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JACQUELINE DE ROMILLY

COMPENDIO
DE LITERATURA
GREGA

COMPÊNDIO
Colecção que procura reunir tratados sucintos, xnas exactos, sobre as várias
disciplinas do saber, num equilíbrio entre o rigor académico e a divulgação dos
temas junto de um público não tão especializado, mas não menos interessado.
COMPENDIO
DE LITERATURA
GREGA
TÍTULO ORIGINAL:
Précis de littérature grecque

© Presses Universitaires de France

TRADUÇÃO
Leonor Santa Bárbara

REVISÃO
Marcelino Amaral

DESIGN DA CAPA
FBA

Biblioteca Nacional de Portuga! - Catalogação na Publicação

ROMILLY, Jacqueline de

Compêndio de literatura grega. - (Compêndio)


ISBN 978-972-44-1554-3

CDU 821.14.09

DEPÓSITO LEGAL N.° 324740/11

PAGINAÇÃO
Rita Lynce

IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Pentaedro
Março de 2011

Direitos reservados para Portugal e países africanos


de expressão portuguesa por
EDIÇÕES 70

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JACQUELINE DE ROMILLY

COMPÊNDIO
DE LITERATURA
GREGA

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70 MAT. 033/20-4
r
índice

Introdução........................................................................................ 13

i: HOM ERO......................................................................
c a p ít u l o 19
I. A epopeia e a sua formação.................................................... 22
1. A analogia........................................................................ 23
2. O carácter compósito da língua........................................ 24
3. Uma civilização compósita.............................................. 26
4. A diversidade no seio dos poemas.................................... 27
5. A questão homérica.......................................................... 29
II. A epopeia e a sua perfeição.................................................... 31
1. A estrutura dos dois poem as............................................ 32
a) A Ilíada........................................................................ 32
b) A Odisseia.................................................................... 35
2. O mundo homérico.......................................................... 37
a) Os deuses na epopeia.................................................. 37
b) O ideal humano............................................................ 42
3. O amor pela vida.............................................................. 44
4. A expressão literária........................................................ 46
Apêndice: os poemas do ciclo e os hinos homéricos.............. 49

π: A ÉPOCA ARCAICA....................................................
c a p ít u l o 51
I. Hesíodo .................................................................................. 53
II. A poesia na época arcaica de Hesíodo a Píndaro.................... 59
1. A poesia jâmbica.................................................................. 61
2. A poesia «elegíaca»............................................................ 62
3. O lirismo individual............................................................ 65
4. O lirismo coral antes de Píndaro.......................................... 67

7
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

III. Píndaro e Baquílides................................................................ 68


IV. A filosofia pré-socrática.......................................................... 74
1. Os começos da filosofia...................................................... 75
a) O orfismo e o pitagorismo............................................ 75
b) Os filósofos de Mileto.................................................. 77
2. Os sistemas dos filósofos no final da época arcaica............ 78
a) Heraclito...................................................................... 79
b) Parménides.................................................................. 81
c) Empédocles.................................................................. 83

m: O INÍCIO DO SÉCULO V:
c a p ít u l o

NASCIMENTO DA HISTÓRIA E DA TRAGÉDIA...................... 87


I. Esquilo..................................................................................... 89
1. Vida de Esquilo.................................................................... 91
2. A obra de Esquilo................................................................ 92
3. A inspiração de Ésquilo...................................................... 94
4. A arte de Ésquilo.................................................................. 99
Π. Heródoto................................................................................... 102
1. Vida de Heródoto................................................................ 103
2. A obra de Heródoto.............................................................. 104
3. O pensamento de Heródoto................................................ 109

iv: O TEATRO NA SEGUNDA METADE DO


c a p ít u l o

SÉCULO V: SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES............ 115


I. Sófocles.................................................................................. 117
1. Vida de Sófocles.................................................................. 117
2. A obra de Sófocles.............................................. 118
3. A inspiração de Sófocles: os homens e os deuses................ 121
4. Caracteres e virtudesdos heróis........................................... 124
5. As belezas do mundosofocliano......................................... 127
II. Eurípides.................................................................................. 129
1. A vida de Eurípides.............................................................. 129
2. A obra de Eurípides.............................................................. 120
3. O sofrimento e o patético.................................................... 123
4. As ideias e as dúvidas.......................................................... 136
5. A arte de Eurípides.............................................................. 139
III. Aristófanes.............................................................................. 141

8
ÍNDICE

capítulo v:AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS


NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V .................................... 149
I. Medicina, filosofia, retórica.................................................... 151
1. Medicina e filosofia............................................................ 151
2. Os sofistas............................................................................ 154
a) Protágoras.................................................................. 155
b) Górgias........................................................................ 157
c) Pródico, Hípias, Trasímaco........................................ 158
d) Antifonte: orador e sofista.......................................... 159
e) Outras obras sofisticas................................................ 162
II. Tucídides.................................................................................. 163
1. Vida de Tucídides................................................................ 163
2. A obra de Tucídides............................................................ 165
3. A verdade histórica.............................................................. 168
4. A filosofia da história.......................................................... 171
5. A arte de Tucídides.............................................................. 173

capítulo vi: A ELOQUÊNC IA ÁTICA NO SÉCULO IV ................ 177


I. A eloquência judiciária............................................................ 180
1. Andócides............................................................................ 180
2. Lísias.................................................................................... 182
3. Iseu...................................................................................... 186
II. Demóstenes.............................................................................. 187
1. Vida e o b ra.......................................................................... 187
a) Ajuventude.................................................................. 187
b) Antes de F ilipe............................................................ 188
c) A luta contra Filipe até depois da paz com Filócrates.. 189
d) A luta contra Filipe de 346 a 338................................ 190
e) Ofim da vida de Demóstenes...................................... 192
f) Os discursos de defesa c iv is........................................ 192
2. As ideias e o estilo .............................................................. 192
III. Os oradores contemporâneos deDemóstenes........................... 196
1. Esquines.............................................................................. 197
2. O partido da resistência...................................................... 198
3. Os oradores do partido macedónio...................................... 200

9
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

capítulo vii: A REFLEXÃO SOBRE A POLÍTICA


E A HISTÓRIA: ISÓCRATES E XENOFONTE............................ 203
I. Isócrates.................................................................................. 205
1. A retórica.............................................................................. 206
2. A política.............................................................................. 210
a) A vida política ateniense.............................................. 210
b) O programa pan-helénico............................................ 211
c) Os títulos de Atenas e os seus erros............................ 211
d) O poder e a história.................................................... 212
e) A doutrina e os homens................................................ 213
II. Xenofonte................................................................................ 214
1. A sua vida............................................................................ 215
2. A história da sua vida e as suas actividades........................ 216
3. A história da Grécia e a política.......................................... 218
4. A história romanceada........................................................ 221
5. A história de Sócrates.......................................................... 223

capítulo viii: OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:


PLATÃO E ARISTÓTELES............................................................ 225
I. P latão....................................................................................... 228
1. Vida de Platão...................................................................... 229
2. A obra de Platão.................................................................. 230
3. O método de expressão em Platão...................................... 238
a) A forma dialogada...................................................... 238
b) Os m itos...................................................................... 240
c) Correspondências e proporções.................................. 241
d) O estilo........................................................................ 243
II. Aristóteles................................................................................. 243
1. Vida de Aristóteles.............................................................. 244
2. A obra em geral.................................................................... 245
3. A moral e a política.............................................................. 247
4. Os outros domínios do pensamento.................................... 252

capítulo ιχ: A ÉPOCA HELENÍSTICA.......................................... 257


I. Menandro.................................................................................. 260
1. A acção emM enandro......................................................... 261
2. Os caracteres na obra de Menandro.................................... 262
3. O ideal humano de M enandro............................................ 263
4. Os outros autores da comédia n o v a .................................... 265

10
ÍNDICE

II. As escolas filosóficas.............................................................. 265


III. A poesia alexandrina................................................................ 272
1. Calímaco e Apolónio de Rodes: a escola erudita................ 273
2. Teócrito e Herondas: a escola familiar e realista.............. 277
3. A poesia didáctica: Arato e Nicandro de Cólofon............ 280
IV. Ciências da natureza e do hom em .......................................... 282
1. O grande número de obras perdidas.................................... 282
2. Políbio.................................................................................. 285

x: EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE


c a p ít u l o

A ÉPOCA ROMANA...................................................................... 291


I. Plutarco ................................................................................... 294
1. Vida e o b ra.......................................................................... 294
2. As «Vidas».......................................................................... 297
3. As ideias de Plutarco............................................................ 299
II. Os historiadores...................................................................... 301
1. De 100 a. C. a 100 d. C........................................................ 301
2. O século II d. C..................................................................... 304
III. A retórica................................................................................ 308
IV. O romance................................................................................ 311
V. Luciano.................................................................................... 314
VI. A filosofia................................................................................ 319
VII. Os cristãos................................................................................ 323
VIII. O último brilho do paganismo................................................ 331

Bibliografia...................................................................................... 339
Quadro cronológico.......................................................................... 357

11

Introdução

Escrever sobre a literatura grega, contribuindo para a tomar mais


conhecida, é uma satisfação. Fazê-lo de uma forma breve, em contra­
partida, é cruel: a empreitada pressupõe uma série de escolhas muitas
vezes difíceis e arbitrárias.
Logo de início, no que respeita aos limites cronológicos, julgámos
que devíamos esboçar uma história da literatura grega, para termos um
quadro de conjunto desta época extraordinária e da variedade que nela
se manifesta, durante mais de dez séculos (do século vm a. C. até ao
século iv d. C., mesmo sem entrar no quadro da época bizantina). Isto
só era possível resumindo as épocas mais tardias e contentando-nos com
um breve vôo pela literatura cristã, que depende de outros critérios e de
outras tradições. As breves indicações dadas a seu respeito apenas per­
mitem situar, umas em relação às outras, as diferentes formas da litera­
tura grega.
Insistimos mais, pelo contrário, nos séculos clássicos e, nestes sécu­
los, na obra dos autores destinados a exercer uma maior influência nas
literaturas vindouras; de resto, esperamos que estes autores continuem
a ocupar um lugar de destaque no ensino e que, deste modo, as infor­
mações dadas a seu respeito possam facilitar a tarefa dos alunos e estu­
diosos.
Na mesma perspectiva, renunciámos deliberadamente a incluir neste
Compêndio um resumo dos problemas debatidos hoje pelos eruditos.
Podemos encontrar a sua indicação na excelente História da Literatura
Grega de A. Lesky, que existe em alemão, inglês e italiano e que foi

13
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

revista e reeditada várias vezes (‘). Preferimos ater-nos aos dados mais
seguros e cujo conhecimento é, em qualquer caso, indispensável. Do
mesmo modo, evitámos dar opiniões pessoais, que seriam discutíveis:
um Compêndio deve ter em vista, o mais possível, a objectividade.
Tentámos, naturalmente, dar à obra um espírito histórico. Esse espí­
rito é o da nossa época e distingue-a daquela em que foi escrita, por
exemplo, a excelente Histoire de la littérature grecque, de A. e M. Croi-
set, publicada em Paris, em cinco voulmes, no final do século passado (2):
qualquer preocupação moral e estética pareceria hoje desusada. Isso não
significa, contudo, que tenhamos afastado sistematicamente certas ava­
liações que relevam da crítica propriamente literária. Afinal de contas,
e qualquer que seja a importância das perspectivas históricas, a literatu­
ra grega é muito mais do que um simples fenómeno de civilização: a
beleza das suas obras e o seu sentido podem falar com força a cada um
de nós, tal como o fizeram com muitos outros, ao longo dos séculos, e
nós temos esperança de contribuir para estabelecer esse contacto, rela­
tivamente ao qual o conhecimento da evolução interior e das circunstân­
cias históricas mais não faz do que prestar mais um auxílio.
Para tomar perceptível esta evolução interior da literatura grega,
apresentaram-se-nos problemas de composição, que resolvemos nem
bem, nem mal; mas não seria possível dissimular os inconvenientes das
soluções adoptadas.
A ordem geral, essa nem se colocava: o ritmo que conduz a literatu­
ra grega é o da história; e esta comporta fases bem claras. Esta literatura
começa com a epopeia homérica, em que se conservam recordações que
remontam à guerra de Tróia e à época micénica, ou seja, ao século xii a. C.
Mas o mundo grego já tinha sido renovado com a chegada dos Dórios à
Grécia e com as novas migrações na Ásia Menor. A época arcaica, nos

(') Aprimeira edição alemã é de 1957-1958, a primeira edição inglesa de 1966; houve
revisões para cada edição. [N.T.: Para além das referidas, existem outras traduções desta
obra, designadamente uma portuguesa: Albin Lesky, História da Literatura Grega (tradução
de Manuel Losa), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995].
(2) Para além das grandes obras de A. Lesky e A. e M. Croiset, existem inúmeros manu­
ais de literatura grega. Entre outros, podemos referir, para os manuais em francês, F. Robert,
La littérature grecque [A literatura grega] (PUF, «Que sais-je?», 1946; J. Defradas, La lit­
térature grecque (Armand Colin, 1960, 222 pp., formato pequeno); R. Flacelière, Histoire
littéraire de la Grèce [História literária da Grécia] (Fayard, 1962, 477 pp.)
INTRODUÇÃO

séculos v ii e vi, define novos começos: o lirismo desabrocha e desenvolve-


-se, surge a filosofia, bem como as primeiras obras em prosa. E depois,
entre a vitória dos Gregos e de Atenas nas guerras médicas e a derrota
infligida a Atenas e à Grécia por Filipe da Macedónia, ou seja, entre 480
e 338, encontram-se os dois grandes séculos atenienses: o século da grande
glória, «o século de Péricles», ou seja, o século v, e, por outro lado, a
época de Platão e da reflexão, o iv: no século v, Atenas é omnipotente,
mas a sua derrota em 404 deixa-a arruinada e enganada. Filipe e Ale­
xandre acabam de a destruir. Com a morte de Alexandre inicia-se uma
época totalmente nova, com outros centros, outros géneros literários,
outros gostos; Alexandria é o seu grande foco. Por fim, com a suprema­
cia romana, a Grécia e a sua literatura entram na órbita de Roma, ao
mesmo tempo que os limites alargados do mundo facilitam o desenvol­
vimento de novos focos um pouco por toda a Ásia Menor e, mais tarde,
em tomo de Bizâncio. Nada poderia ser mais claro do que estas grandes
linhas, impostas pelas próprias deslocações do poder. Apenas notaremos
que, de acordo com o princípio enunciado acima, enquanto cada grande
período constitui um capítulo à parte, o século v comporta três e três
também o iv.
Mas surgiam problemas com a repartição entre os capítulos centrais
e a sua ordem. Surgiam também no próprio pormenor da apresentação.
Entre os capítulos relativos a um mesmo século, a ordem não podia
ser estritamente cronológica. As obras comprimem-se: tragédias, comé­
dias, tratados filosóficos, obras de história são elaborados ao mesmo
tempo. Evoluções paralelas traduzem-se, em cada ano, em géneros dis­
tintos. A ordem cronológica deveria recorrer à influência dos sofistas
entre Sófocles e Eurípides tal como entre Heródoto e Tucídides. Mas
como separar dois poetas tão próximos e tão comparáveis? Uma ordem
lógica, pelo contrário, permitia seguir a história interior de um género.
No entanto, a ordem adoptada aqui não é nem uma nem outra: com efeito,
pareceu-nos mais sugestivo agrupar, no início, os dois autores em que
se manifesta melhor a influência das guerras médicas, antes de ver sepa­
radamente a evolução dos géneros criados por cada um deles. O resul­
tado é que os sofistas aparecem no livro depois de Eurípides, que sofreu
a sua influência: a complexidade da vida escapa e resiste a cada instante.
Do mesmo modo, no século iv, os autores repartidos por três capítulos

15
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

são, de facto, quase todos contemporâneos: como classificá-los, se não


em função dos géneros que executaram'? Pelo menos, tivemos o cuidado de
assinalar sempre no texto estes cruzamentos; e um quadro cronológico,
no fim do volume, restabelece a ordem temporal e as concomitâncias.
Por fim, mesmo para os capítulos relativos aos outros períodos,
pareceu-nos que deveriam ser aceites os cruzamentos sempre que tomas­
sem mais claras as perspectivas de conjunto. E por isso que os Hinos
homéricos, que pertencem à época arcaica, terminam o capítulo sobre
Homero, ou que os filósofos contemporâneos são colocados, de acordo
com o tom da sua filosofia, com os da época arcaica ou com os do sécu­
lo v, ou ainda que os inícios da história surgem com Heródoto, a quem
eles conduziram, e não com os começos da filosofia, que são da mesma
época, mas que pareceram dignos de um exame à parte da época arcaica.
Todas estas dificuldades poderão suscitar incómodos, até mesmo
mal-entendidos. Mas também isto merece atenção: na verdade, porque
é tão difícil colocar os autores gregos numa ordem que seja satisfatória,
a não ser porque esta literatura apresenta uma evolução mais constante
e mais complexa do que qualquer outra? Há aqui um traço que se inclui
no que foi chamado o «milagre grego» e que, parece, está associado a
dois caracteres.
O primeiro é a extraordinária capacidade de invenção, de descoberta,
de renovação, que esta literatura sempre manifestou. Invenção, para o
nosso mundo ocidental, do lirismo, da tragédia, da comédia, da história,
da filosofia, da biografia, do romance, do diálogo: vemos surgir tudo. Se é
tão constrangedor cruzar os anos, é porque tudo muda, a cada instante.
Depois dos sofistas, não se escreve como antes; depois de Sócrates, como
antes; depois de uma determinada vitória ou derrota, como antes. Nada
foi menos estável ou menos imóvel do que esta literatura, mais tarde
chamada clássica.
Por outro lado, o paralelismo na evolução dos diferentes géneros e o
papel desempenhado pelos acontecimentos nacionais bastariam para lem­
brar que esta literatura, pelo menos em todo o seu período antigo, está
extremamente firmada na vida colectiva: o autor é, antes de mais e sempre,
um cidadão. Géneros literários, como o teatro, são organizados em tomo
de uma manifestação cívica. Outros, como a história, tomam por tema
os destinos da cidade. E a própria filosofia não deixa, pelo menos na

16
INTRODUÇÃO

época clássica, de ser moral e política. Esta preocupação comum expli­


ca que os autores vivam no mesmo ritmo e que as influências se exerçam
de um género sobre outro. Este facto que, aliás, aproxima a literatura
grega da nossa, toma a ordem cronológica particularmente necessária e
particularmente impraticável.
Em qualquer caso, as imperfeições da exposição não serão muito
importantes, se os leitores quiserem melhorar as suas impressões recor­
rendo à leitura dos próprios textos. A presente obra pretende apenas dar-
-lhes esse desejo e servir-lhes ou de quadro, ou de guia. A única forma
de conhecer uma literatura é lê-la; e este Compêndio pretende ser uma
iniciação a essa leitura.

17
CAPÍTULO I

HOMERO
Para nós, a literatura grega começa com duas grandes epopeias,
transmitidas sob o nome de Homero, a Ilíada e a Odisseia. As duas obras
foram escritas em hexâmetros dactílicos; a primeira tem cerca de 15 000
versos, a outra cerca de 12 000. Uma conta parte da guerra dos Aqueus
contra Tróia, com a cólera de Aquiles, a sua recusa em continuar a lutar,
depois o seu regresso ao combate para vingar o seu amigo, e termina
quando ele mata o Troiano Heitor e entrega o corpo à família. O outro
conta o regresso a casa de Ulisses, depois da tomada de Tróia.
Os Antigos admitiam que estes dois poemas tinham como autor Home­
ro, que viveu no século vm a. C. (a guerra de Tróia é situada cerca de 1200
a. C.). Tudo o resto é incerto. Diz-se que Homero era cego, mas provavel­
mente seria uma lenda associada à ideia da inspiração: o divino Tirésias
também o era. Fala-se de várias cidades que disputavam entre si a honra de
o ter gerado: em qualquer caso, a verosimilhança associa-o à Ásia Menor;
e parece ter vivido, pelo menos durante algum tempo, em Quios. Os seus
poemas teriam sido passados a limpo mais tarde, na Atenas de Pisístrato,
ou seja, no século vi a. C. O texto assim estabelecido devia servir de base
às recitações anuais das Panateneias. Em qualquer caso, serviu de modelo
a todos os poetas que se lhe seguiram e, daí em diante, os Gregos viram nele
a base da sua educação e o ponto de partida para todas as suas reflexões.
A partir do momento em que deixamos para trás estes dados tão
imprecisos, começam as dificuldades; porque a interpretação dos poe­
mas homéricos apresenta inúmeros problemas.
Com efeito, há duas leituras destes poemas que devem ser combina­
das. Uma consiste em indagarmos sobre a sua formação e estabelecer a

21
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

ligação entre ela e os séculos que separam o poema do seu primeiro dado,
procurando encontrar naquele os vestígios da sua elaboração. O outro
consiste em reter apenas a obra completa, na sua unidade e no seu con­
teúdo literário, tal como os séculos posteriores a deveriam conhecer.

I.
A EPOPEIA E A SUA FORMAÇÃO

A relação entre a epopeia e a história do período, que vai desde a


guerra de Tróia a Homero, não pode ser ignorada por ninguém, depois
das sucessivas revelações trazidas pela arqueologia. Tróia foi encontra­
da (em Hissarlik, na Ásia Menor) e os vestígios da cidade tomada pelo
ano 1200 (Tróia VII a) foram identificados com suficiente verosimilhança.
Foi encontrado o palácio de Agamémnon, na sua Micenas rica em ouro.
Foram encontrados vasos cinzelados e os frescos de Creta, das cem cidades.
Foram encontrados, em Pilos, o palácio de Nestor e até a sua banheira.
Por fim, e principalmente, foi descoberto que as tabuinhas micénicas, encon­
tradas em Creta, em Micenas e em Pilos continham, numa escrita mal
feita por eles, vocábulos gregos; e assim o passado remoto dos palácios
descobertos viu-se directamente ligado ao poeta grego e às raízes da civi­
lização que descreve.
Todas estas descobertas, contudo, associam muito bem Homero a um
passado brilhante, vivo, tangível; mas elas também o associam a um pas­
sado cheio de confusões e de diversidade. Aparentemente, povos e civi­
lizações sucederam-se, mas não sem choques.
Quando os primeiros representantes do grupo indo-europeu, que iria
tomar-se «nos Gregos», chegou do Norte, encontraram na região um povo
que falava uma outra língua, à qual tomaram de empréstimo alguns vocá­
bulos - de entre os quais o nome do mar. Nesse momento, desenvolvia-se
em Creta uma civilização refinada e poderosa. O seu grande centro era
Cnossos, cujo brilho durou até cerca de 1400 a. C. Uma civilização muito
próxima, embora mais rude, prosseguia na própria Grécia, em Micenas,
Tirinto e Pilos. É a dos «Aqueus» evocados por Homero. Mas esta civi­
lização desapareceu, por seu turno - tal como o uso daquela escrita que
fora usada para o Grego. Novos grupos indo-europeus desembocaram

22
HOMERO

na Grécia; e é nessa altura que se situa a chegada dos Dórios, povos


guerreiros e rudes. Graças a estas lutas reinou aquilo a que se tem cha­
mado a Idade Média grega; e, durante esse tempo, verificaram-se outros
movimentos da população para a Ásia Menor e para uma parte do Egeu.
Foi preciso esperar pelo século ix para ver a Grécia renascer, o comércio
reflorescer e serem retomadas as trocas entre a Ásia Menor e a Grécia
propriamente dita. Por fim, no século vrn, começou a época da coloni­
zação. Ao mesmo tempo, os Gregos descobriam uma escrita, mais ade­
quada à sua língua e cujos elementos foram quase todos tomados de
empréstimo aos Fenícios.
Entre o brilho de Creta que se reflecte em Homero e a época em que
foram compostas as suas epopeias, decorreu muito tempo e houve muitas
alterações. Consequentemente, podemos esperar que o passado, evocado
desta forma, seja múltiplo e variado - sobretudo se, como apriori parece
ser verosímil, esta narrativa de acontecimentos, velhos de muitos séculos,
for ela mesma o final de longas tradições épicas acumuladas ao longo des­
tes séculos e cuja herança foi recolhida por estas duas obras actuais.
Esta primeira verosimilhança é confirmada pela analogia e pelos
próprios caracteres das duas obras.

1. A analogia

Na Ilíada e sobretudo na Odisseia vemos surgir os aedos. A Odis­


seia dá relevância a dois deles, Fémio e Demódoco, um que vive em
ítaca e o outro entre os Feaces. O poeta apresenta-os a cantar, nas festas
e nos banquetes, ou lendas divinas ou recordações mais recentes dos
heróis da guerra de Tróia. É possível pedir-lhes um determinado episó­
dio célebre: é assim que Ulisses pede a Demódoco que cante o episódio
do cavalo de madeira introduzido em Tróia (Od. VIII. 492).
Estas indicações sugerem que os poemas homéricos nasceram des­
sas recitações, em que a improvisação se combinava, sem dúvida, com
a memória.
Também é tentador comparar a epopeia homérica com os testemunhos
da poesia oral, que se conservaram, em alguns povos, até aos nossos
dias. Foi o que fizeram, entre outros, Milman Parry e, mais tarde, Albert

23
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Lord, ao estudarem, durante vários anos, as produções dos bardos jugosla-


vos. O seu esforço mostrou as notáveis semelhanças nos temas (a impor­
tância do herói e da sua honra, as descrições do objectos belos), mas
sobretudo nalguns traços formais, ligados às condições de transmissão
destes textos. Com efeito, desde que se trate de improvisar sobre temas
específicos, fazendo uso da memória, é possível explicar a presença numa
tal poesia de cenas típicas, de versos formulares e de epítetos retomados
constantemente, ou epítetos de natureza. Estes traços encontram-se na
epopeia homérica, onde grande quantidade de versos, ou de meios ver­
sos, já prontos, se repetem num ou noutro sítio, tendo o valor de chave
fácil. Isto também é verdadeiro para pequenos grupos de versos que evo­
cam um ferimento, uma refeição, uma partida, uma aurora, ou até que
servem de simples transição. Do mesmo modo, sabemos que as perso­
nagens homéricas, ou até as realidades em que elas vivem, são afectadas
por um adjectivo de alguma forma especializado, que devia cantar nas
suas memórias e proporcionar um meio verso fluente.
No entanto, é lícito pensar que, embora, na época de Homero, a
escrita tivesse acabado de reaparecer, e ainda que ele próprio tenha podi­
do recorrer a ela, o ponto de partida dos seus poemas foi uma literatura
oral, do mesmo género, com uma quantidade de heróis e de «gestas»,
cujo tratamento podia variar no pormenor de um aedo a outro, de um
local a outro, de um século a outro.
E o que é verdadeiro para a gesta épica, pode aplicar-se também a
alguns temas da Odisseia, nos quais se encontram vestígios de narrati­
vas populares e de lendas locais que constituem uma espécie de «saga»
e que, como os temas épicos, são susceptíveis de renovação e de adap­
tação em função das circunstâncias.
Mas, ao mesmo tempo, podemos pensar que, em ambos os casos, a
obra reagrupa diversas categorias, mais ou menos bem ligadas entre si.
Na verdade, é isso que sobressai claramente da leitura dos dois poemas.

2. O carácter compósito da língua

A língua que Homero usa já é uma língua compósita, que deixa


entrever a combinação de tempos e locais diversos.

24
HOMERO

Nela se misturam dois dialectos gregos, o jónico e o eólico. As for­


mas de um e de outro parecem ser usadas indiferentemente. Por vezes,
num texto em que as formas são jónicas encontramos a forma eólica para
uma palavra que o jónico não usava (como o termo que designava uma
deusa). Ou então, encontramos desinências jónicas e eólicas alternando
entre si, ao sabor da métrica. E embora historicamente os Jónios tenham
suplantado os Eólios, não se trata de categorias sucessivas. Estão mis­
turadas, numa linguagem literária e artificial em que se funda a herança
de dois grupos diferentes.
A isto juntam-se formas antigas, provavelmente introduzidas mais
tarde, aquando da fixação dos poemas, na Atenas do século vi: neste caso,
a mistura das formas já reflecte a mistura dos tempos.
Esta mistura não intervém apenas nas reconstituições posteriores:
toda a linguagem homérica pressupõe a sua existência. E é possível apre­
sentar duas provas simples, baseadas em casos precisos.
O primeiro é o de uma consoante perdida, o j7 ou digama. Quando
ela desapareceu da língua, deixou de ser escrito; mas a presença de uma
consoante é importante no verso, seja para contribuir para alongar uma
vogal precedente, seja para evitar um hiato. Ora, em certos casos, para
escandir um verso, é necessário restabelecer a influência do digama per­
dido; noutros, este não intervém. As fórmulas mais antigas pressupõem,
evidentemente, esta letra; as mais recentes, essas ignoram-na; mas na
maioria dos casos, o poeta age a seu gosto, misturando os usos de datas
distintas de acordo com a sua comodidade. Podia até suceder que um
aedo recente modificasse a antiga fórmula para a harmonizar com o novo
estado da língua.
O segundo exemplo é o dos verbos contractos, nos quais um ώ suce­
deu a -άω e, por isso, contava como uma breve seguida de uma longa:
nesses casos, por vezes, encontramos uma restituição arbitrária em -όω.
Provavelmente, isto não é mais do que uma grafia, mas ela mostra sufi­
cientemente que, por detrás do nosso texto, havia outro mais antigo, cuja
língua ainda não era a da época em que o nosso texto foi constituído.
Tudo isto prova abundantemente que a língua homérica, ainda que
independentemente das transformações que lhe foram impostas pela
actualização posterior e, depois, pelas intervenções dos copistas, já reflec-
tia toda uma história e que repousava na transmissão de textos épicos,

25
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

de versos e de fórmulas muitos séculos anteriores a Homero. Os dife­


rentes estratos da língua, que se avizinham no texto, revelam a existên­
cia de modelos anteriores, chegados mais ou menos puros ao nosso poeta.

3. Uma civilização compósita

Os objectos, as práticas, os ritos que Homero descreve não consti­


tuem uma mistura de testemunhos menos diversa: épocas diferentes
aproximam-se na epopeia.
Nela encontramos, por vezes, a descrição de objectos que parecem
vir directamente do passado micénico: a bela taça de Nestor na Ilíada (XI.
632 ss.) é, com as suas pombas, quase idêntica a uma taça encontrada em
Micenas. E o exemplo não está isolado. Mas, logo que saímos do caso
particular, as coisas complicam-se e os testemunhos contradizem-se.
É assim que o ferro é praticamente desconhecido dos Aqueus, mas
de uso corrente no tempo de Homero. Ora, ele é bem apresentado como
sendo raro e precioso na Ilíada (XXIII, 261, 834, 850): o metal usual é o
bronze. No entanto, o ferro surge em passagens isoladas; aparece também
nas comparações; e os heróis, às vezes, têm um coração «de ferro». A par
do bronze, que representa a tradição, o ferro evoca os hábitos do poeta.
Do mesmo modo, não se pesca, nem se monta a cavalo, a não ser
em casos excepcionais ou nas comparações.
Outras misturas são ainda mais confusas. O escudo ora é pequeno
e redondo, ora é semelhante a uma torre, ora é grande, em forma de oito:
parece ter tido usos sucessivos; mas os vasos da época geométrica apre­
sentam a mesma justaposição. Uma mistura equivalente surge no núme­
ro de espadas que o guerreiro tem (uma ou duas), na natureza do seu
elmo (couro ou metal), na forma dos palácios, ora semelhantes aos palá­
cios cretenses (como entre os Feaces, com o friso em lápis-lazúli, ou o
de Circe, com o seu andar e o terraço), ora com uma forma simples, com
um megaron central.
Às vezes, o uso dominante surpreende: é o que sucede com a cre­
mação, com que a Ilíada termina duplamente, que difere profundamen­
te dos grandes túmulos micénicos.

26
HOMERO

Todas estas divergências, embora o pudéssemos esperar, não apre­


sentam qualquer meio de datação. Um objecto tipicamente antigo, como
o elmo de couro reforçado com dentes de javali, não surge num canto
que parece, entre todos, recente - a Dolonia (II. X. 260 ss.)? As hipóte­
ses multiplicam-se, sem levar a nada... Em contrapartida, a existência
destas divergências confirma que a poesia homérica tem as suas raízes
em tradições antigas, aos poucos amalgamadas e modificadas.
Passa-se o mesmo com os dados da história. Homero ignora em
geral, deliberadamente, a chegada dos Dórios; mas refere os Dórios numa
passagem da Odisseia (XIX. 177). Em contrapartida, fala muito dos Fení­
cios, cuja importância só se verifica dois ou três séculos depois da época
de Agamémnon.
Talvez também a influência das circunstâncias tenha tido uma fun­
ção indirecta: assim, alguns estabelecem uma relação entre os Fenícios
e os Ciclopes da Odisseia com o papel desempenhado por Cálcis na
colonização e com a guerra lelantina, entre Cálcis e a Erétria (é o caso
de Homère [Homero], de F. Robert, PUF, 1950).
Sem dúvida que a modernização também prosseguiu depois da com­
posição dos poemas, na forma de interpolações: de acordo com Plutarco,
Sólon teria baseado num verso acrescentado a reivindicação de Salami-
na por Atenas (trata-se da Ilíada II. 558).
A Ilíada e a Odisseia reproduzem, assim, por vezes distintos e, por
vezes, misturados livremente, momentos da história e da vida gregas que
nunca coexistiram a não ser na obra.
Poderíamos pensar - e é muitas vezes, sem dúvida, o caso - que se
trata de um sincretismo livre, de natureza meramente literária. Mas o
facto é que os próprios poemas sugerem a existência de diversos peda­
ços, nem sempre bem unificados.

4. A diversidade no seio dos poemas

Cada um dos dois poemas tem um tema central e outros que se lhe
ligam. Quando a ligação não se impõe com uma necessidade evidente,
toma-se natural pensar que se pode tratar de tradições, independentes na
origem e unidas com mais ou menos sorte.

27
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

A Ilíada começa quando a guerra de Tróia já dura há nove anos e o


seu tema associa a cólera de Aquiles a uma decisão de Zeus sobre os com­
bates que se seguirão. E natural que, depois do anúncio desta decisão,
encontremos o catálogo das naus e o episódio de Helena, nomeando a Prí-
amo os principais chefes aqueus? Estes episódios conviriam mais no iní­
cio da guerra. Do mesmo modo, o combate singular entre Páris e Menelau,
no canto III, ou aquele que opõe Heitor e Ajax, no canto VII, interrompem
a acção de uma forma bizarra. A construção de uma muralha pelos Aqueus,
no final do mesmo canto VII, está de igual modo pouco justificada e o ata­
que a esta muralha, mais adiante, levanta várias dificuldades.
De um modo ainda mais claro, na Odisseia podemos ficar incomo­
dados com a mistura entre as partes relativas a Ulisses e as que concer­
nem Telémaco: não há aí elementos independentes na origem? A estadia
de Ulisses entre os Feaces não se prolonga de uma forma imprevista,
como se tivessem existido duas versões diferentes? A descida de Ulisses
ao mundo dos mortos, no canto XI, apresenta, estranhamente, uma deci­
são relativamente ao resto. E porque é que a cena do lava-pés surge no
canto XIX, permitindo que Euricleia reconheça o herói, se não se veri­
fica então o reconhecimento entre Ulisses e Penélope? Seria isto um ves­
tígio de uma versão diferente? Além do mais, a cicatriz, em que se baseia
este primeiro reconhecimento, parece ser ignorada no canto anterior,
quando Ulisses arregaça as suas roupas para lutar.
Ao examinar de perto os dois poemas, segundo esta perspectiva, encon­
tramos repetições e pequenas contradições. Não é possível insistir muito
nestas últimas: até um escritor, que inventa livremente uma obra de uma
só vez e que pode escrevê-la e lê-la à vontade, se expõe a cometer peque­
nos erros: pode supor que está viva uma personagem que já matou (tal como
Pilémenes, morto no canto V e vivo no canto XIII da Ilíada); pode esque­
cer um determinado pormenor, colocado a uma grande distância.
Em contrapartida, as repetições podem apresentar suturas artificiais.
Foi o que se pensou relativamente às assembleias dos deuses, na Odis­
seia I e V, que se repetem de forma bizarra e a primeira não tem grande
efeito.
Enfim, também aí importa contar com a possibilidade de interpola­
ções posteriores: de algumas suspeitaram já, no século n antes da nossa
era, sábios como Aristarco ou Aristófanes de Bizâncio. Não há quase

28
HOMERO

nenhum autor antigo que nâo se tenha ocupado com tais factos: a flexi­
bilidade e a variedade da epopeia, bem como a sua antiguidade, ofere­
ceram aos interpoladores um terreno ainda mais favorável.
Aliado ao testemunho da analogia literária, da língua e dos factos
da civilização, este género de constatações explica a existência de um
problema que, simultaneamente, estimula e paralisa os estudos sobre
Homero: o problema é o que chamamos a «questão homérica».

5. A questão homérica

A questão homérica foi apresentada pela primeira vez pelo abade


d’Aubignac que, em 1664, escreveu as suas Conjectures académiques
ou dissertation sur I ’Iliade [Conjecturas académicas ou dissertação sobre
a Ilíada] (publicadas em 1715). Foi-o com mais repercussão na Alemanha,
pelos Prolégomènes à Homère [Prolegómenos a Homero] de F. A. Wolf,
em 1795. Desde então, não deixou de dar lugar a longas discussões, que
dividiram, e ainda hoje dividem, os filólogos.
Não poderíamos aqui enumerar as teses ou os argumentos. Em ter­
mos simples, a questão pode resumir-se assim: com Homero, temos nós
dois grandes poemas, cada um constituindo uma unidade literária e tendo
sido ambos concebidos na mesma forma em que hoje os possuímos? É a
chamada tese unitária. Ou estamos perante uma composição mais ou
menos feliz de poemas mais limitados, concebidos em datas distintas e
independentes uns dos outros, até mesmo, talvez, em função de conjun­
tos diferentes do que nós conhecemos? É a teoria dos analistas, que pro­
curam encontrar no texto actual vestígios de estádios anteriores.
Depois do livro de Wolf, a tese analista foi progressivamente adqui­
rindo terreno; depois, houve uma reacção favorável aos unitários; chegou-
-se, então, pela altura da última guerra mundial, a teorias analistas menos
absolutas e menos destrutivas; ao mesmo tempo, os unitários tiveram de
reconhecer um passado para os dois poemas. No momento actual, as
duas teses aproximaram-se. Toma-se, assim, possível distinguir com
mais clareza os quadros do problema e os princípios gerais que ressal­
tam da discussão.

29
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Em primeiro lugar, é evidente - acabamos de perceber as razões -


que os poemas homéricos têm as suas raízes num passado longínquo; e
é razoável pensar que alguns episódios deverão ter sido cantados durante
muito tempo. Esta verosimilhança é reforçada pela existência de poemas
épicos independentes da Ilíada e da Odisseia. Certamente são posterio­
res a Homero; mas devem ter tido, também eles, fontes antigas no mesmo
fundo onde Homero terá bebido. Assim sendo, pensa-se, para a Ilíada,
numa Aquileida, em que se teria inspirado o poema que seria a continua­
ção da Ilíada', e para a Odisseia pensa-se em dois poemas sobre os Argo­
nautas. Chega mesmo a suceder que versões muito posteriores revelam
versões antigas.
Em qualquer caso, num determinado momento - o momento deci­
sivo! - um poeta específico (ou um grupo de poetas) procedeu à com­
posição de conjuntos literários destinados a tomarem-se nas epopeias
que conhecemos. Esse poeta (ou grupo de poetas) serviu-se dos elemen­
tos que acabámos de ver, ordenando-os em redor de uma ideia central.
Depois disso, várias adições foram feitas, algumas das quais, já o
vimos, podem ser bastante tardias.
Nestas condições, o verdadeiro problema consiste em saber que
extensão tinham os conjuntos elaborados nesse «momento decisivo».
De acordo com uma das soluções, trata-se de um núcleo, sem dúvi­
da importante, mas muito menos do que aquilo que vimos: um outro
poeta, ou outros poetas, teriam procedido a aumentos, que podiam incluir
inúmeros cantos. Este ponto de vista, que é analista, inspira, por exem­
plo, a reflexão de Paul Mazon (Introduction àVlliade [Introdução à Ilí­
ada], Paris, CUF, 1942). Isto não determina forçosamente uma dispersão:
cada canto poderia perfeitamente ter sido composto para ser colocado
onde está; mas a composição ter-se-ia feito por um acrescento em vários
períodos. Do mesmo modo, pensaríamos que as aventuras de Telémaco
e as narrativas na ilha dos Feaces nem sempre teriam pertencido a um
mesmo poema; mas o actual poema é uma síntese.
Para a outra solução, o conjunto composto no momento decisivo
estaria muito próximo do nosso; e Homero continua a ser - mesmo com
algumas interpolações - o único organizador do material épico - com a
pequena reserva de que a Odisseia, que é, em tudo, mais nova do que a

30
HOMERO

Ilíada, poderia não ter sido a obra do mesmo indivíduo, mas de um dos
seus continuadores.
Entre as duas soluções, não há nenhuma forma de decidir com cer­
teza. No início, teriam tentado usar como argumentos a extensão dos
poemas e o facto de ultrapassarem as dimensões razoáveis de um poema
oral; mas a analogia mostra que os bardos podem saber de cor obras com
uma extensão comparável; e a existência da escrita, que tinha o seu iní­
cio na época de Homero, ainda facilita mais a hipótese. Quanto aos argu­
mentos de pormenor, esses prestam-se sempre a discussão.
No entanto, qualquer que seja a solução finalmente adoptada, pare­
ce que, doravante, devem impor-se dois princípios gerais.
O primeiro é que nenhuma leitura inteligente de Homero se pode
descurar de procurar, a propósito de cada passagem e de cada verso, os
possíveis ecos da história, ou de poemas anteriores, o vestígio de even­
tuais correcções, em suma, o testemunho de uma longa génese, cuja
forma é incerta, mas a existência é indiscutível.
O segundo é que se trata, de qualquer forma, de obras literárias,
entendidas como tal pelos seus autores, apresentadas como unidades e
regidas por uma arte consciente. Se, antes delas, houve epopeias que
lemos, se elas contribuíram para a elaboração dos nossos poemas, o pró­
prio facto prova estrondosamente que estes dois poemas não se teriam
imposto e não teriam sido os únicos a sobreviver, se a arte do seu autor
não lhes tivesse dado uma forma capaz de produzir este resultado. E é
por esta razão que, a seguir ao problema da sua formação, deve vir num
lugar de relevo a ideia da sua perfeição, perfeição que esta formação,
mais ou menos progressiva, fazia sobressair ainda mais.

II.
A EPOPEIA E A SUA PERFEIÇÃO

Através da sua composição de conjunto, estas duas epopeias apre-


sentam-se cada uma como um todo que possui a sua unidade de acção.
E isto que mostra um resumo do seu conteúdo.

31
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

1. A estrutura dos dois poemas

a) A Ilíada

A análise pode ser feita seguindo os diferentes cantos. São 24 para


cada epopeia; são designados ou por um algarismo, ou por uma letra
grega (maiuscula para a Ilíada, minúscula para a Odisseia). Devemo-
-nos lembrar, contudo, que se trata de divisões posteriores a Homero e
que podem datar da época alexandrina.
O canto I é consagrado à cólera de Aquiles, às suas causas e às suas
consequências. O início tem lugar entre os Aqueus: para remediar uma
peste enviada por Apoio, têm de devolver ao sacerdote de Apoio a sua
filha Criseida, prisioneira de Agamémnon. Este devolve-a, mas em troca
apodera-se da cativa de Aquiles, Briseida. Furioso, Aquiles afasta-se do
combate. Passamos, então, para junto dos deuses, onde Tétis, mãe de Aqui­
les, obtém de Zeus uma promessa: os Aqueus não terão a vitória enquanto
não forem reparados as faltas cometidas contra Aquiles.
Os dados que comandam toda a sequência estão, assim, apresenta­
dos com clareza: todos os combates da primeira parte deverão levar ao
regresso de Aquiles à luta e à sua vitória sobre Heitor.
O canto II é uma preparação para esses combates: tem um sonho de
Agamémnon, destinado a dar início ao combate, uma assembleia dos
Aqueus e o catálogo das naus.
O canto III narra um primeiro combate, ainda isolado. Páris, o rap­
tor de Helena, estimulado pelas censuras de Heitor, vai enfrentar Mene-
lau num combate singular. Helena vai para as muralhas e indica ao seu
sogro os principais chefes aqueus. Finalmente, Afrodite salva Páris e
coloca-o, indemne, no quarto de Helena.
No canto IV trava-se a batalha: esta vai ocupar este canto e os três
seguintes. Primeiro, os chefes incitam-se uns aos outros e inicia-se a refre­
ga. Esta prossegue no canto V, com a participação dos deuses: o próprio
Ares, deus da guerra, é ferido por Diomedes. Então, Heitor decide colo­
car todas as sortes do lado troiano: no canto VI regressa à cidadela para
pedir que façam grandes preces a Atena; despede-se, então, de Andróma-
ca e do seu pequeno filho, que receia deixar órfão. Depois, no canto VII,
regressa ao combate: voltamos, então, a ver a refrega, que um combate sin-

32
HOMERO

guiar entre Heitor e Ájax interrompe. Este termina com a noite; conclui-
-se, então, uma trégua.
Com o canto VIII inicia-se uma segunda batalha, precedida por
nova assembleia dos deuses: é-lhes interdito que intervenham no com­
bate. Os Aqueus são repelidos, o seu contra-ataque é malogrado. A noite
deixa os Troianos em frente da muralha aqueia.
Perante este perigo, os Aqueus decidem intervir junto de Aquiles:
uma embaixada vai ao seu encontro (é o canto IX); oferece-lhe uma repa­
ração, mas é frustrada.
Encontra-se, aqui, um episódio noctumo, pouco associado ao con­
junto da acção e que apresenta as características de uma adição tardia:
no canto X, depois de um conselho noctumo, os Aqueus Ulisses e Diome-
des, que partiram numa acção de reconhecimento, matam o Troiano Dólon
(daí o nome de Dolonia); graças a Dólon, surpreendem e massacram os
reforços enviados a Tróia pelo rei trácio Reso.
Depois disto, inicia-se uma terceira batalha, que ocupa os cantosXI
a XV, incluídos, e conduz os Troianos ao campo aqueu, que estão prestes
a incendiar. Num determinado momento, os deuses amigos dos Aqueus
têm alguma esperança, pois Hera atraiu Zeus ao cimo do Ida, onde ele
adormeceu (XIV); mas acorda no canto seguinte: a sorte dos Aqueus é,
portanto, das mais precárias.
E também neste momento crítico que se encontra o início do episódio
que originará a peripécia. Com efeito, Aquiles, a quem os presentes da
embaixada não acalmaram, deverá voltar ao combate sob o efeito da dor,
quando lhe matarem o amigo Pátroclo.
No canto XVI, Aquiles, que não queria permitir que Pátroclo fosse
combater, cede, quando o primeiro navio começa a arder. Então, empres­
ta a Pátroclo as suas próprias armas e este parte para o combate. Realiza
alguns feitos e, depois, morre, enganado por Apoio e sendo o último golpe
desferido por Heitor. No canto XVII, trava-se uma luta em redor do seu
corpo, que os Aqueus conseguem levar para o acampamento. A dor de Aqui­
les, no canto XVIII, é intensa. A mãe tenta consolá-lo e consegue que
Hefesto forje para ele novas armas, de uma beleza sem igual. E agora
claro que Aquiles deve vingar Pátroclo.
Com efeito, no canto XIX, renuncia solenemente à sua cólera. Aga-
mémnon oferece-lhe uma reparação; e Aquiles prepara-se para o combate:

33
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

inspirado por Hera, o seu cavalo prediz-lhe a morte que está para vir.
Mas pouco importa: ele parte.
Os feitos de Aquiles enchem os cantos XX (que narra uma batalha
terrível na qual, de novo, os deuses intervêm), XXI (em que Aquiles põe
os Troianos em fuga) e, por fim, ο XXII, onde mata Heitor.
Heitor matara Pátroclo; Aquiles vingou o seu amigo. Nos dois cam­
pos só há espaço para o luto. O canto XXIII descreve os jogos fúnebres,
realizados pelos Aqueus, em honra de Pátroclo; o canto XXIV conta a
triste visita de Príamo a Aquiles, a quem vai pedir o corpo de Heitor.
Consegue-o e leva-o para Tróia, onde o morto é chorado e sepultado.
Deste modo, a linha geral da epopeia desenha-se com uma grande
clareza e uma não menor força trágica. Enquanto a guerra durou dez
anos, a acção dura apenas alguns dias (um total de cinquenta, incluídos
os dias de inacção e de espera, antes da cólera de Aquiles, ou depois dos
funerais de Pátroclo). Nestes dias, ela agrupa combates que são, primei­
ro, vantajosos para os Troianos, depois para os Aqueus, e que são como
que um resumo dos dez anos de combates. Mas agrupa-os de acordo com
um esquema simultaneamente trágico e simples. Além disso, para tomar
mais tocante a sorte dos protagonistas, alterna as cenas de combate com
cenas entre familiares - tanto do lado troiano (com Helena e Páris, Andró-
maca e Heitor), como do lado aqueu (com Aquiles, Pátroclo e Briseida).
Este elemento humano prevalece até, no final, sobre o aspecto guerrei­
ro: a epopeia termina não com a vitória, mas com o luto. Enfim, para
engrandecer mais o sentido de todas estas lutas e dar-lhes uma dimensão
mais elevada, a Ilíada mistura os deuses com os homens e alterna com
sabedoria as assembleias dos guerreiros com as dos deuses.
Pode haver, nos pormenores, pequenas dificuldades e pode ser útil
considerá-las para se ter uma ideia da génese da obra; mas a sua arqui-
tectura de conjunto não é apenas una e bem construída: revela uma arte
consumada da composição literária e um artista consciente dos seus meios.
Acrescenta-se a isto subtilezas de composição, que consistem em
variar um mesmo tema, em manter o interesse, em recordar, em plena
batalha, a piedade humana que os combatentes merecem. Só uma expli­
cação pormenorizada do texto pode sugerir a sua mestria; e, à luz destes
princípios, isso não é empreendido em vão.
O caso da Odisseia não é exactamente o mesmo.

34
HOMERO

b) A Odisseia

Tal como a Ilíada, a Odisseia considera um caso particular e um


tempo limitado: trata-se apenas de Ulisses e dos seus; e a acção propria­
mente dita dura quarenta dias. Mas, graças a uma arte pelo menos tão
sábia como aquela que a Ilíada testemunha, o poeta foi capaz de prolon­
gar esta acção introduzindo-lhe narrativas, de tal modo que todas as
aventuras que marcaram o regresso de Ulisses estão inseridas nela, tal
como a diversidade de interesses se concilia com o princípio de uma
acção concentrada. Por outro lado, esta acção combina dois palcos, mais
afastados e mais independentes um do outro do que o estavam os dois
campos da Ilíada: antes de Telémaco e o seu pai serem associados numa
acção comum, o poeta segue-os, independentemente um do outro. Parte
do palácio de Itaca, onde se desenrolará o final da epopeia, e começa por
Telémaco. Depois passa para Ulisses, sendo o intermediário uma assem­
bleia dos deuses, durante a qual Zeus decide intervir e envia o seu men­
sageiro, Hermes, a Calipso, o que acaba por relançar Ulisses no mar e
no caminho de regresso.
Graças a este sábio arranjo temos, na realidade, quatro grupos de
cantos.
Os cantos I a IV são consagrados a Telémaco: uma primeira assem­
bleia dos deuses tem como resultado que Atena encoraja o jovem na sua
luta contra os pretendentes, reunidos no palácio há vários anos (1). Ele
reúne uma assembleia e prepara a sua partida (II): quer tentar obter notí­
cias do pai. Primeiro vai a Pilo, ao palácio de Nestor (111), depois a Espar-
ta, ter com Menelau (IV). No final do canto, prepara-se para regressar a
ítaca, enquanto os pretendentes lhe preparam, ao mesmo tempo, uma
emboscada para o seu regresso.
O perigo desta emboscada explica a nova intervenção de Atena no
conselho dos deuses. Graças a ela, os cantos Va VIII são consagrados a
Ulisses. O canto V vai encontrá-lo junto da ninfa Calipso, onde foi retido
durante vários anos. Ela deixa-o partir e ajuda-o a construir uma jangada.
Depois de uma tempestada, é atirado para a costa dos Feaces (V). Nau-
sícaa, a filha do rei Alcínoo, que fora lavar a sua roupa branca, encontra-
-o e condu-lo ao palácio (VI). É bem recebido, mas não diz o seu nome
(VII). Prestam-se a assegurar-lhe o regresso a casa; enquanto esperam,

35
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

celebram jogos em sua honra; o aedo Demódoco canta o episódio do


cavalo de Tróia (VIII).
A emoção de Ulisses ao ouvi-lo leva o rei Alcínoo, no final do canto,
a interrogá-lo de uma forma mais directa: afinal, quem é ele e quais foram
as suas aventuras? E, deste modo, introduzido o grupo de cantos que se
seguem.
Os cantos IXa XII são, com efeito, as Narrativas de Ulisses. Evocam
as estranhas e maravilhosas aventuras que dependem do género do conto.
As principais são as de Ulisses na ilha do Ciclope (IX), com Eolo, entre
os Lestrígones, com Circe (X), entre os mortos (XI), com as Sereias e
os rebanhos do Sol (XII). Todas estas aventuras o conduzem, no final do
canto XII, a Calipso, onde se iniciara a acção da Odisseia e as breves
informações prestadas por Ulisses à sua chegada, no início do canto VII.
Tendo o conjunto das aventuras de Ulisses, após a queda de Tróia,
sido inserido desta forma na narrativa, é retomada a própria acção da
epopeia. E passamos das evocações fabulosas à empresa totalmente
humana que deverá restabelecê-lo em ítaca.
Primeiro, há um período de preparação. Os cantos XIII eXIVcompre­
endem a chegada de Ulisses a casa do seu porqueiro, o velho Eumeu, que
ele engana com narrativas mentirosas e a quem interroga sobre a situação.
O canto XV conduz ao mesmo local Telémaco, que escapara à emboscada
dos pretendentes (a do canto IV). O canto XVI apresenta o reconhecimen­
to do pai e do filho, que se preparam para agir contra os pretendentes.
A sua acção ocupa os cantos XVII a XXIII. No canto XVII, Ulisses,
disfarçado de mendigo, é reconhecido apenas pelo seu velho cão; no
canto XVIII tem de se bater com outro mendigo. No canto XIX, sempre
disfarçado, é reconhecido pela sua ama, Euricleia, graças a uma cicatriz,
mas ela cala-se. Vem, então, o banquete dos pretendentes (XX): Ulisses
é bem sucedido na prova que Penélope propusera, pedindo que usassem
o arco do marido (XXI). Então Penélope entra, enquanto Ulisses, armado
com o seu arco, tira os seus farrapos e massacra os pretendentes (XXII).
Depois disto, dá-se, como coroação do seu regresso, o reconhecimento
entre Ulisses e Penélope (XXIII).
Um último canto serve de epílogo: põe Ulisses na presença do seu
velho pai, evoca o destino dos pretendentes mortos (segunda descida aos
infernos) e as reacções das pessoas de ítaca. Este final foi, muitas vezes,

36
HOMERO

afastado pelos críticos, seguindo uma tradição, de acordo com a qual


Aristófanes de Bizâncio e Aristarco consideravam que a Odisseia move-
-se devagar, sem recear os recuos e as belas histórias contadas para prazer.
Esta grande flexibilidade foi capaz de encorajar as teorias dos analistas.
Mas a habilidade que une, de um extremo ao outro, estes episódios, com­
binando variedade e continuidade, também tem com que satisfazer as
concepções unitárias.
As semelhanças de composição nas duas epopeias são suficiente­
mente grandes para que possamos admitir que tiveram o mesmo autor:
este teria elaborado a Odisseia vinte ou trinta anos depois da Ilíada. Mas
podemos considerar a Odisseia como um todo, sem que se imponha esta
conclusão. Na verdade, nada impede que admitamos que, entre os aedos
formados pelo gosto de Homero e pelos seus hábitos, se tenha encontra­
do um continuador. Os Homeridas de Quios, que se diziam discípulos e
descendentes de Homero, são posteriores; no entanto, a sua existência
toma possível a hipótese de um autor muito próximo do mestre e que
teria tido a possibilidade de rivalizar com ele num conjunto igual e um
pouco diferente. De qualquer forma, a composição das duas obras impli­
ca uma arte deliberada e sabiamente amadurecida.
A civilização que elas reflectem não é menos refinada.

2. O mundo homérico

O mundo homérico aparece em guerra na Ilíada, em paz na Odis­


seia. Mas, nos dois universos reflecte-se uma mesma concepção da vida
humana.
Uma primeira característica do mundo homérico é o facto de ele
misturar e aproximar de forma única os homens e os deuses.

a) Os deuses na epopeia

Devido a uma evolução que não tem lugar aqui, a religião homérica
admitira uma combinação de elementos helénicos e pré-helénicos. Admi­
tia a existência de deuses que viviam no Olimpo ou, mais simplesmente,
no céu. O seu rei-pai era Zeus; mas cada um tinha a sua personalidade.

37
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

A epopeia imagina as suas relações como as de um pequeno reino huma­


no. Hera, mulher de Zeus, ora protesta, ora o engana: são cenas quase
dignas da comédia. Outros adulam-no. Alguns tentam desobedecer-lhe.
Aliás, eles vivem do mesmo modo que os homens: se têm um rei,
têm também assembleias. O canto I da Ilíada termina com uma delas;
outra abre o canto I da Odisseia.
Estes deuses também têm, como os homens, paixões nem sempre legí­
timas (no canto VIII da Odisseia, Demódoco conta os amores adúlteros de
Ares e de Afrodite; é verdade que a passagem foi considerada tardia).
Em qualquer caso, estas paixões levavam-nos muitas vezes a mis­
turar-se com os homens, umas vezes sob o seu próprio aspecto, outras com
traços tomados de empréstimo. Têm os seus amigos e inimigos. O pró­
prio Aquiles é produto do casamento entre um mortal e uma deusa.
Todas estas características tomam os deuses homéricos não só antro­
pomórficos, mas extremamente humanos, com os defeitos que o termo
pode implicar.
No entanto, eles diferem radicalmente dos homens pelo facto de que
são imortais e gozam de poderes sobre-humanos. Zeus desencadeia o relâm­
pago e Posídon a tempestade. Os deuses transformam-se livremente; tam­
bém transformam os homens, envelhecendo-os ou embelezando-os à sua
vontade - sem falar das metamorofoses de que a Odisseia nos oferece
vários exemplos, por exemplo com Circe. Deslocam-se à vontade no
espaço; também podem transportar os homens; envolvem-nos em luz ou
sombra; desviam uma arma. O homem homérico receia sempre que este­
ja ali um deus e que intervenha contra ele. Umas vezes, receia um deus
individual; outras (sobretudo na Odisseia), fala da divindade de forma
abstracta, ou seja do daimôn.
O resultado é que, na epopeia, cada acontecimento humano desen­
rola-se simultaneamente em dois planos e os deuses metem-se em tudo.
Devido a um traço notável, os deuses, que os dois campos conhecem,
são os mesmos. Mas as suas simpatias individuais variam. Uns estão do
lado dos Aqueus, os outros, do lado dos Troianos, sendo as suas razões
sempre pessoais e egoístas.
Deste modo, Hera, Atena e Posídon apoiam os Aqueus com todo o
seu coração. Apoio, pelo contrário, apoia os Troianos. A paixão que eles
colocam nisto é tal que se enfrentam entre si, por vezes em combates

38
HOMERO

verdadeiros (como na Ilíada, XX. 67 ss.). Do mesmo modo, intervêm


nos combates humanos, enganando os seus inimigos, apoiando os seus
amigos, com um ardor obstinado.
Esta estreiteza de laços entre deuses e mortais também se pode reves­
tir, pelo menos na Ilíada, de um carácter de afectuosa familiaridade: se
Ulisses é perseguido constantemente pela cólera de Posídon, também é
constantemente apoiado por Atena, que não deixa de o ajudar, quer agin­
do entre os deuses, quer em ítaca, quer junto dele. Há poucas cenas tão
encantadoras como a do canto XIII, entre Ulisses e Atena. Esta «seme­
lhante no corpo a um jovem, pastor de ovelhas, / mas muito gentil, como
são os filhos de príncipes.»; Ulisses, não a reconhecendo, conta-lhe belas
mentiras; e Atena diverte-se; retoma a sua aparência normal, rindo-se:
«Interesseiro e ladrão seria aquele que te superasse / em todos os dolos,
(...)!» (291 sg.)(3). Acabam os dois a conversar, sentados sob uma oli­
veira sagrada... Uma tal intimidade permanecerá única na literatura
grega: ela marca a enorme proximidade entre uma divindade e um mor-
tel que não lhe é nada.
Mas estas intervenções parciais e diversas apresentam um problema
sério, que é o da justiça divina. Elas parecem negar a sua existência: mas
sucede que elas não são tudo.
Certamente, as epopeias homéricas não atribuem à justiça divina o
lugar que lhe será dado mais tarde. No entanto, ela existe na medida em
que Zeus, enquanto soberano, funciona como árbitro entre os deuses e
impede que uns triunfem sobre os outros de uma forma demasiado clara.
Na verdade, Zeus tem muita ternura e solicitude por alguns mortais; mas
também encontramos na Ilíada passagens que lembram que ele se enco­
leriza com aqueles mortais que desprezam a justiça e que não respeitam
os deuses (XVI. 386-388). Não só protege os hóspedes e os suplicantes;
mas também exige respeito pelos juramentos. Os reis conservam o direito
em seu nome (1.238-239). E também se admite que violar um pacto (como
no canto IV) é um acto que ele punirá; Agamémnon di-lo: «Mesmo que
de seguida não outorgue cumprimento o Olímpio, / mais tarde outorgá-lo-
-á, e grande será a expiação deles, / ( . . . ) / virá o dia em que será destru-

(3) N.T.: Para esta e outras citações da Odisseia, usámos a tradução de Frederico Lou-
renço: Homero, Odisseia, Lisboa, Livros Cotovia, 2003.

39
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

ida a sagrada ílion, / assim como Príamo e o povo de Príamo da lança


de freixo.» (160 ss.)(4). Estas indicações são relativamente raras na Ilía­
da'. mas já são mais frequentes na Odisseia, onde passagens muito nume­
rosas evocam o castigo dos maus, como os pretendentes, ou a felicidade
prometida aos soberanos justos, como Ulisses ou Penélope. Encontra­
mos alusões a esta justiça exigida pelos deuses, por exemplo, em 1. 262;
III. 133; XVII. 484 ss., XIX. 109 ss., etc. De uma forma geral, na Odis­
seia os deuses são mais benévolos do que na Ilíada; e o culto também
tem mais importância. Além disso, a Odisseia termina bem. Pode ter
havido uma progressão, do ponto de vista da justiça divina.
De qualquer modo, na Ilíada e na Odisseia, trata-se de dosagem.
A divisão dos deuses não exclui a moralidade. Os dois aspectos coexis­
tem e misturam-se, sem que se distinga uma doutrina coerente.
Encontra-se a mesma imprecisão relativamente a um outro problema:
é aquele que opõe a boa vontade de Zeus, não às intervenções parciais
dos diversos Olímpicos, mas à existência de um destino, que estaria ine-
lutavelmente fixado e ao qual o próprio Zeus deveria obedecer.
Já uma espécie de pressão por parte dos deuses reunidos o pode
impedir de agir, em nome do destino. Por isso, ele ama com ternura Sar-
pédon, que é seu filho; queria salvá-lo; mas Hera protesta: «A homem
mortal, há muito fadado pelo destino, / queres tu salvar de novo da morte
funesta? / Fá-lo. Mas todos nós, demais deuses, te não louvaremos.»
(XVI. 441-443). Na sua dor, Zeus rega a terra com uma chuvada de san­
gue; mas deixa que o filho seja morto.
Não é, aliás, o único: todos os deuses têm mortais que lhe são caros;
mas não está no seu poder subtraí-los à morte (assim, II. XVIII. 464 ss.;
Od. III. 236 ss.).
Também vemos o próprio Zeus, por vezes, a interrogar o destino e
a entregar-se nas suas mãos. É o caso da cena da balança, no canto VIII da
Ilíada'. Zeus ergue a sua balança de ouro, para nela pesar «os dois fados
da morte irreversível», o dos Aqueus e o dos Troianos; «desceu o dia
fatal dos Aqueus.» (72). Então, Zeus cumpre o veredicto. E também este
o caso quando, do mesmo modo, Zeus recorre à balança para decidir

(4) N.T.: Para esta e outras citações da Iliada, usámos a tradução de Frederico Louren-
ço: Homero, Ilíada, Lisboa, Livros Cotovia, 2005.

40
HOMERO

entre Aquiles e Heitor: «Pegou na balança pelo meio: desceu o dia fada­
do de Heitor» (XXII. 212).
Nestes vários casos, discernimos o sentimento de uma ordem ine­
lutável - sempre, importa salientá-lo, dizendo respeito à morte; é a moira;
e esta ordem liga os próprios deuses, que são os seus agentes. No entan­
to, devemos falar de contradição com as passagens em que Zeus parece
ter fixado o lote de cada um? Isso seria muito insensato. Primeiro, a epo­
peia não é um tratado de teologia; e Homero pode, perfeitamente, nestas
questões, ter ideias tão incertas como as de qualquer pessoa. Depois, a
noção de uma ordem do mundo que até os deuses têm de respeitar, não
retira muito ao seu poder. Podemos supor várias conciliações possíveis,
com que Homero não se preocupou, nem tinha de preocupar. Para ele e
para os seus heróis, Zeus, os deuses, a divindade, o destino, estão mui­
tas vezes misturados: cada um destes poderes, pessoais ou impessoais,
é uma forma de traduzir o sentimento que o homem tem da sua própria
fraqueza, relativamente quer aos golpes da sorte, que ele atribui aos deu­
ses, quer à necessidade de morrer, que define a sua condição. Os homens
são «os mortais».
Logo, os deuses e o destino regem a sorte do homem; mas os deu­
ses ainda têm um poder mais singular. Com efeito, em Homero, vemos
muitas vezes uma divindade intervir para inspirar num homem uma ideia,
um desejo, uma reacção súbita, dar-lhe coragem ou cobardia. Na quere­
la do canto I da Ilíada, Atena desce do Céu para conter Aquiles: visível
apenas para ele, ela surge e fala-lhe; e ele contém a sua mão no punho
da sua arma. Por vezes, pensou-se que tais intervenções limitavam estra­
nhamente a parte dos homens. A verdade é que, como mostrou Femand
Robert no seu Homère [Homero], trata-se de uma forma de descrever o
que de repentino e de irracional se passa com o homem. Tal como, peran­
te o revés de um golpe que não atinge o seu fim, o herói homérico pensa
que um deus afastou a sua lança, também, perante uma reacção impre­
vista, pensa que um deus lha inspirou. E isto não é uma simples fabri­
cação de imagens, mas a expressão daquilo que sente e crê um homem,
num mundo onde os deuses intervêm: eles carregam o inexplicável.
Fazem-no com as emoções com tanto mais facilidade, quanto a psicolo­
gia de então ainda era rudimentar e se representava mal a interioridade
de uma alma: podemos percebê-lo pelo livro de B. Snell, DieEntdeckung

41
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

des Geistes (Hamburgo, 1948)(5). Não é, contudo, indiferente referir que


a Odisseia tenderá a distinguir mais do que a Ilíada entre impulsos de
inspiração divina ou humanos.
Seja como for, uma coisa é certa: não podemos falar do mundo épico
sem ter em conta os deuses, que nele desempenham constantemente uma
função.
Do ponto de vista literário, eles trazem à epopeia o seu maravilhoso;
e, durante muito tempo, só se reteve esse aspecto. Uma das razões por
que se impôs é porque o modo como os deuses estão presentes não dá a
impressão de um sentimento religioso real, no sentido em que o enten­
demos. Não é de menor importância que o sentimento da existência dos
deuses intervenha em todos os níveis da vida humana. Inspira receio;
mas também inspira confiança. Sobretudo, dá à vida humana uma dimen­
são e uma luminosidade características. Pela extraordinária proximidade
que existe entre os deuses e os homens, enobrece o homem a um nível
excepcional, que depois só raramente se atingirá; e a satisfação familiar
com que os deuses são evocados exprime, assim, uma espécie de alegria
humana e de amor desta vida com que se msitura o divino. Mas, ao mesmo
tempo, a perpétua lembrança destes poderes superiores aos homens ins­
pira uma espécie de piedade pelo homem.
Aliá, os dois aspectos combinam-se, pois o herói, por seu turno, acei­
ta este limite. A morte de Heitor toma-se mais trágica pelo conhecimento
que temos da decisão divina e pelo embuste a que o vemos sucumbir. Mas
adquire uma nova nobreza pelo facto de que ele o aceita e que, ao desco­
brir que o destino o tem, afirma: «Que eu não morra é de forma passiva
e inglória...» (XXII. 304). O próprio papel dos deuses realça assim a
verdadeira grandeza dos homens.

b) O ideal humano

Os homens da epopeia são heróis e, antes disso, quase sempre, reis.


Mesmo na Odisseia, em que aparecem pessoas simples, como o porquei-

(s) N.T.: Existe tradução portuguesa: Bruno Snell, A Descoberta do Espírito (tradução
de Artur Morão), Lisboa, Edições 70, 1992.

42
HOMERO

ro, a ama, o mendigo, eles constituem o círculo de um príncipe. A epopeia


reflecte, assim, um mundo aristocrático, cujas qualidades também o são.
A qualidade de um herói, a sua aretê, é feita, acima de tudo, de intrepidez.
A Ilíada mostra esta valentia num domínio que é essencialmente o
seu - a saber, a guerra. Aí vemos façanhas, feitos de força, de rapidez,
de generosidade. Vemos, sobretudo, o herói procurar a glória e fugir da
vergonha, associada à cobardia. A par do mérito do guerreiro, há o méri­
to das boas decisões, que se tomam no conselho; mas este conselho pare­
ce, sobretudo, um conselho de guerra. A insegurança destes pequenos
reinos patriarcais faz com que o senhor, o anax, seja essencialmente um
chefe de guerra.
No entanto, este aspecto talvez tenha sido demasiado privilegiado,
em detrimento de outros. E o mais evidente: não é o único nem o mais
original numa obra épica.
A sociedade homérica tem duas faces, a guerra e a paz. Elas opõem-
-se no escudo de Aquiles, no canto XVIII da Ilíada. Elas opõem-se também
de uma epopeia à outra. A Ilíada evoca os guerreiros, a Odisseia, o regres­
so de Ulisses a casa, onde foi sempre um rei «doce como um pai».
Mas, sobretudo, importa não descurar que os heróis da epopeia,
mesmo na Ilíada e mesmo na guerra, praticam qualidades maravilhosa­
mente humanas.
A mais notável é a hospitalidade. Só a vemos de forma directa na
Odisseia, com as cenas de acolhimento de Telémaco em Pilo e, depois, em
Esparta, ou então o acolhimento de Ulisses entre os Feaces; e podemos
verificar que se trata de cenas rituais, estabelecidas por uma longa tra­
dição e que comportam todo um cerimonial. Mas, ao mesmo tempo, estas
cenas apresentam qualidades de coração e relações refinadas: o modo
como Alcínoo honra Ulisses, sem ter a indiscrição de o interrogar é carac-
terístico a este respeito. E o que é mais, as relações de hospitalidade,
uma vez estabelecidas entre dois heróis, criam laços indestrutíveis, que
se transmitem de pai para filho. Mesmo em plena batalha, elas podem
impedir dois heróis de lutarem um contra o outro. A civilização da epo­
peia não ignorava, então, as relações com os outros.
Passa-se o mesmo com a cortesia em geral. Pois se os heróis homé­
ricos sabem manejar o insulto, não só em relação aos seus inimigos, mas
entre aliados, se podem, sob o efeito da cólera, tratar-se como «coração

43
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

coberto de impudência», ou «cara de cão», eles também sabem, uma vez


fora do campo de batalha, observar os costumes, abordar-se com epíte­
tos lisonjeiros, seguir as regras do banquete ou do sacrifício. Sabem não
maltratar cativas mas, pelo contrário, consolá-las; a cortesia torna-se
mesmo ternura e generosidade quando o velho Príamo fala docemente
com Helena e lhe pergunta sobre os chefes Aqueus: «Chega aqui, que­
rida filha, e senta-te ao meu lado, / para veres o teu primeiro marido, teus
parentes e teu povo - / pois no meu entender não tens culpa, mas têm-
ma os deuses...».
Com efeito, a ternura não é de modo algum estranha à epopeia. É, por
vezes, a ternura familiar, como na cena do canto VI da Ilíada, em que
Heitor diz adeus a Andrómaca e ao filho. Andrómaca chora e suplica a
Heitor que não se exponha: não é ele tudo para ela? Depois, Heitor estende
os braços para a criança que se afasta a gritar, porque o elmo o assusta:
é preciso que o herói tire o elmo para pegar no seu filho, embalá-lo, beijá-
-lo, pedindo aos deuses por ele. Por fim, entrega-o à mãe, que o recebe
«sorrindo por entre as lágrimas», o que faz brotar a piedade do que parte.
Não podemos imaginar uma cena mais simples ou mais íntima. A ternu­
ra tomará, aliás, outras formas, que vão desde a elegância de Calipso à
graça cândida de Nausícaa. Fazem-se e desfazem-se laços sem dramas;
são esboçadas possibilidades; há até aquelas que apenas são sugeridas
para além do poema - como aquela que, mais tarde, reaproximará os
dois jovens temos, Telémaco e Nausícaa.
O mundo da epopeia oferece, assim, a imagem de uma civilização
que nada tem de primitivo e na qual os costumes e o ideal humano mar­
cam um apogeu. E isto já sugere o amor pela vida.

3. O amor pela vida

Em Homero tudo é apresentado como belo. Os objectos são belos.


Há belas taças, belas armas lavradas, elmos resplandecentes, tecidos bri­
lhantes, ricas moradas, com vastas adegas, que as reservas de azeite aro­
matizam, e navios bem ajustados, que vogam no mar. As personagens,
divinas ou humanas, são igualmente belas - pelo menos quando perten­
cem à aristocracia principesca. Os guerreiros são todos grandes e fortes.

44
HOMERO

As mulheres têm todas braços brancos. Em suma, não nos surpreendemos


por encontrar tantas vezes em Homero, aplicada a seres humanos, a fór­
mula tão característica que diz que eles são «semelhantes aos deuses».
O quadro em que vivem estes homens é igualmente digno de elogios.
Itaca é uma região tão boa para o grão! Tem mais vinho do que se pode­
ria dizer, todo o tipo de madeiras, água... Mas não é o próprio universo
esplêndido? Quantas vezes vemos erguer-se a aurora «de dedos róseos»,
a aurora «de veste de açafrão», a aurora «de trono de ouro»! Mas a noite
não é menos bela, com a lua brilhante e as estrelas resplandecentes - sem
falar do doce sono que ela dá de presente. E até a natureza selvagem tem
as suas belezas mais temíveis: ninguém contou, melhor do que Homero,
o estrondo da tempestade, em plena floresta, ou o salto dos animais sel­
vagens na montanha.
Num tal mundo, todas as actividades têm alguma coisa de nobre e
que alegra o coração - até a batalha, com os seus golpes vitoriosos e o
ruído surdo dos corpos que caem: este ruído evoca o êxito e a glória. Inver-
samente, Eumeu e os seus porcos, Nausícaa e a sua barreia evocam a
vida numa forma mais modesta, mas também ela acompanhada de pra­
zer. Além disso, o vinho é bom, os poemas alegram o coração, e os feitos
desportivos, esses combinam o êxito glorioso do combate com a doçura
da paz.
Este amor da vida, entre os heróis de Homero, reforça bastante o
desejo de sobreviver na Odisseia, e, consequentemente, o seu interesse
dramático, como o horror de morrer na Ilíada, e, por consequência, a sua
força trágica. As palavras de piedade por aqueles que caem, «esquecido
para sempre dos carros», lembram o que eles abandonam e fazem sobres­
sair o mérito da coragem. Porque todos enfrentam a morte, mesmo quando
a vêem iminente, como Heitor, ou quando têm a certeza de a reencontrar,
como tem Aquiles. No entanto, o próprio Aquiles dirá na Odisseia, quando
for volvido o tempo da acção: «Eu preferiria estar na terra, como servo de
outro, / até de homem sem terra e sem grande sustento, / do que reinar aqui
sobre todos os mortos.» (Od. XI. 489-491).
O heroísmo não exclui, então - longe disso - um amor ardente pela
vida.
Este entusiasmo poderia ser atribuído ao facto de que se trata de uma
poesia destinada aos aristocratas e com a preocupação de lhes apresentar

45
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

um espelho que lhes agrade. Uma tal explicação descuraria o facto de


que ela se estende a todos, mesmo aos mais humildes, e que ela conser­
va sempre o seu sabor humano.
E ela pode fazê-lo graças a uma arte flexível e directa.

4. A expressão literária

De resto, falseamos o próprio carácter dos poemas quando quere­


mos apresentar as inspirações essenciais sob uma forma abstracta. Com
efeito, a arte de Homero apresenta dois caracteres dominantes - aliás,
bem harmonizados com este amor pela vida sob as suas formas mais
diversas: é uma arte concreta e variada.
Homero nunca analisa: mostra as suas personagens em plena acção -
armando-se ou combatendo, festejando ou navegando. Nele, os verbos são
mais frequentes que os substantivos. Se, às vezes, temos alguma dificul­
dade em distinguir linhas de pensamento, é porque importa distingui-las
a partir das acções - de Zeus, brandindo a sua balança, resmungando,
sorrindo.
Na descrição das acções, o carácter concreto da narrativa homérica
conduz a uma certa tecnicidade que, por vezes, confunde a nossa ignorân­
cia. Todas as partes de uma armadura, todos os véus com que uma mulher
se ornamente, todas as peças que servem para fabricar uma jangada estão
lá com o seu nome; e, na Odisseia, a precisão concreta das operações
domésticas sugeriu a alguns que o autor só poderia ser uma mulher.
Homero mostra; ela também faz falar, o que é uma forma de sugerir
uma presença ainda mais viva. Zeus brande a sua balança, mas também
discute e irrita-se. Os heróis ferem com valentia, mas falam tanto como
ferem; e está tudo no estilo directo. Muitas vezes, podemos apresentar
tipograficamente a epopeia como o fazemos com o teatro, com os nomes
das personagens à margem; e as recitações dos poemas deviam, a julgar
pelo íon de Platão, assemelhar-se muito à arte do actor.
Este processo já contribui para a variedade. Mas esta define-se por
outros traços, que correspondem a uma arte muito segura, e sobre os quais
é preciso insistir tanto mais, quanto as fórmulas, os epítetos da natureza,

46
HOMERO

as repetições de versos-chave ou de cenas típicas arriscar-se-iam a suge­


rir uma espécie de monotonia.
A variedade manifesta-se primeiro ao nível das personagens e da
sua psicologia.
Com todos estes heróis admiráveis e os seus epítetos, sempre os mes­
mos, poderíamos esperar vê-los reunir-se. Ora isso não sucede. Há uma
forma de simplificação; mas ela tende a dar a cada um o seu carácter ori­
ginal: a paixão e o arrebatamento de Aquiles nada têm em comum com
a intrepidez responsável que anima Heitor, nem a graça de Helena com o
fervor conjugal de Andrómaca. Do mesmo modo, as personagens, quando
se enfrentam umas às outras, põem em relevo as diferenças: é o caso, por
exemplo, quando Pátroclo critica a dureza de Aquiles, ou quando Heitor
censura Páris pela sua moleza; é também o caso quando Atena, na Odis­
seia, se ri afectuosamente da arte de mentir, de que Ulisses se compraz.
Este último exemplo mostra também que a simplificação não exclui
o sentido dos cambiantes. Pois as advertências de Atena misturam cen­
sura e ternura, familiaridade e zombaria. Certamente, Homero não se
entrega a análises psicológicas, que descrevem estes diversos sentimen­
tos; mas, como ele sabe mostrar com verdade os sentimentos através das
suas manifestações, estes são-lhe sugeridos muitas vezes misturados com
os seus cambiantes.
Além disso, as narrativas e as acções são variadas - mesmo na Ilí­
ada, e até nas cenas das duas epopeias que parecem obedecer a esque­
mas tradicionais.
Logo, para as narrativas de combates na Ilíada: elas devem alternar,
primeiro, as cenas divinas e as humanas. Nas cenas humanas, devem
alternar a descrição do combate e a das façanhas individuais. Nas faça­
nhas individuais, devem alternar a palavra (encorajamentos, censuras,
insultos) e a acção. Enfim, a própria descrição da acção, pela qual o guer­
reiro lança a sua arma com ou sem sucesso e mata ou sucumbe, oferece,
com certeza, versos formulares; mas, de cada vez, o golpe é diferente,
tal como é diferente a ferida que conduz ao estrépito do corpo que cai.
Há, por fim, uma particularidade do estilo homérico que ilustra bem
este gosto da alternância e esta arte de representar no interior de mode­
los fixos: é o emprego das comparações.

