que define o
pensamento e a teoria crítica.
A CONSCIÊNCIA TECNOCRÁTICA
A consciência tecnocrática é por um lado, «menos ideológica do que
todas as ideologias precedentes; pois não tem o poder opaco de uma
ofuscação que apenas sugere falsamente a realização dos interesses. Por
outro lado, a ideologia de fundo, um tanto vítrea, hoje dominante, que faz
da ciência um feitiço, é mais irresistível e de maior alcance do que as
ideologias de tipo antigo, já que com a dissimulação das questões não só
justifica o interesse parcial de dominação de uma determinada classe e
reprime a necessidade parcial de emancipação por parte de outra classe,
mas também afecta o interesse emancipado como tal do género humano.
-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–
Na consciência tecnocrática, não se reflecte a anulação de uma
conexão ética, mas a repressão da «eticidade» como categoria das
relações vitais em geral. A consciência positivista comum põe fora de
acção o sistema de referência da interacção mediante a linguagem
ordinária, no qual a dominação e a ideologia surgem sob as condições de
uma comunicação distorcida e no qual também podem ser penetrados
pela reflexão. A despolitizacão das massas da população, que é
legitimada pela consciência tecnocrática, é ao mesmo tempo uma
autoprojecção dos homens em categorias, tanto da acção instrumental
como do comportamento adaptativo: os modelos coisificados das ciências
transmigram para um mundo sociocultural da vida e obtêm ali um poder
objectivo sobre a autocompreensão. O núcleo ideológico desta
consciência é a eliminação da diferença entre práxis e técnica – um
reflexo, mas não o conceito, da nova constelação que se estabelece entre
o marco institucional desprovido de poder e os sistemas autonomizados
da acção racional dirigida a fins.
A nova ideologia viola assim um interesse que é inerente a uma das
duas condições fundamentais da nossa existência cultural: à linguagem
ou, mais exactamente, à forma da socialização e individualização
determinada pela comunicação mediante a linguagem comum. Este
interesse estende-se tanto à manutenção de uma intersubjectividade da
compreensão como ao estabelecimento de uma comunicação liberta da
dominação. A consciência tecnocrática faz desaparecer este interesse
prático por detrás do interesse pela ampliação do nosso poder de
disposição técnica.
Habermas, Técnica e Ciência como «Ideologia», Lisboa, Edições 70, 2014, pp. 80-82.

4.2.3. Os interesses do conhecimento

O conhecimento está intimamente relacionado com o conceito de


interesse e depende dele. O interesse técnico e o interesse prático estão
também muito ligados à acção instrumental e à acção comunicativa (e ao
seu enraizamento na estrutura técnica e social do ser humano).
Habermas caracteriza os interesses do seguinte modo; «Chamo
interesses às orientações básicas inerentes a determinadas condições
fundamentais da reprodução e autoconstituição possíveis da espécie
humana, ou seja, o trabalho e a interacção» (o. c.). Deste modo, o interesse
técnico orienta a relação do ser humano com a natureza com vista a uma
manipulação técnica da realidade, expressando-se cognoscitivamente nas
ciências da natureza.
O interesse prático, por seu lado, orienta a relação do ser humano com
os outros seres humanos na acção prática que os constitui, regendo a sua
acção com vista à comunicação intersubjectiva e à constituição de um
entendimento entre eles. O interesse prático expressa-se nas chamadas
ciências histórico-hermenêuticas.
A este respeito, convém assinalar o seguinte:

a) O interesse técnico e o interesse prático são inseparáveis e


interdependentes, embora sejam claramente distintos e cada um comporte
diferentes ciências e linguagens.
b) Assim, todo o conhecimento é movido e orientado por um interesse; e
por isso é falsa a ideia positivista de um conhecimento único e
desinteressado, o que comporta graves consequências teóricas e práticas.

c) Os interesses do conhecimento recuperam o sujeito do conhecimento,


justamente na concreção social e histórica que o define.

Todavia, devemos perguntar-nos qual é o sentido da inter-relação entre


os dois interesses, sobretudo no que diz respeito à meta que os orienta ou
deve orientar. Neste momento intervém o interesse emancipativo, que
corresponde ao processo histórico de autoconstituição do ser humano na sua
relação com a natureza e na sua acção social, o qual progressivamente
liberta os homens das opressões da natureza e das deficiências da
organização social.

CARACTERÍSTICAS DA ÉTICA DO DISCURSO


Todas as éticas cognitivas remetem para a intuição que Kant formulou
como o imperativo categórico. Não me interessam aqui as diversas
formulações kantianas mas sim a ideia a elas subjacente e que irá dar
conta do carácter impessoal ou geral dos mandatos morais válidos. O
princípio moral é concebido de tal modo que exclui como inválidas as
normas que não conseguem a aprovação qualificada de todos os
destinatários possíveis. Por conseguinte, o princípio fulcral que
possibilita o consenso tem que assegurar que só se aceitam como válidas
as normas que expressam uma vontade geral: isto é, e como Kant assinala
amiúde, que podem converter-se em «lei geral» (...).
-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–
Em conformidade com a ética discursiva, uma norma só pode aspirar a
ter validade quando todas as pessoas por ela afectadas conseguem estar
(ou pôr-se) de acordo enquanto participantes de um discurso prático no
qual essa norma é válida. Este postulado ético discursivo (D), ao qual
voltaremos a referir-nos com a fundamentação do postulado da
universalidade (U), pressupõe já que se pode fundamentar a escolha de
normas (...).
-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–-–
Devido aos dois pressupostos de que a) as aspirações de validade
normativa têm um sentido cognitivo e podem ser tratadas como
aspirações de verdade e b) a fundamentação de normas e mandatos requer
a realização de um discurso real que, em última instância, não é
monológico, deste modo uma ética discursiva mantém-se e desaparece,
pois não tem nada a ver com uma argumentação hipoteticamente
formulada no foro interno.
Habermas, Consciência Moral e Acção Comunicativa.