47
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Por vezes, estas comparações ocupam dois versos, mas frequente­


mente adquirem uma extensão muito mais considerável. São introduzidas
com uma rigidez formular: «tal como..., também...». Mas o «tal como...»
muitas vezes introduz um verdadeiro quadro, com uma série de proposi­
ções justapostas. Além disso, é possível acrescentar várias imagens umas
às outras. Por exemplo, quando Pátroclo fere Sarpédon de morte, a queda
de Sarpédon é, primeiro, comparada à de uma árvore abatida, depois o
seu gemido é comparado ao de um touro, que expira sob o ataque de um
leão. Nenhuma destas duas imagens é original, mas o seu emprego con­
tribui duplamente para pôr em relevo, entre todas, a morte de Sarpédon.
Elas atraem a atenção sobre ele, o movimento da sua queda e o gemido
do vencido.
Ao mesmo tempo, estabelecem uma relação entre dois mundos dife­
rentes. Já se terá notado que a primeira comparação foi tomada da vida
quotidiana; o caso é frequente em Homero. A outra é retirada do mundo
animal, como muitas obras de arte da época (o próprio motivo do touro
e do leão conservar-se-á em algumas moedas). Podemos introduzir na
mesma categoria todas as imagens de violências naturais, que evocam
torrentes, ventos ou fogo. Temos, assim, de um lado, a vida quotidiana,
do outro, o mundo animal e selvagem.
Importa ainda precisar que estes dois domínios estão muitas vezes
próximos (por exemplo, no caso da caça) e que, em qualquer caso, Home­
ro os usa muitas vezes lado a lado. Assim sendo, quando descreve o
avanço dos guerreiros aqueus na planície, compara primeiro o brilho das
suas armas ao de um incêndio na montanha (II. 455-459), depois com­
para o seu avançar ruidoso aos voos dos pássaros («gansos ou grous ou
cisnes de longos pescoços») batendo as asas, pousando depois com gran­
des gritos (460-468), e, por fim, compara o seu número aos enxames com­
pactos de moscas «que zumbem através da propriedade do pastor / na
estação primaveril, quando o leite enche os baldes» (469-473). Temos,
assim, três comparações, que ocupam vinte versos, e todas remetem para
a vida no campo do tempo de Homero, vida que combina os espectáculos
raros e grandiosos com os espectáculos mais familiares.
Esta espécie de contraponto, que mistura a paz e a guerra, o tempo
do mito e o do poeta, evita o que uma narração puramente narrativa pode
ter de fatigante. Dá aos factos uma presença concreta, mais sensível, e

48
HOMERO

como um eco mais plenamente humano. E vai permanecer como um


processo literário específico da epopeia.

As epopeias homéricas são o início da literatura grega, mas também


representam o fim de uma civilização: aquilo a que chamamos arcaísmo,
ou época arcaica, só começará a seguir e depois de um corte profundo.
Apenas podemos associar a Homero dois conjuntos de obras que se
inscrevem, mais ou menos, no seu prolongamento e que, aqui, serão tra­
tadas em apêndice.

Apêndice:
OS POEMAS DO CICLO
E OS HINOS HOMÉRICOS

Os poemas do ciclo são os poemas que tratavam, um pouco à manei­


ra homérica, outros aspectos das lendas heroicas que constituíam como
que um ciclo de conhecimentos míticos. As suas origens podem ser muito
antigas; a sua redacção situa-se entre os séculos vm e vi. Perderam-se
todos e o seu conteúdo só se conhece por testemunhos indirectos e tar­
dios (a Crestomatia de Proclo, os mitógrafos, os escoliastas).
Em tomo da Ilíada, conhecem-se outras sequências à Ilíada: a Etió-
pida e a Tomada de Tróia, por Arctino de Mileto (século vm), a Pequena
Ilíada, de Lesques (século vn); também se conhece, para os acontecimen­
tos anteriores, uma epopeia intitulada Cantos cíprios.
Em tomo da Odisseia, importa referir os Nostoi [Regressos] (outros
que não os de Ulisses), a Telegonia, que seria uma sequência da Odisseia,
por Eugámon de Cirene (século vi).
Mas estes poemas também tratavam da lenda tebana, na Tebaida, na
Edipodia, nos Epígonos. Eles tratavam, igualmente, do ataque dos Titãs
e da história de Héracles (Tomada de Ecália), bem como de outras lendas.
Se os conhecêssemos melhor, a originalidade dos trágicos poderia ser
compreendida com mais clareza.
A moda dos poemas homéricos é igualmente atestada pela existên­
cia de paródias como a Batraquiomiomaquia (combate de ratos e rãs),
que possuímos, e o Margites, cujo herói era um anti-herói, que fazia tudo

49
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

mal. Na Antiguidade, estes poemas foram atribuídos a Homero - o que


pode dar uma bela lição de prudência. Passa-se o mesmo com o grupo
de obras chamadas, por esta razão, Hinos homéricos.
A recolha assim chamada comporta hinos a diversas divindades
(Deméter, Apoio, Hermes, Afrodite, Dioniso, etc.). Dizem respeito a
datas muito diferentes; os principais devem ser dos séculos vn e vi; mas
misturam-se com peças muito tardias. Do mesmo modo, a sua extensão
varia, desde uma vintena de versos até várias centenas; apenas podemos
dizer que, em princípio, os chamados hinos homéricos eram maiores e
mais descritivos do que as invocações atribuídas a Orfeu. No entanto, qual­
quer que seja a diversidade dos hinos homéricos, eles merecem o seu
nome pela forma como se situam na tradição da epopeia. Primeiro, pela
escolha do metro, que é o hexâmetro dactílico, como na epopeia: os poe­
tas líricos, pelo contrário, comporão os seus hinos em metros diferentes,
e destinados a ser, não apenas recitados, mas acompanhados de música.
Por outro lado, como a epopeia, os hinos homéricos comprazem-se, na
maioria das vezes, com belas narrativas; evocam, por exemplo, o rapto
de Perséfone e a busca de Deméter, tentando encontrá-la, ou então o nas­
cimento de Apoio, em Delos. Encontramos, até, descrições que evocam
a vida do tempo, como aquela que canta a multidão de Jónios vindos a
Delos para celebrar Apoio (nos versos 146 e seguintes do Hino délio,
que constitui o início do Hino a Apoio).
Estes diferentes prolongamentos das epopeias homéricas atestam o
seu brilho imenso. Este brilho encontrar-se-á sob formas menos tangí­
veis, mas não menos importantes, em toda a sequência da literatura grega.

50
C A P Í T U L O II

A ÉPOCA ARCAICA
Depois do século vm a. C., a Grécia sai das desordens que se seguiram
ao desaparecimento da civilização micénica. Assistimos, então, a uma nova
eclosão, marcada pelo desenvolvimento da colonização e do comércio. Esta
evolução toma mais sensíveis as desigualdades sociais, que arrastam con­
sigo lutas, por vezes, rudes. Surgem regimes novos, como a tirania e, sobre­
tudo, uma participação crescente na vida política, com os seus enganos e
tomadas de consciência, que se irão reforçando até às guerras médicas.
Ao longo deste período, vemos desenvolver-se, um pouco por toda
a Grécia, uma poesia em que o lugar do autor e a sua personalidade são
mais marcados, mas que também é mais rica em interrogações sobre o
universo: desta poesia destaca-se, no século vi, a filosofia, que recorreu
muitas vezes à expressão poética e ainda se ressente dos quadros religio­
sos desse pensamento arcaico. Seria necessária a luta contra o Bárbaro
e a preponderância ateniense para que se desenvolvesse, no século v,
uma literatura na qual a cidade é o centro e o homem a medida.
Alguns autores estudados neste capítulo já pertencem ao século v:
não são Atenienses e marcam o resultado dos géneros elaborados pelos
seus antecessores.

I.

HESÍODO

Hesíodo foi posto em paralelo com Homero pelos próprios Gregos


e houve uma Competição entre Homero e Hesíodo: de facto, embora o

53
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

metro e a linguagem poética estejam muito próximos nos dois autores,


não seria possível imaginar dois universos tão diferentes.
Homero representava o espírito da aristocracia da Ásia Menor: Hesí-
odo é essencialmente um camponês da Beócia. O seu pai fora da Eólia
fixar-se junto do Hélicon, em Ascra. Ele próprio passou aí a sua vida;
sabemos, pela sua obra, que teve um diferendo com o seu irmão, que cul­
tivava uma terra pouco extensa e pouco fértil, numa época difícil. Admite-
-se, sem provas absolutas, que isto terá sido em meados do século vn.
Para nós, a obra de Hesíodo é constituída por dois poemas, muito
diferentes um do outro: a Teogonia e os Trabalhos e Dias. Além destes
poemas, os antigos referiam outros. Existe até conservada uma obra com
cerca de 500 versos: intitula-se O Escudo e relata o combate de Héracles
com Cicno, filho de Ares (ao descrever o escudo do herói); se este poema
comporta elementos hesiódicos, o conjunto é claramente posterior e medí­
ocre. Atribuíam a Hesíodo, com mais verosimilhança, um Catálogo das
mulheres, ou Ehoia (do Grego: ή οϊη...) do qual alguns versos são reto­
mados no Escudo, e muitos outros poemas de que nada sabemos (como
o poema didáctico intitulado As Lições de Quíron e a epopeia intitulada
Aigimios (do nome de um rei dórico que combateu com Héracles). Tudo
isto se perdeu. Os dois poemas conservados têm sido, aliás, desfigurados
por inúmeras adições posteriores, que nunca foi possível delimitar bem.
Para nos limitarmos a estes dois grandes poemas, eles são simulta­
neamente de um arcaísmo extremo e de uma novidade notável.
O arcaísmo surge nos assuntos e no tom.
A Teogonia expõe, na verdade, a genealogia dos deuses e a forma­
ção do mundo que eles encarnam. Fá-los surgir a partir do Vazio inicial
(ou Caos), da Terra e do Amor, revelando sucessivamente a Terra e o Céu,
os Titãs, os filhos da Noite e os do Mar, Oceano e Tétis, mais tarde, enfim,
Zeus, que impõe a sua lei e triunfa sobre os Titãs. Por vezes, temos simples
listas de nomes, como em muitas tradições religiosas. Ou então, temos
a evocação de monstros de aspecto meio humano, meio animal, ou ainda
de seres com cem braços. O conjunto ordena-se à volta de uma sucessão
de divindades, marcada pela violência e que conduz ao triunfo final de
Zeus, que instaura um novo reinado.
Tudo isto implica um tipo de pensamento muito arcaico e parece
remeter para a tradições míticas longínquas.

54
A EPOCA ARCAICA

É assim com as sucessões violentas que Hesíodo evoca entre as gera­


ções divinas. Elas comportam, por exemplo, a mutilação de Urano pelo
filho (ou seja, a separação do Céu e da Terra), com o nascimento de Afro­
dite, a partir do esperma espalhado (173-206), ou ainda Crono devorando
os filhos (459 ss.). Que tais narrativas remontam a tradições muito antigas,
foi confirmado pela descoberta de textos hititas e ugaríticos, conhecidos
desde cerca de 1950, nos quais encontramos, remontando ao 2.° milénio,
narrativas muito próximas. Também é possível que tenham existido poemas
órficos, dos quais conhecemos o eco mais tardio, e que parecem ter conce­
dido, como Hesíodo, uma parte importante ao Vazio, à Noite e ao Amor.
A parte mais original do poema hesiódico seria o seu esforço para
introduzir nesta herança mítica uma certa ordem moral. E fá-lo, exaltan­
do (em todos os últimos episódios, entre os quais a lenda de Prometeu)
o triunfo de Zeus, cujo reinado será diferente. Fá-lo, também, propondo
genealogias de divindades que são outras tantas noções morais (é assim
com a Discórdia, ou Éris, que, nos versos 226 e seguintes, dá à luz «a Fadi­
ga dolorosa / e o Esquecimento, a Fome, as Dores que trazem consigo
o Pranto», etc.) ('). Mas estas ideias não se introduzem no seio do poema
sem uma certa falta de graça na composição e sem uma certa inflexibi­
lidade do tom. A Teogonia interessa sobretudo pelo passado longínquo
que deixa entrever; ela conserva a medida, ou surpreende.
Passa-se o mesmo, em certo sentido, com o outro poema, cujo tom
é puramente didáctico. Aí, Hesíodo aconselha o irmão, Perses, a uma vida
de trabalho e de uma sábia administração dos bens. Enumera os grandes
trabalhos dos campos, aos quais acrescenta alguns conselhos sobre a
navegação (que ele receia) e um certo número de proibições de carácter
religioso, mas com um conteúdo mais concreto. A priori, não há ali nada
que não seja muito arcaico, muito impessoal e muito afastado de nós.
E não temos a impressão de ganhar muito ao acrescentar que o iní­
cio do poema contém uma evocação no estilo do outro, com o mito de
Prometeu e de Pandora e, sobretudo, com o mito das raças (raças de ouro,
prata, bronze, heróis, ferro). Este último mito, cujo sentido pessimista

(') N.T.: Para esta e outras citações da Teogonia, usámos a tradução de Ana Elias
Pinheiro: Hesíodo, Teogonia. Trabalhos e Dias (prefácio de Maria Helena da Rocha Perei­
ra; introdução, tradução e notas de Ana Elias Pinheiro e de José Ribeiro Ferreira), Lisboa,
IN-CM, 2005.

55
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

(visto que Hesíodo diz viver na época da raça de ferro, com as suas fadi­
gas, violências e angústias) remonta, também ele, muito seguramente, a
tradições longínquas e orientais, que Hesíodo organiza e modifica, não
sem algum desaire (a idade dos heróis vem inserir-se assim, de modo
bizarro, numa série de metais e tira-lhe o seu sentido).
No entanto, se, por meio destes dados, os dois poemas parecem olhar
sobretudo para um passado recuado, contêm também, um e outro, traços
espantosamente novos e pessoais: estes notam-se de forma particular­
mente clara nos dois prelúdios.
Para começar, Hesíodo é o primeiro a dizer «eu», o primeiro a falar
de si e da sua própria vida.
Sem dúvida, ele diz que foi inspirado pelas Musas; mas precisamen­
te a narrativa que faz, no início da Teogonia, do modo como as Musas
se lhe revelaram, no Hélicon, é a narração de uma experiência pessoal.
Ele está lá, nomeado: «Foram elas (as Musas) que, outrora, ensinaram
a Hesíodo um belo canto, / enquanto apascentava as suas ovelhas no
sopé do Hélicon divino. / E, em primeiro lugar, me dirigiram estas pala­
vras essas deusas...» (22 ss.). As Musas ofereceram-lhe até um ramo de
loureiro; «e concederam-me um canto / de inspiração divina, para que
eu pudesse celebrar o futuro e o passado...».
Está aqui a evocação de um local e de um homem, visitado pela ins­
piração. Ao mesmo tempo, esta relação directa entre o poeta e a Musa
implica uma ideia muito elevada de poesia. A narrativa completa-se com
um hino às Musas, evocando os benefícios da poesia, o modo como o
canto dissipa todas as preocupações, mas também espalha a sabedoria.
Porque, neste encontro entre as Musas e o poeta, trata-se de uma espé­
cie de revelação. Elas dizem «o presente, o futuro e o passado»: e isso
está completamente de acordo com a amplitude do assunto tratado por
Hesíodo. Isso também está de acordo com a seriedade do seu tom. Não
é por acaso que, na obra de Hesíodo, não há nenhuma das familiarida­
des que o homem homércio tinha com os deuses, nem nenhuma das fra­
quezas que ele se comprazia em atribuir-lhes.
O mesmo Hesíodo que assim descreve a sua relação com as Musas
não hesita, no outro poema, em descrever a sua vida e os seus tormen­
tos. O que sabemos das suas origens, das suas altercações com o irmão,
da sua actividade poética e da viagem a Cálcis que ela lhe impôs, advém

56
A ÉPOCA ARCAICA

do que ele descreve nos Trabalhos e Dias (27-41; 631-640; 650-662).


A vida que ele descreve é a sua vida de homem simples, com trabalho e
lazeres, os fatos de Inverno, os pequenos festins no Verão, a colheita e
a vindima... As grandezas mais ou menos imaginárias são substituídas
por uma realidade quotidiana que é, abertamente, a de uma região e de
um meio - a região e o meio do poeta.
Mas, se isto está presente por pormenores concretos, está-o ainda
mais - e nos dois poemas - pelo seu ideal moral: Hesíodo é o homem
da justiça.
O facto surge logo no início da Teogonia, porque os benefícios das
Musas fazem com que o rei «traduz a lei divina / em sentenças rectas»
(85-86). Encontra-se quando a Justiça intervém no parentesco de Zeus
- quer seja na forma de Témis, que se uniu a Zeus, ou de Dikê, que, com
a Eunomia e a Paz, nasce desta união. Mas ela assume sobretudo uma
importância decisiva nos Trabalhos e Dias.
O proémio abre-se com opiniões sobre a má Luta (Eris), que impe­
le o homem a cobiçar bens que não lhe pertencem. Depois, a partir do
verso 202, o tema da justiça toma-se central; e continua a sê-lo durante
cerca de 100 versos. Tentando ensinar a lição simultaneamente ao irmão
e aos poderosos, que administram a justiça, Hesíodo conta-lhes a fábula
do falcão e do rouxinol: ela já ilustra, em termos mais claros, o conflito
entre a força e a justiça, porque o falcão leva o rouxinol nas suas garras
e ri-se dele: «Insensato, por que gritas? Agora tem-te quem é muito mais
forte...... E Hesíodo encadeia com conselhos directos, não menos cla­
ros e precisos: «Mas tu, Perses, escuta a justiça e não alimentes a inso­
lência / que é um mal para o homem de baixa condição; nem mesmo o
nobre / a pode com facilidade suportar e por ela é esmagado, / quando
o toma o Desvario. Melhor é o caminho que, por outro lado, / leva às
obras justas...» (213 ss.). Hesíodo prossegue falando da desagraça que
atinge os juízes desleais e a felicidade das regiões onde reina a justiça.
Este felicidade engloba tudo, até a natureza; inversamente, uma cidade
inteira paga muitas vezes pela falta de um único indivíduo: Zeus vigia
isso! E o poeta canta «Justiça, nascida de Zeus, / gloriosa e respeitada pelos
deuses». Conta como ela se vai sentar aos pés de Zeus para lhe denun­
ciar os culpados. A justiça tem, portanto, Zeus como garante. E, para os
homens, ela é o bem mais precioso: os animais devoram-se uns aos

57
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

outros; mas os homens conhecem uma sorte melhor e depende deles


serem protegidos ou castigados por Zeus, se forem justos ou não.
Esta defesa da justiça e esta profissão de fé na justiça divina são uma
novidade relativamente a Homero; e o pensamento, que aqui se exprime
com tanta força, inicia toda uma tradição, da qual os representantes mais
ilustres serão Sólon, depois Esquilo, aguardando os filósofos posteriores.
Não é indiferente salientar que este apelo à ideia de justiça tomou
corpo num mundo semeado de dificuldades e lutas: foi formulado por
um homem modesto, preocupado em defender o seu bem e apreensivo
com a arbitrariedade que pode reinar nos corredores da justiça. Traduz,
assim, a experiência do agricultor, que sabe que a sua colheita ou o suces­
so da sua criação de animais dependem de forças que lhe escapam e que
Zeus pode encarnar. Com estes traços, esta doutrina da justiça divina
enraiza-se aqui fortemente numa época e num meio: separar-se-á depois,
nos poetas que referimos.
Este traço, que parece estabelecer um laço entre as duas originali­
dades da poesia de Hesíodo e combinar a poesia pessoal com o elogio
da justiça, explica como à ideia de justiça se associou, no poeta, uma
outra ideia, muito mais rara na Grécia, que é a do trabalho.
Esse é, com efeito, o segundo conselho dado por Hesíodo ao irmão:
«Mas tu, lembrado sempre das minhas recomendações, / trabalha, Per-
ses, estirpe divina, para que a Fome / te odeie e para que te estime a
venerável Deméter / de formosa coroa e te encha de víveres a casa. / Pois
a Fome sempre acompanha o homem preguiçoso...»(298 ss.). Esta pre­
ocupação com o trabalho alia-se à da justiça: com efeito, trata-se de sub­
sistir através de meios honestos e leais; porque Hesíodo considera, como
nós diríamos, que «o bem mal adquirido, nunca dá lucro». E com este
sentido que ele pode dizer que o trabalho tomará os homens caros aos
Imortais: «Trabalho não é vergonha, é o ócio que traz vergonha» (311).
Na medida em que o trabalho se opõe à injustiça, tais fórmulas não pode­
riam surpreender. No entanto, elas constituem um som raro na Grécia:
o trabalho nunca foi um valor em si para os Gregos, nem um tema bem
tratado na sua literatura.
Para estas duas aberturas espantosas dos dois poemas, Hesíodo teve
de contribuir com uma série de temas novos e originais, até mesmo
modernos.

58
A ÉPOCA ARCAICA

Alguns deles são, aliás, um feito da época: eles desabrocham nos


poetas líricos do século seguinte.

II.
A POESIA NA ÉPOCA ARCAICA
DE HESÍODO A PÍNDARO

Dos séculos viu ao v, existiram na Grécia inúmeros poetas, que mui­


tas vezes conhecemos pelas referências que foram feitas mais tarde e
que, contrariamente a Homero e a Hesíodo, já não escreviam em hexâ-
metros: usam metros variados, para obras bastante curtas, destinadas a
ser cantadas. Dado que o instrumento usado com mais frequência era a
lira, a poesia acompanhada por este instrumento foi, mais tarde, chama­
da «lírica»; mas é claro que o termo tinha ali um sentido muito mais
estrito e técnico do que no seu uso posterior. A par desta poesia cantada
ao som da lira - fosse por um indivíduo, fosse por um coro - ainda havia,
na mesma época, formas um pouco diferentes, como a poesia «elegíaca»
(em geral cantada com um acompanhamento de flauta) e a poesia «jâm-
bica» (a partir do nome do metro empregue), que era declamada com
um acompanhamento de instrumentos especiais.
Estes poemas não eram novidades da época: as epopeias homéricas
já aludem a cantos de circunstância, como os péans, os cantos de himeneu
ou de luto. Mas, muitas vezes, a época arcaica vê este género desabrochar
como uma poesia pessoal e isto um pouco por todo o lado na Grécia.
A primeira característica desta poesia reside na pluralidade de centros;
tivemos um primeiro sinal com Hesíodo. Ela corresponde ao desenvol­
vimento de novas cidades. A Ásia Menor permanece, certamente, como
um foco muito activo (com Calino, Mimnermo, Focílides, Anacreonte).
Mas, agora, as ilhas produzem glórias locais: Arquíloco era de Paros e
emigrou para Taso, Alceu e Safo eram de Mitilene. Em breve, as próprias
cidades da Grécia também eram incluídas: Sólon era Ateniense, Teógnis
era de Mégara, Píndaro era Tebano; e, muito antes deles, Esparta tivera
estrangeiros que adoptara, como Álcman. Enfim, o brilho da Magna Gré­
cia não deve ser descurado no século vi, relativamente ao lirismo coral:
Estesícoro era da Sicília, íbico de Régio, em frente da Sicília; e Baquí-

59
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

lides ou Píndaro fizeram odes para Hierão, tirano de Siracusa. À diver­


sidade das origens corresponde - outra novidade - a dos dialectos em
que os poetas se exprimem.
Por um aspecto notável, esta poesia, que pratica géneros diferentes
e se desenvolve nas mais diversas cidades, reflecte, contudo, traços
comuns desta época, que conheceu, um pouco por todo o lado, evolu­
ções políticas comparáveis.
Tal como os centros da vida grega se multiplicavam, também os
diferentes elementos da sociedade adquiriam independência. As antigas
monarquias familiares tinham desaparecido; as cidades, enquanto tais,
desenvolviam-se. No interior destas cidades, a riqueza desenvolvia-se à
margem das aristocracias do passado. Intervinham elementos novos, que
traziam regimes de autoridade não hereditária (as tiranias) e, depois, regi­
mes democráticos. Seja, ou não, associada às lutas políticas, a poesia
tomava-se - como vimos com Hesíodo - mais pessoal: doravante, os poe­
tas faziam o que Hesíodo fez, mas de uma forma ainda mais clara: falavam
de si, dos seus amores ou das suas aventuras, ou ainda do que desejavam
para a sua cidade, na guerra ou na paz.
No entanto, neste mundo em pleno desenvolvimento, um tema rapi­
damente conciliou a exaltação do indivíduo e a da cidade, combinando
os antigos valores aristocráticos e o desabrochar de novas cidades atra­
vés da Grécia: foi a exaltação dos vencedores atléticos. Os Jogos Olím­
picos foram instituídos no início do século vm, os outros grandes jogos,
no início do vi. Ao celebrar os vencedores, a poesia lírica coral, que
marca a última fase da história desta poesia, cantava ao mesmo tempo
um herói, uma cidade e um ideal de vida.
Pois por muito diferentes que sejam os poetas líricos, a maioria deles
Λ tinha o sentimento de transmitir uma certa sabedoria. Pequenos versos
moralisântes citados aqui ou ali, nas grandes evocações de Píndaro,
assiste-se, assim, ao longo de três séculos de desordens, de libertações
e de descobertas, ao desenvolvimento de um pensamento moral, cujos
inícios já se viam surgir em Hesíodo, e que é dominado pela ideia de que
os deuses castigam a desmedida, ou hvbris.

60
A EPOCA ARCAICA

1. A poesia jâmbica

A poesia jâmbica foi, a este respeito, uma excepção.


Com efeito, o jambo tem algo de austero e mordaz, que se presta
à sátira. Os jambos estavam misturados aos hexâmetros no Margites
(cf. pág. 49); e Aristóteles precisa (na Poética 1448b) que este metro
servia para zombarias. Isto convém perfeitamente ao poeta jâmbico mais
conhecido (que, aliás, também compôs poemas «elegíacos») - a saber,
Arquíloco.
Como Arquíloco é muito antigo (ele viveu, parece, na primeira meta­
de do século vn) e o género não teve, depois dele, representantes conhe­
cidos por nós, demos aqui ao jambo uma prioridade de exposição que,
de outra forma, seria injustificada.
Arquíloco nascera em Paros; mas o seu pai, Telésicles levara um
grupo de Pários a instalarem-se na cidade mais rica de Taso. Arquíloco
era filho deste chefe e de uma escrava; partiu por sua vez para Taso, onde
teve uma vida de combates, fazendo campanha contra a Trácia e contra
os habitantes de Naxos (foi morto por um habitante de Naxos).
Mas esta vida de combates é mais a de um aventureiro do que a de
um guerreiro de tipo heroico: a originalidade de Arquíloco está precisa­
mente em ter rejeitado todas as tradições da sociedade e da poesia homé­
rica para tomar a posição contrária.
Ele não idealiza nada; diz «eu»; é um realista.
Não embeleza a guerra e vangloria-se de recusar o código heroico.
Fala, por exemplo, do seu escudo, que abandonou junto de uma moita:
«Mas salvei a vida. Que importa agora aquele escudo? / Deixá-lo! Hei-
-de comprar outro que não seja pior.» (fr. 13 Lasserre-Bonnard)(2).
Do mesmo modo, não embeleza o amor. Longe disso! Recusado,
finalmente, pelo homem que inicialmente lhe prometera a filha Neobule,
ele ataca, nos seus versos, toda a família, incluindo a ex-noiva, que trata
de velha cortesã! Píndaro chamava a Arquíloco o «insultador»: fragmen­
tos, muito mutilados, dão a impressão de que estes versos muitas vezes
eram de uma enorme grosseria (nos epodos).

(2) N.T.: A tradução deste fragmento de Arquíloco (fr. 5 West) foi retirada da Hélade.
Antologia da Cultura Grega (organização e tradução do original de Maria Helena da Rocha
Pereira), Porto/Lisboa, Edições ASA, *2003.

61
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Isso não impede Arquíloco de ter a sua própria moral («Sei amar
quem me ama e odiar o meu inimigo») e uma rude sabedoria popular
que, por vezes, se reveste de um tom próximo da fábula.
Semónides, um outro poeta jâmbico, passou, como Arquíloco, de
uma ilha para outra (de Samos para Amorgos); deve ter vivido também
no século viu, mas a sua arte não teve a mesma relevância. Dele temos,
sobretudo, um poema contra as mulheres, classificadas em diversas cate­
gorias e aproximadas dos animais correspondentes.
Hipónax de Éfeso é um outro exemplo desta tradição: os seus poe­
mas, que datam do século vi, parecem outros tantos lamentos realistas,
misturados com ataques pessoais. Mas, depois de Arquíloco, o género
depressa perderia o seu brilho, destinado, de resto, a permanecer à parte.

2. A poesia «elegíaca»

Esta poesia é, quanto ao metro, a mais próxima de Homero e de


Hesíodo, visto que faz alternar o hexâmetro da epopeia com o pentâme-
tro dactílico. Mas é preciso evitar o julgamento do conteúdo de acordo
com o sentido moderno do termo; este só foi definido em função dos
elegíacos latinos. Quanto ao conteúdo, na verdade, a poesia elegíaca
grega é, inicialmente, guerreira. É representada, no período mais antigo,
por Calino, Tirteu e Mimnermo.
Calino parece ter de ser situado na primeira metade do século vn e
a sua inspiração parece ter sido heroica. Do mesmo modo, conhecemos
Tirteu, que vivia em Esparta no século vn, por algumas elegias que são
um convite à coragem guerreira e uma exaltação da morte em combate;
em contrapartida, Mimnermo só é conhecido por algumas evocações que
nada têm de guerreiro: este Jónico, que parece ter vivido cerca de 600,
ou um pouco antes, canta a brevidade de vida, ou compraz-se com nar­
rações míticas.
Contrariamente à poesia jâmbica, a poesia elegíaca prosseguiu até
à época clássica; é representada, no final do período que nos ocupa, por
dois poetas cuja obra é bem conhecida: Sólon e Teógnis. O contraste com
a época anterior é revelador: depois do zelo guerreiro, ainda próximo do

62
A ÉPOCA ARCAICA

ideal épico, Sólon e Teógnis são dois autores comprometidos com a con­
testação política do seu tempo e que se preocupam.
Teógnis viveu, provavelmente, em meados do século vi, ou na segun­
da metade deste século, embora alguns façam remontar o início da sua
actividade a 630. Era de Mégara (muito provavelmente a Mégara da pró­
pria Grécia). Dele possuímos uma recolha com mais de 1200 versos ele­
gíacos, aos quais se acrescentam cerca de 200 versos de poesia amorosa,
que constitui o livro II e de que um bom número é, sem dúvida, de apó­
crifos. Até mesmo o livro I é composto por diversos elementos, muitos
dos quais devem ser de autores diferentes.
Conserva-se, no entanto, um núcleo importante, cuja inspiração é
característica. São as admoestações a um jovem, chamado Cimo. Estas
admoestações são muito virtuosas: «Sê prudente: com actos vergonhosos
ou injustos / não te agarres às honrarias, aos êxitos, à fortuna, etc.» (29 e
seguinte) (3). Mas revestem-se de uma tónica muito pessoal, quando se
trata de política. Teógnis julga que a cidade se perde, porque «eles aniqui­
lam o povo e dão sentanças em favor dos injustos / por motivo do seu pró­
prio benefício e poderio...» (45 e seguinte). Ele próprio fora arruinado,
aparentemente, nestes movimentos políticos; lamenta-se, assim, pelas des­
graças do seu tempo e pelo facto de que «os que antes eram nobres / agora
são vis»: eles nem se defendem. E o único verdadeiro recurso encontra-
-se na amizade, quando é fiel, e numa sabedoria difícil de alcançar. Teóg­
nis é uma testemunha feroz e vibrante da amargura dos aristocratas que
se vêem desapossados em favor de indivíduos que desprezam.
Sólon, esse, misturou-se com as próprias lutas, mas soube elevar-se
acima delas e os seus poemas respiram a dedicação mais ardente ao bem
comum.
Conhecemos a sua carreira, quanto mais não seja pela Constituição
de Atenas, de Aristóteles, e pela Vida de Sólon, de Plutarco. Este Ate­
niense, nascido por volta de 640, foi escolhido para arconte em 594;
tomou medidas corajosas para remediar a desordem social (abolindo,
entre outras coisas, a escravatura por dívidas) e são-lhe atribuídas mui­
tas leis atenienses: foi, aos olhos de muitos, um dos pais da democracia

(3) N.T.: Para esta e outras citações de Teógnis usámos a tradução de Frederico Lou-
renço: Poesia Grega de Atcman a Teócrilo (tradução de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros
Cotovia, 2006.

63
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

ateniense. Depois de assim ter desempenhado uma função como conci­


liador e reformador, partiu para uma longa viagem. No regresso, tentou
opor-se à tirania de Pisístrato. Morreu por volta de 560.
Os seus poemas (de que só conhecemos fragmentos, por vezes jâm-
bicos e por vezes elegíacos) são o reflexo do seu ideal político e também
- os dois são inseparáveis - do seu ideal moral.
Este ideal moral está próximo do de Hesíodo. Sólon não quer a rique­
za, a não ser que os deuses a concedam, porque conhece os malefícios
da hybris (ff. 1 Diehl, versos 9 e seguinte); e sabe que Zeus castiga sempre
esta falta, cedo ou tarde. O pensamento da vontade divina está sempre
presente em Sólon.
Mas, de um modo diferente de Hesíodo, ele considera sobretudo a apli­
cação deste ideal na cidade. Confia que Zeus e Atena a preservarão (fr. 3
D.); mas, para isso, é preciso que ela não seja arruinada pela loucura dos
seus cidadãos, prontos para a hybris e para a injustiça, se elas conduzirem
ao lucro. Contra estes males, ergue o ideal da eunomia (ou boa ordem) que
porá fim a estes desejos funestos (3, verso 32). E, para aí chegar, Sólon
explica também qual foi a sua atitude no período de crise em que esteve
no poder: «Ao povo dei situação que lhe baste, / sem lhe tirar nem lhe arre­
batar a honra. / Aos que tinham poder e eram considerados pelas suas
riquezas, / a esses prescrevi que não sofressem nenhum desacato; / um
forte escudo lancei sobre ambos. / Não consenti que nenhum deles ven­
cesse injustamente.» (ff. 5 D.)(4), ou ainda «Eu, como entre dois exércitos,
conservei-me tão firme como uma estátua.» (fr. 25 D.). Diz muitas vezes
que foi capaz de, ao mesmo tempo, conter o povo e resistir aos inimigos do
povo: esta política do justo meio é expressão de uma sabedoria que coloca
o bem da πόλις, da cidade, acima de qualquer outra consideração; e o termo
aparece em certas elegias de Sólon com uma insistência característica.
Sólon escrevera, ainda antes do seu arcontado, uma elegia destinada
a encorajar os Atenienses e a levá-los a reconquistar Salamina. Este facto
confirma o seu patriotismo; mas dá dele uma ideia lamentavelmente incom­
pleta. Porque este patriotismo é, sobretudo, um civismo e a sua política é
também uma moral. É precisamente por isso que este primeiro homem,

(4) N.T.: A tradução deste fragmento de Sólon (fr. 5 West) foi retirada da Hélade.
Antologia da Cultura Grega (organização e tradução do original de Maria Helena da Rocha
Pereira), Porto/Lisboa, Edições ASA, *2003.

64
A ÉPOCA ARCAICA

entre os políticos atenienses, que fala de si mesmo, dos seus esforços, das
suas lutas, foi também colocado entre os sete sábios da Grécia. Ele esta­
belece a ligação entre a moral arcaica e a batalha democrática.

3. O lirismo individual

O lirismo conheceu sempre um desabrochar excepcional na ilha de


Lesbos. Esta fora já a pátria de Terpandro e de Aríon, de quem sabemos
pouco. Mas, sobretudo entre o fim do século vn e o início do vi (ou seja,
de um modo geral, a época em que Sólon viveu), ela teve dois grandes
poetas, cujo renome e influência literária foram consideráveis. São dois
contemporâneos, pertencentes ambos à aristocracia da ilha, uma mulher
e um homem, Safo e Alceu. Eles ter-se-iam até conhecido. Ambos viveram
num período de agitação, que lhes valeu serem exilados: Safo, contudo,
contrariamente a Alceu, não se ocupou de política. Ambos participaram,
também, de uma vida refinada e cheia de prazeres, na qual interveio a
influência da vizinha Lídia. Enfim, ambos se exprimiram de forma direc-
ta, concreta e espontânea, que não pode deixar de comover.
Safo representa a face feminina desta poesia - não só porque é
mulher, mas porque viveu rodeada de mulheres (ela terá instruído rapa­
rigas na sua arte) e o seu amor dirige-se a mulheres. O amor nunca está
muito afastado nos seus poemas. Temos, por exemplo, os Cantos de Boda
(ou Epitalâmios); há uma Ode a Afrodite. Há evocações fugidias de
jovens graciosas, entre as quais vivia, e também notações ardentes sobre
a emoção amorosa. A este respeito, Safo foi citada e imitada ao longo
dos séculos. E a verdade é que a intensidade afectiva de certos versos é
grande - bem como no célebre texto que diz: «a língua se me quebrou
e um subtil / fogo de imediato se pôs a correr debaixo da pele; / não vejo
nada com os olhos, zunem-me / os ouvidos; / o suor escorre-me do corpo
e o tremor / me toma toda. Fico mais verde que a relva...» (1,2 Reinach-
-Puech)(5).

(5) N.T.: A tradução deste fragmento de Safo (fr. 31 PLF, 9-14) foi retirada de Poesia
Grega de Alcman a Teócrito (tradução de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia,
2006.

65
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Na história da versificação, é devido a Safo que se fala de estrofes


«sáficas» (mesmo em latim). Na linguagem quotidiana, é por causa dela
que chamamos «lésbicas» às mulheres que nutrem este tipo de amor.
Mas, sobretudo, Safo fundou o lirismo no sentido em que ainda hoje o
entendemos, e os líricos latinos são todos seus imitadores, nos seus poe­
mas amorosos. Infelizmente, apenas possuímos dela parcos fragmentos
(que aumentam, por vezes, devido às descobertas papirológicas).
Passa-se o mesmo com Alceu. Mas Alceu canta, de preferência, as
alegrias da vida que não têm por princípio o amor. Escreveu hinos aos
deuses, comparáveis, pela inspiração, aos Hinos homéricos (cf. pág. 49),
e utilizando as narrativas míticas: temos, em particular, elementos dos
hinos a Apoio, aos Dioscuros, a Hermes - e, talvez, a Ártemis, se a atribui­
ção é correcta. Mas, a par desta veia religiosa, podemos assinalar em Alceu
dois tipos de temas, que são mais característicos da sua personalidade.
São, primeiro, os cantos de simpósio, que associam a alegria do vinho
a todas as ocasiões e a todas as estações; e, com o vinho, vêm as festas,
bem como as alegrias do aristocrata: um fragmento importante descreve
assim as armas com que a sua casa reluz.
São, depois, os poemas políticos. Inicialmente, Alceu lutou contra o
tirano Mírsilo; e nessa altura esteve associado a Pítaco. Depois, Pítaco
recebeu o poder e foi, como Sólon em Atenas, simultaneamente um sábio
e um político encarregue de restabelecer a ordem: então, Alceu cortou com
ele, tratou-o como tirano e vilipendiou-o. Tradições tardias garantem que
Pítaco o perdoou. Mas os versos de Alceu mostram-no mergulhado nes­
tas lutas: lamentando o exílio, que o mantém longe das assembleias,
exultando com a morte do seu adversário e, logo, comentando apaixo­
nadamente a actualidade.
A estrofe «alcaica» deve ter sido familiar aos poetas gregos e latinos,
tal como a estrofe «sáfica»; mas estes dois poetas tão perfeitamente para­
lelos e, além disso, contemporâneos e compatriotas, tiveram entre si toda a
distância que podia separar, mesmo em Mitilene, os interesses dos homens
dos das mulheres.
Com Anacreonte, que era um Jónio da pequena cidade de Teos e que
viveu em meados do século vi, aproximamo-nos da Grécia propriamente
dita. Anacreonte foi hóspede de tiranos: depois de ter passado algum tempo
em Abdera, nos limites da Trácia, viveu com Polícrates, tirano de Samos,

66
A ÉPOCA ARCAICA

depois com Hiparco, tirano de Atenas. Não pertence, por isso, a nenhu­
ma cidade. E a sua inspiração é a do poeta da corte, amável, refinado,
apreciador de banquetes, dos jovens belos, das raparigas belas, numa
palavra, do amor - mas um amor que não tem a tónica pessoal e apai­
xonada de Safo. Escreveu pequenas odes e epigramas; possuímos frag­
mentos suficientemente numerosos, mas demasiado pequenos.
A imitação de Anacreonte pelos Latinos é muito conhecida; e, na
Antiguidade, fizeram-se recolhas de poemas anacreônticos que tiveram,
por sua vez, uma grande influência.
O lirismo individual corria o risco de se tomar insípido: o lirismo
coral, não.

4. O lirismo coral antes de Píndaro

E em Esparta que se encontra, inicialmente, o lirismo coral: Terpan-


dro, nascido em Lesbos, foi para lá fundar uma escola de lírica coral.
Havia uma outra, que conhecemos. E foi em Esparta que Alcman (que
parece ter vindo de Sardes) se celebrizou neste género, no século vn.
Escreveu cantos para raparigas (Parteneus), que sugerem trocas alegres
entre as jovens coristas, mas não omitem o conselho moral e a condenação
da hvbris. Escreveu em dórico. Com efeito, o género da lírica coral con­
servou sempre traços dóricos: os coros das tragédias, em Atenas, serão
em dórico.
No final desse mesmo século v i i , com Estesícoro («o mestre do
coro»), somos transportados para a Sicília, para Hímera. Estesícoro escre­
via hinos consagrados a heróis e aproximando-se do ciclo épico. O seu
poema sobre Helena, seguido de uma Palinódia, inspirou a Helena de
Eurípides; mas outros temas míticos tratados por Estesícoro não tiveram
menos influência: será suficiente lembrar que escreveu uma Oresteia.
Infelizmente os fragmentos conservados são raros e curtos.
Passa-se o mesmo com Ibico, que era da Magna Grécia e pouco pos­
terior a Estesícoro.
Mas, na segunda metade do século vi, o lirismo coral parece encon­
trar um novo fôlego com Simónides de Ceos. Nascido próximo de Atenas,
viveu nesta cidade junto do tirano Hípias e, mais tarde, em Siracusa,

67
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

onde se associou do tirano Hierão. Viveu muito tempo e teve uma vasta
obra: escreveu ditirambos, elogios, cantos de luto, epigramas - e também,
o que parece ter sido novidade, cantos de vitória para os atletas. A sua
inspiração é, muitas vezes, elevada e não hesita em ser moralista, um
pouco como Sólon; também fala da brevidade da vida ou dos caprichos
da fortuna. Por outro lado, também não hesita em falar de política; mas
não o faz como homem de partido: viveu durante as guerras médicas e,
da atmosfera de então, recebeu uma inspiração de patriotismo helénico;
rivalizou com Esquilo para louvar os mortos de Maratona e compôs
vários epigramas pelos das Termópilas.
Com ele, o lirismo coral assumiu uma amplitude que Píndaro, qua­
renta anos mais novo, iria reencontrar. Ao mesmo tempo, como com
Sólon, ele faz-nos assistir à inclusão definitiva do poeta na cidade, traço
que irá marcar todo o século v.

III.
PÍNDARO E BAQUÍLIDES

De todos os poetas que vimos a partir de Hesíodo, Píndaro é aquele


de que possuímos a obra mais bem conservada: quatro volumes das edi­
ções da CUF, em vez de algumas páginas. No entanto, tem-se uma ideia
incompleta e um pouco errada da sua obra; porque só foram conservados
os cantos de vitória pelos atletas; ora, sabemos que ele também escreveu
hinos aos deuses, hinos para procissões, cantos para os coros das jovens,
cantos de luto ou de louvor. De tudo isto, possuímos apenas alguns frag­
mentos. Em contrapartida, os cantos de vitória foram conservados, dividi­
dos, de acordo com a ocasião e os jogos respectivos, em odes olímpicas,
píticas, nemeias e ístmicas. Graças a estas obras, fazemos uma ideia da
sua vida, do seu pensamento e do seu talento.
Píndaro era, como Hesíodo, Beócio: nascera - parece que em 518 -
perto de Tebas e pertencia claramente a um meio honroso. Talvez dema­
siado cedo, foi para Atenas, onde parece ter estado associado á grande
família dos Alcmeónidas, para a qual compôs poemas. No entanto, não
partilhou do ardor ateniense durante as guerras médicas (Tebas estava,
sabe-se no campo amigo dos Persas). A partir de 498 deu-se a conhecer

68
A ÉPOCA ARCAICA

pelos seus cantos de vitória (a Pítica X é dessa data; celebra a vitória de


um Tessálio). O seu renome estendeu-se depressa a toda a Grécia. Com­
pôs inúmeros poemas em honra dos vencedores de Egina e louvou a ilha
num péan. A partir de 476, foi para a Sicília, onde o encontramos na corte
de dois soberanos ilustres, Terão (tirano de Agrigento) e Hierão (tirano de
Gela e de Siracusa): as odes em honra dos vencedores sicilianos também
são muito numerosas. Mais tarde, regressou à Grécia propriamente dita.
Foi capaz de louvar Atenas em versos célebres («O cidade brilhante,
coroada de violetas.. .»)(6). Também estendeu a sua actividade a Corinto,
a Rodes e a Cirene (na Líbia). Celebrou um vencedor desta cidade em 474:
mais tarde, deviam ser compostas duas Píticas para o rei Arcesilau, a
quem Píndaro não hesitou em dar conselhos. Morreu em 438, com a idade
de 80 anos.
Podemos, com o auxílio dos seus diversos poemas, reconstituir a
história da sua vida, das suas disputas com os grandes, das suas espe­
ranças e das suas crenças. Mas aquilo que impressiona desde o início é
a posição considerável que Píndaro ocupa no mundo grego - um mundo,
contudo, agitado por lutas vitais.
Para o explicar, importa compreender antes de mais que esta poesia,
destinada a festejar um feito desportivo, era, contudo, algo mais do que
uma poesia de circunstância.
Píndaro não descreve nada dos feitos que celebra. Também não diz
nada da vida dos vencedores. Vai directamente para o sentido mais ele­
vado do feito, considerado no que tem de universal e de simbólico para
a vida humana em geral. Atinge esta dimensão associando à evocação
da vitória, por um lado, um mito, por outro, um ensinamento moral.
Os inícios dos seus poemas são brilhantes. Evocam, muitas vezes,
a glória, a divindade, o ouro; e tudo isto se confunde; porque a glória vem
dos deuses e brilha como o ouro. Por vezes, seguem-se algumas palavras
alusivas às vitórias já obtidas pelo vencedor ou pelos seus parentes. Mas,
imediatamente, num movimento para reunir tudo e sem qualquer tran­
sição, Píndaro entra no domínio do mito. Não diz porque é que escolhe

(6) N.T.: A tradução deste fragmento de Píndaro (fr. 76 Snell-Maehler) foi retirada da
Hélade. Antologia da Cultura Grega (organização e tradução do original de Maria Helena
da Rocha Pereira), Porto/Lisboa, Edições ASA, *2003.

69
C O M P E N D IO DE L IT E R A T U R A G R E G A

um ou outro mito. Por vezes, é a pátria do vencedor que o guia: para um


vencedor de Cirene, canta a história da virgem Cirene e de Apoio (Píti-
ca IX), ou então a narração da aventura dos Argonautas, que resultará
na fundação de Cirene (Pítica IV). Ou ainda se deixa guiar pelo local da
vitória: a vitória olímpica de Hierão lembra, assim, a lenda de Pélops e
de Tântalo, sendo Pélops objecto de um culto em Olímpia (Olímpica I).
Também se pode inspirar em episódios da vida do vencedor: para Hie­
rão, que acabara de fundar a cidade de Etna, ele recorda a derrota de
Tífon por Zeus e o seu aprisionamento no Tártaro, onde os seus furores
provocam as erupções do Etna (Pítica I).
Mas estas ligações exteriores nunca são mais do que uma das razões
da escolha de Píndaro. E é claro que ele também dá a estes mitos um valor
de ensinamento. Aliás, contrariamente aos outros épicos, ele não conta:
apenas evoca, com algumas imagens flamejantes e sem se sujeitar a uma
ordem exactamente cronológica. E estas evocações deixam sempre ou
uma indicação sobre o sentido do mundo, ou uma opinião ou um conselho.
É por isso que o aprisionamento de Tífon, na Pítica I, faz parte de um
elogio que fala do poder da música e também do poder de Zeus; come­
ça com o poder da música e encadeia-se: «Mas aqueles que Zeus não
amou aterrorizam-se / quando ouvem o som das Piérides, tanto na terra
/ como no mar irresistível, / e aquele que jaz no horrífico Tártaro, inimigo
dos deuses,/Tifo de cem cabeças...» (13 ss.). Depois disto, Píndaro con­
clui: «Prouvera, ó Zeus, que fosse possível agradar-te...» (29)(7). Do mesmo
modo, a aventura dos Argonautas, na Pítica IV, tem Cirene como oca­
sião, mas o seu sentido, ou um dos seus sentidos, é mostrar a imagem
luminosa de Jasão, com os magníficos caracóis da sua cabeleira loira,
aceitando pôr fim à antiga querela e partir para a aventura, porque «as
Parcas afastam-se quando o ódio se coloca entre aqueles que são do
mesmo sangue» (145). E, assim, um aviso de conciliação e de modera­
ção que Píndaro pretende dar, nesse dia, ao rei de Cirene.
Importa, contudo, reconhecer que as ligações do mito, do elogio e da
exortação nem sempre são tão visíveis. E, como o estilo de Píndaro é sem­
pre breve e tenso, como ele se contenta em sugerir um sentido, como nunca

(7) N.T.: A tradução desta ode de Píndaro foi retirada de Poesia Grega de Alcman a
Teócrito (tradução de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia, 2006.

70
A É PO C A A R C A IC A

apresenta conclusões ou encadeamentos, muitas vezes é difícil restituir a


unidade que preside à composição de cada ode. Com efeito, é preciso saber
que esta unidade não se traduz num desenvolvimento linear da poesia pin-
dárica: esta passa de um tema para outro de uma forma livre e abrupta;
como diz o próprio Píndaro, os seus cantos são «semelhantes à abelha» e
«voam de um assunto para outro» (Pítica X, 53). É apenas ao nível do
significado de conjunto que, para além das alusões e das ocasiões, parece
estabelecer-se entre os diferentes temas uma livre convergência.
Acrescente-se a isto que Píndaro, consciente da importância da sua
arte, introduz muitas vezes nas odes observações não só sobre o poder
da música, mas sobre aquilo que faz um bom poeta, sobre a sua função,
até mesmo sobre os diferendos que o opõem aos rivais. O facto confirma
e reforça a liberdade no andamento dos seus poemas. Ao mesmo tempo,
ela está aqui justificada na medida em que a natureza da poesia e os deve­
res do poeta fazem parte da ética em geral: o que ele diz vai ao encontro
dos outros juízos morais contidos nas suas odes.
Seria, contudo, deformar a imagem da obra de Píndaro aproximá-la
desses juízos morais. Ela é, antes de mais, feita de imagens que ilustram
tudo o que a vida humana contém de belo e de brilhante. Ela celebra a ale­
gria aristocrática das festas e dos banquetes. Mas é preciso também acres­
centar que estas belezas e estas alegrias estão como que banhadas por uma
luz religiosa. Aí os deuses presidem e são os seus fornecedores. E o que
faz a grandeza das evocações de Píndaro, mesmo quando se trata de ima­
gens muito concretas.
Deste modo, cantando, no início da Pítica 1, o poder da música, Pín­
daro sobe, num único salto, dos homens para os deuses: «Lira dourada,
justa pertença de Apoio e das Musas / de tranças violetas! Ouve-te / o
inicial passo dançante do esplendente festim; / e os cantores obedecem
a teus sinais, / quando vibrando fazes soar os acordes iniciais / dos pre­
lúdios condutores de coros. / Extingues até o violento trovão / de defla­
gração contínua; e a águia / dorme sobre o ceptro de Zeus...».
O pensamento da existência dos deuses está, com efeito, presente
em todo o lado em Píndaro. E exprime-se com um respeito que o leva a
retocar as lendas pouco edificantes ou a calar certos elementos. Em con­
trapartida, acrescenta-lhe o sentimento de omnipotência divina e dos
seus mistérios: «Deus, que atinge a águia no seu voo, que ultrapassa o

71
C O M P E N D IO DE L IT E R A T U R A G R E G A

golfinho no mar, curva os mortais orgulhosos e faz passar a outros a gló­


ria imperecível...» {Pít. II, 50 ss.).
Daqui resulta que tudo depende dos dons que a divindade concede
aos homens: uma moral aristocrática está, assim, de acordo com a reli­
gião. Nascemos corajosos; nascemos poetas (ΟΙ. IX, 100); é sempre o dom
natural, phya. «Brilha por natureza nos filhos / o nobre espírito de seus
pais.» {Pít. VIII, 44) (8), «O que está na nossa natureza é a melhor coisa
de todas» {ΟΙ. IX, 100) (9), «Sábio é quem muito sabe por natureza. / Os
que precisam de aprender são como corvos / alarves na garrulice, que
grasnam em vão / contra a ave sagrada de Zeus.» {ΟΙ. II, 86 ss.)(10).
Ao mesmo tempo, este confronto perpétuo do homem com os deu­
ses dirige a filosofia de Píndaro e a sua moral.
Píndaro tem, certamente, como todos os poetas da época arcaica, o
sentimento intenso da fragilidade do homem, mas, ao contrário deles, tem
também o sentimento do que este se pode tornar, graças aos deuses. Di-lo
de diversas formas (como na Nemeia VI, 1-7); mas di-lo, sobretudo, de
uma forma esplêndida no final da Pítica VIII: «Efémeros! Que somos
nós? Que não somos? / Sombra de um sonho é o homem! / Mas, quando
sobrevier um raio de luz divina, / um brilhante clarão e doce vida / sobre­
virá aos homens.». Do mesmo modo, os homens são cegos quando lhes
falta o auxílio das Musas, mas podem ser conduzidos à verdade por elas.
Esta referência contínua aos deuses constitui a grandeza das obras
de Píndaro e dá a cada canto de vitória o aspecto de um hino.
Num tal mundo, não há maior falta do que querer mais do que a sua
parte e ser culpado de hvbris (como Ixíon, na Pítica II): aqueles a quem
Píndaro louva são como o Ródio, de quem ele diz «trilha um caminho /
inimigo da insolência» {ΟΙ. VII, 90)(").

(8) N.T.: A tradução desta ode de Píndaro, tanto aqui, como nas citações posteriores,
foi retirada da Hélade. Antologia da Cultura Grega (organização e tradução do original de
Maria Helena da Rocha Pereira), Porto/Lisboa, Edições ASA, *2003.
Ο N.T.: A tradução desta ode de Píndaro foi retirada de Poesia Grega de Alcman a
Teócrito (tradução de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia, 2006.
(I0) N.T.: A tradução desta ode de Píndaro foi retirada de Poesia Grega de Alcman a
Teócrito (tradução de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia, 2006, com correcção da
indicação dos versos.
(") N.T.: A tradução desta ode de Píndaro foi retirada de Poesia Grega de Alcman a
Teócrito (tradução de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia, 2006.

72
A É PO C A A R C A IC A

Mas Píndaro não se contenta com esta lição tão negativa. Nas suas
odes encontramos a encarnação brilhante de muitas virtudes: a amizade,
a coragem, a hospitalidade, ajusta medida. Também nelas encontramos
a evocação de um ideal cívico, feito de paz e de bom entendimento.
A este respeito, é revelador o início da Pítica VIII, que se dirige à Tran­
quilidade: «Benévola Tranquilidade, ó filha da Justiça, / que engrande­
ces as cidades...». É, um pouco, o ideal de justiça de Hesíodo, mas
adaptado ao mundo das cidades, ao mundo de Sólon. No entanto, neste
domínio como em outros, o pensamento de Píndaro permanece franca­
mente conservador: onde Sólon luta contra a injustiça, ele não pede mais
do que harmonia e paz. A mesmo tónica se encontra, por exemplo, no
início da Olímpica XIII: «Nela habita a Boa Ordem e sua irmã, / inder-
rubável alicerce das cidades, a Justiça, e aquela que com elas foi criada,
/ a Paz, mordoma de riqueza para os homens.. .» (12).
Através do respeito por estas virtudes, o homem pode esperar atrair
para si a benevolência dos deuses e conhecer a prosperidade. Mas, por
outro lado, ele é para o homem um meio de ele próprio alcançar a imor­
talidade: é a glória, sancionada e propagada pela própria obra do poeta.
A responsabilidade do poeta é, assim, grande: nunca se deve afastar da
verdade; pois compete-lhe salvar do esquecimento aqueles que o merecem.
O único meio para os feitos sobreviverem é que «pelo favor de Mnemó-
sine de diadema brilhante, eles obtêm, nos seus cantos gloriosos, o prémio
dos trabalhos enfrentados» (Nem. VIII, 15 ss.). Nesta tarefa tomam parte as
Musas e as Cárites: o poeta é inspirado por elas; é o seu intérprete. E o dom
que recebe dos deuses permite-lhe, em troca, conferir aos outros uma
forma de imortalidade.
Esta convicção que anima Píndaro explica a majestade dos seus poe­
mas. Quase sempre compostos em tríades (com estrofe e antístrofe para­
lelas, seguidas de um epodo), combinam a amplitude e a tensão interior.
O movimento das frases é trabalhado até à obscuridade; as palavras raras,
os compostos, as perífrases quase parecem constituir uma linguagem
para iniciados; as metáforas permitem fazer trocadilhos com vários regis-

(l2) N.T.: A tradução desta ode de Píndaro foi retirada de Poesia Grega de Alcman a
Teócrito (tradução de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia, 2006.

73
C O M P E N D IO DE L IT E R A T U R A G R E G A

tos ao mesmo tempo; e o sentido, deliberadamente, oculta-se como o dos


oráculos. No entanto, no seio deste percurso com obstáculos, as imagens
brilham, uma a uma; encontramos, assim, com todo o seu simbolismo,
o ouro e a púrpura, ou então o carro, a floração... Por vezes, a frase salta
como uma torrente em longas evocações fracturadas; por vezes, ao con­
trário, é evocado um gesto com tanta sobriedade que o relevo provém
do que é sugerido e não dito.
Estas características do estilo de Píndaro confundiram leitores toma­
dos de racionalidade; mas dão à sua obra um brilho incomparável. Alguns
anos mais tarde, encontrar-se-ão alguns destes traços no mais religioso
dos trágicos, a saber, Esquilo.
Píndaro teve como rival um homem dez anos mais novo do que ele,
Baquílides. Baquílides era sobrinho de Simónides e, como ele, era de
Ceos; terá sido introduzido por ele junto de Hierão, que partilhou entre
ele e Píndaro o seu patronato. A sua obra foi pouco conhecida até aos
últimos anos do século xix: encontraram-se então, em papiros, uma quin­
zena de odes triunfais tal como péanes e ditirambos. A sua arte é muito
mais simples do que a de Píndaro: os elogios são verdadeiros elogios, o
pensamento é claro, a influência homérica sensível. Num sentido, vemos
anunciar-se nos fragmentos encontrados a passagem do lirismo à tragé­
dia: com efeito, alguns ditirambos ou possuem partes dialogadas (Teseu
e Minos), ou são inteiramente dialogados (o regresso de Teseu).
De facto, assiste-se, então, ao fim do lirismo; poderíamos ainda refe­
rir dois ou três nomes, como o de uma mulher, Corina (sem falar de
Timocreonte, que atacou Temístocles); mas o grande momento passou.
O papel do feito desportivo diminuiu, sem dúvida, na época da cultura
intelectual; mas sobretudo a evolução democrática faz suceder à festa
aristocrática a manifestação artística que tem como espectador o públi­
co e como juiz todo o povo reunido.

I V .

A FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA

Enquanto o lirismo desaparecia, a prosa tinha o seu início, partindo


sempre da Ásia Menor: encontrá-la-emos no capítulo seguinte, com os

74
A É PO C A A R C A IC A

inícios da história. Também era usada na produção popular, como as


fábulas: Esopo, que parece ter sido escravo e Frígio, viveu no século vi
e é referido por Heródoto. Ela serviu, enfim, para os filósofos da Escola
de Mileto, embora outros filósofos tenham frequentemente recorrido à
forma poética, considerada mais majestosa e, de certa forma, mais pró­
xima do sagrado.
A filosofia grega nasceu, praticamente, no século vi; e desenvolveu-
-se em duas regiões situadas nos limites do mundo grego: na Ásia Menor
e na Grécia do Ocidente (Sul de Itália e Sicília).
Podemos distinguir dois períodos, que se separam por volta de mea­
dos do século vi.

1. Os começos da filosofia

Estes começos ligam-se a duas correntes distintas: por um lado, a


movimentos de pensamento com orientação mística ou esotérica, for­
mados em tomo de personagens pertencentes, pelo menos em parte, à
lenda, e destinadas a ter uma vasta influência; por outro lado, a filósofos
no sentido moderno do termo, cuja actividade se situa em Mileto.

a) O o rfism o e o p ita g o r is m o

Orfeu é uma personagem mítica. Nascido na Trácia, antes de Homero,


e filho de uma Musa, era um músico sem igual. Participou na expedição
dos Argonautas e desceu aos infernos em busca da sua mulher, Eurídice.
A tradição que se desenvolveu em tomo dele faz dele uma espécie de
profeta, um pouco mágico, e profundamente religioso. Atribuía-se-lhe
uma teogonia (de que se encontram ecos nas Aves de Aristófanes). Mas,
sobretudo, atribuía-se-lhe uma crença profunda na vida do Além e todo
um conjunto de ritos, de regras ascéticas, de iniciações, que deviam auxi­
liar os seus adeptos. Chegaram mesmo a ser encontradas pequenas lâmi­
nas de ouro gravadas, que tinham excertos de textos sagrados, que deviam
acompanhar os fiéis no outro mundo e servir-lhes de guia; surge então a

75
C O M P E N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

ideia de purificações progressivas. Descobre-se aí todo um aspecto da


religião grega que nem Homero nem Hesíodo deixavam prever e que,
ao longo da história grega, devia exercer uma grande influência - embo­
ra tenha havido tendência para a sobrevalorizar. Os textos órficos são,
em geral, tardios, mas as doutrinas devem ter sido fixadas na época que
nos ocupa.
Esta preocupação com a sobrevivência e com as purificações encontra-
-se numa personagem um pouco mais conhecida, que é Pitágoras; mas
este, pelo menos, é bastante real. Nascido em Samos, deixara a ilha, pro­
vavelmente aquando da chegada do tirano Polícrates, cerca de 530, e
fixara-se no Sul da Itália, em Crotona. Não havia escritos dele: havia nar­
rativas, cheias de maravilhas, que lhe atribuíam capacidades sem igual.
Em qualquer caso, os seus discípulos conservaram viva uma tradição
extremamente rica. Como as seitas órficas, também os pitagóricos acre­
ditavam na sobrevivência da alma; de forma mais precisa, acreditavam
na metempsicose; e inúmeras prescrições práticas visavam purificar a
alma, tendo em vista futuras reencamações. Aliavam-se-lhes proibições
alimentares, das quais algumas se explicam pela possibilidade de reen-
carnação em corpos de animais. Mas o pitagorismo distinguia-se do
orfismo noutros aspectos. Primeiro, possuía uma tradição política que,
por vezes, no Sul da Itália, levou a realizações concretas - e este aspec­
to pode parecer que prepara Platão. No entanto, há um outro que, a este
respeito - como em todos os outros - , é ainda mais importante: é o inte­
resse de Pitágoras pela matemática e a sua doutrina, segundo a qual tudo
se resume aos números e à harmonia dos números. Foi, sem dúvida,
influenciado pelos matemáticos orientais e jónicos; mas desenvolveu-os
e fez do número o princípio de explicação do cosmos. O filósofo Arqui-
tas, que Platão foi ver a Tarento, ensinava a filosofia pitagórica; ora ele
era, ao mesmo tempo, homem de Estado e matemático.
O pitagorismo e o orfismo, pelo seu conteúdo místico, reflectem
provavelmente influências orientais e egípcias que sobreviveriam duran­
te muito tempo na Grécia. Com a escola de Mileto, podemos ver como
é que esta espiritualidade, ainda próxima do mito, se orienta para uma
tomada de consciência mais racional e objectiva, que cada vez mais tem
a marca grega.

76
Γ

A É PO C A A R C A IC A

b) O s f iló s o f o s d e M ile to

Tal como o orfismo, os filósofos de Mileto interrogaram-se sobre a


origem do universo; mas a sua linguagem foi diferente. O orfismo ofe­
recia uma versão teogónica da formação do mundo (com Crono, depois
o Éter e o ovo divino, donde saiu Fanes-Eros). Foram propostas outras
teogonias do mesmo género: em meados do século vi, Ferécides de Siro
apresentou uma em prosa (com Zas, Crono e Ctónia); e o cretense Epi-
ménides, célebre por ter purificado Atenas, escreveu uma Teogonia em
verso. A originalidade dos filósofos de Mileto é que, ao interrogarem-se
também eles sobre as origens do mundo, tentaram dar ao problema uma
resposta de ordem científica e determinar os elementos daphvsis, ou for­
mação do universo.
Estes filósofos, que escreviam em prosa, são Tales, Anaximandro e
Anaxímenes. Viveram na primeira metade do século vi (Tales, o mais
antigo, era contemporâneo de Sólon; Anaximandro era um pouco mais
novo e parece ter nascido pouco antes do início do século; Anaxímenes
devia ser cerca de vinte anos mais novo). Só conhecemos as suas obras
por curtos fragmentos. Neles podemos encontrar a conservação de ten­
dências teológicas, mas as entidades de que falam são de ordem física.
Do mesmo modo, podemos reconhecer facilmente influências orientais
no seu pensamento, mas este afastou-se da forma mítica. Eles são, em
suma, a charneira entre as teologias poéticas e as investigações sábias
sobre a realidade do mundo. Aliás, a sua orientação científica não é duvi­
dosa. A acreditar em Heródoto (I. 74), Tales foi capaz de predizer um
eclipse do sol; e os outros dois, igualmente versados em astronomia, pro­
puseram tipos de representações geométricas do universo: Anaximandro
foi o primeiro Grego a traçar um mapa do mundo.
Semelhantes pelas suas curiosidades e pelo seu espírito, os três Milé-
sios diferiam sobretudo na escolha do elemento que apresentaram como
ponto de partida de tudo: para Tales, era a água, para Anaximandro, o
apeiron, ou o infinito indiferenciado, para Anaxímenes, o ar. Cada um
apresentava teorias, em parte imaginárias, em parte fundadas na obser­
vação física, para explicar a formação das diversas partes do universo a
partir do seu elemento primeiro: o conhecimento científico era, assim,

77
C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

posto ao serviço da ambição que pretendia dar conta do todo, como


faziam as teogonias.
Por este breve resumo, concebemos como o século vi representa
uma época de eclosão e de criação. E tem interesse verificar que foi esta
a época daqueles que foram chamados Sete Sábios. Por vezes, a sua lista
varia, mas nela figuram sempre dois nomes, que são os de Sólon e o de
Tales, o pensamento moral e o pensamento científico.
Desde então, está aberta a via para novas realizações: da segunda
metade do século vi até ao século v, incluído, vão suceder-se grandes
nomes, homens que apresentam verdadeiros sistemas filosóficos e que,
além disso, conhecemos melhor.

2. Os sistemas dos filósofos no final da época arcaica

Um nome deveria ter sido referido na época anterior: Xenofonte de


Cólofon nasceu pouco depois de 600 e Cólofon não é longe de Mileto.
Mas, como Pitágoras, deixou a Ásia Menor por razões políticas (a conquis­
ta pelos Medos); e, desde então, liga-se a outras correntes do pensamento.
Aliás, Xenófanes não era unicamente, nem talvez principalmente, um filó­
sofo. Escrevia em verso - tanto em versos épicos (como a sua Fundação
de Cólofon e o seu poema sobre a instalação dos Jónios em Eleia, no Sul
de Itália), como em versos elegíacos, discutindo ideias e valores. A sua
grande originalidade -- poderíamos dizer audácia - é ter criticado severa­
mente a representação antropomórfica dos deuses, com as suas fraquezas,
que são invenção dos homens, e ter sustentado a ideia de uma divindade
única e imutável (fr. 26). Foi, também, o primeiro a distinguir entre o
ser e o parecer, e a indicar a existência de um progresso humano, que se
realiza com o tempo (fr. 18). O facto de se ter interessado pela cidade de
Eleia e de ter insistido na unidade imutável da divindade (que, num sen­
tido, se identifica com o universo) sugere uma relação, talvez ténue, mas
real, entre este pensador solitário e o fundador da escola de Eleia, Par-
ménides.
Heraclito de Efeso, Parménides de Eleia, Empédocles de Agrigento
são, de facto, os três grandes nomes da filosofia nesta época.

78
A É PO C A A R C A IC A

a) H e ra c lito

É difícil dizer qual, Heraclito ou Parménides, foi o primeiro pela


data: em todo o caso, estavam muito próximos. Heraclito terá nascido
cerca de 540. Pertencia a uma das mais nobres famílias de Éfeso; isto
nota-se, talvez, no desprezo profundo que não deixa de testemunhar para
com a multidão e o vulgar. Não se sabe se escreveu um tratado seguido
ou se a sua obra foi feita por pensamentos isolados, tais como aqueles
que o acaso das citações nos conservou. Estas reflexões são sempre
expressas sob uma forma difícil, coleccionada, própria para surpreender.
Já na Antiguidade lhe chamavam «o Obscuro». Com efeito, não fazia
parte do seu projecto tomar-se inteligível para o grande número. Em todo
o caso, exprime-se como um homem que, à parte de todos, conhece os
segredos do mundo. Por vezes, toma mesmo o tom de profeta. Este traço,
característico dos três autores aqui considerados, define uma função que
não é a do filósofo numa sociedade aberta e científica, mas a de um «mes­
tre da verdade» numa sociedade arcaica e fundamentalmente religiosa.
Daí vem, sem dúvida, pelo menos em parte, o facto de que o mundo
dos homens contém apenas, aos olhos de Heraclito, uns poucos «acor­
dados»: quase todos são dormidores; ouvem como os surdos; presentes,
estão ausentes (fr. 34). Os próprios poetas podem saber muitas coisas, mas
esta «polimatia» não serve para nada: Hesíodo e Pitágoras, Xenófanes
e Hecateu, Homero e Arquíloco apenas exprimiram disparates (fr. 40,
42, 57). Em contrapartida Heraclito, ao procurar compreender a sua pró­
pria natureza (fr. 101), conhece a verdade.
Esta verdade pode definir-se por duas ideias complementares: uma
é a existência de um Logos, um pensamento, único e soberano, que é
simultaneamente pensamento humano e princípio que governa o univer­
so; a outra é o carácter perpetuamente mutável deste universo, cuja exis­
tência só é assegurada pelo confronto dos contrários.
O primeiro princípio completa-se com a ideia da importância do
fogo que é, no domínio material, o elemento mais próximo do Logos.
Este princípio não está isento de relação com a visão do mundo que os
estoicos desenvolverão mais tarde.
O segundo, esse ficará sempre como o mais característico de Hera­
clito. Com efeito, Heraclito viu que a mudança reinava em todo o lado,

79
C O M P E N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

produzindo uma espécie de ciclo, por meio do qual o desaparecimento


de um elemento provoca o nascimento de outro. Esta perpétua mudança
é ilustrada pela célebre fórmula segundo a qual não podemos meter o pé
duas vezes no mesmo rio (porque a água se renovou): é o fragmento 91;
e a troca dos elementos traduz-se em fórmulas como a do fragmento 36:
«Para os vapores, tomar-se água é morte; para a água, tornar-se terra é
morte; mas da terra nasce água, da água, vapor.»(I3).
Nos próprios corpos, enquanto existem, há tensão entre elementos
contrários: é por isso que Heraclito pode dizer que a guerra «de todos é
pai» e faz de cada um aquilo que é (fr. 53). É também por isso que pode
sugerir a existência de uma unidade resultante de impulsos opostos e
falar da harmonia, feita a partir de tracções inversas, que há na lira e no
arco (fr. 51, discutido por Platão no Banquete).
Mas os contrários, no mundo de Heraclito, ainda se associam de
uma outra forma que faz com que eles não só se equilibrem, mas se
confundam. As qualidades contrárias apenas são assim porque corres­
pondem àquele que as julga e ao seu ponto de vista: a via é a mesma
para cima e para baixo, a escrita é ao mesmo tempo direita e curva, a
água do mar é, ao mesmo tempo, muito pura e muito insalubre: exce­
lente para os peixes, é nefasta para o homem (fr. 60, 59, 61). Se se con­
sidera o conjunto do universo, e se nos colocamos ao nível de Deus ou
do Logos, então muitos contrários confundem-se numa unidade que as
percepções humanas não podem compreender: é este o caso quando
Heraclito afirma que o dia e a noite são apenas um (fr. 57), ou que uns
vivem a morte dos outros. Com efeito, a experiência lê-se num duplo
sentido; e o que explicava a diversidade do real tal como a sua perpétua
mudança explica também, em definitivo, a unidade que se esconde por
detrás das mudanças.
Com este breve resumo, concebemos o carácter voluntariamente
confuso dos pensamentos de Heraclito; eles chocam, espantam, dizem sem
dizer e apresentam cada coisa sob uma luz oposta aos hábitos comuns:
isto tem a ver, em parte, com o facto de que a doutrina representa uma

(13) N.T.: A tradução dos fragmentos de Heraclito foi retirada de Heraclito, Fragmen­
tos Contextualizados (prefácio, apresentação, tradução e comentários de Alexandre Costa),
Lisboa, 1NCM, 2005.

80
A É PO C A A R C A IC A

tentativa de rara audácia para conciliar a unidade e a mudança. Mas esta


razão só tem importância em parte. Com efeito, as filosofias de Parmé-
nides e de Empédocles não são muito menos difíceis; ora, eles insisti­
ram, um na unidade e o outro na mudança, ou antes, na alternância.

b) P a r m é n id e s

Parménides nasceu em Eleia, no Sul de Itália, e foi o fundador da


que foi chamada, por esse motivo, escola eleática. O local do seu nasci­
mento explica os prováveis contactos com Xenófanes, que morou na
região, e com os pitagóricos, instalados nas vizinhanças. As datas são
mais difíceis de precisar (por causa do encontro com o jovem Sócrates,
lembrado por Platão, Parménides, 127 b, encontro que não se adapta às
outras informações); mas o desvio é limitado; e, em qualquer caso, a vida
de Parménides situa-se no final do século vi e na primeira metado do
século v. Desempenhou certamente actividades de legislador ao mesmo
tempo que as de filósofo, sendo o essencial a sua filosofia, que se exprimia
num longo poema em hexâmetros, Sobre a Natureza: conservaram-se
fragmentos bastante importantes (o maior tem 61 versos).
Esta opção pela forma poética está de acordo com o aspecto de reve­
lação majestosa de que se reveste o pensamento de Parménides. Com
efeito, ele explica no prólogo do poema e ao dizer «eu», como Hesíodo,
como é que foi iniciado na verdade; e esta iniciação assume a grandeza
do mito. Parménides descreve uma espécie de viagem que o conduz à
verdade: está num carro, no caminho da deusa, enquanto as filhas do Sol
lhe mostram a direcção que conduz à luz (fr. 1, 1-10). Chega, assim, a
uma porta, onde se separam os caminhos da noite e do dia; a Justiça
guarda as chaves dela. Parménides consegue franquear esta porta; e a
deusa recebe-o, prometendo ensinar-lhe tudo: «Força é pois que saibas
tudo: / o ânimo inabalável da rotunda Verdade / e a opinião dos mortais,
em que não há confiança verdadeira (fr. 1,7-9) (l4). Este grandioso início,

(14) N.T.: A tradução desta passagem (fr. 1 D-K, 28-30) de Parménides, bem como das
restantes, foi retirada da Hélade. Antologia da Cultura Grega (organização e tradução do
original de Maria Helena da Rocha Pereira), Porto/Lisboa, Edições ASA, *2003.

81
C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

que é como que o símbolo de uma iniciação religiosa, faz do pensador


um outro «mestre da verdade», e coloca-o à parte de todos, como o único
detentor da verdade.
Nesta revelação pudemos constatar que a Verdade (que está, de certo
modo, personificada) é, também ela, considerada à parte e distinta das
vãs opiniões que todos os outros homens têm. Esta Verdade única tem
por objecto o Ser. E o Ser, por seu turno, é único, imutável, não conhece
início nem fim, nem mudança. E contínuo, pleno e engloba tudo. Nada
poderia existir para além dele: «o que é é ingénito e indestrutível, / pois
é completo, inabalável e sem fim» (fr. 8, 3-4; cf. 26-30). Já não se trata,
evidentemente, do simples universo físico, com que se preocupavam os
Jónios, mas de tudo o que é e pode ser apreendido pelo espírito. Pelo
contrário, o Não-Ser não pode existir, porque não pode ser pensado.
Colocamo-nos, assim, ao nível de uma ontologia fundada sobre a pura
especulação; e o pensamento de Parménides iria exercer uma grande
influência sobre esta forma de apresentar os problemas, tanto quanto
sobre as próprias doutrinas.
Além disso, Parménides não se encerrou na meditação sobre o Ser:
o seu poema, na segunda parte, também tratava do mundo das opiniões
e da aparência. Terminava com uma verdadeira cosmologia, que retinha
sobretudo dois princípios: o fogo e a noite. Neste domínio, onde os
homens são enganados pela aparências e pelo carácter limitado das suas
formulações, ele oferecia pelo menos, depois da deusa, uma verosimi­
lhança preferível às outras (fr. 8, 60).
A escola eleática deveria exercer uma influência decisiva sobre Pla­
tão e Aristóteles, ao apresentar com tanta força a ideia da unidade abs-
tracta do universo: conciliar esta unidade com o desmembramento do
mundo sensível seria um dos problemas que os filósofos teriam de resol­
ver. O facto de que um dos diálogos de Platão se intitula Parménides
toma esta influência sensível. Dois discípulos do Eleata ilustraram a
escola depois dele: o seu aluno favorito, Zenão de Eleia (que não deve­
mos confundir com o filósofo estoico) confundiu gerações de pensado­
res com os seus paradoxos: o mais célebre é o de Aquiles, que não
consegue nunca apanhar a tartaruga, porque se considera o fracciona-
mento infinito do caminho a percorrer. Este género de paradoxos prova-

82
A ÉPO C A A R C A IC A

va o carácter inteligível do movimentos. Tratava-se de jogos dialécticos,


mas de «jogos sérios», segundo a fórmula platónica (Parménides, 137
b). Quanto a Melisso de Samos, em meados do século v, fazia a crítica
do conhecimento empírico; dele temos apenas alguns fragmentos, mas
foi muito considerado na Antiguidade: Platão e Isócrates referem-se-lhe
várias vezes. Um tratado peripatético, datando provavelmente do século i
da nossa era, intitulava-se Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias. Em qual­
quer caso, também a voga da personagem ilustra a influência exercida
pelos pensadores de Eleia.

c) Empédocles

O último dos grandes filósofos pré-socráticos pertence ao século v


(morreria cerca de 430) e é contemporâneo dos filósofos que serão lem­
brados no capítulo V; mas o seu pensamento adopta ainda o movimento,
o tom e os problemas dos que acabam de ser referidos.
Empédocles pertencia a uma família nobre de Agrigento, na Sicília;
e também ele foi um «mestre da verdade». Era médico, curandeiro e
considerava-se investido de um poder sobrenatural. Apresenta-se como
tal no seu poema das Purificações, evocando os cortejos que o recebiam
em todo o lado. «Seguir-me-ão, / aos milhares, indagando o caminho da
prosperidade, / uns, porque precisam de oráculos, outros, porque inter­
rogam / sobre toda a espécie de doenças, para ouvir uma palavra que
cure... » (fr. 112, 8-11)(15). A sua própria morte foi, segundo se conta,
miraculosa: uma voz tê-lo-á chamado e o seu corpo terá sido engolido
pelo Etna. Deixava dois grandes poemas, o Sobre a natureza e as Puri­
ficações, que deviam perfazer, no conjunto, 5 000 versos: restam longos
fragmentos - cerca de 1 000 versos - que pertencem sobretudo ao pri­
meiro poema.
Pelo seu título, este primeiro poema associa-se às preocupações dos
Jónios. Mas enquanto estes filósofos procuravam determinar um único

O5) N.T.: A tradução desta passagem de Empédocles, bem como das restantes, foi reti­
rada da H éla d e . A n to lo g ia d a C u ltu r a G r e g a (organização e tradução do original de Maria
Helena da Rocha Pereira), Porto/Lisboa, Edições ASA, *2003.

83
C O M P Ê N D IO DE L IT E R A T U R A G R E G A

elemento de onde teria saído o universo, Empédocles, esse, admite qua­


tro «raízes»; a terra, a água, o éter e o fogo. Designa-as, por vezes, sob
nomes divinos. Estas quatro «raízes» são, como o Ser de Parménides,
engendradas e eterna. Mas, devido ao facto de serem quatro, combinam-
-se; e toda a vida do universo se explica pela mistura e pela separação.
Com efeito, duas forças presidem a estas combinações: a amizade (phi-
lotês) organiza e combina; a querela (neikos) separa e desune; e o uni­
verso faz-se e desfaz-se segundo uma vasta alternância entre estas duas
forças. Sob o reinado daphilotês o universo tende a tomar-se o ser esfé­
rico e estreitamente unificado de Parménides; sob reinado de neikos,
ele desloca-se numa desordem que lembra a mudança e a tensão caras
a Heraclito. Tais são os princípios que comandam a cosmogonia de
Empédocles; e ele apresenta-a com a riqueza descritiva de um visioná­
rio, mostrando como se formam os corpos e se deixam ir por momentos
a evocações fantásticas da génese: «Empurrava uma grande quantidade
de cabeças sem pescoço, erravam braços isolados e privados de ombros,
e olhos andavam ao acaso, com esforço de frente...» (fr. 57). Mas esta
construção imaginária também é uma tentativa de explicação científica;
e as explicações de Empédocles sobre a sensação, para a qual é preciso
fazer intervir emanações invisíveis e poros, já é, em muitos aspectos,
moderna.
Esta preocupação científica combinava-se, tal como no pitagorismo
cuja influência Empédocles manifestamente sofreu, com uma aspiração
à purificação da alma, de que o outro poema é a expressão. Empédocles
acreditava, como os órficos e os pitagóricos, na metempsicose; como
eles, recomendava que se abstivessem de todos os alimentos encarnados
e acrescentava outros interditos (como as favas); descrevia as regiões do
além, de que tinha o privilégio de se recordar.
A poderosa visão cósmica e o fervor iniciático combinavam-se para
fazer dos poemas de Empédocles uma obra difícil, confusa, mas surpre­
endente: encerra com brilho a época do pensamento arcaico.
Se lhe ficou associado foi talvez porque era Siciliano e não partici­
pava no movimento de ideias de que, depois das guerras médicas, Atenas
foi o palco: os seus compatriotas, os retores da Sicília, o seu compatriota
Górgias encontraram ali o terreno para desenvolver a sua influência.

84
A É PO C A A R C A IC A

Com efeito, agora, que Atenas se tomara no centro reconhecido da


vida grega, podia-se pressentir o espírito que ela desenvolveria: Sólon,
em plena época arcaica, dera o exemplo de uma reflexão totalmente
moral e política, totalmente à medida do homem. Esse é o tipo de pen­
samento que se difunde na Atenas do século v, tanto no domínio da filo­
sofia, como nos géneros dramático e histórico. E o movimento neste
sentido não fez mais do que acentuar-se ao longo deste século, passando
da época da arrogância à das dúvidas e das apresentações de questões.

85
CAPÍTULO III

O INÍCIO DO SÉCULO V:
NASCIMENTO DA HISTÓRIA
E DA TRAGÉDIA
O advento da vida política organizada coincidiu com a vitória alcan­
çada sobre o invasor persa em 490 e 480. Toda a Grécia estivera em peri­
go; Atenas presidira à salvação de todos e daí retirara simultaneamente
glória e poder. É o início de uma era ao longo da qual a literatura grega
será ateniense. Esta literatura será, também, essencialmente política e
dirigir-se-á à cidade. Os dois traços são bem ilustrados pelos dois gran­
des géneros que nascem então e que iriam sobreviver em todas as nossas
literaturas: a história e o teatro, trágico ou cómico. Na primeira metade
do século v, estes géneros foram ilustrados em Atenas por um homem
vindo da Jónia, Heródoto, e por um Ateniense, Esquilo. Ambos trataram
as guerras médicas, onde Esquilo combatera e à qual consagrou uma tra­
gédia - a primeira de todas as tragédias conservadas.

I.
ESQUILO

O facto de Esquilo ser para nós o mais antigo dos autores trágicos
não nos deve enganar. Esquilo nasceu em 525 e a primeira representa­
ção trágica verificada nas Dionisíacas atenienses é de 534. Houve, antes
de Esquilo, autores ilustres, cuja obra se perdeu, como Téspis, Pratinas
e Frínico: o género trágico já existia.
Este género tem, sem dúvida, uma origem religiosa. As representa­
ções faziam parte do culto de Dioniso; e é provável que a tragédia, tal
como a comédia, fosse o alargamento de um rito.

89
C O M P E N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

Os começos deste género não parecem ter sido atenienses (as tradições
falam de Aríon, em Corinto, ou de coros habituais em Sícion). Em contra­
partida, estes começos parecem associados à existência da tirania. Em Ate­
nas, tiveram lugar com Pisístrato. Uma autoridade forte, apoiada no povo,
deu aos antigos ritos um alcance nacional. E o facto é que a tragédia assu­
me um lugar na vida da cidade: todo o povo assiste; a representação é pre­
vista e organizada pelos serviços do Estado. Dirigindo-se ao povo reunido,
os poetas trágicos exprimem-se como cidadãos e falam aos cidadãos.
Esta dupla origem e este duplo carácter explicam, em certa medida,
o conteúdo das tragédias gregas. Têm sempre uma dimensão religiosa,
preocupam-se com os deuses, por vezes mostram-nos, também mostram
manifestações de culto e interrogam-se sempre, mais ou menos, sobre a
vontade divina. Mas, por outro lado, pondo sempre em cena dados míti­
cos tomados de Homero ou de poetas posteriores, inserem quase sempre
uma presença colectiva: cidadãos, guerreiros, símbolos de todo o grupo
por que os heróis são responsáveis e cuja infelicidade prolonga a sua.
A estrutura das tragédias gregas permitia facilmente realçar este
duplo aspecto, graças à presença do coro. Com efeito, qualquer tragédia
grega é composta por dois elementos profundamente distintos. As per­
sonagens movem-se na cena; exprimem-se em versos falados (em geral,
trímetros jâmbicos); participam numa acção. Mas há igualmente um coro
de doze ou quinze pessoas (inicialmente talvez cinquenta), que evolui
na orchestra, canta segundo os metros líricos e, não podendo participar
na acção que se desenrola na cena, contenta-se em comentá-la. E-lhe
fácil, assim, isolar o sentido religioso e pontuá-lo com preces. Por outro
lado, também lhe é fácil figurar o grupo, cidade ou exército, cuja sorte
está ligada à das personagens. A tragédia faz, assim, alternar os «episó­
dios» da acção com os cantos do coro que a introduzem, interrompem,
concluem. O canto de introdução, ou de entrada, é o parodos; o canto
de conclusão, ou de saída, é o êxodos; os outros cantos são os stasima,
cujo número vai de dois a cinco.
Na evolução da tragédia, o coro, que deve ter sido, no início, o ele­
mento predominante, não cessou de perder importância, enquanto as
personagens se tomavam mais numerosas e matizadas (Esquilo foi o pri­
meiro a usar dois actores, Sófocles a utilizar três). Com o desenvolvimento
da intriga, as tragédias, inicialmente agrupadas em trilogias, bastaram-se

90
N A S C IM E N T O D A H IS T Ó R IA E D A T R A G É D IA

mais a si mesmas e os autores apresentaram muitas vezes a concurso três


tragédias independentes. Mas os títulos confirmam bem o papel dos
coros, que designam muitas vezes (como As Suplicantes, As Coéforas,
etc.). Esta função permanece a grande originalidade da tragédia grega;
e quando tende a desaparecer, a tragédia, na verdade, morre.
Esta evolução traduziu-se ao longo de todo o século v e e m obras
muito numerosas. Sobre as centenas e centenas de tragédias que foram
representadas em Atenas, conservaram-se mais de trinta e duas: sete de
Esquilo, sete de Sófocles e dezoito de Eurípides (se admitirmos que o
Reso é de Eurípides). E terrivelmente pouco. No entanto, a evolução é
clara. E Esquilo, que é o mais antigo dos três, é também aquele no qual
os coros são mais amplos e a acção mais simples, tal como é também
aquele no qual o duplo alcance da tragédia, religoso e colectivo, é o mais
constantemente marcado.

1. Vida de Esquilo

Esquilo nasceu em 525, trinta anos antes de Péricles e de Sófocles,


quarenta e cinco antes de Eurípides. Nasceu em Elêusis, a cidade dos
mistérios (o que não significa que tenha sido iniciado neles). Parece ter-
-se iniciado como autor trágico com a idade de vinte e cinco anos e ter
tido a sua primeira vitória em 484.
Mas o facto essencial da sua vida é que combateu em Maratona em
490, depois ainda em Salamina, em 480. E tudo o que refere um epitáfio
que passa por ser dele e apenas glorifica nele o combatente. De facto,
todo o seu pensamento iria ficar marcado por esta grande experiência.
E a primeira tragédia dele que nos foi conservada destinou-se precisa­
mente a comemorar a batalha de Salamina: trata-se dos Persas. A tragé­
dia foi representada em 472, oito anos depois da batalha; Esquilo tinha
mais de cinquenta anos.
Sabe-se que foi a Siracusa fazê-la representar e compôs uma tragé­
dia destinada a celebrar, como a Pítica I, de Píndaro, a nova cidade do
Etna. Foi também na Sicília que terminou a sua vida, em 456, sem que
se saiba alguma coisa séria sobre as causas desta partida ou sobre a sua
morte. Foi enterrado em Gela.

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C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

Mas, de 472 a 458, a carreira de Esquilo prosseguiu em Atenas, bali­


zada por vitórias (apesar dos primeiros sucessos de Sófocles, que triun­
fou em 468): a sua última vitória foi com a Oresteia, em 458.

2. A obra de Esquilo

A tradição atribuía a Esquilo entre setenta e noventa tragédias: restam-


-nos sete. Quanto ao resto, temos de nos contentar com os títulos, com
pequenos fragmentos ou recordações de cenas célebres, que permane­
ceram na memória (como o longo silêncio doloroso de Aquiles no início
dos Frígios ou o Resgate de Heitor, ou ainda a espera sofrida das duas
mães divinas, Tétis e Eos, na Pesagem das Almas ou Psicostasia). Por
sorte, encontra-se por vezes um novo fragmento (como, em 1932, uma
passagem da Níobe e uma outra dos Mirmidões, ou então fragmentos
que permitem imaginar o talento de Esquilo no drama satírico que se
seguia às três tragédias).
Das sete tragédias conservadas, cinco foram datas com precisão:
Os Persas (472), Os Sete contra Tebas (467) e as três peças que consti­
tuem a Oresteia (458). A tragédia As Suplicantes, que se acreditou duran­
te muito tempo que era muito antiga, situa-se provavelmente em 463.
Quanto ao Prometeu, ignoramos tudo sobre a sua data e até a sua auten­
ticidade foi contestada. Estas sete tragédias comportam por outro lado,
a par de uma trilogia inteira, dois inícios de trilogia (As Suplicantes, Pro­
meteu agrilhoado), o final de uma trilogia (Os Sete contra Tebas) e uma
peça isolada (Os Persas).
Os Persas estão, assim, à parte e por muitas razões. É a única tra­
gédia grega conservada cujo assunto não é mito, mas um facto histórico
recente. O facto tinha precedentes: Frínico tratara o mesmo assunto nas
suas Fenícias. Mas é importante ver que Esquilo, ao tratar este aconte­
cimento recente, dá-lhe, de facto, a grandeza do mito. Como o seu ante­
cessor, mostra, não a vitória grega, mas a derrota persa. A peça quase não
tem acção: o coro, constituído por anciãos persas, e Atossa, a mãe do rei
Xerxes, esperam com ansiedade notícias da expedição: um mensageiro
revela-lhes todas as fases do desastre; Dario, regressando dos mortos por
chamamento dos seus, explica este desastre; e o regresso do rei vencido,

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N A S C IM E N T O DA H IS T Ó R IA E DA T R A G É D IA

entre luto e lamentos, encerra a peça. Em tudo isto, nada que exalte o
orgulho de uns ou de outros: assiste-se a um desmoronamento, que Esqui­
lo deixa entender, de uma ponta à outra, que emana de uma decisão divi­
na e constitui um castigo há muito reservado. O grande luto pelos Persas
mortos em combate faz tremer, como sinal do que os deuses podem, na
sua justiça, infligir aos homens.
Nos Sete contra Tebas ainda se trata de guerra: Etéocles defende Tebas,
que o seu irmão Polinices cerca; com efeito, a maldição de Edipo pre­
tende que os seus dois filhos se defrontem e se dêem mutuamente a morte.
Também aí há pouca acção: preparativos, uma longa descrição dos escudos
dos sete chefes sitiantes e dos seus adversários; termina com a partida
de Etéocles, que vai combater Polinices; pouco depois, ficamos a saber da
morte de ambos. A angústia das mulheres de Tebas enche a peça; ela é
tida em respeito por Etéocles, um Etéocles patriota, firme, piedoso, que,
contudo, se quebra quando se cumpre a maldição e que, como Os Persas,
quando a vontade divina se realiza depois de toda uma série de faltas e
de males.
As Suplicantes apresentam as cinquenta filhas de Dánao fugindo à
frente dos seus primos egípcios, que querem casar com elas à força. A sua
angústia lembra a das mulheres de Tebas nos Sete. Obtêm a protecção do
rei de Argos, Pelasgo, que a isso se decide com algum esforço: ele ajuda-
-as porque receia os deuses. Apesar da chegada de um arauto egípcio
ameaçador, ele irá salvá-las; mas a sua própria paixão tem algo de exces­
sivo, e assim anunciam já o seu crime e o seu castigo, que devia consti­
tuir a sequência da trilogia.
O Prometeu Agrilhoado desenrola-se no mundo dos imortais: Pro­
meteu é alvo da cólera de Zeus, por ter, apesar das ordens, ajudado os
mortais. No prólogo, Cratos e Bia (a Força e a Violência) pregam-no a
um rochedo. Aí será visitado pelo coro das Oceânides, emudecido de
piedade pelo seu pai Oceano, conselheiro que dá lições, e por Io, a quem
persegue, também, a cólera divina. Esta tragédia apresenta, assim, um
Zeus cruel e tirano. Muito embora a sequência da trilogia tenha condu­
zido a um pacto entre Zeus e Prometeu e à libertação deste último, este
aspecto de Zeus chocou; aliado a particularidades de forma (que tomam
o Prometeu mais fácil do que as outras tragédias), fez duvidar da auten­
ticidade da piedade. No entanto, não devemos omitir que temos aqui

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C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

apenas um início: o Prometeu situa-se numa atmosfera de teogonia; e o


facto é que a Oresteia mostra suficientemente como é que, em Ésquilo,
a ordem só se instaura depois de regateios, de melhoramentos e de uma
progressiva ordenação. Do mesmo modo, o próprio Prometeu não está
mais isento de faltas do que as suplicantes da outra peça.
A Oresteia mostra-nos, na verdade, como é que um sentido tão pro­
fundo como aquele para o qual Ésquilo tende, necessita de toda uma tri­
logia para ser elaborado. No Agamémnon, Clitemnestra mata o rei, seu
marido: vinga a morte de Ifigénia; comporta-se também como mulher
adultera; mas ela é sobretudo o instrumento de uma justiça divina que o
coro pressente ao longo da peça, ao pensar nas diversas faltas da guerra
de Tróia e nos crimes anteriores, que poderão ter irritado os deuses. Nas
Coéforas, Orestes e Electra, para vingar o pai, matam a sua mãe: é esta
a ordem de Apoio. De acordo com tais regras, uma morte deveria sem­
pre suceder a outra; mas as Euménides apresentam um julgamento de
Orestes perante o Areópago ateniense, criado expressamente (aquando da
representação os democratas acabavam de limitar os seus poderes): a
firmeza de Atena prevalece sobre a raiva sanguinária das Erínias. A ordem
da cidade, imposta pelos deuses do alto, triunfa sobre vinganças cegas.
A peça começa em Delfos mas termina nesta Atenas à qual Atena dá,
solenemente, os seus conselhos. Embora a obra de Ésquilo, que para nós
começa com a violência de Atenas sobre os Bárbaros - que ela alcança
graças aos deuses - , termine com a esperança da sua vitória sobre todas
as desordens interiores susceptíveis de a ameaçar, mas que ela deve
dominar, por ordem de Atena e graças a ela.
Estes dois aspectos - cívico e religioso - definiram o essencial da
inspiração de Ésquilo.

3. A inspiração de Ésquilo

Ésquilo, que viveu as guerras médicas, o desbaratar dos Bárbaros,


o incêndio de Atenas, evocou com raro poder a brutalidade do combate,
o saque das cidades e a morte dos combatentes: Os Persas contam des­
crições inesquecíveis, como o combate naval em que os Gregos «como
se de atuns ou outros peixes soltos da rede se tratasse, ferem-nos, arrasam-

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N A S C IM E N T O DA H IS T Ó R IA E DA T R A G É D IA

-nos, com pedaços de remos, fragmentos de destroços!...» (424 ss.)(').


Do mesmo modo, os Sete contra Tebas clamam o terror de ver o seu país
«entregue ao fragor dos cascos, que se aproxima, voa e troa, como a tor­
rente invencível que bate o flanco da montanha» (84 ss.). E a guerra de
Tróia, devido à pesada responsabilidade que faz recair sobre Páris e
Helena, mas também sobre Agamémnon, preenche o Agamémnon: «Ares,
o cambista de cadáveres, que segura a balança no recontro das lanças,
envia de Ilio às famílias, produzido pelo fogo, um pesado pó, suscitador
de lágrimas amargas - umas de cinza cómoda em que se transformaram
homens...» (437-444)(2).
No entanto, a guerra que Esquilo conheceu era uma guerra justa e
heroica. Vemos também, no seu teatro, a grande maré de violência que
a guerra representa, quando se vem quebrar perante uma vontade de
resistência organizada, encarnada num chefe heroico: como Etéocles,
nos Sete contra Tebas, antes de ceder à maldição; ou então, Pelasgo, nas
Suplicantes: também ele é firme e piedoso e pensa, antes de tudo, «na
cidade». Ou então, a violência vem chocar com a união de um povo,
senhor de si mesmo. E já notável que um homem como Pelasgo não
queira decidir nada sem consultar a cidade: ao coro, que acredita que
tudo depende dele («És tu, a cidade; és tu, o Conselho»), ele explica que
não: se há o risco de a mancha atingir a cidade, «que todo o povo se
ocupe a descobrir o remédio» (366). Com mais razão, Esquilo lembra,
numa palavra, nos Persas, que os Atenienses «não são escravos nem
súbditos de ninguém» (243).
Estas últimas indicações mostram suficientemente que Esquilo não
desprezou os aspectos mais propriamente interiores da vida da cidade.
Se, no Prometeu, aviltou a tirania de Zeus e mostrou, além disso, o ideal
da cidade senhora de si mesma, também tocou, pelo menos uma vez nas
tragédias conservadas, nos problemas do seu tempo e deu conselhos aos
seus, pela voz de Atena. Os dois grandes desejos que esta formula, no
final das Euménides, são o respeito pela ordem e a recusa das guerras

(') N.T.: Para as citações dos Persas, usámos a tradução portuguesa: Esquilo, Persas
(tradução de Manuel de Oliveira Pulquério), Lisboa, Edições 70, 1998.
(2) N.T.: Para as citações das tragédias que integram a Oresteia, usámos a tradução
portuguesa: Esquilo, Oresteia (tradução de Manuel de Oliveira Pulquério), Lisboa, Edições
70, 1991.

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C O M P Ê N D IO DE L IT E R A T U R A G R E G A

civis. O respeito pela ordem é encarnado pelo Areópago, cuja fundação


Esquilo apresenta com uma rara solenidade. Para ele, trata-se de preser­
var o próprio princípio do medo, que permite que a liberdade se expanda
sem resultar na desordem. Atena repete aí o que dizem as Erínias, ou quase:
«Uma forma de governo intermédia entre a anarquia e o despotismo, eis
o que eu recomendo aos cidadãos que pratiquem e venerem, e ainda que
não expulsem completamente o temor da sua cidade. Quem observará a
justiça, se nada tiver a recear?» (696-699). Quanto à preocupação de
evitar a guerra, ela exprime-se por várias vezes, e Atena, para o conseguir,
pede o auxílio das Erínias, tomadas Euménides, ou Benfeitoras.
Tais conselhos inseriam-se certamente numa actualidade política;
no entanto, todas as experiências feitas para interpretar Esquilo em ter­
mos de actualidade e de compromisso continuam a ser pouco frutuosas.
E claro, com efeito, que ele vive, pensa e escreve como cidadão; mas
também é claro que, para ele, a opção política é, antes de mais, moral.
Ele não quer nem a hybris da conquista, nem a hybris dos tiranos, nem
a hybris de um povo sem disciplina: ele vive, como cidadão, o ideal anti­
go que vimos desenvolver-se em Hesíodo, Sólon e Píndaro; e este é tanto
mais caro quanto as guerras médicas acabavam de lhe consagrar o triun­
fo e que as lutas da jovem democracia se arriscavam a comprometer o
seu equilíbrio.
No entanto, seria truncar a inspiração de Esquilo apresentá-lo a uma
luz simplesmente humana. Aquilo que condena a hybris é o verdicto
divino; o que pune Xerxes, o que salva os Gregos, o que explica a morte
de Agamémnon e, depois, a de Clitemnestra, o que guia Pelasgo, o que
age, decide, dirige, é, em todo o lado e sempre, a vontade dos deuses.
Esquilo mostra-os às vezes (no Prometeu ou nas Euménides)', mas
mesmo noutros locais, a sua presença faz-se sentir. Em Esquilo há sonhos
(o de Atossaou ou de Clitemnestra), sobressaltos proféticos (Cassandra),
mortos que surgem pelo apelo dos vivos (nos Persas), ou cuja acção
parece decisiva (nas Coéforas). E as personagens, que oram e suplicam,
sabem-no. E os coros, que não deixam de implorar aos deuses ou de mos­
trar a sua vontade na obra, sabem-no.
Estes deuses são múltiplos, mas não estão, de todo, em desacordo
entre si: unem-se, frequentemente, numa grande força, única e soberana;
a maioria mais não faz do que representar Zeus. Mas, ao mesmo tempo, o

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N A S C IM E N T O DA H IS T Ó R IA E DA T R A G É D IA

poder deste último parece sem limites. Para o invocar, Esquilo associa
aos termos rituais fiadas de louvores com grandiosas ressonâncias: «Senhor
dos senhores, Bem-Aventurado entre os bem-aventurados. Poder sobe­
rano entre os poderes, do cimo da tua felicidade, Zeus, ouve-nos!» (Supli­
cantes, 524 ss.).
Este poder tão grande é, naturalmente, terrífico. Zeus pode ser o Sal­
vador; mas é sobretudo aquele cuja cólera pode, em qualquer momento,
destruir tudo: «Zeus precipita os mortais do alto das suas soberbas espe­
ranças no nada; mas sem estar armado com violência: nada provoca
esforço num deus. O seu pensamento pavoneia-se nas alturas e mesmo
daí realiza os seus desígnios, sem deixar o seu assento sagrado» (Supli­
cantes, 95-102).
Um poder tão temível explica o perpétuo tremor em que vivem as
personagens: elas nunca esquecem que Zeus pode, em qualquer momen­
to, destruí-las. Os sinais que anunciam o seu furor fazem-nas tremer; a
incerteza também; e até a catástrofe indica uma cólera divina que não se
sabe se estará, por fim, saciada.
Seria um mundo de desespero, se esta cólera divina não estivesse
fundada na justiça. Mas, tal como as violências da guerra vinham emba­
ter contra a autoridade viril dos desfensores, também a omnipotência
divina tinha de tranquilizador que se exercia de acordo com uma ordem.
A justiça divina não é uma justiça simples. Não se exerce ao nível
do indivíduo; porque os bons pagam pelos maus e os filhos pelos pais.
Em Esquilo o tempo é pensado em grandes conjuntos; e muitas vezes as
faltas, cuja paga a tragédia mostra, remontam a várias gerações; é, aliás,
o que justifica o próprio uso da trilogia. De Laio a Edipo e aos filhos de
Edipo, de Tântalo e Tiestes a Agemémnon e a Orestes, estabeleceram-se
longas séries, ao longo das quais novas faltas atrasam, mas agravam, o
castigo. E, ainda mais, os deuses estendem armadilhas aos homens que
querem perder: a falta, inspirada pela Ate (o desvario divino), toma-se na
condenação daquele que por ela se deixa prender. Tudo isto confunde e
faz com que esta justiça divina esteja toda ela envolta em mistério: «As vias
do pensamento divino atingem o seu fim por meio de sombras cerradas
e espessas, que nenhum olhar seria capaz de penetrar» (Suplicantes,
93-95). Mas o mistério não implica nenhuma gratuidade, nem inspira
qualquer dúvida.

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Seja cedo ou tarde, no culpado ou na sua raça, os deuses punem a


hybris. E realizam, deste modo, um acto de justiça. A sua atitude não
corresponde, em Esquilo, à simples inveja divina contra tudo aquilo que
se ergue muito alto (inveja que o persa Artabano define, em Heródoto).
O coro do Agamémnon precisa perfeitamente que os deuses se queixam,
não das situações demasiado prósperas, mas dos pensamentos ímpios.
O teatro de Esquilo é uma afirmação apaixonada da justiça divina; e não
há uma única peça (para além do Prometeu, pelas razões apontadas) em
que não fosse possível colher em abundância alusões em que é procla­
mada estrondosamente a existência desta justiça.
Ela constitui até a própria mola das tragédias; dado que qualquer
desastre tem um sentido, as personagens são apanhadas na angústia de
fazer o bem, no horror de ter agido mal e de compreenderem o seu erro
muito tarde. Deste modo, cada gesto recebe como que um prolongamen­
to sagrado; e o homem é terrivelmente responsável sem ser, contudo,
senhor do seu destino.
Mas, ao mesmo tempo, a existência desta justiça constitui o funda­
mento da moral. O receio age em função dos deuses, tal como age em
função da sociedade humana. E a própria infelicidade torna-se numa
lição. Esquilo partiu de uma ideia banal entre os Gregos, de acordo com
a qual cada um é instruído pela experiência e pelos desgostos; mas ele
enriqueceu profundamente o seu sentido. No início da Oresteia, os anci­
ãos de Argos evocam a sucessão dos deuses que conduzem ao reino de
Zeus e permitem desde logo o aperfeiçoamento pelo sofrimento: «Foi
Zeus que guiou os homens para os caminhos da prudência, estabelecen­
do como lei válida a aprendizagem pelo sofrimento. Quando, em vez
do sono, goteja diante do coração uma dor feita de remorso, mesmo a
quem não quer chega a sabedoria. E isto é favor violento dos deuses que
se sentam ao leme celeste» (176-184). O termo «remorso» talvez seja
demasiado moderno; mas o pensamento ultrapassa em muito a simples
experiência prática que repousa na razão. A fé de Esquilo dá-lhe a sua
verdadeira dimensão.

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4. A arte de Esquilo

Concebemos que uma obra, animada por um sentido tão elevado,


descure todos os outros interesses: a psicologia das personagens conta
menos do que a causalidade divina e é-lhe sacrificada; os ressaltos da
acção teriam menos sentido do que a progressão una e inexorável que
conduz a cólera divina ao seu termo. O teatro de Esquilo está cheio de
longas cenas estáticas, de longas narrativas, de longos silêncios obser­
vados por certas personagens, de longos cantos do coro que procuram,
na angústia, o sentido da acção em curso.
Isto supõe um sentido de amplitude e grandeza que se alia à majes­
tade da inspiração. As tragédias organizam-se em trilogias, as estrofes
organizam-se em conjuntos fortemente esboçados: o exemplo é mais belo
é-nos dado pelo canto de entrada do Agamémnon. O coro não pronuncia
menos de 223 versos de enfiada, alternadamente salmodiados e cantados,
que se repartem por vários grupos: primeiro, dez grandes frases anapésti-
cas correspondem à entrada propriamente dita. Depois, começa um grande
canto de meditação sobre as inquietantes condições em que partiu a expe­
dição contra Tróia: este canto é constituído por uma tríade e cinco pares
de estrofes. A tríade (em ritmo dactílico misturado com jambos) evoca de
forma solene o presságio inicial e as ameaças que se lhe associam. Uma
mudança de ritmo corresponde a uma invocação a Zeus: ela está colocada
no centro do conjunto. Depois, regressamos à narrativa e ao sacrifício de
Ifigénia, e isto com uma nova mudança de ritmo. Cada elemento está no
seu lugar, num conjunto de uma rara amplitude. Do mesmo modo, Esqui­
lo gosta de misturar a um diálogo lírico, ou kommos, as personagns e o
coro. O canto dialogado das Coéforas, em que Orestes, Electra e o coro
invocam Agamémnon no seu túmulo, não ocupa menos de 160 versos; e
as estrofes estão repartidas entre os interlocutores segundo uma ordem sub­
tilmente variada e sempre regular. Sucedem-se-lhe quinze elementos líri­
cos, dos quais nenhum poderia ser modificado numa única sílaba.
No entanto, a rigidez da acção e a majestade da composição sugeriam
muito erradamente a menor frieza: nada é mais intenso ou mais apaixo­
nado do que a arte de Esquilo. E até estes grandes conjuntos, que acabam
de ser mencionados, estão carregados de uma violência de sentimentos
e de uma força dificilmente sustentáveis.

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Esta força manifesta-se a todos os níveis da arte de Esquilo.


A própria simplicidade das linhas faz com que uma mesma angústia
se desenvolva de forma contínua; e o acto único que acaba de marcar a
crise recebe um relevo acrescido. Quando Etéocles parte para combater
o seu irmão, quando Clitemnestra mata Agamémnon, ou Orestes mata
Clitemnestra, fomos preparados para sentir em toda a sua gravidade o
alcance de um tal gesto.
Além disso, Esquilo não hesita em mostrá-lo, em mostrar tudo. O seu
teatro procura os efeitos espectaculares. Mostra Dario surgindo do seu
túmulo, Prometeu pregado no seu rochedo, Io andando às voltas sob a
ameaça do moscardo que a persegue. Mostra as Erínias, cuja visão passa
por ter transtornado o público. Mostra ainda a violência no seu paroxis­
mo, os Egípcios procurando tomar à força as suplicantes, Cassandra em
pleno delírio, Orestes brandindo a espada contra a mãe. A intensidade
dramática impõe-se directamente.
Ela também se exprime pelas palavras. Em Esquilo, as descrições dos
combates, em que os verbos se ferem num crepitar furioso, estão cheias de
violência. As evocações de presságios, de sonhos, de receios, omamentam-
-se com a majestade do estilo oracular e assumem, assim, um carácter
mais solene e angustiante. Enfim, o seu vocabulário reflecte maravilho­
samente esta mistura de grandiosidade sagrada e de realidade muito pró­
xima, que lhe é tão peculiar. Aristófanes riu-se, nas Rãs (914-915), dos
longos conjuntos líricos de Esquilo; mas também se riu das suas pala­
vras raras e surpreendentes: «palavras do tamanho de bois, palavras com
sobrecenho e penacho, umas com cara de meter medo, desconhecidas
dos espectadores» (924-926) (3). Palavras compostas, perífrases, todos
os meios são bons para confundir e ferir. Além disso, joga com as pala­
vras, aproximando vocábulos com o mesmo início, ou indo ao encontro
de palavras que se negam a si mesmas, como aquelas «naus [que] já não
existem» (680: naes anaes). Há, aliás, um sentido agudo das palavras,
visto que ele acumula voluntariamente, nos Persas, nomes próprios com
sonoridades exóticas, que evocam a dor dos Bárbaros de uma forma
simultaneamente concreta, lancinante e confusa.

(3) N.T.: Para as citações das Rãs, usámos a tradução portuguesa: Aristófanes, As Rãs
(prefácio, tradução do grego, introdução e notas de Américo da Costa Ramalho), Lisboa,
Edições 70, 1996.

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Mas o poder do estilo de Esquilo vem, antes de mais, do emprego


que faz das imagens e dos sentidos de que estas se revestem. Com efeito,
estamos nos antípodas das imagens homéricas. Estas eram longas com­
parações que evocavam um universo frequentemente quotidiano e conhe­
cido: as de Esquilo são, com muita frequência, breves metáforas que
exprimem uma verdadeira identificação entre os dois termos, que deixa
ver um através do outro e, assim, revela a sua natureza.
Nas violências humanas surgem violências exercidas pelos animais
ou contra eles. Ifigénia debate-se «como uma cabra»; os Persas são mor­
tos no mar «como atuns»; Clitemnestra é a vaca que se apaixona pelo
touro, ou então é a moreia ou a víbora; todo este mundo animal vive de
perseguições e de lutas. Foi, até, possível aproximar várias tragédias de
Esquilo das imagens principais (uma para cada peça), tiradas maiorita­
riamente deste domínio: encontramos assim, no livro de J. Dumortier «a
fera apanhada no laço», «o estrangulamento da serpente», «a matilha
enganada...».
Do mesmo modo, as violências da guerra ou as ameaças da infeli­
cidade animam-se sob a forma de tempestades no mar, de brutais tor-
mentas, de vaga irresistível, de lâminas que se agitam. A violência e o
sofrimento crescem tanto como os termos cósmicos.
Mas, sobretudo, a grande lei moral que inspira a obra de Esquilo
traduz-se por metáforas que dão vida à falta, à mancha, ao crime. Isto vai
desde as indicações concretas, que falam do «sangue coagulado que nunca
mais correrá», ou do palácio «que sente o crime e o sangue derramado»,
até às sugestões mágicas e terríficas da falta que, «entre os maus, faz nas­
cer uma nova desmedida, cedo ou tarde, quando chega o dia marcado
para um novo nascimento»; a própria Erínia introduz este novo crime,
este «filho de crimes antigos que entra por sua vez em casa»...
A estas gestações monstruosas corresponde, no homem, um terror
espontâneo que anima o seu corpo com uma vida própria. «O meu cora­
ção grita, grita dentro de mim!», brada Xerxes nos Persas (991); e o coro
do Agamémnon horroriza-se sem compreender: «Porque é que este terror
assedia sem tréguas o meu coração pressago? Sem ordem nem salário,
o meu coração faz de profeta...» (975-979). A lei misteriosa da justiça
divina toma-se viva e concretamente sensível: do mesmo modo, o sen­
tido moral que desperta esta justiça brota espontânea e misteriosamente.

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As metáforas de Ésquilo dão ao seu pensamento a força de uma revela­


ção e fazem com que a sintamos sem intermediário.
A arte de Ésquilo é, assim, tão concreta como visionária. Os seus
sucessores serão mais fáceis de compreender e mais simples. A sua arte
será diferente. Mas serão a continuação de Ésquilo na medida em que,
como ele, interrogar-se-ão, a propósito dos mitos, sobre o destino do
homem em relação com os deuses e no seio das cidades. Os deuses
afastar-se-ão, a cidade dividir-se-á; mas a interrogação persistirá. E é
esta presença que faz de Ésquilo, de acordo com a expressão de Gilbert
Murray, o «criador da tragédia».

II.
HERÓDOTO

Tal como Ésquilo é o criador da tragédia, Heródoto é «o pai da His­


tória»: este título foi-lhe dado por Cícero. Como Ésquilo, ele foi profun­
damente marcado pelas guerras médicas. Estes são dois motivos para os
aproximar. No entanto, eles não nos devem fazer esquecer que Heródoto
é, cronologicamente, muito posterior a Ésquilo. Se se situa o seu nasci­
mento em 485, isso faz quarenta anos de diferença. Heródoto tinha ape­
nas cinco anos aquando da batalha de Salamina. Conheceu Atenas na
época de Péricles e conheceu o início da guerra do Peloponeso. Dos três
trágicos, é de Sófocles que ele está mais próximo; foi, aliás, seu amigo.
Se pôde ser chamado pai da História, ele não inventou, mais do que
Ésquilo, o género a partir de nada. Na Ásia Menor do século vi difúndira-
-se um grande desejo de conhecimento e a reflexão exercia-se em todos
os domínios; esta começou muito cedo a criticar os dados puramente
mitológicos que havia sobre o passado. Primeiro, quiseram simplesmen­
te estabelecer uma ordem e fixar sucessões: foram as simples crónicas,
as genealogias, as investigações sobre as fundações das cidades. O género
devia permanecer até ao final do século v, com autores como Helânico ou
os que foram chamados Atidógrafos (autores de crónicas sobre a Ática).
Mas outros levaram ainda mais longe a curiosidade e o espírito crítico.
De facto, Heródoto teve um único antecessor digno de menção: Hecateu
de Mileto. Praticou a investigação geográfica (Heródoto fala da sua esta-

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dia no Egipto) e fez um mapa do mundo. Também escreveu Genealogias


e sabemos que aí mostrava um espírito resolutamente crítico: não que­
ria, dizia-se, limitar-se aos «discursos dos Gregos», mas descrever as
coisas «como lhe pareciam verdade». Com efeito, a sua obra perdeu-se,
mas sabe-se, através de fragmentos, que ele procurava explicar certas
lendas maravilhosas de forma racional. Esta dupla preocupação de infor­
mação directa e de crítica reflectida preparou a passagem da narrativa
mítica à história.
A transformação efectuou-se, na verdade, sob a influência das guer­
ras médicas: aí, os acontecimentos deixaram de dizer respeito a uma deter­
minada família, ou determinada cidade; eles puseram em presença todos
os Gregos e a massa do império persa; além disso, fizeram surgir grandes
encadeamentos políticos, como o crescimento deste império, e grandes
imperativos, como a defesa da liberdade ou o auxílio entre cidades. Em
suma, impuseram uma história centrada sobre o presente e sobre a polí­
tica. Através destas duas características, a obra de Heródoto toma-o, efec-
tivamente, no pai da História. Sem dúvida que a sua obra não é uma obra
de história, no sentido em que hoje a entenderíamos; está até afastada das
exigências intelectuais do seu sucessor, Tucídides; está próxima da epo­
peia, muitas vezes ingénua, ou plena de maravilhoso; mas, com ela,
saiu-se do mito para entrar na reflexão racional - na história. A obra de
Heródoto é, aliás, a primeira obra grega em prosa que nos foi conservada.

1. Vida de Heródoto

A vida de Heródoto inscreve-se entre as suas duas pátrias. Nasceu em


Halicamasso, perto de Mileto; era uma cidade dórica; e a sua genealogia
parece comportar elementos cários. Mas o importante é que ele foi for­
mado naquele centro de todas as curiosidades intelectuais que era, então,
a Ásia Menor. Para além deste estímulo essencial, ele deve, sem dúvida,
à sua juventude na Ásia Menor alguma da sua graça tranquila, do seu
gosto pelos contos e pelos desvios das narrações.
No entanto, misturando-se com o seu parente Paníasis (seu tio, segun­
do parece, e autor de poemas épicos) na luta contra o tirano local, bem
cedo teve de deixar a sua pátria. O que sabemos dele, então, é que foi

103
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

um grande viajante. Na sua obra encontramos alusões às suas estadias,


aos testemunhos que recolheu, aos objectos que viu. Estas viagens condu­
ziram-no ao Egipto, até Elefantina, à Babilónia, às costas do mar Negro
e na peugada dos Citas e a muitos outros locais: a sua obra é chamada
Historiê, do termo grego que significa «investigação»; e é claro que estas
viagens formaram o seu espírito histórico: não apenas viu uma região,
regiões; mas falou com as pessoas, confrontou as tradições, apercebeu-
-se das diferenças e dos traços comuns a todos.
Entre estas viagens, importa pôr de lado a permanência, ou as per­
manências, que fez em Atenas. Considera-se que leu ali vários elemen­
tos da sua obra e recebeu recompensas. Certamente teve relações não só
com Sófocles, mas também com Péricles e com a grande família dos
Alcmeónidas. E esta estadia acabou por lhe dar a sua segunda pátria,
visto que se tomou cidadão da colónia pan-helénica fundada, por inicia­
tiva de Péricles, em Túrio, no Sul de Itália (444). Não se sabe se aí per­
maneceu: a sua obra ainda faz referência a acontecimentos posteriores
a 430 e a sua morte é situada cerca de 425. Mas uma coisa é certa, é que
este banho de cultura ateniense, no momento em que Atenas ainda esta­
va no seu apogeu, desenvolveu nele um sentido da política, um hábito
de discussão e um espírito de análise que marcam muito fortemente os
últimos livros da sua obra.

2. A obra de Heródoto

O assunto da obra de Heródoto é o conflito que pôs em guerra os


Gregos e os Bárbaros. História das guerras médicas, pensaríamos? Não
só. De facto, a obra de Heródoto está dividida, para nós, em nove livros
(tendo cada um o nome de uma das Musas); ora a primeira guerra médi­
ca começa no livro VI, § 43. Mesmo que admitamos que a revolta da
Jónia contra a Pérsia, contada no livro V e no início do VI, seja o prelú­
dio da empresa conduzida por Dario contra a Grécia, ficam quatro livros
inteiros antes disso.
Podemos, então, pensar que esses quatro livros são consagrados às
causas do conflito. E, com efeito, o que o próprio Heródoto sugere na
primeira frase da sua obra, quando diz que quis lembrar as grandes acções

104
NASCIMENTO DA HISTÓRIA E DA TRAGÉDIA

realizadas por Gregos e Bárbaros e apresentar «sobretudo a razão por que


entraram em guerra uns contra os outros» (4). Mas esta visão simples das
coisas também não é totalmente exacta. Em linhas gerais, os quatro pri­
meiros livros vão dos antepassados de Creso e de Ciro (ou seja, de cerca
de 700) a 490. Mas a ordem não é meramente cronológica, e o fim pre­
tendido também não é, simplesmente, a explicação das guerras médicas.
Preocupada, seguramente, com a luta entre os Bárbaros e os Gregos
da Ásia Menor, ele começa pela história da Lídia e por Creso: «Este Creso
foi o primeiro dos Bárbaros, de que temos conhecimento, a submeter
alguns Helenos a pagamento de tributo e a fazer de outros seus amigos.
Submeteu os Iónios, os Eólios e os Dórios que habitam na Ásia e fez seus
amigos os Lacedemónios. Antes do reinado de Creso, todos os Gregos
eram livres.» (I, 6). Mas, ao mesmo tempo, Creso foi vencido por Ciro,
o rei dos Persas que, por seu turno, submeteu os Gregos da Ásia (I, 165-
-170). A história de Creso conduz, assim, à relação entre Persas e Gregos.
Enfim, esta história tem um significado moral, por causa das advertências
dadas por Sólon a Creso (29 e seg.) e repetidas a Ciro (85). Elas dão o
tom à obra e à sua filosofia, toda impregnada do sentido de moderação.
O interesse moral representa tanto como o interesse político.
E o que é mais, a história de Creso interessa ao autor por si mesma.
A narrativa contém precisões sobre as origens de Creso - como encon­
traremos depois sobre as origens do poder de Ciro, ou sobre os costumes
dos Persas: a curiosidade de Heródoto recua ao passado enquanto tal,
independentemente da análise das causas; a propósito de tudo, ela pre­
tende sempre remontar o mais possível às origens e reunir o maior núme­
ro possível de informações sobre os costumes de cada povo.
Este episódio inicial liga-se, então, ao conflito entre Gregos e Bár­
baros; mas, no seu conteúdo, afasta-se com frequência; e é revelador do
modo como Heródoto mistura sempre a informação enquanto tal e a pre­
ocupação moral, histórica ou etnográfica.
Este traço encontra-se nos episódios seguintes, que consistem em
seguir o crescimento do império persa, fazendo, de cada vez, um verda-

(4) N.T.: Para as citações do livro I das Histórias, usámos a tradução portuguesa:
Heródoto, Histórias, livro I (introdução geral de M“. Helena da Rocha Pereira; introdução
ao livro I, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira e Ma. de Fátima Silva), Lisboa,
Edições 70, 1994.

105
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

deiro pequeno tratado histórico e descritivo a propósito dos diversos


povos que a Pérsia submeteu. O Egipto ocupa o livro II. Depois, a pro­
pósito de Dario, há um tratado sobre os Citas e um outro sobre a Líbia:
só por si, ambos constituem o livro IV.
Importa ainda acrescentar a isto que, a propósito de embaixadas e
de alianças, Heródoto trata, na forma de longos parêntesis, a história de
Esparta e a de Atenas (I, 56-70; V, 39-96); que também conta, por mera
associação cronológica, os conflitos entre Esparta e Polícrates de Samos
(III. 39-47) e as intrervenções de Corinto no mesmo domínio (48-53).
Aí, Heródoto fala do tirano de Corinto, Periandro; mas já falara dele,
devido ao seu papel no livro I; e encontraremos, na forma de um discur­
so, um longo exame da tirania em Corinto, no livro V (92).
Deste modo, a obra de Heródoto, embora centrada nas guerras médi­
cas, dá milhares de voltas antes de lá chegar; e a estrutura da sua obra é
mais flexível do que firme. Ela permite ao investigador que era Heródo­
to que apresente uma grande quantidade de informações diversas; mas
ele apresenta-as de acordo com uma ordem assaz arcaica, que consiste
em acumular os parêntesis para voltar, no final das contas, ao ponto de
onde partira.
Esta estrutura tão particular fez pensar que Heródoto teria tido a
possibilidade de compor, inicialmente, estes pequenos «tratados», ou
logoi, de forma independente. Só depois é que teria tido a ideia de os
associar num todo. Esta ideia, exposta outrora por F. Jacoby, dá perfei­
tamente conta do carácter fechado de cada exposição; no entanto, a hipó­
tese é cada vez menos admitida. Sucede que, ainda para além desta
hipótese, uma certa diferença de tom e de extensão distingue estes pri­
meiros livros com uma composição solta dos livros bem esboçados rela­
tivos às guerras médicas. O que é que devemos pensar? Uns (como
Immerwahr) tendem a minimizar esta diferença, atribuindo-a ao assun­
to tratado; outros (como Fomara) vêem nela a marca de uma evolução.
De qualquer maneira, a solidez da narrativa aumenta para o final. Isto
pode ligar todo o conjunto à importância dos acontecimentos relatados,
à sua repercussão no mundo de Heródoto, à qualidade mais segura da
informação e à provável influência das discussões que se ouviam em
Atenas. O início da obra é dilatado, à maneira jónica; o fim é político, à
maneira ateniense.

106
NASCIMENTO DA HISTORIA E DA TRAGÉDIA

No entanto, em momento nenhum Heródoto consagrou todos os seus


esforços à explicação política. Não era esse o seu objectivo; e se a primei­
ra frase da obra fala das razões do conflito, ela só o faz depois de ter indi­
cado um primeiro objectivo, que é o de evitar que o tempo apague os
feitos dos homens e que as grandes acções dos Gregos e dos Bárbaros
não «fiquem sem renome». O primeiro dos historiadores propõe-se ainda
como objectivo imortalizar o mérito - como fez Píndaro.
O método seguido por Heródoto corresponde a este duplo carácter,
bem como ao momento de descoberta e de transição entre dois mundos.
Este método já é deliberadamente crítico. No prólogo da sua obra, ele
conta os raptos lendários de mulheres, por Gregos ou por Bárbaros (Io,
Medeia, Helena); Mas relata-os com uma ironia céptica e deseja encon­
trar apoio num terreno mais firme; ele escreve (na tradução de A. Bar-
guet): «Voilà ce que disent les Perses et les Phéniciens. Pour moi,je ne
viens pas ici déclarer vraies ou fausses ces histoires, mais il est un per-
sonnage que je sais, moi, coupable d ’avoir le premier injustement atta-
qué les Grecs: je l ’indiquerai donc...» (I, 5) [«Isto é o que contam os
Persas e os Fenícios. Quanto a mim, a respeito de tais acontecimentos,
não vou afirmar que as coisas se passaram assim ou de outra maneira, mas
assinalar aquele que eu próprio sei ter sido o primeiro a cometer actos
injustos contra os Helenos...»].
Muitas vezes, na narrativa propriamente histórica, suceder-lhe-á
referir versões que lhe parecem suspeitas; assim, em II, 123, na mesma
tradução, a propósito de uma lenda religiosa: «Ces récits des Égyptiens,
qu 'on les accepte, si I ’onjuge dignes defoi de semblables histoires; pour
moi, mon seul dessein dans tout cet ouvrage est de consigner ce quej ’ai
pu entendre dire aux uns et aux autres.» [«Aceitemos estas narrativas
egípcias, se considerarmos tais histórias dignas de fé; quanto a mim, o
meu único desígnio em toda esta obra é o de relatar o que poderei ter
ouvid dizer a uns e a outros.»]. Conta, então, mas mantendo as distân­
cias; por vezes, também apresenta diversas tradições contraditórias (como
as versões de Atenas e de Egina a propósito de um mesmo acontecimen­
to, em V, 85-88). Poderá ser mais racional proceder a uma crítica dos
testemunhos e tomar partido, como fará Tucídides; mas é mais objecti­
vo contar tudo de que se tem conhecimento, imparcialmente.

107
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

A sorte é que ele recebeu muita informação - e não só por tradições


fornecidas no mesmo sítio, mas por observação directa. No livro II (99)
fala da função dos olhos (opis), da reflexão e da investigação: são meios
de informação que ele teve o mérito de promover e que a história rara­
mente utiliza no mesmo grau. Descreve regiões, a fauna, os ritos. Assi­
nala os monumentos mais notáveis. Extraiu argumentos das inscrições
que pôde ver (como em V, 59, para os caracteres «cadmeus»).
Mas este grande esforço de documentação não é sempre acompa­
nhado, na apresentação da narrativa, por um esforço equivalente de orga­
nização racional.
Já nos podemos perguntar se era muito útil enriquecer a narrativa
com histórias nas quais o próprio autor não acreditava. Mas as suas pró­
prias crenças levam-no por vezes um pouco longe, no sentido do mara­
vilhoso: a presença dos oráculos, nos quais acredita firmemente e que
cita de boa vontade, a dos sonhos (como o de Xerxes, que ocupa um
lugar maior na narrativa do livro VII, 12-19, do que todas as causas polí­
ticas da segunda guerra médica), também a presença de prodígios (como
os de Delfos, em VIII, 35-38), tudo isto (ainda que Heródoto por vezes
tenha reservas) nos faz pensar mais em Homero do que na história, tal
como a conhecemos.
Do mesmo modo, o seu gosto pela anedota pessoal sobrepõe-se de
bom grado ao sentido histórico: nada mais encantador do que o modo
como o futuro tirano de Corinto, ainda bebé, é salvo dos seus assassinos;
mas a compreensão dos acontecimentos não exigia tantos pormenores.
As próprias narrativas de batalhas estão, ainda, cheias de proezas indi­
viduais e a análise táctica ressente-se. E, sobretudo o modo como Heró-
doto representa a causalidade histórica ainda é muito incerto. O móbil
principal que ele conhece é a vingança: não é o meio mais simples de
ligar um facto ao precedente. Sem dúvida, a vingança desempenhou um
papel importante nesse mundo, ainda comandado por dinastias presas à
honra; não é menos importante que encontramos no próprio Heródoto,
a par dos encadeamentos simples, vestígios de explicações mais políticas
e, aos nossos olhos, mais importantes. O encadeamento histórico, em
Heródoto, é ainda, em certa medida, linear e superficial.
Nestes sinais de uma evolução ainda inacabada, não fizemos men­
ção dos discursos. Eles podiam ser considerados pelos Antigos como um

108
NASCIMENTO DA HISTÓRIA E DA TRAGÉDIA

meio legítimo para expor os motivos de acção dos protagonistas: o exem­


plo de Tucídides atesta-o. Salientaremos que, em Heródoto, os discursos
não estão associados à narrativa de um modo tão estreito como no seu
sucessor. Também aí ele está na charneira entre Homero e Tucídides.
Além do mais, muitas vezes ele pratica o diálogo em estilo directo, o
que procura sobretudo o relevo de uma presença concreta e releva do
episódico. Apenas os discursos dos livros VI1 e VIII, nos quais se dis­
cutem as possibilidades dos dois adversários, na segunda guerra médica,
são discursos verdadeiramente políticos, que ajudam a entender o por­
quê dos acontecimentos. Isto confirma a diferença referida mais acima
e a importância das próprias guerras médicas na obra de Heródoto.
Esta influência encontra-se em todo o seu pensamento.

3. O pensamento de Heródoto

O pensamento de Heródoto, como o de Esquilo, deve ler-se a dois


níveis diferentes, mas o facto surpreende muito para um historiador.

a) O pensamento político. - Encontramos nele, primeiro, ideias polí­


ticas, simples e fortes.
No domínio interior, ele é muito hostil à tirania e convencido dos
benefícios da ditadura. Descreve a crueldade dos tiranos de Corinto e de
Mileto. Mostra que Atenas aumentou o seu poder desde que se libertou
da tirania (V, 66 e 78). Reconhece aí uma regra: «E evidente - não por
uma única razão, mas por todas - que a liberdade é um bem precioso, pois
se os Atenienses, durante o regime tirânico, não eram guerreiros em nada
inferiores aos seus vizinhos, quando expulsaram os tiranos tomaram-se
de longe os melhores. Isto prova, portanto, que, quando eram dominados,
se mostravam fracos, porque sujeitos a um senhor, mas, depois de liber­
tados, cada um se empenhava em atingir os seus próprios objectivos.»(5)
Do mesmo modo, o que assegurou o triunfo dos Gregos sobre os
Bárbaros foi a disciplina livremente consentida, cujo espírito tiravam na

(5) N .T .: P a ra a s c ita ç õ e s d o liv ro V d a s H is tó r ia s , u s á m o s a tra d u ç ã o p o rtu g u e s a :


H e ró d o to , H is tó r ia s , liv ro V ( in tro d u ç ã o , tra d u ç ã o d o g re g o e n o ta s d e M “. d e F á tim a S o u s a
e S ilv a e C a rm e n L ea l S o a re s), L is b o a , E d iç õ e s 7 0 , 2 0 0 7 .

109
COMPÊNDIO DE LITERATURA G R E G A

sua liberdade. O célebre diálogo do livro VII entre Xerxes e o Grego


Demáreto explica-o longamente e com estrépito: a Grécia é pobre, mas
tem valor, usufrui da sabedoria e de leis firmes; enquanto os Persas
avançam sob o chicote, os Gregos obedecem à lei; «ils sont libres, cer-
tes, mais pas entièrement, car ils ont un maitre tyrannique, la loi, qu ’ils
craignent encore plus que tes sujets ne te craignent» [«são livres, é
certo, mas não totalmente, porque têm um senhor tirânico, a lei, que
eles receiam ainda mais do que os teus súbditos te receiam»] (104, trad.
Barguet).
Embora Heródoto não tenha, de todo, um desprezo sistemático pelos
Bárbaros (a sua compreensão esclarecida valeu-lhe mesmo, da parte de
Plutarco, a acusação de «malignidade»), ele tem, como Esquilo, o senti­
mento de uma oposição profunda e, antes de mais, política, entre o mundo
do poder absoluto e o da liberdade; e a vitória dos Gregos explica-se, pelo
menos em parte, por esta característica.
Mas, nesta luta pela liberdade, nem todas as cidades gregas mostra­
ram o mesmo valor. Aquilo de que Heródoto gosta em Atenas é da sua
dedicação, aquando das guerras médicas: «Enfait, onpeut dire desAthé-
niens qu 'ilsfurent les sauveurs de la Grèce sans manquer à la vérité: le
parti qu 'ils embrassaient devait l 'emporter; parce qu ’ils choisirent la
liberté pour la Grèce, ils furent les artisans du réveil, dans le monde
grec, de tout ce qui n 'avaitpas voulupactiser avec les Mèdes...» [«Com
efeito, podemos dizer que os Atenienses foram os salvadores da Grécia
sem faltar à verdade: o partido que eles abraçavam devia prevalecer;
porque eles escolheram a liberdade para a Grécia, foram os artesãos do
despertar, no mundo, de tudo o que não quis pactuar com os Medos...»]
(VII, 139) (6). O que quer que seja que Atenas tenha feito depois, pelo menos
isto é a sua glória. Tal como ele conta de forma lisonjeira a recusa que
Atenas opôs às ofertas persas, que pretendiam afastá-la da causa grega
(VIII, 136-144). E presta aos Atenienses de então a primeira expressão
vibrante do sentimento pan-helénico; pois nas razões da recusa figuram
os crimes dos Persas, mas também a noção da unidade grega: «Ensuite,
il y a le monde grec uni par la langue et par le sang, les sanctuaires et
les sacrifices qui nous sont communs, nos mceurs qui sont les mêmes, et

(6) Trad. Barguet, tal como para as duas citações seguintes.

110
NASCIMENTO DA HISTÓRIA E DA TRAGÉDIA

cela, des Alhéniens ne sauraient le trahir...» [«E, em seguida, o que une


todos os Gregos: o mesmo sangue e a mesma língua, santuários e sacri­
fícios comuns dos deuses, costumes e gostos idênticos. Atraiçoar tudo
isso, para os Atenienses não seria admissível»]( 144)(7). As guerras médi­
cas deram origem a este sentimento, Heródoto deu-lhe a sua expressão.
É precisamente por isso que a sua narrativa conta de um modo tão
severo as imprudências, as tergiversações e as rivalidades entre cidades,
que frequentemente paralisaram a desfesa grega. Ele já é severo, no livro V,
com a revolta da Jónia, onde vê o efeito de intrigas privadas, que deviam
custar caro aos Gregos da Ásia Menor e aos outros. Desde o início da
primeira guerra médica que vemos a gravidade dos conflitos privados,
com o diferendo entre Atenas e Egina. Aquando da segunda, formam-se
dois campos entre os Gregos (VII, 132); quando os defensores da Gré­
cia enviam embaixadas, estas deparam com dificuldades: por exemplo,
com os Argivos (VII, 148-152), ou com Gélon, tirano de Siracusa, que
não quer dar a sua ajuda, a não ser que obtenha o comando (153-167);
ou então dão-lhes respostas hipócritas (como em Corcira, 168).
Numa obra que não é nem partidária, nem sistemática, nem dada a
embelezar as acções dos homens, Heródoto foi capaz de fazer brilhar o
duplo ideal da liberdade e da união.
No entanto, estes temas, por muito importantes que sejam, dominam
de modo menos completo a sua obra do que as suas ideias religiosas e
morais.

b) O pensamento religioso e moral. - Tal como o mundo de Esquilo,


também o mundo de Heródoto é regido pelos deuses; mas Heródoto insis­
te menos na sua justiça do que na fragilidade dos homens cujos destinos
eles fixam. Aqui aproxima-se mais de Sófocles. Aliás, como Sófocles, faz
um grande uso dos oráculos; e, como Sófocles, agrada-lhe mostrar os
homens enganados pelos oráculos que interpretam mal. Creso, tendo per­
guntado ao oráculo de Delfos se deveria entrar em guerra com os Persas,
recebeu como resposta que, se o fizesse, destruiria um grande império

(7) N .T .: P a ra a s c ita ç õ e s d o liv ro V III d a s H is tó r ia s , u s á m o s a tra d u ç ã o p o rtu g u e s a :


H e ró d o to , H is tó r ia s , liv ro V III ( in tro d u ç ã o d e C a rm e n L eal S o a re s; v e rs ã o d o g re g o e n o tas
d e Jo s é R ib e iro F e rre ira e C a rm e n L e a l S o a re s), L is b o a , E d iç õ e s 7 0 , 2 0 0 2 .

111
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

(1,53). Pensou, então, que era o dos Persas e declarou guerra; ora, tratava-
-se do seu próprio (I, 91). Além disso, um outro oráculo de Delfos dis­
sera-lhe que fugisse quando um mulo se tomasse rei dos Medos: Creso
concluiu que nunca teria de fugir; ora, o mulo era Ciro, nascido de dois
pais de origem desigual, de uma mãe meda e de um pai persa. Certamen­
te, a Pítia explica muito bem que o desastre de Creso paga a falta de um
dos seus antepassados (como é muitas vezes o caso em Esquilo); mas os
dois erros sobre os dois oráculos, na narrativa, são infinitamente mais
impressionantes.
Do mesmo modo, para não irritar os deuses importa, como em Esquilo
e nos poetas anteriores, evitar a hybris; mas esta hybris não é, necessaria­
mente, uma falta moral, merecedora de castigo. O modo como Artabano,
tio de Xerxes, a descreve no livro Vil, é muito mais simples e material:
«Regarde les animaux qui sontdune tail/e exceptionel/e: le ciei les fou-
droie et ne les laisse pasjouir de leur supériorité; mais les petits n ’excitent
point sajalousie. Regarde les maisons les plus hautes, et les arbres aussi:
sur eux descend lafoudre, car le ciei rabaisse toujours ce qui dépasse la
mesure...» [«Olha os animais que têm um grande tamanho: o céu fulmina-
-os e não os deixa usufruir da sua superioridade; mas os pequenos não pro­
vocam, de todo, a sua inveja. Olhas para as casas mais elevadas e também
para as árvores: sobre elas desce o raio, porque o céu humilha sempre o
que excede a medida...»] (10).
Num tal mundo, nada de mais perigoso do que confiar na sua felici­
dade. E este o sentido dos avisos de Sólon a Creso, no livro I - avisos des­
tinados a tanto impressionar Ciro: «O Creso, eu sei que a divindade é toda
inveja e irritável...». De modo que não podemos dizer que um homem é
feliz antes da sua morte. Outros exemplos mostram suficientemente que
a prosperidade não só é instável, mas perigosa: o mais notável é o de Polí-
crates, o tirano de Samos: ele tentava, em vão, afastar-se da sua sorte, que
devia acabar em desastre; assim, mandou atirar ao mar, afastado da costa,
o seu anel de ouro, enfeitado com uma esmeralda, à qual queria muito;
mas pescaram um peixe que tinha engolido o anel e levaram-no a Polícra-
tes: não está no poder do homem subtrair-se ao seu destino (III. 39-45).
O homem apenas pode, por conseguinte, tentar ser justo e piedoso,
conservar-se modesto. Não é certo que isto baste: pelo menos é indis­
pensável.

112
NASCIMENTO DA HISTÓRIA E DA TRAGÉDIA

Em todo o caso, este sentimento que Heródoto tem dos regressos na


sorte dos homens arrasta consigo três consequências importantes para o
seu pensamento e para a sua obra.
Em primeiro lugar, arrasta um certo paralelismo com a tragédia:
episódios inteiros de Heródoto podiam ser tratados na forma trágica; e
não se excluem influências recíprocas.
Por outro lado, o mesmo sentimento dá à sua visão do curso da his­
tória uma forma alternada, aberta e mutável. Ele próprio escreveu no seu
prefácio que cidades «das que antigamente eram grandes, muitas delas
tomaram-se pequenas, enquanto as que no meu tempo são grandes, eram
primeiro pequenas. Persuadido de que a felicidade humana nunca per­
manece firme no mesmo ponto, mencionarei por igual umas e outras.»
(I, 5). A fortuna muda; a roda gira; como diz Creso em I, 207: «a vida
humana é como uma roda, que, nas suas rotações, não permite que a
felicidade contemple sempre a mesma pessoa»; mas esta «roda» (kyklos)
nada tem a ver com a regularidade hipotética de um tempo «cíclico»;
significa apenas que a alternância entre o mal e o bem é válida para todos
os homens.
Enfim, este sentimento de instabilidade humana combina-se em
Heródoto com a experiência variada do viajante para desenvolver no seu
pensamento o sentido de uma virtude que nenhum Grego teve tão viva:
esta virtude é a tolerância. Ele sabe que os costumes do seu tempo repou­
sam sobre convenções, variam segundo o lugar, segundo o tempo. Mas
não conclui, como farão alguns um pouco mais tarde, que qualquer regra
é relativa e, portanto, pode ser transgredida: ele conclui que qualquer
regra tem de ser respeitada, mesmo entre os outros. Cambises, ao des­
prezar as leis religiosas dos Egípcios, dá mostras de loucura; Heródoto
conta que cada um prefere o seu próprio costume; mas acrescenta: «Por­
tanto, não é normal que alguém - a menos que tenha perdido o juízo -
meta a ridículo semelhantes questões.» (III, 38)(8).
Esta tolerância e este respeito pela diversidade inspiram a sua investi­
gação. São acompanhados, também, por uma maravilhosa compreensão

(8) N .T .: P a ra a s c ita ç õ e s d o liv ro III d a s H is tó r ia s , u s á m o s a tra d u ç ã o p o rtu g u e s a :


H e ró d o to , H is tó r ia s , liv ro III ( in tro d u ç ã o , v e rs ã o d o g re g o e n o ta s d e M a. d e F á tim a S ilv a e
C ris tin a A b ra n c h e s ), L is b o a , E d iç õ e s 7 0 , 1997.

113
____________________COMPÊNDIO DE LITERATURA GREG A _______

por tudo aquilo que é humano. Encontramos crianças na obra de Heró-


doto, o que é raro na literatura grega. Encontramos uma grande afeição
entre parentes, e isto entre os Bárbaros tal como entre os Gregos. Na sua
história não falta nem ternura, nem humor. No seu estilo, com uma estru­
tura ingénua, mas que utiliza uma língua artificial, poética, cheia de
recordações homéricas, a história é colorida com uma simpatia humana
que, também ela, lembra Homero.
A experiência das guerras médicas suscitou, em Heródoto e em
Esquilo, reacções muito diferentes. Onde um viu o horror da guerra, mas
a beleza da justiça divina, o outro viu um exemplo da complexidade
política e de múltiplas aventuras que marcam a vida humana. No entan­
to, num e no outro a experiência foi decisiva e deu um verdadeiro impul­
so a este género literário.
Estes dois géneros iriam desenvolver-se e evoluir ao longo do sécu­
lo v, ao mesmo tempo que se adaptavam, numa Atenas aberta a todas as
correntes intelectuais, a ideias não só novas, mas inovadoras.

114
CAPÍTULO IV

O TEATRO NA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO V:
SÓFOCLES, EURÍPIDES,
ARISTÓFANES
O início de Sófocles no teatro teve lugar em 468: quer dizer que ele
desabrochou no momento em que Atenas, liberta das guerras médicas,
se tomava senhora de um vasto império e o centro da Grécia. Quando
fez representar a sua Antígona, a Acrópole ressoava com o ruído dos tra­
balhos em curso: construía-se o Pártenon. Dez anos mais tarde, em 431,
começava a guerra do Peloponeso: após vinte e sete anos de sofrimento
e de crueldades, Atenas seria vencida, em 404, por todos aqueles que se
indispuseram contra o seu império: acabou assim o seu poder. Durante
a guerra representavam-se todos os anos peças de Sófocles e de Eurípi-
des; mas se Sófocles reflectiu sempre a harmonia do apogeu, Eurípides,
que era quinze anos mais novo, já reflectia as dúvidas e as interrogações
de um período de mal-estar político. Por outro lado, a comédia desenvolve-
-se, doravante, a par da tragédia; e também ela dá testemunho desta
inquietação crescente.

I.
SÓFOCLES

1. Vida de Sófocles

A própria vida de Sófocles (4957-405) é uma vida cheia de harmonia.


Nascido numa família abastada, teve êxito, muito jovem, nos concursos de
ginástica e nas execuções musicais. Era culto, amável, rodeado de amigos.
Citavam-se as suas palavras humoradas e elogiava-se o seu carácter.

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COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Sem ter vocação política, exerceu por várias vezes altos cargos: foi
helenotamia (encarregado de recolher o tributo das cidades aliadas) em
443-442; foi, por duas vezes, estratego, uma das quais com Péricles, no
ano da Antígona. Foi, por fim, após o desastre da Sicília, um dos dez
probouloi, ou conselheiros especiais encarregues de velar pela salvação
do Estado. Teve também funções religiosas: a Vida anónima que temos
conta que foi sacerdote do herói curandeiro Halon; e parece ter sido um
dos introdutores do culto de Asclépio, para quem escreveu um péan.
Por fim e principalmente, a sua carreira teatral foi sempre marcada
pelo sucesso. Vencedor de Esquilo desde o início, alcançou uma boa vin­
tena de vitórias; quando não era o primeiro, era segundo. Em 409, com
87 anos, ainda era classificado em primeiro lugar, com o Filoctetes.
Na sua morte, em 405, o general lacedemónio Lisandro, que nessa
altura tinha a planície ateniense sob o seu controlo, permitiu que deixas­
sem passar os restos mortais de Sófocles: um duplo sonho ordenara que
a própria guerra fosse interrompida em honra do poeta.
Sófocles, autor trágico por excelência, não exprime na sua obra
sofrimentos pessoais: parece ter sido um homem feliz.

2. A obra de Sófocles

Sófocles escreveu diversas obras, entre as quais uma ode a Heródo-


to e um tratado Sobre o Coro. Também escreveu, naturalmente, dramas
satíricos (um para cada grupo de três tragédias); um deles é bastante
conhecido depois de 1912: é a peça Os Cães de Caça (sobre a persegui­
ção de Hermes, ladrão de Apoio). Mas escreveu principalmente tragédias.
De cento e vinte e três tragédias, sete foram conservadas, como com
Esquilo. Das outras temos apenas títulos e pequenos fragmentos.
Entre as sete peças conservadas, apenas três estão datadas com algu­
ma precisão: Antígona (442), Filoctetes (409) e Edipo em Colono, peça
póstuma, representada em 401. As outras quatro peças repartem-se, de
forma bastante incerta, de acordo com critérios literários. Estas peças não
pertencem, como as de Esquilo, a trilogias (embora tenha sido possível
que Sófocles as compusesse: refere-se apenas uma perdida, a Telefia).

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SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

Em contrapartida, Sófocles tomou mais flexível e aperfeiçoou a técnica


dramática (introdução do terceiro actor e do cenário figurado). Nele a
acção tem mais importância e comporta mais ressaltos.
A mais antiga das tragédias conservadas poderá ser o Ajax. A peça
começa quando Ajax, querendo, por rancor, matar os chefes do exército
que cerca Tróia, é tomado pela loucura e mata, em seu lugar, os rebanhos
do exército. Depois de um prólogo em que Atena mostra esta loucura a
Ulisses, assiste-se ao despertar de Ajax, desesperado e desonrado, aos
esforços dos seus para o reter com vida, às suas esperanças e ao seu sui­
cídio. Numa segunda parte, debate-se a questão do seu enterro: por fim,
este é-lhe concedido, graças à intervenção de Ulisses. O contraste entre
a esperança e a morte ilustra uma dessas reviravoltas que Esquilo não
praticava. O facto de a peça se passar em dois momentos (sendo, como
se diz, «díptica») incomoda, por vezes, o gosto moderno, mas corres­
ponde à mesma flexibilidade na composição.
As Traquínias têm uma data próxima; e é também uma peça «díp­
tica». A primeira parte centra-se em Dejanira, que espera o regresso do
marido, Eléracles; depois, percebendo que ele regressa infiel, tenta, por
uma droga mágica, reanimar o seu amor passado. Mas a droga é, na ver­
dade, um veneno mortal: a segunda parte centra-se em Héracles, nos
seus sofrimentos, no seu desespero e nas suas maldições, que precedem
de perto a sua morte. A esperança e o desespero chocam-se como no
Ajax; e o contraste que opõe uma mulher tema e receosa a um herói
intratável lembra aquele que opunha Ajax à sua cativa Tecmessa; sim­
plesmente, aqui, estes dois seres nunca estão em presença um do outro.
Antígona apresenta certos traços que lembram as peças «dípticas»,
visto que a peça prossegue durante muito tempo depois do desapareci­
mento da heroína; no entanto, a unidade é maior. Antígona decidiu, apesar
da proibição de Creonte, enterrar o seu irmão Polinices, caído diante de
Tebas, onde sitiava o seu irmão (o assunto dos Sete contra Tebas, de
Esquilo). Ela debate a pretensão deste gesto, primeiro com a sua irmã,
mais receosa, depois, uma vez apanhada, com Creonte. Após o seu desa­
parecimento, Creonte deve suportar os ataques do seu filho, Hémon, noivo
de Antígona, depois os de Tirésias, falando em nome dos deuses. Final­
mente compreende o seu erro - demasiado tarde. Quis ordem na cidade;

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COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

mas desprezou a lei divina, que exige o enterro dos mortos. Acaba culpa­
do e abatido, depois da morte de Antígona e de Hémon, e a da rainha.
Este rei, que os deuses destruíram, quando quis agir bem, tem rela­
ções com o Rei Edipo, a tragédia que diz como é que o herói, que quis
proteger-se de um oráculo, descobre que acabara de matar o pai e de
casar com a mãe. A sua desgraça provém das suas boas intenções: a desco­
berta que faz nasce de uma investigação ordenada por ele para o bem da
cidade. E, naturalmente, é no momento em que, ao saber da morte do seu
pai putativo, se considera protegido, que o desastre se abate sobre ele.
Encontra-se o mesmo contraste na Electra. Discute-se muito para
saber qual das duas Electra, a de Sófocles e a de Eurípides, é anterior à
outra. Em qualquer caso, o contraste com as Coéforas, de Esquilo, é gran­
de em ambas. Nos dois casos, a peça tem o nome da heroína; e é o seu
carácter, a sua vontade, que decidem a morte de Clitemnestra: o papel da
vontade humana tomou a dianteira sobre a causalidade divina. Por outro
lado, Sófocles, distintamente de Eurípides, levou ao limite as razões que
podem levar Electra a desesperar do regresso de Orestes; estas razões não
se limitam apenas ao simples escoar do tempo, que passa numa espera
apaixonada, mas vã: até o artifício de Orestes, quando finalmente regres­
sa, consiste em fazer-se passar por morto; e Electra acredita na mentira.
Desesperada, mas não aniquilada, procura então agir só. No momento
preciso, surgem o reconhecimento e a brusca passagem à alegria. A longa
solidão de Electra deu-lhe, assim, a mesma vontade indomável que Antí­
gona mostrava - vontade que é, também aqui, sublinhada pelo contras­
te com uma irmã mais receosa.
Uma escolha moral comparável ocupa um lugar central no Filoctetes.
O jovem filho de Aquiles, Neoptólemo, recebe do ardiloso Ulisses ordem
para enganar Filoctetes, outrora abandonado numa ilha deserta, e de o
levar para Tróia com o seu arco, necessário para a tomada da cidade.
Neoptólemo fica preso entre o seu dever para com o exército e a lealda­
de que deve ao desgraçado herói. Esta lealdade prevalece no fim. O jovem
queria, pelo menos, convencer Filoctetes; mas este é intratável: é neces­
sária a aparição do semideus Héracles para terminar a peça.
Pelo contrário, Édipo em Colono não conhece qualquer discussão
moral: apenas o esforço obstinado de Edipo para se desculpar dos seus

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SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

crimes («pelos meus actos! pois que os sofri, mais do que os pratiquei»('),
267; cf. 273; 538-539; 964; 977; 987). Mas não há qualquer conflito de
deveres e a peça desenrola-se com a solenidade de um mistério. Édipo
chega com Antígona a Colono, na Ática. Está cego e amaldiçoado. Não
sabe se será acolhido; e fica a saber que os seus dois filhos querem
apropriar-se da sua pessoa. De facto, por uma misteriosa compensação
pelos seus males passados, não só será recebido por Teseu, mas o seu
corpo, depois da sua morte, tomar-se-á a salvaguarda da região; e a sua
morte tem lugar, no final da peça, numa espécie de elevação sagrada.
É, assim, claro que dois temas e duas séries de problemas alternam
no teatro de Sófocles: a relação do homem com os deuses e os proble­
mas morais que dizem respeito ao herói.

3. A inspiração de Sófocles: os homens e os deuses

A propósito de Esquilo, distinguimos os temas relativos à cidade e


os que respeitam aos deuses.
Os primeiros ocupam um pequeno lugar nas tragédias de Sófocles
que nos foram conservadas. Sem dúvida que encontramos no final do
Ajax e, sobretudo, na Antígona uma discussão dos problemas da autori­
dade demasiado absoluta. Também encontramos, na Antígona, reflexões
sobre a lei, que permitiram a alguns procurar na peça o meio de situar
Sófocles relativamente a Péricles (como V. Eherenberg). Mas importa
reconhecer que Sófocles insiste sobretudo nos deveres religiosos ou, de
uma forma muito geral, morais. A vida política das cidades pouco inter­
vém, para lá desta evocação de piedade.
Quanto à relação do homem com os deuses, ela tem, como acabá­
mos de constatar, um grande lugar em Sófocles. Mas não se apresenta
de modo nenhum como em Esquilo.
Com efeito, os deuses estão menos próximos. Nas obras conserva­
das nem sequer aparecem: só Atena aparece no início do Ajax. Também

(') N.T.: Para as citações de Sófocles, usámos a tradução portuguesa: Sófocles, Tra­
gédias, (prefácio de Ma. do Céu Fialho; introdução e tradução do grego por Ma. Helena da
Rocha Pereira, José Ribeiro Ferreira, Ma. do Céu Fialho), Coimbra, MinervaCoimbra, 2003.

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COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

não exercem um efeito muito vivo sobre todas as emoções. E os princí­


pios da sua acção não são muito evidentes.
Os deuses, contudo, manifestam-se: fazem-no através dos oráculos;
e as tragédias de Sófocles partem muitas vezes de profecias, cuja reali­
zação espreita, que se aproximam umas das outras, sobre as quais ten­
tam apoiar-se. Por vezes, uma única tragédia põe em causa até três ou
quatro (como As Traquínias, o Rei Edipo, o Filoctetes. ..).
Mas estes oráculos não são compreendidos. Muitas vezes são enig­
máticos, como em Heródoto. Assim, foi predito a Héracles que ele mor­
reria por acção de um morto (com efeito, a droga mágica fora entregue a
Dejanira pelo Centauro ao morrer): como é que ele o teria compreendido?
Mesmo quando os oráculos são claros, a sua aplicação torna-se engana­
dora: é o que sucede com Edipo. Dito de outra forma, há um mistério da
vontade divina, mas ele não tem como objecto o princípio: consiste em
buscar o que esconde o véu meio erguido; e as semi-revelações dos orá­
culos parecem aliar-se ao patético da fraqueza humana, sem em nada a
esclarecer.
O contraste entre o destino e a ignorância humana chega a ser a fonte
de uma profunda ironia. Se a sorte o atinge no momento em que o herói
readquire a confiança, isso não é um acaso. Do mesmo modo, também não
é um acaso se Sófocles coloca de bom grado na boca das suas personagens
frases ambíguas, cujo sentido elas próprias não podem compreender: é
o caso de Edipo, ao maldizer o assassino de seu pai, sem saber que é ele
mesmo, ou jurando agir «como se fora o meu próprio pai», o que é efecti-
vamente o caso. A ironia da sorte associa-se à ironia na estrutura das cenas,
na escolha dos termos. E dir-se-ia que os deuses se riem dos homens,
como a Atena do Ajax, que se ri tão cruelmente do pobre herói louco.
Não há, contudo, nesta visão do mundo nenhum germe de revolta.
Sófocles é pio; e nele apenas os arrogantes prestes a serem abatidos
ousam duvidar dos oráculos. De facto, ele apenas tem um sentimento
muito forte da distância que separa os homens e os deuses.
Nos homens, tudo passa, tudo muda. E Sófocles disse-o muitas vezes
nos cantos do coro, de rara grandeza. Deste modo, no início das Traquí­
nias·. «Nem o Crónida, senhor que tudo ordena, / aos mortais atribuiu /
vida isenta de aflição; / mas dores e alegrias para todos / vão surgindo
nesta roda, como a Ursa / no seu giro circular. / Nada é, para os homens,

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SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

duradoiro; / nem a noite cintilante, nem a dor, / nem a riqueza.» (126-


-133). Ao contrário, o domínio dos deuses é o do absoluto, que nada
atinge; e aqui Sófocles aproxima-se muito da fé de Píndaro. Tal como
diz o coro da Antígona, nada pode reduzir o poder de Zeus: «Não o suble­
va o sono, que todos persegue, / nem dos deuses os meses / indefesos.»;
e, dirigindo-se a Zeus: «És senhor do brilho fulgente do Olimpo, / sem
que os anos to impeçam.» (605-610).
O sentimento desta riqueza radical entre os dois mundos explica dois
aspectos, à primeira vista contraditórios, do pensamento de Sófocles.
Explica, em primeiro lugar, o que podemos apelidar de o seu pessi­
mismo. Pois como se esperaria que o homem pudesse compreender a
acção divina, ou escapar-lhe? Esta acção continua a ser misteriosa, tanto
na sua generosidade (Édipo em Colono), como nas suas crueldades {Rei
Édipo)·, e os esforços do homem para agir bem, arriscam-se sempre a
voltar-se contra ele. Também pode, como Édipo, agir mal, contra a sua
vontade, sem o saber nem o querer.
Mas, ao mesmo tempo, tudo o que vem dos deuses recebe um carácter
sagrado que tem de estar antes de tudo. Eles não poderiam ser demasia­
do piedosos. Também não poderiam preferir algo às regras divinas. As «leis
não escritas» (respeito pelos deuses, pelos pais, pelos suplicantes, pelos
mortos) são, então, para Sófocles, não o reflexo de uma consciência
humana, ou até simplesmente grega, mas leis divinas. São estas que
Antígona coloca à frente do édito que proibia o enterro do seu irmão; e
o pensamento de que estas leis participam da longínqua estabilidade dos
deuses exaltam-na: «Porque essas não são de agora, nem de ontem, mas
vigoram sempre, e niguém sabe quando surgiram.» (456-457). Do mesmo
modo, o coro do Rei Édipo não queria nunca descurar aquelas leis que
«no éter / celestial foram geradas»: «tendo apenas o Olimpo / como pai,
nem a mortal / natureza dos homens / as gerou, nem jamais / o esquecimen­
to as fez dormir. / Grande é a divindade que as possui, não envelhece.»
(867-872). A grandeza dos deuses, no teatro de Sófocles, toma ainda mais
trágica a sorte dos homens, mas toma o seu ideal muito mais brilhante.
Também há no seu pensamento, distintamente do de Ésquilo, um
aspecto capital: perante a obscuridade da vontade divina, a atenção trans­
fere-se para o homem e, perante a ameaça do destino, fica a ver se aquele
encontrará uma resposta que o honre. Ajax, Édipo, Héracles, Filoctetes,

123
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

até mesmo Electra, surgem-nos no teatro de Sófocles no momento da


sua destruição e do seu aniquilamento, destruição e aniquilamento que
poderão ter merecido; mas é precisamente nesse momento que se difun­
de o seu heroísmo, no modo de encarar a prova.