O interesse emancipativo é também explicado pelo conceito de auto-


reflexão, que «liberta o sujeito da dependência de poderes hipostasiados. A
auto-reflexão é determinada por um interesse cognoscitivo emancipatório.
As ciências criticamente orientadas partilham-no com a filosofia» (Técnica
e Ciência como «Ideologia»).
Habermas diz que as «ciências sociais críticas», a psicanálise e a crítica
das ideologias, correspondem ao interesse emancipativo. O mesmo
acontece com a filosofia, que é «a forma mais radical possível de auto-
reflexão», sempre contra todas as formas de objectivismo» (A Reconstrução
do Materialismo Histórico). Por conseguinte, a filosofia tem um propósito
crítico, embora também possa ser chamada, mesmo que minimamente, para
propósitos de construção.

4.2.4. A teoria da verdade e a ética do discurso

Como «propósito de construção» podemos considerar a ideia de uma


pragmática universal que possibilita a existência de uma comunidade
intersubjectiva de compreensão recíproca e de comunicação, e que está em
íntima ligação com uma teoria da verdade e uma ética. Tudo isto se
encontra na linguagem, dado que o pensamento contemporâneo substituiu a
problemática da consciência pela problemática da linguagem.
A verdade tem a ver com a legitimação de um discurso teórico, cuja
pretensão de validade é reconhecida pelos sujeitos participantes no diálogo.
A essência da verdade tem como incumbência justificar-se mediante um
consenso racional, através de argumentação livre de coacções e erros e na
qual todos possam participar. Tal consenso remete em última instância para
uma «situação ideal de fala».
Para além de ser verdadeiro, o discurso tem de ser correcto (ético) e
deve procurar fundamentar-se em normas éticas. Esta ética, também ela
fundada na linguagem e no discurso, quer ser cognitiva (na medida em que
pretende fundamentar as normas morais), deontológica (porque estabelece
a prioridade do correcto sobre o bom), universal (de acordo com o
procedimento de universalização do imperativo categórico kantiano) e
formal (como fundamento de legitimação moral).
BIBLIOGRAFIA

HISTÓRIAS GERAIS DA FILOSOFIA

ABBAGNANO, N. Historia de la Filosofia. 3 vols. Barcelona, Montaner y


Simón.
CHATELET, F. (org.), Historia de la Filosofia. 4 vols. Madrid, Espasa Calpe.
COPLESTON, F. Historia de la Filosofia. 6 vols. Barcelona, Ariel.
O’CONNOR, D. J. (org.), Historia de la Filosofia Occidental, 4 vols. Buenos
Aires, Paidós.
RUSSEL, B. History of western philosophy and its connection with political
and social circunstances from the earliest times to the present day, Londres,
George Allen and Unwin.

PRIMEIRA PARTE

DOS PRÉ-SOCRÁTICOS À IDADE MÉDIA

CAPÍTULOS 1-3
GIGON, O. Los origenes de la filosofia griega, Madrid, Gredos. Grube, G. El
pensamiento de Platón, Madrid, Gredos.
JAEGER, W. La teologia de los primeros filósofos griegos, México, Fondo
de Cultura Económica.
KIRK, G. e Raven, J. Los filósofos presocráticos, Madrid, Gredos.
LONG, A. La filosofia helenística, Madrid, Revista de Occidente.
MOREAU, J. Aristóteles y su escuela, Buenos Aires, Eudeba.
ROBIN, L. Platon, Paris, Félix Alcan.
RODRIGUES ADRADOS, F. Ilustración y Política en la Grecia Clássica,
Madrid, Revista de Occidente.
ROSS, W. Aristóteles, Buenos Aires, Sudamericana.
ZUBIRI, X. Sócrates y la sabiduria griega, em «Naturaleza, Historia, Dios».
Madrid, Ed. Nacional.

CAPÍTULO 4
BREHIER, E. La filosofia de Plotino, Buenos Aires, Sudamericana.
GIGON, O. La cultura antigua y el cristianismo, Madrid, Gredos.
GILSON, E. La filosofia en la Edad Media, 2 vols. Madrid, Gredos.
––, L’esprit de la philosophie médiévale, Paris, Vrin.
––, Introduction à l’étude de St. Augustin, Paris, Vrin.
JOLIVET, R. Saint Augustin et le néoplatonisme chrétien, Paris, Denoël et
Steele.

CAPÍTULO 5
CHENU, D. Introduction à l’étude de St. Thomas d’Aquin, Montreal, Institut
d’Etudes Médiévales.
COPLESTON, F. El pensamiento de Santo Tomás, México, Fondo de Cultura
Económica, Breviarios.
GILSON, E. Le thomisme. Introduction à la philosophie de St. Thomas
d’Aquin, Paris, Vrin.

CAPÍTULO 6
ANDRÉS, T. El nominalismo de Guillermo de Ockham como filosofia del
lenguage, Madrid, Gredos.
BAUDRY, L. Guillaume d’Ockham. Sa vie, ses oevres, ses idées sociales et
politiques, Paris, Vrin.
RÁBADE, S. Guillermo de Ockham y la filosofia del siglo XIV, Madrid,
C.S.I.C.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
Do período correspondente a esta parte segue-se uma relação de obras
publicadas por Edições 70.

COL. BIBLIOTECA BÁSICA DE FILOSOFIA:


ADORNO, Francesco – Sócrates, n.º 30.
BRUN, Jean – O Epicurismo, n.º 34.
BRUN, Jean – O Estoicismo, n.º 29.
BRUN, Jean – O Neoplatonismo, n.º 40.
BRUN, Jean – Os Pré-Socráticos, n.º l.
CRESSON, André – Aristóteles, n.º 10.
DUMON, Jean Paul – A Filosofia Antiga, n.º 9.
JEAUNEAU, Edouard – A Filosofia Medieval, n.º 6.
MAIRE, Gaston – Platão, n.º 4.
MATTHEWS, Gareth B. – Santo Agostinho, n.º 47.
PARENTE, Margherita Isnardi – Introdução a Plotino, n.º 46.
RASSAN, Joseph – Tomás de Aquino, n.º 8.
REALE, Giovanni – Introdução a Aristóteles, n.º 42.
ROMEYER-DHERBY, Gilbert – Os Sofistas, n.º 31.

COL. CLÁSSICOS GREGOS E LATINOS:


PLATÃO – Apologia de Sócrates / Criton, n.º 16. Platão – Fedro, n.º 17.
PLATÃO – Górgias, n.º 8.
PLATÃO – Hípias Maior, n.º 24.
PLATÃO – Hípias Menor, n.º 21.
PLATÃO – Laques, n.º 2.
PLATÃO – O Banquete, n.º 6.
SÉNECA – Fedra, n.º 32.

COL. TEXTOS FILOSÓFICOS:


ARISTÓTELES – Da Alma (De Anima), n.º 49.
DUNS ESCOTO, João – Tratado do Primeiro Princípio, n.º 43.
GAND, Henrique de – Sobre a Metafísica do Ser no Tempo, n.º 41.
NIETZSHE, Friedrich – A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, n.º 11.
PLATÃO – As Leis, vol. I, n.º 55.
SANTO AGOSTINHO – Diálogo sobre a Felicidade, n.º 19.
SÃO TOMÁS DE AQUINO – A Unidade do Intelecto contra os Averroístas, n.º
45.

COL. LUGAR DA HISTÓRIA:


DE ROMILLY, Jacqueline – Homero, n.º 59.
FERREIRA, José Ribeiro – A Grécia Antiga, n.º 64.
FINLEY, Moses I. – Aspectos da Antiguidade, n.º 39.
FINLEY, Moses I. – Os Gregos Antigos, n.º 23.
MOSSÉ, Claude – A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo, n.º 37.

DIVERSOS:
COLLI, Giorgio – O Nascimento da Filosofia, Col. O Saber da Filosofia, n.º
33.
MAUTNER, Thomas – Dicionário de Filosofia, Col. Lexis, n.º 18.
PAPPAS, Nickolas – A República de Platão, Col. Guias Filosóficos, n.º l.
SEVERINO, Emanuele – A Filosofia Antiga, Col. O Saber da Filosofia, n.º 16.

SEGUNDA PARTE

DO RENASCIMENTO À IDADE MODERNA

CAPÍTULO 7
CASSIRER, E., Indivíduo y cosmos en la filosofia del Renascimiento, Buenos
Aires, EMECE.
HEIMSOETH, H., La metafísica moderna, Madrid, Revista de Occidente.
PATERSON, A., The infinite world of Giordano Bruno, Springfield, Charles
C. Tomas.

CAPÍTULO 8
BURTT, E., Los fundamentos metafísicos de la ciencia moderna, Buenos
Aires, Sudamericana.
CROMBIE, A., Historia de la ciencia. De S. Agustin a Galileo, 2 vols.
Madrid, Alianza Editorial.
KEARNEY, H., Orígenes de la ciencia moderna, 1500-1700, Madrid,
Guadarrama.
KOYRÉ, A., Études Galiléennes, 2 vols. Paris, Hermann.

CAPÍTULO 9
GUÉROULT, M., Descartes selon l’ordre des raisons, 2 vols. Paris,
Aubier/Ed. Montaigne.
HEIDEGGER, M., La época de la imagen del mundo, Buenos Aires, Losada.
HOLZ, H., Leibniz, Madrid, Tecnos.
PENA, V., El materialismo de Spinoza. Ensayo sobre la ontologia
spinozista, Madrid, Revista de Occidente.

CAPÍTULO 10
BENNETT, J., Locke, Berkeley, Hume, Central themes, Oxford, Clarendon
Press.
DELEUZE, G., Empirismo y subjetividad. Ensayo sobre la naturaleza
humana según Hume, Barcelona, Granica Editor.
DUCHESNAU, F., L’empirisme de Locke, Haia, Martinus Nijhoff.
NOXON, J., La evolución de la filosofia de Hume, Madrid, Revista de
Occidente.
RÁBADE, S., Hume y el fenomenismo moderno, Madrid, Gredos.

CAPÍTULO 11
CASSIRER, E., La filosofia de la Ilustración, México, Fondo de Cultura
Económica.
GAY, P., The Enlightenment: An interpretation, 2 vols. Londres,
Weidenfeld and Nicholson.
HAZARD, P., La pensée européenne au XVIII siècle. De Montesquieu à
Lessing, Paris, Librairie Arthème Fayard.
KOYRÉ, A., Études newtoniennes, Paris, Gallimard.

CAPÍTULO 12
ALQUIÉ, F., La critique kantienne de la métaphysique, Paris, P.U.F.
KÖRNER, S., Kant, Madrid, Alianza Universidad.
GOLDMANN, L., Introducción a la filosofia de Kant, Buenos Aires,
Amorrortu.
LACROIX, J., Kant, Buenos Aires, Sudamericana.
PHILONENKO, A., L’oeuvre de Kant, 2 vols. Paris, Vrin.

CAPÍTULO 13
ARTOLA, J., Hegel, La filosofia, como retorno, Madrid, G. del Toro.
BLOCH, E., El pensamiento de Hegel, México, Fondo de Cultura
Económica.
FINDLEY, J., Reexamen de Hegel, Barcelona, Grijaibo.
MARCUSE, H., Razón y revolución, Hegel y el origen de la teoria social,
Madrid, Alianza.
––, En torno a Hegel, Granada, Departamento de Filosofia y Secret. de
Publicaciones de la Universidad.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
Do período correspondente a esta 2.aparte segue-se uma relação de obras
publicadas por Edições 70.

COL. BIBLIOTECA BÁSICA DE FILOSOFIA:


BEYSSADE, Michèle – Descartes, n.º 14.
D’ HONDT, Jacques – Hegel, n.º 12.
KREMER-MARIETTI, Angèle – A Moral, n.º 38.
LEROY, André-Louis – Locke, n.º 27.
MOUNIN, Georges – Maquiavel, n.º 25.
MOUREAU, Joseph – Espinosa e o Espinosismo, n.º 20.
VANCOURT, Raymond – Kant, n.º 2.
VERGEZ, André – David Hume, n.º 26.
COL. O SABER DA FILOSOFIA :
BLANCHÉ, Robert – História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russel, n.º
13.
BRONOWSKI, Jacob e MAZLICH, Bruce – A Tradição Intelectual do Ocidente,
n.º 11.
DELEUZE, Gilles – A Filosofia Crítica de Kant, n.º 3
LYOTARD, Jean-François – A Fenomenologia, n.º 35.
SCHAEFFLER, Richard – Filosofia da Religião, n.º 34.