4. Caracteres e virtudes dos heróis

O primeiro facto importante é que há em Sófocles diversas respos­


tas, encaradas com veemência.
Isso significa, em primeiro lugar, que há caracteres bem definidos.
Depois de Esquilo, os meios literários tomaram-se mais flexíveis, o diá­
logo tomou a dianteira relativamente ao lirismo. Também na sociedade
o indivíduo adquiriu mais independência. Vemos, também, que os carac­
teres se matizam e, frequentemente, opõem-se dois a dois. Assinalámos
os pares de irmãs (Antígona-Ismena, Electra-Crisótemis) e também o
contraste entre marido e mulher, ou cativa (para Héracles e para Ajax).
Vimos, também, como a candura de Neoptólemo se opunha ao dolo de
Ulisses ou, então, a sabedoria de Ulisses ao ímpeto de Ajax, a modera­
ção de Ulisses à dureza de Agamémnon. Todas estas personagens estão
vivas e os contrastes fazem sobressair as particularidades.
Importa, todavia, trazer a esta questão uma reserva. Os caracteres
existem, mas não pressupõem sempre um estudo psicológico correspon­
dente a todas as nossas exigências modernas. Um livro célebre e injusto
de T. von Wilamowitz (o filho do célebre filólogo) tentou até mostrar
que Sófocles por vezes o descurava até à inverosimilhança, quando isso
servia os seus objectivos dramáticos. E bem verdade que alguns textos
apresentam problemas de interpretação. O diálogo em que Ajax, antes
de se matar, pretende reconciliar-se com a vida, será parcialmente sin­
cero, parcialmente mentiroso? Sófocles não pensou em determiná-lo.
Também não disse, nem deu a entender, em que medida é Dejanira since­
ra, quando afirma a sua tolerância para com o seu marido, nem explica os
súbitos lamentos de Antígona, que aceitava a sua sorte tão afoitamente.
Estas zonas sombrias não implicam nenhuma contradição; marcam
apenas uma relativa indiferença de Sófocles para precisar certos enca­
deamentos. Mas isto corresponde ao facto de que a sua preocupação,

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SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

quando cria personagens, não é, de todo, uma preocupação de curiosi­


dade psicológica. Com efeito, as suas personagens distinguem-se, não
pela sua psicologia, mas porque cada uma encarna um ideal moral dife­
rente, com o qual se identifica. Uma personagem de Sófocles sabe em
nome de que é que age, defende os seus princípios, como uma causa
contra outra, e opõe-se aos que a rodeiam como uma regra de vida se
opõe a outra.
Há, também, o sentimento de que o debate em curso as ultrapassa e
nos diz respeito. Entre Ajax e a sua cativa Tecmessa opõem-se uma moral
aristocrática baseada na honra e uma moral mais humana, baseada nas obri­
gações para com o outro. Entre os Atridas, por um lado, e Teucro e Ulisses,
por outro, opõem-se, na mesma peça, os direitos da disciplina e o respeito
pelos méritos passados. Entre Antígona e Ismena, entre Electra e Crisóte-
mis, opõem-se a revolta e a submissão - e assim consecutivamente.
As cenas em que as personagens se enfrentam medem, assim, con­
flitos e deveres. E temos, deste modo, seja longas tiradas paralelas, seja
debates verso a verso, em que a antítese prossegue, cerrada e crepitante,
até no pormenor das palavras. Finalmente, a estrutura das tragédias de
Sófocles está totalmente construída nestes constrastes sucessivos. Antígo­
na discute com a irmã, depois com Creonte; uma é uma aliada reticente,
o outro, um adversário. Mas, depois, Creonte tem de discutir com os seus
aliados, que o censuram: o seu filho e o adivinho. Nesta série de con­
frontos, as teses afirmam-se, justificam-se, precisam-se, ao mesmo tempo
que a tensão cresce.
Esta identificação entre a personagem e o ideal em nome do qual ela
age, implica uma lucidez rara; mas não exclui a complexidade. Obser­
vámos mais acima que as reviravoltas de certas personagens podiam
surpreender. A reviravolta de Neoptólemo, no Filoctetes, a sua conver­
são à rectidão são o assunto da peça. Mas, sobretudo, não podemos sem­
pre, sem falsear, definir com uma palavra a posição moral adoptada por
cada uma: muitas vezes, o mal e o bem misturam-se. O Creonte da Antígo­
na defende os direitos da cidade; e fá-lo com argumentos nobres; mas fá-lo
com dureza, confundindo um pouco o Estado consigo mesmo. Hémon
e Tirésias mostram-lho, cada um à sua maneira. A verdade é complexa e
descobre-se aos poucos, ao longo das cenas. Pode mesmo dizer-se que,
vinte e cinco séculos depois de Sófocles, continuamos a discutir o sentido

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COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

exacto da oposição entre Antígona e Creonte. Quando o filósofo Hegel


afirma que Antígona representa a família contra o Estado, simplifica.
Diz-se, de acordo com as épocas, que ela representa a humanidade con­
tra a intransigência, o direito à revolta contra todo o poder abusivo: todas
estas afirmações simplificam. De facto, em Sófocles encontramos a mesma
tendência que em Tucídides para identificar o particular e o geral, sem,
contudo, deformar o particular. Sófocles não pensa num ideal específico
que queria encarnar em Antígona: cria Antígona mas, a cada momento da
acção, é capaz de fazer aparecer nela princípios e um ideal de conduta,
cuja combinação representa a sua personalidade única. O indivíduo e a
regra de vida identificam-se, porque todas as personagens de Sófocles
procuram apaixonadamente definir e defender a sua razão de viver.
Entre estas razões de viver, a honra vem em primeiro lugar. Diremos,
apenas, que podemos vê-la evoluir e afirmar-se: desde a honra totalmente
exterior de Ájax, feita de façanhas reconhecidas e que se traduzem na
estima pública, até à honra totalmente interior de Neoptólemo, que apenas
reclama coragem moral e que se traduz na boa consciência (desprezando
uma glória que poderia alcançar e com o risco de ser mal interpretado
por todo o exército), percorremos todos os graus de uma transformação
que faz a passagem do mundo de Homero ao de Sócrates. As diversas
peças reproduzem este movimento de conquista em direcção a valores
sempre mais puros e mais elevados.
No entanto, para lá destes contrastes, para lá destes progressos, acon­
tece que as personagens mais importantes têm em comum um traço
essencial: é que estão sempre prontas a sacrificar tudo pela ideia que têm
desta honra e destes valores. São personagens heroicas.
Quer se trate de um herói indomável, como Ájax, ou de jovens, como
Antígona ou Electra, a resolução é a mesma, a aceitação da morte é a
mesma, a recusa de se deixar submeter é a mesma.
O resultado é que estes heróis estão isolados entre aqueles que os
rodeiam. Desejaríamos retê-los. Compreendemos mal as suas razões. Con­
sideramo-los imprudentes e pouco realistas. Além disso, a sua acção vale-
-lhes os sarcasmos dos mais poderosos. Ájax morre só, suicidando-se com
uma espada inimiga, num solo inimigo. Dejanira morre incompreendida
e amaldiçoada. Aliás, ela entra em casa para morrer sozinha, como o
farão Eurídice, na Antígona e Jocasta, no Rei Edipo. Antígona é conde-

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SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

nada a morrer num subterrâneo, longe de todos; e parte, rodeada por sar­
casmos («Ai de mim, como me escarnecem!»). Electra só pode contar
consigo mesma para agir («Estou só...»). Filoctetes ficou só, durante anos,
na sua ilha, onde o querem abandonar novamente. E Édipo, no ponto mais
alto da sua glorificação, está só perante uma morte que só ele conhece.
Esta solidão corresponde à própria grandeza do herói. Ele deve-a à
sua exigência do absoluto; e, em troca, encontra nela como que a obri­
gação de se elevar acima de si mesmo, com uma nova força.
Importa, contudo, reconhecer que, também aí, a arte de Sófocles nos
deixa com uma antítese. Há heróis em toda a sua grandeza; e há aqueles
que os rodeiam, mais humanos. Naturalmente, o brilho pertence aos heróis;
sobre eles concentra-se a luz; para eles vai a glória. Mas devemos pensar
que aqueles que os aconselham em vão estão errados? Teria Ajax razão
ao suicidar-se, abandonando Tecmessa, o filho e os marinheiros? A fle-
xiblidade compreensível de Ulisses, que é capaz de esquecer as ofensas,
será ela menos louvável? Filoctetes terá razão ao recusar, de modo tão
obstinado, ir para Tróia?
Na verdade, os heróis apresentam-se como casos-limite, mostram
que nobreza pode ser aliada às provas mais cruéis. Não representam mais
modelos a imitar do que as tragédias de Sófocles constituem sermões
abstractos.
São um impulso de fé no homem.

5. As belezas do mundo sofocliano

Este pessimista, na verdade, deixa frequentemente brilhar uma rara


confiança em tudo aquilo que é belo; e é o que muitas vezes revelam os
cantos do coro.
O que foi dito da estrutura das suas peças, da lucidez do diálogo, da
força das antíteses, dá uma ideia da sua arte nas partes dialogadas, mas
não deixaria adivinhar a beleza dessas grandes odes, tanto mais revela­
doras do poeta quanto estão mais directamente misturadas com a acção
do que em Esquilo.
Elas têm sempre alguma relação com essa acção; mas, na maioria das
vezes, em Sófocles, os cantos do coro transpõem os temas do episódio

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COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

que o precede para evocações mais universais: desse modo traduzem a


tendência específica de Sófocles para combinar sempre o particular e o
geral. Deste modo, na Antígona, depois do anúncio do enterro, realizado
apesar do édito real, o coro canta a grandeza das realizações humanas,
mas o dever de obedecer às leis; depois da descoberta da culpada, canta
a facilidade com que o desastre se abate sempre; depois da cena com
Hémon, canta o poder universal do amor; depois da partida de Antígo­
na, evoca as mortes de personagens mitológicas. De cada vez, temos a
mesma amplitude, a mesma forma de dar à acção um eco mais amplo e
mais sereno.
Sucede, assim, que esses cantos - muito mais curtos, no entanto, do
que os de Esquilo - abrem grandes perspectivas, em que o poeta deixa
entrever os seus gostos e as suas convicções.
Não há em Grego, por exemplo, um hino mais belo à glória do
homem, das suas descobertas, da sua inteligência criadora, do que o canto
da Antígona, que começa pelas palavras: «Muitos prodígios há; porém
nenhum / maior do que o homem.» (332 e seg.). Segue-se, no espírito
da época, que acreditava no progresso, uma magnífica evocação de todas
as invenções humanas; e ela conclui-se, num espírito mais característico
do próprio poeta, pela ideia de que, se esta inteligência se usar para o
mal, ou contra a lei, tomar-se-á desastrosa.
Mesmo os cantos de dor traduzem indirectamente o amor de Sófo­
cles pela vida: é o caso do lamento pungente no Edipo em Colono da
velhice; o poeta devia ter, quando o escrevia, noventa anos, visto que a
peça só foi representada depois da sua morte; e é um canto amargo,
dizendo que é preferível morrer o mais cedo possível: é referido várias
vezes para o pessimismo de Sófocles. Mas, por detrás desta amargura,
não distinguimos o lamento de tudo aquilo que o fazia amar a vida? «Por
último, é a vez da execrável velhice, indefensa, insociável e inóspita.»
(1235-1237) não deixará adivinhar o gosto de Sófocles pela sociedade,
pelos amigos, pela vida feliz que conhecera outrora?
Até mesmo à sua Atenas, ou melhor, à sua Ática ele descobre forma
de cantar nesta tragédia. Edipo vai lá para morrer: é suficiente para jus­
tificar todo um canto sobre a beleza da Ática; os pássaros, as plantas, as
águas que correm e a presença benéfica dos deuses, tudo se mistura numa
espécie de um feliz apaziguamento: «Neste país de esplêndidos corcéis,

128
SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

ó estrangeiro, à mais bela mansão da terra tu chegaste: Colono alvini-


tente. Aqui, a doce filomela entoa seus lamentos, na verde espessura dos
vales que frequenta. A hera sombria lhe serve de morada, e do deus a
inviolável ramagem de mil frutos, que não conhece o sol, nem os ventos
de todas as tempestades.» (668 ss.).
O poeta que mais insistiu na fragilidade da felicidade humana e que
elevou ao máximo o heroísmo regressa aqui ao homem feliz que a sua
biografia deixa entrever. E a impressão confirma que, neste constante
contraste, que a sua obra mostra, entre a fragilidade e a grandeza do
homem, o elemento mais importante não é primeiro. O teatro de Sófo-
cles nada tem de desesperante; e o seu pessimismo não se dirige mais
ao valor dos homens do que à beleza da vida.

II.
EURÍPIDES

Não se passa o mesmo com Eurípides. Nascido menos de quinze


anos depois de Sófocles, pertence, contudo, a uma geração formada numa
atmosfera moral diferente. Intelectualmente pertence à época dos sofis-
tas e, politicamente, à época das dificuldades associadas à guerra do
Peloponeso.

1. A vida de Eurípides

Eurípides nasceu em Salamina, sem dúvida em 485. Os seus con­


temporâneos riram-se, provavelmente injustamente, das suas origens
modestas. Em qualquer caso, a sua vida parece ter estado semeada de
desgraças. Mal casado, por duas vezes, frequentava poucos amigos. Não
teve actividade política. E, no teatro, a sua carreira foi muito notada, mas
muito contestada: tendo começado em 455, só treze anos mais tarde foi
classificado em primeiro lugar e, depois disso, apenas mais três vezes em
trinta e seis anos. A sua arte era nova, muito livre, e devia chocar facil­
mente: Aristófanes testemunha-o, nas Rãs. Enfim, num meio desacordo
com a cidade atinge uma ruptura definitiva: em 408, perto do final da

129
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

guerra do Peloponeso, Eurípides deixa Atenas para ir viver na Macedó-


nia, na corte do rei Arquelau: morreu em 406, longe da sua pátria prestes
a sucumbir.

2. A obra de Eurípides

O número de peças atribuídas a Eurípides é de noventa e duas; nos


nossos dias, possuímos dezoito tragédias (uma das quais de autenticida­
de contestada, o Reso) e um drama satírico: o resto só se conhece por
breves fragmentos conservados em citações de autores ou encontradas
em papiros.
O drama satírico, cuja data é desconhecida, é o Ciclope: os sátiros
são escravos do ciclope; o diálogo é vivo, mas sem alegria.
De entre as tragédias oito são conhecidas com a sua data: a Alceste
é de 438 (é a única que é anterior à guerra do Peloponeso), a Medeia é
de 431, o Hipólito de 428, as Troianas de 415, a Helena de 412, as Fení­
cias de 410 e o Orestes de 408; duas foram representadas depois da morte
do poeta, a Ifigénia em Aulis e as Bacantes. As outras repartem-se entre
431 e 412. A obra conservada está, portanto, toda marcada pela guerra;
e não é raro que tenha a marca da actualidade, seja nas alusões de por­
menor, seja na sua própria inspiração.
Um breve exame das primeiras peças dá, de resto, uma ideia dos
diferentes temas da obra.
Alceste é uma peça à parte, que ocupava no concurso o lugar habi­
tualmente reservado ao drama satírico (daí, talvez, a facilidade com que
Eurípides lhe introduziu Héracles disposto a festejar). Mas é uma autên­
tica tragédia: Alceste aceita morrer no lugar do marido, Admeto, e é-lhe,
por fim, devolvida por Héracles, vencedor da morte. O sacrifício da
jovem mulher está cheio de uma nobreza patética, mas as personagens
que a cercam, como Admeto e, sobretudo, o seu pai, Feres, são muito
pouco heroicas. A tragédia já tem, apesar da sua situação à parte, as duas
características de todas as de Eurípides: o patético e o realismo.
Com Medeia surge um traço novo e importante, que é o poder da
paixão. Abandonada por Jasão, Medeia vinga-se dele matando a jovem
rival e, depois, degolando os próprios filhos. Este crime não se dá sem

130
SÓFOCLES, EURÍPIDES, AR1STÓFANES

sofrimentos nem incertezas: com a paixão, as reviravoltas psicológicas


fazem a sua aparição no teatro. Continuarão a ser uma das suas princi­
pais molas, até nas literaturas modernas.
Os Heraclidas, que são de 430 ou de uma data situada entre 430 e
427, pertencem a toda uma outra inspiração: é uma peça patriótica, escri­
ta para glória de Atenas. O rei de Atenas, Demofonte, recebe e protege
os filhos de Héracles, perseguidos pelo ódio de Euristeu. No entanto,
deparamo-nos com um dos temas da Alceste: com efeito, Eurípides intro­
duz nesta lenda tradicional um episódio de sacrifício voluntário, dado
que a jovem Macária aceita morrer pelos irmãos, a fim de obedecer a
uma exigência dos deuses.
Em contrapartida, o Hipólito encontra a veia de Medeia, já que o tema
é, outra vez, o da paixão amorosa. Fedra, mulher de Teseu, está apaixo­
nada por Hipólito, filho de Teseu: vendo-se traída, morre, acusando-o, e
Teseu amaldiçoa e mata o filho, que crê, erradamente, ser o culpado.
Eurípides já tinha tratado este tema numa peça mais audaciosa, onde a
própria Fedra confessava a Hipólito o seu amor (como em Racine). Aqui
nem sequer ficam em presença um do outro. Mas a luta interior de Fedra,
como a de Medeia, é descrita com um raro poder. A peça é enquadrada
pelas duas figuras divinas rivais, Afrodite e Artemis, o amor e a pureza;
mas a sua verdadeira luta desenrola-se no coração mesmo de Fedra.
Andrómaca (para a qual foram sugeridas datas muito distintas, que vão
de 429 a 417) é também uma peça de paixão: Andrómaca, cativa de Neop-
tólemo, é alvo do ciúme de Hermíone e do seu pai, Menelau. Apressam-
-se a matá-la, ao mesmo tempo que ao seu filho. Não o conseguem e
Hermíone, receando a vingança de Neoptólemo, manda que este último
seja morto por Orestes; tudo isto se desenrola perante ameaças e violên­
cias; e Hermíone, cedendo aos seus impulsos, passa da arrogância ao terror.
Mas, ao mesmo tempo, a peça é uma daquelas onde aparece, a propósito
da tomada de Tróia, a grande piedade de Eurípides pelos vencidos e pelos
males da guerra em geral.
Esta grande piedade inspira a Hécuba (sem dúvida de cerca de 424),
como inspirará mais tarde as Troianas: Hécuba, rainha de Tróia, de ora
em diante cativa, vê imolar a sua filha, Políxena (que quase faz desta
morte um sacrifício voluntário), e vinga a morte do seu filho Polidoro,

131
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

vazando os olhos do traidor responsável por ela. As misérias da guerra


combinam-se com a paixão da vingança.
Héracles (que se situa entre 424 e 415) é uma peça onde a acção
conduz de surpresa em surpresa. A família de Héracles vai ser imolada
por um tirano: é o patético da fraqueza, caro a Eurípides. Golpe de teatro:
Héracles surge como salvador. Mas imediatamente - outro golpe de teatro
- ele é tomado de loucura e massacra os próprios filhos. Este desastre é
tanto mais surpreendente quanto Eurípides situou a loucura de Héracles
depois de todos os seus trabalhos. Mas, ao cair em si, como o Ajax de
Sófocles, Héracles - pronto, como ele, a matar-se - é encorajado a viver
por Teseu e encontra na resolução de viver uma nova forma de coragem.
Depois de Suplicantes (cerca de 424-421), peça patriótica, como os
Heraclidas, mas entrecortada por tiradas pacifistas, vem, por fim, toda
uma série de peças que não poderíamos seguir em pormenor.
Em muitas, a acção é cada vez mais complexa e importante: são
muito entrecortadas por reconhecimentos, artifícios, surpresas. Como
íon (cerca de 418-414?), onde o jovem herói, tão puro como Hipólito e
que vive ao serviço de Apoio, crê encontrar o pai e encontra a mãe, depois
de várias mortes falhadas. Como Ifigénia entre os Tauros (cerca de 415-
-412?), em que Ifigénia reconhece a tempo um irmão que ia imolar a
Ártemis e com o qual, graças a uma artimanha, consegue salvar-se. Como
Helena (412), em que se descobre que Helena nunca foi para Tróia (a guer­
ra foi feita por causa de uma sombra!): Menelau encontra-a no Egipto e
salva-se com ela, também aqui graças a uma artimanha.
Entrementes, há uma peça inteiramente consgrada às desgraças da
guerra (as Troianas), uma outra que retoma, quase ao mesmo tempo que
Sófocles, o tema das Coéforas de Esquilo (Electra): o realismo de Eurí­
pides quis que Electra fosse casada com um camponês; o seu gosto pelo
patético quis que ela tomasse parte no assassínio da sua mãe; a sua psi­
cologia das paixões fez com que, em seguida, Electra passasse do ódio
ao lamento. O mesmo ciclo da lenda reaparece, quatro anos depois, em
Orestes. Aí encontramos o realismo de Eurípides: as Erínias, que perse­
guem Orestes, tomam-se aqui no tormento muito humano de um ser
doente, que a consciência do seu acto persegue; do mesmo modo, o jul­
gamento de Oresff*sjá não é um veredicto solene proclamado por Atena,
mas o de uma assembleia conduzida por demagogos. Por outro lado, o

132
SÓFOCLES, EURÍPIDES, AR1STÓFANES

gosto do patético também se encontra quanto mais não seja nos esforços
de Orestes para obter apoio por uma ameaça de morte.
Entre as duas, as Fenícias tinha retomado o tema dos Sete contra
Tebas de Esquilo; mas, desta vez, os dois irmãos opõem-se directamen-
te; dilaceram-se diante da mãe. E a sua ambição tem como correctivo o
sacrifício voluntário do jovem Meneceu. O patético está ao serviço de
uma condenação violenta das querelas que destroem as cidades.
O tema do sacrifício voluntário encontra-se, sabemo-lo, na Ifigénia
em Aulis, em que também se multiplicam as dúvidas, as discussões, as
reviravoltas, os enternecimentos.
Em contrapartida, as Bacantes terminam a série com uma impres­
são de início confusa. Porque a peça trata, no espírito trágico mais tra­
dicional, da vingança de Dioniso sobre o incrédulo Penteu; e o culto do
deus é aí descrito com uma poesia que sugere um fervor sincero, que
parece preferível à sabedoria dos que raciocinam. Mas este deus tão exal­
tado é um deus cruel; a sua vingança é horrível, já que a mãe de Penteu,
Agave, vem agitando a cabeça do filho, que ela própria, no seu delírio,
matara: se o fervor é belo, ele também se volta contra este homem. E o
patético brutal da peça mostra suficientemente que a ligação entre todas
estas tragédias é a presença concreta do sofrimento humano, venha ele
da paixão, da guerra, do erro, ou então, como aqui, dos deuses.
Tal é, com efeito, o mais visível dos traços que marcam a inspiração
de Eurípides; e, por esta razão, ele merece ser lembrado em primeiro
lugar.

3. O sofrimento e o patético

Diversos traços da arte de Eurípides contribuem para realçar este


patético.
O primeiro é o grande desenvolvimento dado à psicologia. Esta é indi­
vidualizada e sabe dar lugar à irracionalidade da afectividade. Enquanto
a Clitemnestra de Esquilo era como um bloco de vontade, sem que seja
possível reconhecer os seus motivos principais, Medeia é-nos dada a
conhecer por dentro, com a sua raiva, as suas esperanças e as suas dúvi­
das; e o diálogo de Fedra com a ama, alimentado por receios, sonhos e

133
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

confissões involuntárias, oferece a imagem, rara na literatura grega, de


uma alma dividida, em luta contra si mesma.
A força das paixões e das emoções é descrita até nas suas conse­
quências físicas. Depois de Safo, Eurípides evoca-as a propósito de Fedra,
em fórmulas que Racine não iria esquecer. As primeiras palavras da rai­
nha são um lamento: «Levantai-me o corpo... apoiai-me a cabeça. Não
tenho força nenhuma nas articulações dos meus membros. (...) este dia­
dema está a oprimir-me a cabeça.» (Hipólito, 198-201) (2).
A mesma força surge no facto de que estas paixões e estas emoções
dissipam toda a sabedoria, todo o respeito pelas regras morais. Eurípi­
des não pensa, como Sófocles, que as faltas cometidas são erros de jul­
gamento. Assim, Fedra declara: «nós reconhecemos o que está certo e
compreendêmo-lo, só que não o pomos em prática» (Hipólito, 380-381);
e Medeia faz-lhe eco: «compreendo bem o crime que vou perpetrar mas,
mais potente do que as minhas deliberações, é a paixão» (3). De onde
estes crimes e estas vinganças sem medida que se multiplicam nas tra­
gédias de Eurípides.
Inversamente, o carácter irracional das paixões e das emoções expli­
ca também as reviravoltas bruscas das personagens, que são um outro
novo traço no teatro grego. Medeia quer vingar-se; ela está muito deci­
dida a matar os filhos; mas a sua visão, os seus olhares, as suas mãos, os
seus lábios fazem, de cada vez, vacilar a sua resolução. As personagens
passam do sim ao não (como Medeia), da raiva ao medo (como Hermí-
one), do ódio ao abatimento (como Electra). Ou, pelo contrário, impõe-
-se-lhes subitamente um impulso de generosidade, como com Ifigénia,
cuja reviravolta ainda chocava Aristóteles.
Esta psicologia das emoções e das paixões contribui para o patético.
Mas estas reviravoltas indicam que estas psicologia não é a única causa:
o patético também releva dos sobressaltos da acção e do realismo das
evocações ou dos espectáculos.

(2) N.T.: Para as citações do Hipólito, usámos a tradução portuguesa: Eurípides, Hipó­
lito, (introdução e tradução do grego e notas de Frederico Lourenço), Lisboa, Edições Colibri,
1993.
(3) N.T.: Para as citações da Medeia, usámos a tradução portuguesa: Eurípides, Medeia,
(introdução, versão do grego e notas de Ma. Helena da Rocha Pereira), Coimbra, JNICT/
CECHUC, 21996.

134
SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

Em Eurípides, a acção está recheada de surpresas e de golpes de


teatro que nos levam, a cada passo, a esperar ou desesperar com as per­
sonagens. Com uma arte consumada, Eurípides prolonga o receio até ao
limite extremo para fazer intervir um reconhecimento no último minuto.
Estão prestes a intervir mortes entre parentes, vão ter lugar massacres,
quando, mesmo a tempo, a salvação chega (como na Andrómaca, no
Héracles, no Ion, na Ifigénia entre os Tauros, mas também em peças
perdidas, como Cresfonte, Alexandre ou Melanipo filósofo).
Enfim, tal como mostra estas mortes prestes a acontecer, Eurípides
mostra também as vítimas ao abandono, prostradas. As suplicantes de
Esquilo tinham medo, em Eurípides estão desoladas. Electra lamenta-se
da sua miséria. Muitas vezes, a presença de crianças realça o patético:
isto é verdade com Alceste, com Medeia, com Andrómaca, com os supli­
cantes - sem falar dos filhos de Héracles, que revemos mortos junto dele;
sem falar, também, do pequeno Astíanax das Troianas, que é entregue,
morto, à avó, numa cena em que as exclamações de dor sublinham o hor­
ror: «Desventurado, como as pátrias muralhas, as torres de Lóxias, tão
miseravelmente cortaram os anéis dc cabelo da tua cabeça, que tantas
vezes a mãe que te gerou compunha e beijava, e donde agora, quebrados os
ossos, se escancara como uma risada o sangue do crime. Não oculto estes
horrores. Oh! Estas mãos, como elas se parecem docemente com as de teu
pai, estas mãos que jazem na minha frente, soltas das articulações!...»(1173-
-1179) (4). As recordações de um passado feliz misturam-se com a evo­
cação brutal da morte, num contraste que é profundamente euripidiano.
O patético separa-se de todos os recurso da arte de Eurípides: corres­
ponde certamente, nele, a uma inspiração profunda - e profúndamente
pessimista. Esquilo via na guerra uma luta ardente, na qual os justos triun­
fam: Eurípides via nela um mal provocado pela loucura dos homens, que
se traduzia em sofrimentos para todos. Sófocles celebrava o heroísmo dos
homens: Eurípides mostra-os muitas vezes, quando a paixão não se mis­
tura, como os cobardes, os ambiciosos, os hipócritas. Os próprios deuses
são levados por invejas injustas - como Afrodite, no Hipólito, e Hera no
Héracles - ou pelo menos cruéis - como o Dioniso das Bacantes.

(4) N.T.: Para as citações das Troianas, usámos a tradução portuguesa: Eurípides,
Troianas, (introdução, tradução do grego e notas de Ma. Helena da Rocha Pereira), Lisboa,
Edições 70, 1996.

135
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Os únicos que sobressaem neste universo tão sombrio são os seres


jovens e ainda puros, como Hipólito ou Ion, ou como todos aqueles que
aceitam morrer numa renúncia serena: Macária, Políxena, Meneceu, Ifi-
génia. E esta excepção confirma a regra: a única luz no teatro de Eurí-
pides encontra-se fora da vida. E um teatro que, cada vez mais, aspira à
fúga, longe da cidade, longe dos homens, longe do sofrimento.
Estes diversos traços seriam suficientes para sugerir a originalidade
da obra de Eurípides; mas estão, de facto, associados a outros que não
são menos modernos, mas são, aparentemente, quase opostos. Porque
este teatro de sofrimento é também um teatro de ideias.

4. As ideias e as dúvidas

Na sua época, Eurípides foi essencialmente um «moderno». O seu


retrato das paixões, a sua insistência na fraqueza humana, o seu realis­
mo são algumas marcas. Mas, ao mesmo tempo, sensível a todas as cor­
rentes do tempo, ligado aos sofistas, emprestou às suas personagens a
arte deles para discutir àcerca de tudo e deixou aflorar no seu teatro todos
os problemas, todas as novas ideias e, também, todas as dúvidas que eles
puseram na moda.
Estes dois aspectos, que associam nas personagens de Eurípides a
paixão mais dolorosa e a discussão mais elaborada, apresentam-se por
vezes em alternância: a Medeia ouvimos primeiro exclamações, quase
gritos, depois ela entra, para apresentar um monólogo sobre a condição
feminina. Hécuba, essa, ao ouvir contar a nobre morte da filha, interroga-
-se sobre a parte respectiva da natureza e da educação. Fá-lo logo de
seguida, no momento mais forte da sua dor. Outros discutem no mais
forte da sua paixão. Dir-se-ia que o brilho destas argumentações está
fora do seu lugar? É certo que isso sucede, mas, em geral, os dois traços
combinam-se. A força da convicção, ou do desejo, inspira os que defen­
dem a sua causa. Muito embora, na maioria das vezes, a paixão e a aná­
lise intelectual andem a par.
Esta presença das ideias no teatro de Eurípides não implica, aliás, a
unidade de um pensamento. Poderíamos retirar da própria estrutura das

136
SÓFOCLES, EURÍPIDES, AR1STÓFANES

peças de Esquilo ou de Sófocles uma ideia da sua visão do mundo: Eurí-


pides toca tudo, discute tudo e, finalmente, afasta-se.
O domínio das ideias políticas é, talvez, aquele em que o seu pen­
samento é menos difícil de entender. Ele escreveu, no início da guerra,
peças fervorosamente patrióticas, exaltando a generosidade ateniense:
são os Heraclidas e Suplicantes. E, frequentemente, um herói ateniense
intervém como amigo e como salvador nas suas peças (como Medeia ou
Héracles, mas também em peças perdidas como Álope ou Erecteu).
Esparta, pelo contrário, é abertamente atacada na Andrómaca. Mas, a
par deste patriotismo, e por vezes nas mesmas peças, intervém o horror
da guerra; e Eurípides defende de bom grado a paz. Este sentimento ins­
pira tiradas súbitas, que passam por cima da acção e do mito para se diri­
girem aos espectadores; ele também inspira o próprio tema de várias
peças: Andrómaca, Hécuba, as Troianas são consagradas, em parte ou
na totalidade, aos sofrimentos que resultam da guerra; e a Helena sugere
uma guerra levada a cabo por nada. Também o coro canta na peça: «Sois
insensatos, vós que buscais a glória nos combates, entre as armas belico­
sas, crendo na vossa ignorância, encontrar aí um remédio para a miséria
dos homens...» (1151-1154). Do fervor dos inícios a este desencanta-
mento, as próprias flutuações do pensamento de Eurípides correspondem
suficientemente à evolução da situação. E não é ilógico que, depois de
todos estes anos de guerra entre cidades gregas, a última tragédia termi­
ne com uma nota de pan-helenismo: Ifigénia morre pela Grécia unida.
Passa-se o mesmo com o interior da cidade. Há elogios da demo­
cracia; há, em Suplicantes, uma análise dos seus benefícios e dos seus
males, comparados com os da tirania. E depois, vemos definir os malefí­
cios das ambições que impedem a unidade (nas Fenícias) e os malefícios
da demagogia, que tomam uma assembleia agitada em árbitro de tudo
(como no Orestes). Estas notações da actualidade revelam um progres­
sivo desânimo - aquele desânimo que levou Eurípides a deixar Atenas
e o fez escrever as Bacantes, em que a ordem da própria cidade deixou
de estar em primeiro lugar.
Mas, se nas grandes linhas da política, encontramos uma linha de
evolução assim tão clara, isso não impede que, no pormenor, Eurípides
varie ao gosto da actualidade, cujo reflexo as suas tragédias nos oferecem
de boa vontade; assim se explica o esforço (por vezes excessivamente

137
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

engenhoso) tentado em certos livros para despistar na sua obra constantes


alusões (Delebecque, Goossens). Para dizer a verdade, só a sua abertura de
espírito permanece constante; assim, a sua obra apresenta sempre seve­
ramente quem quer que seja que trate com desprezo os Bárbaros, ou até
os escravos: também na política Eurípides está com aqueles que sofrem.
Esta abertura de espírito encontra-se noutros domínios, nos quais a
sua crítica se exerce mais livremente.
Ela exerce-se com prazer no domínio literário, em que ele se com­
praz a criticar uma cena de Esquilo, a responder a uma cena de Sófocles.
Exerce-se também no domínio dos mitos; e aí aproximamo-nos, já, do
domínio religioso. As suas personagens exprimem dúvidas, mais ou
menos irreverentes, que vão da reserva discreta à franca negação. Como
Cípris, deusa do amor, não guiou Páris a casa de Menelau (Troianas, 989:
«Toda a intemperança é para os mortais Afrodite»), Eurípides recusa,
em particular, os mitos pouco lisonjeiros para os deuses; leva Héracles
a dizer: «O pensamento de que os deuses se entregam a amores culpa­
dos, não pode ser o meu (...). Um deus, se na verdade é um deus, não
conhece qualquer necessidade; as narrativas contrárias são miseráveis
invenções dos poetas» (Héracles, 1341 ss.). Esta crítica reflecte as novas
ideias; estas reconhecem-se ainda melhor quando os deuses se tomam
deuses dos filósofos e Hécuba reza, dizendo: «O tu, que és o sustentá­
culo da Terra e que sobre a Terra tens a tua sede, quem quer que sejas
- pois é difícil formular qualquer conjectura para o saber - , ó Zeus, Força
da Natureza ou Espírito dos mortais, é a ti que eu invoco!» (Troianas,
884 ss.). Personagens negavam até a existência de deuses, como os espí­
ritos fortes do tempo (é o caso em Belerofontè). Mas, ao mesmo tempo,
que ternura na Ártemis do Hipólito, que fé tão elevadamente moral na
Teónoe da Helena, que êxtase mítico nas Bacantesl... A irreligiosidade
de Eurípides duplica com um fervor religioso apurado, muito diferente
da religião oficial.
Mas em que acredita ele? Em que não acredita? Acreditará ele, ape­
nas, que os deuses conduzem o mundo? Deuses individuais intervêm no
seu teatro, como Afrodite, Hera ou Dioniso; mas a ideia de uma vontade
divina que guia o mundo desapareceu, cedendo o lugar ao acaso; e, con­
soante os casos, ele insiste no poder de um deus ou na simples incerteza
da sorte.

138
SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

Estas interrogações da nova época atingem o domínio moral. Será


a virtude ensinada? O ensino será mais importante do que a hereditarie­
dade? Eurípides apresenta estes problemas e, assim, infunde no seu tea­
tro, ocasionalmente, novas teses audaciosas: mostra o trabalhor, marido
de Electra, encarnando uma qualidade que os grandes nem sempre têm.
Neste final do século v, tudo levanta questões, porque tudo muda. Que
vida é preferível? A activa ou a contemplativa? As personagens deAntíope
discutiam-no. E o desporto? E as mulheres? Os raciocinadores, em Eurí­
pides, deitam-nas abaixo; mas ele mostrou-nos algumas admiráveis...
Para dizer a verdade, Eurípides aborda um pouco todos os problemas,
mas nunca defende uma causa: fá-las defender a todas, consoante a oca­
sião, pelas suas personagens, o que é muito diferente.
O único sentimento que parece, cada vez mais, corresponder às suas
profundas disposições é o pessimismo que surge na sua obra. Produto
da piedade de Eurípides para com o sofrimento, da sua fadiga política e
das suas dúvidas filosóficas, esse pessimismo que, sem dúvida, o levou
a fugir de Atenas, também contribuiu para que desse às suas personagens
os mais belos sonhos de evasão, de voar para longe, de recuo para a arte
e a poesia. Este tema, que se encontra nos lamentos das vítimas e nos
cantos do coro, alterna com as tensões da acção dramática, numa espé­
cie de contraponto que é a grande originalidade da sua arte.

5. A arte de Eurípides

Esta inspiração geral do seu teatro traduz-se, nas suas tragédias, em


inovações técnicas.
Elas dizem respeito, em primeiro lugar, à acção e à sua complexi­
dade. O número de actores aumentou, logo o das personagens também.
Enquanto Sete contra Tebas, de Esquilo, só tinha, para além do coro, o
rei e os mensageiros, a tragédias das Fenícias trata o mesmo assunto,
fazendo intervir toda a família de Édipo: Polinices e Jocasta, primeiro,
mas também Antígona, Creonte, o seu filho Meneceu e também Tirésias,
ou ainda Édipo em pessoa, no final. A complexidade sucede à simplici­
dade, a variedade à continuidade.

139
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Por outro lado, Eurípides não hesitou em modificar livremente os


dados lendários para introduzir as desejadas reviravoltas e ligar as suas
personagens.
Mediante isto, combinou acções novas e movimentadas. Com ele,
encontramo-nos perante uma verdadeira técnica dramática, no sentido
moderno do termo. E podemos distinguir na sua obra um certo número de
cenas tipo, que ajudam nesta nova arte. Também lhe devemos o uso de
longos prólogos narrativos, destinados a esclarecer o público sobre a
novidade das situações. Inversamente, as suas acções extensas e comple­
xas não conseguem, muitas vezes, encontrar solução, a não ser no apa­
recimento final de uma divindade: o deus ex machina. Entre estes dois
limites livremente utilizados, ele podia conduzir a acção a seu gosto.
Mas, também aí, serve-se de cenas-tipo: a apresentação de suplicantes
junto de um altar adequava-se ao seu gosto pelo patético, bem como as
narrativas dos mensageiros. As ameaças de morte e as cenas de reconhe­
cimento desempenhavam um papel equivalente. Por outro lado, as cenas
de discussão, ou de agôn, que figuram em todas as suas peças, iam ao
encontro das suas tendências intelectualistas.
Tudo isto deixava pouco espaço para o lirismo; e o facto é que os can­
tos do coro, em Eurípides, são de pequena extensão; excepto nas Bacan­
tes., os coros são, ainda, bastante estranhos à acção. Os seus temas são,
muitas vezes, lamentos ou evocações poéticas, que poderiam encontrar-
-se noutro lado. Em contrapartida, Eurípides, preocupado em mostrar
emoções, pôs os seus actores a cantar, com uma grande leveza: os diá­
logos, meio cantados, meio falados, são frequentes; e aí o canto marca
sempre, em contraste com a palavra, a exaltação sentimental. Há também
solos de actores, nos quais Eurípides adoptou as inovações da música
contemporânea, com um andamento mais livre do que a antiga, e per­
mitindo seguir o movimento da emoção.
Estas diversas audácias, este modernismo que anima o teatro de
Eurípides explicam ao mesmo tempo a sua voga imediata e as resistên­
cias que suscitou.
Estas liberdades encontravam-se nos contemporâneos e nos imita­
dores. Mas para nós mais não são do que nomes. Alguns eram conheci­
dos pelos seus efeitos cénicos, como Cárcino e os seus filhos; outros
eram-no pelas suas audácias filosóficas, como Crítias. Agaton, que foi

140
SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

ele próprio uma personagem do Banquete de Platão e das Tesmofórias


de Aristófanes, assemelhava-se em muitos aspectos a Eurípides e viveu,
tal como ele, na Macedónia; parece ter levado ainda mais longe a liber­
dade de invenção, a dissociação entre os coros e a acção e o gosto pelas
inovações métricas.
Mas, entre todos estes jogos literários, a própria força da tragédia
tenderia a desaparecer. Conhecemos, no século iv, alguns nomes de auto­
res ou de peças (como Meleto, Antifonte, Querémon, Afareu, Diceógenes,
Astídamas); mas trata-se, na maioria dos casos, de escritores de profis­
são, frequentemente formados em retórica. Todas estas obras se perderam,
excepto o Reso, que foi preservado porque era considerado uma peça de
Eurípides. Com efeito, a tragédia extinguiu-se com Eurípides e com a
própria grandeza de Atenas. A partir de 386, inscrevia-se no programa
das festas a reposição em cena de uma tragédia antiga; um pouco mais
tarde, o teatro de Dioniso foi decorado com as estátuas dos três grandes trá­
gicos: a história do género trágico encheu exactamente todo o século v;
mas não se prolongou depois disso.

III.
ARISTÓFANES

Esta segunda metade do século v, que viveu um tal desabrochar - e


uma tão clara evolução - do género trágico, conheceu um desabrochar
semelhante com a comédia. Concursos trágicos e cómicos estavam a par.
Se não foi aqui tratada a comédia ática antes de Aristófanes, é por­
que as origens do género são mal conhecidas, porque ele só se oficiali­
zou em Atenas no decorrer do século v, e não nos chegou nenhuma outra
obra antes de Aristófanes.
Aristóteles apresenta a comédia ligada, nos seus começos, aos cantos
e brincadeiras de uma procissão burlesca em honra do deus do vinho, o
kômos, procissão que se desenrolava sob o emblema do falo e constituía
uma espécie de carnaval. Depois intervieram actores e foram inventadas
verdadeiras cenas. A comédia propriamente dita parece ter-se desenvol­
vido primeiro na região dórica. O mais antigo poeta conhecido foi Epi-
carmo, que passou a vida na Sicília e cuja acção poética remonta ao final

141
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

do século vi. Fragmentos das suas peças foram encontrados em papiros.


Encontramos aí, já, certos tipos de cenas e determinados caracteres que
passaram para a comédia ática. Epicarmo também já tinha uma veia ale­
gre e realista, bem como vigor intelectual.
Na Ática, os primeiros nomes conhecidos foram os de Quiónides
(citado por Aristóteles), Magnes, Cratino e Crates (evocado por Aristó-
fanes nos Cavaleiros)·, os dois últimos, um cheio de verve, o outro mais
delicado, produziram peças ao mesmo tempo que Aristófanes (a Garra­
fa, de Cratino, é de 423 e é uma resposta aos Cavaleiros, em que Aris­
tófanes o acusava de beber). Hermipo, esse, atacou vivamente Péricles.
Nessa época o género cómico estava já bem constituído, com ele­
mentos essenciais que estão presentes em toda a comédia.
Desses elementos, dois são particularmente notáveis: o agôn e a
parábase. Ambos obedecem a formas fixas e empregam determinados
metros. O agôn é essencial à acção: opõe dois campos cujos represen­
tantes, depois de um breve encorajamento lírico, defendem cada um a
sua causa, frequentemente, duas vezes cada um, num epirrhêma com­
posto por tetrâmetros. O conjunto corresponde-se rigorosamente, ainda
que a cena comporte uma verdadeira batalha. Pelo contrário, a parábase
é uma interrupção na acção. Situa-se no meio da comédia: os coreutas,
permanecendo sós, dirigem-se aos espectadores e são porta-vozes do
poeta. Exprimem-se em tetrâmetros anapésticos (embora esta parte seja
chamada muitas vezes «os anapestos»). Dominam aí as mesmas introdu­
ção e conclusão líricas, as mesmas correspondências que no agôn. A pará­
base desaparece nas últimas comédias de Aristófanes: já não existe nem
na Assembleia das Mulheres, nem no Pluto.
Este uso de formas fixas não deve dar a ideia de que a comédia antiga
era rígida. Primeiro, as outras cenas eram livres (salvo alguma excepção,
o seu metro era o trímetro jâmbico, como na tragédia). Depois, até estes
quadros fixos deixavam lugar para uma invenção mais alegre.
Pois a comédia antiga transbordava de vitalidade. Ela não se privava
de nada, misturando os impulsos líricos com grosserias mais francas, em
todos os domínios. Do mesmo modo, tinha um tom livre, atacando franca­
mente as pessoas (apesar de algumas tentativas para proibir o processo):
via-se intervir nelas caricaturas de assembleias, caricaturas de homens
políticos ou de homens conhecidos, como Eurípides ou Sócrates, designa-

142
SOFOCLES, EURIPIDES, ARISTOFANES

dos pelo nome. E, como a liberdade de invenção correspondia à do tom,


via-se aparecer os deuses tratados de modo burlesco, seres imaginários
(como o escaravelho gigantesco que, na Paz, leva Trigeu até à morada
dos deuses), ou homens-animais (como as vespas que, com os seus dar­
dos, representam juízes atenienses, ou como as aves, junto das quais vão
viver dois Atenienses cansados da sua cidade, ou ainda como aquelas
rãs que coaxam num pântano infernal): vespas, aves, rãs constituíam, nos
diversos casos, o coro, e deram o título às peças. O universo da comédia
é, assim, variado, burlesco, largamente fantasioso: apenas o camponês
de gostos simples dá a este mundo multicolor a sua medida de humani­
dade e de realidade quotidiana.
Estes caracteres divinos da comédia antiga são-nos conhecidos,
sobretudo, através da obra de Aristófanes, a única que foi preservada.
Aristófanes deverá ter nascido em Atenas, cerca de 455, e a sua últi­
ma peça datada é o Pluto, em 388; mas o essencial da sua vida e da sua
obra corresponde à época da guerra do Peloponeso. Sabemos, de resto,
que a sua primeira peça a ser representada foram os Convivas (uma peça
perdida que, como os Babilónios, no ano seguinte, não foi apresentada
em seu nome): isto passou-se em 427, pouco depois da morte de Péricles.
Também sabemos que muitas das suas peças se inspiraram na actualidade,
que ele atacou violentamente o demagogo Cléon, que se queixava das aspe­
rezas sofridas pelos aliados, que ele demonstrou um ardente espírito
pacifista e lutou, aquando da segunda parte da guerra, pela reconciliação
entre os Gregos.
Conservamos dele onze comédias, que atraversam e medem a pró­
pria história da guerra.
A primeira dessas peças conservadas data de 425 e intitula-se OsAcar-
nenses. Acamas era uma povoação da Ática que fora particularmente
fustigada pela guerra e a peça é uma defesa em favor da paz: como Ate­
nas não quer de modo algum negociar, Diceópolis negoceia sozinho com
Esparta; os Acamenses, de início furiosos, são vencidos pelas suas razões;
e o fim da peça mostra-o fazendo uma patuscada enquanto os outros
morrem à fome. Ao avançar, encontra-se uma explicação para as causa
fúteis da guerra e uma cena de troça relativamente aos processos paté­
ticos de Eurípides.

143
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

O ano seguinte viu Os Cavaleiros, a primeira peça que Aristófanes


fez representar em seu nome e que lhe valeu o primeiro prémio. É um
ataque contra o demagogo Cléon, que acabava de conseguir um bom êxito
- imerecido aos olhos de Tucídides e de Aristófanes - em Pilo. O poeta
apresenta dois servidores do velho Demo (o Povo) oprimidos por um
novo intendente (Cléon); ficam a saber que Cléon será vencido por um
homem ainda mais vulgar do que eles; descobrem o candidato perfeito
na pessoa de um vendedor de salsichas. Há, entre os dois, confrontos e
concursos de lisonjas diante de Demo. O vendedor de salsichas vence-o
e Demo, rejuvenescido, toma as melhores resoluções para o futuro.
As Nuvens são de 423 e constituem um ataque contra Sócrates -
muito injustamente apresentado como o representante das ideias da moda,
preocupado com investigações absurdas sobre o mundo e pronto a enco­
rajar o desprezo pelas leis. O homem simples Estrepsíades, que confiou
a educação do filho a Sócrates, verá o filho bater-lhe, mostrando-lhe que
isso é correcto. Esta crise das ideias morais corresponde àquilo que Tucí­
dides denunciou na mesma época.
As Vespas, em 422, são uma condenação da organização dos tribu­
nais atenienses, que punha pessoas simples na dependência de demago­
gos como Cléon (este acabava de fazer aprovar a compensação de três
óbulos concedida aos juízes). No final, um velho juiz, Filócleon, é con­
vencido pelo filho, Bdelícleon: renuncia aos processos e prepara-se para
levar uma vida de divertimento.
A Paz é do ano seguinte e retoma o tema pacifista dos Acarnenses,
com uma acuidade tanto maior, quanto a paz estava, então, muito perto
de ser concluída. Trigeu, subindo até junto dos deuses, consegue descobrir
onde está escondida a Paz e tira-a do poço onde está enterrada. Toda a
gente vem ajudá-lo, os camponeses da Ática e os representantes de toda
a Grécia: a Paz surge graças aos seus esforços reunidos e aparece com
a deusa das colheitas e das festas. Todos estão, mais uma vez, alegres...
Neste momento a paz foi, efectivamente, concluída; mas não temos
comédias de Aristófanes entre 421 e 414; e a comédia de 414 é uma
comédia de evasão e de sonho: nas Aves, dois Atenienses vão viver com
as aves e, com elas, arrebatam a realeza aos deuses. Tudo isto não é mais
do que fantasia, sobre os nomes das aves, o seu aspecto, as suas lendas,
o seu canto. O chamar poupa a todos os pássaros (209 ss.), com as suas

144
SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

imitações (Epopopopoi, popoi, etc.) e as suas evocações de todas as


várias espécies (dos campos, dos jardins, das montanhas, dos pântanos,
etc.), é uma manifestação muito excepcional da poesia da natureza no
Grego antigo.
Três anos depois, ou seja, pouco depois do desastre da Sicília, encon­
tramos nas Leneias de 411 a verva pacifista com a Lisístrata: uma mulher
lança um grande movimento de mulheres gregas, que farão uma greve
ao amor se não se restabelecer a paz. O efeito que esta greve produz nos
homens está - nós duvidamos - na melhor tradição das antigas procis­
sões dionisíacas portadoras do falo. Mas a paz entre os Gregos brilha
para lá destas farsas.
No mesmo ano, nas Grandes Dionisíacas, Aristófanes fez represen­
tar as Tesmofórias, uma comédia de cores muito vivas, visto que se trata
de mulheres e de homens que querem passar por mulheres, mas uma
comédia de ordem literária também, visto que estas mulheres querem
vingar-se de Eurípides que, de facto, surge no início.
Ele também desempenha um papel nas Rãs, em 405, dado que Dio-
niso, tendo falta de bons poetas, desce aos Infernos para aí procurar Eurí­
pides (que acabara de morrer, tal como Sófocles e Agaton); mas, nos
Infernos, tem primeiro de resolver uma justa entre Esquilo e Eurípides.
E será Esquilo que ele levará. Todos estes ataques são um testemunho
do que havia de novo e, aos olhos de alguns, de até um pouco decaden­
te neste Eurípides amigo dos sofistas; mas estes mesmos ataques, estas
alusões e estas paródias são também a medida da sua notoriedade.
As Rãs são a última peça conservada de Aristófanes que é contem­
porânea da guerra do Peloponeso. As duas última são muito posteriores
e já diferentes: A Assembleia das Mulheres, em 392, é uma espécie de
projecto feminista para impor o comunismo e a comunidade das mulhe­
res - um tema que se encontrará em Platão, mas que aqui está ligado ao
amor forçado, imposto aos homens, e às cenas burlescas que esta medida
arrasta. Por fim, a última peça, o Pluto (representada quatro anos depois,
em 388), trata igualmente dos sonhos de reforma social, visto que se
trata de pôr em evidência Pluto, ou seja, a Riqueza; apesar da oposição
de Pénia, a Pobreza, e dos lamentos dos malvados que são lesados, acaba
tudo com um cortejo em honra da Riqueza que sabe, de ora em diante,
reconhecer os méritos. A peça tem, aliás, uma linha menos clara do que

145
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

as outras; o estilo é mais seco; a parábase desapareceu. Pressente-se a


morte da comédia antiga, tal como se pressente a da tragédia nalgumas
das últimas peças de Eurípides.
Estas diversas análises - que dão, apenas, uma ideia muito incom­
pleta da obra, visto que os Antigos conheciam 44 comédias de Aristófa-
nes - dão conta, pelo menos, dos seus diversos centros de interesse e da
variedade da sua inspiração.
Por estas peças podemos fazer uma ideia da sua personalidade; mas
não seríamos capazes de imaginar a extraordinária riqueza verbal de
Aristófanes, que nenhuma tradição consegue dar. Ele inventa palavras,
combina-as, divertindo-se a fabricar monstros que, por vezes, ocupam
um verso inteiro; mistura os jogos da palavras, as farsas grosseiras, as
figuras líricas, as paródias, o estilo carregado de metáforas: cada passa­
gem é como um feixe deslumbrante de todos os processos distintos; e
nele a grosseria é crua, sem que o estilo não tenha nunca nada de vulgar.
E, portanto, injusto com Aristófanes evocá-lo apenas por resumos.
Isso pode ser enganador. Pois talvez não devamos acreditar em tudo
aquilo que ele põe as suas personagens a dizer. É certo que ele era apai­
xonadamente hostil com os demagogos e com a guerra. E certo que não
gostava nem da juventude dourada com a sua amoralidade, nem da nova
filosofia com as suas habilidades, nem da nova arte com as suas liberda­
des. Mas ele também se deixava guiar pelo desejo de se divertir, dando
uma tal explicação da guerra, porque servia os seus propósitos, simpli­
ficando, contando patranhas e rindo-se de Eurípides, tanto mais que o
conhecia muito bem.
Pelo menos um traço ele tem bem metido na cabeça, independente­
mente das situações e das ocasiões para divertir: é o amor pelo camponês
da Ática e da vida simples que ele levava, bem como uma grande piedade
pelo tipo de ilusão que lhe era preparado, sobretudo em tempo de guerra.
A paz de que Aristófanes gosta é a paz dos campos reencontrados e das ale­
grias concretas. O mundo que ele denuncia incansavelmente é o da guerra,
com os campos destruídos, a miséria e a população amontoada no interior
das muralhas, perdida, enganada e miserável. A este respeito, até os seus
quadros mais frescos e mais alegres são sempre o oposto desta guerra do
Peloponeso, cujo desenrolar foi acompanhado pela sua obra e pela sua vida.

146
SÓFOCLES, EURÍPIDES, ARISTÓFANES

Outros poetas cómicos contemporâneos de Aristófanes eram, na


altura, célebres e por vezes venceram-no. Entre eles figura Frínico, autor
de peças como o Solitário, os Sátiros, as Musas (onde havia, como nas
Rãs, uma justa de poetas. Mas o mais digno de menção é Êupolis, com
quem Aristófanes teve relações de amizade, antes de uma desavença
referida nas Nuvens. Tal como Aristófanes, ele entendia que a sua arte devia
servir a vida política de Atenas. Sabemos que, por vezes, atacou Péri-
cles; mas parece ter sido menos pacifista do que Aristófanes. Em con­
trapartida, tal como Aristófanes, atacou Cléon, depois Hipérbolo (Idade
do Ouro, Máricas). Como ele, defendeu sempre os direitos das cidades,
tratadas com muita dureza por Atenas {Cidades). Tal como ele, por fim,
mostrou na sua última peça (Aldeias) uma descida aos Infernos em busca
dos valores do passado, encarnados nos grandes homens atenienses.
Esta comprometimento político tão decidido encontra-se no cómico
Platão, cujas peças têm, por vezes, como título, nomes de demagogos
{Hipérbolo, Cleofonte). É, assim, um sinal dos tempos. Corresponde à
fervorosa vida política da época da guerra e parece atenuar-se desde os
primeiros anos do século seguinte. A partir daí, a chamada comédia média
(com autores como Antífanes e Alexis de Túrio) e, depois, a comédia
nova (com Menandro) deixariam a política para os oradores, evoluindo
cada vez mais para uma comédia de intrigas ou de retrato de caracteres.
A comédia à maneira de Aristófanes parece ter estado associada, tal
como a tragédia, ao desenvolvimento político de Atenas: nem uma nem
outra lhe sobreviveram.

147
CAPITULO V

AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS


NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO V
Se, na capítulo anterior, se tratou de Eurípides e de Aristófanes,
importa precisar que a sua obra não poderia ser compreendida sem a
imagem do extraordinário desenvolvimento racionalista de que então a
Grécia foi palco: brilhou muito particularmente na cidade que se toma­
ra, pelo seu poder e hospitalidade, no grande centro intelectual de todo
o mundo grego.
Muitas actividades novas foram-lhe externas; mas, na segunda meta­
de do século, filósofos e sofistas foram quase todos seus hóspedes. E foi
em Atenas que tiveram uma influência decisiva.

I.
MEDICINA, FILOSOFIA, RETÓRICA

1. Medicina e filosofia

A medicina, enquanto disciplina científica, nasceu nessa altura; mas


desenvolveu-se fora de Atenas. O seu fundador foi Hipócrates, que era
de Cós, uma ilha próxima da Ásia Menor; e as duas grandes escolas de
medicina deviam ser as de Cós e de Cnido (Cnido ficava mesmo em
frente, no continente). Mas, se Atenas não participou directamente neste
esforço, a literatura ateniense mostra a inegável influência que ele exer­
ceu sobre alguns espíritos: a obra de Tucídides, em particular, inspira-se
nele - não só quando o historiador descreve a epidemia de peste, mas

151
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

quando analisa os factos políticos com a objectividadc do clínico e a


preocupação de reconhecer os sintomas das doenças políticas.
Com efeito, a escola hipocrática caracteriza-se por uma nova preocu­
pação de observação sistemática e de método. Podemos fazer uma ideia
disso pela grande quantidade de tratados hipocráticos, embora eles não
sejam todos do mesmo autor, da mesma escola nem tenham todos a mesma
data. Está em curso um trabalho considerável para tentar organizar esta
produção. Mas uma coisa é certa, é que a partir da segunda metade do
século v, encontramos a preocupação em coleccionar observações clínicas
(Epidemias), a recusa de explicações de carácter religioso (Da doença
sagrada, onde se mostra que a epilepsia não é uma doença diferente das
outras) ou de teorias muito gerais (Da antiga medicina), a atenção dada ao
regime (Do regime, Da alimentação, Do regime nas doenças graves), ou
a influência das condições exteriores (Dos ares, das águas e dos lugares).
Ao mesmo tempo, estes tratados tentaram estabelecer uma doutrina
sobre a constituição do corpo humano e a função dos diferentes humo­
res: sangue, fleuma, bílis amarela, bílis negra (Da natureza do homem,
por exemplo). Estas teorias estão menos próximas de nós do que o méto­
do que as inspira; elas eram, aliás, objecto de discussão. Mas o desejo
de compreender e de interpretar é o seu princípio. E a medicina do sécu­
lo v já se define como investigação.
Se a curiosidade relativa ao corpo humano se desenvolveu sobretudo
fora de Atenas (Cós era o local onde reinava Asclépio, o deus curandeiro),
a filosofia, essa, aproximou-se dela no espaço; e também se aproximou,
no espírito, de uma reflexão centrada no homem.
Parménides, ou Empédocles propuseram sistemas do mundo: Ana-
xágoras também o faz, mas a sua doutrina, contudo, é interpenetrada
pelo racionalismo.
Anaxágoras era de Calzómenas, na Ásia Menor. Mas, distintamente
dos seus predecessores, foi viver para Atenas; surge no círculo de Péri-
cles; só partiu quando foi, como muitos amigos do homem de Estado,
acusado de impiedade.
De facto, Anaxágoras tinha uma visão racionalista do universo; e
Plutarco (Péricles, 6) conta como é que, a propósito de um carneiro com
um único chifre, que fora levado a Péricles, ele propôs, ao contrário do
adivinho Lâmpon, uma explicação puramente fisiológica.

152
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

Por outro lado, quando apresenta uma interpretação geral do uni­


verso e da sua origem, explica-o pelo papel único do Nous, ou Espírito
- o que já conduz para uma atenção particular dada ao papel do espírito
humano na organização da vida.
Tendências análogas encontram-se em Diógenes de Apolónia, que
viveu, também ele, em Atenas e que parece ser muitas vezes visado pelas
alusões de autores atenienses; mas o seu pensamento continua a ser
secundário; conhecem-se sobretudo as suas curiosidades próximas da
medicina (possuímos um fragmento sobre as veias) e o seu gosto por
explicações teleológicas.
Em contrapartida, Demócrito deu ao pensamento um progresso con­
siderável no sentido do racionalismo e das curiosidades sobre o homem.
Parece ter nascido cerca de 460, em Abdera, perto da Trácia e ter
vivido até muito velho. Viajou muito e foi a Atenas onde, diz-se, nin­
guém o conhecia.
O seu grande título de glória é o de ser, com Leucipo, o fundador
do atomismo.
E difícil distinguir a parte de um ou do outro, ou a atribuição a um
ou a outro de certos tratados. Mas sobre a sua doutrina não há qualquer
dúvida: é precisamente aquela que Epicuro e Lucrécio deveriam ilustrar
mais tarde. É, assim, um sistema racionalista, no qual, além do mais, os
matemáticos têm uma função importante (particularmente, em relação
com as sensações).
Além disso, Demócrito, a quem a pátria e as datas aproximam do sofis-
ta Protágoras, concede um grande lugar ao homem. O seu Mikros Diakos-
mos era relativo ao homem e o seu tratado Da Serenidade (euthymiê) é
o tratado de um moralista, que convida a manter em ordem e em equilí­
brio a alma humana. Deste tratado, apenas possuímos algumas reflexões
isoladas; umas são notáveis pelo lugar que atribuem à importância do
que poderíamos chamar consciência: «E perante nós mesmos que deve­
mos ter vergonha, quando agimos mal» (fr. 84). Diz até, como o Sócra-
tes de Platão, que o homem que comete uma injustiça é mais infeliz do
que aquele que a sofre (fr. 45). E verdade que a sua longa vida levou,
sem dúvida, a que textos escritos fossem situados muito tarde. Em todo
o caso, o seu ideal de moderação lembra em muito o de Tucídides.

153
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Mas os que deviam ter tido mais influência no pensamento atenien­


se foram os sofistas.

2. Os sofistas

Em geral, os sofistas não eram Atenienses (salvo Antifonte, cujo


caso é duvidoso, e Crítias, que não é um sofista puro): Protágoras era de
Abdera, Górgias de Leontinos, na Sicília, Pródico da ilha de Ceos, Hípias
de Elis, no Peloponeso, Polo de Agrigento, na Sicília. Mas todos foram
para Atenas e alguns viveram aí de uma forma prolongada. Isso não os
impediu de viajar um pouco por toda a Grécia. Sempre é certo que Pro­
tágoras foi o primeiro a ir para Atenas, em meados do século, esteve
ligado a Péricles, foi associado por este à fundação de Túrio (444) e aí
voltou muitas vezes, mais tarde. Górgias, esse, chegou como embaixa­
dor, em 427, e conseguiu um bom êxito devido ao seu talento. A partir
dessa data teve de fazer longas e frequentes estadias em Atenas; o que
temos dele está em dialecto ático; e o diálogo de Platão que tem o seu
nome mostra-o instalado em casa de um Ateniense, rodeado de grande
respeito. Aliás, todos os diálogos de Platão, que são a principal fonte
para o conhecimento dos sofistas, apresentam-nos na sua actividade ate­
niense e bem conhecidos por todos.
A sua notoriedade resulta da sua profissão, que era nova e rica de
promessas: os sofistas foram os primeiros mestres que consentiram em
formar jovens na arte de manusear os raciocínios e os argumentos e,
assim, prepará-los para a sua vida de cidadãos.
Com efeito, na cidade democrática, cada vez um maior número de
homens podia, pela influência da sua palavra, participar na administra­
ção da região. A antiga educação aristocrática já não era suficiente, nem
as virtudes tradicionais. A arte de falar à assembleia, de raciocinar sobre
política, logo, «a arte de gerir a cidade» (como se diz no Protágoras, de
Platão, 319 a) (5) é objecto de um novo ensino. Não havia, contudo, aquilo

(5) N.T.: As traduções do Protágoras sâo da tradução portuguesa: Platão, Protágoras,


(tradução, introdução e notas de Ana da Piedade Elias Pinheiro), Lisboa, Relógio d’água,
1999.

154
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

a que poderíamos chamar uma democratização do ensino. Os sofistas -


e isso também era novidade - faziam-se pagar muito caro. Os seus alu­
nos eram jovens ricos e ambiciosos, que constituíam como que uma nova
aristocracia.
Daí resulta o lado um pouco inquietante do sofistas, que foram todos
mestres de retórica, suficientemente seguros de si e do poder do seu ensi­
no, arrastando consigo massas de admiradores e oferecendo a propósito
conferências fascinantes, ou epideixeis.
Mas um tal ensino baseava-se numa reflexão filosófica; e a confiança
humana, que animava a sua arte de argumentar, estava nesta reflexão.
Os sofistas foram racionalistas, espíritos críticos, muitas vezes revolucio­
nários. E o seu interesse pelo homem levou-os a levantar problemas
como o da natureza e da lei, do justo e do injusto, da concórdia. Trouxe­
ram visões ousadas a todos estes problemas, as quais muitas vezes aba­
laram os fundamentos das regras morais, mesmo quando eles de todo não
o desejavam.
Aliás, as suas doutrinas são diversas, como o são as suas contribui­
ções no domínio prático da arte de bem falar.

a) Protágoras

Protágoras de Abdera foi o primeiro dos grandes sofistas a ir a Ate­


nas. Esteve ligado a Péricles: Plutarco conta como discutia com ele pro­
blemas de responsabilidade jurídica ( Vida de Péricles, 36) e atribui ao
sofista um belo elogio da coragem de Péricles na adversidade. E, sem
dúvida, enquanto amigo de Péricles que se ocupa das leis a estabelecer
na colónia pan-helénica fundada em Túrio. Mais tarde, parece ter tido
dificuldades em Atenas: acusado de impiedade, quis ir para a Sicília e
morreu num naufrágio. O seu brilho foi considerável, como o atestam o
Protágoras de Platão e o seu Ménon.
As suas obras perderam-se. A mais célebre era a Verdade (que tal­
vez se confunda com os Discursos Destrutores). Era relativista. Sem ser
ateu, como Diágoras de Meios, negava que tivéssemos algum conheci­
mento dos deuses: «Sobre os deuses, não tenho possibilidade de saber se

155
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

existem ou não, nem qual é a sua forma.» (fr. B 4)(6). Todo o seu uni­
verso estava, assim, centrado no homem; e um outro fragmento, não menos
célebre, afirma: «O homem é a medida de todas as coisas, das que são,
enquanto existem, e das que não são, enquanto não existem.» (B 1). É um
ponto de vista que Platão discutiu muitas vezes. Ele tem, aliás, proble­
mas de interpretação: ora parece tratar-se do homem enquanto tal, e do
seu valor colectivo, ora do indivíduo. Quando é questão do conhecimen­
to e das sensações, isso não é muito grave (no Teeteto, de Platão, 171 e,
Sócrates refere as coisas «quentes, secas, doces e todas as outras deste
tipo»)(7); mas o problema é mais grave quando se trata das coisas «belas
e feias, justas e injustas, piedosas e ímpias». Se tudo depende do indiví­
duo, que norma subsistirá? Em qualquer caso, é claro que Protágoras
não admitia valores transcendentes nem de justiça absoluta; e a sua dou­
trina autorizava atitudes de recusa relativamente ao direito e ao bem.
Não parece, contudo, que ele os tenha adoptado por si mesmo: apa­
rentemente ele salvava o justo - tal como a cidade o definia - fundindo-
-o na sua noção de interesse colectivo. Pelo menos, é o que se deduz do
mito que Platão lhe atribui no Protágoras·. a espécie humana, mal dota­
da na origem, estaria perdida, mesmo com o fogo e as técnicas, se Zeus
não lhe tivesse concedido «respeito e justiça, para que houvesse na cida­
de ordem e laços que suscitassem a amizade» (322 c). Ajustiça das cida­
des é, assim, o que lhes permite subsistir e Protágoras justifica-o pelo
seu valor. De resto, ele também tinha uma ideia muito nobre da função
que deve exercer o castigo, cujo fim era curar e instruir: a mesma ideia
é atribuída por Platão tanto a Protágoras como a Sócrates - o que é carac-
terístico.
Compreende-se, assim, que este relativista possa ter sido educador
e legislador: a moral que propunha não se baseava em nenhum funda­
mento religioso ou transcendente; mas encontrava-se intacta, graças às
noções de um interesse bem entendido e de colectividade política: no

(6) N.T.: A tradução deste fragmento, bem como do seguinte, foi retirada da Hélade.
Antologia da Cultura Grega (organização e tradução do original de Maria Helena da Rocha
Pereira), Porto/Lisboa, Edições ASA, *2003.
(7) N.T.: As traduções do Teeteto são retiradas da tradução portuguesa: Platão, Teete­
to, (tradução de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri; prefácio de José Trindade San­
tos), Lisboa, FCG, 2005.

156
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

lugar da antiga justificação divina, estas noções garantiam-lhe uma outra,


totalmente humana e que se baseava na razão.
O que mais contribuiu para que se desconhecesse esta preocupação
moralista foi, aliás mais do que as próprias doutrinas, a contribuição de
Protágoras para o domínio da retórica. Ele é o homem da discussão sofís­
tica; escrevera um tratado Sobre as Antilogias. Sabemos que afirmava a
existência, em qualquer assunto, de «dois discursos contrários». Isto quer
dizer, primeiro, teses contrárias, como as que vemos que se enfrentam na
tragédia ou em Tucídides; mas isso também quer dizer argumentos con­
trários. Porque Protágoras ensinava a «tomar mais forte o mais fraco dos
dois argumentos». Daí esta arte brilhante e confusa, que consiste em reto­
mar o argumento do adversário, voltá-lo, revirá-lo. Num sentido, pode
tratar-se de um método de boa lógica, que permitia tomar uma discussão
rigorosa; mas a aplicação é perigosa; e compreende-se que a retórica,
que se baseava em tais meios, pudesse parecer a Platão a grande inimiga
e uma criadora de ilusões que ele nunca deixou de condenar. Protágoras
era um moralista ligado ao bem das cidades humanas, mas a sua filoso­
fia e a sua dialéctica deviam, ambas, abrir caminho a formas de pensa­
mento mais revolucionárias.

b) Górgias

Górgias parece ter sido contemporâneo de Protágoras. Vindo da


Sicília, onde a retórica acabava de nascer com pessoas como Córax e
Tísias, chegou a Atenas como embaixador, em 427, e a sua eloquência
deslumbrou os Atenienses; o resto da sua vida (que foi longa, dado que
viveu cento e sete ou cento e oito anos) passou-se, em grande parte, em
Atenas, mas com inúmeras estadias noutras cidades.
Só conhecemos as suas doutrinas filosóficas por fragmentos do seu
tratado Do não-ser, ou da natureza; é uma discussão brilhante e difícil,
que consiste em refutar todas as ideias possíveis sobre o ser e o não-ser,
deixando perceber um cepticismo fundamental.
Mas a sua grande influência provém do seu papel no desenvolvi­
mento da retórica. Deixou um elogio dos poderes da palavra muito reve­
lador do que ele pretendia fazer. Evoca a acção da palavra sobre as

157
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

emoções e compara-a com as drogas mágicas. Em qualquer caso, se ino­


vou menos do que Protágoras no domínio da argumentação (contentando-
-se em insistir nas «verosimilhanças»), inovou bastante no domínio do
estilo: procurou as diversas figuras, que podiam dar-lhe fama, as antíte­
ses, os jogos de sonoridades, o uso de termos poéticos; tudo isto deu ao
seu estilo um brilho um pouco estonteante; mas estas investigações exer­
ceram uma profunda influência num homem tão apaixonado pela verda­
de como Tucídides. O Elogio de Helena, a Defesa de Palamedes são
uma espécie de exercícios onde Górgias mostra o seu brio; um fragmen­
to de uma oração fúnebre dá uma ideia quase caricatural.
Aliás, Górgias era capaz de colocar o seu talento ao serviço de gran­
des causas. Este Siciliano que foi para Atenas foi o primeiro, no final da
guerra do Peloponeso, a reclamar a união da Grécia. A este respeito Lísias
e, principalmente, Isócrates mais não fizeram do que segui-lo. Tal era o
sentido do seu Discurso olímpico e do seu Discurso pítico (sem dúvida
de cerca de 392). A amizade que Protágoras reclamava no seio das cida­
des adquiriu com ele uma nova dimensão.

c) Pródico, Hípias, Trasimaco

Com os sofistas seguintes, cada um dos quais tem a sua personalida­


de bem definida em Platão, as doutrinas vão-se precisando aos poucos.
Pródico passa por ter sido discípulo de Protágoras. Também ele
conheceu um grande sucesso e ganhou muito dinheiro. Conhecemos mal
a sua obra, da qual um elemento importante se intitulava as Horas. Parece
ter dito aí que o sol, a lua, os rios, etc., teriam sido considerados divinda­
des devido à sua utilidade, como o Nilo para os Egípcios; eram propostas
de um sofista curioso para investigar a etnografia e para penetrar no relati-
vismo de Protágoras. Mas Xenofonte, nos Memoráveis (11,1,21 -34) dá-nos
uma outra ideia do mesmo tratado: parafraseia o apólogo de Héracles
entre o Vício e a Virtude; Pródico seria, aí, como Protágoras, defensor
da virtude - e até do trabalho. Por fim, mestre da eloquência, Pródico
era célebre pela sua arte de distinguir sentidos próximos entre palavras.
Quanto a Hípias, era conhecido pela universalidade das suas compe­
tências (de que Platão se ri no Hípias Maior e no Hípias Menor). Ocupou-se

158
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

com diversas coisas (como o treino da memória e a cronologia); mas a


sua originalidade reside sobretudo na importância acrescida que ele pare­
ce ter dado à oposição entre a lei e a natureza: não lhe dá, ainda, um
alcance revolucionário; simplesmente, ao referir-se-lhe, sob qualquer
pretexto, leva o espírito relativista ainda um pouco mais longe.
Trasímaco de Calcedónia teve de ser mais ousado em matéria de
moral: só lhe podemos atribuir de forma segura os tratados de técnica
oratória; mas o facto de Platão lhe atribuir, no livro I da República, a
tese que consiste em mostrar as vantagens da injustiça e em apresentar
o justo como o interesse dos mais fortes, deixa entender que ele não hesi­
tava em questionar os valores morais. E nisto parece-se com Antifonte.

d) Antifonte: orador e sofista

Temos, para a mesma época, dois conjuntos de obras transmitidos


sob o nome de Antifonte. Textos tardios distinguem-nos, opondo Anti­
fonte orador a Antifonte sofista. Não é certo que tivessem razão em fazê-
-lo, ainda que o estilo seja, nos dois casos, um pouco diferente e que
Xenofonte refira especificamente uma vez «Antifonte, o sofista». Seja
como for, pode ser sensato conservar esta distinção.
O orador Antifonte não entrava no plano deste capítulo. No entanto,
em muitos aspectos, ele está muito próximo do movimento sofista.
Este Ateniense, que fazia parte do movimento oligárquico dos 400,
que Tucídides elogia, deixou-nos, para além de três discursos judiciários
propriamente ditos (Acusação de envenenamento contra uma sogra, Da
morte de Heródoto, Do Coreuta), um conjunto de discursos fictícios,
que são do mais puro espírito sofístico; trata-se de três «tetralogias», que
agrupam cada uma quatro discursos muito curtos: de acusação, de defe­
sa, de acusação, de defesa. Reconhece-se aqui toda a arte de Protágoras
em dar a volta aos argumentos; além de que a segunda tetralogia trata
do caso de um jovem, morto no ginásio pelo dardo de um dos seus com­
panheiros: o tema em si é, de acordo com Plutarco (Péricles, 36), que
Péricles teria passado um dia inteiro a discutir com Protágoras. Quanto
à terceira, trata de uma morte que teve lugar enquanto bebiam; discute-
-se sobre a responsabilidade do médico, bem como da verosimilhança

159
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

de um ou outro ter sido o agressor: isto recorda os casos que Córax e


Tísias discutiam e os argumentos que apresentavam em favor do homem
forte ou do homem fraco (Aristóteles, Retórica, II, 1402 a\ Platão, Fedro,
273 b). Nos temas gerais, na escolha dos argumentos, no método, estes
inícios da eloquência ática parecem, assim, muito próximos do ensino
dos sofistas.
Certamente, os discursos reais são um pouco diferentes, mais con­
cretos, mais tradicionais, também; têm, além disso, uma parte de narra­
tiva; mas o manejo dos indícios e das verosimilhanças é o mesmo; e não
é razoável sugerir que há aqui uma diferença de autor. O ensino dos
sofistas apenas aparece aqui menos desencarnado; mas reconhece-se a
cada linha: o orador Antifonte é já um sofista, tal como o que é chama­
do Antifonte, o sofista.
Deste último conhecemos vários títulos e alguns fragmentos. Sabe­
mos que se interessou pela interpretação dos sonhos e pelos problemas
de geometria; mas as suas duas obras principais foram Da verdade e Da
concórdia.
Da verdade foi conhecido bruscamente devido à descoberta, em 1915,
de importantes fragmentos papirológicos: estes contêm os mais audacio­
sos desenvolvimentos que podem existir entre a lei e a natureza, mostran­
do a que ponto se opõem uma à outra, e estabelecendo que a obediência
às leis, na ausência de testemunhas, vai contra o interesse do indivíduo:
«Ajustiça consiste, pois, em não exceder as leis da cidade em que se vive.
O homem terá a maior vantagem em usar da legalidade, perante teste­
munhas, se tiver em conta as leis; e, quando sozinho, sem testemunhas,
em respeitar as da natureza. De facto, aquelas são adventícias, ao passo
que as da natureza são necessárias. E as primeiras são convencionais, e
não espontâneas, ao passo que as da natureza são espontâneas, e não con­
vencionais.» (8). Reconhecemos aqui, levado ainda mais longe, o relati-
vismo de Protágoras e a oposição, cara a Hípias, entre a natureza e a lei.
Estamos, em suma, próximos do amoralismo que Platão atribui a
Cálicles no Górgias. Também para Cálicles, a natureza e a lei opõem-se.

(8) N.T.: A tradução deste fragmento de Antifonte (44, A, 12 Diels-Kranz), bem como
o excerto seguinte (do fr. 44, A 7 B 2 Diels-Kranz) foi retirada da Hélade. Antologia da Cul­
tura Grega (organização e tradução do original de Maria Helena da Rocha Pereira), Porto/
/Lisboa, Edições ASA, *2003.

160
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

Também para ele, a lei é uma convenção. E, desta vez, tomando partido
contra ela, Cálicles deseja que o homem forte tenha a coragem de se
levantar para calcar aos pés «os nossos escritos, as nossas magias e os
nossos encantos e leis antinaturais» e fazer, por fim, brilhar «em todo o
seu esplendor o direito da natureza.» (484 a)(9).
O paralelismo entre os dois pensamentos prova suficientemente
como tais doutrinas podiam tornar-se num poderoso fermento, prepa­
rando a vinda do amoralismo e a eclosão de ambições sem escrúpulos.
No entanto, as diferenças não são menos claras do que as semelhan­
ças. E, muitas vezes, cometeu-se o erro de as descurar. Com efeito, Anti-
fonte entrega-se a uma análise teórica perfeitamente firme e sólida. Mas
dizer que não é do interesse do indivíduo obedecer à lei, se ninguém o
vir, não é aconselhar a desobediência, nem sequer preferir a ordem da
natureza. Antifonte reconhece o carácter convencional da lei: nós não
sabemos, de modo nenhum, se esta convenção não lhe parecia boa, e
indirectamente útil - um pouco como o era para Protágoras. Cálicles
representa o modo como certos homens podiam utilizar, deformando-as,
as doutrinas dos sofistas; mas nada autoriza a confundir a filosofia sere­
na de um com as conclusões práticas que a ambição do outro tirava.
Do mesmo modo, quando Antifonte diz que, do ponto de vista da
natureza, Gregos e Bárbaros são, de modo idêntico, homens que respiram
«para o ar pela boca e pelas narinas», isso não significa de modo algum
que ele reclame a igualdade entre todos os homens, seja na cidade, seja no
mundo. Um texto conhecido através de fragmentos deve ser tratado com
prudência; e o pensamento de Antifonte não está, de modo algum, com­
prometido. Se o está, nada, nestas poucas páginas, nos diz em que sentido.
O carácter teórico do tratado Da Verdade explica que ele possa ter
escrito também o tratado Da Concórdia, sem que tenha sido necessário,
com alguns, fazer, mais uma vez, a distinção entre os autores, um amo-
ralista e o outro, não!
Aliás, conhecemos mal o conteúdo deste tratado. Os excertos que
restam evocam uma psicologia clarividente e pessimista, cujas máximas

(9) N.T.: As traduções do Górgias são da tradução portuguesa: Platão, Górgias, (intro­
dução, tradução do grego e notas de Manuel de Oliveira Pulquério), Lisboa, Edições 70,
1992.