COL. TEXTOS FILOSÓFICOS:


BACON, Francis – Nova Atlântida e A Grande Instauração, n.º 61.
DESCARTES, René – Discurso do Método, n.º 9.
DESCARTES, René – Princípios da Filosofia, n.º 42.
DESCARTES, René – Regras para a Direcção do Espírito, n.º 6.
DIDEROT, Denis – Pensamentos Filosóficos, n.º 65.
DILTHEY, Wilhelm – Teoria das Concepções do Mundo, n.º 33.
ERASMO DE ROTERDÃO – A Guerra e a Queixa da Paz, n.º 46.
ESPINOZA, Bento de – Tratado da Reforma do Entendimento, n.º 14.
FICHTE, Johann Gottlieb – Lições sobre a Vocação do Sábio, n.º 47.
GAND, Henrique de – Sobre a Metafísica do Ser no Tempo, n.º 41.
HEGEL, Friedrich – A Razão da História, n.º 39
HEGEL, Friedrich – Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, vol.
l, n.º 17; vol. 2, n.º 21; vol. 3, n.º 35.
HEGEL, Friedrich – Introdução à História da Filosofia, n.º 31.
HEGEL, Friedrich – O Sistema da Vida Ética, n.º 30.
HEGEL, Friedrich – Propedêutica Filosófica, n.º 23.
HUME, David – Diálogos sobre a Religião Natural, n.º 58.
HUME, David – Investigação Sobre o Entendimento Humano, n.º 2.
HUSSERL, Edmund – A Ideia da Fenomenologia, n.º 8.
KANT, Immanuel – A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, n.º 18.
KANT, Immanuel – A Religião nos Limites da Simples Razão, n.º 34.
KANT, Immanuel – Crítica da Razão Prática, n.º l.
KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes, n.º 7.
KANT, Immanuel – O Conflito das Faculdades, n.º 37.
KANT, Immanuel – Metafísica dos Costumes. I Parte. Princípios
Metafísicos da Doutrina do Direito, n.º 53.
KANT, Immanuel – Metafísica dos Costumes. II Parte. Princípios
Metafísicos da Doutrina da Virtude, n.º 54.
KANT, Immanuel – Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime,
n.º 63.
KANT, Immanuel – Os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da
Natureza, n.º 28.
KANT, Immanuel – Os Progressos da Metafísica, n.º 5.
KANT, Immanuel – Prolegómenos a toda a Metafísica Futura, n.º 13.
KANT, Immanuel – Sobre a Pedagogia, n.º 64.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm – O Discurso da Metafísica, n.º 4.
LOCKE, John – Carta sobre a Tolerância, n.º 12.
LOCKE, John – Dois Tratados do Governo Civil, n.º 60.
MALEBRANCHE, Nicolas – Diálogo de um Filósofo Cristão e de um Filósofo
Chinês, n.º 29.
MONTESQUIEU – Do Espírito das Leis, n.º 62.
NIETZSCHE, Friedrich – Crepúsculo dos Ídolos, n.º 3.
NIETZSCHE, Friedrich – Ecce Homo, nº 26.
NIETZSCHE, Friedrich – O Anticristo, n.º 24.
PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni – Discurso sobre a Dignidade do
Homem, n.º 25.
SCHELLING, F. W. J. – Investigação Filosófica sobre a Essência da
Liberdade Humana, n.º 36.

DIVERSOS:
CHIEREGHIN, Franco – A “Fenomenologia do Espírito” de Hegel – Col.
Guias Filosóficos, n.º 2.

TERCEIRA PARTE

A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

CAPÍTULO 14
ARVON, H., Las etapas del pensamiento sociológico, 2 vols., Buenos Aires,
Losada.
KOLAKOWSKI, L., La philosophie positiviste, Paris, Denoël.
MILL, J., Auguste Comte y el positivismo, Madrid, Aguillar.
ZUBIRI, X., Cinco lecciones de filosofia, Madrid, Sociedad de Estudios y
Publicaciones, 1963.

CAPÍTULO 15
AXELOS, K., Marx, pensador de la técnica, Barcelona, Fontanella.
CALVEZ, J., El pensamiento de Carlos Marx, Madrid, Taurus.
HENRY, M., Marx, 2 vols., Paris, Gallimard.
HOOK, S., La génesis del pensamiento filosófico de Marx. De Hegel a
Feuerbach, Barcelona, Seix Barral.
KORSCH, K., Karl Marx, Barcelona, Ariel.

CAPÍTULO 16
CEREZO GALÁN, I., La voluntad de aventura. Aproximación crítica al
pensamiento de Ortega y Gasset, Barcelona, Ariel.
DELEUZE, G., Nietzsche y la filosofia, Barcelona, Anagrama.
IMAZ, E., El pensamiento de Dilthey, México, El Colégio de México.
FINK, E., La filosofía de Nietzsche, Madrid, Alianza.
NICOL, E., Historicismo y existencialismo, Madrid, Tecnos.
PARÍS, C., Unamuno. Estructura de su mundo intelectual, Barcelona,
Península.
VATTIMO, G., El sujeto y la máscara. Nietzche y el problema de la
liberación, Barcelona, Península.

CAPÍTULO 17
CHIODI, P., Sartre y el marxismo, Barcelona, Oikos-Tau.
DE MURALT, A., La idea de la fenomenología. El ejemplarismo husserliano,
México, U.N.A.M.
JOUVET, Las doctrinas existencialistas, Madrid, Gredos.
NAVARRO CORDÓN, J.M. e RODRÍCUEZ, R. (ed.), Heidegger o el final de la
filosofía, Madrid, Ed. Complutense.
OLASAGASTI, M., Introduccíon a Heidegger, Madrid, Revista de Occidente.
PÖGCELER, O., El camino de pensar de Martin Heidegger, Madrid, Alianza.
VÁRIOS, En os confines de la modernidad, Barcelona, Granica.
WAELENS, A. de, Une philosophie de l’ambiguïté. L‘existentialisme de
Maurice Merleau-Ponty, Lovaina, Bibliothèque Philosophique.
XIRAU, J., La filosofia de Husserl. Una introducción a la fenomenología,
Buenos Aires, Losada.
CAPÍTULO 18
DIAZ, C. e MACEIRAS, M., Introducción al personalismo actual, Madrid,
Gredos.
DOMENECH J. M., Mounier según Mounier, Barcelona, Laia.
GUISSARD, L,, Emmanuel Mounier, Barcelona, Fontanella.
LACROIX, J., Marxismo, existencialismo, personalismo, Barcelona,
Fontanella.

CAPÍTULO 19
AYER, A. (ed.), El positivismo lógico, México, Fondo de Cultura
Económica.
FERRATER, J., Cambio de marcha en filosofía, Madrid, Alianza.
HARNACK, J., Wittgenstein y la filosofia contemporânea, Barcelona, Ariel.
KENNY, A., Wittgenstein, Madrid, Revista de Occidente.
MOUNCE, H.O., Introducción al Tractatus de Wittgenstein, Madrid, Tecnos.
MUGUERZA, J. (ed.), La concepción analítica de la filosofia, 2 vols., Madrid,
Alianza.
REGUERA, I., La miséria de la razón. El primer Wittgenstein, Madrid,
Taurus.
REGUERA, I., El feliz absurdo de la ética. El Wittgenstein místico, Madrid,
Tecnos.

CAPÍTULO 20 E 21
BROWN, H. J., La nueva filosofía de la ciência, Madrid, Tecnos.
CHALMERS, A. F., Qué es esa cosa llamada ciência?, Madrid, Siglo XXI.
CORETH, E., Cuestiones fundamentales de hermenêutica, Barcelona, Herder.
CORVEZ, M., Los estructuralistas, Buenos Aires, Amorrortu.
FEYERABEND, P., Tratado contra el método, Madrid, Tecnos.
GABÁS, R., J. Habermas: Dominio técnico y comunidad linguística,
Barcelona, Ariel.
GADAMER, G., Verdad y método. Fundamentos de una hermenêutica
filosófica, Salamanca, Sígueme.
HABERMAS, J., Teoría y praxis, Madrid, Tecnos.
HABERMAS, J., Conocimiento e interés. Madrid, Taurus.
HABERMAS, J., Conciencia moral y acción comunicativa, Barcelona,
Península.
HABERMAS, J.;Técnica e ciência como ideologia, Lisboa, Edições 70.
HABERMAS, J., Teoria de la acción comunicativa, 2 vols., Madrid, Taurus.
HERMENDHAL, E., Física y filosofia, Madrid, Guadarrama.
KÜHN, Th. S., La estructura de las revoluciones científicas, México, F.C.E.
LAKATOS, I., ‘La falsación y la metodologia de los programas de
investigación científica’, Barcelona, Grijalbo.
LLEDÓ, E., La filosofia hoy, Barcelona, Salvat.
MANSILLA, H., Introducción a la teoria crítica de la sociedad, Barcelona,
Seix Barral.
MCCARTHY, Th., La teoría crítica de Jürgen Habermas, Madrid, Tecnos.
MOULINES, C. H., Exploraciones metacientíficas. Estructura, desarrollo y
contenido de la ciência, Madrid, Alianza.
POPPER, K. R., Conocimiento objetivo, Madrid, Tecnos.
POPPER, K. R., La lógica de la investigación, Madrid, Tecnos.
POPPER, K. R., El universo abierto, Madrid, Tecnos.
RICOEUR, P., Le conflit des interprétations. Essais d’hermenéutique. Paris,
E. du Seuil.
RICOEUR, P., Du text à l’action. Essais d’hermenéutique, II, Paris, E. du
Seuil.
RICOEUR, P., Freud, una interpretación de la cultura, México, Siglo XXI.
ROAZEN, P., Freud Su pensamiento político y social, Barcelona, Martínez
Roca.
RUSCONI, G. E., La teoria crítica de la sociedad, Barcelona, Martínez Roca.
SIMONIS, Y., Claude Levi-Strauss o la pasión del incesto. Introducción al
estructuralismo, Barcelona, Ediciones de Cultura Popular.
STEGMÜLLER, W., Estructura y dinámica de teorias, Barcelona, Ariel.
STEGMÜLLER, W., La concepción estruturalista de las teorias, Madrid,
Alianza.
TAYLOR, J., La nueva física, Madrid, Alianza.
UREÑA, E., La teoría crítica de la sociedad de Habermas, Madrid, Tecnos.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
Do período correspondente a esta 3.aparte segue-se uma relação de obras
publicadas por Edições 70.

COL. BIBLIOTECA BÁSICA DE FILOSOFIA:


DELEUZE, Gilles – Foucault, n.º 45.
DONNER, Wendy e FUMERTON, Richard – John Stuart-Mill, n.º 48.
FLEURY, Laurent – Max Weber, n.º 43.
HAAR, Michel – Introdução à Psicanálise – Freud, n.º 15.
MESNAKD, Pierre – Kierkegaard, n.º 33.
PIERI, Paolo Francesco – Introdução a Jung, n.º 44.
TROTIGNON, Pierre – Heidegger, n.º 21.

COL. O SABER DA FILOSOFIA:


BACHELARD, Gaston – A Epistemologia, n.º l.
BLANCHÉ, R. – História da Lógica (de Aristóteles a Bertrand Russel), n.º
13.
BLEICHER, Josef – Hermenêutica Contemporânea, n.º 30.
DANCY, Jonathan – A Epistemologia Contemporânea, n.º 29.
LYOTARD, Jean-François – A Fenomenologia, n.º 35.
PALMER, Richard E., – Hermenêutica, n.º 15.
VÁRIOS – Emmanuel Levinas. Entre Reconhecimento e Hospitalidade, n.º
40.