161
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

amargas lembram muitas vezes Tucídides. Sem dúvida que ele entendia
a concórdia no sentido tradicional, visto que num dos seus pensamentos
diz: «A anarquia é o pior dos males humanos». Os sofistas, e isso é claro,
apenas podiam defender um ideal de ordem pragmática, fundado nas
condições de vida em sociedade. Mas, no interior deste quadro, Antifon-
te fala com vigor de «se dominar e se vencer a si mesmo». Uma moral
baseada no interesse colectivo pode ser uma moral firme e exigente.

e) Outras obras sofísticas

Na mesma época, outras obras se situam numa perspectiva compa­


rável. Crítias, tio de Platão, que fez parte da oligarquia dos Trinta, é muitas
vezes considerado sofista. Mas ele não ensinava. Apenas foi marcado
pelo espírito dos sofistas; e isso nota-se nos seus textos - tragédias, des­
crições em verso de constituições e diversos opúsculos. Este oligarca
teve, em certos aspectos, a audácia de um Cálicles; e a forma como descre­
ve a sucessiva invenção das leis, depois da religião, tendo em vista pre­
servar a ordem das sociedades, diz muito da sua liberdade de espírito.
Também possuímos obras pequenas que nos chegaram sem o nome
do autor. Os Raciocínios Duplos opõem de cada vez duas teses sobre o
bem e o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto: embora o autor defenda
a existência dos valores, o próprio princípio de uma tal discussão revela
claramente a influência de Protágoras. Quanto ao Anónimo de Jâmblico
(um texto que se atribui aos diferentes sofistas, mas também a Demócrito
e a outros), é uma tentativa para justificar, em nome do interesse prático,
o respeito pelas leis: o autor fá-lo invocando a necessidade de viver em
sociedade e, depois, a tranquilidade que, assim, se garante ao indivíduo.
Estes dois últimos textos situam-se perfeitamente na corrente de
pensamento sofística; mas lembram oportunamente que esta continuava
a estar, no domínio moral, preocupada em preservar valores, cujo fun­
damento queria simplesmente alterar, a fim de os humanizar.
Com efeito, o abalo que estes sofreram deve-se parcialmente à sua
influência; mas deve-se, sobretudo, à crise política que atraversava Ate­
nas, com a guerra do Peloponeso, e cuja gravidade Tucídides mostrou,
servindo-se de processos de análise descobertos pelos sofistas.

162
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

II.
TUCÍDIDES

No período em que a arte de falar e de discutir desabrochava com


os sofistas, no período em que a medicina se tomava racional e científi­
ca, Tucídides, em Atenas, foi capaz de aplicar as mesmas exigências
intelectuais à história, renovando assim o género que Heródoto acabava
de criar.
Mas a diferença entre os dois explica-se também pelo facto de que
Tucídides, esse, era Ateniense e fora formado numa cidade onde a polí­
tica primava sobre tudo e onde o poder estava no auge. Enquanto a his­
tória de Heródoto se ocupava de etnografia, de religião ou de episódios
edificantes, a de Tucídides é totalmente política; e enquanto a obra de
Heródoto dava conta de Gregos e de Bárbaros, interessando-se por todos
e por cada um, a de Tucídides está centrada apenas na guerra do Pelo-
poneso, ou a guerra entre Esparta e Atenas, cujas peripécias ele vivia
passo a passo: a experiência ateniense enchia o seu horizonte.
Estas duas características da sua obra combinam-se, aliás, na esco­
lha do assunto: a guerra do Peloponeso era o que retivera, apaixonada­
mente, a sua atenção; mas era também o único domínio no qual as suas
exigências de historiador científico podiam levá-lo a contentar-se, dado
que a investigação directa e a crítica sistemática se tomavam possíveis
a propósito de acontecimentos tão recentes.

1. Vida de Tucídides

Conhecemos a vida de Tucídides sobretudo a partir daquilo que a


sua obra deixa entrever, embora ela seja excepcionalmente sóbria em
informações pessoais.
Revela-nos, pelo menos, que ele era Ateniense e que era adulto no
início da guerra (V, 26, 5); por outro lado, era estratego em 424. O seu
nascimento deve situar-se entre 465 ou 460.
O nome do seu pai, Oloro (IV, 104, 4), é o mesmo que tinha um rei
trácio, com cuja filha Milcíades casara: Tucídides poderá ter sido apa­
rentado com a ilustre família de Milcíades e de Címon. Pode, também,

163
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

dever a laços de família ligações com a Trácia, uma região onde ele pró­
prio admitia que tinha direitos de exploração de minas de ouro e «tinha,
por este motivo, algum crédito junto das principais personagens no con­
tinente.» (IV, 105, 1).
Isto iria servir-lhe no exílio, que dividiu a sua vida em duas.
No primeiro período, viveu a vida na sua pátria. Formado com uma
educação cuidada, visto que encontramos, entre os mestres que a tradi­
ção lhe atribui, Anaxágoras e os sofistas Górgias e Pródico, terá assistido
a uma leitura de Heródoto que o marcou vivamente. Em qualquer caso,
desde o início da guerra que decidiu tornar-se um historiador (I, 1,1).
A política apaixonava-o manifestamente. Podemos ter uma ideia das
suas opiniões pelo facto de elogiar calorosamente a democracia de Péri-
cles (II, 65), mas também o regime misto de 411 (VIII, 97).
Sabemos que, quando a peste grassou em Atenas, foi atingido (II,
48, 3). Quando recearam pelas cidades da Calcídica, ele foi enviado para
lá como estratego (IV, 104). Mas não conseguiu salvar a cidade de Anfi-
polis; e, acusado, viu-se condenado.
Logo exilado, mais não é do que um historiador. Consagra todo o
seu tempo à informação nos dois campos: «Além do mais, sucedeu que
me encontrei exilado durante vinte anos, depois de ter tido o comando
em Anfípolis, e que assisti aos assuntos dos dois grupos - sobretudo do
lado dos Peloponésios, devido ao meu exílio - o que me deu tempo para
me dar conta das coisas» (V, 26); a experiência prática era um auxílio
directo para o historiador: o seu revés prático tomou-se uma vantagem
indirecta para a sua obra.
Não sabemos se regressou a Atenas depois de 404, aquando das
amnistias que houve no final da guerra. Também não sabemos (apesar
das tradições fantasistas e contraditórias) quando ou como morreu: pare­
ce ter vivido ainda alguns anos depois de 404.
Ignoramos igualmente em que condições a sua obra foi elaborada.
Esta obra está inacabada: ela deveria ter ido até 404 e termina em 411.
Logo nos primeiros livros, encontramos alusões à última parte da guer­
ra, nomeadamente a derrota final. Podemos, portanto, pensar que, desde
o início, ele tomou notas e que só começou a redacção propriamente dita
depois de 404. No entanto, apresenta-se a si mesmo como tendo um juízo
original o facto de admitir a unidade da guerra, já que houve dez anos

164
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

de guerra, depois um longo período de paz instável, antes da expedição


à Sicília, e o retomar das hostilidades: é, assim, natural pensar que, duran­
te esta primeira paz, ele terá começado uma redacção, que foi mais tarde
objecto de correcções; esta hipótese é confirmada pelos indícios dos por­
menores. Mas não podemos precisar mais: entre as redacções antigas e
as correcções, é impossível qualquer corte; e a unidade da obra, mesmo
se ela tiver sido feita a partir de camadas sucessivas, impõe ao leitor uma
visão global, admiravelmente coerente.

2. A obra de Tucídides

A obra é a história da guerra do Peloponeso, que opôs, entre 431 e


404, as duas grandes cidades gregas, Atenas e Esparta, e mobilizou ao
seu lado quase totas as cidades gregas. No entanto, não a conta até ao fim.
Actualmente, apresenta-se em oito livros (a divisão não é de Tucí­
dides). O primeiro é consagrado às causas da guerra. Esta começa no
início do livro II e a narrativa prossegue, de ano em ano, durante os dez
primeiros anos da guerra até à paz de Nícias, concluída em 421 (V, 24).
Mas, depois de alguns anos de paz, a guerra seria retomada: Tucídides,
logo depois da referência à paz, introduz um segundo prefácio, no qual
justifica o facto de que se trata de uma guerra única, apesar destes anos
de interrupção. A sequência do livro V conta-o brevemente. Em seguida,
vêm os livros VI e VII, que se apresentam como um todo, com a sua
introdução e conclusão: são consagrados à narrativa da expedição da
Sicília (415-413). Por fim, o livro VIII narra, não sem algumas dificul­
dades de composição, os combates que se desenrolaram no mar Egeu,
os levantamentos, a guerra civil, e interrompe-se bruscamente em 411.
Dois traços impressionam nesta estrutura. Primeiro, o lugar atribuí­
do à expedição da Sicília. Em rigor, esta podia parecer um acontecimento
independente da guerra entre Atenas e Esparta; no entanto, este aconte­
cimento não só conduziu ao reacender da guerra, mas a um desastre de
que Atenas não se deveria restabelecer: este imprudente gesto de impe­
rialismo conduziu ao desastre; e é sobre isto que Tucídides chama a aten­
ção. Estes dois livros são muito cuidados, ricos em discursos, muitas
vezes patéticos. Estão tão claramente à parte que por vezes se quis ver

165
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

neles uma verdadeira monografia; mas a sua perfeição traduz mais o


interesse que Tucídides dá ao imperialismo de Atenas e ao drama do seu
poder perdido.
O outro traço que impressiona é a importância do livro I. Tucídides
quer, antes de mais, dar a compreender, explicar; e todo o livro é consa­
grado às causas da guerra. Depois de um prefácio que prova a importân­
cia da guerra de que ele trata (e recuando, para o provar, até antes da
guerra de Tróia), Tucídides expõe o seu método, depois, a partir do § 23,
aborda as causas. Distingue os motivos e as fontes de diferendos (ilus­
trados pelos episódios da Corcira e de Potideia) daquilo a que chama «a
causa mais verdadeira»; «com efeito, - diz ele - a causa mais verdadeira
é a menos evidente na exposição. Entendo eu que os Atenienses se engran­
deceram e, com isso, infundiram aos Lacedemónios receio, que os forçou
a entrar em guerra.» (23, 6 )(10). Este nível de explicação levá-lo-á, na
sequência do livro, a descrever em grandes traços a formação do impé­
rio de Atenas, depois as guerras médicas até à guerra do Peloponeso. Por
fim, as possibilidades de um lado e do outro são longamente pesadas e
medidas em análises que se correspondem: os dois discursos dos Corín-
tios e dos Corcireus em Atenas, os quatro discursos de Coríntios, dos
Atenienses, do rei de Esparta e de um éforo, em Esparta, os dois discur­
sos, por fim, dos Coríntios, em Esparta, e de Péricles em Atenas. A exi­
gência intelectual dada por Tucídides às suas análises políticas aparece
aqui com muita clareza.
Quanto ao resto, a narrativa compõe-se ano a ano e, mesmo, estação
a estação, com uma preocupação meticulosa. Mas não há nada de uma
narrativa analítica. Porque Tucídides tem o cuidado de suprimir, de orga­
nizar, de concentrar a atenção nos episódios importantes.
Nestes episódios podemos distinguir dois tipos principais. Primeiro,
as narrativas de batalha: interessam ao estratego que foi Tucídides; e ele
conseguiu demonstrar o princípio com uma solidez rara. Para isso, deve
expor o seu plano, de início, pelos chefes que comandam de um lado e
do outro; e organiza-se para que os argumentos se correspondam, se

(10) N.T.: A tradução de Tucídides foi retirada da Hélade. Antologia da Cultura Grega
(organização e tradução do original de Maria Helena da Rocha Pereira), Porto/Lisboa, Edi­
ções ASA, *2003.

166
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

completem; por outro lado, organiza-se para que a narrativa dos factos
seja posta em relação com os seus planos e revelada, passo a passo, a
força ou a fraqueza. Destas narrativas de batalhas, as mais notáveis são
as batalhas navais: Patras e Naupacto, no livro II, ou os combates de
Siracusa nos livros VI e VII.
Mas, a par destas batalhas, Tucídides dá um lugar importante às
negociações, de onde saem as alianças e as deserções; e, se as narrativas
das batalhas navais mostram à evidência a superioridade marítima de
Atenas, que tem o domínio do mar, pelo contrário as negociações polí­
ticas fazem aparecer, frequentemente, a fraqueza associada ao seu impé­
rio, facto que lhe valeu a impopularidade.
Com efeito, encontramos na maior parte das análises o traço que já
sugeria a expedição feita à Sicília: a reflexão de Tucídides está quase
sempre centrada no império de Atenas e nos problemas do poder. Ele
analisa, aliás, os recursos de Péricles logo no livro I, em que temos toda
uma teoria das possibilidades ilimitadas ligadas ao domínio marítimo.
Atribui a este mesmo Péricles, no livro II, um grande elogio de Atenas
e do seu império (a Oração fúnebre), mas também um aviso dos riscos
que a hostilidade dos súbditos comporta. Quase todos os episódios sobre
os quais Tucídides centra a atenção do seu leitor estão em maior ou menor
relação com este problema.
No livro II, vemos sobretudo o mal que Péricles experimenta, ao
fazer aceitar pelo povo a sua táctica defensiva (correspondente à natu­
reza do poder ateniense): este exalta-se ou desencoraja-se. No entanto,
a superioridade naval afirma-se em Patras.
O livro III divide-se principalmente entre os episódios de Plateias e
de Mitilene. Plateias é a cidade fiel, cuja sorte será trágica. Mitilene é a
cidade revoltada, que obriga Atenas a defrontar-se com o problema da
repressão (discursos de Cléon e de Diódoto). A estes dois episódios junta-
-se uma exposição terrível sobre a guerra civil (a propósito de Corcira).
No livro IV, Tucídides destaca o episódio de Pilo: este poderia ter
levado à paz, mas os Atenienses recusaram-na pelo «desejo de mais».
O livro também fala da Sicília, onde já se manifesta um movimento de
resistência contra Atenas. E no final do livro IV é incitada a política do
Lacedemónio Brásidas, que consiste em fazer desligar-se de Atenas as
cidades do seu império. O receio causado por estas deserções obriga, por

167
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

fim, Atenas a fazer um tratado. Mas a lição não terá valor: as ambições
atenienses, na Sicília, darão ao problema do imperialismo uma nova
agudeza e um aspecto mais grave. Por fim, mesmo antes dos livros rela­
tivos à Sicília, Tucídides introduziu na sua obra um diálogo extraordi­
nário entre os Atenienses e os habitantes de Meios, uma pequena ilha
neutra, que eles acabaram de submeter contra todo o direito, porque
tinham necessidade de mostrar a sua força. O diálogo, que encerra o livro
V e que é o único da obra, trata de todos os aspectos desta política de
força, das ideias morais ou religiosas que lhe subjazem ou a condenam,
e das circunstâncias que a tomam ao mesmo tempo necessária no ime­
diato, mas perigosa no futuro.
Esta iluminação dada à história faz, assim, uma profunda reflexão
política; ao mesmo tempo que é uma aventura de facto entre duas cida­
des inimigas, é uma aventura intelectual, em que se descobre progressi­
vamente uma verdadeira filosofia do poder.
Uma tal forma de história implica evidentemente uma ideia muito
excepcional da verdade histórica.

3. A verdade histórica

No domínio do rigor, Tucídides tem a consciência de ter mostrado


novas exigências. Ele diz, a propósito dos factos da guerra: «Não julguei
que devia confiar nas informações do primeiro que apareceu, nem na
minha própria opinião, para os contar: ou assisti ou então perguntei por
cada um junto de alguém com toda a certeza possível. Aliás, tive dificul­
dade em estabelecê-los, porque as testemunhas de cada facto apresenta­
vam versões diferentes, que variavam, de acordo com a sua simpatia e
a sua memória, uns em relação aos outros.» (I, 22, 2-3).
Uma tal investigação não está isenta de dificuldades nem de vigi­
lância constante. A dificuldade aumentava nos casos do passado; e Tucí­
dides, no recuo que faz no tempo no livro I, na «Arqueologia» (I, 2-21),
desenvolve ao serviço desta investigação um ardor racionalista, cheio
de firmeza. Recusa-se a utilizar directamente Homero, mas extrai argu­
mentos de testemunhos que os seus poemas dão sobre os usos da época;
mistura-lhes observações de ordem arqueológica ou comparações com

168
AS NOVAS IDEIAS EM ATENAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO V

a evolução de outros povos: numa palavra, ele entrega-se a toda uma


demonstração crítica, digna das sábias argumentações dos sofistas.
No caso dos factores recentes, a dificuldade era menor e o cuidado
era suficiente para garantir resultados mais seguros: apesar de esforços
reiterados, é difícil apanhar Tucídides em falta.
O seu respeito pelos factos traduz-se, aliás, na forma da sua narra­
tiva. A excepção de duas ou três passagens, ele nunca intervém em seu
nome pessoal: prefere deixar falar os factos, respeitar o estrito encadea­
mento cronológico, apagar-se por detrás de uma narrativa com um carác­
ter totalmente objectivo.
O seu uso dos discursos que, a este respeito, choca os nossos hábi­
tos modernos, corresponde, sem dúvida, pelo menos em parte, a esse
desejo de objectividade. A primeira vista, esse uso parece pouco objec­
tivo; porque Tucídides não pretende, de modo nenhum, citar o conteúdo
exacto dos discursos; quer apenas, diz ele, «expressar aquilo que, em
minha opinião, eles poderão ter dito que correspondesse melhor à situa­
ção, conservando-me, quanto ao pensamento geral, o mais próximo pos­
sível das palavras realmente ditas» (1, 22, 1). Ora, a partir do momento
em que é preciso reconstruir, é possível que lhe tenha parecido mais
sóbrio e mais rigoroso apresentar estas análises na boca dos protagonis­
tas, cujos actos e palavras acompanhamos directamente, sem interme­
diário, como numa tragédia.
No entanto, é claro que o uso mesmo dos discursos corresponde, em
Tucídides, a uma exigência que ultrapassa a simples objectividade. Tal
como distingue, nas causas da guerra, entre «incidentes ou diferendos»
e a «causa mais verdadeira», também decide exceder a simples exactidão
para alcançar uma verdade mais profunda. Aquilo que procura é o sen­
tido dos acontecimentos e o segredo do seu encadeamento. Para isto,
escolhe, elimina, esboça uma estrutura e chega, assim, a uma significa­
ção de ordem geral.
Nunca diremos suficientemente tudo o que Tucídides rejeita da sua
narrativa: não afasta apenas o que considera falso, mas o que considera
sem interesse. Na sua história não há oráculos, nem lendas; mas também
não há episódios; não há uma descrição que não sirva para fazer com­
preender; não há retratos individuais. Não há absolutamente nada que
se afaste da estrita narrativa situacional dos factos da guerra. Não há

169
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

nada sobre a política interna de Atenas, nada sobre as condições sociais,


nada sobre as divisões entre grupos ou entre pessoas.
Mesmo na sua narrativa, ele suprime: para tomar mais chocante o
que considera essencial, deixa o resto em silêncio. Deste modo, para ele
a causa da guerra é o desenvolvimento do poder ateniense; a série de
incidentes permanece, assim, secundária; e, por esta razão, ele abstém-
-se até de contar o incidente de Mégara, que alguns consideram como a
origem da guerra: contenta-se com uma alusão passageira. Afasta, ainda,
as bisbilhotices que poderiam circular sobre as falhas de Péricles ou de
Aspásia, sobre as contas a dar. No interior de cada episódio, procede da
mesma maneira. Por vezes, lamentamo-lo, porque gostaríamos dos docu­
mentos; mas a história de Tucídides não tem nada de uma soma de do­
cumentos.
Ele decide distinguir os elementos essenciais para a acção em curso
e ordená-los de tal forma que exprimam não só o seu sentido, mas o senti­
do dos outros acontecimentos que se lhes poderiam assemelhar. «Se que­
remos ver com clareza os acontecimentos passados e aqueles que, no
futuro, devido ao seu carácter humano, apresentarão semelhanças ou
analogias, então consideramo-los úteis, e isso bastará: constituem um
tesouro para sempre, mais do que uma produção de ostentação para um
auditório do momento» (I, 22, 4). Numa palavra, Tucídides, que teve a
peste e que a descreve cuidadosamente, para permitir aos que a vissem
renascer «que beneficiassem de um saber prévio e não se encontrassem
perante um desconhecido» (II, 48,3), trata da guerra em que a sua pátria
esteve empenhada com o mesmo rigor técnico, mas também com a mesma
ambição de alcançar um conhecimento duradouro e de alcance universal.
Embora tenha a prudência de nunca tirar conclusões, embora tam­
bém tenha o maior respeito pela complexidade dos factos, é uma verda­
deira reflexão filosófica que ele inscreve na sua narrativa. E a atenção
que os homens de diversos séculos, enfrentando guerras e imperialismos,
não deixaram de dar à sua obra, mostra que ele, pelo menos em parte,
ganhou esta aposta.
Ela é audaciosa o bastante para que nos interroguemos sobre a filo­
sofia que implica e sobre os meios de que se serve.

170
A S N O V A S ID E IA S E M A T E N A S N A S E G U N D A M E T A D E D O S É C U L O V

4. A filosofia da história

A própria tentativa de Tucídides supõe que há alguma coisa de per­


manente na natureza humana. Aliás, por vezes ele faz-lhe alusão (como
III, 82, 2).
Esta «natureza humana», quando aparece na sua obra, parece feita
de paixões irreflectidas: arrasta um homem para erros que o fazem dese­
jar sempre mais, encorajando-o à esperança, para depois o deixar, brus­
camente, desencorajado. As imprudências atenienses são o reflexo disso,
bem como a cegueira dos súbditos revoltados. Estas tendências, de certo
modo passivas, que muitas vezes os discursos denunciam, constituem
espécies de constantes. «Como a multidão tem o hábito de fazer», «como
sucede muitas vezes depois de um golpe de sorte», «como sucede com
as pessoas irreflectidas»: estas fórmulas, que pontuam a obra, são ao
mesmo tempo a base para o seu pessimismo moral e para a segurança
das suas análises.
Com efeito, Tucídides não tem muitas ilusões sobre os homens: os
objectivos desinteressados ocupam um lugar pequeno na sua obra e for­
necem principalmente pretextos especiais. Do mesmo modo, os seus
oradores não deixam de denunciar a vaidade das pretensões morais alar­
deadas pelos seus adversários. E como nos surpreendemos ao ver o his­
toriador pôr a nu, numa análise sem piedade, as cruezas da guerra civil
(III, 82 ss.) ou a ausência de escrúpulos dos conquistadores (V, 85 ss.)
E o que é mais, os deuses estão ausentes do mundo de Tucídides.
Talvez ele próprio fosse piedoso: ignoramo-lo. Mas é certo que, contra-
riamente a Esquilo e até a Heródoto, ele não acreditou que os deuses
tivessem um papel na história, fosse para castigar os culpados, fosse para
salvar os inocentes. E a sua ausência ainda escureceu mais o quadro.
No entanto, isto não é mais do que uma das faces deste quadro. Pois
se conhecemos estas tendências e tentações da natureza humana, é por­
que os oradores de Tucídides as mencionam; ora eles denunciam-nas,
prevêm os seus efeitos no adversário, convidam os seus compatriotas a
protegerem-se delas; dito de outra forma, fazem delas a base de uma pre­
visão lúcida, um guia para um comportamento racional e eficaz. A tenta­
ção irracional é a fraqueza do homem: o conhecimento dos seus efeitos
constitui a força da sua inteligência. E passa-se o mesmo se é o próprio

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C O M P E N D I O D E L IT E R A T U R A G R E G A

Tucídides que denuncia estes hábitos irrazoáveis: fá-lo para ajudar a «ver
claro»; fá-lo para que no futuro a acção dos homens possa tirar partido da
experiência, tal como tiramos partido do conhecimento de uma doença.
Assim se descobre, a par destes arrebatamentos cegos, a presença
na história de uma razão que sabe calcular e prever. E o historiador age
de modo a que, por trás de cada acontecimento, apareça esta oposição
entre as tendências afectivas da razão, que lhes resiste, entre a cegueira
e a lucidez, que sabe, antecipadamente, ter cuidado.
Os chefes, se são bons chefes, sabem, com efeito, prever. Tucídides
elogia esta qualidade em Temístocles (I, 138, 3) e em Péricles (II, 65,
5 e 13). Não deixa, sobretudo, de mostrar em acção esta arte de prever.
Os discursos vêm antes da acção; ora, eles analisam sempre aquilo que
se pode esperar: a narrativa dirá se o fazem correctamente. A táctica pre­
conizada por Péricles baseia-se num cálculo, e os vários discursos do
homem de Estado são outras tantas argumentações que mostram que, se
Atenas o adoptar, ele pode vencer. Do mesmo modo, em cada batalha,
os generais analisam a situação e distinguem, quer as razões do seu plano
(baseado numa previsão da atitude inimiga), quer as razões para descon­
tar a vitória. Os maus estrategos (como Cléon, de quem Tucídides não
gosta e em relação ao qual é severo) não calculam o bastante: os seus
adversários beneficiam disso, e o Lacedemónio Brásidas é um belo exem­
plo. Em Anfípolis, ele explica aos seus soldados qual a falha que Cléon
parece ter cometido e como é que ele vai beneficiar. Usa expressões como
«eu explico-vos», «conjecturo», «é de prever que» (V, 9): naturalmente,
a narrativa dá-lhe razão.
Há, portanto, para o homem uma possibilidade de determinar os
acontecimentos. Mesmo um revés se toma, neste caso, numa lição e per­
mite um progresso. Simplesmente, a batalha entre a lucidez e a felicida­
de está sempre a recomeçar.
Ao ler os textos de Tucídides, alguns são sobretudo sensíveis aos
revezes da razão (como Stahl); outros, aos seus sucessos (como é o caso
no nosso livro Histoire et raison...): Tucídides sujeita o conflito em curso
a esta batalha de ordem moral e intelectual e, de acordo com o seu hábi­
to, não tira qualquer conclusão, mas faz de nós juiz.
Em todo o caso, parece que o pessimismo de Tucídides encontra
nesta exaltação do conhecimento crítico uma contrapartida importante.

172
A S N O V A S ID E IA S E M A T E N A S N A S E G U N D A M E T A D E D O S É C U L O V

A sua obra respira o orgulho da época, que descobria em tudo recursos


da razão.
Falta, por fim, acrescentar que, mesmo no domínio da acção, Tucí-
dides oferece, a par de momentos sombrios e de pinturas desoladoras, a
imagem de êxitos radiantes: é em vão que Atenas é uma conquistadora
brutal (o que muitos lhe censuravam, como Aristófanes ou Estesímbro-
to de Tasos), a oração fúnebre, pronunciada por Péricles no livro II,
apresenta-a em todo o seu prestígio e com o brilho de uma civilização
orgulhosa de si mesma. Tucídides não era obrigado, de forma nenhuma,
a introduzir um tal discurso na sua obra: ao fazê-lo, corrigiu a imagem
final - esta imagem que Péricles não deixa de evocar ao dizer que «a
lembrança é preservada etemamente» ou que «o brilho do presente, com
a glória do futuro, fica para sempre na memória» (II, 64, 3 e 5). A aná­
lise de Tucídides é, em vão, impiedosa, no entanto, permanece abrilhan­
tada pelo reflexo de tudo aquilo de que Atenas se orgulhara, quando ele
era jovem.
Ela também se serve de todos os recursos intelectuais e literários de
que a Atenas de então igualmente se orgulhara.

5. A arte de Tucídides

A história de Tucídides é construída como um desenho. Os discursos


estão numa relação precisa com a narrativa; também estão em relação
entre si; e o caso mais normal é o de dois discursos antitéticos, que se
correspondem até ao pormenor e que permitem ver as duas faces de uma
questão. Ora, esta arte de opor os argumentos entre si, de os confrontar,
de lhes dar a volta, corresponde, sem qualquer dúvida, ao ensino dos sofis-
tas: Protágoras ensinava a arte de fazer com que a tese fraca parecesse
forte, ou seja, de utilizar contra o adversário os próprios factos em que
este se baseava. E o que fazem constantemente os oradores de Tucídides:
Corcireus contra Coríntios, Plateenses contra Tebanos, ou ainda Cléon
contra Diódoto, Alcibíades contra Nícias, e muitos outros. Simplesmen­
te, aquilo que nos litigantes, alunos dos sofistas, era simples astúcia,
transforma-se, em Tucídides, num meio de análise e de descoberta. Pois
o processo debatido entre oradores contrários permite ao leitor medir as

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C O M P E N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

vantagens e os inconvenientes de cada situação e, por consequência, de


discernir os bons cálculos, os erros e a parte da ocasião. Destas duplas
análises destaca-se um sistema simultaneamente complexo e completo.
Mas, ao mesmo tempo, para dar força a estas análises, Tucídides
não descura nenhum processo posto na moda pelos sofistas para tornar
o pensamento mais firme e mais impressionante - pelo menos nos dis­
cursos. Encontramos, ali, palavras raras e poéticas que chamam a atenção,
as antíteses caras a Górgias, que o esboçam, as distinções de sinónimos,
caras a Pródico, que o afinam. Por vezes, em passagens rebuscadas, as
figuras de estilo crepitam, num estilo que, como o de Górgias, está des­
pido de artifícios: com mais frequência, as figuras e as oposições visam
sobretudo a firmeza. O paralelo que os embaixadores de Corinto estabe­
lecem entre Atenienses e Lacedemónios pode servir de exemplo, mesmo
através de uma tradução: «Eles são inovadores, vivos para imaginar e
realizaras suas ideias! Vós, vós conservais as vossas aquisições, não inven­
tais nada e, na realização, não satisfazeis nem o indispensável. Da mesma
forma, eles põem em prática a audácia, sem contar as suas forças, arris­
cam, sem parar para reflexões ou para optimismo, nas situações graves;
a vossa maneira é a de nunca agir, a não ser do lado de cá das vossas
forças, desconfiais das reflexões mais seguras e, nas situações graves,
leva-vos a dizer que não saireis» (I, 70, 2).
A isto acrescenta-se que o desejo da generalidade, que anima Tucí-
dides, leva-o a multiplicar as palavras abstractas e os infinitivos ou par-
ticípios substantivados, que permitem tomar a reflexão mais densa e mais
universal.
Encontramos estes abstractos até em passagens de simples narrativa
onde, contudo, o estilo é muito diferente. Aqui não tem o brilho que tem
nos discursos. Mas a frase continua, de forma comovente, o esforço rea­
lizado pela inteligência para organizar os diversos aspectos do real: as
proposições causais multiplicam-se, combinam-se; as explicações sobre­
põem-se. E, muitas vezes, as frases são longas, sem ter nada da regula­
ridade do estilo periódico. No caso mais normal, temos duas ou três
causais de tipo diferente antes do verbo; isto dá, por exemplo, palavra a
palavra: «Os Plateenses, ao darem-se conta de que os Tebanos estavam
no interior das muralhas e de que a cidade iria cair, subitamente, nas suas
mãoes, tiveram medo e, pensando que tinham entrado tropas muito mais

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A S N O V A S ID E IA S E M A T E N A S N A S E G U N D A M E T A D E D O S É C U L O V

numerosas (pois, com a noite, não viam), abraçaram a ideia de fazer um


tratado...» (II, 3).
No entanto, se, desde a estrutura dos episódios até aos pormenores
do estilo, tudo reflecte assim o movimento de uma inteligência simulta­
neamente subtil e abstracta, acreditar que a obra conserva uma natureza
intelectual e cerebral seria equivocar-se.
Com efeito, os raciocínios e os cálculos são atribuídos aos protago­
nistas: eles explicam os seus medos e as suas esperanças, os seus pro-
jectos, as suas expectativas. Ao conhecê-los, seguimos cada peripécia
da acção, dando-lhe todo o seu alcance. E, tal como numa tragédia, é
precisamente por estarmos associados à acção e que as suas forças nos
foram desveladas, que o acontecimento é acompanhado por todo o seu
fragor afectivo. De resto, Tucídides sabe muito bem acentuar, quando a
ocasião se lhe apresenta, os efeitos dramáticos. A sua descrição da peste
é clínica, mas é também trágica. A sua descrição das guerras civis é lúci­
da e profunda, mas insiste poderosamente no horror. E o desastre da
expedição à Sicília é explicado com um rigor totalmente técnico, mas
também lá está o patético, por exemplo, com as diversas emoções dos
espectadores, aquando do último combate (VII, 71, 2-3), ou então com
o contraste entre o abatimento do regresso e a alegria da partida (VII,
75, 6-7), ou ainda, para terminar, com as conclusões do próprio historia­
dor e a sua ênfase sombria (87, 6). Em Tucídides, a inteligência susten­
ta e aumenta o interesse. E a própria sobriedade, que ele se impõe, não
implica qualquer frieza, longe disso. Contemporâneo dos solistas e dos
médicos, é-o também da tragédia. E o desastre do poderio ateniense foi,
sem dúvida alguma, a seus olhos, a mais intensa das tragédias.
De facto, a obra de Tucídides, em que tão bem se traduz esta con­
fiança no homem, própria do «século de Péricles», constitui também como
que uma certidão de óbito: Atenas devera o seu desenvolvimento às guer­
ras médicas: não iria nunca restabelecer-se da guerra do Peloponeso.
CAPÍTULO VI

A ELOQUÊNCIA ÁTICA
NO SÉCULO IV
O século ιν, até à morte de Alexandre, em 323, viu Atenas restabe­
lecer-se do seu revés e tentar reflectir na lição, antes de ter de defender
a sua liberdade contra a ameaça macedónia, e defendê-la em vão. Esse
período foi, para ela, uma época de reflexão na qual, nos escritos em
prosa, desabrocham doutrinas políticas e filosóficas.
Esta reflexão manifestou-se a níveis diferentes. Primeiro, temos o
da vida prática: o século iv é o século da eloquência ática, e a carreira de
Demóstenes acompanha exactamente a crise da liberdade. Outros adqui­
rem um distanciamento maior e aconselham, sobretudo, os seus contem­
porâneos por meio dos tratados, nos quais expõem as suas doutrinas: é
o caso de Isócrates e, em parte, o de Xenofonte. Outros, por fim, entre­
gam-se exclusivamente à reflexão filosófica e dão-lhe uma nova dimensão:
o século iv é o que dá ao mundo Platão e Aristóteles. Já aqui observámos
esta diferença entre os níveis de pensamento e os géneros que presidiram
à repartição dos autores entre capítulos. Mas é claro que se trata de uma
distinção de mera comodidade, que não corresponde a um desenvolvimen­
to de ordem cronológica. A eloquência, a reflexão política, a filosofia,
começam quase em conjunto, desde o início do século; mas, de seguida,
cada género prossegue o seu caminho. Demóstenes figurará, então, antes
das exposição sobre Xenofonte ou Platão; ora, a sua actividade começa
no próprio ano em que Xenofonte morre e apenas oito anos antes da
morte de Platão. Apenas o parentesco dos géneros o faz passar à frente
deles, no capítulo consagrado à eloquência.
Esta eloquência, tão importante na cultura dos Antigos está na verda­
de, no que respeita a Atenas e às obras conservadas, totalmente contida

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C O M P Ê N D I O D E L IT E R A T U R A G R E G A

nos limites do século iv. Seja judiciária ou política, a eloquência ática


produziu todo o seu brilho entre o fim da guerra do Peloponeso e a morte
de Alexandre.
Houve, evidentemente, grandes oradores antes do século iv: as suas
obras não foram conservadas e os discursos escritos por Tucídides à sua
maneira não podem, de todo, dar uma ideia deles. De facto, parece que
não se preocuparam em conservar e publicar discursos, a não ser quan­
do o esforço feito durante a guerra do Peloponeso para concluir as téc­
nicas retóricas consagrou a independência literária do género oratório.
E, mesmo então, não se conservou tudo, falta muito. No domínio da elo­
quência política, não temos nada antes de Demóstenes, cuja actividade
começa em meados do século iv. Fomos um pouco mais favorecidos no
campo judiciário: Andócides e Lísias situam-se na junção do século v e
do iv; Iseu é um pouco posterior, mas no entanto pertence à primeira
metade do século iv. É por isso que começaremos por este género de
eloquência, que corresponde, aliás, aos fins primeiros da retórica.
Quanto à eloquência de aparato e às investigações teóricas, apare­
cem sobretudo em redor de Isócrates e daqueles que entraram em riva­
lidade com ele: como Isócrates é mestre de «filosofia» ao mesmo tempo
que de eloquência, esta última forma de eloquência será, com o próprio
Isócrates, remetida para o capítulo seguinte.

I.
A ELOQUÊNCIA JUDICIÁRIA

O primeiro Ateniense cujos discursos foram conservados não era


um profissional, mas um homem cuja vida foi ocupada com longos deba­
tes judiciários relativos a um assunto célebre, a saber, Andócides.

1. Andócides

Com efeito, Andócides esteve comprometido, em 415, com a ques­


tão da mutilação dos Hermes. Filho de Leógoras, Andócides pertencia

180
A E L O Q U Ê N C I A Á T I C A N O S É C U L O IV

à família nobre dos Cérices e tinha, como os familiares, tendências oli-


gárquicas; faziam parte de um grupo (ou hetaira) hostil à democracia.
Provavelmente, foi para se unir por meio de um sacrilégio comum que
este grupo procedeu à mutilação que deixou Atenas em desordem mesmo
antes da partida para a expedição da Sicília (415). Tucídides descreve a
tensão dos espíritos nesse momento e conta como é que um preso, pro­
porcionando a si mesmo impunidade, acabou por se passar para as con­
fissões e para as denúncias (VI, 60). Este preso era Andócides e o drama
iria pesar sobre toda a sua vida. Vítima de um decreto sobre as pessoas
acusadas de impiedade, foi, apesar da sua impunidade, impedido de agir,
arruinado, obrigado a deixar Atenas. De 414 a 403, iria tentar regressar
e, depois, permanecer lá. Dois dos três discursos dele, que se guardaram
(o quarto, Contra Alcibíades, é um discurso fictício a propósito de um
voto de ostracismo que opunha Nícias e Alcibíades e que, certamente,
não era dele), constituem regressos à questão de 415.
O primeiro em data é o discurso Sobre o seu regresso (cerca de 410):
Andócides pede para regressar e faz valer os serviços prestados, ou os
possíveis. Não consegue. Regressou, contudo, aquando da amnistia geral,
no final da guerra; mas foi alvo de novas dificuldades, de novos proces­
sos. O discurso Sobre os mistérios (discurso I) data de 399: Andócides
fora denunciado por ter tomado parte nos Mistérios e ter entrado na ágora,
apesar do famoso decreto sobre as pessoas culpadas de impiedade. Desta
vez, no decurso de um grande processo, por fim, não foi admitido ajuízo:
ele precisa no discurso que, se a sua heteria era culpada, ele não tinha
aprovado pessoalmente o projecto, nem participado na sua realização.
O terceiro discurso pertence à época dos direitos recuperados: é o
Sobre a Paz, relativo a uma negociação com Esparta em que Andócides
tomara parte oficialmente (392-391); marca também o fim desta curta
época: as cláusulas da paz desagradaram aos Atenienses, que impuseram
a Andócides um novo exílio.
Estes três discursos estão, assim, ligados de forma muito estreita à
própria vida de Andócides e ao drama que a marcou. E o facto é que o
que eles têm de melhor é um certo tom pessoal e directo na narrativa.
Quando conta a sua prisão, as pressões sobre ele exercidas e as suas
dúvidas, comove os seus leitores e vemo-lo completamente transtornado:

181
C O M P Ê N D I O D E L IT E R A T U R A G R E G A

«Pensava em mim mesmo: ó infeliz! Que caí na pior angústia! Devo


sofrer que os meus parentes morram injustamente? Que os condenem à
morte (...)? Ou direi aos Atenienses aquilo que ouvi da própria boca de
Eufileto, o autor do crime?» (I, 51).
Em contrapartida, em toda a argumentação Andócides é em geral
seco e sem originalidade.
Em certos casos, a aparente banalidade dos seus argumentos pode
prender-se com o facto de que outros o imitaram (algumas passagens do
Sobre a paz parecem recuperadas no discurso Sobre a embaixada, de
Esquines). Mas, de qualquer modo, nada se eleva acima dos argumentos
de escola e de pequenos raciocínios abstractos, de que Antifonte deixou
alguns exemplos meramente teóricos e de que os diversos Tratados da
época deveriam dar modelos. Com efeito, tudo se passa como se o natu­
ral só tivesse surgido com a técnica já a funcionar e rodada.
Os Alexandrinos incluíram Andócides no cânone dos dez melhores
oradores: o seu talento dificilmente justificaria este lugar, se ele não tives­
se conservado o mérito de ter sido um dos primeiros. E temos o senti­
mento de um progresso quase sem medida, quando passamos dele para
o seu contemporâneo Lísias, que foi advogado de profissão.

2. Lísias

O essencial na vida de Lísias é que, tendo vivido em Atenas, não era


Ateniense: esta circunstância interditou-lhe a acção política e fez dele
um logógrafo, alguém que compunha discursos para os outros.
Conhecemos bem o seu nascimento e a sua família: o seu pai, Céfa-
lo, viera de Siracusa e possuía em Atenas uma importante fábrica de
escudos. Lísias conta-o no Contra Eratóstenes; e Platão coloca o início
da sua República precisamente em casa de Céfalo: apresenta-o no cen­
tro de um meio brilhante, onde se encontram Sócrates e os sofistas. Esta
atmosfera abastada e polida explica os estudos que Lísias fez (em Ate­
nas, depois em Itália, onde frequentou o grande mestre de retórica Tísias)
e a graça do seu tom. Por outro lado, a crise política do final da guerra e
as medidas tomadas pelos Trinta contra os metecos perturbaram a família:

182
A E L O Q U Ê N C I A Á T I C A N O S É C U L O IV

Lísias, que deveria ter trinta e cinco anos, escapa à justa à prisão; mas o
seu irmão foi preso e condenado à morte; a sua fortuna foi perdida; e
Lísias teve de viver, daí em diante, dos seus talentos retóricos. E fê-lo
até à morte, que se deve situar entre 380 e 360.
A sua obra foi enorme; alguns, na Antiguidade, falaram de mais de
quatrocentos discursos; restam trinta e cinco, dos quais alguns estão
incompletos e alguns são inautênticos. São quase todos discursos judi­
ciários, compostos para clientes. Há, contudo - mesmo pondo de parte
a sua carreira como mestre de retórica, que só é conhecida de forma indi-
recta e pouco segura - excepções; pois sob o nome de Lísias temos dis­
cursos de aparato e um discurso de defesa muito pessoal, constituído
pela sua própria causa, o Contra Eratóstenes.
Os discursos de aparato são de autenticidade duvidosa e de qualida­
de medíocre. São a Oração fúnebre e o Olímpico - a que podemos acres­
centar, com muitas reservas, o discurso Sobre o amor, que Platão cita no
Fedro, atribuindo-o a Lísias. Este discurso defende a ideia de que é pre­
ferível conceder favores a um amante que não esteja apaixonado. A tese
é ao gosto da sofística, o estilo está na melhor maneira de Lísias; mas o
conjunto tem mais possibilidades de ser uma imitação do que uma cita­
ção; e apenas podemos concluir que Lísias também praticava, ocasional­
mente, esta espécie de discurso fictício sobre teses paradoxais.
O caso dos dois outros é diferente. O seu estilo, muito marcado pela
sofística, não é o estilo dos discursos; mas talvez a diferença se explique
pela dos géneros. Por outro lado, a Oração fúnebre - um desses elogios
dos mortos e de Atenas, como há muitos - não pode ter sido pronunciada
por Lísias, que não era cidadão; mas talvez ele tenha composto o texto,
apesar de tudo. No pensamento, nada se opunha a estas atribuições: a Ora­
ção fúnebre está muito próxima de Isócrates (há paralelos estreitos com
o Panegírico), mas a nota democrática adequava-se a Lísias. Do mesmo
modo, o Olímpico prega a concórdia entre os Gregos, como Górgias acaba­
va de fazer; mas os ataques contra Dionísio de Siracusa adequavam-se
a Lísias. Em todo o caso, estes dois discursos contam mais como docu­
mentos sobre a história das ideias do que como obras literárias. O pri­
meiro é de pouco depois de 393, o segundo de 388 ou 384.

183
C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

Em contrapartida, nada poderia ser mais pessoal do que o Contra


Eratóstenes', e sucede que este documento excepcional fornece de uma
só vez como que um compêndio de quase todos os traços característicos
das ideias de Lísias e do seu talento.
O discurso tem por objecto o drama que perturbou a vida de Lísias:
com efeito, Eratóstenes era um dos Trinta tiranos responsáveis, em 404,
pela prisão e pela morte do seu irmão, bem como pela sua ruína. Pouco
depois, estes Trinta tiranos foram derrubados pelos democratas exilados.
Depois da sua derrota, uma reconciliação impedira as perseguições; mas
Lísias encontrou uma ocasião, em 403, para atacar Eratóstenes, apesar
disso, e, com ele, os seus amigos políticos, incluindo Terâmenes, mais
moderado do que os outros mas que negociara a desastrosa paz de 404
e que Lísias odiava.
O discurso é, sobretudo, comovente quando esboça as circunstân­
cias da morte de Polemarco, o irmão de Lísias: na sua simplicidade, a
narrativa parece prefigurar todos os casos de perseguições colectivas e
arbitrárias que a história pôde conhecer.
Este valor exemplar advém-lhe, em parte, do calor das convicções
que, por todo o lado, sentimos latentes em Lísias. Lísias era um demo­
crata; e a experiência de 404 reforçou os seus sentimentos. Não perdoa
nada, nem desculpa qualquer compromisso. Os seus ataques contra Terâ­
menes provam-no suficientemente: dir-se-ia que Lísias ainda detesta
mais os moderados do que os extremistas.
Estes sentimentos encontram-se habitualmente nos discursos que
escreveu para os outros. Sucedeu-lhe, sem dúvida, escrever discursos
para aristocratas: é o caso do Para Mantíteo (XVI) ou no discurso Para
nm cidadão acusado de conluios contra a democracia (XXV), mas
defende a sua inocência: Lísias não se desdizia, contudo, ao defendê-los.
Aliás (se pusermos de parte o Por Polístrato (XX), que certamente não
é um discurso seu), não encontramos nada que se afaste do seu ideal
democrático: o discurso XXXIV, que não é um discurso judiciário, opõe-
-se à ideia de limitar os direitos políticos aos proprietários de terras; o
discurso XIII (Contra Agorato) é, como o Contra Eratóstenes, um ata­
que contra um homem que se misturara aos acontecimentos de 404 e um
ataque contra Terâmenes, considerado um traidor. Enfim, em muitos dis­

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A E L O Q U Ê N C I A A T I C A N O S É C U L O IV

cursos, as alusões não faltam: eram feitas para agradar aos juízes, mas
parece que responderam ao sentimento do autor.
No entanto, a força deste sentimento adquire um valor tanto maior
no Contra Eratóstenes, quanto a expressão é deliberadamente discreta:
Lísias conta factos, muito simplesmente. A medida cruel e arbitrária dos
Trinta é evocada sem ênfase: os pormenores da fuga das vítimas apresen­
tam-se sob a forma de diálogos breves, sem comentários: «Digo a Píson:
queres salvar-me por dinheiro? - Sim, diz ele, se a quantia for grande...»;
a baixeza dos seus perseguidores traduz-se em pormenores concretos,
igualmente sem comentários - tal como quando a lista de todas as riquezas
confiscadas resulta na menção deste pequeno gesto revelador: «A mulher
de Polemarco tinha pendentes de ouro, que ela possuía quando entrou
em casa: Melóbio arrancou-lhos das orelhas» (19).
Esta reserva, muitas vezes marcada com ironia, e este sentido do por­
menor concreto encontram-se em todos os discursos de Lísias, misturados
com a arte de se comparar ao carácter do litigante, ou ethopoiia. É o que
faz destes discursos um quadro tão vivo da vida ateniense da época. Há
cenas de rua, com jovens bêbados; há lojas, onde se conversa, como lem­
bra o pobre inválido do discurso XXIV: «Tendes o hábito de dar a vossa
volta, um ao perfumista, outro ao barbeiro, outro ao sapateiro...»; vemos,
também, cenas de interior, como a casa do marido enganado, que fala em
Sobre a morte de Eratóstenes (I: trata-se de outro Eratóstenes); ele conta
como é que a sua mulher usava os gritos do bebé para ter um pretexto
para descer, fechando-o a ele em cima, onde começa a reflectir: «Lembrei-
-me de que, nessa noite, as portas da rua e do pátio fizeram barulho, o que
nunca tinha acontecido, e que a minha mulher me apareceu pintada...»
(17). Todo este mundo familiar, por vezes, ingénuo, se pretende amigo da
ordem. E a arte de Lísias tende a tomá-lo mais vivo e simpático.
Com efeito, esta arte é mais subtil do que incialmente parecia. Con­
siste em apresentar a narrativa do modo mais simples possível, de forma
a orientar muito os espíritos. Assim, a argumentação apenas tem como
fim responder ao que pretende o adversário: Lísias fá-lo sem grande pes­
quisa, nem de forma, nem de dialéctica, em nome de uma verosimilhan­
ça ingénua. Quando o marido enganado se defende de ter morto com
premeditação, acumula indícios de verosimilhança que, por si mesmos,

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C O M P Ê N D I O D E L IT E R A T U R A G R E G A

se tomam concretos: «E acreditais vós que eu deixei sair o convidado?


Não vos parece, ainda, que eu teria convocado os meus amigos durante o
dia? Que lhes teria pedido que se reunissem? Se tivesse predito a coisa, não
teria eu, dizei-me, colocado servidores?» (41). Os argumentos de verosi­
milhança já não têm a secura que vimos em Antifonte ou em Andócides:
animam-se de naturalidade e de simplicidade. E estes dois traços reflec-
tem-se, por seu turno, no estilo fácil e puro de Lísias. Com ele, a elo­
quência judiciária tomou-se mais do que uma técnica: é, daí em diante,
uma arte literária.

3. Iseu

Este não é, contudo, o caso de Iseu.


Iseu é um homem pouco conhecido: passa por ter sido de Cálcis,
por ter sido aluno de Isócrates e mestre de Demóstenes. Mas nada é certo.
Além do mais, Iseu poderia muito bem ter sido servido pelo acaso, que
só nos deixou da sua obra discursos relativos a assuntos de herança. Há
onze. Para além disso, temos apenas um longo fragmento de um discur­
so relativo a uma inscrição na lista cívica (a Defesa de Eufileto, XII): o
tema é praticamente o mesmo. Ora, é preciso admitir que estas discus­
sões de estado civil, a propósito de situações complicadas, não são em
si um assunto apelativo.
Como quer que seja, é certo que Iseu não tinha a graça de Lísias.
Em contrapartida, a tradição que faz dele mestre de Demóstenes corres­
ponde a uma qualidade que os seus antecessores não tinham e que é a
força da argumentação. Iseu sabe reduzir uma causa a um ou dois argu­
mentos muito claros, que repete, varia e retoma de diversas formas. Tam­
bém sabe citar as leis, comentá-las com firmeza. Sabe, por fim, destacar
uma evidência, multiplicando as formas para desembocar, no final das
contas, numa conclusão breve, que se impõe de repente: já não é o pra­
zer literário de Lísias, mas é, aplicada a uma matéria bastante árida, um
pouco da força que se desenvolverá com Demóstenes.

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A E L O Q U Ê N C I A Á T I C A N O S É C U L O IV

II.
DEMÓSTENES

A vida de Demóstenes está estreitamente ligada à de Atenas e a sua


obra escande as etapas desta história comum. Na sua vida, só a sua juven­
tude permanece privada; e, na sua obra, apenas os discursos civis per­
manecem alheios à aventura da cidade em luta pela sua independência.

1. Vida e obra

a) A juventude

Demóstenes, do demo de Paeania, nasceu em 384, mais de meio


século depois de Lísias e de Isócrates. Tal como com Andócides e Lísias,
a sua carreira de orador foi provocada por uma infelicidade inicial: o seu
pai morreu quando ele tinha sete anos e foi confiado a tutores, cuja deso­
nestidade o obrigou a ter de os perseguir na justiça. Estudou, assim, elo­
quência para o poder fazer. Pleiteou (chegaram-nos cinco discursos) e o
sucesso que acabou por obter encorajou-o a continuar nesta via. Aliás,
muito novo ter-se-á impressionado com a audição de um processo de
um grande orador, Calístrato de Afidnas.
Assim, trabalhou. Trabalhou a sua dicção (com seixos na boca), a
sua voz (declamando em plena corrida), a sua acção (falando diante de
um espelho). Mas também trabalhou para cultivar o espírito. Passa por
ter sido aluno de Iseu, por ter copiado à mão, oito vezes, o texto de Tucí-
dides, por ter sido discípulo de Platão e de Isócrates... Uma coisa é certa:
todo ele está penetrado da história de Atenas e, muitas vezes, reflecte as
ideias morais que então se destacavam.
Utilizou esse talento na sua profissão de advogado para outros, ou
seja, de logógrafo (como Lísias ou Iseu); mas usou-o ainda mais como
orador político, intervindo quer em processos públicos, quer em arengas
ao povo. A sua primeira intervenção deste género data de 355: tinha exac-
tamente trinta anos.

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C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

b) Antes de Filipe

A primeira Filípica data de 351. Os quatro anos que a precedem são


ocupados com uma série de discursos que ainda não têm a unidade apai­
xonada do período seguinte, mas que já preparam as suas posições. Che­
gou à política na época de Eubulo, que fazia prevalecer a moderação e
as economias. Imediatamente, Demóstenes pareceu preferir à preocupa­
ção da parcimónia a de um ideal moral.
O Contra Andrócion, em 355, é assim um violento ataque contra
uma personagem que, para fazer entrar impostos atrasados, atacara os
direitos do indivíduo. O Contra Léptines, em 354, é também um ataque
contra um homem que quisera suprimir certas dispensas de impostos e,
assim, atacar o respeito pela palavra dada e a honra da cidade. O Contra
Timócrates, em 353, é como que um prolongamento do Contra Andró­
cion, pois Timócrates procurava proteger, mais ou menos regularmente,
Andrócion: as medidas assim tomadas são, de acordo com Demóstenes,
contrárias ao respeito pela leis e ao espírito democrático do Estado. Ao
mesmo tempo, esses três discursos já deixam entrever princípios gerais
de política externa, como a importância da marinha e das alianças, ou a
da honra nacional.
O facto é que, desde antes do Contra Timócrates, Demóstenes começa­
ra a tratar estas questões. O seu discurso Sobre as Simorias foi pronunciado
no Outono de 354; deveria ter tratado da Pérsia; mas, audaciosamente,
o jovem Demóstenes desloca a questão: é preciso, diz ele, aproveitar os
rumores que correm para se ter uma maior força de golpe ao reformar a
organização das trierarquias (que equipavam os navios); e apela ao ardor
dos Atenienses, sem definir em que é que o empregarão. No ano seguin­
te, no discurso Sobre os Megalopolitanos, declara-se pronto para se opor
a Esparta, em favor dos antigos inimigos, e isso para servir o ideal incon­
dicional da independência das cidades. Alguns meses mais tarde, no dis­
curso Contra Aristócrates, opõe-se a um decreto que tendia a favorecer
exclusivamente um príncipe trácio, o que se arriscava a ameaçar a auto­
ridade tradicional de Atenas no Quersoneso. Encontramos, por fim, um
discurso do mesmo género um pouco mais tarde: é o discurso Sobre a
liberdade dos Rádios, que pretende que Atenas apoie Rodes em nome
da aliança natural que une as democracias entre si.

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A E L O Q U Ê N C I A Á T I C A N O S É C U L O IV

Todos estes discursos parecem preparar uma resistência nacional


contra ameaças vagas e mutáveis: a ameaça constituída por Filipe da
Macedónia iria dar a esta atitude um centro e uma razão de ser, mobili­
zando daí em diante toda a energia do orador. De resto, a espécie de rea­
lismo utilitário que ele ainda afectava nos seus primeiros discursos (e
que, provavelmente, tomara emprestada a Tucídides) ir-se-ia apagar
perante o arrebatamento que a ideia da pátria ameaçada suscitava.

c) A luta contra Filipe até depois da paz com Filócrates

Filipe reinou na Macedónia a partir de 359: começou com invasões


em Anfipolis, Pidna, Potideia... Em 353, graças à terceira guerra sagra­
da, tinha entrado na Tessália. Detido por este lado, voltou-se para o norte
do Egeu. E então que se situam, uma a trás das outras, a primeira Filí-
pica (351) e as três Olintíacas (349). A primeira Filípica é um apelo
vibrante à resistência: o jovem Demóstenes não hesitara em ser o primei­
ro a pedir a palavra; e multiplica os apelos, as admoestações, os gritos
de alarme. Reclama um grande esforço, um exército nacional, pronto a
intervir imediatamente, na primeira ocasião. Ora, esta ocasião iria sur­
gir, a seus olhos, na ameaça contra Olíntia, a grande cidade da Calcídica
que Filipe começara a adular. Apaixonadamente, obstinadamente, Demós­
tenes mostra que é uma oportunidade única; pede o envio de auxílio a
Olíntia; encara mesmo uma reforma da famosa caixa de espectáculos
(ou «teórica»), que era o recurso da política de Eubulo; mostra que o
poder de Filipe, baseado na injustiça, tem de ser frágil: contra ele, é pre­
ciso que Atenas saia, finalmente, do seu abatimento, que ela regresse ao
que era no passado, que renasça!
Todos os grandes temas de Demóstenes estão ali. E partiram-se todos
as pontes com os pacifistas. Mas o sucesso não coroou este esforço. Olín­
tia caiu, entregue por traição, em 348. E imediatamente Atenas concluiu
com Filipe a paz de Filócrates, em 346.
Demóstenes aceitou-o: tinha de ser. Sabemo-lo pelo pequeno discur­
so Sobre a Paz. E também constatamos que o seu ataque violento contra
o seu inimigo pessoal, o rico Mídias, que o esbofeteara nas grandes Dio-
nisíacas de 348 (é o nosso Contra Mídias) não foi, definitivamente, pro­
nunciado. Demóstenes sabia reconhecer quando a oportunidade passava.

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C O M P E N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

Em contrapartida, três anos depois, iria regressar a esta paz, no seu


discurso Sobre a embaixada. A partir de 346, lutou contra os seus cole­
gas de embaixada, em particular, com a ajuda de um tal Timarco, contra
Esquines; Esquines respondeu, acusando Timarco; depois, intervieram
outros processos, o que explica a demora. Mas essa demora não atenua
o rancor ou a paixão. Esquines, diz Demóstenes, faz parte desses traido­
res que, em toda a Grécia, agiam para Filipe; é uma verdadeira doença
para a Grécia e uma doença que Filipe mantém deliberadamente. Vemos
que o revés, que impôs a paz de 346, só pôs fim à luta provisoriamente:
Demóstenes estava pronto a retomá-la.

d) A luta contra Filipe de 346 a 338

Três discursos assinalam com força esse renovar da luta e o novo


esforço de Demóstenes para alertar os seus concidadãos: a segunda Fili-
pica é de 344 e denúncia Filipe como inimigo de Atenas, que é a única
capaz de defender a causa dos Gregos; o discurso Sobre o Quersoneso,
em 341, recusa-se a ter em conta os desaires que pode ter tido, no Quer­
soneso da Trácia, o estratego ateniense Diopeites e só considera graves
e decisivos os desaires que Filipe já teve, ou irá ter, com Atenas; no
mesmo ano, a terceira Filípica, relativa, desta vez, à Eubeia, julga mesmo
que o estado de guerra já existe nesse momento entre Filipe e Atenas.
Para esta luta, os três discursos exigem sempre severidade para com
os traidores, mas sobretudo um movimento brusco de energia da parte
do povo, que devia reencontrar o sentido das suas responsabilidades.
Este movimento brusco de energia foi obtido, pelo menos em certa
medida: Diopeites permaneceu no Quersoneso; foi enviada uma expe­
dição à Eubeia; e Demóstenes tomou-se senhor da política ateniense.
Neste momento decisivo, faltam-nos os seus discursos. A última
arenga que temos dele é a quarta Filípica, que não pôde ser proferida
sob esta forma: é uma curiosa mistura de textos retirados de outros dis­
cursos com três passagens originais, em que certos pormenores traem o
desejo de encontrar apoios a qualquer preço. Pelo menos este traço está
de acordo com o que sabemos da política audaciosa de Demóstenes, que
não hesitou em concluir com os Tebanos, tão mal vistos pelos Atenien­

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A E L O Q U Ê N C I A Á T I C A N O S É C U L O IV

ses, uma aliança contra Filipe. Sabemos, de resto, que não serviu de nada:
a batalha de Queroneia, em Agosto de 338, assinalou a vitória definitiva
de Filipe. Daí em diante, Atenas ficou submetida aos reis da Macedónia.
Mas, se não temos os discursos do momento, acontece que, tal como
para o primeiro empenho, temos um grande discurso retrospectivo, com­
posto vários anos depois, por ocasião de um processo político: é o mais céle­
bre e o mais pessoal dos discursos de Demóstenes, o Sobre a Coroa, que é
de 330, mas que trata de acontecimentos anteriores e de política em geral.
O processo partiu da proposta de Ctesifonte para conceder uma coroa
de ouro a Demóstenes, pela generosidade com que contribuirá para a
reconstrução das muralhas. Esquines atacou esta proposta e o processo
acabou por nascer: na realidade, tinha por objecto todo o papel político
de Demóstenes. Nunca este deu provas de tanta autoridade e de segu­
rança como neste processo. Por meio de uma hábil composição, deixou
para o fim (depois de um falso epílogo e de um ataque mordaz contra
Esquines) toda uma parte dos acontecimentos, que é aquela em que ele
próprio se distinguiu: é o período da aliança com Tebas e do esforço
supremo para resistir; ocupa perto de cem parágrafos (160-251). E não
nega nada do que fez. Recorda em que circunstâncias, aquando da supre-
sa de Elatia, ele teve, sozinho, a coragem de intervir. Pergunta inúmeras
vezes: o que é que deveria ter feito de forma diferente? Mostra aquilo
que, ao menos, a sua política evitou. Enfim, numa espécie de sobressal­
to, afirma que teve razão, apesar do desaire final: «Ainda que o futuro
tivesse sido evidente para todos nós, ainda que toda a gente o tivesse
conhecido antecipadamente, ainda que tu, Esquines, o tivesses anuncia­
do e comprovado com os gritos dos clamores, tu que nem uma palavra
sopraste, ainda assim, o nosso país não deveria ter renunciado esta ati­
tude, pelo menos, se se preocupasse com a glória dos nossos antepassa­
dos ou a da prosteridade.» (199).
A grande tradição do prestígio ateniense do qual Péricles, na obra
de Tucídides, dissera que sobreviveria ao poder, é aqui retomada com
estrondo, depois do revés, num idealismo que não deixa lugar nem à
dúvida nem ao arrependimento. Os Atenienses tinham de ser sensíveis
a isto: votaram a favor de Demóstenes, ratificando assim, demasiado
tarde, uma política que os conduzira ao desastre.

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e) O fim da vida de Demóstenes

Infelizmente, o Sobre a Coroa não é a conclusão. Demóstenes ainda


viveu oito anos numa Atenas submetida a Alexandre. Destes anos, ape­
nas conservámos um discurso sem grande alcance e cuja autenticidade
foi mesmo contestada, o Contra Aristogíton (o primeiro: há um segundo,
ainda mais contestado). Pelo menos, sabemos que Demóstenes participou
numa tentativa de sublevação, que foi associado a um assunto pouco
transparente (teria recebido dinheiro de um agente de Alexandre, Hár-
palo), que recuperou a esperança em 323, com a morte de Alexandre,
mas rapidamente teve de fugir e envenenar-se, em 322. A sua vida pouco
contava antes da luta contra Filipe: mas logo pouco depois, conta tudo;
e a sua obra como orador confunde-se com esta luta.

f) Os discursos de defesa civis

Os seus discursos civis conservam-se à margem. Para além dos dis­


cursos contra os tutores, há os discursos como logógrafo, escritos para
clientes. No total, em seu nome possuímos trinta e três; mas apenas cerca
de uma dezena tem a sorte de ser sua: o apagamento do autor perante
aquele que devia litigar toma a escolha mais difícil. Em geral, estes dis­
cursos são claros e límpidos, mas sem nada do que constitui, noutros
locais, a força de Diógenes.
O facto confirma que esta força está associada à intensidade das
convicções, que se reflecte, por seu turno, no brilho soberano do estilo.

2. As ideias e o estilo

Demóstenes conheceu a sorte de todos os que se identificam com


uma causa com paixão: em vida, foi elogiado e difamado e, vinte e cinco
séculos mais tarde, continua a ser julgado sem serenidade. Procura-se
provar que mais não foi do que um vendido. Condena-se a cegueira da sua
política, baseada num patriotismo de cidade e incapaz de medir as novas
forças de unificação que surgiam (e que Isócrates pressentia). Ou então,

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inversamente, torna-se o símbolo de toda a resistência e de toda a inde­


pendência. Traço para a sua glória: ainda hoje se escreve sobre ele, em
função da actualidade.
Mas, para além das situações de facto e das opções pessoais, é claro
que a eloquência de Demóstenes se baseia em algumas ideias sólidas e
firmes na ordem moral e política.
Demóstenes era democrata; mas, precisamente por esta razão, pare­
cia-lhe que o verdadeiro remédio para todos os males possíveis seria um
fortalecimento dos costumes democráticos. Por isso, reclama duas coisas:
o respeito da lei e a vontade, entre o povo, de aceitar as suas responsa­
bilidades.
Os textos sobre a lei são frequentes sobretudo nos discursos políticos,
mas têm pouco brilho. Para um Grego, a identificação entre lei e demo­
cracia é evidente; mas Demóstenes, numa época em que o respeito pelas
leis diminuía, encontra, para recordar esta identificação, acentos surpre­
endentes; um dos textos mais claros é o Contra Mídias, 221 ss., em que
mostra a lei a assegurar a segurança de cada um na rua, mas garantindo
também a autoridade dos próprios juízes; ora, esta força das leis vem
dos cidadãos, que querem respeitá-la: «E assim vós fazeis a força das
leis, tal como elas fazem a vossa.».
Mas a lei define uma condição, não uma política: a política é obra
do povo, reunido em assembleia. Demóstenes não deixou de o repetir:
o que arruina a política é que o povo se submete aos demagogos que o
adulam. Também aqui a ideia não é nova, mas Demóstenes deu-lhe uma
nova vida. Foi capaz de mostrar a liberdade de expressão banida da tri­
buna, o povo a divertir-se, encorajando «homens que são vendidos a
proferir as suas propostas desonestas» e, pouco a pouco, a perder a sobe­
rania: «Antes, gastavam o imposto das simorias, agora fazem política
pelas simorias: o chefe é o orador e sob ele está o estratego e, para gritar
com cada grupo, há os trezentos: vós, os outros, estais divididos uns num
campo, outros no outro» {Sobre a org.fin., 20 = Olintíacas, II, 29). O povo
está «reduzido à condição de servidor, de acessório», está «amansado,
domesticado». Por fim, é detido pela sua própria falta de vontade: segue
a encosta do menor esforço. Lucidez e vontade de agir escapam-lhe,
assim, em conjunto.

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Tudo isto Demóstenes diz ao povo, com uma severidade áspera: com
efeito, considera o orador, ou seja, o homem político, tem deveres: dizer
a verdade ao povo é um; ser dedicado à cidade é outro, e também saber
pressentir, prever as questões no seu início, e nunca se furtar às obriga­
ções, que estão para o orador como para um soldado no seu posto.
Para o povo e para os homens políticos, os valores têm de ser restau­
rados; e aqui Demóstenes é realmente um «educador do povo» (W. Jaeger).
Estes valores restaurados, restaurariam, por seu turno, o prestígio que
foi o de Atenas no passado, e Demóstenes nunca deixou de acreditar que
o retomo era possível. A Atenas do tempo das guerras médicas é aquela
que ele queria reencontrar - com Filipe no papel do rei da Pérsia. Ele
queria a glória, a primazia, o brilho. E o contraste constante entre esta
grandeza a reencontrar e a miséria do presente explica a espécie de urgên­
cia e de tensão que é a própria natureza da sua eloquência.
Todos os meios desta eloquência são postos ao serviço deste pensa­
mento, que é sempre o mesmo.
A composição é suficientemente livre para realçar o essencial: vimos
uma prova no Sobre a Coroa. E esta espécie de liberdade no modo de
avançar aparece mesmo no pormenor: muitas vezes, os exórdios deslo­
cam a questão com ousadia. Por outro lado, até quando Demóstenes pro­
cede de acordo com uma organização subtilmente deliberada, parece
deixar-se sempre levar por uma inspiração espontânea: por vezes, temos
dificuldade em distinguir as partes entre si, de tal modo um movimento
único parece dominar a totalidade. No entanto, sabemo-lo, a arte de
Demóstenes não devia nada ao improviso..
Mas, mais ainda do que esta liberdade no modo de avançar, a pró­
pria força do estilo respira poder.
E um estilo que nada prepara na eloquência anterior, mais limado,
conciso e intelectual - pelo menos, tanto quanto a conhecemos. E o mais
notável é, sem dúvida, o modo como combina a aspereza e o fôlego, o
resumo e a extensão.
O que dá esta impressão de aspereza e de resumo é, primeiro, a força
das próprias palavras, no seu carácter familiar e concreto. Vimo-lo relati­
vamente ao «fazem política pelas simorias». Muitas vezes, estas palavras
concretas brotam na forma de imagens. Assim o escreve (Filípica, I, 26):
«Tal como os fabricantes de figurinhas de argila, elegeis os vossos estra­

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tegos para uma montra, não para a guerra». Ou então, compara os abo­
nos da caixa dos espectáculos com os alimentos dados pelos médicos
«que não dão forças, mas apenas impedem de morrer» (Olintíaca, III, 33).
Por vezes, estas imagens apressam-se, variam de uma linha para a outra,
como se a vivacidade da impressão, ou a urgência em comunicá-la, exi­
gisse esta renovação.
Ou então, Demóstenes passa de uma só vez para o estilo directo,
para o diálogo. Às vezes, é apenas um artifício da apresentação, desti­
nada a realçar a ideia («De onde se tirará a substância? Do céu? Não
pode ser», em Sobre o Quersoneso, 26). Ou então, é uma forma de mos­
trar a a ausência de qualquer solução, como nas seis questões, seguidas
de respostas insuficientes, que se sucedem em Sobre o Quersoneso, 17.
Talvez seja, também, uma forma sarcástica de pôr a nu as intenções de
um adversário que ele põe a falar.
Estas ousadias impetuosas, esta vivacidade, este brilho foram estig­
matizados por Esquines, que atribui a Demóstenes uma série de imagens
extravagantes e incoerentes: «Podamos a república; subrepticiamente cor­
támos os nervos à democracia, estamos juntos, apertados como esteiras,
somos enfiados em passagens estreitas como agulhas» (Contra Ctesifonte,
166). Também acrescenta que Demóstenes «redemoinhava» a tribuna.
Mas estas críticas fáceis desconhecem o facto de que estes brilhos
bruscos são, na verdade, produzidos por um estilo que combina quali­
dades opostas. Pois Demóstenes também pratica grandes períodos, com
um movimento solene e um fôlego potente. Poderíamos referir como
exemplo a célebre abertura do Sobre a Coroa, com a sua prece aos deu­
ses, ou então a passagem da segunda Olintíaca, 23-26, na qual estabe­
lece que o sucesso de Filipe não é espantoso e que só a atitude de Atenas
é espantosa: o movimento estende-se por vinte e duas linhas, com repe­
tições verbais, colocadas de tempos a tempos («Não é de espantar.... e,
quanto a mim, não me espanto: pelo contrário, seria de espantar... Mas
o que me espanta... Eis o que me espanta...»). Tais expressões apresen­
tam um fôlego único e regular, que parece obter a adesão pela sua pró­
pria segurança.
Estes dois tipos de frase alternam, naturalmente, em Demóstenes:
as pequenas observações, as perguntas sem resposta, as imagens mor­
dazes correspondem à crítica a uma atitude ou aos ataques contra o adver­

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C O M P E N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

sário; pelo contrário, as grandes frases, longas ou insistentes, estão ali


para evocar o ideal ou para se elevar a uma visão de conjunto. Mas,
sobretudo, tal como toda a inspiração de Demóstenes provém do con­
traste entre passado e presente, ou entre ideal e realidade, a originalidade
profunda da sua eloquência provém da forma como combina os dois tons
no interior de uma mesma frase. Muitas vezes, também, vamos subindo
devagar, nobremente, ao longo dos membros da frase com uma impor­
tância crescente, para desembocar surpreendentemente numa pequena
conclusão, breve e acabrunhante na sua evidência (como em Sobre os
Megalopolitanos, 8; Sobre o Quersoneso, 6; 49-50; Contra Mídias, 48-50).
Estas quedas repentinas correspondem ao aparecimento de uma evidên­
cia, de uma ameaça; reforçam pelo próprio contraste a importância do
que produzem; confrontam o auditório com uma realidade que resolve
qualquer incerteza.
A eloquência de Demóstenes supõe, assim, uma experiência consu­
mada dos recursos da arte oratória. Mas esses recursos estão fundidos,
aqui, num impulso interior, ao qual a importância da luta travada dá todo
o seu valor: o estilo de Demóstenes corresponde ao carácter total e apai-
xondado do seu empenho. Com efeito, este cume da eloquência política
ateniense confunde-se com a crise em que a independência da cidade se
ia submergir. E isto só é um paradoxo na aparência, se o ideal patriótico
ateniense nos encontrasse a sua expressão mais nobre e ardente, no
momento em que ele trava, em vão, o seu último combate.

III.
OS ORADORES CONTEMPORÂNEOS
DE DEMÓSTENES

Quase todos os grandes oradores políticos do século iv são, não obs­


tante, da mesma geração. Demóstenes nasceu em 384, Demades pela
mesma data, Hiperides, Licurgo e Esquines, cinco ou seis anos antes,
Fócio treze anos antes. Por outro lado, Hiperides, Fócio, Licurgo mor­
rem menos de cinco anos antes ou depois de Demóstenes: a eloquência
ática está, assim, bem associada à crise da cidade.

196
A E L O Q U Ê N C I A Á T I C A N O S É C U L O IV

1. Esquines

Tendo sido adversário de Demóstenes, Esquines fica para sempre


confrontado com ele. E por Demóstenes que conhecemos as origens
humildes de Esquines, a sua função como actor de primeira ordem, a sua
bela voz. E os discursos que se conservaram dele são os três consagrados
aos dois grandes assuntos políticos referidos a propósito de Demóstenes:
o Contra Timarco tenta bloquear a sua acusação relativa à embaixada de
346 e o Sobre a embaixada é a resposta de Esquines a este mesmo assun­
to; o Contra Ctesifonte, esse, é o discurso de acusação que inicia o assunto
da coroa, discutido em 330. Nos seus discursos estritamente antitéticos,
os dois oradores trocam insultos, apresentam diferentes versões dos factos,
opõem políticas contrárias.
Onde Demóstenes queria luta, Esquines, que se associara a Eubulo,
sonhava com a paz, concórdia e economias; e a sua acção tendia para
um acordo com Filipe. Aos olhos de Demóstenes, isso era pura traição.
Foi o que Demóstenes gritou bem alto no Sobre a embaixada. E, com
não menor severidade, condenou o papel de Esquines em Delfos, onde
a sua intervenção contra os Lócrios de Anfissa levou à guerra sagrada e
a chegada de Filipe a Elatia. Esquines justificou-se nestes dois pontos,
reconhecendo que as coisas não tinham corrido como ele esperava. Mas
é claro que a sua política era ambígua; não nos surpreende que os Ate­
nienses o tenham absolvido por pouco na questão da embaixada e que o
não tenham seguido na questão da coroa; mas também não se compre­
ende o ódio com que Demóstenes o perseguia.
Aliás, os dois homens tinham temperamentos muito diversos e a sua
eloquência reflecte essa diferença. Em Esquines nunca há surpresas, nem
na composição nem na ordem cronológica. Em contrapartida, Esquines
gosta de discutir, à vontade, os textos da lei; afecta um tom calmo, regu­
lar, que nem o brilho das imagens nem a vaga insistente das objurgações
interrompem. As únicas exclamações que encontramos nele são as de
um intelectual moralizador: deste modo, no final do Contra Ctesifonte,
a sua invocação «à Terra, ao Sol, à Virtude, à Razão e à Educação, pela
qual distinguimos o bem do mal». Este moderado é frio, sem enverga­
dura, sem grandes voos, sem grandes ideias. E, em tudo, o oposto do seu

197
C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

adversário. Isto, de resto, não prova em nada que ele não tiraria provei­
to de se entender com Filipe.
Esta é, de facto, a grande discussão que então dividia os oradores
em dois campos.

2. O partido da resistência

Só conhecemos este partido por discursos de segunda categoria, fal­


samente atribuídos a Demóstenes (os discursos Sobre o Haloneso, de 342,
e Sobre o tratado com Alexandre, de 335), mas sobretudo pelos de dois
oradores importantes, Hiperides e Licurgo.
Hiperides era a favor da resistência, pelo menos tanto quanto Demós­
tenes; e talvez se tenha voltado contra ele por causa da recusa em desarmar,
sob Alexandre, aquando da questão de Hárpalo: é a altura do Contra
Demóstenes. O resto do tempo esteve do seu lado, fazendo com que Filó-
crates fosse condenado, depois da famosa paz, e propondo recompensas
a Demóstenes. As suas duas mortes foram idênticas.
Hiperides era um homem brilhante e dinâmico, que fazia com que
falassem dele de bom grado. O seu gosto por mulheres era conhecido.
O modo como defendeu na justiça a cortesã Frine causou grande alarido.
Com efeito, ele não era apenas um orador político. A sua obra, que
em parte só é conhecida a partir da segunda metade do século xix, gra­
ças a descobertas papirológicas, apresenta-nos seis discursos, dos quais
quatro são discursos para clientes (o único que está inteiro é o Em defe­
sa de Euxenipó) e um é um discurso de aparato. Trata-se, no último caso,
mais uma vez, de uma Oração fúnebre, proferida em 323.
Este companheiro de luta de Demóstenes soube, nos seus discursos,
encontrar o tom alerta e vivo de Lísias (como no caso do Contra Ate-
nógenes, que apresenta as desgraças de um bom burguês ingénuo, zom­
bado, num mercado, como simplório. Por fim, a sua Oração fúnebre
encontra acentos vibrantes dignos de Demóstenes para exaltar a resis­
tência e aviltar a honra da dominação macedónica. Nele combinam-se e
sucedem-se Lísias, Iseu e Demóstenes: o Tratado do Sublime devia, mais
tarde, compará-lo aos vencedores do pentatlo, que triunfam numa com­

198

I
A E L O Q U Ê N C IA Á T IC A N O S É C U L O IV

binação de provas, sem serem os primeiros em nenhuma: a sua força está


ligada à diversidade das suas capacidades.
Licurgo pertencia ao mesmo partido, mas tinha um temperamento
muito diferente. Proveniente de uma grande família aristocrática, os Eteo-
bútadas, decidiu servir a sua cidade como administrador: o seu nome está
associado, sobretudo, ao esforço de reconstrução que se seguiu à derro­
ta; nessa altura, geriu as finanças de Atenas durante doze anos. Praticou
uma política de austeridade, mas também de reorganização e de grandes
construções. Era íntegro, indomavelmente preso à virtude, e não tolera­
va nenhuma fraqueza nem com ele mesmo, nem com os outros: naque­
le século de desordens, a sua personalidade lembra as figuras mais ou
menos míticas do passado, como Sólon ou Aristides.
Esta virtude intransigente exprime-se com força no único discurso
que nos chegou dele, o Contra Leócrates. Com efeito, este Leócrates
deixara Atenas logo a seguir a Queroneia, para se instalar em Rodes e,
depois, em Mégara. Esse era, evidentemente, um comportamento pouco
elegante; e o levantamento em massa que, nessa altura, os Atenienses
decretaram, deu-lhe, mais ou menos, o aspecto de uma deserção. Mas
acusar o homem de traição, como Licurgo fez, parecia muito exagera­
do.. No entanto, Licurgo achou que abandonar Atenas naquele momen­
to era como causar a perda da cidade; «Com que traição maior poderia
ele entregar a sua cidade, dado que, da sua parte, ele a deixou sujeita ao
inimigo?» (78). Este exagero avalia o valor que Licurgo dá ao civismo.
Ele queria - como Demóstenes - ver reviver os valores tradicionais da
antiga Atenas, os sacrifícios de todos pela pátria, tal como os encontra­
mos na história e nos mitos. E ele queria - o que é mais específico dele
- que esse civismo de outrora se combinasse com a piedade.
No momento em que o antigo ideal da cidade vai soçobrar para sem­
pre, Licurgo conserva o mérito de ter querido reanimar o seu espírito; e
esta obstinação adquire, à luz dos acontecimentos que se seguiram, um
realce quase patético.
Convém acrescentar, ainda, que o grupo dos patriotas não era o único
em que a crise exaltava méritos dignos do passado: a época de Quero­
neia foi um momento de vigor cívico, mesmo no outro campo: Fócio é
o exemplo mais belo.

199
C O M P E N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

3. Os oradores do partido macedónio

No campo pró-macedónico, dois homens políticos salientaram-se


mais do que os outros; e estão, um em relação ao outro, em perfeito con­
traste.
Demades era de origem muito humilde: era filho de um barqueiro e
orgulhava-se de ter tido por mestre a tribuna. Improvisador brilhante, não
publicava os seus discursos; mas o vigor cheio de figuras do seu discur­
so era conhecido; dele citavam-se palavras célebres, das quais algumas
chegaram até nós; têm, em geral, uma brutalidade concreta, poderosa­
mente evocativa. Era um orador à parte, cuja eloquência não obedecia
às normas.
Quanto a Fócio, esse era um homem de boas famílias, tão reservado
quanto o outro era impudente. Demades, tendo estado preso, obteve por
acaso o favor de Filipe: Fócio, esse, foi eleito estratego quarenta e cinco
vezes e tentou reanimar a tradição que pretendia que o papel do orador
e do chefe militar se confundissem numa única responsabilidade. Homem
sério e íntegro, morreu ao beber a cicuta, como Sócrates. E Plutarco
considerou-o digno de figurar nas suas Vidas de homens ilustres, em
paralelo com Catão de Utica.
A sua eloquência devia ser brilhante: atribuem-se-lhe palavras seve­
ras, de modo claro e franco, e Demóstenes chamava-lhe o «machado»
dos seus discursos. Mas as suas convicções realistas impediam-no de
grandes voos. Comparava os heróis da resistência antimacedónica aos
ciprestes, que são altos, mas não dão frutos. Ele procurava os frutos: tinha,
contudo, contra ele o facto de representar a realidade, em vez de um ideal
daí em diante fora de alcance.