COL. TEXTOS FILOSÓFICOS:


BACHELARD, Gaston – O Materialismo Racional, n.º 27.
BACHELARD, Gaston – O Novo Espírito Científico, n.º 40.
BERGSON, H. – Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência, n.º 16.
DILTHEY, Wilhelm – Teoria das Concepções do Mundo, n.º 33.
FEUERBACH, Ludwig – Princípios da Filosofia do Futuro, n.º 20.
HUSSERL, Edmund – A Ideia da Fenomenologia, n.º 8.
KIERKEGAARD, Soren – Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como
Escritor, n.º 10.
MARX, Karl – Manuscritos Económico-Filosóficos, n.º 22.
SCHELER, Max – Morte e Sobrevivência, n.º 38.
SCHELLING, F. W. J. – Investigações Filosóficas sobre a Essência da
Liberdade Humana, n.º 36.
STUART-MILL, John – Sobre a Liberdade, n.º 59.

COL. BIBLIOTECA DE FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA:


BRUN, Jean – A Mão e o Espírito, n.º 14.
DERRIDA, Jacques – A Voz e o Fenómeno, n.º 23.
FOUCAULT, Michel – A Arqueologia do Saber, n.º 46.
GADAMER, Hans-Georg – Elogio da Teoria, n.º 31.
HABERMAS, Jürgen – Técnica e Ciência como «Ideologia», n.º 3.
HEIDEGGER, Martin – A Essência do Fundamento, n.º 9.
HEIDEGGER, Martin – A Origem da Obra de Arte, n.º 12.
HEIDEGGER, Martin – Que é uma Coisa?, n.º 21.
KÜHN, Thomas S. – A Tensão Essencial, n.º 10.
LAKATOS, Imre – Falsificação e Metodologia dos Programas de
InvestigaçãoCientífica, n.º 28.
LAKATOS, Imre – História da Ciência e suas Reconstruções Racionais e
outros Ensaios, n.º 26.
LEVINAS, Emmanuel – Deus, a Morte e o Tempo, n.º 44.
LEVINAS, Emmanuel – Ética e Infinito, n.º 7.
LEVINAS, Emmanuel – Totalidade e Infinito, n.º 5.
LEVINAS, Emmanuel – Transcendência e Inteligibilidade, n.º 16.
MERLEAU-PONTY, Maurice – Palestras, n.º 33.
POPPER, Karl – O Conhecimento e o Problema Corpo-mente, n.º 24.
POPPER, Karl – O Mito do Contexto, n.º 27.
POPPER, Karl – A Vida é Aprendizagem, n.º 30.
RICOEUR, Paul – A Crítica e a Convicção, n.º 25.
RICOEUR, Paul – Amor e Justiça, n.º 40.
RICOEUR, Paul – A Simbólica do Mal, n.º 45.
RICOEUR, Paul – O Discurso da Acção, n.º 8.
RICOEUR, Paul – Teoria da Interpretação, n.º 2.
RICOEUR, Paul – Vivo até à Morte, n.º 41.
RUSSELL, Bertrand – Os Problemas da Filosofia, n.º 36.
SEARLE, John – Mente, Cérebro e Ciência, n.º 1.
VATTIMO, Gianni – As Aventuras da Diferença, n.º 6.
WITTGENSTEIN, Ludwig – Anotações sobre as Cores, n.º 4.
WITTGENSTEIN, Ludwig – Cadernos 1914-1916, n.º 34.
WITTGENSTEIN, Ludwig – Cultura e Valor, n.º 22.
WITTGENSTEIN, Ludwig – Da Certeza, n.º 13.
WITTGENSTEIN, Ludwig – Fichas (Zettel), n.º 11.
WITTGENSTEIN, Ludwig – O Livro Azul, n.º 19.
WITTGENSTEIN, Ludwig – O Livro Castanho, n.º 20.

COL. PERSPECTIVAS DO HOMEM:


BRONOWSKI, J. – Magia, Ciência e Civilização, n.º 25.
DOUGLAS, Mary – Pureza e Perigo, n.º 39.
EVANS-PRITCHARD, E. E. – História do Pensamento Antropológico, n.º 33.
KROEBER, A.L. – A Natureza da Cultura, n.º 44.
LÉVI-STRAUSS, Claude – O Totemismo Hoje, n.º 26.
MALINOWSKI, Bronislaw – Uma Teoria Científica da Cultura, n.º 47.
MAUSS, Marcel – Ensaio sobre a Dádiva, n.º 29.

DIVERSOS:
ADORNO, Theodor – Teoria Estética, Col. Arte & Comunicação, n.º 14.
BAUDRILLARD, Jean – A Sociedade de Consumo, Col. Arte & Comunicação,
n.º 54.
BERLIN, Isaiah – Karl Marx, Col. Biografias, n.º 8.
FOUCAULT, Michel – As Palavras e as Coisas, Col. Biblioteca 70, n.º 29.
FOUCAULT, Michel – O Nascimento da Biopolítica, Col. Biblioteca da
Teoria Política, n.º 5.
FOUCAULT, Michel – Vigiar e Punir, Col. Biblioteca da Teoria Política, n.º
9.
GADAMER, Hans-Georg – Herança e Futuro da Europa – Col. Biblioteca
70, n.º 7.
GUSDORF, Georges – A Palavra, Col, Arte & Comunicação, n.º 59.
HABERMAS, Jürgen – Ensaio Sobre a Constituição da Europa, Extra-
colecção, n.º 151.
HABERMAS, Jürgen – Obras Escolhidas de Jürgen Habermas, vol. I.
Fundamentações Linguística da Sociologia.
HABERMAS, Jürgen – Obras Escolhidas de Jürgen Habermas, vol. II. Teoria
da Racionalidade e Teoria da Linguagem.
HABERMAS, Jürgen – Obras Escolhidas de Jürgen Habermas, vol. III. Ética
do Discurso.
KRISTEVA, Júlia – História da Linguagem, Col. Arte & Comumicação, n.º
91.
POPPER, Karl – A Sociedade Aberta e os seus Inimigos. Vols. I e II, Col.
Biblioteca da Teoria Política, n.os7 e 8.
THIRY, Philippe – Noções de Lógica, Col. Compêndio, n.º 6.
Índice
Cover
Frontispício
Ficha Técnica
ÍNDICE
PRÓLOGO
PRIMEIRA PARTE DOS PRÉ-SOCRÁTICOS À IDADE MÉDIA
QUADRO SINCRÓNICO
1. AS ORIGENS DA FILOSOFIA. OS PRÉ-SOCRÁTICOS
1. O APARECIMENTO DA FILOSOFIA E O PROBLEMA DA
NATUREZA
2. OS PRÉ-SOCRÁTICOS, MODELOS DE EXPLICAÇÃO DA
NATUREZA
1. O APARECIMENTO DA FILOSOFIA E O PROBLEMA DA
NATUREZA
2. OS PRÉ-SOCRÁTICOS, MODELOS DE EXPLICAÇÃO DA
NATUREZA
2. OS SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO
1. OS SOFISTAS
2. SÓCRATES
3. PLATÃO
1. OS SOFISTAS
2. SÓCRATES
3. PLATÃO
3. ARISTÓTELES. A FILOSOFIA DO PERÍODO HELENÍSTICO
1. ARISTÓTELES
2. A FILOSOFIA DO PERÍODO HELENÍSTICO
1. ARISTÓTELES
2. A FILOSOFIA DO PERÍODO HELENÍSTICO
4. CRISTIANISMO E FILOSOFIA. SANTO AGOSTINHO
1. A CONFRONTAÇÃO DO CRISTIANISMO COM A
FILOSOFIA
2. O APOGEU DO PLATONISMO CRISTÃO. SANTO
AGOSTINHO
3. AUGUSTINISMO E PLATONISMO MEDIEVAIS
1. A CONFRONTAÇÃO DO CRISTIANISMO COM A
FILOSOFIA
2. O APOGEU DO PLATONISMO CRISTÃO. SANTO
AGOSTINHO
3. AUGUSTINISMO E PLATONISMO MEDIEVAIS
5. SÃO TOMÁS DE AQUINO E O APOGEU DA
ESCOLÁSTICA
1. O ARISTOTELISMO E A LUTA PELA AUTONOMIA
DA RAZÃO
2. SÍNTESE DE ARISTOTELISMO E PLATONISMO EM
TOMÁS DE AQUINO
1. O ARISTOTELISMO E A LUTA PELA AUTONOMIA
DA RAZÃO
2. SÍNTESE DE ARISTOTELISMO E PLATONISMO EM
TOMÁS DE AQUINO
6. GUILHERME DE OCKHAM E A CRISE
ESCOLÁSTICA
1. OS LIMITES DA RAZÃO E A PRIMAZIA DA
VONTADE
2. GUILHERME DE OCKHAM E A CRISE DA
TRADIÇÃO FILOSÓFICA
3. AS CONTRIBUIÇÕES FÍSICAS DOS CIENTISTAS
DO SÉCULO XIV
1. OS LIMITES DA RAZÃO E A PRIMAZIA DA
VONTADE
2. GUILHERME DE OCKHAM E A CRISE DA
TRADIÇÃO FILOSÓFICA
3. AS CONTRIBUIÇÕES FÍSICAS DOS CIENTISTAS
DO SÉCULO XIV
SEGUNDA PARTE DO RENASCIMENTO À IDADE MODERNA
QUADRO SINCRÓNICO
7. O RENASCIMENTO E A ORIGEM DA IDADE MODERNA
1. O RENASCIMENTO E A TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE
EUROPEIA
2. A TRADIÇÃO GREGA E O NOVO ANTROPOCENTRISMO
NATURALISTA
3. O PROBLEMA DA INFINITUDE: CUSA E GIORDANO BRUNO
4. FRANCIS BACON E O SEU CONCEITO DA CIÊNCIA
1. O RENASCIMENTO E A TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE
EUROPEIA
2. A TRADIÇÃO GREGA E O NOVO ANTROPOCENTRISMO
NATURALISTA
3. O PROBLEMA DA INFINITUDE: CUSA E GIORDANO BRUNO
4. FRANCIS BACON E O SEU CONCEITO DA CIÊNCIA
8. KEPLER E GALILEU: A LUTA PELO MÉTODO
EXPERIMENTAL
1. A ASTRONOMIA PRÉ-COPERNICANA
2. REALISMO E MATEMÁTICA: COPÉRNICO
3. KEPLER: PROCURA DA PURA RACIONALIDADE
4. GALILEU E O MÉTODO EXPERIMENTAL
5. MÉTODO RESOLUTIVO-COMPOSITIVO
1. A ASTRONOMIA PRÉ-COPERNICANA
2. REALISMO E MATEMÁTICA: COPÉRNICO
3. KEPLER: PROCURA DA PURA RACIONALIDADE
4. GALILEU E O MÉTODO EXPERIMENTAL
5. MÉTODO RESOLUTIVO-COMPOSITIVO
9. O RACIONALISMO
1. A AUTO-SUFICIÊNCIA DA RAZÃO COMO FONTE DE
CONHECIMENTO
2. DESCARTES E A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSO
3. ESPINOSA E LEIBNIZ
4. A MATEMÁTICA COMO MODELO DE SABER
5. RAZÃO E LIBERDADE