O fim da independência também marca o fim da guerra da eloquên­


cia. Falta ainda, se é possível, depois dos oradores que vimos, referir Dinar-
co. E a diferença é reveladora. Dinarco era Coríntio de nascimento; não
foi, portanto, um orador político, mas um logógrafo e só participou nas
várias questões por conta de outrem. Parece que publicou uma centena de
discursos: sobram três (dois dos quais incompletos), compostos para a
questão de Hárpalo e um, mais precisamente, contra Demóstenes. São

200
A E L O Q U Ê N C I A Á T I C A N O S É C U L O IV

obras sábias, muito pouco pessoais, em que se assinalam as repetições.


Com este homem, que já não estava pessoalmente empenhado na acção,
inicia-se a decadência. E compreende-se que Dionísio de Halicamasso
tenha podido escrever, ao falar da eloquência política: «Quando Alexan­
dre da Macedónia morreu, ela tinha começado a perder o seu vigor e a
murchar aos poucos: nos nossos dias, já desapareceu quase totalmente.»

201
C A P Í T U L O VII

A REFLEXÃO SOBRE A
POLÍTICA E A HISTÓRIA:
ISÓCRATES E XENOFONTE
Enquanto os oradores tentavam educar directamente o povo e os
filósofos evitavam a assembleia para reconstruir o mundo por meio do
pensamento, no século iv dois homens ocuparam um lugar intermédio:
escreveram tratados que procuravam propagar uma sabedoria de ordem
prática, acessível a qualquer homem capaz de reflectir. Há muitos pon­
tos em comum no seu pensamento e muito poucos nas suas vidas, embo­
ra ambos fossem Atenienses e ambos tivessem nascido entre 440 e 430.

I.
ISÓCRATES

A vida de Isócrates indica claramente os dois domínios em que exer­


ceu a sua actividade.
O primeiro é o da retórica. Com efeito, Isócrates, cujo pai tinha uma
fábrica de flautas, foi criado na abastança; parece ter seguido o ensino
de Sócrates e ter sido também discípulo de sofistas, como Pródico e Gór-
gias. Mas, no final da guerra, o pai estava arruinado. Tal como Lísias,
também ele se fez logógrafo (não tinha os dons necessários para ser ele
próprio orador): restam-nos seis discursos que escreveu nessas condi­
ções. Depois, em 393, abriu uma escola de retórica e não tardou a publi­
car alguns manifestos, em que tomava posição relativamente aos mestres
contemporâneos: são eles o tratado teórico Contra os sofistas e dois
pequenos tratados que mostravam a formas de abordar os assuntos da
escola: Helena e Busiris. Para julgar os princípios que animavam o seu

205
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

ensino, é preciso que nos dirijamos a um tratado mais tardio, o Sobre a


troca (de 354): é uma defesa de um processo fictício, em que Isócrates
volta a falar do que entendia por retórica e filosofia, abarcando estes dois
termos, para ele, uma mesma realidade. Com efeito, este ensino iria conhe­
cer um grande sucesso e diz-se que inúmeros Atenienses ou estrangeiros
importantes foram alunos de Isócrates.
Mas, não contente com este sucesso, imediatamente aborda um novo
domínio, o da política - não o da política do dia-a-dia: mas da política
grega em geral e dos princípios que a devem guiar. Um atrás do outro,
publicou em 380 o Panegírico, a favor da hegemonia ateniense, em 356
o Sobre a paz, contra as tendências imperialistas, em 355 o Areopagítico,
sobre o regresso a uma democracia moderada, em 346 o Filipe, que pro­
põe a Filipe reconciliar as cidades gregas e conduzi-las contra a Pérsia,
por fim, em 339, mesmo antes da sua morte, o Panatenaico, onde deseja
ver Atenas reencontrar um papel importante ao lado de Filipe. Mas ainda
não é tudo. Ao mesmo tempo, escreve pequenos tratados, que intervêm
sobre problemas de política (como o Plataico, publicado entre 373 e 371,
ou o Arquidamo, um pouco posterior); também sucede que ele aconselha
vários príncipes, em particular a Nícocles de Chipre: como, no A Nico-
cles ou no Evágoras (Evágoras era o pai de Nícocles: o Nícocles está
dentro do mesmo espírito, mas talvez não tenha sido escrito por Isócra­
tes, e o A Demonico, certamente inautêntico, dirige-se a um particular).
Isócrates, aliás, também se corresponde com príncipes: existem as cartas
a Dionísio de Siracusa, aos filhos de Jasão de Feras, a Arquidamo, a Fili­
pe (a carta II, que é de 344), etc. A partir de si mesmo, Isócrates faz-se o
campeão de uma grande causa política, que consistia em criar a unidade
da Grécia, cimentada por uma acção comum, sob um chefe capaz. A der­
rota de Queroneia veio escurecer os seus últimos momentos: morreu nessa
altura, com noventa e oito anos. Mas é claro que desempenhou um papel
tão grande neste domínio, como o de mestre de retórica.

1. A retórica

Quando Isócrates abriu a sua escola, os mestres de retórica eram


sofistas que ensinavam a falar bem, com uma preocupação de mera efi-

206
ISÓCRATES E XENOFONTE

cácia e de qual seja a causa a pleitear. Muitos escreveram Tratados, hoje


perdidos. Após os grandes sofistas já referidos, são homens como Eveno
de Paros ou Teodoro de Bizâncio que Platão cita. E também Alcídamas,
discípulo de Górgias, de quem possuímos um Sobre os sofistas e uma
acusação fictícia a Palamedes: preocupava-se com o improviso e em bri­
lhar e opunha-se em tudo a Isócrates. Por fim, Polícrates, autor de um
panfleto contra Sócrates e de um elogio de Busiris, o tirano egípcio que
massacrava ou devorava os seus hóspedes. E porque não? Polícrates
escrevera o elogio da marmita e dos seixos...
Este género de retórica iria dispor Platão contra a retórica em geral,
obreira de mentira. E Isócrates tomou posição, decididamente, contra
este tipo de discursos e contra aqueles que não ensinavam a arte. No
entanto, ele não condenou a retórica, como Platão; neste aspecto, con­
servou uma posição intermédia entre os sofistas e o filósofo.
Na verdade, Isócrates acredita que a arte de bem falar é também uma
arte de bem pensar. E precisamente por isso que ele pode identificar retó­
rica e filosofia.
Fá-lo de modo deliberado, em nome de um sistema de pensamento
coerente.
Com efeito, ele julga que a palavra e a persuasão que ela arrasta con­
sigo são o nosso único critério de verdade, bem como o nosso único meio
de progresso, de harmonia, de civilização. Numa passagem repetida duas
vezes na sua obra (Nícocles 5-9 = Sobre a troca 253-257) faz da palavra
a fonte da superioridade do homem: é ela que permite a vida em comum,
as cidades, as leis e todas as invenções. E é ela que permite delimitar,
controlar o pensamento: «E graças à palavra que formamos os espíritos
incultos e que experimentamos as inteligências; porque fazemos da pala­
vra precisa o testemunho mais seguro do pensamento justo.». Afinal de
contas, em Grego, o logos é simultaneamente palavra e pensamento.
Consequentemente, neste caso, falar bem não consiste em aplicar
um certo número de receitas feitas em função de um sucesso prático -
como o entendiam os sofistas e os mestres de retórica: é exprimir-se com
clareza de ideias que merecem aprovação. E só se chega aí cultivando a
reflexão.
Mas isto só é possível porque Isócrates faz do saber humano uma
determinada ideia, que é simultaneamente muito lúcida, mas muito dis­

207
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

tinta das exigências de um Platão. Com efeito, Isócrates não acredita na


possibilidade das certezas filosóficas. Para ele, as investigações dos filó­
sofos são vãs; e ele prefere produzir «uma opinião razoável sobre assun-
tos úteis». Não se contenta, por isso, com esta opinião, esta doxa que,
do ponto de vista filosófico, Platão iria condenar bastante. Não procura
uma verdade absoluta, menos ainda uma nova verdade: chama sabedo­
ria à arte de chegar a ideias susceptíveis de serem admitidas e úteis.
Do mesmo modo, não acredita numa ciência do bem; mas acredita
que é bom tomar a vida dos homens, na prática, melhor, servindo-se de
valores conhecidos: «Eles exortam a uma virtude e a uma sabedoria des­
conhecidas dos outros e sobre as quais eles próprios discutem; eu exor­
to a uma virtude reconhecida no mundo inteiro» (Sobre a troca, 84).
Ele julga, assim, que aprender a falar bem é aprender a encontrar
ideias e a servir valores que serão aprovados e eficazes. E mais ainda,
esta capacidade valerá àqueles que a possuem a estima de outrem: pois
a opinião comum, que é o único critério da verdade e do bem, é também
a mais bela sanção para quem a saiba merecer. E isto constitui como que
o coroar da filosofia de Isócrates: a crítica irá para as pessoas injustas, a
estima irá para os bons; embora a virtude seja logo recompensada. Esta
ideia encontrar-se-á na sua filosofia política.
Trata-se, portanto, de um pensamento decididamente limitado à
sabedoria prática: o facto explica as polémicas latentes com Platão e um
agastamento recíproco, que se traduz em pequenas alusões, mais ou
menos francas, nem sempre fáceis de interpretar, mas perceptíveis nas
suas obras.
Na prática, contudo, o ensino de Isócrates opunha-se sobretudo ao
dos sofistas, tal como ele mestres de retórica. E ele distinguia-se pelo
sue carácter mais modesto e mais flexível.
Dos três elementos necessários para a aquisição de qualquer disci­
plina (natureza, ensino teórico e exercício), Isócrates considerava o
segundo claramente insuficiente. A seus olhos, o sucesso dependia em
boa parte dos dons naturais, que se tratava principalmente de melhorar.
E, para isso, o essencial era o treino prático. Isócrates não acreditava em
receitas imediatamente eficazes: depois de ter exposto os «temas gerais
que o discurso utiliza», passava para os exercícios; era preciso aprender
a escolher os argumentos de acordo com a ocasião, a compô-los num

208
ISOCRATES E XENOFONTE

todo; para isso, o mestre proporcionava modelos, ou críticas: era um


treino como o das nossas dissertações ou das nossas explicações dos tex­
tos. Ao praticar, aprendiam, segundo ele, a pensar melhor e a falar melhor,
o que significa também, a viver melhor. Neste aspecto, Isócrates está na
origem de toda a nossa cultura humanista.
Os seus próprios discursos constituem exemplos do que ele reco­
menda.
Não nos podemos dar conta disso, a não ser pelos seus discursos como
logógrafo (ainda que neles encontremos temas gerais característicos,
como o elogio das convenções e da concórdia, no Contra Calímaco)-,
mas os seus pequenos tratados à maneira dos sofistas são muito revela­
dores. Deste modo, Górgias escrevera uma defesa de Helena e Polícrates
uma defesa do tirano egípcio Busiris, onde ambos defendiam a absolvi­
ção, mesmo reconhecendo os crimes das suas personagens. Isócrates
retomou estes temas, escrevendo uma Helena e um Busiris-, mas, longe
de os tratar como matéria de um processo, destaca todos os temas nobres
e elevados que se podem associar a estas duas personagens e não fala das
suas faltas; o elogio da beleza na Helena ficou célebre; mas há também,
em relação com Helena, um elogio de Teseu e um elogio da união dos
Gregos na guerra de Tróia, união que foi, indirectamente, obra de Helena.
Mas esta mesma tendência iria levar Isócrates a apontar mais alto.
Seguindo o exemplo dos discursos de aparato ou dos discursos «olím­
picos» de Górgias e de Lísias, particou o género do discurso «helénico»,
rico em conselhos às cidades e ensinamentos retirados da história. Nes­
tes discursos, ele preconizava que todos os recursos da arte - incluindo
os artifícios que visam, não enganar, mas «ajudar e encantar, formando-
-os, aqueles que os ouvem» (Panatenaico, 246), incluindo também uma
composição sabiamente elaborada, uma língua pura, castigada, harmonio­
sa, um estilo, enfim, que se assemelhasse mais «às composições acompa­
nhadas de música e de ritmo do que aos discursos proferidos na justiça»
(Sobre a troca, 46) - servissem uma causa justa.
Por esta dignidade conferida ao tratado em prosa, Isócrates criou
um certo tom literário que, através de Cícero, chegou até nós. E os seus
períodos bem equilibrados, amplos, agradáveis ao ouvido (Isócrates evita
sempre o hiato), serviram de modelo, daí em diante, para todos os ora-
dore áticos e para todos os aticistas.

209
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Estas qualidades formais, contudo, só faziam sentido, aos olhos de


Isócrates, postas ao serviço da causa política e moral, que ele queria
defender para o bem dos Gregos.

2. A política

Uma das grandes novidades do pensamento político de Isócrates (e


do século iv em geral) é o de se centrar, não em Atenas, mas na Grécia.

a) A vid a p o lític a a te n ie n se

Em toda a obra de Isócrates, um único tratado diz respeito à vida


pública interna de Atenas: é o Areopagítico (composto, parece, cerca
de 356-354). Isócrates ainda explica que, se fala disso, é porque a vida
política interna da cidade se arrisca a arruinar a sua situação na Grécia.
A reforma interna que ele pede mais não é do que um desvio necessário
para servir uma política helénica.
O discurso retira o seu título do tribunal do Areópago, ao qual Isó­
crates desejaria ver entregue o seu papel de vigilância moral. Este único
facto indica que, ao recear os excessos da democracia, ele desejava
regressar à «constituição dos antepassados», reclamada pelos modera­
dos e de que Terâmenes fora um dos apóstolos.
Mas, se ele evoca algumas reformas nesse sentido (como a eleição
por duas vezes, de preferência ao sorteio), insiste sobretudo na reforma
moral: «Não é por decretos, mas pelos costumes que as cidades são bem
governadas». Deseja o acordo entre ricos e pobres e um renascimento
do civismo. Outrora, o Areópago fazia reinar as antigas virtudes, o res­
peito pelos outros e a moderação (aidôs-sôphrosynê): sem elas, Atenas
não seria capaz de garantir o papel que lhe compete na Grécia. Mesmo
na política interna, por consequência, Isócrates reage antes de mais como
moralista. E mesmo na política interna, é na Grécia que ele pensa.

210
ISOCRATES E XENOFONTE

b) O p r o g r a m a p a n -h e lé n ic o

A principal preocupação de Isócrates foi, com efeito, promover uma


política pan-helénica - ou seja, uma política que se baseasse na ideia de
que os Gregos são irmãos e que devem unir-se em empresas comuns.
A ideia não era nova. Tinha tomado corpo com a resistência aos Per­
sas e fora expressa, de passagem, quer por Heródoto, quer por Aristófa-
nes, quer por Górgias. A autoridade alcançada pela Pérsia (com a «paz
do rei», em 386) iria reavivá-la; e a guerra do Peloponeso mostrara a
desgraça das divisões. A ideia também foi desenvolvida, depois de 380,
no Panegírico', e Isócrates nunca a perderá de vista.
Para ele, a união dos Gregos e a guerra contra a Pérsia estão a par:
«E impossível que haja uma paz segura, se não fizermos em conjunto a
guerra aos Bárbaros; é impossível levar a concórdia aos Gregos, enquanto
não tivermos tirado as nossas vantagens das mesmas fontes e não nos tiver­
mos exposto ao perigo contra os mesmos inimigos.» (Panegírico, 173).
Assim se encontrará a união e a grandeza das guerras médicas; ao mesmo
tempo, poder-se-á libertar a Grécia, ainda submissa, e enriquecer os
outros com novas terras.
Será fácil consegui-lo, por causa da inferioridade da cultura dos Bár­
baros. Basta encontrar, para ficar à cabeça dos Gregos, uma direcção, ou
hegemonia, apropriada. E a primeira ideia que se apresenta, ao lembrar
as guerras médicas, é a de confiar essa direcção a Atenas.

c) O s títu lo s d e A te n a s e o s se u s e rro s

O Panegírico expõe os títulos de Atenas à hegemonia; e eles serão


retomados, em parte, no Panatenaico: são a superioridade da cultura, os
serviços prestados durante as guerras médicas e o facto de que, em suma,
o domínio de Atenas sobre a Grécia foi relativamente doce. Apenas seria
necessário que a futura hegemonia o fosse mais ainda e se preservasse
de atacar os direitos das cidades aliadas. Com efeito, logo depois do
Panegírico e, provavelmente, sob a sua influência, a segunda confede­
ração ateniense foi criada neste espírito, sem tributos nem guarnições,
nem envios de colonos para as cidades.

211
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Não conseguiu ser aceite pelos aliados, alguns dos quais declararam
guerra a Atenas: desiludido, Isócrates censurou-lhe, então, os seus erros,
no Sobre a Paz: esses erros resumem-se todos a um abuso de autorida­
de. E são os mesmos erros do passado - aqueles mesmos que perderam
Atenas e que, depois dela, perderam Esparta. Toda uma teoria do poder,
toda uma filosofia da história, se revela a partir da aproximação dos dois
pontos de vista e dos dois discursos. Elas encontrar-se-ão depois em
todos os tratados de Isócrates.

d) O p o d e r e a h istó ria

A teoria do poder baseia-se, em Isócrates, tal como a teoria da his­


tória, no papel da opinião. A garantia de um poder duradouro foi cons­
tituída, na verdade, pelas lealdades (eunoia) de que este poder se soube
cercar. Pelo contrário, quem quer que aja mal em relação aos outros
povos recebe a sua hostilidade (misos); e esta hostilidade acaba por se
lhe sobrepor. O exemplo do modo como os Atenienses receberam a hege­
monia dos Gregos, por sua própria vontade, logo a seguir às guerras
médicas, é um exemplo da solução feliz. O modo como ela perdeu o seu
império é-o de um encadeamento infeliz.
Mas, no Sobre a Paz, Isócrates pode acrescentar mais uma prova:
Esparta, tendo exercido, depois de Atenas, o domínio da Grécia, também
ela se fez detestar e perdeu o seu poder muito cedo. E o que é que há de
espantoso aqui? A omnipotência inebriou-os e arrastou-os para os mesmos
erros: «como convém àqueles que são corrompidos pelas mesmas pai­
xões e por idêntica doença, lançaram-se nas mesmas empresas, comete­
ram erros análogos e por fim caíram em desgraças semelhantes» (104) (').
O seu caso é o dos tiranos, a quem o próprio poder perde, e que, fazendo-
-se odiar, caem nos piores males.
Esta doutrina implica que todo o poder deve, para sobreviver, ser
acompanhado de justiça e de doçura. Isócrates não deixou de o repetir
aos príncipes a que se dirigia. Também o disse com força a Filipe, em

(') N.T.: A tradução desta passagem foi retirada da tradução portuguesa: Maria Hele­
na Urena Prieto, Política e Ética. Textos de Isócrates, Lisboa, Editorial Presença, 1989.

212
ISOCRATES E XENOFONTE

quem esperava encontrar um chefe para a Grécia que fosse, também, um


benfeitor. Esse sonho de uma autoridade doce e generosa, fundada na
estima dos povos, encontra-se igualmente em Xenofonte.
Mas, com o seu sentido claro e um pouco simplista de antíteses, Isó-
crates fez dele uma verdadeira lição de história. Ele não foi propriamen­
te um historiador, mas é claro que reflectiu sobre a história, que retirou
dela alguns argumentos (interpretando-a, aliás, de acordo com as neces­
sidades do momento e variando, por vezes, de um discurso para o outro)
e que, assim, inaugurou uma nova forma de reflexão. Não nos surpre­
endemos, pois, que tenha havido historiadores entre os seus discípulos.
Os dois principais foram Eforo (de Cumas) e Teopompo (de Quios).
Ao contrário de Tucídides e de Xenofonte, estes não são homens de
acção, mas intelectuais como Isócrates, e, como ele, homens preocupa­
dos em moralizar. O gosto de reflectir sobre a história, vendo nela o jogo
das virtudes e dos vícios, veio-lhes certamente de Isócrates.

e) A doutrina e os homens

Este programa tão preciso, associando teorias e experiências tão cla­


ras, ocupou todo o pensamento de Isócrates, de 380 a 338. E este expli­
ca as suas aparentes contradições.
E porque o programa não variava que as opiniões de Isócrates rela­
tivamente a Atenas se alteraram; optimista em 380, quando Atenas ainda
não exercia nenhum domínio, severo em 355, quando ela acabava de
chocar com algumas cidades da sua nova confederação, elogioso, nova­
mente, cerca de 340, quando a supremacia de Filipe parecia afastar todo
o perigo do imperialismo ateniense, ele julga os factos de modo variá­
vel, em função da situação, mas a teoria, essa, não varia.
Do mesmo modo, depois de ter defendido a hegemonia ateniense,
Isócrates pensou em príncipes diferentes. Depois, ao ver Filipe entrar na
Grécia, teve esperança nele. Inicialmente, imaginara que este se deixaria
tocar pela moderação dos Atenienses (Sobre a paz, 22). Desiludido neste
aspecto, quis então dirigir o poder de Filipe no sentido do seu programa
pan-helénico. Não deixa de ter interesse saber que Filipe, em que o encar­
rega desta missão e confia nele, data de 346, o ano da paz de Filócrates.

213
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Isócrates vai além do patriotismo ateniense porque, a seus olhos, tudo


deve ser sacrificado ao seu programa, que ele não era capaz de alterar.
Enfim, este mesmo programa explica, sem dúvida, que Isócrates,
tendo sempre exaltado Atenas à custa de Esparta, por vezes assinalasse
como que uma preocupação de não alienar, de todo, esta última: o final
do Panatenaico faz intervir um jovem discípulo laconizante, cuja inter­
venção deixa o leitor um pouco confuso, mas traduz uma tolerância hesi­
tante, bem digna daquele que defendia a unidade grega.
Essa paciência obstinada pode parecer ingénua: os argumentos mora-
lizadores de Isócrates, a forma como ele os repete e os expõe, a confian­
ça que coloca na virtude e nos homens, parecem muito pouco realistas.
No entanto, o seu pensamento, ou aquele de que se fazia eco, não foi
feito de sonhos vãos. A segunda confederação ateniense parece ter sido ins­
pirada nele. A política de Timóteo, discípulo de Isócrates, que foi, durante
algum tempo, ouvido em Atenas, também se inspirou nele. E se Filipe,
de início, pareceu um conquistador intransigente, a liga de Corinto, con­
cluída pouco depois de Queroneia - e pouco antes da morte de Filipe -
agrupava os Gregos para os conduzir contra a Ásia, reconhecendo-lhes
direitos, como pretendera Isócrates. Do mesmo modo, o seu sonho de
união dos Gregos correspondia, também ele, à tendência então nova para
constituir ligas e federações. Com efeito, a cidade estava ultrapassada.
A desgraça quis apenas que ela fosse o benefício de um conquistador
que não respeitava os Gregos: Isócrates teria parecido mais realista se
não tivesse havido Alexandre.

II.
XENOFONTE

Tal como Isócrates, Xenofonte escapou aos limites da cidade e isso


na própria vida, que foi infinitamente mais aventurosa do que a de Isó­
crates. Também teve, no seu pensamento, pontos comuns com Isócrates,
ainda que esse pensamento se tenha expressado em domínios diferentes.

214
ISOCRATES E XENOFONTE

1. A sua vida

Nascido numa família rica, Xenofonte, embora formado para a vida


activa, terá conhecido Sócrates e acompanhado as suas conversas: uma
parte da sua obra é-lhe consagrada. Mas, na Atenas vencida do início do
século, foi tentado por outros horizontes; em 401, alistou-se com um grupo
de Gregos (a que pertencia o seu amigo Próxeno, um Beócio) para ir
para a Ásia, defender a causa de Ciro, o Moço, contra o seu irmão Arta-
xerxes. Ciro foi morto na batalha de Cunaxa, junto do Eufrates; e este
grupo de Gregos teve de fazer a sua retirada através da Ásia, num país
hostil. Esta retirada «dos Dez Mil» foi uma aventura na qual Xenofonte foi
capaz de fazer valer as suas qualidades de chefe. Conta toda esta empresa
na Anábase. Durante o feito, aproximou-se dos Espartanos e, no regres­
so, aproximou-se do rei de Esparta, Agesilau. Esta ligação foi tal que,
quando Atenas combateu contra Esparta, Xenofonte estava do lado lace-
demónio. Estava-se em 394, na batalha de Coroneia.
Foi - é lógico - exilado de Atenas; e viveu mais de vinte anos no
ambiente lacedemónio; Esparta atribuiu-lhe um pequeno domínio em Cilun-
te, perto de Olímpia: tornou-se num proprietário rural gentil-homem,
trabalhando em todo o tipo de textos. O Económico permite-nos obser­
var a vida que ele ali levava e o modo como geria a sua casa e as suas
terras.
Mas, com o tempo, Esparta, vencida pelos Tebanos em Leuctros,
conseguiu aproximar-se de Atenas (371). Xenofonte, cuja pequena pro­
priedade acabara de cair nas mãos dos inimigos, beneficiou dessa apro­
ximação. O seu exílio foi anulado. Os seus filhos serviram no exército
ateniense e um deles, Grilo, foi morto em 362. Ele próprio, mais tarde,
regressou a Atenas e interessou-se pelas finanças da sua pátria, como o
prova o tratado Sobre as Fontes de Receita (posterior a 355). Morreu,
sem dúvida, por volta desta data, mas não sem ter feito uma última revi­
são das suas grandes obras.
Nem sempre é fácil dizer quando é que as começou e que obra corres­
ponde a determinado período da sua vida: tentaram defini-lo (E. Dele-
becque); mas, de qualquer maneira, começadas, retocadas, acabadas em
mais ou menos tempo, essas obras são um testemunho directo da histó­

215
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

ria da sua vida, do seu tempo, bem como da história das ideias e dos
homens de então.

2. A história da sua vida e as suas actividades

Xenofonte é, com efeito, um dos primeiros autores a publicarem uma


obra que se assemelhava a memórias de guerra: essa obra é a Anábase.
Considera-se que a obra (que, sem dúvida, foi publicada sob o pseu­
dónimo de Temistógenes de Siracusa) conta a expedição de Ciro, o Moço,
contra o irmão. Mas a batalha de Cunaxa e a morte de Ciro surgem logo
no fim do livro I: os outros seis contam as aventuras dos Dez Mil na Ásia
e o seu regresso. A narrativa é viva e directa, recheada com múltiplas
indicações geográficas e etnográficas muito concretas, que seriam dig­
nas de Heródoto, e que são fruto de observações pessoais. Por outro lado,
a obra contém descrições de caracteres (como os três estrategos, tão dife­
rentes, que são evocados no livro II, Clearco, Próxeno e Ménon). Por
fim, as recordações pessoais dão à narrativa uma tónica particular: a cena
em que os Gregos vêem, por fim, o mar (IV, 7) ficou célebre.
Mas, se esta presença do autor na sua obra pode conferir-lhe algum
atractivo, é também claro que ela introduz preocupações que não são de
todo históricas. A Anábase é uma defesa do próprio Xenofonte e das suas
ideias. Ele não hesita em aparecer em cena, com insistência, mostrando
as suas qualidades de chefe. E, sob esta complacência ingénua (tão opos­
ta à sobriedade de Tucídides), ele apresenta ali, como não deixará de o
fazer em todas as suas obras, o retrato do bom chefe, que sabe fazer-se
temer e fazer-se amar (pelo contrário, Clearco era muito rude e Próxeno
muito indulgente, de tal modo que os soldados não tinham dedicação
por nenhum dos dois). Este bom chefe também se sabe ocupar dos meno­
res detalhes, das provisões, das armas, dos exercícios; e dá o exemplo em
tudo. Por fim, sabe ter em conta a religião, os sinais e os presságios. Mui­
tos episódios que Xenofonte narra, muitos dos discursos que cita, têm a
função de fazer valer uma ou outra das suas qualidades. Embora essas
lembranças pessoais, muitas vezes concretas e coloridas, adquiram um
ligeiro sabor de lição edificante, que terão, na verdade, todos os escritos
de Xenofonte.

216
ISOCRATES E XENOFONTE

É notável, a este respeito, constatar que exactamente a mesma dou­


trina se encontra num tratado que, esse, fala apenas da vida familiar e
pacífica, o Económico. O Económico apresenta-se como um diálogo e
Sócrates aparece nele: mas apenas para contar o modo como Iscómaco
administra a sua propriedade e forma a sua jovem mulher para os deve­
res de dona de casa. Também aí se trata de uma evocação muito concreta
e viva, onde se vê a hierarquia dos vários servidores, o cuidado com as
culturas e até o arranjo dos armários. Vemos, também, o carácter e as manei­
ras das pessoas: a jovem mulher de Iscómaco, muito submissa e zelosa,
é referida de uma forma que, com a condição de não ser muito feminista,
parece encantadora. Mas, ao mesmo tempo, a descrição desta proprie­
dade apresenta em cena com muita evidência o próprio Xenofonte, bem
como o orgulho que ele tinha por realizar tão bem estas funções, tão
diferentes das outras que vimos. E, por fim, para lá de Iscómaco e para
lá de Xenofonte, reconhecemos a simples doutrina: o bom administra­
dor, a boa dona de casa devem saber fazer-se recear e amar: deste modo
conseguirão de todos o maior zelo e o melhor rendimento. Aliás, Xeno­
fonte está perfeitamente consciente desta semelhança entre a arte domés­
tica ou a agricultura e a arte militar ou política: do mesmo modo que a
ordem é tão necessária numa casa como num exército (VIII, 4), também
governar uma casa ou um povo são coisas que se assemelham: «Aquele
que é capaz de ensinar a arte de ser um bom senhor, também pode for­
mar na arte de ser um bom rei» (XIII, 5).
O Económico não tem por objecto, abertamente, a vida de Xenofon­
te: refere-a indirectamente. A este respeito, poderíamos associar-lhe os
pequenos tratados em que relatou a sua experiência e os seus conselhos
nos domínios que lhe eram caros. Escreveu sobre a equitação (Arte eques­
tre), sobre a caça (Cinegético, obra cuja autenticidade foi, por vezes,
contestada), ou sobre a arte de comandar a cavalaria. Este militar, este
camponês gentil-homem, também era, como muitos aristocratas, um
homem de cavalos. E nunca deixou de ver nas diversas actividades que
se associam a esta qualidade a melhor das educações. O fidalgote pro­
vinciano Xenofonte não pretendia ser aquilo que não era.
E, no entanto, este fidalgote foi um verdadeiro historiador.

217
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

3. A história da Grécia e a política

Xenofonte quis ser o continuador de Tucídides. A sua história, que


vai de 411 a 362, começa onde Tucídides ficara e assinala-o pelas suas
primeiras palavras, que são «Depois disto...». Esta história intitula-se
Helénicas·, o facto mostra bem que ela não tem a unidade de acção da
de Tucídides, centrada numa guerra; mostra também que a vida política
tende cada vez mais a ser, não a de uma cidade, mas a da Grécia.
A obra comporta duas partes distintas: primeiro, o fim da guerra do
Peloponeso, que é um pouco - apenas um pouco - à maneira de Tucídi­
des e se prolonga (a partir de II, 3, 9 e até ao fim do livro II) pela narra­
tiva do regime dos Trinta e da crise que lhe pôs fim, em 403. Já nesta
narrativa são sensíveis as diferenças em relação a Tucídides; o papel dos
indivíduos aumenta e a sobriedade da análise esfuma-se. De facto - e a
sequência da obra mostra-o - Xenofonte não tem, de modo nenhum, as
qualidades de Tucídides. As suas explicações históricas são pobres; os
seus discursos já não têm uma função causal; a cronologia é incerta;
chega mesmo a omitir factos importantes: já há muito que se reconhe­
ceu que ele não assinalava nem a batalha de Cnido, nem a formação da
segunda confederação, nem a fundação, contra Esparta, de Megalópolis.
Estes esquecimentos talvez não sejam inocentes. Xenofonte é - pelo
menos durante a maior parte da sua obra - amigo de Agesilau e de Espar­
ta; e a sua história não é, de todo, imparcial. No entanto, ele condenou
a destruição por Esparta da Cadmeia (a cidadela de Tebas); mas, devido
a uma filosofia da história mais digna de Heródoto do que de Tucídides,
o pio Xenofonte admitiu que os deuses puniram essa falta...
Se não tem as qualidades de Tucídides, Xenofonte tem outras - as
que se notam também na Anábase, e que são a noção do concreto e dos
episódios impressionantes: a narrativa da morte de Terâmenes, cheia de
coisas vistas e ouvidas, constitui um dos mais belos exemplos desta arte
de cenas patéticas. Do mesmo modo, os discursos de Xenofonte pouco
acrescentam à compreensão dos factos; mas quando se trata de uma ideia
que o toca, têm força suficiente para se impor: o caso mais impressio­
nante é o da aproximação entre Atenas e Esparta, em 371 (VI, 3-VII, 1):
Xenofonte, o Ateniense amigo de Esparta, tinha aqui uma matéria feita
para lhe agradar, e multiplicou os discursos que preparavam esta recon­

218
ISÓCRATES E XENOFONTE

ciliação (há três em VI, 3), organizando depois a colaboração dos dois
povos (tal como os discursos de Procles, em VI, 5 e VII, 1); cada um fala
com o seu tom e estilo próprios (o que não era o caso de Tucídides); e
todos apresentam argumentos em favor desta política, que Xenofonte
devia aprovar; mostram que, ao reconhecer a Atenas a superioridade
marítima e a Esparta a terrestre, a aliança de uma com a outra deve cons­
tituir um poder quase irresistível.
Esta é a única obra, em Xenofonte, que representa o género históri­
co; é também a única das obras históricas deste período que sobreviveu.
Podemos apenas constatar que pelo menos algumas tendências das obras
perdidas estavam de acordo com o espírito das Helénicas. Sem dúvida
que é preciso colocar à parte Ctésias, cujas obras perdidas sobre a Pérsia
e a índia parecem estar mais associadas à tradição de Heródoto. Em con­
trapartida, fomos muito felizes, em 1906, por encontrar nos papiros algu­
mas páginas de um texto anónimo, as Helénicas de Oxirrinco (a partir
do nome da cidade em que foram encontradas): trata-se de acontecimen­
tos do ano de 395, logo, aparentemente, de uma outra continuação de
Tucídides. A qualidades destas poucas páginas (que datam do segundo
quartel do século iv) faz lamentar vivamente a perda do resto. Temos
ainda menos das obras dos discípulos de Isócrates. Mas é característico
verificar que Teopompo continuou Tucídides exactamente como Xeno­
fonte, nas Helénicas, e contou os acontecimentos de 359 a 336 numa gran­
de obra intitulada Filípicas: o nome de um homem substitui o da Grécia;
quanto a Éforo, ele é o primeiro autor de uma História que se pretendia
universal: começava com a chegada dos Dórios ao Peloponeso e ia até
à chegada de Filipe. A história, no século iv, parte de Tucídides, mas
alarga-se e universaliza-se.
À obra histórica de Xenofonte, que é, portanto, importante podemos
juntar três pequenos tratados, inspirados nos mesmos interesses.
As Helénicas são muito favoráveis ao rei de Esparta, Agesilau; mas
isso não era suficiente para o seu amigo Xenofonte, que retomou a maté­
ria relativa ao rei e fez um elogio, o Agesilau. No domínio literário, esta
pequena obra, consagrada a um indivíduo, prepara um pouco o género
biográfico. No domínio das ideias, para além da admiração de Xenofonte
por Esparta e pelas suas virtudes, apresenta-nos uma outra aplicação das
suas ideias à arte de governar: mais do que ninguém, Agesilau possuía

219
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

aquela doçura, misturada com severidade, que nos merece o zelo de


todos.
São também as suas simpatias por Esparta que se traduzem no peque­
no tratado A Constituição de Esparta. O género que consistia em apre­
sentar as constituições já existia antes de Xenofonte. Vimos um exemplo
um pouco à parte com a Constituição de Atenas, que foi misturada com
as obras de Xenofonte, mas que data do início da guerra do Peloponeso,
se não for mesmo um pouco anterior; este texto, obra de um adversário da
democracia, é, na verdade, um escrito polémico, mostrando que a polí­
tica interna e externa dos Atenienses é inspirada por uma certa lógica e
que tende sempre a garantir a autoridade dos «maus» sobre os «bons»;
o texto é rude, conciso e com um aspecto bastante arcaico; é um discur­
so de defesa, mais do que uma descrição. Sem dúvida era diferente das
diversas Constituições posteriores - em particular as de Crícias. Mas, em
todo o caso, a de Xenofonte é uma descrição e um dos nossos melhores
documentos sobre a vida em Esparta. Ele descreve menos uma consti­
tuição, no sentido moderno do termo, do que um modo de vida; insiste
nos hábitos sociais e morais de Esparta, que lhe são tão particulares, bem
como na sua organização militar. A sua admiração pelas virtudes de Espar­
ta é manifesta. Um último capítulo, no entanto, fala das mudanças que
prejudicaram este sistema: trata-se de uma espécie de adição tardia, devi­
da a novas experiências; mas a sua interpretação deixa lugar à dúvida.
Estes dois pequenos tratados estão ligados a formas de história: o
tratado Sobre as Fontes de Receita não o faz: é um programa de enri­
quecimento para Atenas, escrito no fim da vida de Xenofonte, quando a
sua sabedoria e o seu conservadorismo se associaram aos de Eubulo.
Mas a descrição concreta destas explorações, que ele deseja desenvol­
ver, dá ao tratado o carácter de um documento sobre a vida ateniense.
Lembra, também, que Esparta não teve o monopólio dos interesses de
Xenofonte.
Se os dois últimos tratados têm alguma coisa de sério e quase aus­
tero, que corresponde ao sentido prático de Xenofonte, o impulso de
admiração que o levou a escrever o Agesilau desabrochou nele numa
outra obra que nada tem de histórico a não ser o seu enquadramento e
que é, a bem dizer, um romance: a Ciropedia.

220
ISOCRATES E XENOFONTE

4. A história romanceada

A história romanceada, que devia desenvolver-se no romance de


Alexandre e nos romances gregos em geral, antes de conhecer o sucesso
extraordinário que tem hoje, remonta, na prática, a Xenofonte; este con­
servador moralista foi, na história literária, um inovador.
A obra intitula-se Ciropedia, ou «Educação de Ciro», o que define
bem a intenção edificante; mas é, de facto, a história de toda a vida de
Ciro, com as qualidades que ele não deixou de pôr em prática até à sua
morte, em 529.
O enquadramento é, assim, o da história em geral. Mas Xenofonte
teve com os dados de facto liberdades notáveis: o seu Ciro reúne os rei­
nos da Pérsia e da Média de um modo totalmente pacífico, sem que apa­
reça nada dos choques que o opuseram aos seus; do mesmo modo, morre
na sua cama, com nobres despedidas, em vez de ser morto em combate.
Xenofonte, e isso é claro, embeleza os factos para apresentar a sua per­
sonagem a uma luz mais edificante.
Desta forma, ele pode fazer com ele um exemplo ainda mais bri­
lhante dessa arte de governar que o perseguiu em todas as suas obras.
Aliás, Ciro não foi escolhido por acaso: Heródoto já fala da sua doçura
e diz que ele foi como um pai para os seus súbditos. Esta doçura, esta
generosidade são muito ilustradas na obra; e poderíamos pensar que o
ideal de Xenofonte se baseia nas mesmas ideias de Isócrates. Mas a dife­
rença é que Ciro é, antes de mais, um conquistador; e é o mecanismo dessa
conquista que interessa ao militar que Xenofonte é. O seu Ciro tem as
qualidades que encontramos em Agesilau ou na Anábase: sabe punir e
recompensar, velar por tudo, mesmo pela saúde dos soldados, mostrar,
no momento certo, a sua própria superioridade. Também sabe usar a sua
doçura para conseguir novos aliados, para estimular a dedicação dos
seus, para conseguir a reunião das tropas dispersas: os sucessivos epi­
sódios da sua conquista mostram, assim, o justo sucesso que recompen­
sa um bom chefe.
Mas este aspecto doutrinal - e é outra diferença relativamente a Isó­
crates - está estreitamente misturado com a narrativa concreta e viva de
uma aventura. Encontramos aí os pormenores precisos que constituíam o
valor da Anábase. Encontramos aí a cor local. E, sobretudo, aí encontramos

2 21
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

a arte, específica de Xenofonte, de apresentar sob traços específicos per­


sonalidades bem definidas. Ele até se comprazia a introduzir episódios,
que são tão tocantes quanto edificantes: como a história da bela Panteia,
que se desenrola através de vários livros da Ciropedia·. esta princesa cati­
va, confiada a Araspas, inspira-lhe uma violente paixão, que Ciro regu­
lariza: perdoa a Araspas, porque conhece o poder do amor, mas protege
Panteia, que só pensa no marido; a bondade de Ciro granjeia-lhe o auxí­
lio deste marido, que se deixa matar por ele; e o desespero da princesa,
que se mata para não sobreviver àquele que amava, inspira ao rei pieda­
de e respeito... O amor entrou na história: é precisamente por isso que
podemos falar de história romanceada.
A obra, que podia comover por estes traços romanescos, ao mesmo
tempo que ele apresentava uma imagem idealizada do bom rei - e, aces­
soriamente, uma modelo para quem quer que quisesse conquistar a Ásia
- conheceu um sucesso incrível, e isso durante séculos. Alexandre foi
possuído por ela, os Romanos da época de Cícero liam-na assiduamen­
te. E, por causa de Xenofonte, Ciro iria ficar como um dos modelos reais
mais vezes reclamado.
A este respeito, poderíamos aliar à Ciropedia um pequeno diálogo
que não pretende ser histórico: intitula-se Hierão e apresenta uma con­
versa entre o tirano siciliano Hierão e o poeta Simónides. É, de facto,
um estudo dos infortúnios do tirano: o Hierão responde, assim, às pre­
ocupações que também se exprimem em Isócrates (no Sobre a paz) e em
Platão (no final da República). A diferença é que estes infortúnios do
tirano são, em Xenofonte, puramente práticos (a sua impopularidade faz
com que, por exemplo, ele não possa viajar, nem ter amigos); a ideia de
que uma mudança de atitude transformaria esta tirania numa realeza feliz
aproxima o diálogo da Ciropedia.
De resto, todos estes tratados, narrativas, diálogos de Xenofonte
exprimem, na diversidade dos assuntos, ideias vizinhas. Além disso,
todos reflectem as novas aberturas do século iv: para uma política que
já não se limita à cidade, para a ideia de monarquia, para a psicologia
dos indivíduos. Poderíamos acrescentar que a sua língua, clara e sóbria,
já apresenta certos traços da «língua comum» (koinê) que muito em breve
iria prevalecer. Mas, se estes traços já são sinais dos novos tempos, há, no
entanto, toda uma série de obras por meio das quais Xenofonte decide

222
ISOCRATES E XENOFONTE

conservar-se fiel aos anos da sua juventude ateniense; são aqueles que,
muito depois, consagrou a Sócrates

5. A história de Sócrates

Para além do Económico (no qual Sócrates está muito apagado), as


obras de Xenofonte consagradas a Sócrates são, essencialmente, os Memo­
ráveis (em quatro livros) e, acessoriamente, a Apologia de Sócrates (cuja
autenticidade foi contestada) e o Banquete (que parece uma composição
muito livre).
Embora algumas destas obras (e o início dos Memoráveis) possam
remontar à estadia em Cilunte, só foram acabadas tarde, aquando da reapro-
ximação a Atenas. De qualquer forma, foram escritas com distanciamen­
to e muitos pormenores podem ter sido inspirados por escritos anteriores:
todos os discípulos de Sócrates, e não apenas Platão, escreveram sobre
o seu mestre - entre outros, Euclides de Mégara, Antístenes ou Aristipo
de Cirene (cf. pág. 227). Os seus escritos perderam-se; mas os títulos
lembram, por vezes, os de Platão.
Como desta literatura só se conserva o testemunho de Platão e o de
Xenofonte, é natural que sejam comparados; e a diferença salta à vista:
o Sócrates de Platão é um pensador audacioso, que renova o modo de
apresentar os problemas e remonta sempre à sua essência, o de Xeno­
fonte é um cidadão virtuoso e razoável, que prega na vida de todos os
dias uma moral prática. Discutiu-se durante muito tempo o valor deste
duplo testemunho: é provável que Platão, cuja filosofia pessoal não ces­
sava de se aprofundar, tenha, por vezes, projectado na imagem que dava
do mestre algumas das suas próprias ideias, ou que ele tenha, sobretudo,
retirado das conversas passadas aquilo que fosse eco do seu próprio pen­
samento; por outro lado, não é menos provável que Xenofonte, que se
interessava sobretudo pela vida prática e que nunca foi um filósofo, tenha
simplificado o sentido deste ensino e tenha retido sobretudo o que era
capaz de compreender ou de apreciar.
Acontece que o Sócrates que ele evoca é um homem simples, com
qualidades simples - piedoso, naturalmente (e é nisto que Xenofonte
insiste desde o início), crendo que os deuses se ocupam do bem dos

223
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

homens, recomendando o domínio de si, o respeito pelas leis, o reconhe­


cimento para com os pais, a entreajuda entre irmãos, a amizade, etc. Este
Sócrates também recomenda, de acordo com o gosto de Xenofonte, que
se aprenda a ser um chefe do exército e da cavalaria (111, 1-4); prega até
em defesa das virtudes conservadoras, pedindo o regresso da concórdia
e louvando a antiga influência do Areópago - como Xenofonte o pode­
ria ter feito. De resto, nunca perde de vista o sentido da utilidade prática
- cara a Xenofonte... A única coisa que surpreende é que um Sócrates
tão sábio possa ter feito tanto barulho e suscitado tantas paixões em todos
os que se aproximaram dele.
Estes temas distintos - que, não obstante, contêm certamente uma
parte de autenticidade - são quase sempre apresentados na forma de
pequenos diálogos, em que intervêm sofistas, como Antifonte, Pródico
ou Hípias, ou então personagens do círculo de Sócrates, como Glauco
ou Cármides. O diálogo é vivo, claro, sempre curto (cada um com duas
ou três páginas): também neste aspecto a diferença de fôlego e de nível
relativamente a Platão é tanto mais surpreendente quanto os dados exte­
riores não se assemelham em grande quantidade: apesar dos seus escri­
tos socráticos, Xenofonte não é mais filósofo do que Isócrates: mas a
filosofia, tal como Platão a definiu, é uma coisa muito diferente.

224
CAPÍTULO VIII

OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:


PLATÃO E ARISTÓTELES
Introdução: Sócrates

Sócrates não devia figurar numa história da literatura, visto que não
escreveu nada. Também não devia figurar num capítulo relativo ao sécu­
lo iv, visto que ele pertence ao século v: nascido em 470, situa-se entre
Eurípides e Tucídides e morre em 399, na alvorada do novo século. Se
evocamos aqui o seu papel é porque, embora contemporâneo dos sofistas,
com os quais Platão o põe a dialogar, ele inaugura no pensamento grego
uma nova era. Com efeito, os filósofos do século iv apelam todos ao seu
testemunho, directa ou indirectamente. Entre os testemunhos que pos­
suímos sobre ele, só Aristófanes (que o coloca em cena, de forma cari­
catural, nas Nuvens) é um autor do século v. As duas testemunhas do seu
ensino, Platão e Xenofonte, escreveram após a sua morte, no século iv.
E é no século iv, também, que se difunde o ensino dos filósofos chama­
dos socráticos, em doutrinas aliás muito distintas - como Euclides de
Mégara (que se associa um pouco às doutrinas de Parménides sobre o
Ser), Antístenes (o moralista do esforço), Aristipo de Cirene (o defensor
de um certo lugar dado ao prazer), Esquines de Esfeto (autor de diálogos
muito vivos). Sócrates, no século v, abre a reflexão de todo o século iv.
Graças àqueles que falaram dele e o fizeram falar nas suas obras,
temos o sentimento de um ser eminentemente familiar, com quem teríamos
vivido. Conhecemos o seu papel em algumas batalhas da guerra do Pelo-
poneso, a sua actividade como cidadão exemplar que não se quis associar,
nem a votos injustos (depois da batalha de Arginusas), nem a uma polí­
tica de ilegalidade (sob os Trinta Tiranos). Também conhecemos a sua forma
de dialogar nas ruas de Atenas, a sua fealdade, a sua ironia, a sua obstina­
ção, a sua paciência para fazer desabrochar os espíritos. E conhecemos

227
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

o seu processo e a sua morte, que perseguiu todos os seus discípulos,


antes de perseguir todos aquele que uma morte injusta ameaça ou atinge.
A extraordinária importância da personagem está ligada, na história
das ideias, a dois aspectos. O primeiro é o interesse exclusivo que ele
trouxe ao domínio da moral; enquanto a filosofia jónia tendia a tratar do
mundo no seu conjunto, ele, o Ateniense, ocupava-se apenas do homem;
levava assim ao extremo a tendência já um pouco sensível em Anaxá-
goras e nos seu discípulo Arquelau. Por outro lado, neste domínio, exibiu
uma exigência imperiosa, e nova, de verdade; enquanto os sofistas ensina­
vam a arte de iludir, ele, o Ateniense, não parava de perguntar, procu­
rando sempre definições e multiplicando, para esclarecer os problemas
da moral, as comparações extraídas da vida prática, que lhe ofereciam
analogias.
Talvez o pensamento de Sócrates seja feito mais de interrogações
do que de doutrinas. Podemos precisamente reconhecer, através de todos os
testemunhos, o intelectualismo consumado, que o levava a admitir (con-
trariamente a Eurípides) que não podemos reconhecer o bem, se não nos
dedicarmos a ele, e que ser melhor é também ser mais feliz. No entanto,
este gosto por questões repetidas explica, sem dúvida, tanto a sua con­
denação, como a sua influência.
É porque parecia pôr tudo em questão que foi suspeito de não respei­
tar a virtude e os deuses da cidade - isto quando este amante da discussão
apelava ao oráculo de Apoio e só admitia como fim a busca da virtude.
Mas é também porque obrigava cada um a fazer-se perguntas, a
aprofundá-las, a andar à volta delas, que este professor sem igual teve
tantos e tão distintos discípulos. Ele contentava-se em lançá-los na boa
vida; e isso - no caso de Platão - devia levar muito longe.

I.

PLATÃO

O pensamento de Platão alimentou-se pela separação do ensino de


Sócrates; também foi estimulado pela morte de Sócrates, que marcou -
di-lo na carta VII, cuja autenticidade já não é muito contestada - uma
viragem na sua vida.

228
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÀO E ARISTÓTELES

1. Vida de Platão

Platão nasceu no início da guerra do Peloponeso (428-427). Perten­


cia, por parte da mãe, à aristocracia ateniense; era parente de Crícias e de
Cármides, ambos associados aos Trinta Tiranos em 404; às vezes coloca-
-os em cena, bem como aos seus dois irmãos, Adimanto e Gláucon, que
são as personagens da República. Recebeu, com certeza, a educação com­
pleta dos jovens aristocratas e tinha, parece, como muitos deles, o pro-
jecto de se tomar um político. Depois conheceu Sócrates. E a devoção
fervorosa com que traçou e retraçou o seu retrato diz bastante sobre a
influência que este encontro exerceu nele. Sobretudo, podemos imaginar
o que significou para ele a morte do mestre.
Platão deixou Atenas durante vários anos; dirigiu-se para Mégara,
para junto de outros discípulos de Sócrates, depois para o Egipto e para
Cirene, para aí encontrar sábios. Quando regressou a Atenas (em 395
ou por volta dessa data), já não se tratava de participar na gestão de uma
cidade que se verificava estar corrupta: mas, doravante, ele também
nada desejava, no que concerne à política, a não ser reconstruir através
do espírito uma cidade ideal, fundada no conhecimento do Bem. Abriu
uma escola nos jardins de Academo, em 387, quando já tinha publica­
do vários diálogos. E foi esta a principal ocupação da sua vida até à sua
morte, em 347.
Contudo, deixou Atenas várias vezes. Convencendo-se de que os
males dos homens só terminariam quando puros e verdadeiros filósofos
estivessem no poder, ou quando os soberanos tivessem acesso à verda­
deira filosofia, pôs toda a sua esperança nos tiranos da Sicília.
A sua primeira viagem ali, em 388, mesmo antes da abertura da Aca­
demia, destinara-se a encontros com os sábios pitagóricos de Tarento,
em particular Arquitas; mas Dionísio de Siracusa convidara-o - e tomara-
-se discípulo do jovem Díon, cunhado e genro de Dionísio. A viagem
acabou mal; Platão chegou mesmo, então, a ser vendido como escravo.
Mas a esperança nascera; e esta esperança explica a segunda viagem,
realizada vinte anos mais tarde, aquando da morte de Dionísio. Come­
çou tudo bem: Dionísio, o Jovem, sucessor de Dionísio, o Antigo, pareceu
de início cheio de zelo; mas cedo expulsou Díon; e o próprio Platão teve
alguma dificuldade em deixar a região. Uma última tentativa, em 361,

229
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

começou, do mesmo modo, com euforia e não conseguiu acabar melhor:


a cidade justa que Platão apresentava nunca viu a luz enquanto ele viveu.
No entanto, ela continuava a ser, para ele, um dos objectivos da activi-
dade dos filósofos e também o meio que lhes permitia escapar aos riscos
da corrupção, que se avizinhava, para alcançar, através de longos esfor­
ços sabiamente dispostos, a contemplação do Bem.

2. A obra de Platão

A obra de Platão é constituída por trinta e cinco diálogos, mais alguns


diálogos reconhecidos como apócrifos e uma recolha de cartas. Alguns
dos trinta e cinco diálogos pareceram suspeitos e a sua autenticidade foi
contestada (em particular os dois Alcibíades e o Hípias Maior).
As datas da redacção destes diálogos não estão estabelecidas com
precisão: são avaliados, mais ou menos, de acordo com diversos crité­
rios (alusões a acontecimentos, evolução na elaboração da doutrina,
modificação dos hábitos estilísticos). Apesar das divergências de visão
que resultam desta imprecisão, podemos ver desenhar-se, na sequência
dos diálogos, uma evolução e um aprofundamento. Os primeiros diálo­
gos tiveram sobretudo o sentido de apresentar problemas; por vezes,
baseiam-se numa pergunta, à maneira socrática. Depois, vem a série de
grandes obras, em que se exprimem os temas essenciais do pensamento
platónico e em que o encanto literário se alia a um movimento de des­
coberta interior particularmente forte: são o Fédon, o Banquete e a Repú­
blica. Depois disto, a dialéctica platónica dedica-se a problemas mais
técnicos, e a leitura dos diálogos toma-se mais difícil (é o caso do Par-
ménides, do Teeteto, do Sofista, do Político, do Filebo, do Timeu, do
Crítias, de que não daremos conta aqui). Enfim, a sua última obra é o
longo diálogo das Leis, onde retoma, a um nível mais concreto, o pro­
grama político apresentado sob a sua forma ideal na República.

a) Os primeiros diálogos. - Não é certo que a Apologia de Sócrates


seja o primeiro diálogo platónico: alguns pensam que Platão terá sido
capaz de o escrever ainda antes da morte de Sócrates; outros (como A.
Lesky) colocam esta pequena obra entre as últimas do primeiro grupo.

230
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

No entanto, ela merece abrir a série, visto que é a homenagem mais


directa prestada ao mestre, depois do regresso a Atenas. A obra conclui-
-se com uma alocução do condenado aos seus juízes, em que Sócrates,
com serenidade, fala da morte, que ele não receia: a nobreza que encon­
traremos no Fédon já está presente aqui, apesar da grande simplicidade
do tom. O Críton é igualmente iluminado a partir do interior pela imagem
de Sócrates esperando a morte: é aí que ele se recusa a deixar Atenas,
por fidelidade às leis da cidade.
Os outros diálogos são, muitas vezes, esforços de definição; e, de
cada vez, vemos Sócrates embaraçar interlocutores que julgavam, sem
razão, saber do que estavam a falar. Como no Laques, em que se discu­
te a coragem, no Êutifron, no qual se discute a piedade, no Lísis (talvez
um pouco mais tardio), que discute a amizade, no Cármides, onde se
trata da sageza, ou da reserva (sôphrosynê).
Mas três diálogos já têm, neste período ou no final deste período,
mais relevo e importância.
Primeiro, o Protãgoras. Nele, Platão apresenta com uma verve e
uma ironia encantadoras o sucesso que rodeia os grandes sofistas e, em
particular, a maior deles, Protágoras. Sócrates acompanha um jovem
entusiasta, que se quer tomar discípulo de Protágoras; e pergunta ino­
centemente ao grande homem qual é o objecto do seu ensino. Como,
então, Protágoras se considera capaz de formar bons cidadãos, Sócrates
suscita a questão, muitas vezes abordada no final do século v, e grave
para os sofistas, de saber se a virtude se pode ensinar. Protágoras res­
ponde com um mito, mostrando a importância da virtude política, e com
um comentário mais subtil; mas na discussão surgem as dificuldades e
as posições invertem-se. Não intervém nenhuma solução; ficam apenas
a ironia de Sócrates e, também, a sua crença na unidade da virtude, con­
siderada sempre ligada à inteligência.
O Górgias, esse, leva mais longe e parece muito próximo dos gran­
des diálogos da maturidade. O seu tema é a retórica (daí o título, sendo
Górgias o segundo dos sofistas e o grande mestre de retórica da época).
Mas trata-se, bem entendido, do papel moral da retórica. Górgias admi­
te que ela não procura a verdade, mas julga que é um instrumento que
se pode usar bem ou mal. Não será isto grave? Um discípulo de Górgias,
Pólos, mostra-se muito mais decidido do que o seu mestre; e percebemos

231
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

que são os próprios objectivos do homem que estão em causa; de facto,


Pólos admira o poder dos oradores, mas Sócrates considera que é pior
cometer uma injustiça do que sofrê-la. Uma terceira personagem entra,
então, em cena - um desconhecido, o que é único nos diálogos de Pla­
tão: chama-se Cálicles e, levando a tese ao limite, opõe a uma justiça
convencional o «justo de acordo com a natureza», ou seja, o triunfo do
mais forte. A discussão fica tensa. Cálicles é insolente. Deixa entrever,
por várias vezes, a ideia de que Sócrates, com a sua recusa de qualquer
sentido prático, poderia muito bem, um dia, ser esbofeteado, acusado,
condenado à morte. Evidentemente, as alusões dão uma ressonância trá­
gica ao debate que, depois de uma exposição calma de Sócrates, pron­
to a enfrentar a morte sem inquietação, termina com um mito sobre o
julgamento dos mortos, nos infernos. Este diálogo, muito importante,
reflecte, assim, com toda a acuidade, a crise moral do fim do século v
e a oposição irredutível de dois objectivos - o sucesso na vida política
(que os sofistas ofereciam) e a única consideração do bem (que Sócra­
tes perseguia).
Por fim, o Ménon retoma o problema de saber se a virtude se pode
ensinar, introduzindo, desta vez, a teoria da reminiscência (que supõe a
imortalidade da alma). A própria pessoa de Sócrates é, aí, essencial: é
no Ménon que aparece a comparação com a raia: como ela, Sócrates
entorpece misteriosamente os seus interlocutores. No entanto, o diálogo
não tem a riqueza ou o relevo do Górgias.
Poderíamos dizer outro tanto de alguns diálogos da mesma época
(em geral): o Menéxeno, que é uma paródia à oração fúnebre, o Ion, que
é uma brincadeira contra os poetas e os seus comentadores, o Eutidemo,
que é uma caricatura de dois sofistas, ou o Crátilo, que é um jogo de eti­
mologias: dos diálogos mencionados até aqui, só o Górgias se situa ao
nível dos grandes diálogos filosóficos, ditos «da maturidade», e cuja
composição pode ser repartida por uns quinze anos, de 385 a 370.

b) Os grandes diálogos filosóficos. - Os três grandes diálogos filo­


sóficos têm em comum, primeiro, a sua perfeição literária e a importância
que dão ao brilho do mestre.
Isto é verdade relativamente ao Fédon, que se situa no próprio dia
da morte de Sócrates: ele está na prisão, com os seus amigos, e a sua

232
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

última conversa gira à volta da imortalidade da alma. A iminência da


morte, a dor dos discípulos dão um relevo pungente à serenidade de
Sócrates, que encara a morte como uma libertação do corpo e das suas
tiranias. Pouco antes do fim, encontramos um novo mito sobre o destino
das almas depois da morte: o diálogo termina com a narrativa, muito
curta e muito sóbria, dos últimos momentos de Sócrates.
No Banquete a atmosfera é muito diferente: aqui, é a vida, com a
refeição entre amigos, a bebida, as brincadeiras a cortesia... O Banquete
também tem a origindalidade de fazer intervir, a propósito do amor, toda
uma série de oradores sucessivos, postos em cena e parodiados com espí­
rito por Platão. Mas, num segundo tempo, Sócrates intervém, por seu
turno, e o tom muda: imediatamente (201 d), ele fala só, citando o dis­
curso que diz ter ouvido a Diotima e onde o amor é apresentado como
uma aspiração e uma iniciação ao Belo e ao Bem. Enfim, uma últina
parte introduz subitamente o discípulo terrível, o jovem Alcibíades, que
chega ébrio, coroado com hera e violetas: ele descreve, como uma espécie
de aplicação concreta da exposição anterior, o que foi, o que é para ele
Sócrates, o amor que pode inspirar este homem feio como um Sileno e
a forma como nenhuma tentação nunca parece atingi-lo... De madruga­
da apenas Sócrates permanece acordado, fazendo sempre as suas refle­
xões, sem fadiga, junto das mesas abandonadas.
Por fim, o Fedro, que foca novamente a retórica, já não opõe Sócra­
tes a um grande mestre, mas a um jovem tímido e ardente, com quem
Sócrates saiu de Atenas, para passear nas margens do Ilisso: param junto
de um plátano e de um pimenteiro, junto de uma fonte consagrada às
ninfas. A poesia do local será evocada por várias vezes no dálogo, tal
como o seu poder de inspiração. Além do mais, se o diálogo é, em prin­
cípio, consagrado à retórica, o exemplo escolhido é o do amor; pois par­
timos de um discurso atribuído a Lísias sobre a oportunidade de preferir
um amante sem amor; em dois movimentos de emenda, Sócrates opõe
um primeiro discurso sobre o amor (237 zar-241 d), cada vez mais inspi­
rado, e, por fim, um segundo discurso, apresentado como uma palinódia
(243 e-257 b): desta vez, é um elogio ao amor, ligado à evocação bri­
lhante das almas imortais, da luta que elas travam para se elevar e se
libertar (a alma é como uma parelha de cavalos, com um cocheiro que
conduz um cavalo bom e outro mau). Esta grande evocação, que ocupa

233
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

todo o meio do diálogo, dá-lhe um brilho excepcional e uma nova forma


de poesia.
Se insistimos aqui na qualidade literária destes três diálogos, julga­
mos, contudo, que, mesmo através de um resumo muito curto, o sistema
platónico já lá está presente na totalidade, com o seu dualismo, a imor­
talidade da alma e a busca perpétua, na vida e de uma vida à outra, da
contemplação do Bem, longe dos constrangimentos do corpo. Esse movi­
mento de ascensão é descrito simultaneamente pelo rigor de raciocínio
e pela sedução poética: do mesmo modo, a alma persegue-o pela coin­
cidência da dialéctica e do amor. Os diálogos seguintes irão, sobretudo,
analisar a natureza desta participação entre o mundo das ideias e o mundo
sensível, ou resolver o problema do número das ideias e da sua unidade;
terão, assim, de definir os meios desta dialéctica que o Fedro considera
essencial e que tem precisamente a função de se elevar do particular à
ideia, para descer, em seguida, ao particular de acordo com um meio
claro e racional.
Mas, ainda antes que estes temas sejam elucidados, Platão já tinha
apresentado, com o mesmo brilho, um grande diálogo, esse consagrado
à política: a República.

c) A República. - A República não tem menos de dez livros. O sub­


título é Da Justiça: com efeito, o primeiro livro, que serve de introdução
(e talvez tenha sido composto antes dos outros, para uma publicação
independente) é uma tentativa de definição do justo; a discussão pros­
segue, menos dialéctica e mais séria, no livro II; e é então que Sócrates
se propõe descobrir o que é o justo, considerando primeiro os «grandes
caracteres» e só depois as «letras pequenas», ou seja, o indivíduo.
Com efeito, a exposição é toda ela política, mas no diálogo opera-
-se uma equação rigorosa entre o Estado e a alma de cada um: o carácter
limitado da cidade-estado e a solidariedade natural dos seus membros
tomavam uma tal identificação mais fácil.
Os livros II a IV, incluídos, mostram a formação dos Estados e des­
crevem a educação dos guardiões (música e ginástica), para chegar, na
segunda parte do livro IV (427 e e ss.), à ideia de que o Estado compor­
ta três elementos, aos quais correspondem as diversas virtudes: sabedo­
ria para os governantes, coragem para os guerreiros, temperança para

234
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

todos: a justiça, essa, consiste em que cada um exerça a sua função sem
invadir o domínio de outrem. No indivíduo, razão, «cólera» e desejo são os
três elementos correspondentes e a justiça pretende que cada elemento
da alma exerça igualmente a sua função, sem desordem nem usurpação.
Os livros V a VII, incluídos, definem os postulados, difíceis de fazer
aceitar, que uma cidade sã pressupõe: a comunidade das mulheres e das
crianças já tem com que impressionar, o governo dos filósofos mais;
mas, ainda mais, no centro da República, uma vasta análise do papel do
filósofo e da sua formação. Esta análise termina, no livro VII, com o
mito da caverna: o filósofo será arrancado às sombras da caverna em que
vivemos, para se voltar para a luz, fazer o caminho para fora, depois
erguer, por fim, os olhos para o próprio Sol - ou seja, o Bem. Depois disso,
voltará a descer, para ajudar os outros, renunciando às alegrias da con­
templação, por amor à justiça.
Os livros VII e IX regressam à injustiça, ou seja, aos regimes imper­
feitos, que Platão apresenta como estando encadeados numa decadência
progressiva: timocracia, oligarquia, democracia, tirania. Cada um deles
perdeu-se pelo abuso do que constitui o seu princípio. A cada regime
corresponde um tipo de homem; e a descrição dos dois é feita a par. Como
o pior regime é a tirania, o mais infeliz dos homens é o homem tirânico,
que se deixa levar pelas paixões: voltamos a encontrar aqui as análises
morais de Sócrates. Mas Platão também pôde, nestes dois livros, pince­
lar quadros amargamente caricaturais dos diversos regimes, cujos defei­
tos ele conhecera ao longo da sua vida.
Por fim, o livro X volta a dois pontos muito diferentes. Primeiro, a
condenação dos poetas: Platão não os quer na sua cidade, por causa da
sua má influência moral e porque esta arte da simples imitação é contrá­
ria à filosofia. Sentimos que há aqui, da parte dele, uma recusa tanto mais
rigorosa quanto mais ele gostou dos poetas e se deixou seduzir por eles.
Finalmente, o diálogo conclui-se, como o Górgias ou o Fédon, com a
ideia das recompensas concedidas à virtude depois da morte, com um
novo mito para as exprimir. Desta vez, o mito (que, supostamente, é a
narrativa de Er, o Arménio, que regressou à vida doze dias após a sua
morte) abre vastas perspectivas sobre a própria estrutura do universo e
a forma como as almas escolhem as suas reencamações.

235
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Na República, consequentemente, está tudo reunido, a política (crí­


tica do presente ou sonho de um mundo melhor), a moral e a psicologia
(com as partes da alma e a evolução de um estado corrompido para outro),
a metafísica (com a alegoria da caverna e a visão final). Esta coerência,
esta interpenetração são um dos traços do platonismo, que nem sempre
se apresenta como um sistema. Quanto ao projecto político, Platão insis­
te no facto de que ele é pouco realizável: pouco realizável mas, no limi­
te, não impossível... E compete também ao platonismo apresentar, assim,
um modelo, algo perfeito mas longínquo, como o Bem ou as Ideias.
Mas isto também explica porque iria ele regressar a vistas mais prá­
ticas no final da sua vida, nas Leis.

d) As Leis. - Num resumo tão curto, podemos omitir os diálogos


técnicos referidos mais acima (embora a sua importância propriamente
filosófica seja essencial e o Timeu, com o seu sistema do mundo, talvez
seja, de todos os diálogos, aquele que teve, na filosofia antiga, mais influ­
ência). Mas, mesmo numa breve síntese, ainda é pior se, entre a Repú­
blica e as Leis, não referirmos, pelo menos, o Político. Trata-se apenas
de uma investigação de carácter dialéctico com vista a uma definição;
mas o diálogo aproxima-se das Leis e da República pela presença de um
mito sobre a idade do ouro e o nascimento dos Estados; além disso, apre­
senta novas ideias: a superioridade de um homem que teria a «ciência
real» sobre as leis escritas, e a preocupação maior que um tal homem
teria em combinar os diversos temperamentos, que são como que a cadeia
e a trama num tecido; à preocupação de ordem absoluta, que a Repúbli­
ca exprimia, sucede uma preocupação com a unidade viva e de harmo­
nização, que os respeita.
O diálogo das Leis desce ao nível das realidades. Já não tem a chama
dos grandes diálogos e Platão morreria antes de poder revê-lo uma última
vez. A obra é constituída por doze livros, com um apêndice, Epinómide,
que trata da sabedoria e da ciência dos números, mas cuja autenticidade
é muito contestada.
No resto da obra, Platão, ou antes, os interlocutores que ele coloca
em cena (e de que Sócrates não faz parte) propõem-se fundar uma cida­
de tão boa quanto possível. Já não se trata, como na República, da cidade

236
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

ideal, governada por filósofos, nem, como no Político, de um homem


que possuiria a ciência real: na falta de conseguir alcançar estas condi­
ções, qualquer autoridade, na cidade, seria confiada às leis.
Nada é descurado no diálogo - nem a crítica dos regimes imperfei­
tos (que ocupa o livro III, na forma de uma análise histórica simplifi­
cada), nem as considerações sobre o local a escolher, ou o número de
cidadãos, ou a educação e os jogos das crianças, nem a preocupação de
apresentar as leis com prólogos, nem as linhas essenciais desta legisla­
ção: o programa é tão completo como o da República o era pouco. Em
contrapartida, faz tábua rasa dos factos políticos e sociais: até as consi­
derações morais são muito raras e com pouco desenvolvimento; e, no
sistema que preconiza, o programa é muito menos ambicioso.
Por exemplo, já não exige que os bens sejam postos em comum:
estabelece um sistema de classes censitárias, com todo o tipo de regras
e de limitações, destinadas a evitar os excessos. Também já não aspira
a uma cidade que, unida, viveria de acordo com as regras do bem: esta­
belece regras precisas para a educação, a fim de que os cidadãos sejam
tão bons quanto possível, e instala toda uma série de instâncias (a mais
elevada é o Conselho noctumo) para parar a tempo qualquer risco de
corrupção. Estas regras levaram alguns a pensar que se trataria de um
regime totalitário e opressivo, mas é preciso ver que Platão só se asso­
ciou a um tal sistema por não ter encontrado uma via para o seu mundo
ideal; e esta vigilância é apenas o inverso de uma dedicação sem limites
à justiça e ao bem comum.
De resto, se a cidade das Leis deixa pouco espaço para a liberdade
ou para a tolerância - porque Platão ficara marcado para sempre pelos
excessos da democracia ateniense, que se reclamava estes valores - em
contrapartida, a sua filosofia geral é de uma perpétua abertura para um
progresso e para um ideal perseguidos por cada um, na esperança e na
admiração. Platão só é «opressivo» onde lhe parece indispensável; e
mesmo aí, ele preferia convencer e instruir, como fazia o seu mestre,
Sócrates.

237
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

3. O método de expressão em Platão

Não seria possível resumir nalgumas frases o conteúdo geral do pen­


samento de Platão; mas o modo como ele se exprime já caracteriza as
suas tendências mais originais.

a) A form a dialogada

Depois de Platão, e até à época moderna, a forma dialogada foi por


vezes usada para obras de reflexão: esta forma foi, frequentemente, um
adorno e uma forma de tomar a reflexão agradável. Platão é, em parte,
responsável, porque os seus diálogos são, primeiro, cenas encantadoras,
vivas, irónicas e temas. Cada interlocutor tem o seu carácter. Os que se
opõem a Sócrates são, muitas vezes, insolentes, seguros de si, protectores.
Os seus discípulos são tímidos, sinceros, surpreendidos. E o modo como
Sócrates se ri deles, com gentileza, é inimitável. Aliás, não é nesta ironia
do tom que consiste o que chamamos ironia socrática: por isto designamos
a sua forma de fazer sempre as perguntas, como se estivesse mesmo na
ignorância e esperasse verdadeiramente ser esclarecido. Mas a ironia do
tom junta-se-lhe e suscita ao mesmo tempo a simpatia divertida, a afei­
ção, o espírito crítico. Por outro lado, tudo conta no diálogo: as pausas e
os intermédios assinalam as articulações principais, os recuos traduzem
a dificuldade de compreender a verdade, os gestos, os locais harmonizam-
-se de forma subtil com os temas da investigação.
No entanto, se estes recursos totalmente exteriores dão vida ao pen­
samento e a tomam mais acessível, é claro que a escolha da forma dia­
logada se explica por outras razões.
A primeira é uma preocupação de rigor. Nos textos de Platão, Sócrates
considera-se muitas vezes «esquecido»: ele não é capaz de se lembrar
de longos discursos para a seguir os criticar. Sob esta incapacidade fin­
gida oculta-se a ideia de que apenas o diálogo permite seguir, ponto por
ponto, uma investigação, sem nunca deixar passar nada que não tenha sido
aceite e controlado. Por vezes Sócrates também diz que numerosos teste­
munhos nada valem; ele atribui valor apenas à sua própria opinião e à do
seu interlocutor: «Pela minha parte, se não conseguiur obter de ti, e só

238
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

de ti, um testemunho favorável aos meus pontos de vista, entendo que


não cheguei a nenhum resultado positivo em relação ao tema da nossa
discussão. O mesmo direi de ti, se não despedires todas as outras teste­
munhas e não conquistares o meu assentimento, mas só o meu, às tuas
opiniões.» (Górgias, 472 bc). Por estas duas razões, o diálogo, que não
deixa passar nada e exige a aquiescência dos interessados, é a investi­
gação mais segura da verdade. Os sofistas, aparentemente, tinham pra­
ticado por vezes uma forma de ensino por meio de perguntas e respostas
(erística); mas podemos imaginar que se tratava sobretudo de uma arte de
discutir. Por aí, estas erísticas aproximavam-se dos discursos sem inter­
rupção, em que os sofistas eram grandes mestres, e que desempenhavam
um papel na vida política ateniense. Ora estes discursos são uma arte do
engano: o diálogo opõe-se-lhe e não é por acaso que já se identifica com
a dialéctica. Também não é por acaso se aqueles que discutem com Sócra-
tes têm tanta dificuldade em submeter-se às suas regras. De facto, Platão
pratica estas regras com tanto rigor que um leitor profano tem, por vezes,
dificuldade em reconhecer-se na minúcia dos progressos realizados, ou que
ele considera com alguma superioridade a sequência interminável das
aprovações exigidas a cada parte: os «certamente», «é evidente», «é bem
verdade que», «sem dúvida», etc; estes rodeios e assentimentos mostram
que o diálogo platónico não é uma arte destinada a preparar ideias, mas um
método exigente e rigoroso para chegar a algumas verdades que são fixadas
e aceites com certeza. A escolha da forma já é uma mira filosófica.
Além do mais, ao colher assim a aprovação passo a passo, o diálogo
combina o rigor com um outro aspecto, característico do platonismo: ao
mostrar-nos estas diversas personagens, adversários ou amigos, discípulos,
grandes homens ou simples jovens, levados a uma espécie de conversão
involuntária, obrigados a rever as suas definições, mas também as suas
intenções práticas e as suas ideias sobre os fins do homem, ao mostrá-los
reticentes, espantados, obrigados a aceitar, Platão apresenta-nos toda uma
série de precedentes e de modelos, que obrigam a reflectir e, de certa forma,
mostram o caminho. Nos primeiros diálogos, trata-se sobretudo de obter
esse espanto, que é o início da filosofia; nos outros, leva-se o interlocutor
mais longe, ou oferece-se-lhe todo um mundo para descobrir. Mas, de qual­
quer modo, esta série de movimentos estimulados ou terminados é uma
espécie de protréptico, que convida a seguir o mesmo impulso. Ora, a

239
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

importância da mudança de opinião e da subida no mito da caverna, a


preocupação em semear os espíritos no fim do Fedro, o papel do amor,
no Fedro e no Banquete, tudo confirma a importância que tinha, para
Platão, o facto de voltar os espíritos para a filosofia. Os diálogos são
outras tantas ilustrações dessa incitação.
Isso já sugere, a par do rigor e combinado com ele, uma outra qua­
lidade da exposição platónica, que é sugerir ao mesmo tempo que prova.
Assim se justifica a existência, no final destas discussões espinhosos e
por vezes algo escolásticos, dos mitos.

b) Os mitos

Os mitos de Platão, dos quais os principais já foram aqui assinala­


dos, no Górgias, no Fedro e na República, foram objecto de muitos estu­
dos, tanto pelo seu conteúdo como pelas suas fontes ou pela sua função.
O que surpreende é que Platão, tão preocupado com o rigor, tenha assim
associado às suas demonstrações narrativas mais ou menos fictícias sobre
um mundo de que não podemos conhecer nada. O mito do Górgias, o
mais simples, é introduzido como uma «história muito bela»: «que tu
talvez interpretes como um mito», diz Sócrates a Cálicles, com o vocá­
bulo mythos, «mas que eu considero uma história verdadeira (logos),
pois como verdadeiras te apresento as coisas que se seguem» (523 d).
Há aqui, sem dúvida, respeito de Sócrates pela tradição relgiosa; mas há
também, da parte de Platão, o desejo de fazer brilhar, no limite do esfor­
ço razoável, uma possibilidade e uma esperança, cujo pormenor pode
ser ingénuo, mas cujo princípio ilustra essa imortalidade da alma, para
a qual, aliás, apresentara argumentos racionalistas.
O recurso a estas crenças - para lá da parte racional mas a par dela,
associa dois traços essenciais do pensamento platónico.
O primeiro é a presença do divino. Certamente, não se trata, para
Platão, dos deuses personificados e variados do Olimpo. Mas ele identifi­
ca sempre o Bem e a divindade, o progresso em relação ao Bem e o que
chama «a assimilação a Deus» («E a fuga consiste em ser o mais possível
semelhante a um deus», escreve no Teeteto, 176 b, «e ser semelhante a

240
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

um deus é tomar-se justo e piedoso com inteligência.»). O racionalismo


de Platão baseia-se, assim, numa fé.
Por outro lado, um traço igualmente importante do platonismo é o
de sugerir sempre alguma coisa para lá do que foi mostrado e ensinado.
Uma passagem da carta Vil suscitou muitas dúvidas e inquietações: é
aquela que diz que ele nunca escreveu sobre os seus interesses mais
sérios: «Na verdade, não há meio de os colocar em fórmulas, como faze­
mos com as outras ciências, mas é quando convivemos muito tempo com
estes problemas, quando vivemos com eles, que a verdade surge subita­
mente na alma, tal como a luz da faísca, e de seguida ela cresce...»(341 c).
Evidentemente que não convém fazer demasiado de uma frase isolada,
nem fazer do pensamento platónico um esoterismo místico. Temos, con­
tudo, testemunhos sobre um ensino oral de Platão, que teria sido sobre
o Uno (discurso Sobre o Bem)\ e sabemos que, no Fedro, prefere a pala­
vra à escrita. Há, portanto, sempre alguma coisa que se situa para além
do texto. E a frase da carta VII compreende-se no seio de uma filosofia
cujos meios de expressão indicam só por si que a demonstração desem­
boca sempre numa contemplação que a ultrapassa.
Estes dois aspectos da obra de Platão - rigor do diálogo e ilumina­
ção sugerida pelos mitos - não estão, de resto, separados; na verdade, o
que é característico desta obra é estabelecer em todos os graus corres­
pondências, proporções, patamares.

c) Correspondências e proporções

Talvez se encontrem nos mitos algumas influências orientais; mas,


em qualquer caso, encontramos no pensamento de Paltão uma profunda
influência das matemáticas.
Ele próprio é apaixonado pela investigação matemática. Parece que
travou amizade com o célebre matemático de Cirene, Teodoro, e com o
astrónomo e matemático Eudoxo de Cnido. Teeteto, que deu o nome a um
dos diálogos, é um jovem matemático, aluno de Teodoro. Platão também
se interessara pela filosofia pitagórica, que dava uma grande importância
ao estudo dos números. Estes diversos sábios ocupavam-se de problemas
como o dos irracionais e das raízes dos números inteiros. As matemáticas

241
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

são a formação intelectual que Platão, na República, coloca antes da dia-


léctica. E ocasionalmente, encontramos nos diálogos análises tiradas das
matemáticas: é assim que a geometria serve para provar a reminiscên­
cia, no Ménon, e que a passagem do regime perfeito aos imperfeitos, na
República (VIII, 546 b), é atribuída ao desconhecimento de um número
perfeito, definido em termos extremamente matemáticos.
Ora, esta importância priveligiada reconhecida aos matemáticos
também se reflecte, de forma geral, no modo de expressão de Platão.
Reflecte-se primeiro, bem entendido, no rigor dos raciocínios e na forma
como, por vezes, ele procede com os conceitos tal como os sábios com
os números. Mas também se reflecte no gosto de Platão para exprimir
as relações entre as ideias por meio de equivalentes de tipo matemático.
A estrita correspondêncian entre as partes da alma, os elementos da cida­
de e as virtudes, na República, releva um pouco deste modo de análise.
Mas o mais claro dos exemplos é, sem dúvida, o sistema apresentado no
Górgias, em que toda uma série de noções se ordenam num sistema onde
se distinguem as artes, relativas ao corpo ou à alma, tendo em vista pre­
parar ou reparar, e sobretudo as artes que tendem para o bem ou para a
adulação - o que resulta no seguinte esquema (estando as artes da adu­
lação debaixo da linha):

ginástica medicina legislação justiça (dos tribunais)


vestir-se cozinha sofística retórica

Platão comenta estas relações como matemático. Do mesmo modo, no


mito da caverna, o mundo do conhecimento articula-se em graus: imagens
e seres vivos formam uma progressão no interior do mundo visível, ou
mundo da opinião, tal como o mundo inteligível conhece uma progressão
entre essas duas partes, progressão que já é aquela que subordina o mundo
visível ao mundo inteligível. Desta vez, a proporção também é graduação
e ascensão; ora ela aplica-se, de facto, a todo o universo. Uma tal visão
confirma a influência exercida pelas matemáticas; mas, ao mesmo tempo,
mostra como esta proporção pode fornecer um laço e uma série de mudan­
ças entre os conhecimentos vagos, a inteligência rigorosa e, lá no alto, a
contemplação. O pensamento de Platão não se contenta em conciliar entre
si as diversas atitudes: ele une-as e convida a percorrê-las de seguida.

242
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

d) O estilo

Estas atitudes complementares reflectem-se, por fim, nas qualidades


complementares do estilo de Platão. Não as descreveremos aqui. Bastará
dizer que ele alia o rigor e a transparência mais perfeitos ao calor poético.
Todas as traduções tomam Platão pesado. Como ele dá uma grande aten­
ção às palavras, a sua aproximação adquire muitas vezes em grego um
sentido imediato que nenhuma tradução pode conservar. Ele tem, aliás, o
gosto pela ironia, pela imitação, pelos jogos subtis de conceitos. E depois,
por momentos, a frase enche-se, até se libertar das estruturas previstas: isso
sucede de cada vez que ele evoca a felicidade das almas depois da morte,
ou a alegria do filósofo, ou o brilho da Beleza e do Bem. Isso pode acon­
tecer sob a influência da indignação, quando se trata de difamar um tirano,
de acusar os ambiciosos, de descrever a forma como a multidão corrompe
os jovens. Citaremos, um pouco ao acaso, uma das frases de Platão sobre
a contemplação perdida da beleza: ele ilustra, não só o calor do estilo, mas
os maiores temas desta filosofia, ao mesmo tempo dualista, idealista e
animada por uma perpétua aspiração ao além; é, de acordo com ele, uma
iniciação: «Mistério que celebramos na integridade da nossa verdadeira
natureza e isentos de quaisquer males que nos esperem no posterior decur­
so do tempo; integridade, simplicidade, imobilidade, felicidade que per­
tence, por seu turno, às aparições que a iniciação acaba por desvelar aos
nossos olhos, no seio de uma luz pura e brilhante, porque nós éramos puros
e não trazíamos a marca desse sepulcro que, sob o nome de corpo, passe­
amos connosco, presos a ele, tal como a ostra o está à sua concha...»(Fedro,
250 c). Todo o impulso interno do platonismo se reflecte em tal frase.

II.
ARISTÓTELES

Com Aristóteles encontramo-nos, simultaneamente, na sequência


exacta de Platão, de quem foi discípulo, e num novo mundo, que tam­
bém já não está muito centrado na cidade. Em qualquer caso, não está
centrado em Atenas: o próprio Aristóteles era de Estagiros, na Calcídi-
ca, e só passou em Atenas uma parte da sua vida.

243
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

1. Vida de Aristóteles

Aristóteles nasceu em 384, quando Platão já tinha aberto a sua escola,


e morreu em 322, pouco depois da morte de Alexandre.
O seu pai era médico do rei da Macedónia, o que poderá ter desper­
tado os seus interesses pelas ciências exactas. Depois da morte do pai,
foi criado por um homem de Atámea, na Tróade, o que explica, sem
dúvida em parte, a sua longa estadia, mais tarde, nessa região. Mas foi
em Atenas, junto de Platão, que terminou a sua formação. A partir desse
momento (sem dúvida, 367), foi filósofo e a sua vida dividiu-se em três
períodos muito distintos: a primeira estadia em Atenas, o período de
Asso, a segunda estadia em Atenas.
Chegado a Atenas com dezassete anos, Aristóteles seguiu o ensino
de Platão até à morte deste último, em 347, ou seja, durante vinte anos:
foi, portanto, profundamente penetrado pelo pensamento platónico na
sua fase tardia e foi, sem dúvida, associado aos trabalhos da escola. Isso
não significa que não tivesse críticas a formular, novos interesses para
fazer valer: a sua obra prová-lo-á; mas importa sempre pensar que a sua
filosofia foi definida pela de Platão e em função do que ela era.
Aquando da morte do mestre, Espeusipo, que era seu sobrinho,
sucedeu-lhe na direcção da escola: Aristóteles não tinha razão para ficar.
Dois discípulos de Platão estavam, já há algum tempo instalados na Tróa­
de, na corte do dinasta de Atámea, Hérmias - um antigo escravo, que se
tornou príncipe reinante e interessado por filosofia, o que podia dar espe­
ranças: Aristóteles ficou-se na província, em Asso, onde permaneceu três
anos; tomou-se seu admirador, seu conselheiro, seu amigo, seu parente
por aliança; depois, com o seu discípulo Teofrasto, foi para Mitilene,
pátria do jovem. Por fim, em 343-342, foi chamado à Macedónia, para
ser preceptor do jovem Alexandre. Gostaríamos de pensar numa influ­
ência do filósofo sobre o jovem príncipe; mas não há nenhum sinal disso;
e a política de fusão entre Gregos e Bárbaros, tão cara a Alexandre,
opunha-se radicalmente ao que Aristóteles ensinava. No entanto, as rela­
ções foram boas; Aristóteles até conseguiu a promessa de que a sua cida­
de natal seria restaurada. Não sabemos como é que Aristóteles recebeu,
mais tarde, a execução do seu sobrinho Calístenes, que Alexandre mandou
matar por se ter recusado a adorá-lo... Mas isso só aconteceu em 327.

244
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

Até que, em 335-334, terminada a sua função de educador, Aristó-


teles regressou a Atenas, agora submetida à Macedónia. Provavelmente
já lá tinha regressado antes. Mas desta vez foi para se instalar ali. Abriu
a sua própria escola, o Liceu; e, como ensinava passeando com os dis­
cípulos nas áleas do local, os seus alunos foram chamados peripatéticos
(de peripatos, que significa passeio). Ele ensinava de manhã, para os
discípulos especializados, e à tarde, para um auditório mais vasto; ensi­
nou assim durante treze anos, até à morte de Alexandre. Esta provocou
uma forte reacção antimacedónica; Aristóteles foi perseguido, deixou
Atenas e morreu quase logo a seguir. Deixou um testamento, que pode­
mos ler em Diógenes Laércio (V, 11): fazia doações a todos e designava
como sucessores os seus alunos favoritos, começando por Teofrasto.

2. A obra em geral

Deixava, sobretudo, uma obra simultaneamente considerável e, em


certos aspectos, difícil de reconstituir.
Sabemos que esta obra se compunha de dois tipos de tratados: uns
feitos para publicação, outros destinados ao uso interno da escola (daí o
seu nome de «esotéricos», que nada mais significa) e, por consequência,
apresentadas sem a menor preocupação literária. Ora, quis a sorte que
todos os tratados destinados a publicação se perdessem. Possuímos apenas
os seus títulos (há três catálogos antigos da obra de Aristóteles, um dos
quais em Diógenes Laércio). Sem dúvida, estes tratados eram em grande
parte antigos e estavam próximos do platonismo: referimos até, de passa­
gem, títulos que eram de diálogos platónicos: o Menéxeno, o Banquete,
o Sofista... Outros já marcavam alguma distância relativamente a Pla­
tão, a julgar por alguns fragmentos: é o caso de Sobre afilosofia, escrito,
aparentemente, em Asso. Alguns são conhecidos indirectamente, como
o Eudemo (que trata da imortalidade da alma) e o Protréptico (de que
encontramos alguns elementos em Jâmblico). Em todo o caso, este nau­
frágio explica a medíocre qualidade literária do que possuímos de Aris­
tóteles: passava por ser um bom escritor - algures...
De facto, tudo o que foi conservado da obra de Aristóteles foi-o por
formas estranhas: os seus escritos didácticos, legados a Teofrasto e,

245
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

depois de Teofrasto, ao filho de um outro discípulo, que estivera com


Aristóteles em Asso. Este tê-los-á escondido num subterrâneo, em Cépsis,
perto de Asso..., de onde só saíram no século i, num estado de conser­
vação muito pouco satisfatório. Daí em diante, foram copiados e também
traduzidos para várias línguas (entre elas o árabe). Frequentemente, o
editor de Aristóteles tem de fazer apelo a essas traduções para restituir
o estado, já imperfeito desde a origem, dos manuscritos antigos. Esse
facto não simplifica a restituição do texto e ainda impede mais o agrado
da leitura.
Além disso, estes escritos esotéricos, ou acromáticos, como se diz
às vezes (de akroasthai = ouvir), eram notas que podiam, consequente­
mente, ser reutilizadas, modificadas, completadas; o problema da datação,
não apenas das obras, mas das diferentes partes de cada obra, também
se coloca para Aristóteles com uma acuidade particular. O erudito ale­
mão Wemer Jaeger lançou, assim, em 1923, uma série de sugestões ten­
dentes a restituir, a cada uma das obras principais, um estado primitivo,
depois uma série de retoques, descrevendo o conjunto uma verdadeira
evolução intelectual de Aristóteles. Para referir apenas um exemplo, a
Política teria começado por ser constituídas pelos livros VII e VIII, escri­
tos em Asso; II e III ter-lhe-iam servido de introdução; IV-VI, que são
muito mais históricos e concretos, seriam claramente posteriores, tal
como o livro I. Estas reconstituições estão, naturalmente, sujeitas a revi­
são; e diversas reacções contra o sistema, um pouco simplista, de Jaeger
foram manifestadas depois do seu livro (como F. Dirlmeier ou I. Diiring
e, em França, R. Weil que, embora de acordo no conjunto, concluiu, no
que respeita à Política, um sistema menos matizado). Mas não podemos
tratar estas obras sem recordarmos a sua natureza e sem ter em conta
estas questões.
Por outro lado, ainda que a forma como Aristóteles se distingue, aos
poucos, de Platão não se possa ler sempre no pormenor das modificações
e dos acrescentos, é claro que esta ideia deve comandar, de uma forma
geral, a nossa compreensão de Aristóteles e de qualquer exposição, ainda
que breve, sobre o conteúdo da sua obra.
A diferença entre os dois filósofos é exactamente aquela que Jaeger
via entre as diversas partes da Política: enquanto Platão subordina sempre
o que é de ordem física à Ideia, ao Bem, ao Uno, Aristóteles dá um lugar

246
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

muito maior ao mundo concreto, na sua realidade e diversidade. Esta


diferença surge ao nível de cada obra e de cada doutrina; surge também
na própria diversidade dos seus interesses. Platão ocupava-se apenas da
moral e da política; se falava de retórica, era para a opor à moral, ou para
a inserir na sua busca da verdade; se falava da alma, dos deuses, do amor,
da morte, era ainda para se perguntar como é que se deve viver. Aris-
tóteles, pelo contrário, é um erudito e um filósofo, no estrito sentido do
termo; e a par dos escritos de moral e de política, deixou os que respeitam
à lógica, à física, às ciências, etc. Para mostrar melhor este alargamento
da investigação e este aspecto subitamente enciclopédico de que ela se
reveste, agrupámos à parte os escritos que se situam mais directamente,
pelo seu assunto, na perspectiva platónica, deixando para o fim tudo
aquilo que, na própria escolha do assunto, traduz essa renovação. Esta
classificação não tem nada de cronológico.

3. A moral e a política

A moral é, no corpus aristotélico, objecto de três tratados: Ética a


Nicómaco (10 livros), Ética a Eudemo (7 livros) e a Grande Ética (2
livros). O último tratado é, certamente, obra de um discípulo e posterior.
A autenticidade do segundo é contestada, mas admissível. Os dois pri­
meiros tinham nos títulos o nome dos editores (Nicómaco era filho de
Aristóteles e Eudemo de Rodes um discípulo); além do mais, têm dois
livros em comum (Ética a Nicómaco, V-VII = Ética a Eudemo, IV-VI).
O primeiro tratado é simultaneamente o maior e o mais pessoal.
Num sentido, as ideias que sustenta são as de Platão. Propõe uma
hierarquia dos bens comparável e um fim para a vida humana que é da
mesma ordem, com o seu cume mais elevado na vida teorética e contem­
plativa. No entanto, nem a forma de abordar o assunto, nem o conteúdo
que apresenta, nem o modo de apresentar a virtude são os de Platão.
Aristóteles aborda os valores morais como outros tantos dados: é
uma reflexão sobre os costumes (ou êthê). E para cada um procura, não
exortar, mas defini-lo e, sobretudo, classificá-lo. Por exemplo, ao tratar
da justiça, no livro V, estabelece toda uma série de distinções, corres­
pondentes às diversas aplicações da justiça na realidade humana: justiça

247
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

universal ou particular, distributiva, correctiva, justiça e reciprocidade,


justiça social, natural, positiva, etc. Não existia nada assim em Platão;
e, se a exposição de Aristóteles tem, seguramente, falta de calor, pressu­
põe uma lucidez excepcional; muitas das suas análises serviram, depois,
como ponto de partida para a reflexão dos filósofos, até nos tempos
modernos.
Por outro lado, esta mesma preocupação de situar exaustivamente
surge na própria ideia que Aristóteles tinha das virtudes e no plano que
segue para falar delas. Porque, se os dois primeiros livros são consagrados
de forma muito geral à definição de felicidade e de virtude, os livros seguin­
tes examinam de forma sucessiva as diversas virtudes. Primeiro, estão
as grandes virtudes tradicionais: a coragem, a moderação ou sôphrosynê,
a justiça e as virtudes intelectuais. Mas Aristóteles completa com dois
livros inteiros sobre a amizade (VIII e IX); e, entre a moderação e a jus­
tiça insere uma série de virtudes relativas à vida em sociedade, de que
Platão não se ocupava (amabilidade, jovialidade, liberalidade, etc.). Tam­
bém aí, o quadro platónico alarga-se, sob a pressão de considerações mais
realistas; e a presença destas virtudes corresponde a uma aceitação maior
das cidades, tal como elas são, e dos homens, tal como eles são. Podemos
também dizer que, tal como a amizade, elas estão ligadas ao domínio
afectivo, a que Aristóteles reconhece de muito bom grado autonomia, o
que Platão não fazia.
Por fim, importa acrescentar que, no seu ensino das virtudes, Aris­
tóteles fazia intervir muitas ideias que traduziam o mesmo realismo e a
mesma aceitação.
A primeira é a ideia do meio termo: qualquer virtude é, com efeito,
um equilíbrio entre o excesso e a falta. Assim, a coragem estará situada
a meio caminho entre o excesso de medo, ou a cobardia, e o excesso de
confiança, ou a temeridade (II, 2, 1104 a). Esta ideia só podia nascer e
tomar-se sistemática num homem apaixonado por classificações - e num
homem que, menos exigente do que Platão, não considerava as virtudes
ideias eternas, que reinavam no absoluto.
Percebe-se a mesma deslocação no que ele diz sobre o papel do
hábito. Apresenta este princípio no início do livro II: «As virtudes não
nascem em nós nem pela natureza, nem contra a natureza, mas somos,
por natureza, levados a recebê-las e a aperfeiçoá-las pelo hábito» (II, 1,

248
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

1103 a). É, portanto, necessário adquirir bons hábitos desde a mais tenra
infância. Dito de outra forma, a virtude não é simplesmente uma ques­
tão do nous e do seu domínio sobre a alma humana. Aristóteles combi­
na, assim, o intelectualismo com o realismo empírico.
Por fim, algumas destas virtudes recebem, elas mesmas, com esta nova
iluminação, uma aparência mais modesta: é assim que, a par da sabedoria
ou da ciência (sophia), Aristóteles dá um lugar importante à prudência
(phronêsis): trata-se, aqui, de uma sabedoria prática.
Estas inflexões, estes desvios, estas escorregadelas constituem a ori­
ginalidade do pensamento de Aristóteles. E ainda os encontramos mais
sensíveis quando se trata, entre todos os domínios, daquele pelo qual
Platão achava que devia voltar as costas à realidade - a saber, a política.
Nas suas obras para o público, Aristóteles consagrara vários trabalhos
à política, entre outros, um tratado em dois livros intitulado o Político,
no masculino, um Sobre a Justiça e um Sobre a Realeza. Hoje possuí­
mos apenas a Política (8 livros). Mas a diferença relativamente a Platão
na forma de abordar a reflexão política surge com toda a clareza, se nos
lembrarmos que Aristóteles reunira, ou mandara reunir, uma enorme docu­
mentação preliminar: Constituições, Costumes dos Bárbaros, Quadros
das leis de Sólon, etc. Para falar de política, ele reuniu toda uma infor­
mação precisa e variada. Também a iniciativa é característica.
Essas diversas recolhas perderam-se - no entanto, encontrou-se num
papiro, em 1891, a sua Constituição de Atenas. Não é uma obra perfeita,
longe disso; mas com as suas duas partes, histórica e depois descritiva,
ela sobressai relativamente às outras Constituições que possuímos (por
exemplo, as de Xenofonte ou do Pseudo-Xenofonte): é mais técnica,
mais preocupada com as instituições, mais capaz, também, de conjugar
a história com a teoria. Este pequeno trabalho é hoje, para nós, uma fonte
que se deve usar com precaução, mas talvez insubstituível.
Quando pensamos na quantidade de documentos do mesmo género
que Aristóteles agrupara, compreendemos que, também aqui, o seu méto­
do o tenha levado, na sua Política, a rever profundamente Platão.
O livro I é aquele em que se afasta menos, visto que trata, em abs-
tracto, da definição de Estado e da sua formação. Aristóteles não rompe
com o seu tempo, na medida em que admite, aqui, a escravatura: é, até,
um dos raros textos antigos que se preocupa em justificar um uso que,

249
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

em geral, parecia natural. O que é mais pessoal, neste livro I, é o modo


como Aristóteles apresenta a existência dos Estados como natural: a
cidade situa-se no prolongamento das simples associações (casal, famí­
lia, aldeia); corresponde a uma disposição própria do homem, que é um
«animal político» (I, 2, 1253 a), ou seja, um ser naturalmente disposto
a viver na comunidade de uma cidade, ou polis. Reconhecemos, aqui,
ao mesmo tempo, o gosto de Aristóteles pelas classificações, o seu res­
peito pelos elementos afectivos e o seu sentido dos laços que constituem
a sociedade
O livro II é uma crítica dos sistemas que propõem um regime ideal
- e primeiro o de Platão: Aristóteles opõe-se veementemente à ideia de
comunidade, seja de bens, seja de mulheres e de crianças. Com efeito,
ele recusa-se a admitir que uma cidade assente na semelhança de todos:
para ele, uma cidade é diversa e deve ser tratada como tal. Além do mais,
ao abolir os laços privados, não estaríamos a provocar uma verdadeira
solidariedade, mas uma indiferença generalizada: para ele, a propriedade
e o afecto são sentimentos vivos e poderosos de que a cidade tem necessi­
dade e de que se deve servir. Reconhecemos aqui, ainda, a mesma diferen­
ça entre os dois filósofos; mas aqui ela assumiu a forma de uma oposição
franca e reconhecida: o realismo de Aristóteles não pode admitir o carácter
extremo e teórico das construções platónicas.
Vem depois, no livro III, a classificação das diversas formas de regi­
me. Não é muito diferente da classificação tradicional e o próprio prin­
cípio de distinguir entre regimes rectos e corruptos já existia em Platão;
mas, se este último esboçara diversas formas de classificação, interessara-
-se, sobretudo, pela sua crescente imperfeição. Pelo contrário, Aristóteles
é o primeiro a ter apresentado uma classificação completa e clara, em seis
regimes: três regimes rectos, que se distinguem pelo número de gover­
nantes (monarquia, aristocracia, politeia ou «república»), com outros
tantos regimes corruptos que lhes correspondem, quando os governantes
já não têm em vista o interesse comum (tirania, oligarquia, democracia).
Esta classificação ainda se completa e se matiza; pois Aristóteles admite
a mistura e os estados intermédios, cuja realidade lhe oferece grande
quantidade de exemplos.
Na sua consideração destes diversos regimes, Aristóteles, do mesmo
modo, preocupa-se menos em propor um ideal fora de alcance do que

250
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV.PLATÀO E ARISTÓTELES

em definir, para cada regime, os perigos a evitar e os meios mais ade­


quados para os evitar. Estes meios são examinados à parte para cada um:
pretende-se que a sua reflexão seja concreta e objectiva. O livro VIII apre­
senta até um exame sobre as causas das revoluções nos diversos tipos
de governo, embora se chegue a uma espécie de sociologia do poder.
Aristótele condu-la dando muita atenção às instituições, na sua forma
técnica. E assim que distingue três poderes no Estado (deliberativo, exe­
cutivo e judicial); é também assim que opõe leis e decretos e trata com
cuidado da organização do poder e do papel dos magistrados. Este tec­
nicismo está na base da ciência política no sentido moderno. E é sobre
tais critérios que ele baseia as suas preferências ou as suas opiniões.
Enfim, na sua própria definição do melhor regime encontramos as
suas tendências específicas, muito diferentes das de Platão.
Politicamente, o seu elogio da politeia liga-se à tradição da demo­
cracia moderada, que ele, aliás, louva na Constituição de Atenas: Platão
não tinhas tais indulgências e, da democracia, conhecia apenas os seus
defeitos.
Filosoficamente, este regime vai ao encontro do seu gosto pelo meio
termo, já assinalado relativamente à ética. Certamente, um bom regime
define-se, primeiro, pelo reinado da lei e a preocupação com o interesse
comum. Mas o melhor meio para o instaurar e para o conservar é cons­
tituir uma mistura. A sua politeia é uma mistura de aristocracia e de
democracia, uma Constituição «mista»: a ideia já devia desempenhar
um papel importante na reflexão posterior. O maior sustentáculo de um
regime será a classe média, que não possui nem muito pouco, nem dema­
siado e, consequentemente, é mais razoável e moderada: «Na verdade,
nas cidades em que a classe média é muito numerosa, as revoluções e
os levantamentos populares são muito mais raros.» (IV, 11, 1296 o)(2).
Por fim, se dá, como Platão e como todos os pensadores gregos, uma
grande importância à educação e às leis, dá esta dupla importância ao
papel do hábito. E ele que faz a força das leis (II, 8, 1269 a); é ele que

(2) N.T.: As traduções da Política são da tradução portuguesa: Aristóteles, Política,


(nota prévia de J. Bettencourt da Câmara; prefácio e revisão literária de R. M. Rosado Fer-
nandes; introdução e revisão científica de Mendo Castro Henriques; tradução e notas de A.
Campeio do Amaral e C. de Carvalho Gomes; índices de conceitos e nomes de Manuel Sil­
vestre), Lisboa, Vega, 1998.
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

preside à formação dos jovens (VII-VIII); também a cidade se encarre­


gará da educação de todos e fá-lo-á no espírito da sua própria constituição.
Onde Platão construía um modelo ideal, Aristóteles procurava definir os
meios práticos para melhorar a política, tendo em conta que tudo é, no
seu conjunto, razoável e possível.
Dito de outra forma, ele trata a moral e a política como observador
que procura ter tudo em conta. Assim, também não nos surpreendemos
que nele moral e política sejam apenas um dos aspectos de uma busca
infinitamente mais vasta, conduzida sempre com o mesmo cuidado de
análise objectiva.

4. Os outros domínios do pensamento

Aristóteles ocupou-se de tudo, desde os domínios mais abstractos


até aos mais concretos.

Lógica e dialéctica. - A lógica é para ele o instrumento (organon)


do trabalho intelectual: deixou uma série de obras que são, para nós, os
primeiros ensaios de reflexão sistemática neste género. São as Categorias
(cuja autenticidade é contestada, pelo menos por alguns), Hermeneia ou
Da Interpretação (que está no mesmo caso), os Primeiros Analíticos, os
Segundos Analíticos e os oito livros dos Tópicos; importa juntar-lhes as
Refutações sofisticas, que assinalam o carácter enganador de alguns
argumentos usados pelos solistas. Este conjunto de obras é notável sobre­
tudo pela análise que Aristóteles faz do silogismo (Primeiros analíticos)
e pela sua teoria da demonstração. Os outros ramos do conhecimento
pressupõem todos a aplicação destes princípios e destas medidas.

Física. - A física, no sentido em que Aristóteles a entende, cobre


um domínio muito mais vasto do que o da nossa física. Trata-se de deter­
minar como e porquê as coisas começam ou mudam, tomam a sua forma
ou a modificam. Aristóteles tratou da Física em oito livros (que falam
primeiro dos princípios e depois do movimento), bem como no pequeno
tratado Da geração e da corrupção. Podemos associar-lhe o tratado Sobre
o céu, em quatro livros (trata primeiro dos astros, mas rapidamente adquire

252
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÀO E ARISTÓTELES

uma forma mais geral). Os movimentos e as órbitas dos planetas entram,


evidentemente, no assunto da física: Aristóteles oferece-nos uma teoria;
admitia a existência de uma Terra redonda e imóvel no centro do cosmo.

Metafísica. - O próprio nome de metafísica vem do título colectivo


dado aos tratados sobre o ser, que, na obra de Aristóteles, vinham «depois
da física». Constituíam os treze livros da Metafísica (o apêndice ao livro I
é posterior e o livro IV foi colocado ali muito tarde). No conjunto, a ideia
de movimento é predominante, sendo a divindade originariamente o seu
único motor. Um traço capital é o facto de Aristóteles renunciar à teoria
platónica das ideias e ao dualismo rigoroso de Platão: para ele, corpo e
alma têm a mesma relação que a matéria e a forma, ou eidos. A matéria
modela-se sobre a forma, por aproximação, numa espécie de teleologia
hierarquizada. Deste modo, a forma, ou eidos, mistura-se com a matéria,
enquanto a «ideia» platónica estava separada dela. - Depreende-se, aliás,
que estas doutrinas constituem conjuntos difíceis, misturados a discussões
técnicas, e cujos contornos não seríamos capazes de resumir em duas ou
três frases.
Pelo contrário, as coisas são muito mais simples nos dois últimos
domínios: as ciências e as letras.

Ciências. - Platão era um entusiasta das matemáticas: Aristóteles,


cujo gosto era, também aqui, mais concreto, é sobretudo um especialis­
ta em história natural e em biologia. Mas também se interessou por todas
as curiosidades do mundo físico ou do mundo das sensações.
Na história natural procurou, como noutros locais, as classificações.
Temos exemplos nos tratados Sobre as partes dos animais (manual de
anatomia comparada), Da geração dos animais e no grande tratado Sobre
os animais (ou História dos animais, mas sem que o termo «história»
signifique mais do que o nosso termo «investigação»), em dez livros.
Importa acrescentar tratados menos importantes sobre o porte dos ani­
mais e o movimento dos animais. No conjunto, a quantidade de infor­
mações agrupadas nestes tratados é considerável. Os seus discípulos
participavam nas investigações: Teofrasto ilustrou alguns aspectos.
Os Pequenos tratados de história natural ocupam-se mais de curiosi­
dades da biologia humana (por exemplo, a sensação, o sono, os sonhos, a

253
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

longevidade ou brevidade da vida). As preocupações metafísicas misturam-


-se com uma observação mais minuciosa.
Outros tratados, por fim, examinam as curiosidades do mundo físi­
co: como a Meteorologia, que trata do mundo entre a Lua e a Terra, ou
o tratado Sobre as cheias do Nilo (cuja autenticidade é contestada). Ainda
não falamos dos tratados actualmente afastados da obra de Aristóteles,
mas que, pelo menos, testemunham curiosidades da escola, como os Pro­
blemas, os tratados Sobre as cores, Sobre as plantas e muitos outros.
Esses tratados estão, evidentemente, ultrapassados e contam mais
como testemunho sobre a formação das ideias científicas do que como
obras de autoridade: esta é a lei do género científico. Não se passa o mesmo
com as letras.

Literatura. - Platão expulsava os poetas da sua cidade. Platão con­


denava a retórica ou, quando admitia a sua existência, identificava-a com
a dialéctica e a busca da verdade. Já Aristóteles escreveu uma Poética e
uma Retórica.
A sua Poética é, entre as suas obras, uma daquelas que tiveram maior
influência. Inicialmente tinha dois livros: só nos resta o primeiro, rela­
tivo à epopeia e à tragédia. Este interesse pelas obras literárias ficou, de
resto, marcado por um tratado publicado Sobre os poetas, perdido, como
os outros tratados publicados. Também se traduzia nos Problemas homé­
ricos. E a documentação incluía o agrupamento das Didascálias, que
relatava os concursos dramáticos, os nomes das obras premiadas e as
circunstâncias das representações. Também aqui a investigação foi feita
de forma extensiva.
A obra incluía muitas informações preciosas, que instauravam o
vocabulário da crítica literária; incluía, também, classificações tendentes
a situar os vários géneros, uns em relação aos outros: epopeia-tragédia-
-comédia. Entre as suas análises, uma das mais célebres é a que atribui
como fim da tragédia produzir o temor e a piedade. A partir daí, Aristó­
teles foi levado a justificar essa emoção trágica em termos muitas vezes
comentados. Com efeito, Platão considerava esta emoção nefasta: ela enco­
rajava sentimentos que seria preferível aprender a refrear. Ora, a resposta
de Aristóteles é que, ao suscitar o temor e a piedade, a tragédia opera a
«purificação» de tais emoções (1449 b: katharsis). Aparentemente, o termo

254
OS FILÓSOFOS NO SÉCULO IV:PLATÃO E ARISTÓTELES

deve ser entendido num sentido mais médico do que moral; de facto, ele
baseia-se numa psicologia mais complexa do que aquela de que Platão
partia; pressupõe que, entregando-nos a estes sentimentos a propósito
de exemplos imaginários, longe de os encorajar na vida real, encontramo-
-nos livres deles. Em qualquer caso, a polémica relativamente a Platão
é muito clara.
Nos juízos que faz, importa reconhecer que o autor da Poética por vezes
nos surpreende. As suas análises são de ordem técnica e relacionam-se
muitas vezes com o encadeamento da acção (peripécias, reconhecimentos,
etc.) - o que Esquilo parece ignorar. No domínio da psicologia, ele insis­
te acima de tudo na coerência e na verosimilhança - o que o leva a repro­
var as reviravoltas bruscas que, por vezes, Eurípides apresentou (entre
outras, na Ifigénia em Aulis).
Estas escolhas vêm do facto de Aristóteles tentar definir as regras.
Muitas daquelas que, durante séculos, presidiram à dramaturgia, vêm dele:
como a regra da verosimilhança ou a da unidade de acção: estas regras não
constituem um código tão imperioso como o do nosso século x v ii fran­
cês; mas este último, como todas as «artes poéticas» de todos os tempos,
deve-lhe muito.
A Retórica exerceu uma influência paralela e comparável: faz com
a eloquência o que a Poética faz com a tragédia.
A questão da retórica era importante: a condenação feita por Platão
(que a opunha à filosofia) e a difusão do ensino de Isócrates (que lhe cha­
mava filosofia) impunham uma tomada de posição. De forma caracterís-
tica, Aristóteles reconheceu à retórica um estatuto, definiu-lhe as regras,
por vezes muito práticas, mas também analisou a diferença que a separa
da dialéctica, do ponto de vista do raciocínio.
Aliás, o seu interesse pelo assunto sempre foi constante: ele publica­
ra um tratado chamado Grilo, ou da retórica-, também reunira uma vasta
documentação, visto que havia dele uma Recolha das artes retóricas.
Sem dúvida, foi assim que juntaram às suas obras um tratado intitulado
Retórica a Alexandre, cujo autor parece ser Anaxímenes de Lâmpsaco,
um discípulo de Isócrates, e cujo conteúdo é constituído por conselhos
práticos.
O método de Aristóteles é outro e vai mais longe. No livro I, depois
de ter definido a retórica pela sua relação com a dialéctica, classifica

255
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

(naturalmente) os vários géneros de eloquência (deliberativo, judicial,


epidíctico) e distingue os assuntos e os fins de cada um. O livro II é con­
sagrado às paixões e às emoções, sobre as quais incidirá o discurso e que
o orador deve conhecer (cólera, amizade, receio, vergonha, cortesia, pie­
dade, indignação, etc.); depois Aristóteles regressa à forma de raciocínio
própria da retórica; não é o silogismo rigoroso da ciência ou da dialéc-
tica, mas um raciocínio que visa apenas uma probabilidade aceitável;
Aristóteles chama-lhe entimema. Classifica as suas diversas espécies,
antes de passar aos «lugares», ou temas gerais da argumentação, depois,
enfim, no livro III, à composição e ao estilo.
Como vemos, a Retórica de Aristóteles, com precisão, fornece, tam­
bém aqui, uma linguagem de reflexão técnica; sobretudo, estabelece
como que uma ponte entre os vulgares conselhos práticos e as investi­
gações da lógica. Como sempre, Aristóteles quis mostrar os recursos de
uma actividade intelectual, em vez de a defender ou de a atacar. E abor­
dou esta questão, debatida com tanta paixão, com a serenidade lúcida de
um homem da ciência.
Há assim, no seu todo, alguma coisa de enciclopédico na sua obra,
que explica, em parte, a influência considerável que exerceu. Depois
dele, não voltamos a encontrar esta combinação de todas as disciplinas:
haverá eruditos, filósofos, críticos literários. Esta diversidade toma ainda
mais sensível o facto de que um mesmo contorno do espírito se reconhe­
ça tão facilmente em cada uma das suas actividades: esse desejo de clas­
sificar, de controlar, de pôr no lugar, de formular em termos de problemas
filosóficos ou epistemológicos tudo o que está relacionado com o homem
e com o mundo, constitui em si mesmo um ponto de partida de uma
empresa eminentemente pessoal.
Com Platão e Aristóteles temos, assim, o desabrochar de duas for­
mas diferentes de filosofia - uma voltada para a meditação interior e
exaltando o cuidado com a alma, a outra voltada para uma ordenação
racional e descritiva. Que um dos dois filósofos tenha sido formado pelo
outro, toma ainda mais surpreendente esta complementaridade.

256
C A P Í T U L O IX

A ÉPOCA HELENÍSTICA
Chamamos época helenística àquela que começa com a morte de
Alexandre, em 323, e dura até aos inícios do Império Romano: esta desig­
nação foi-lhe dada para evocar a difusão do helenismo em regiões não
gregas e as trocas que daí resultaram. Do ponto de vista da história lite­
rária, assistimos, aqui, a um movimento inverso daquele que, nos sécu­
los v e iv, atraíra tudo para Atenas. Menandro é ainda um Ateniense, mas
as suas peças já não se destinam às grandes festas atenienses; rapida­
mente o prestígio de Alexandria substituiu o de Atenas: Teócrito é um
Siciliano, que viveu em Alexandria; Calímaco era de Cirene e também
viveu em Alexandria onde, sob Ptolomeu II Filadelfo, teve uma activi-
dade na biblioteca. Por fim, mais tarde, Políbio, que era do Peloponeso,
foi forçado a ir para Roma, onde permaneceu muitos anos.
Neste mundo, que não se limita à cidade e onde as cidades em geral
têm cada vez menos importância, a literatura deixa, em parte, de ser
política: a comédia nova já não está comprometida e as alusões são
raras; nem Teócrito nem Calímaco escrevem poemas políticos; os filó­
sofos buscam uma moral para o indivíduo e consideram que o sábio não
tem pátria. Será preciso um historiador e, sobretudo, o crescimento de
uma nova potência política, que rapidamente se impôs até na Grécia,
para trazer, com Políbio, o antigo interesse pelos problemas gerais dos
Estados.

259
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

I.

MENANDRO

Menandro abre exactamente a época helenística. Nascido em 342-


-341, fez a sua primeira peça (Orgê) em 321, ou seja, dois anos depois
da morte de Alexandre, e parece ter vivido até 293. Quando era jovem,
conheceu o jovem Epicuro e frequentou a escola de Aristóteles, onde
conheceu Teofrasto: ilustra bem, portanto, o espírito das novas escolas.
Aparentemente foi convidado para o Egipto e para a Macedónia, mas
ficou em Atenas: os convites são um sinal dos novos tempos, a sua recu­
sa liga-o, ainda, à tradição ateniense.
Até ao início do século xx, Menandro era conhecido apenas de forma
incerta e indirecta: havia fragmentos dele, citados por outros autores, ou
então imitações latinas (as de Terêncio eram muito fiéis, na Moça que
veio de Andros, o Heautontimoroumenos, o Eunuco e os Adelfos, as de
Plauto eram mais livres); havia também juízos e elogios sobre ele. Depois,
os próprios papiros começaram a restituir-nos Menandro. Uma primeira
série de descobertas importantes teve lugar em 1905. Mas o principal
acontecimento foi a descoberta de uma peça inteira, o Díscolo, ou seja
«o Misantropo», publicada em 1959 por Victor Martin. A partir daí, mul-
tiplicaram-se edições e comentários; encontrou-se a Rapariga de Samos,
o Escudo. Seguiram-se outras descobertas: assim, quatro anos depois do
Díscolo, longos fragmentos do Siciónio foram publicados em Paris por
A. Blanchard e A. Bataille; depois, fragmentos do Misoumenos eram publi­
cados em Inglaterra por E. G. Tumer. É provável que, neste domínio, ainda
venhamos a ter boas surpresas: o próprio sucesso de Menandro explica a
sua presença nos «papéis velhos» dos túmulos egípcios. E, dizem-nos,
Menandro escreveu 108 comédias.
Destas comédias algumas não são para nós mais do que títulos. Para
além do Díscolo, aquelas de que podemos formar uma ideia melhor são
a Arbitragem (Epitrepontes), a Mulher do cabelo rapado (Perikeirome-
nè), a Rapariga de Samos: para cada uma delas temos entre 300 e 600
versos. Isto, associado a outros fragmentos e aos resumos, permite-nos
representar o teatro de Menandro e garantir que os traços que aparecem
no Díscolo não estavam de modo algum isolados na sua obra.

260
A ÉPOCA HELENÍSTICA

1. A acção em Menandro

Uma comédia de Menandro já não se assemelha às comédias anti­


gas. Desapareceu a liberdade fantasista, tal como as formas fixas. O coro
perdeu totalmente a sua função e serve apenas para os intermédios musi­
cais, cortando a acção em actos, ou naquilo que poderemos, a partir daqui,
designar assim. A comédia tem um prólogo, na forma de um longo monó­
logo (no Díscolo é dito por Pã); este monólogo explica, como os de Eurí-
pides, as circunstâncias, às vezes complicadas, da acção; depois, esta
desenrola-se de acto em acto: com efeito, a intriga tomou-se - como nas
últimas tragédias de Eurípides - um elemento essencial.
De certa maneira, esta intriga reflecte os tempos perturbados em que
Menandro vivia: encontramos constantemente crianças não identifica­
das, nascidas na ausência do pai, que viajara para longe, ou bem criadas, ou
abandonadas e criadas não importa por quem. Mas estas desordens apenas
dão a Menandro ocasião para equívocos a atar e a desatar. A partir daí,
constrói as intrigas complicadas que quer; e ele gosta, como Eurípides,
dos golpes de teatro dos reconhecimentos de última hora. A importância
dada às cortesãs, no seu teatro, torna as situações ainda mais complica­
das, misturando-lhe a inveja, e estes imbróglios atraem ainda mais reper­
cussões.
Na Arbitragem, dois jovens esposos separam-se porque a jovem teve
um filho logo após o casamento; o jovem marido está indignado; mas
ele violentara a sua jovem mulher, por altura de uma festa, antes do casa­
mento e sem saber quem ela era! Uma citarista, com quem se relaciona,
por despeito, mistura-se ainda, pretendendo ser a mãe da criança... Numa
palavra, uma série de equívocos antes da doçura do reencontro!
Na Mulher do cabelo rapado, dois gémeos encontrados foram con­
fiados a duas famílias diferentes; um dia, o irmão (que fora criado livre
e rico e que não sabe de nada) abraça a irmã (que sabe tudo): o cabelo
dela foi rapado pelo homem com quem ela vive, fúrioso e ciumento. Esse
homem casará com ela no final, numa euforia reencontrada.
Na Rapariga de Samos trata-se, ainda, de uma criança, nascida na
ausência do senhor da casa e substituída por outra, o que provoca toda
a espécie de desconfianças: o senhor da casa desconfia que o próprio
filho o enganou com a Sâmia; de facto, ele teve um filho morto; o sobre­

261
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

vivente, que a Sâmia fez passar pelo seu, é a criança do filho e ... da noiva
com quem justamente o obrigam a casar!
O acaso, ou Tychê, tem um papel importante em tudo isto; e Menan-
dro não deixa de assinalar a sua omnipotência, ou a sua cegueira, ou a
sua malícia (o seu amigo Demétrio de Faleros reflectia, também ele,
sobre o assunto). No entanto, a arte do autor ainda o aumenta; e este jogo
de mal-entendidos oferece um esquema cómico que, rapidamente, se
toma convencional. Sê-lo-ia, pelo menos, sem a variedade e a fineza que
lhe dá o retrato dos caracteres: sucede mesmo que este seja o próprio
assunto da comédia, como no Díscolo.

2. Os caracteres na obra de Menandro

O Díscolo (uma comédia muito antiga para Menandro, visto que


data de 316) é, de um extremo ao outro, a sátira de um carácter rabugento
e misantropo. Um velho desagradável, Cnémon, tomou os seus seme­
lhantes de ponta e decide evitá-los; maltrata todos aqueles que se apro­
ximam dele, o que é particularmente desagradável para Sóstrato, que se
apaixonara pela filha de Cnémon. A peripécia surge quando Cnémon,
querendo ir buscar um balde e uma enxada caídos no fundo de um poço,
também lá cai. E ei-lo que precisa dos outros! Com efeito, é retirado pelo
enteado e por Sóstrato e, então, consente em todos os casamentos que qui­
serem: sem mudar de carácter, reconhece pelo menos o seu erro: «nunca
pensei que houvesse alguém capaz de se interessar pelo próximo.»(').
O retrato do «atrabiliário» é, assim, o próprio assunto da comédia.
E é certamente característico de Menandro ter procurado descrever e
fixar tipos humanos. Ele tinha estado ligado a Teofrasto, o autor dos
Caracteres; e nota-se que alguns títulos das peças perdidas de Menandro
correspondem a caracteres de Teofrasto (o Lavrador, o Supersticioso, o
Adulador, etc.).Também legou ao teatro de todos os tempos um certo
número de personagens-tipo, que pertencem à sociedade de então, graças

(') N.T.: A tradução foi retirada da tradução portuguesa: Menandro, Obra completa,
(introdução, tradução do grego e notas de Ma. de Fátima Sousa e Silva), Lisboa, INCM,
2007 .

262
A ÉPOCA HELENÍSTICA

a ele, se tomaram clássicas: o apaixonado, o soldado, o parasita, o cozi­


nheiro - e, sobretudo, o escravo (muitas vezes chamado Davo), esse
escravo engenhoso e audacioso, que morigera os jovens senhores, ima­
gina expedientes, puxa os cordéis da intriga, tudo sem se afastar de um
sentido muito realista da sua própria vantagem. Os lacaios de Molière
ainda são modelados sobre os escravos de Menandro.
No entanto, a existência destas personagens-tipo, muito caracteri-
zadas, não exclui de todo a variedade, nem os finos matizes psicológi­
cos; longe disso. Um velho, um jovem apaixonado, até um escravo nunca
é semelhante a outro. E os acasos da intriga fazem surgir movimentos
de sentimentos, que são restituídos ao seu próprio jorro. A comédia de
Menandro já não é política: em contrapartida, tomou-se psicológica. Tal
como a tragédia de Eurípides, é rica em monólogos. Alguns são diver­
tidos, como o do apaixonado, no Díscolo, que, tendo-se feito passar por
trabalhador agrícola, regressa completamente estafado, lamentando o
seu zelo intempestivo e que, contudo, volta: «E cá venho eu sem saber
dizer por que razão, raios.» (544); outros são comoventes, como os remor­
sos do jovem marido na Arbitragem, que descobre que a mulher, que ele
acusara falsamente, lhe permanece fiel.
Um traço continua a ser característico do mundo de Menandro no
seu conjunto: é um mundo cortês e afectuoso. O misantropo do Díscolo
é um pouco a excepção à regra; mas é que a peça destinava-se precisa­
mente a censurar a sua excentricidade; no entanto, a sua linguagem é
amarga, sem se tomar grosseira. Do mesmo modo, os escravos podem
ser insolentes e intrujões; mas não se prestam às brincadeiras grosseiras
de que Aristófanes gostava. Uma grande gentileza reina quase sempre
entre as personagens de Menandro, como uma suave discrição reina no
seu estilo. Também isto é o reflexo do seu ideal humano.

3. O ideal humano de Menandro

O caso do Díscolo prova-o: aqueles que não têm o sentido da soli­


dariedade humana devem obtê-lo. Os homens têm necessidade uns dos
outros e a mais bela qualidade humana é precisamente aquela que é pró­
pria dos homens, a «humanidade». Cnémon tem falta dela e diz-se que

263
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

ele é um «ser humano por demais desumano» (6: anthrôpos apanthrô-


pos). Inversamente, o homem que corresponde a este ideal comove-nos:
um fragmento célebre (484 Kõrte) dizia: «Que delícia, um homem que
é verdadeiramente um homem!» (2); e muitas outras fórmulas ilustram
os laços recíprocos que uma tal virtude tece entre os seres; um fragmen­
to diz: «Nada me é estranho, se for virtuoso» (475 Kõrte); um outro:
«Viver é isto: não viver apenas para si» (646 Kõrte). Enfim, não é duvi­
doso que o verso de Terêncio remonte a Menandro, quando diz no Heau-
tontimoroumenos: «Um homem eu sou: e nada do que é humano eu
considero alheio à minha natureza.» (3).
Este sentido de fraternidade humana corresponde aos novos tempos,
em que a cidade já não limita os horizontes do homem: o cosmopolitismo
dos filósofos já lá estava reflectido. Mas já se exprimia em Aristóteles;
e talvez seja à sua escola que se liga o ideal de Menandro, na medida em
que preconiza, na prática, a doçura e a tolerância.
Estão ali, com efeito, as novas qualidades deste mundo novo: a Arbi­
tragem é uma condenação dsa cóleras supracitadas, uma ilustração do
perdão, da compreensão, da reconciliação. Tal como a Mulher do cabelo
rapado. O teatro de Menandro põe-nos constantemente em presença de
ligações familiares, de ternuras, de amizades. A reserva e a graça da arte
de Menandro são a imagem deste novo ideal para as relações entre os
seres. O civismo dos séculos passados deu lugar a uma vida privada mais
suave, onde desabrocha a afeição.
Estes caracteres explicam, sem dúvida, a considerável voga que a
obra de Menandro conheceu: as cópias encontradas no Egipto, a estátua
devida aos filhos de Praxíteles, as imitações latinas de Plauto e de Terên­
cio, os comentários de Plutarco, tudo atesta esta voga, que foi duradou­
ra. Foram até encontrados, recentemente, uma série de mosaicos, em
Mitilene, que são outras tantas ilustrações das comédias de Menandro;
datam de cerca de 300 e ajudam a imaginar a encenação de então.

(2) N.T.: A traduç3o deste fragmento foi retirada da Hélade. Antologia da Cultura
Grega (organização e tradução do original de Maria Helena da Rocha Pereira), Porto/Lis-
boa, Edições ASA, *2003.
(3) N.T.: A tradução desta passagem do Homem que se puniu a si mesmo foi retirada
da tradução portuguesa: Terêncio, Comédias. I, (introdução geral de Walter de Medeiros;
introdução, tradução do latim e notas de Walter de Medeiros e Aires Pereira do Couto), Lis­
boa, 1NCM, 2008.
A ÉPOCA HELENÍSTICA

4. Os outros autores da comédia nova

Para nós, Menandro eclipsou todos os outros, dos quais, no entanto,


alguns muitas vezes o venceram, quando ele ainda era vivo. Filémon é
o mais conhecido. Este Siracusano, que se tornou Ateniense, esteve,
durante algum tempo, na corte do Egipto. Viveu entre 361 e 262. Dífilo
também foi muito conhecido. Apolodoro de Caristo foi o continuador de
Menandro. Todos estes três escreveram comédias que foram imitadas por
Plauto ou por Terêncio. As suas obras, das quais apenas possuímos frag­
mentos muito pequenos, reclamavam para si a mesma estética das de
Menandro - com a diferença de que os dois primeiros também escreve­
ram comédias com temas mitológicos, tal como o haviam feito os poetas
da geração precedente: é característico de Menandro ter-se abstido disso.

II.
AS ESCOLAS FILOSÓFICAS

A filosofia, que tivera tanto brilho em Atenas, com Platão e Aristó-


teles, continuou a ter Atenas como centro; e as diversas escolas retiraram
os seus nomes dos locais que ocupavam nesta cidade: a escola platónica
continuou a ser a Academia, do nome dos jardins do herói Academo;
Aristóteles teve por discípulos os peripatéticos, ou seja, os «passeantes»
do Liceu (um passeio ateniense); os cínicos, ou discípulos do filósofo socrá­
tico Antístenes, tiveram este nome aparentemente do nome do ginásio
de Cinosarges, onde ele ensinava. Logo apareceram as duas grandes
escolas que se seguiram: se os epicuristas são designados a partir do seu
mestre (apesar do «Jardim», que era o seu centro), os estoicos eram-no
a partir do Pórtico ou Pécile, ou seja o Stoa.
Mas, na época helenística, a maioria destes filósofos deixou de ser
ateniense: Aristóteles já o não era. Vieram das mais diversas regiões;
muitos são simples libertos. Não é surpreendente que os sistemas que
elaboram estejam cada vez menos centrados na cidade e na colectivida-
de, cada vez mais ocupados com a autonomia individual. Ao mesmo
tempo desenvolve-se um cosmopolitismo que corresponde às novas con­
dições políticas. Enfim, é característico destes tempos perturbados que

265
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

os diversos sistemas tenham procurado menos perseguir a ideia de um


mundo ideal, do que definir, para o indivíduo, um meio de evitar todas
as desordens externas pela tranquilidade interior.
Isto é verdadeiro para as escolas antigas - a academia, os peripaté-
ticos, os cínicos - e mais ainda para as novas, ou seja, a par dos cépticos,
o estoicismo e o epicurismo. Estas últimas escolas, aliás, tendem a eclip­
sar as precedentes.
No entanto, a escola de Aristóteles, no início da época helenística,
estava brilhantemente representada. Teofrasto, que vinha de Lesbos, foi
o primeiro sucessor de Aristóteles; e se é conhecido pelos seus Carac­
teres, esta pequena obra de moralista era apenas parte minúscula da sua
obra. Tal como o seu mestre, ele ocupava-se da metafísica, da física, da
história natural, da retórica e da poesia. Possuímos dele, ainda, dois trata­
dos de botânica. Esta ampla curiosidade era característica da escola (excep-
tuando Clearco): Teofrasto desenvolveu-a tão bem que acabou coberto de
glória. Teve por sucessores, na direcção da escola, Estráton de Lâmpsaco,
e depois outros, menos conhecidos. Mas desde a época de Teofrasto que
constatamos o gosto, que ela devia conservar, pelos diversos aspectos
da realidade concreta. Aristóxeno de Tarento, um outro discípulo de Aris­
tóteles, que foi, também ele, autor de uma obra enorme, distinguiu-se
como teórico da música; estudou a harmonia e o ritmo, o que o levou a
interessar-se pelas tradições pitagóricas. Escreveu igualmente biografias
- um género então relativamente novo. Quanto a Dicearco, também ele
aluno de Aristóteles, interessou-se pela história e pela geografia (escre­
veu, entre outras, uma Vida da Grécia). Não nos surpreendemos, pois,
de ver a escola peripatética manter ligações com a vida política. Demé-
trio de Faleros, que administrou Atenas durante algum tempo, fora aluno
de Teofrasto (aliás, ele próprio escrevera sobre política); e Ptolomeu
mandou chamar a Alexandria, como preceptor, Estráton de Lâmpsaco,
o sucessor de Teofrasto na direcção do Liceu.
A Academia, entretanto, prosseguia a tradição platónica e até a socrá­
tica. Fê-lo de forma tímida até Arcesilau de Pítane, que assumiu a direcção
da escola em 268 e insistiu nas imperfeições do conhecimento sensível;
mas a escola só recuperou alguma autoridade com homens que ensinaram
em Roma, na época de Cícero, como Fílon de Larissa e Antíoco de Asca-
lão: eles misturaram à tradição platónica um considerável eclectismo.

266
A ÉPOCA HELENÍSTICA

A escola cínica teve um outro tipo de influência, que era mais uma
questão de tom e de modo de expressão. É a escola a que devemos a diatri­
be, ou escrito de propaganda misturado com sátira e polémica. Os primei­
ros cínicos foram Diógenes (um homem vindo de Sinope e que deveria
ficar célebre pela sua recusa de todas as convenções, tal como de todos
os confortos) e o seu discípulo Crates. Os seus continuadores, Bíon (um
liberto da região do Ponto), Teles, Menipo (um antigo escravo sírio) e
ainda outros escreveram violentas sátiras, na tradição de Hipónax, e tiveram
por isso alguma influência na sátira romana: o título de Varrão, Sátiras
Menipeias, lembra o nome de Menipo. Do ponto de vista filosófico, esta
exigência moral e esta recusa das convenções pôde, pelo menos, encontrar
algum eco na grande escola que marcou a época helenística: o estoicismo.
O estoicismo antigo começa com Zenão; que foi seguido por Clean-
tes e Crisipo.
Zenão era de Cicio (uma colónia de origem fenícia em Chipre); con­
vém não o confundir com Zenão de Eleia, que viveu no início do século v:
o fundador do estoicismo parece ter vivido de 333 a 262 (mais ou menos
anos, os testemunhos são incertos, sobretudo para o seu nascimento).
Foi para Atenas ainda jovem e, primeiro, foi aluno do cínico Crates. Em
301, começou o seu ensino (que não era pago). No total parece ter escri­
to muito; mas a sua obra perdeu-se.
Cleantes de Asso (na Ásia Menor) chegou a Atenas em 282; era
robusto e pobre. Foi um sucessor fiel de Zenão; conserva-se dele um
Hino a Zeus, de rara elevação. Depois, após alguns choques internos, os
destinos da escola foram entregues a Crisipo, que viera da Cilicia e que
viveu até ao final do século m (morreu entre 208 e 204). Fora formado
na escola platónica e conservara uma útil experiência dialéctica que vol­
tou contra ela; tal como este, e mais ainda do que Zenão, escreveu muito;
os seus escritos perderam-se praticamente todos. Sabemos que se ocu­
pou da lógica, das percepções, das emoções, da providência, do destino.
Deu ao estoicismo a clareza das suas linhas; de onde o adágio «Sem Cri­
sipo não há Pórtico».
A história do estoicismo devia continuar depois de Crisipo; mas
podemos, devido a esse papel, definir desde logo o espírito, doravante
bem estabelecido. Definir o espírito não é analisar o sistema, que se funda
numa lógica e numa descrição do universo, pouco acessíveis ao profano.

267
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Importa apenas saber que o universo estoico é uno; nele reina um Logos
emanado de Deus e que comanda tudo na natureza. A necessidade que
o domina e que exprime uma estrutura é, ao mesmo tempo, destino e pro­
vidência. A sabedoria consiste, pois, em viver de acordo com ele. Com
efeito, não há qualquer contraste entre natureza e razão, que coincidem.
Distinguindo entre os bens, os males e as «coisas indiferentes», esta
filosofia coloca na terceira categoria a saúde e a doença, a beleza, a rique­
za, a vergonha e a pobreza: o seu valor depende do uso que se faz dela
e que deve ser guiado pela razão. A paixão, essa, é um movimento insen­
sato, uma doença da alma, devida ao erro. É preciso fazer de modo a
nunca nos deixarmos perturbar por ela. O sábio consegue-o. Apenas ele
possui todas as virtudes; apenas ele é verdadeiramente livre. Ele sabe
distinguir entre o que depende de nós e o que não depende de nós. Ele
espera a morte com um coração tranquilo. Ele evita tão bem as tiranias
da paixão como as oscilações da sorte. Consequentemente, para além
disso, este sábio não tem apenas a pátria como horizonte. Regula-se pela
ordem do mundo, mas é também um «cidadão do mundo».
Naturalmente, os homens em geral somente podem procurar este
ideal um pouco inumano através da prudência e da escolha de compor­
tamentos «convenientes».
Uma tal filosofia, pela própria força das suas exigências morais,
depressa se espalhou pelos quatro cantos do mundo: Babilónia, Alexan­
dria, depois Roma. É aí que a veremos tomar um segundo impulso (o
estoicismo médio) com Panécio (185-112) e Posidónio (135-51), à espe­
ra do estoicismo da época imperial, ilustrado por Séneca, Epicteto e
Marco Aurélio.
Panécio nasceu em Rodes, estudou filosofia em Atenas; mas foi
muito cedo para Roma, onde se tomou amigo de Cipião Emiliano e de
inúmeros Romanos. Moralista acima de tudo, teve imitadores latinos:
Cícero, no De Officiis(4) reconhece-se como um deles.
Quanto a Posidónio, veio de Apameia, na Síria, e foi aluno de Pané­
cio. Fundou uma escola em Rodes. Mas manteve relações com Roma,
foi amigo de Pompeio e de Cícero, que o foi encontrar em Rodes. Vemos

(4) N.T.: Existe uma tradução portuguesa: Cícero, Dos Deveres (De Officiis), (tradução,
introdução, notas, índice e glossário de Carlos Humberto Gomes), Lisboa, Edições 70, 2000.

268
A ÉPOCA HELENÍSTICA

a sua influência em muitos domínios, porque, para além das suas obras
de moral, ou os seus trabalhos sobre os deuses (utilizados por Cícero),
trabalhou como geógrafo e historiador (cf. pág. 301).
É por intermédio destes dois homens, vindos de Rodes e da Síria,
que a tradição da filosofia grega penetrou verdadeiramente no pensa­
mento romano e lhe deu o essencial dos seus princípios morais. E por
eles, progressivamente, chegou ao Renascimento e aos nossos dias. Entre
os nomes aqui referidos, muitos são pouco conhecidos do grande públi­
co; mas foi graças a eles que o termo «stoique» passou para o francês (5).
Passa-se o mesmo com o termo «epicurista», que adquiriu um sentido
quase contrário e muito diferente do que a doutrina, de facto, implicava.
Epicuro era de Samos, mas cidadão ateniense. Nascido em 341,
como Menandro, foi muito cedo para Atenas, viajou muito, depois vol­
tou para se fixar em Atenas e aí abriu a sua escola em 306: a sua filoso­
fia espalhou-se dali por todo o Mediterrâneo; morreu em plena glória,
em 270. Dito de outro modo, o seu ensino foi (com alguns anos de dife­
rença) paralelo ao de Zenão. A sua obra não está mais bem conservada
que a do seu rival. Sabemos que ensinava com uma sedução particular.
Sabemos que escreveu todo o tipo de tratados, sobre a natureza, o bem
supremo, sobre a justiça, etc. Tudo isso se perdeu; e as três cartas trans­
mitidas por Diógenes Laércio devem ser utilizadas com prudência. Tam­
bém escreveu excertos e máximas, algumas das quais chegaram até nós.
Mas estes restos seriam muito pouco se não tivéssemos os testemunhos
de alguns discípulos e continuadores.
Os papiros carbonizados de Herculano deixaram textos de Filode-
mo de Gádaros (segunda metade do século i a. C.), com resumos e cita­
ções de Epicuro. Na Lícia, uma inscrição chegou mesmo a revelar os
grandes princípios que o epicurista Diógenes de Enoanda queria deixar
aos seus concidadãos (200 d. C.). Mas tudo isto, bem entendido, não se
compara ao testemunho do poeta latino Lucrécio (primeira metade do
século i a. C.).
A doutrina epicurista foi elaborada a partir do atomismo de Demó-
crito (revisto, quer por Epicuro, quer por um dos seus discípulos, graças
à ideia do clinamen, que faz com que os átomos se desviem e que os leva

(5) N.T.: O mesmo poderíamos dizer para o termo «estoico» em português.

269
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

a reencontrar-se). Este mundo, portanto, opõe-se ao estoico: apenas o acaso


reina sobre a matéria; não obedece nem a uma providência nem à razão.
Opõe-se, também, ao platonismo, dado que é um materialismo e exclui
a ideia de uma alma imortal. Mas estas características deviam permitir ao
homem banir o receio no além e garantir-lhe a serenidade, ou ataraxia.
Com efeito, Epicuro pretende, antes de mais, arrancar o homem às suas
crenças irracionais e ensiná-lo a conquistar a paz. Para isso, é necessário
um esforço. E, assim, compreendemos que, partindo de mundividências
diametralmente opostas, epicurismo e estoicismo cheguem a morais que,
por vezes, se assemelham. Porque a serenidade, que Epicuro persegue,
supõe, como no estoicismo, mas por outras razões, o domínio dos desejos
e das paixões. O critério de felicidade é o prazer; mas este prazer não tem
muito a ver com os prazeres desordenados dos sentidos. Desembaraçam-
-se do amor, que não pode, de todo, perturbar o homem. Evitam a vida
política. Concentram-se de preferência nas alegrias doces da amizade (sabe­
mos que o próprio Epicuro manteve com o seu discípulo Metrodoro uma
amizade modelo e quase lendária). Em suma, «deus não deve ser receado,
a morte nada é para nós, o bem é fácil de alcançar e o sofrimento fácil
de suportar» (ed. Usener, 69, 17); tal como no estoicismo, o sábio é livre
a basta-se a si mesmo.
Certamente, uma maior ou menor indiferença relativamente às regras
da sociedade em matéria de prazer e de decoro podia dar do epicurismo
uma ideia talvez enfadonha; e esta aceitação do prazer como regra (que
faz pensar em Aristipo) também podia dar azo a um equívoco ou a vas­
tas interpretações; mas, no seu princípio, o epicurismo exigia o domínio
de si e a firmeza, mais do que poderíamos pensar.
De resto, os mal-entendidos não poderiam surpreender. Estas esco­
las estavam em luta contínua. O epicurismo opunha-se ao platonismo
(vemo-lo com o epicurista Colotes, contra quem escreveu Plutarco); tam­
bém se opunha ao estoicismo. As escolas acompanhavam-se de perto; e
conservamos a lembrança de uma embaixada ateniense a Roma, em 156,
constituída pelo chefe da Academia (Caméades), um peripatético e um
estoico. E, o que é mais importante, Caméades afastou-se tanto de Pla­
tão que escandalizou ao negar o papel da justiça!
Mas os cépticos não esperaram por esse momento para se rirem destas
querelas e destas doutrinas: Pírron já era conhecido quando Aristóteles

270
A ÉPOCA HELENÍSTICA

morreu; o seu discípulo Tímon de Fliunte teve uma boa oportunidade


para ridicularizar, nos seus Silloi, a grande batalha entre filósofos... Para
os cépticos valia mais suspender o juízo, limitar-se aos sentidos e con­
servar a moderação nos sentimentos. Este empirismo devia conduzir, no
império, ao verdadeiro cepticismo - o de Sexto Empírico.
Entretanto, as escolas em competição aproveitavam, talvez, a influên­
cia tónica da emulação. Sempre é certo que a Grécia da época helenística
transmitiu bem viva a Roma esta herança de doutrinas e de aspirações;
e nenhum aspecto da cultura grega podia adaptar-se e desenvolver-se a
este ponto.
Teve apenas alguns contributos novos, à margem destes sistemas, à
margem da tradição ateniense.
Entre eles, importa referir, primeiro, pelo menos como memória, os
escritos pseudo-pitagóricos, cuja data e autenticidade foram muito dis­
cutidas, mas que podem remontar aos séculos m ou n; trata-se de uma
literatura perdida em grande parte, de alcance científico, que se reclama­
va da tradição de Pitágoras.
No entanto, os contributos mais interessantes deviam vir do mundo
judeu: Alexandria era bastante indicada para desempenhar o papel de
intermediário, dado que aí os judeus eram numerosos.
Para eles traduziram-se em grego as Escrituras: foi a obra dos «seten­
ta»; e conservou-se um pequeno tratado que comemorava esta tradução,
escrito sem dúvida em finais do século 11: é a Carta de Aristeu a Filós-
trato. Ela conta a recepção dos tradutores por Ptolomeu, apresentando
nesta ocasião um verdadeiro diálogo sobre o bom rei. A Bíblia devia, a
partir daí, aumentar a quantidade de textos escritos em grego: as trocas
culturais foram, daí em diante, uma realidade.
De facto, mesmo no fim do período helenístico, ou até no império,
o filósofo Fílon, a quem chamamos Fílon, o Judeu, ou Fílon de Alexan­
dria, devia ser uma ilustração viva desta dupla pertença. A época em que
viveu ficou conhecida pela sua embaixada a Roma, em 39 d. C. A sua cul­
tura grega era autêntica e natural; escreveu um grego muito bom; por outro
lado, foi penetrado pela filosofia grega e a sua religião sofreu a influência
do platonismo. No entanto, toda a sua obra foi consagrada à exposição, à
defesa, à exegese da lei judia. Daí resulta que tenhamos dele inúmeros tra­
tados (mais de trinta) que têm um ritmo muito grego, mas cujo conteúdo

271
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

religioso é autenticamente bíblico. Podemos referir os tratados Sobre


a criação do mundo, Sobre Abraão, Sobre os sacrifícios de Abel e de
Caim, etc. Fílon usa, por vezes, o método alegórico (um método grego)
na interpretação da Bíblia. Também combina a exegese propriamente
dita e estritamente técnica com uma preocupação de propaganda junto
de um público vasto (como na Vida de Moisés).
Esta orientação é característica: de facto, Alexandria iria conservar-
-se durante muito tempo como o lar de inúmeras aspirações religiosas,
enquanto Roma desenvolvia os grandes sistemas racionalistas do paga­
nismo tradicional.

III.
A POESIA ALEXANDRINA

Atenas permanecia como centro onde florescia a comédia, onde se


encontravam os filósofos: a poesia, essa, seguia o movimento que fazia
com que se espalhassem novos focos de cultura. Foi assim que teve por
centro Alexandria e a corte de Ptolomeu.
Esta corte encorajava a actividade intelectual. Alexandria, muito
cedo, foi dotada de um Museu para as conversas e os trabalhos protegidos
pelas Musas, de um observatório, de um jardim botânico e, sobretudo,
de uma biblioteca (e até de duas). Os Atálidas também fundaram uma em
Pérgamo. E as duas dinastias competiam pela aquisição de obras. Conta-
-se que qualquer navio que chegava ao Egipto devia entregar os seus
livros. E fala-se de compras, de empréstimos não restituídos. Tratava-se,
diz um texto, de reunir «todos os livros aparecidos no mundo inteiro».
Também era preciso restaurá-los, copiá-los, classificá-los. Eruditos ilus­
tres, verdadeiros filólogos, presidiram a esse trabalho. Zenódoto foi o pri­
meiro; houve, depois, o poeta Apolónio de Rodes, o historiador e geógrafo
Eratóstenes (que mediu a circunferência da Terra), mais tarde Aristófa-
nes de Bizâncio e, por fim, Aristarco, cujo nome iria tomar-se sinónimo
de «crítico erudito». Foram estes eruditos que organizaram e fixaram,
de forma crítica, os textos de poetas gregos: Zenódoto e Aristarco foram os
grandes editores de Homero, Aristófanes de Bizâncio foi-o dos líricos,
dos trágicos e de muitos outros. Em Alexandria, também se ocupavam

272
A ÉPOCA HELENÍSTICA

da gramática; e a cidade viu nascer uma quantidade de tratados e de


comentários que iriam resultar na enorme obra de Dídimo neste domínio.
Numa palavra, até meados do século n, quando os Ptolomeus se tomaram
ao mesmo tempo menos hospitaleiros e menos poderosos, Alexandria
foi um foco cultural incrivelmente activo.
Numa tal atmosfera, a poesia devia ser estimada; mas, desde logo,
adquiriu um novo carácter: tornou-se obra de eruditos, de pessoas cul­
tivadas, de homens de letras. Calímaco e Apolónio de Rodes viveram
ambos em Alexandria, na primeira metade do século m e ambos se ocu­
param da Biblioteca. Teócrito foi para lá pela mesma altura, tal como o
poeta erudito Lícofron: esta tradição especificamente alexandrina teve
como principal representante Calímaco.

1. Calímaco e Apolónio de Rodes: a escola erudita

Calímaco nasceu pouco antes do início do século iii, numa família


nobre de Cirene, uma colónia grega na costa da Líbia. Primeiro, teve em
Alexandria um ensino modesto; mas rapidamente foi encarregue do
importante trabalho de preparar a Biblioteca. Redigiu listas de autores e
de obras (os Pinakes ou Quadros) em cento e vinte livros. As críticas de
pormenor que Aristarco e outros fizeram a estas listas são mínimas; e
provam o rigor dos círculos eruditos.
Mas Calímaco não era apenas um erudito: era um poeta, cuja obra
(de 280 a cerca de 240) foi considerável. Falam-nos de oitocentos volu­
mes! De facto, de todos os seus escritos apenas subsiste o suficiente para
encher um. Mas, graças aos diversos achados nos papiros ou nas tabui-
nhas de madeira, graças também aos resumos, encontrados igualmente
em papiros, em 1934, podemos fazer uma ideia bastante clara da sua
obra e do seu talento.
Era um poeta erudito: variava os metros e o dialecto de acordo com
o género literário adoptado, escrupuloso na versificação, interessando-
-se por toda a antiga herança de mitos e de ritos, curioso em explicá-los
e em extrair dele imagens aprazíveis. Era também um poeta cortesão;
e o elogio da família real mistura-se, geralmente, com as evocações da
antiga lenda.

273
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

As mais bem conservadas das suas obras são os Hinos e osAitia (ou
Origens).
Os Hinos, na sua forma exterior, lembram os Hinos homéricos. Pos­
suímos, pela tradição manuscrita, seis hinos (a Zeus, a Apoio, a Artemis, a
Delos, pelo banho de Palas, e a Deméter); apenas o hino para o banho de
Palas foi escrito em metros elegíacos. De resto, as datas e os tons variam
de um poema para outro. Mas, quaisquer que sejam as diferenças entre
eles, todos se afastam bastante, pela inspiração, dos hinos antigos. Já não
têm a fé simples dos seus modelos, antes oferecem uma série de anedotas
e de quadros de género, em que por vezes se manifesta o humor e onde
a graça aparece sempre. O gosto pelas curiosidades do culto manifesta-
-se também a cada instante.
Nisto, os Hinos estão próximos dos Aitia (ou Origens), um grande
poema em quatro livros e em metros elegíacos, no qual o poeta interro­
ga em sonhos as Musas sobre os heróis e os deuses. O início, com o
encontro das Musas no Hélicon, situa-se, evidentemente, na sequência
de Hesíodo; mas as revelações das Musas aqui tomaram-se familiares e
agradáveis. Os grandes temas clássicos são evitados: o poeta inclina-se,
de preferência, para uma série de pormenores episódicos e quase folcló­
ricos. Assim, no livro I: porque é que em Paros sacrificamos às Cárites
sem flauta nem coroas? E a lembrança de um episódio na vida de Minos.
Ou então, como interpretar os sacrifícios que incluem imprecações? E a
recordação de um episódio na história dos Argonautas... De cada vez,
trata-se de curiosidades locais, de lendas pouco conhecidas; um dos raros
excertos conservados é uma linda história de amor (Acônci e Cidipe),
que será retomada por Ovídio. Não parece que seja necessário procurar
para o conjunto um tema único, que servisse de fio condutor: pelo con­
trário, a variedade é a regra. Aliás, Calímaco sempre recusou os grandes
conjuntos. Prefere a brevidade, o pormenor perfeito e isolado. E assim
que declara, na Resposta aos Telquines, que prefere o caminho estreito
à estrada principal e o canto das cigarras ao estrépito dos burros.
Esta Resposta aos Telquines, que é uma parte de uma polémica lite­
rária, encontrada num papiro, pôde servir de prólogo às Origens, mas
com a condição de que o prólogo viesse fora de tempo; porque ali o poeta
fala da sua idade e dos seus cabelos brancos. Por outro lado, o poema
elegíaco intitulado Cabeleira de Berenice e que glorifica a oferenda feita

274
A ÉPOCA HELENÍSTICA

pela rainha Berenice aquando do regresso triunfal do seu jovem marido,


Ptolomeu 111 Evérgeta, em 246-245, pôde, em condições equivalentes
ser associado à mesma recolha. Este poema foi traduzido por Catulo.
De resto, como saber? E o que importa a recolha? Calímaco trata
tudo por meio de pequenos quadros separados. Dele temos alguns frag­
mentos de elegias (não sentimentais), de jambos, de epigramas (que
foram conservados na Antologia Palatina). Até o poema de ritmo épico
que compôs, Hécale, parece ter tratado o mito antigo (o de Teseu e do
touro de Maratona) por meio de pequenos toques justapostos, de carác­
ter gracioso e familiar. Embora Teseu seja o herói, o poema chama-se
Hécale, do nome da pobre velha em cuja casa ele parou; e uma passagem
encontrada numa tabuínha punha, diz-se, dois pássaros a dialogar entre
si. A própria erudição do poeta toma-lhe as lendas familiares e faz com
que o mundo esteja muito próximo.
Nada disto, finalmente, impede de modo algum o toque pessoal: ao
mesmo tempo que fala dos heróis ou dos deuses, nas sinuosidades da
sua obra, Calímaco fala-nos da sua cidade, Cirene, do reconhecimento
pelos seus augustos patronos, dos seus inimigos literários... A sua vida
e as suas leituras misturam-se: Calímaco é, verdadeiramente, um homem
de letras, no sentido moderno do termo.
Teve por aluno um outro poeta erudito, Apolónio de Rodes, que, ape­
sar do seu nome, deve ter nascido em Alexandria. Foi, parece, o suces­
sor de Zenódoto na direcção da Biblioteca e o preceptor de Ptolomeu III
Evérgeta. Mas as coisas estragaram-se quando fez, em Alexandria, uma
primeira leitura do seu poema: foi um revés total; zangou-se com Calíma­
co e exilou-se em Rodes. O acolhimento que teve aí explica que tivesse
conservado o nome. Mas, para além destas grandes linhas, não sabemos
muito da sua vida; os testemunhos contradizem-se. A data do seu nasci­
mento é incerta. Também não sabemos se, depois do sucesso que obteve
em Rodes, voltou para Alexandria: uns afirmam-no, mas podem perfei­
tamente estar enganados. Também desconhecemos quando é que morreu.
O que sabemos é que foi o autor das Argonáuticas, um grande poema,
sem dúvida retocado em Rodes (os testemunhos falam de duas edições
sucessivas). Ora, desta vez, este poema foi conservado integralmente.
É um poema seguido, em quatro cantos, consagrado à longa viagem
que Jasão e os seus companheiros fizeram até à Cólquida, para ir buscar

275
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

o Velo de Ouro. O tema era antigo; pertencia ao ciclo homérico, inspi­


rara inúmeras tragédias e muitos poemas (não só a Pítica IV de Píndaro,
mas também epopeias inteiras, hoje perdidas). Por outro lado, ao reto­
mar este tema, Apolónio usufruiu das possibilidades que ele lhe propor­
cionava de associar diversas lendas; com efeito, nos dois primeiros livros,
trata-se de uma longa viagem, onde cada etapa é ocasião para evocar
algum dado mitológico: assim, a escala em Lemnos é uma ocasião para
evocar o crime das Lémnias e Hipsípile; ou então, encontramos, um pouco
mais longe, Fineu, o profeta amaldiçoado a quem as Harpias arrancam
da boca qualquer alimento; mas há também muitas lendas conhecidas que
ali aparecem. É o poema de um homem alimentado de mitologia e que
se compraz com narrativas pitorescas. Convém acrescentar que a própria
geografia o retém de boa vontade: a descrição do regresso, no livro IV,
combina as duas numa geografia imaginária.
Nesta curiosidade erudita reconhecemos o gosto de Calímaco. E se
Calímaco podia ser hostil ao princípio de um poema tão longo, a com­
posição introduz-lhe uma variedade que o teria satisfeito. Entre os dois
homens houve uma troca de alusões, de protestos; mas, a nós, as seme­
lhanças impressionam mais do que as diferenças.
Tal como partilha a curiosidade erudita com o seu mestre, Apolónio
também partilha com ele o hábito da época e de se deleitar com um mundo
muito mais humano do que grandioso. Os heróis de Apolónio, como o
Teseu de Calímaco, afastam-se da grandeza heroica. Jasão assemelha-se
a um viajante a quem aterrorizava a vastidão da empresa. «Agora abate-
-se-me um receio imenso e preocupações insuportáveis, horrorizado por
atravessar num navio estes caminhos do mar, que nos gelam, horroriza­
do quando desembarcamos, em terra: por todo o lado estão inimigos.»
(II, 627-630). Do mesmo modo, Fineu, de quem falámos mais acima, é
um pobre velho, numa pobre casa. Os heróis e os deuses aproximam-se
da humanidade mediana. Algumas vezes, mistura-se até à sua evocação
uma certa ironia.
É por este meio que todo este poema, cheio de recordações literá­
rias, que imita Homero e lhe toma emprestadas as suas cenas divinas, as
suas cenas de batalha, as suas cenas de navegação, no fim das contas
consegue ser realista. Os seus heróis vivem numa natureza muitas vezes
próxima, bem observada, descrita brilhantemente. Os seus sentimentos

276
A ÉPOCA HELENÍSTICA

também são descritos nos seus aspectos mais humanos, o que não exclui
nem a complexidade, nem a força. O exemplo de Medeia, do seu amor
nascente, das suas emoções violentas, é o exemplo referido mais vezes.
E merece-o; porque, ao inspirar-se ora em Eurípides, ora em Safo, Apoló-
nio compôs um quadro do amor cuja influência iria ser considerável.
Apolónio escreveu outras obras: recolhas de poemas eruditos sobre
fundações de cidades, epigramas, uma obra erudita sobre Homero, um
poema sobre uma cidade próxima de Alexandria (Canobo). O facto de
as Argonáuticas terem sido a única obra conservada corresponde à impor­
tância do poema, talvez também a esta presença de sentimentos próxi­
mos e humanos, que lhe conferem um acento mais directo.
Não seríamos capazes de dizer outro tanto de Lícofron, um natural
da Eubeia que foi para Alexandria pela mesma época e ficou conhecido
como erudito e autor trágico: dele temos um poema épico, Alexandra,
que é um longo monólogo profético, escrito em estilo oracular e delibe-
radamente obscuro.
No entanto, a veia realista e a procura'de um quadro concreto e fami­
liar enquadravam-se bem no gosto da época: Teócrito é a prova disso.

2, Teócrito e Hcrondas: a escola familiar e realista

Teócrito praticou diversos géneros e escreve, por exemplo, hinos ou


epigramas. Mas a sua celebridade advém do facto de estar na origem de
um género literário com uma certa forma poética, designada para se tor­
nar célebre: é o idílio (do termo grego eidyllion, ou pequena peça, peque­
no poema) e a poesia bucólica (do termo grego boucolos, que significa
boieiro). Neste domínio teve antecessores, que se exprimiam pelo drama
satírico ou pelo ditirambo; mas foi ele que deu a este tipo de poesia uma
forma capaz de a impor.
A sua vida conhece-se mal. Desenrola-se ao longo de três centros:
Siracusa, a ilha de Cós e, naturalmente, Alexandria. Todos os três são,
de acordo com a ocasião, referidos com precisão na sua obra. Nasceu no
primeiro: e encontramos, nos poemas conservados, um idílio intitulado
As Siracusanas, ou as mulheres nafesta de Adónis (idílio XV) e um outro
intitulado As Cárites, ou Hierão, que inclui um elogio deste príncipe e

277
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

um pedido de protecção (idílio XVI): este último parece datar de 275.


É claro, aliás, que Teócrito deve muito ao género do mimo, praticado
entre outros pelo Siracusano Sófron, no século v. Mas Teócrito não ficou
em Siracusa. Sabe-se que viveu muito tempo na ilha de Cós (perto da Ásia
Menor), um pouco como Apolónio de Rodes. Faz muitas vezes referên­
cia aos homens ou às tradições de Cós; e o idílio VII (As Talísias) passa-
-se nessa ilha. Enfim, como todos os autores da época, Teócrito também
foi para Alexandria, procurar a protecção dos Ptolomeus. As Siracusanas
do idílio XV assistem a uma grande festa em Alexandria; o idílio XVII
é um Elogio de Ptolomeu e segue de muito perto, parece, o poema em
que apelava a Hierão (foi proposta a data de 270). Também possuímos
dele o fragmento de um poema intitulado Berenice, a partir do nome de
uma das rainhas do Egipto que teve este nome, sem que possamos dizer
com certeza qual era. Com efeito, as datas são muito incertas. E possível
que Teócrito tenha passado por Cós antes de ir para Alexandria; é pro­
vável que tenha regressado depois; de qualquer modo, a sua estadia em
Alexandria situa-se na época de Calímaco, a grande época da poesia ale­
xandrina.
Alguns dos traços da sua arte aparecem aí claramente. O gosto por
pequenas peças breves (50 a 150 versos) está no espírito de Calímaco;
também o hábito de tratar de uma forma próxima e humana os heróis
mitológicos (como no Héracles Menino). O retrato do amor, esse, apro­
xima-o de Apolónio, em quem fazem pensar certas passagens nos poemas
não bucólicos. Mas a sua originalidade - e o seu êxito mais claro - con­
siste precisamente na escolha de um quadro campestre e na adopção de
um realismo rústico.
E a ele que remontam todos aqueles pastores destinados a sobrevi­
ver mesmo nas literaturas modernas, os Dáfnis, os Córidon, os Títiro e
as suas amadas - pastores preocupados com poesia e competições musi­
cais, pastores apaixonados e temos, mas todavia pastores, que ordenham
os seus animais, fazem os seus queijos, penando ao sol e, por vezes, persu­
adidos de que isso é o essencial. E mais, Teócrito deleitou-se a transmi­
tir com uma divertida fidelidade a linguagem ingénua dos seus pastores
e das suas personagens em geral.
Daí uma mistura, própria dele, de realismo e de convenção artística,
de comédia e de lirismo.