1. A AUTO-SUFICIÊNCIA DA RAZÃO COMO FONTE DE
CONHECIMENTO
2. DESCARTES E A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSO
3. ESPINOSA E LEIBNIZ
4. A MATEMÁTICA COMO MODELO DE SABER
5. RAZÃO E LIBERDADE
10. O EMPIRISMO
1. O EMPIRISMO E OS LIMITES DO CONHECIMENTO
2. MORAL E POLÍTICA
1. O EMPIRISMO E OS LIMITES DO CONHECIMENTO
2. MORAL E POLÍTICA
11. O ILUMINISMO
1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E SOCIOPOLÍTICO
DO ILUMINISMO
3. NEWTON E O PROBLEMA DA NATUREZA
4. HOMEM E DEUS: O DEÍSMO E A RELIGIÃO
NATURAL
5. HOMEM E SOCIEDADE (ROUSSEAU)
1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E SOCIOPOLÍTICO
DO ILUMINISMO
3. NEWTON E O PROBLEMA DA NATUREZA
4. HOMEM E DEUS: O DEÍSMO E A RELIGIÃO
NATURAL
5. HOMEM E SOCIEDADE (ROUSSEAU)
12. O IDEALISMO TRANSCENDENTAL DE KANT
1. SENTIDO DE UMA CRÍTICA DA RAZÃO. A IDEIA
DE FILOSOFIA
2. A NATUREZA E A RAZÃO TEÓRICA
3. A LIBERDADE E A TAREFA DA RAZÃO PRÁTICA
4. HISTÓRIA E RELIGIÃO
1. SENTIDO DE UMA CRÍTICA DA RAZÃO. A IDEIA
DE FILOSOFIA
2. A NATUREZA E A RAZÃO TEÓRICA
3. A LIBERDADE E A TAREFA DA RAZÃO PRÁTICA
4. HISTÓRIA E RELIGIÃO
13. HEGEL E A DIALÉCTICA
1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-SOCIAL E
FILOSÓFICO DA OBRA DE HEGEL
2. SENTIDO E ESTRUTURA DA DIALÉCTICA
3. O CONCEITO DE ESPÍRITO E SUAS FORMAS
4. A ESQUERDA HEGELIANA. FEUERBACH
1. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-SOCIAL E
FILOSÓFICO DA OBRA DE HEGEL
2. SENTIDO E ESTRUTURA DA DIALÉCTICA
3. O CONCEITO DE ESPÍRITO E SUAS FORMAS
4. A ESQUERDA HEGELIANA. FEUERBACH
TERCEIRA PARTE A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
QUADRO SINCRÓNICO
14. O POSITIVISMO DE COMTE
1. A SOCIEDADE INDUSTRIAL E O ESPÍRITO POSITIVISTA
2. NATUREZA DO SABER E SISTEMA DAS CIÊNCIAS
3. A SOCIOLOGIA E A POSITIVIZAÇÃO DA RAZÃO
1. A SOCIEDADE INDUSTRIAL E O ESPÍRITO POSITIVISTA
2. NATUREZA DO SABER E SISTEMA DAS CIÊNCIAS
3. A SOCIOLOGIA E A POSITIVIZAÇÃO DA RAZÃO
15. O MARXISMO
1. A CRÍTICA DE MARX À CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA
2. AS FORMAS DE ALIENAÇÃO E O HUMANISMO
MARXISTA
3. MATERIALISMO, DIALÉCTICA E HISTÓRIA
1. A CRÍTICA DE MARX À CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA
2. AS FORMAS DE ALIENAÇÃO E O HUMANISMO
MARXISTA
3. MATERIALISMO, DIALÉCTICA E HISTÓRIA
16. HISTORICISMO E VITALISMO
1. O HISTORICISMO DE DILTHEY
2. O VITALISMO DE NIETZSHE
3. O RACIOVITALISMO DE ORTEGA Y GASSET
4. VIDA, TRAGÉDIA E HEROÍSMO: MIGUEL DE
UNAMUNO
1. O HISTORICISMO DE DILTHEY
2. O VITALISMO DE NIETZSHE
3. O RACIOVITALISMO DE ORTEGA Y GASSET
4. VIDA, TRAGÉDIA E HEROÍSMO: MIGUEL DE
UNAMUNO
17. FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO
1. A FENOMENOLOGIA E A CRISE DAS CIÊNCIAS
2. O EXISTENCIALISMO: EXISTÊNCIA E LIBERDADE
1. A FENOMENOLOGIA E A CRISE DAS CIÊNCIAS
2. O EXISTENCIALISMO: EXISTÊNCIA E LIBERDADE
18. O PERSONALISMO CRISTÃO
1. CORRENTES PERSONALISTAS
CONTEMPORÂNEAS
2. CONTRIBUTOS HISTÓRICOS PARA ORIENTAÇÃO
PERSONALISTA
3. O PERSONALISMO DE MOUNIER
1. CORRENTES PERSONALISTAS
CONTEMPORÂNEAS
2. CONTRIBUTOS HISTÓRICOS PARA ORIENTAÇÃO
PERSONALISTA
3. O PERSONALISMO DE MOUNIER
19. O NEOPOSITIVISMO E A FILOSOFIA ANALÍTICA
1. O ATOMISMO LÓGICO: RUSSELL
2. O NEOPOSITIVISMO LÓGICO
3. A FILOSOFIA ANALÍTICA
1. O ATOMISMO LÓGICO: RUSSELL
2. O NEOPOSITIVISMO LÓGICO
3. A FILOSOFIA ANALÍTICA
20. NATUREZA E CIÊNCIA NO PENSAMENTO
ACTUAL
1. A FÍSICA MODERNA: NOVO CONCEITO DE
NATUREZA
2. OS DESENVOLVIMENTOS ACTUAIS NA
FILOSOFIA DA CIÊNCIA
1. A FÍSICA MODERNA: NOVO CONCEITO DE
NATUREZA
2. OS DESENVOLVIMENTOS ACTUAIS NA
FILOSOFIA DA CIÊNCIA
21. A CRISE DA CONSCIÊNCIA: NOVO
CONCEITO DE RAZÃO
1. FREUD E A INTERPRETAÇÃO DA CULTURA
2. O ESTRUTURALISMO E A CRISE DO
HUMANISMO
3. RAZÃO E SOCIEDADE NA ESCOLA DE
FRANKFURT
4. HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS
IDEOLOGIAS
1. FREUD E A INTERPRETAÇÃO DA CULTURA
2. O ESTRUTURALISMO E A CRISE DO
HUMANISMO
3. RAZÃO E SOCIEDADE NA ESCOLA DE
FRANKFURT
4. HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS
IDEOLOGIAS
BIBLIOGRAFIA

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