278
A ÉPOCA HELENÍSTICA

Esta mistura é válida para todos os idílios; e dois exemplos provam-


-no bem.
O idílio das Siracusanas começa como uma comédia. Aliás, muitos
idílios são diálogos: os idílios IV, V e X põem, assim, a dialogar, cabrei­
ros e pastores, ou então ceifeiros. Nas Siracusanas, trata-se de duas mulhe­
res e muito bem observadas. Logo no início a mulher queixa-se do marido,
ocupa-se do bebé, geme pelos defeitos da pequena serva. Depois, as duas
mulheres partem para a festa, são apanhadas na barafunda, falam com uma
velha, são repreendidas porque falam demasiado, etc. Mas isto não impe­
de que o poema termine com a reprodução do belo canto, que ambas ouvem
em honra de Adónis: a comédia toma-se lirismo.
Também o idílio II (As Feiticeiras), muito diferente na estrutura,
concilia realismo e transposição poética. Evoca concretamente a paixão
de uma pobre mulher, que o amante abandona, e que recorre ao ritual
mágico para tentar recuperá-lo: Teócrito não esconde nada desta vida, ao
mesmo tempo modesta e crédula. Mas a força dos sentimentos é descri­
ta de uma forma que nos leva novamente a pensar em Safo e em Medeia;
além disso, o próprio ritual, que o poema evoca, com o seu refrão mági­
co, transforma a própria narrativa num encantamento.
Todas as formas de amor se encontram em Teócrito - o amor pelos
jovens, o amor pelas mulheres, paixões vãs, como a do Ciclope pela bela
Galateia, e alegres galanterias, em que se bebe alegremente... Encontra­
remos esta variedade naqueles poetas que, depois de Teócrito, praticaram
ao mesmo tempo o género bucólico e a agradável narrativa mitológica,
como Mosco de Siracusa (século n) e Bíon de Esmima. Mas a origina­
lidade de Teócrito continua a consistir no facto de que o resultado destes
amores é o canto, o canto referido no poema, o canto admirado pelas
personagens, resolvendo tudo em harmonias, cuja beleza se torna uma
alegria comum. Por aí, Teócrito une o gosto familiar à estética; e o resul­
tado consiste em fazer entrar as suas personagens, em princípio tão reais,
no mundo fictício da literatura.
E aqui, partindo do mimo, Teócrito é profundamente diferente. Cons-
tatamo-lo ao aproximá-lo de Herondas.
Herondas não foi o primeiro nem o único a praticar o mimo. Já o
Siracusano Sófron foi referido a propósito de Teócrito. Hipónax de Éfeso,
autor de poemas jâmbicos, ainda mais antigo, fora conhecido pela sua

279
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

liberdade de expressão. Criou um metro, o coliambo (ou «jambo coxo»)


que, ocasionalmente, Teócrito, Calímaco e um tal Fénix de Cólofon pra­
ticaram. Herondas teve a ideia de adaptar este metro, sugerindo a troça,
ao mimo: foram os «mimiambos».
Herondas vivia em Cós, onde vimos que Teócrito esteve uma tem­
porada. As datas parecem coincidir, porque encontramos em Herondas
alusões a acontecimentos situados entre 270 e 221. Com efeito, possuí­
mos, desde 1890, graças a uma descoberta papirológica, fragmentos
muito importantes dos seus mimos. São diálogos (como alguns idílios
de Teócrito), mas muito mais realistas e mais duramente satíricos. Há
cenas da vida cortesã, como a visita das mulheres ao sapateiro. Mas, na
maioria das vezes, Herondas apresenta um mundo pouco edificante: alco-
viteiras ou comerciantes de raparigas, mulheres curéis e ciumentas, uma
das quais se irrita com um escravo, que era mais do que um escravo,
mulheres casadas muito ocupadas com a satisfação sexual. Encontramos
o tema das visitas de comadres, como em Teócrito; mas a visita volta-se
para preocupações menos decentes que a de ir celebrar uma festa. Heron­
das é um moralista sem piedade que, se deforma a realidade, não é para
retirar mais harmonia, mas para a caricaturar.

3. A poesia didáctica: Arato e Nicandro de Cólofon

Pelo gosto das pequenas cenas familiares, Calímaco e Teócrito asse-


melham-se: o gosto pela erudição e pelas explicações eruditas aproxima
mais Calímaco de Arato. Aliás, todo este mundo é uno: um dos epigramas
de Calímaco defende, assim, a obra de Arato. Nascido na Cilicia, per­
maneceu na corte da Macedónia (sob Antígono Gónatas, que se tomou
rei em 276); não se sabe se foi para Alexandria. Filósofo e matemático,
apresentou nos seus Fenómenos os conhecimentos da época em matéria
de astronomia. Os seus outros poemas eram poemas de circunstância,
hoje perdidos; mas os Fenómenos foram muito célebres e muito admi­
rados; foram citados, foram comentados; e o poema foi conservado. Está
em hexâmetros e tem um pouco mais de 1000 versos. Embora seja sen­
sível a influência de Hesíodo, a inspiração vem sobretudo das doutrinas
então favorecidas: o início é uma espécie de hino a Zeus, que faz pensar

280
A ÉPOCA HELENÍSTICA

no estoico Cleantes; o fim ocupa-se de meteorologia de uma forma que


faz pensar em Teofrasto.
O modelo do poema científico, que ele ilustrou e contribuiu para
promover, encontra-se em Nicandro de Cólofon, um autor sobre o qual os
testemunhos são confusos e contraditórios, mas que viveu no século m e
de quem se conservaram dois poemas em hexâmetros, os Theriaka, sobre
mordeduras e remédios, e os Alexipharmaka, sobre contravenenos; uma
das fontes é Apolodoro, que tratara estas questões em Alexandria; a forma
é bastante abrupta. Um outro poema, perdido, tratava das metamorofo-
ses, um tema que estava muito no gosto alexandrino e que Ovídio iria
retomar. Nicandro também escreveu grande número de outros poemas,
bem como obras em prosa.
Esta divulgação por letrados era, evidentemente, muito apreciada.
Os nomes de Filostéfano de Cirene, Eratóstenes, Apolodoro de Atenas,
Fânocles, Parténio, Eufórion de Cálcis e outros são a prova. Eratóstenes e
Apolodoro são autênticos sábios e também escreveram em prosa. O Her­
mes do primeiro, em hexâmetros, evocava ao mesmo tempo a lenda do
deus e a harmonia das esferas; o Comentário sobre o catálogo das naus,
do segundo, e as suas Crónicas, em trímetros jâmbicos, são ainda mais
eruditos. A poesia erudita da época helenística mais não fez do que orna­
mentar o saber de uma forma mais rebuscada. A este respeito, está estrei­
tamente ligada à literatura científica ou histórica, que então florescia.
E por isso que podemos passar directamente de uma à outra. No
entanto, negligenciar o facto de que todas as formas de poesia foram,
então, praticadas seria falsear o quadro. O teatro continuava; Lícofron
de Cálcis praticou, para além da epopeia, o drama histórico e o drama
satírico, sem contar com o seu poema Alexandra, já referido. O epigrama,
num outro domínio, tinha um grande desenvolvimento; podemos julgá-
-lo pelas inscrições; mas os epigramas não resultavam forçosamente em
inscrições: na época alexandrina, o género desenvolveu-se livremente;
foi praticado por Calímaco e Teócrito, e por homens como Asclepíades
de Samos (de quem Teócrito fala) ou Heraclito de Halicarnasso (a quem
Calímaco consagra uma elegia), mais tarde ainda por outros, como Meléa-
gro de Gádaros. Estes pequenos poemas foram muitas vezes agrupados
em recolhas e deram origem a duas vastas colecções, constituídas na

281
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

época bizantina, a «Antologia Planudea» e a «Antologia Palatina» (cons­


tituída cerca de 1060 e encontrada apenas no início do século xvn).
Portanto, o espírito alexandrino ensaiou com um sucesso desigual
todos os géneros de poesia.

IV.
CIÊNCIAS DA NATUREZA E DO HOMEM

A prosa grega da época helenística já não se inscreve no quadro da


época anterior. A eloquência política, que era tão importante, desapare­
ceu, bem como os tratados empenhados na acção. A eloquência tomou-se
um assunto de retores. Inversamente, dado que o saber se especializava,
vemos aparecer todo o tipo de escritos eruditos, publicações científicas,
debates técnicos. Estes escritos estão hoje perdidos; mas tiveram um
grande papel na história das ideias. Sobreviveu apenas uma obra própria
para se impor a um público mais vasto, porque tratava de história; ainda
foi necessário que ela tivesse por tema a potência política que iria suplan­
tar as monarquias helenísticas e as suas querelas, para estabelecer uma
nova ordem: a de Roma.

1. O grande número de obras perdidas

As obras perdidas são múltiplas: apenas podemos referir alguns


nomes, que sugerem a abundância de um novo género.
Da eloquência bastará dizer que assistimos ao nascimento de uma
reacção contra o antigo domínio do aticismo: retores da Ásia Menor, entre
os quais o primeiro parece ter sido Hegésias de Magnésia, fundam aquilo
a que se chamou asianismo, que foi o período de elegância para procurar
os efeitos de surpresa, as figuras, a magia do verbo. Inversamente, a esco­
la de Rodes lutava contra o asianismo, atinha-se à investigação lógica.
Essas discussões relativas à forma foram, aliás, assimiliados e suplan­
tados pelas ciências exactas.
A geografia, cuja presença salientámos no poeta Apolónio de Rodes,
talvez devesse um pouco da sua voga às expedições longínquas de Ale-

282
A ÉPOCA HELENÍSTICA

xandre. Aliás, na mesma altura, o Marselhês Píteas partia para explorar


as regiões do Norte da Europa e as suas narrativas espalhavam o assom­
bro. Na época alexandrina, ela foi ilustrada sobretudo por Eratóstenes,
um homem de Cirene, como Calímaco, e um dos bibliotecários de Ale­
xandria (recebeu o cargo em 246); no intervalo, fizera estudos em Ate­
nas. Foi referido aqui como poeta; também escreveu sobre comédia e
teve um papel importante pelas suas investigações de cronologia. Mas,
acima de tudo, dotado de uma sólida formação científica, aplicou-a à
geografia. Ao medir as sombras, com o auxílio de uma espécie de qua­
drante solar chamado gnômon, calculou a periferia da Terra. A partir daí,
iria conservar-se a tradição da geografia científica. Encontramo-la em
Posidónio.
A astronomia estava, evidentemente, associada a essa geografia. Refe­
rimos a sua presença no poema de Arato, os Fenómenos. Mas, neste domí­
nio, o grande nome a reter é o de Hiparco, um homem de Niceia, na
Bitínia, que estava, na realidade, a criticar Arato. Trabalhou em Rodes e
em Alexandria; e parece ter-se informado sobre a astronomia babilónica.
Preocupava-se com a observação exacta - o que é um sinal dos tempos:
aperfeiçoou os instrumentos (o dioptro); e os seus cálculos sobre o movi­
mento dos astros marcam um pico na astronomia grega. Chegou até a
descobrir a precessão dos equinócios; e isto no século n a. C.
Esta astronomia pressupunha a matemática. Ora, em Alexandria, no
início do século m, um indivíduo acabava de apresentar as bases da geo­
metria: era Euclides, autor dos célebres Elementos, que foram autoridade
durante vários séculos; Euclides apresentou os princípios da geometria
plana, da álgebra geométrica, dos irracionais, da geometria no espaço.
Teve um continuador na pessoa de Arquimedes. O Siracusano, que morreu
em 212, aquando da tomada da sua cidade pelos Romanos, ficou célebre
pelas suas invenções mecânicas e pelo seu papel na defesa de Siracusa; mas
era, acima de tudo, um homem dedicado à ciência pura, que se ocupou, por
exemplo, da Quadratura da parábola ou da Medida do círculo ou das Espi­
rais. Depois dele, Apolónio de Perga prosseguiu investigações comparáveis
(sobre os Cónicos). A acústica, a óptica, a álgebra também eram objecto do
seu interesse: aqui, a história da literatura deixa de ser literária.
Em contrapartida, volta a sê-lo com a história, que assume um novo
contorno.

283
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Já um historiador como Dúris de Samos (que viveu sensivelmente


entre 340 e 270 e escreveu uma história que ia de Filipe da Macedónia
até Pirro, bem como outras obras) lamentava-se do carácter demasiado
temo da escola isocrática: ele queria uma história mais dramática e mais
colorida - com o risco de ser menos exacta. Quanto a isto, as conquis­
tas de Alexandre e as diversas desordens que daí resultaram, fazendo
com que novos centros acedessem à vida política, constituíram para os
historiadores um poderoso estímulo. Todo o fim do século iv e início
do ui vêem multiplicar-se as Histórias de Alexandre, escritas por homens
que o tinham acompanhado e tinham desempenhado alguma função
junto dele. Foi o caso de Ptolomeu I, que se servia da experiência directa,
completada pelas Efemérides do comando real; a sua História de Ale­
xandre, hoje perdida, serviu mais tarde a Arriano. Foi, também, o caso
de homens menos importantes, como Onesícrito, Cares, Mársias de Pela,
Aristobulo, Nearco e muitos outros. Jerónimo de Cárdia, esse, narrava
o período imediatamente posterior: tivera aí um papel activo. Mas se as
suas investigações eram sérias e objectivas, o atractivo da personagem
de Alexandre iria igualmente exercer na história um outro tipo de influên­
cia, que ia ao encontro do gosto de Dúris: as aventuras do conquistador e
os seus dons sem igual convidavam, de facto, a desenvolver um género
de história romanceada e retórica. O retor Hegésias, já referido pela sua
acção de ordem técnica, escreveu, tal como Clitarco, narrativas relativas
a Alexandre e concebidas no novo gosto. Daí, chegar-se-ia rapidamente
a sair completamente da história: vemo-lo naquilo que se designou por
Romance de Alexandre - um texto atribuído a Calístenes e conhecido
numa versão tardia. A obra, que foi traduzida em latim e em arménio,
continha evocações muito imaginárias e servia-se de cartas, escritas
com toda a liberdade própria do romance. E como esquecer que a nossa
Idade Média iria ficar tão encantada com estes romances de Alexandre,
a ponto de podermos ver aí a origem do romance francês chamado «ale­
xandrino»? Depois de ter sido, na altura, um centro de interesse para os
historiadores, Alexandre tornou-se, assim, com o tempo, um herói de
ficção.
Entretanto, a história continuava. Depois de Alexandre, caímos numa
era de inúmeros historiadores, cuja obra está quase totalmente perdida,
com as Helénicas, à maneira de Xenofonte, histórias locais (da Lícia, do

284
A ÉPOCA HELENÍSTICA

Egipto, da índia), monografias sobre indivíduos ou memórias (como


Pirro ou Arato) - isto sem contar com a renovação dos Atis (como Filó-
coro), ou as investigações e teorias (como Evémero, que racionalizava
os mitos).
Timeu deve ser posto à parte. Nascido em Tauroménio, na Sicília,
em meados do século ív, participou na vida política e teve de se exilar.
Viveu, então, muito tempo em Atenas. As suas Histórias (em 38 livros)
tratavam dos Gregos do Oeste até à primeira guerra púnica; a última
menção diz respeito à morte de Agátocles de Siracusa (em 289). Conse­
quentemente, com ele vemos já o interesse deslocar-se para Ocidente,
antes de se centrar em Roma. Em contrapartida, no que respeita ao méto­
do, ele parece ter procedido de uma forma bem diferente da de Políbio,
que o critica asperamente. Formou-se em Atenas, com um discípulo de
Isócrates; e Políbio considera-o um historiador demasiado livresco. Pare­
ce que ele também adoptou o tom de censura moral em favor na escola
de Isócrates; e Políbio lamenta-se vivamente. De facto, conhecemos
Timeu sobretudo por estas críticas, talvez um pouco injustas, mas que
ajudam a medir a própria originalidade de Políbio.

2. Políbio

Tal como Timeu, Políbio nada tem a ver com Alexandria. Nasceu em
Megalópolis, no Peloponeso, sem dúvida pelo ano 200 (ou pouco depois),
numa altura em que a importância de Roma contava mais do que qual­
quer outra no mundo mediterrânico. Nessa altura, ela triunfava na segun­
da guerra púnica e travava a luta contra Filipe V da Macedónia. A Grécia
era, então, directamente visada e interessada. A proclamação da liberda­
de grega por Flamínio é de 196, a derrota de Perseu em Pidna é de 168.
Com efeito, Políbio, que tomava parte activa na política da sua pátria
e na da Liga Aqueia, de que era um membro influente, foi levado para
Roma, em 167, com outros notáveis aqueus, suspeitos de hostilidade
contra Roma. Mas, bem recebido neste local de exílio, logo se sentiu em
casa. Foi recebido na família dos Cipiões e alcançou uma grande influ­
ência sobre o jovem Cipião Emiliano. Também conheceu Lélio, Catão
e muitos outros. Tinha, ainda, o direito de viajar e aproveitou-o. Só iria

285
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

regressar à Grécia em 150; e mais, estava com Cipião no cerco de Car-


tago, logo depois. Na realidade, só regressou em 146, depois da vitória
definitiva de Roma e do saque de Corinto. Desempenhou, desde logo,
um papel pacificador - e de historiador - antes de morrer, com a idade
de oitenta e dois anos.
Compreendemos que esta experiência tenha voltado toda a atenção
e reflexão de Políbio para o acontecimento sem precedente que era a
irresistível extensão do poder romano. Afirma por várias vezes que toda
a sua obra histórica se destina a explicar este fenómeno; e podemos acre­
ditar nele. «Será possível, na verdade, que nos demarquemos tanto, que
sejamos tão indiferentes para nos recusarmos a ver a questão de saber
como é que, e graças a que tipo de regime, Roma foi capaz - facto sem
precedente - de estender o seu domínio a quase toda a terra habitada, e
isso em menos de cinquenta anos?» (I, 1). Por aqui, já Políbio se asso­
ciava a uma tradição sólida da historiografia grega; já Heródoto e, sobre­
tudo, Tucídides se tinham interessado pela formação do poderio dos
Estados; também eles já tinham o sentimento de ter vivido uma experi­
ência de um alcance excepcional; e já tinham retirado daí uma razão
imperiosa para a descrever numa história.
Havia, contudo, no estabelecimento do poder romano traços únicos
e novos, de que Políbio estava muito consciente. Primeiro, os Romanos
não conheciam nenhum povo que não acabasse por lhe ceder; e Políbio
fala geralmente como mediterrânico que é, do seu império sobre «quase
todos os povos da terra»; por outro lado, o seu domínio estendia-se suces­
sivamente aos diversos povos que os Gregos tinham conhecido, englo­
bava-os a todos num destino comum: «Porque a originalidade do meu
assunto, e do que há de notável nesta época que acabamos de viver, reside
apenas nisto: a Fortuna dirigiu, por assim dizer, todos os acontecimentos
numa única direcção e obrigou todas as questões humanas a dirigirem-
-se para um único e mesmo fim. Assim, o historiador deve, pelo seu lado,
agir de modo a que os seus leitores possam abarcar com um único olhar
os recursos que ela usou por todo o lado para produzir todo o conjunto de
efeitos. Na verdade, foi isso que me deu, antes de tudo, a ideia deste tra­
balho e que me incitou a realizá-lo.» (1, 4). Políbio até precisa que as
histórias parciais não permitem compreender melhor a história univer­
sal, tal como os membros separados não permitem compreender um ser

286
A ÉPOCA HELENÍSTICA

vivo: «A história só é verdadeiramente interessante e instrutiva se per­


mitir observar o conjunto dos acontecimentos na sua interdependência,
com as suas semelhanças e diferenças.».
Este objectivo, bem claro, explica ao mesmo tempo o assunto esco­
lhido por Políbio e o seu método de exposição. E também tem relação
com a sua concepção de método histórico.
Quando falamos do assunto escolhido por Políbio, trata-se, eviden­
temente, da sua grande obra e não de obras secundárias, hoje perdidas,
que muitas vezes têm relação com ela (como a biografia de Filopémen,
o grande homem de Megalópolis, ou a monografia sobre a guerra numan-
tina, travada por Cipião Emiliano em 133). Havia, também, outros tra­
tados, pequenos. Mas as Histórias de Políbio são uma obra considerável,
que contava quarenta livros e que tratava, em princípio, do crescimento
de Roma nos cinquenta e três anos referidos acima, ou seja, desde o iní­
cio da segunda guerra púnica (221) até à vitória sobre Perseu (168). Com
efeito, o período coberto é mais extenso; primeiro, os dois primeiros
livros tratam, em forma de introdução (e fazendo assim a ligação com
Timeu) dos anos que vão do início da primeira guerra púnica até à segun­
da (264-221); de seguida, Políbio, depois de ter anunciado que iria até
168 e de ter começado a sua obra nesse sentido, julgou necessário ir até
à total submissão da Grécia, em 146. Na realidade, a sua obra cobre uns
cento e vinte anos - os que vêem o estabelecimento do poderio romano.
Mas nem tudo isto está conservado: os cinco primeiros livros estão-no
na totalidade, os livros VI-XV1 com algumas lacunas e os livros seguin­
tes na forma de fragmentos (por vezes importantes).
Por outro lado, a ideia de unificação política suscitada pelo papel de
Roma comanda o modo de composição da obra. Com efeito, Políbio
procede a uma combinação entre os acontecimentos que se desenrolam
nas diversas regiões do Mediterrâneo: é o entrelaçamento, ou symplokê
- Roma é o centro de onde tudo parte e onde tudo se conclui. Normal­
mente, e a partir do livro VII, Políbio conforma-se ao quadro dos anais,
tratando por cada ano, por exemplo, as questões da Sicília, depois da
Ásia ou da Grécia, ou de Espanha. Em geral, e salvo excepção, um livro
cobre dois anos. Também há, para além dos livros de introdução, os livros
que constituem análises à parte, aos quais voltaremos, como o livro VI,

287
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

sobre a Constituição de Roma, e o livro XII, sobre a geografia e a crítica


aos historiadores anteriores.
E provável, e até certo, que Políbio lhe tenha pegado por várias
vezes, para compor uma tal obra e que isso tenha possibilitado modifi­
cações; mas a história da génese da obra não se presta a nenhuma hipó­
tese séria.
Em contrapartida, os princípios que presidiram à sua composição
são muito claros - pois Políbio sabe exactamente o que se deve esperar
de uma obra histórica e a originalidade da sua obra provém em grande
parte desta ideia. Ela deve ser, contudo, aproximada da de Tucídides, cujos
princípios recorda. Como Tucídides, mas ao contrário dos historiadores
da época, trágicos ou retóricos, Políbio visa mais a utilidade do que o
agrado. Fala muitas vezes do proveito que se virá a tirar da sua obra. Mas,
para que a história possa ser proveitosa, é preciso que seja, como ele diz,
«pragmática», ou seja, que se contente em apresentar factos e que seja
objectiva. Até isto poderia ser de Tucídides: Políbio afasta-se para dar aos
factos, com esta objectividade, um carácter simultaneamente mais limi­
tativo e mais concreto. Só raramente usa os discursos, e sempre de forma
muito breve e quando a documentação é segura: é muito severo com os
discursos, tal como Timeu os usava, discursos refeitos por ele «como
alguém, na escola, se dedica a um exercício» (XII, 25 a). Por outro lado,
Políbio exige uma informação técnica precisa. No mesmo livro XII (25 e),
ao definir os estudos necessários ao historiador, coloca logo a seguir à
investigação nos livros o facto de se ocupar «a ver as cidades e os locais,
os rios e os portos, em geral, as particularidades e as distâncias na terra
e no mar»; ele prefere a investigação no terreno ao trabalho de gabinete;
e evisa frequentemente o leitor que teve o cuidado de verificar no local,
para compreender melhor. E o caso, por exemplo, da famosa passagem
dos Alpes, por Haníbal. Políbio preocupa-se muito, igualmente, com os
dados militares, quer se trate de tácticas ou de armamento; e não o faz
como Tucídides, retendo os princípios gerais, mas descrevendo-os muito
de perto: a sua análise da organização militar dos Romanos (VI, 19-42)
é, a este respeito, francamente notável.
Portanto, Políbio, pela sua preocupação com a objectividade técnica,
já é um historiador moderno. E-o também pela sua forma de tratar a his­
tória política. Tucídides vira, no comportamento dos Estados, a ilustração

288
A ÉPOCA HELENÍSTICA

de grandes leis de ordem psicológica: Políbio dá-o como um dos facto-


res essenciais, explicando o desenvolvimento alcançado pelo poder de
Roma, pela natureza particular da sua constituição.
Esta ideia constitui uma das teses essenciais da sua obra; e é por isso
que o livro VI tem um lugar tão importante. Mesmo antes, é a vitória de
Haníbal em Canas; Roma corre grande perigo. Logo depois, ela come­
çará a erguer-se. Ora Políbio pensa que um grande perigo permite julgar
melhor seja um carácter, seja uma constituição. Interrompe, assim, a sua
narrativa e consagra um livro inteiro a descrever esta constituição. A expo­
sição está longe de ser bem dominada. Vemos aflorar diversas doutrinas,
que os filósofos dos séculos iv e do ui (sobretudo na escola de Aristóte-
les) tinham defendido: primeiro, é a ideia de um ciclo de constituições,
depois sobretudo a ideia de que a melhor das constituições é a constituição
mista - a que reina em Roma e onde os diferentes poderes se equilibram
(cônsules-senado-povo). Podem apoiar-se uns nos outros, ou controlar-
-se reciprocamente. E é esse, segundo Políbio, o segredo do poder roma­
no (I, 64, 1; III, 2, 6; VI, 2, 9; VI, 18, 4). Políbio não inventou esta ideia
da constituição mista. Mas pelos pormenores que apresenta e por este
papel que atribui aos mecanismos políticos, também aqui ele fundou um
tipo de história novo e moderno.
E por estes aspectos que a obra de Políbio é original. Ele exprime,
certamente, outras ideias, no que respeita à história. Há, assim, uma clara
distinção entre o início de um acontecimento e a sua causa, entre a causa
e o motivo invocado (III, 6: aitia e prophasis). Tudo isto lembra muito
Tucídides. Mas o próprio facto diminui a sua originalidade e a aplicação
não é sempre feita com a mesma penetração.
Com efeito, Políbio trouxe ao género histórico novidades de rara
importância; mas nem o seu pensamento, nem o seu talento estão acima
da crítica.
O seu pensamento é muitas vezes inconstante: é-o sobre as consti­
tuições e o seu ciclo; é-o também sobre o lugar da Fortuna, que ele faz
intervir muitas vezes nas suas reflexões, mas cujo papel quer afastar, em
proveito do mérito noutras ocasiões (como X, 2, para Cipião, o Africa­
no). As lições que ele destaca geralmente da história são muitas vezes
conselhos muito modestos, de elementar prudência. E a imagem que ele
dá de Roma nem sempre é tão penetrante como quereríamos (afinal de

289
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

contas, ele é Grego!), nem tão firme com gostaríamos. Apresenta qua­
dros admiráveis de Cipião, da sua clemência lúcida, do seu talento; e
admira a política romana; mas condena pequenas faltas, sem que possa­
mos ver claramente o que é que ele pensou das crueldades dos seus ami­
gos em Cartago, Corinto, Numância. É certo que a sua história não nos
chegou toda inteira, mas também é possível que o seu papel de amigo
dos Romanos tenha afectado um pouco o seu juízo. Por último, Políbio
escreve de uma forma muito pesada, numa língua abstracta, em que sen­
timos transparecer os documentos originais, e com um tom um pouco
sentencioso, a que falta brilho. Este Grego, historiador de Roma, não
tem nada da elegância tradicional da sua pátria.
Estas reservas, contudo, não retiram nada ao seu mérito, nem à sua
influência, que foi considerável. O Romano Tito Lívio iria utilizá-lo e imitá-
-lo. Historiadores tomaram-no como ponto de partida e escreveram Conti­
nuações de Políbio. E o caso de Posidónio e, mais tarde, de Estrabão.
Por outro lado, Políbio ilustra, para nós, a própria evolução da lite­
ratura grega. Como pressentimos com os filósofos, daí em diante, Roma,
sucedendo a Alexandria, toma-se no verdadeiro centro da cultura greco-
-romana.

290
CAPÍTULO X

EXPOSIÇÃO SUMÁRIA
SOBRE A EPOCA ROMANA
Não é fácil encontrar uma unidade na literatura grega da época roma­
na. Com efeito, esta estende-se por muitos séculos e, também, por diversas
regiões - todas aquelas que o mundo romanizado inclui. Vêm escritores
das costas da Ásia Menor (como Dionísio de Halicamasso ou Quinto de
Esmima), mas também de mais longe - da Frigia (como Epicteto), da
Bitínia (como Arriano ou Díon Crisóstomo), de Comagene (como Lucia-
no) - sem falar daqueles que vêm do Egipto (como Plotino) ou da Sicília
(como Diodoro). A Grécia em si fornece poucos autores; no entanto, ofe­
rece o único cuja personalidade se impõe com força - a saber, Plutarco.
Esta unidade, que nem as épocas nem os locais oferecem, surge,
todavia, um pouco nos géneros. Com toda a evidência, a época dos jorros
criadores passara, tal como passara o tempo da independência política e
da acção. A época romana é um período de prosadores que se entregam
à reflexão: historiadores, filósofos, retores. No entanto, ela ainda dá ori­
gem a novos géneros, em que se reflectem um interesse muito vivo pelos
indivíduos, pela sua psicologia e pelas suas aventuras; são a biografia, a
par da história, e, por outro lado, a narrativa imaginária: o romance pro­
priamente dito ou então a história curta, fictícia, à maneira do segundo
grande escritor deste período - Luciano.
Estes traços explicam as divisões adoptadas neste capítulo, em que
a ordem cronológica já não é observada. Notaremos a ausência da poe­
sia. Esta, contudo, sobrevivia, em inúmeras obras perdidas, com pouca
inspiração. Apenas dois nomes merecem ser retidos e para uma época
mais tardia, os de Quinto de Esmima e Nono de Panópolis (no Egipto).
O primeiro escreveu uma Continuação de Homero em catorze livros

293
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

integralmente conservados e conta, em forma épica, os acontecimentos


que separam a Ilíada da Odisseia. Ao que parece, viveu no século iv d. C.
Trata-se, mais uma vez, de uma imitação, de carácter um pouco didác-
tico, onde as inovações são discreta. Quanto ao segundo, Nono, é o autor
das Dionisíacas, uma epopeia mais original, que narra a expedição de
Dioniso à Índia, em quarenta e oito cantos, integralmente conservados.
Viveu no século v d. C. A inspiração religiosa dá força ao poema: desde
o início da época alexandrina que Dioniso adquirira um papel importan­
te; no entanto, trata-se sempre de imitar Homero, «porto de toda a gran­
de poesia». Nono teve continuadores, entre os quais Museu, que não
devemos confundir com o antigo poeta lendário, frequentemente asso­
ciado a Orfeu: este é o autor de um poema conservado, que conta em
hexâmetros a triste história amorosa de Hero e de Leandro. Mas, no con­
junto, é evidente que o tempo dos poemas passou. Na época romana, a
poesia grega não vive: sobrevive. E aqui não diremos mais nada.

I.

PLUTARCO

Se começamos por Plutarco é por causa do lugar à parte que a sua


personalidade e a amplitude da sua obra lhe valeram; mas Diodoro Sícu-
lo, Dionísio de Halicamasso e Estrabão são-lhe anteriores.

1. Vida e obra

Plutarco nasceu pouco antes de 50 d. C. e morreu em 120, ou pouco


depois. Nasceu em Queroneia, na Beócia, a pequena cidade próxima do
Parnaso, onde Filipe outrora triunfou sobre os Atenienses; Plutarco iria
passar ali quase toda a sua vida.
No entanto, como todos os jovens, foi terminar os seus estudos a Ate­
nas, que continuava a ser a cidade dos filósofos. Foi aluno do platónico
Amónio a quem, mostra-o a sua obra, se manteve sempre fiel. Também
fez grandes viagens e passou, como devia, algum tempo em Roma. Mas
regressou a Queroneia para se fixar, casou-se e viveu aí até à sua morte.

294
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

A vida de Plutarco em Queroneia é muito conhecida graças aos seus


escritos. Tem três aspectos que se combinam.
Primeiro, há a vida do cidadão: Plutarco era de uma boa família e
ele próprio seguiu a tradição que pretendia que um homem de bem ser­
visse a sua cidade. Exerceu diversas funções. Ao mesmo tempo, manti­
nha relações de amizade com Romanos; adquiriu a cidadania romana.
O segundo aspecto é a vida religiosa, cujo centro é Delfos: Delfos
não fica muito afastado de Queroneia. Ali, Plutarco exerceu as funções
sacerdotais e a sua obra foi penetrada por reflexões sobre o deus de Del­
fos, a mântica apolínea, etc. Dividia-se entre Queroneia e Delfos, de onde
também se tomou cidadão e onde foi honrado até à sua morte.
Mas o essencial da sua vida era a sua vida privada, que ele nos deixa
entrever na sua obra: a importância deste domínio é o sinal dos novos
tempos. Vemos Plutarco com a mulher, Timóxena, e com os filhos. Era uma
vida de ternura familiar. Plutarco tinha um elevado sentido do amor con­
jugal e do respeito pelas mulheres. O seu diálogo Sobre o Amor, Erôtikos,
mostra-o o bastante. E a Consolação à sua mulher vibra com esta ter­
nura. Por outro lado, Plutarco tinha uma vida hospitaleira, rodeado por
amigos que, como ele, gostavam de discutir filosofia: os seus diálogos
reflectem a atmosfera dessas conversas; e os seus conselhos morais lem­
bram frequentemente as circustâncias. A sua obra também nos transmi­
te nomes de amigos, gregos ou romanos. Todos aspiravam à sabedoria,
mas uma sabedoria serena e amável, cujo ideal toda a obra de Plutarco
tende a difundir.
Esta obra era considerável. Embora mais de metade se tenha perdi­
do, ela conta alguns vinte e cinco volumes na tradução de Amyot. Divide-
-se essencialmente em duas partes: as Vidas paralelas e o conjunto dos
tratados conhecidos como Obras morais.
As Vidas paralelas - que apresentam de cada vez a vida de um herói
grego e a de um romano - têm vinte e dois pares de vidas. As de Epa-
minondas e Cipião perderam-se. Temos, assim, quatro vidas isoladas e
o «catálogo de Lâmprias» refere outras, muito numerosas, que não temos
(como as vidas de poetas ou de filósofos).
Foram as Vidas paralelas que fizeram a glória e a influência de Plu­
tarco; no entanto, elas representam apenas metade da obra conservada e
uma pequena parte das suas curiosidades.

295
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

As Obras morais, na sua diversidade, dão a medida das suas curio­


sidades. Importa, no entanto, reconhecer que as duas séries estão estrei­
tamente aparentadas: nas Obras morais encontramos grande quantidade
de exemplos históricos e nas Vidas grande quantidade de comentários,
digressões, observações filosóficas, que se fazem eco dos problemas tra­
tados nas Obras morais e reflectem o mesmo pensamento.
Estes problemas são de ordem diversa e nem todos estão ligados à
moral.
Entre as obras que justificam o título dado ao conjunto encontram-
-se tratados consagrados às virtudes ou aos defeitos. Por exemplo, os
tratados Da virtude moral, Do controlo da cólera, Da tranquilidade da
alma, Do amor fraterno, Da tagarelice, Da curiosidade, etc. Podemos
ainda acrescentar o diálogo sobre o amor, os Preceitos conjugais e as
Consolações. Alguns destes títulos fazem pensar em Séneca: a seme­
lhança dos géneros permite estabelecer o parentesco entre os dois pen­
samentos.
Mas, além disso, a moral foi abandonada pela metafísica. E o caso
de tratados que questionam, por exemplo, sobre a sorte, sobre a demora
da justiça divina, ou daqueles que discutem as teses do Timeu de Platão,
as dos estoicos, as de Epicuro. Também aí, o pensamento de Plutarco deve
ser situado em relação com o dos filósofos que ele põe em causa.
Os tratados «délficos», esses, situam-se a meio caminho entre a filo­
sofia e a história, dado que tratam de problemas já bastante concretos:
há um tratado Sobre o E do templo de Delfos, outro Sobre os oráculos
da Pítia ou Sobre a falta dos oráculos.
Mas muitos estão próximos da história: recolhem palavras célebres,
interrogam-se sobre o sucesso de Alexandre ou a glória dos Atenienses,
sobre a possibilidade de as pessoas mais velhas se dedicarem à política.
Ou então, tratam de literatura: como o Como devemos entender os poe­
tas ou o Sobre a malignidade de Heródoto. Alguns até tratam de proble­
mas realmente concretos, relativos à lua, aos animais, ao primeiro frio.
As Obras morais mostram, assim, um espírito curioso por tudo, ali­
mentado por livros e doutrinas, que se colocava as questões que interes­
savam aos homens cultos da época. Em contrapartida, o modo como
Plutarco as trata é muito pouco livresco. Frequentemente, a forma é dialoga­
da; os exemplos com episódios são numerosos; mas também há exemplos

296
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

retirados da sua vida pessoal, das recordações literárias, das digressões


destinadas a mostrar um determinado gosto ou uma determinada ideia,
que lhe eram caros. Se as Vidas se impõem pela novidade da sua forma
literária e pela riqueza do seu conteúdo, pela história e pela psicologia
dos heróis que evocam, as Obras morais permitem sobretudo conhecer
melhor o pensamento e o ideal do seu autor.

2. As «Vidas»

O princípio de escrever biografias já existia antes de Plutarco. Alguns


fazem remontar a sua origem bastante atrás; em qualquer caso, encon­
tramos tratados consagrados a um homem, como o Agesilau de Xeno-
fonte, desde o século iv. A filosofia de Aristóteles, por seu turno, gostava
de procurar episódios que ilustravam virtudes ou vícios. Muito cedo, a
própria história iria debruçar-se sobre o papel de grandes homens, como
Alexandre ou como os imperadores romanos. Mas foi Plutarco quem
melhor ilustrou este género.
Ele não se considerava historiador. Precisa-o bem a propósito de
Alexandre: «Não escrevemos histórias, mas biografias, e não é nas acções
mais brilhantes que se manifesta a virtude, ou o vício. Pelo contrário,
muitas vezes, um pequeno feito, uma palavra, uma brincadeira mostram
melhor o carácter do que os combates que fazem milhares de mortos, do
que as batalhas travadas e os cercos mais importantes» (I, 2). A sua pre­
ocupação é, assim, a análise dos caracteres; e o seu meio será o episódio
ou a palavra reveladores. Mas esta preocupação psicológica duplica-se
numa preocupação moral, ou antes, conduz a ela. Plutarco não escreve,
como o faríamos hoje, apenas pelo prazer de compreender melhor as
reacções humanas: o pensamento do bem e do mal não o abandona. E, se
não é cego aos eventuais defeitos dos grandes homens - defeitos que assi­
nala sempre de passagem - é claro que ele espera, acima de tudo, mostrar
as suas virtudes e dar esse gosto aos seus leitores. Explica-o a propósito
de Péricles: «Devemos procurar o que há de melhor, e não nos limitar­
mos a contemplá-lo, mas fazer desta contemplação um alimento para o
nosso espírito. Com efeito, tal como a cor (...), também é preciso dirigir
o pensamento para os espectáculos, que, pelo atractivo do prazer, o con-

297
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

duzem ao bem que lhe é próprio. Estes espectáculos são as acções inspi­
radas pela virtude, que fazem surgir naqueles que têm conhecimento delas
uma emulação e um ardor que os impele a imitá-las» (I, 3-4). As biogra­
fias de Plutarco têm o atractivo da narrativa viva e episódica; são uma
história que nos faz entrar na intimidade dos grandes homens; mas, ao
mesmo tempo, elas pretendem semear, e conseguem semear, uma espé­
cie de confiança no homem.
Um tal propósito já era notável. Mas Plutarco acrescentou-lhe mais
uma dimensão, fazendo estas biografias em pares greco-latinos. O género
da comparação era então muito praticado nas escolas de retórica. Mas o
princípio, que consistia em pôr em paralelo os grandes homens da Grécia
e de Roma, adquire também um sentido relativamente à situação geral do
tempo. Roma suplantara a Grécia no domínio político e, nesse momento,
alcançou o predomínio do pensamento e das artes. Isto não implicava
más relações entre Gregos e Romanos; e Plutarco foi, tanto quanto Políbio,
amigo dos últimos; e teve de ficar satisfeito ao ver Adriano mostrar-se
amigo da Grécia. Mas esta amizade, liberta de servilismo, conservava-o
fiel ao passado grego. E por isso que ele une e põe em paralelo os mun­
dos daí em diante associados, e trata como iguais as grandezas da Grécia
e de Roma. Esta escolha sistemática ratifica assim a existência de uma
civilização, não romana, mas greco-romana.
Aliás, o paralelismo nunca é forçado. Os dois heróis aproximados
de cada vez por Plutarco, são-no por uma situação política, por um traço
de carácter, por uma forma de reputação; mas não há qualquer esforço
de pôr em paralelo o pormenor das duas vidas. E, depois de ter evocado
cada uma das duas personagens à parte, Plutarco contenta-se com alguns
pequenos parágrafos de comparação (synkrisis); por vezes, estes faltam,
seja porque ele não os escreveu, seja porque se tenham perdido.
Estes pares de Vidas são, naturalmente, de inegável qualidade, que
se pode prender, em parte, com os próprios caracteres que são o seu
assunto: algumas personagens são mais conhecidas ou mais cativantes
do que outras. No entanto, as Vidas apresentam todas com traços comuns,
que decorrem da própria intenção que animava o autor.
Ele não quis ser um historiador; e, por vezes, sucede que domina
mal a interpretação histórica. Basta, por exemplo, comparar o seu Péri-
cles com o de Tucídides para verificar que ele se deixou enganar por

298
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

fontes medíocres, que atribuem a Péricles todos os cálculos mesquinhos


que Tucídides afastou com tanta autoridade e que nem sequer se enqua­
dram com o que Plutarco diz noutros locais. Em contrapartida, quantos
pormenores conhecemos por Plutarco que não encontramos em Tucídi­
des! Todos os pequenos factos concretos, os «diz-se que», todas as pala­
vras célebres, que tomam Péricles vivo, chegam-nos de Plutarco; e, se
ele não é um historiador, a história não pode passar sem ele. Aliás, em
geral ele bebeu de diversas fontes: não procura a interpretação política,
mas, para o tipo de informação que procura, é manifesto que se infor­
mou com seriedade e honestidade.
Além disso, o que pode parecer menor no que concerne à história -
a saber, o gosto pelo episódio e pela «história curta» - toma-se, do ponto
de vista literário, uma fonte de satisfação. Nada é mais vivo do que a nar­
rativa de Plutarco: ouvimos, vemos as personagens. Esta narrativa nunca
é obstruída pelos dados de facto ou pela crítica histórica: eles ficam em
silêncio, como num romance. E isso é tanto mais notável quanto o seu
estilo nada tem de brilhante. Ele é puro; evita os hiatos, como convém a
um bom clássico; mas as frases são longas, por vezes demasiado longas;
e as novas palavras, de cor filosófica, que dão mais subtileza à análise,
também lhe dão menos liberdade. Ora, apesar disto, a impressão que a
narrativa deixa é de rapidez, de vida, de espontaneidade.
Esta impressão provavelmente também está ligada, pelo menos em
parte, ao modo como Plutarco deixa ver as suas próprias reacções, à con­
vicção com que admira, louva ou lamenta: esta convicção que não se
esconde, mas se comunica directamente ao leitor. E os gostos ou as ideias
de Plutarco comunicam-se a ele no mesmo momento.

3. As ideias de Plutarco

Todo o pensamento de Plutarco é animado pela sua fidelidade ao


platonismo. Ele conservou esse idealismo, em todo o sentido do termo.
E as recordações da obra de Platão estão constantemente presentes na
de Plutarco.
No entanto, ele também sofreu a influência de doutrinas posteriores
e tomou posição por relação com elas. Conheceu e discutiu o epicurismo.

299
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

E, sobretudo, conheceu e discutiu o estoicismo. Está bem informado,


por vezes critica-o, mas sofreu profundamente a sua atracção. Para ele,
os estoicos são como adversários privilegiados; e, para definir o seu pen­
samento, o deles é uma referência preciosa. Tal como eles, acredita nas
«divindades»; mas representa-as de outra forma e associa-as a uma con­
cepção dualista do mundo, que nada tem de estoica. Do mesmo modo,
se a sua moral se aproxima do ideal estoico, ele reconhece, distintamen­
te dos estoicos, a existência da afectividade e dos sentimentos - o que o
conduz a uma moral mais humana e mais doce.
De facto, Plutarco variou, por vezes, os problemas filosóficos: pro­
cura, lê, interroga; e, por vezes, é difícil fixar as suas doutrinas em termos
rigorosos. Tanto mais que as suas tendências e o seu ideal de vida con­
tinuam a ser o mais importante.
Neste ideal de vida, uma parte particular é dada à família. Já assi­
nalámos a importância do amor conjugal para Plutarco; e vários tratados
referem também a ternura entre irmãos, ou então entre pais e filhos.
De modo mais geral, Plutarco gosta de ver a doçura presidir às rela­
ções entre homens. Ele acredita que esse é um sentimento natural. Porque,
diz ele, «excepto se contrariarmos a natureza, não podemos viver sem ami­
gos, sem relações, solitários» (Do amor fraterno, 479 c). Ele também
diz: «Na verdade, tem a nossa alma em si uma propensão para o afecto
e como é apta ao entendimento (...), também o é para o amor» ( Vida de
Sólon, 7, 3) (*). Mas este sentimento natural é também um dever. E pre­
ciso ser-se levado pela doçura, pela indulgência, pela paciência. É pre­
ciso tratar cada um com atenção, tanto as mulheres como os homens, e
até os escravos, e até os animais. Tudo isto faz parte da serenidade do
sábio: vemos que esta se toma mais humana e mais próxima do que no
estoicismo, ou mesmo em Platão. Não se trata, contudo, de uma moral
fácil: as Vidas e os tratados apresentam sem cessar o sentimento do
esforço a realizar sobre si, em todos os domínios, para se aproximar
sempre mais da sabedoria.

(') N.T.: A tradução foi retirada da tradução portuguesa: Plutarco, Vida de Sólon,
(introdução, tradução e notas de Delfim Ferreira Leão; introdução geral de Ma. Helena da
Rocha Pereira), Lisboa, Relógio d’Água, 1999.

30 0
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

Este ideal de vida, que ele gosta de qualificar como grego, tem, com
efeito, as suas fontes numa longa maturação da cultura grega; mas, esta
cultura foi-se humanizando com o tempo. E o que, sem dúvida, consti­
tui o mérito único de Plutarco é o ter sido capaz de combinar, numa mis­
tura que, primeiro, parece paradoxal, o gosto pela grandeza e o culto dos
«homens ilustres» com o gosto pela ternura humana, na sua realidade
quotidiana. Um corrige o outro, mas adquire também mais força. E foi
ainda um destes traços que pôde contribuir para assegurar à obra a cele­
bridade excepcional que foi a sua na Antiguidade, no Renascimento e
na época clássica.

II.
OS HISTORIADORES

Os historiadores gregos da época romana, sem valerem tanto como


os grandes historiadores, como Heródoto, Tucídides ou Políbio, tiveram,
também, uma influência muito grande; ela explica-se menos pelos seus
méritos literários do que pela informação que transmitiam.

1. De 100 a. C. a 100 d. C.

Os inícios da época romana, ou seja, do século i a. C. e do século i d. C.,


foram o período mais rico a este respeito. Tal como Plutarco - e já como
Políbio os autores são, nessa altura, historiadores do mundo greco-
-romano. E, por vezes, reflectem a mesma preocupação de estabelecer
paralelismos.
Um breve exame desta actividade histórica deixa ver muitos espa­
ços em branco, correspondentes a obras hoje perdidas.
Tal é o caso de dois autores que assumiram directamente a continu­
ação de Políbio e começaram a sua obra onde ele terminou. O primeiro
é o filósofo Posidónio; a sua obra histórica, que ia de 144 a 85, ou pouco
depois, em cinquenta livros, está hoje perdida. O segundo é Estrabão,
que foi sobretudo um eminente geógrafo: a sua obra de geógrafo, que é

301
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

de uma precisão científica notável para a época, foi conservada; mas os


seus Estudos históricos, que eram muito vastos, perderam-se.
Passa-se o mesmo com dois historiadores pouco posteriores, que
teriam tido interesse em dar o testemunho de alguém de fora: são Nico-
lau Damasceno e Juba de Mauritânia. Nicolau Damasceno desempenhou
cargos, primeiro, com António, depois com Herodes, rei da Judeia; e,
para terminar, aproximou-se de Augusto. Foi um pouco filósofo, escre­
veu biografias (em particular a de Augusto) e compôs uma grande his­
tória universal em cento e quarenta livros, que falava dos reinos do
Oriente, da Grécia e de Judeia, mas também compreendia partes da his­
tória romana. Quanto a Juba, era o rei da Mauritânia, Juba II. Passara a
sua juventude em Roma, como refém, antes de recuperar a posse do seu
reino. Ocupou-se a satisfazer toda a espécie de curiosidade e cita-se dela
as obras mais variadas; mas também escreveu uma história romana, que
é referida muitas vezes pelos Antigos com simpatia.
Poderíamos alongar esta lista de obras perdidas no domínio da his­
tória, da geografia, da etnografia (com Alexandre Poliistor, por exem­
plo): mas é melhor ficarmo-nos pelos dois homens desta época cuja obra
se conserva.
Um só é historiador de modo acessório: com efeito, Dionísio de
Halicamasso é sobretudo um teórico do estilo e um crítico literário - o
que o liga à retórica. Mas ele também deixou uma obra sobre as Antigui­
dades romanas, que ia desde os inícios de Roma até às guerras púnicas,
e cuja primeira parte (um pouco mais de dez livros) se conservou. Despro­
vido de sentido crítico, Dionísio utiliza os antigos analistas, associando-lhes
os recursos da retórica e dos discursos. No entanto, o seu testemunho
ainda é, em muitos casos, precioso.
Diodoro Sículo, embora também esteja muito dependente das suas
fontes, é um historiador muito melhor.
Nascido em Argírio, na Sicília, sem dúvida por volta de 90 a. C.,
Diodoro é conhecido pela sua enorme obra, a que consagrou, diz ele,
trinta anos da sua vida. Preparou-se com viagens (sabemos que foi ao
Egipto pouco depois de 60 a. C.) e, sobretudo, com leituras, muitas das
quais feitas em Roma: «Nascido em Argírio, na Sicília, e tendo adquiri­
do um grande conhecimento da língua latina, devido às estreitas e fre­
quentes relações que os Romanos tiveram com esta ilha, consultei com

30 2
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

cuidado os documentos conservados já há muito tempo pelos Romanos,


a fim de esclarecer a história deste grande império» (I, 4). A frase mos­
tra bem que a obra se baseara em documentação de biblioteca e que ela
estava em grande parte centrada em Roma.
Não se trata, todavia, de uma história romana, mas de uma história
universal, na qual ele se propunha a nada menos do que contar tudo,
desde as origens fabulosas até à sua própria época, considerando em
conjunto os Gregos, os Romanos e os Bárbaros. O plano da sua obra,
que comportava quarenta livros, é revelador a este respeito. Com efeito,
começa pelo Egipto, Assíria, Caldeia, Média, índia, etc., concluindo os
seis primeiros livros no limiar da história grega propriamente dita (logo
a seguir à guerra de Tróia). Os livros seguintes tentam estabelecer, por
grandes grupos, as correspondências entre os acontecimentos da Grécia,
de Roma e, acessoriamente, das outras regiões, até ao livro XVII, con­
sagrado a Alexandre. Os últimos livros, mais pormenorizados, estão, em
parte, perdidos: a parte conservada termina em 302.
Por aqui se mede o trabalho que Diodoro teve de realizar para reu­
nir informações tão heterogéneas e tentar restabelecer entre elas uma
correspondência cronológica. Há, aqui, um esforço de unificação notá­
vel, que, por relação com Políbio, marca um novo alargamento: a unifi­
cação do universo arrasta uma extensão acrescida da história; e não é de
espantar que, a esta escala, esta se deva tomar numa história erudita,
fundada nas obras dos predecessores.
Mas o próprio método que dai resulta tem, muitas vezes, graves
inconvenientes: ligado às suas fontes, Diodoro segue-as geralmente muito
de perto (a ponto de, muito frequentemente, sermos capazes de as reco­
nhecer e identificar, segundo os casos, Éforo, Dúris, Filarco, Políbio);
muitas vezes tem falta de rigor crítico e de penetração histórica. Tanto
mais que o seu início tem por objecto dados mitológicos, que ele aceita
sem discussão, ao passo que os historiadores clássicos já tinham afasta­
do da história toda esta bagagem mais do que suspeita.
Para dizer a verdade, a própria natureza da sua obra, do seu método,
do seu espírito, é função das novas circunstâncias. Depois do historiador-
-cidadão, penetrado pela aventura precisa, mas limitada, em que a sua
cidade se empenhara, Diodoro é um erudito sem alinhamento político,

303
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

que se vê, de súbito, confrontado com um mundo imenso, cujo passado


múltiplo ele procura humildemente ordenar.
A este respeito, ele separa-se do historiador judeu Flávio Josefo,
nascido em 37 d. C.: se ele escreveu sobre o passado do seu país (.Arque-
logia Judaica), este último também contava a guerra que Roma travou
contra o seu país, no seu tempo, e redigiu uma Autobiografia.

2. O século II d. C.

Do mesmo modo, Arriano e Apiano escolheram assuntos bem deli­


mitados; e Arriano foi um homem de acção.
Nasceu na Bitínia, em Nicomédia, cerca de 95 d. C. (viveria até cerca
de 175); teve actividade política e participou em guerras: consagrou algu­
mas obras, hoje perdidas, a essas regiões e a essas guerras. Mas ficou céle­
bre por duas obras, das quais apenas uma é histórica, e que consagrou à
expedição de Alexandre na Ásia. Por fidelidade a Xenofonte, chamou-lhe
Anábase e dividiu-a, como o seu modelo, em sete livros. Esta história
tem o mérito de se basear em narrativas antigas e sérias de homens que
participaram nesta expedição: usou em particular a obra de Ptolomeu
(cf. pág. 284). A Anábase pode ser completada pelo pequeno tratado
intitulado índia, na qual Arriano conta a viagem da frota enviada por
Alexandre, sob as ordens de Nearco, desde a embocadura do Indo até ao
golfo Pérsico. Também aqui Arriano soube recorrer às boas fontes: serve-se
da narrativa do próprio Nearco. Compara-a, aliás, com outros testemu­
nhos e escolhe de acordo com a verosimilhança; além disso, não se abstém
das digressões: a sua extensa experiência permite-lhe misturar às informa­
ções recolhidas comentários e comparações da sua lavra. A obra é pitores­
ca. Arriano escreveu-a em dialecto jónico, talvez por uma outra fidelidade
literária, que o impelia a partilhar as curiosidades de Heródoto.
No entanto, Xenofonte permanece como o seu verdadeiro modelo;
e, como Xenofonte, ele quis associar a essa actividade de historiador,
um interesse devotado pela filosofia. Assistira às lições de Epicteto e
quis preservar o seu testemunho: de facto, é graças a ele que conhece­
mos esta filosofia de Epicteto. Escreveu oito livros de Conversações,
quatro dos quais foram conservados (talvez pensasse nos Memoráveis?)

304
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

e um Manual (ou Enchiridiorí) que resumia o pensamento do mestre. A sua


fidelidade neste domínio é tão preciosa como no domínio histórico. Mas
a sua discrição ainda é maior. As Conversações foram publicadas, em
geral, sob o nome de Epicteto, cujo estilo e tom reproduzem.
Quanto a Apiano, é menos grego e mais romano. Nascido em Alexan­
dria, viveu em Roma e escreveu uma História romana. Era uma obra muito
extensa (vinte e quatro livros). Está, em parte, conservada; e sabemos qual
era a sua disposição: pegava na história dos diferentes povos na ordem
pela qual estiveram, sucessivamente, em relação com Roma. Em todo o
caso, deu um lugar de preferência à história das guerras civis, que ocupa
os livros XIII a XVII e está integralmente conservada, com um prefácio
especial. Se, no conjunto, Apiano se mostra um historiador razoável, mas
sem envergadura, constitui, para o período das guerras civis, uma boa fonte
de informação. E, com ele, termina a evolução que tende a privilegiar cada
vez mais o poder romano, mesmo nas obras gregas. Apiano é verdadeira­
mente um historiador romano que escreve em grego.
É também o caso, três quartos de século mais tarde, de Díon Cássio
que, como Arriano, era Bitínio por nascimento e parente de um outro
Bitínio muito conhecido, Díon Crisóstomo, ou Díon de Prusa. Díon Cás­
sio (Cassius Dio Cocceianus) viveu de 155 a 235 e foi um alto funcio­
nário com Cómodo e os imperadores que se seguiram. Foi até cônsul ao
mesmo tempo que o imperador Alexandre Severo, em 229.
Tomou-se historiador um pouco por a influência de Septímio Severo
e não tardou a lançar-se numa vasta empresa, que lhe iria tomar muitos
anos (fala em dez para reunir os materiais). Acabou-a no fim da sua vida,
na sua terra natal. Trata-se de uma História romana, que vai das origens
a 229 d. C.A obra tinha oitenta livros e seguia uma ordem anual. Fica­
ram os livros XXXVI-LX (de 68 a. C. a 47 d. C.), bem como partes dos
últimos livros. Para estes, temos pelo menos resumos ou excertos que
vêm da época bizantina (Xifilino fez uma organização e Zonaras um
resumo, a que se juntam as partes escolhidas, que Constantino Porfiroge-
neta mandou fazer, no século x). A sua história é decididamente favorável
à monarquia e exalta em geral a clemência dos imperadores. Curiosa­
mente, dá conta de sonhos e presságios. Por outro lado, dá um grande
lugar aos discursos: estes são longos, um pouco declamatórios, por vezes
com algum brilho. Díon pretendia imitar Tucídides e também um pouco

305
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Demóstenes. Hoje avalia-se mal a que ponto foi lido em França na época
clássica.
Díon Cássio não é o último dos historiadores gregos. Importa ainda
referir, no século iii, Herodiano e a sua História dos sucessores de Marco
Aurélio: leal administrador do império, tem, em qualquer caso, o mérito
de falar de acontecimentos que conheceu. Importa também referir Dexipo
e a sua grande Crónica, que ia da pré-história a 270, ou a sua História dos
Godos (Scythica), que tratava das invasões recentes (238-270): Dexipo
era um Ateniense de família nobre, que desempenhou um papel importan­
te em Atenas. Da sua obra, em grande parte perdida, só restam discursos.
Importa ainda referir Eunápio (cerca de 345-420) e a sua crónica dos anos
270 a 404, Olimpiodoro, que escreveu a seguir; Zósimo, por fim, que nos
conduz ao final do século v. Mais do que seguir pormenorizadamente esta
história da história, que se toma uma litania de nomes, parece mais útil
assinalar dois desenvolvimentos laterais, ambos muito importantes.
O primeiro diz respeito aos escritos técnicos, de estratégia ou de
geografia histórica.
Na estratégia, que fora ilustrada por Eneias, desde o século vi, o
melhor exemplo é Poliano e a sua Recolha de Estratagemas, em oito
livros, que foi publicada em 162 e constitui uma sequência de pequenas
narrativas conservadas.
Na geografia histórica impõe-se um grande nome: é o de Pausânias,
que escreveu no século n uma célebre Descrição da Grécia, em dez livros.
Organizada pela ordem dos locais, a obra é uma espécie de guia turístico;
ele apresenta uma descrição dos sítios e das obras de arte, visíveis nessa
altura, e acrescenta-lhes todo o tipo de pequenos desenvolvimentos sobre
a geografia, a história ou a mitologia, misturando, assim, os conhecimen­
tos livrescos com a experiência directa. Esta obra é, num sentido, bastante
digna de encerrar uma sinopse dos historiadores gregos da época romana:
tem uma erudição minuciosa, o gosto pela compilação, mas também a
curiosidade real; e vê os lugares da Grécia sob a forma que daí em diante
assumiram: a de uma cultura que pertence, inteira, ao passado (2).

(2) A este respeito, podemos aproximar as grandes recolhas eruditas que são, para nós,
fontes preciosas, como os Dipnosofistas, de Ateneu (século iii ), a Antologia, de Estobeu
(século v) e a Suda, não há muito tempo referida sob o nome de Suidas.

306
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

Temos, assim, um pouco o sentimento de uma história que se enter­


ra cada vez mais e apenas dá um sinal claro quando se trata de domínios
que conhecemos mal.
Em contrapartida, podia vir do Cristianismo uma grande renovação;
e é um facto que ela deu origem a um novo tipo de história, cujo conte­
údo era diferente: devemos salientar pelo menos duas formas novas de
actividade histórica que daí resultam.
Uma delas é de tipo modesto, mas iria durar muito tempo: é aquela
que consiste em escrever vidas de santos. Santo Atanásio, bispo de Ale­
xandria, que viveu de 295 a 373 e escreveu inúmeros tratados de teolo­
gia, deu o exemplo com a Vida de Santo Antão.
A outra tem uma maior amplitude, visto que concerne a própria his­
tória da Igreja. Era uma história à margem de outra, que já não se encon­
trava centrada na política, o que, evidentemente, mudava tudo. Eusébio
de Cesareia, um outro cristão do século iv, foi o seu mais ilustre repre­
sentante.
Eusébio viveu entre 265 e 340; foi bispo e teve o favor do paço; escre­
veu tratados religiosos, discursos, panegíricos, uma Vida de Constantino,
etc.; mas escreveu, sobretudo, a Crónica, que tentava situar o Cristianis­
mo na história do resto do mundo, e a História eclesiástica, em dez livros,
em que contava a história do Cristianismo desde os seus inícios até 323,
com a sucessão de bispos, mártires, perseguições, sínodos, etc.
O novo assunto que Eusébio oferece à história implica modificações
de método. Primeiro, esta nova matéria deve ser aproximada da história
em geral; também recua mais no tempo; e também apresenta problemas
de cronologia. Fazer coincidir as tradições bíblicas e a história laica será
sempre uma das tarefas mais árduas da cronologia cristã. Depois, este
novo assunto pressupõe que, na exposição, doutrina e narração se mis­
turam - quer se trate de discussões teológicas ou da interpretação dos
factos em função da providência divina: é uma história anunciada como
apologética. Enfim, para satisfazer este fim apologético, o autor é leva­
do a multiplicar as provas, os indícios, as citações: a sua história acu­
mula, assim, os documentos que a história tradicional deixava de lado.
Esta nova orientação iria, durante alguns séculos, desenvolver-se
paralelamente à outra, sem que haja influência recíproca. A história ecle­
siástica prosseguiu nos séculos iv e v com, entre outros, Teodoreto. Mas

307
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

devia permanecer sempre à parte. No final da sinopse dos historiadores


gregos, ela contribui para medir, por contraste, quanto a história tradi­
cional se encontrava ligada à política e ao poder: chegaria até nós nessa
forma, que Heródoto e Tucídides fixaram.

III.
A RETÓRICA

Tal como sucede nas épocas em que se esfuma a responsabilidade


polítca, os problemas de expressão literária foram preponderantes no
império. A retórica tomou-se um elemento essencial da educação e as
discussões entre as escolas deram lugar a uma produção importante.
A querela entre asianismo e aticismo, estimulada no período hele-
nístico, continuou a ocupar os espíritos; e, num primeiro período, assistiu-
-se a um forte impulso de reacção contra o asianismo: a influência de
Cícero jogou, evidentemente, nesse sentido.
Deste primeiro período, podemos referir dois nomes, aos quais se
acrescenta um escrito anónimo.
O primeiro nome já foi referido a propósito da história: é o de Dioní-
sio de Halicamasso. Como Cícero, este homem erudito era um aticista,
mas que admirava mais Demóstenes do que Lísias. Deixou dois pequenos
tratados e, em particular, estudos de crítica sobre Demóstenes, Tucídides
e sobre os principais oradores áticos. As Cartas a Amneu são estudos do
mesmo género, uma sobre Demóstenes e Aristóteles, a outra sobre Tucídi­
des. Aí, Dionísio distribui o elogio e a censura, acompanhando, por vezes,
o texto frase a frase, e comentando cada expressão com uma dureza um
pouco dogmática, que choca com os traços mais originais de cada um.
O seu contemporâneo e amigo Cecílio de Calacte (na Sicília) era
igualmente um aticista, e ainda mais sábio, porque a sua admiração ia,
sobretudo, para Lísias. Um contemporâneo disse que ele gostava mais
de Lísias do que dele próprio, e odiava Platão mais do que amava Lísias!
Este veredicto deixa entrever bem o que há de sistemático nos gostos da
personagem. Escreveu um tratado Sobre o carácter dos dez oradores
áticos, tal como estudos particulares sobre autores ou partes da retórica
(Sobre as figuras, Sobre o sublime): estes tratados perderam-se.

308
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

Em contrapartida, foi parcialmente conservado um tratado anónimo,


que tem o mesmo título que o de Cecílio: Sobre o Sublime; durante muito
tempo foi, erradamente, atribuído a Longino. É uma obra que podemos
datar de meados do século i d. C. e que parece ser uma resposta ao tra­
tado de Cecílio. Enquanto para Cecílio tudo era uma questão de estilo,
o tratado Sobre o Sublime insiste na elevação dos sentimentos e dos pen­
samentos. Defende Platão contra os seus detractores, celebra a beleza
dos arroubos poéticos, das metáforas, do natural, e desculpa as «falhas»:
«Talvez seja necessário aos espíritos baixos e medíocres, porque nunca
se expõem, que não aspirem aos cumes e sejam frequentemente preser­
vados das faltas e dos passos em falso, enquanto os grandes espíritos
estão sujeitos a cair, devido ao próprio facto da sua grandeza» (33, 2).
O tratado Sobre o Sublime estimula, assim, um movimento para os
gostos mais apaixonados, mais irracionais e mais românticos que iria
ser, ao longo do século n, os gostos do que se desginou por «segunda
sofística».
De facto, os «sofistas» tiveram um papel considerável no império.
Mestres de retórica, mas também mestres do pensar, eles ensinavam, pre­
gavam, aconselhavam os príncipes, tomavam partido sobre aspectos da
literatura, da religião, da moral, da política. Muitas vezes, iam de cidade
em cidade, como grandes personagens. O termo «sofista» não implica, no
seu caso, quaisquer conotações que a palavra tem em francês: são, muito
simplesmente, «mestres».
Alguns deles, contudo, tinham adquirido o hábito dos primeiros
sofistas e escolhiam mostrar a sua habilidade a propósito de temas para­
doxais e absurdos: o grande Díon de Prusa, que iria ser chamado «Cri­
sóstomo» («com boca de ouro»), escreveu, assim, elogios ao papagaio,
ou ao mosquito, ou da cabeleira (temos um fragmento); mas só fez isso.
Nascido em 40 d. C. (na Bitínia), pertencia a uma grande família e foi um
mestre de renome. Depois, exilado durante catorze anos devido à sua
amizade com um parente de Domiciano, encontrou na provação um estí­
mulo, que lhe permitiu aprofundar o seu pensamento e aproximar-se do
estoicismo e do cinismo. Morreu por volta de 120. Conservaram-se dele
oitenta discursos (nem todos autênticos). Alguns dirigem-se a cidades
(Rodes, Alexandria, Tarso, etc.); outros discutiam as qualidades que
um rei deve ter; outros, por fim, exaltam um ideal moral de moderação.

30 9
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Ele tem uma espécie de ironia socrática, de firmeza e de uma real eleva­
ção. O sucesso que conheceu durante alguns séculos foi imenso.
Muitos foram, directa ou indirectamente, seus discípulos. Como
Favorino, Herodes Ático e, depois dele, Élio Aristides.
Élio Aristides pertence ao século π e foi, sem dúvida, o «sofista» mais
célebre desta época, e foi muito importante. Nascido na Mísia em 129,
viveu sobretudo em Esmima, que exaltou em inúmeros tratados, e mor­
reu em 189. Admirava, acima de tudo, Isócrates, o defensor da retórica
e, como Cecílio, atacava Platão, que tomara partido contra ela. Os seus
tratados, Sobre a retórica e Sobre os quatro (trata-se dos grandes homens
de Atenas: Milcíades, Címon, Temístocles e Péricles), são, seis séculos
depois, respostas a Platão. Tal como Isócrates, escreveu um Panatenaico.
Tal como Isócrates, defendeu a concórdia. Também escreveu peças de
circunstância ou discursos a propósito de acontecimentos fictícios. No
total, conservamos dele cinquenta e cinco discursos. Os curiosamente
mais pessoais são os seis Discursos sagrados, em que fala de si, das suas
doenças e das curas miraculosas que Asclépio lhe proporcionou, em Pér-
gamo; Élio Aristides acreditava nos sonhos, nas profecias, nos sinais pre­
monitórios: este discípulo de Isócrates tinha o gosto do irracional.
Este gosto iria ser uma das características da segunda sofística. Os ho­
mens que pertenciam a este movimento eram, na sua maioria, pessoas
da Ásia, que gostavam da ênfase e faziam de mágicos. Entre eles, Nice-
tes era de Esmima, Loliano era de Éfeso, Escopeliano de Clazómenas,
Adriano e Máximo de Tiro, Pólemon de Laodiceia, etc. Quase todos
recorriam a Górgias e às suas figuras de estilo, mais do que à sobriedade
ática. Buscavam as seduções do discurso poético, salientado pelas metá­
fora e debitado no modo inspirado. Muitos afectavam, geralmente, os
arroubos sagrados. Eram sofistas mas, na sua arte, não se limitavam às
técnicas racionais da palavra.
Conhecemos bem estes traços pela obra de Filóstrato.
De facto, houve muitos Filóstratos, mais ou menos aparentados, que
se sucederam em diversas épocas do império - o que, para estes trata­
dos, não deixa de criar alguma confusão. Mas as duas obras mais impor­
tantes, constituídas pelas Vidas dos sofistas e a Vida de Apolóuio de Tiana,
pertencem ao segundo Filóstrato, um homem que viveu, em geral, de 160
ou 170 até uma data situada cerca de 245 e que foi, em Roma, protegido

310
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

da imperatriz Júlia Domna, mulher de Septímio Severo - ela própria síria


e filha de um sacerdote do Sol.
As Vidas dos sofistas, que começam com Górgias e continuam com
a segunda sofística, são a fonte que melhor mostra essas tendências tea­
trais e inspiradas, próprias da nova eloquência.
Quanto à Vida de Apolónio de Tiana, situa-se desde logo no mundo
da magia ou do milagre. É uma obra em oito livros, consagrada a um
taumaturgo do século 1, que se reclamava do pitagorismo. A obra de
Filóstrato faz dele um ser divino; conta a sua viagem à índia, onde Apo­
lónio foi testemunha de todo o tipo de maravilhas, a sua passagem por
Alexandria, depois pela Etiópia (onde encontrou os Gimnosofistas), sem
falar da forma como, em Roma, saiu miraculosamente da prisão...
Mais tarde, o livro foi oposto aos Evangelhos. Com certeza não o
merece. Mas ele traduz bem, nesse início do século m e nesse império
que se vai enfraquecendo, a confusa aspiração que as províncias da Ásia
oferecem ao misticismo e ao sobrenatural. Essa aspiração explica o cres­
cente sucesso dos cultos orientais (de Mitra, de ísis e de Osíris); e, em
parte, ela iria encontrar forma de se satisfazer precisamente no Cristia­
nismo.
A sofística tradicional não se extinguiu, no entanto, com o apareci­
mento do Cristianismo; pelo contrário, conheceu um aumento de impor­
tância no século iv, junto do imperador Juliano; mas, nesse momento,
sofistas e cristãos têm relações e discussões uns com os outros. Estes
últimos desenvolvimentos ficarão, então, reservados para o final do capí­
tulo, uma vez que, precisamente aí, daremos lugar aos cristãos.

IV.
O ROMANCE

O romance nasceu no século i da nossa era: desenvolveu-se à mar­


gem da história e à margem da retórica. A uma deve o quadro narrativo,
à outra, o seu sentido da situação fictícia e a sua arte da ilusão. Também
deve muito às intrigas da comédia nova. As suas características tomam-
-no, no entanto, num género bem à parte, com exigências precisas. E a
primeira delas pretende que o romance seja sempre a história de um casal

311
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

que se ama e que mil circunstâncias separam, arrastando um e outro para


viagens longínquas, antes do reencontro final. De facto, a maioria dos
romances gregos tem por título o nome dos dois amantes (como Quére-
as e Calírroe, ou Dáfnis e Cloe; do mesmo modo, as Efesiacas são um
outro título para Habrócomes e Antia; e as Etiópicas, um outro título
para Teágenes e Caricleia). Quanto mais as aventuras são terríveis e pro­
longadas, mais meritória é a fidelidade e mais comovente é a alegria da
ternura por fim recompensada. E possível que a ideia desta busca amo­
rosa esteja ligada, em parte, a influências orientais.
O género é, então, muito mais definido e particular do que aquilo
que o seu nome evoca na literatura moderna; não há dúvida de que as
primeiras obras deste tipo surgiram na literatura grega da época romana.
Os inícios do romance grego estão, em parte, perdidos: conservaram-
-se apenas vestígios (que talvez remontem à época helenística) de nar­
rativas de carácter histórico, mas de conteúdo imaginário. Como o são
os «romances» relativos a Tróia (que se pretendiam «autênticos», pelo
menos a julgar pelas narrativas latinas atribuídas um pouco mais tarde
a Díctis e Dares), ou então as aventuras de Nino e Semíramis (de que
temos pequenos fragmentos em papiro, que já davam um lugar impor­
tante ao amor). O quadro também podia ser geográfico, como nas Via­
gens deJambulo (citadas a partir de Diodoro Sículo), ou nas Maravilhas
para além de Tule (que Luciano imitou e de que temos o resumo).
Depois, no século n d. C., encontramos verdadeiros romances, que
foram conservados.
Quéreas e Calírroe é um romance conhecido em oito livros, escrito
por Cáriton, que nasceu em Afrodísia, na Cária. Ele põe em conflito per­
sonagens que pertencem à família de Hermócrates (o Siracusano do
século v a. C.) com o rei da Pérsia e os sátrapas: intrigas, ciúmes, falsa
morte, piratas, todos os recursos do romance de aventuras já estão ao
serviço deste romance de amor.
As Efesiacas são a obra de Xenofonte de Éfeso. O romance, em
cinco livros (ou dez, originalmente?) conta as aventuras de Habrócomes
e de Antia, os quais, ameaçados por um oráculo, partem em viagem:
naturalmente, intervém uma tempestade, e o naufrágio e os piratas; os
jovens esposos são separados, caem em situações perigosas para a sua
virtude e voltam a escapar! No entanto, os dados foram tirados da rea­

312
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

lidade do mundo mediterrânico da época; e o fantástico tende a dar o


lugar ao romanesco propriamente dito.
As Etiópicas (ou Teágenes e Caricleia) são a obra de Heliodoro, um
Fenício de Émesa, e provavelmente datam do século m. Caricleia é uma
jovem princesa da Etiópia, abandonada pela sua mãe e criada em Delfos.
Teágenes apaixona-se por ela. Para obedecer a um oráculo, eles deixam
Delfos: naufragam, caem nas mãos de piratas, são expostos a terríveis
paixões (a mulher do sátrapa do Egipto apaixona-se por Teágenes). E vão
ser imolados ao Sol, na própria Etiópia, quando são reconhecidos, liber­
tados e unidos. A entrada no assunto é viva, as personagens variadas, as
cenas de género brilhantes. Numa palavra, o autor consegue tomar vivos
os dados mais artificiais e os mais convenientes.
A estes três romances de um tipo tão semelhante, importa juntar
outros - uns perdidos (como as Narrativas babilónicas, do Sírio Jâm-
blico, que convém não confundir com o filósofo), outros conservados
(como as Aventuras de Leucipe e de Clitofonte, de Aquiles Tácio, onde
o herói diz «eu» e onde as aventuras o levam da Síria ao Egipto e do
Egipto à Ásia Menor). No conjunto, todos denotam o mesmo gosto pela
viagem e pelas aventuras imaginárias, que também se traduz, já o vimos,
em obras como a Vida de Apolónio de Tiana.
O amor fazia a diferença. Ora, há um romance um pouco diferente
dos outros, em que o amor tem um lugar ainda maior e onde as aventuras
da viagem desapareceram: é o Dáfnis e Cloe, de Longo. Os nomes das
personagens indicam-no: desta vez, trata-se de um romance pastoril, ou
bucólico; chama-se, muitas vezes, ao romance Pastoris. Dáfnis e Cloe,
crianças perdidas, são, na realidade, criados por pastores, em Lesbos.
Evidentemente, conhecem as aventuras tradicionais: Dáfnis é levado por
corsários, Cloe é alvo das investidas de um boieiro; Dáfnis inspira uma
lamentável paixão ao denominado Gnáton, etc. Mas o campo - o de Teó-
crito - envolve toda a sua atmosfera e as descrições da vida rústica dão
à história uma presença mais concreta, a que não falta encanto. Além
disso, na descrição do nascimento do amor, há uma sensualidade que se
ignora, mas que retém a atenção; o amor de Cloe por Dáfnis vem quan­
do ela o ajuda a lavar-se e que o acha belo: daí em diante, sem saber o que
lhe acontecia, «ela não tinha gosto por nada, os seus olhos já não lhe
obedeciam, só tinha na boca o nome de Dáfnis»; e Dáfnis, esse, é agitado

313
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

por um beijo: «Dir-se-ia que ele tinha recebido, não um beijo, mas uma
picada que queima; de súbito, assombrava-se, tinha arrepios, reprimia
os batimentos do coração, queria ver Cloe e, quando a via, o rubor tingia-
-lhe a face.». Vemos que o pastor de Lesbos é, aqui, fiel à poetiza da ilha
e Longo volta a encontrar o toque de Safo. Estas características originais
que o romance apresenta, juntos à sua relativa brevidade (tem, apenas,
quatro livros), explicam o seu sucesso excepcional. Amyot e P.-L. Cou-
rier traduziram-no para francês, Goethe colocava Longo antes de Virgílio;
o pintor Corot e o músico Maurice Ravel inspiraram-se ambos nele.
Pela mesma época, difundia-se, também, o gosto pelas cartas de
amor. Para dizer a verdade, tomava-se uma moda escrever cartas fictí­
cias: Alcifron iria consegui-lo notavelmente e foi-nos conservada uma
recolha de cento e dezoito cartas, que constitui como que uma sequên­
cia de cenas de género. Também aí o amor iria instalar-se naturalmente;
triunfa, no século v, na recolha de cinquenta cartas de Aristéneto, todas
elas alimentadas por literatura e por imitações.
Este gosto, combinado com o amor e as narrativas imaginárias, é
um outro sinal de uma época que já não se concilia com a realidade. Tra­
duz o mesmo desejo de fuga dos nossos romances policiais; mas, numa
outra civilização, adquire igualmente uma outra forma: a literatura grega
do império procura a evasão no refinamento de uma cultura que se imita
a si mesma.

V.
L U C IA N O

As diversas tendências que salientámos na literatura grega da época


romana encarnam todas em Luciano. Tal como Plutarco, ele escreveu
uma quantidade de pequenos tratados sobre diversas questões, muitas
vezes morais. Por outro lado, ele próprio desempenhou a função de sofis-
ta e deixou obras características dos interesses da sofística. Mas também
se deleitou com narrativas imaginárias e divertiu-se a imitar os roman­
ces da moda. No entanto, por um paradoxo bastante notável, ocupou-se
acima de tudo a rir-se daquela época, da sua filosofia, da sua história, da
sua retórica, dos seus romances, do seu gosto pelo irracional. E, ao

314
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

mesmo tempo, um seu representante muito fiel e um juiz bastante seve­


ro. A este respeito, merece duplamente encerrar este esboço tão rápido.
Em virtude de um outro paradoxo, importa dizer que este escritor, tão
perfeitamente ático e em cujas obras as crianças de hoje aprendem a ler
grego, era um Bárbaro por nascimento: este Sírio de Samósata aprendeu
grego na escola. Nasceu por volta de 120 ou 125; e ele mesmo conta (no
Sonho) como é que primeiro foi deixado em casa de um tio, que fabrica­
va estatuetas. Houve um incidente e conseguiu ir estudar com os mestres
gregos de retórica (a «Cultura» ou Paideia prevalece, assim, sobre a
«Escultura» no debate onde, segundo a sua narrativa, se joga o seu futuro).
De facto, muito cedo ele é, por seu turno, sofista, percorre a Grécia, a Itá­
lia, a Gália, com grande sucesso, e escreve para a aparência, como fazem
os sofistas. Depois, por volta de 160 ou 165, eis que se cansa desta vida
e corta com a retórica: é ainda ele que conta, na Dupla Acusação ou os
Julgamentos o processo que a retórica intenta contra ele por causa da
ingratidão com que ele a abandonou e preferiu o diálogo. Com efeito,
Luciano vai, então, fixar-se em Atenas, onde frequenta filósofos e intelec­
tuais. Não era o seu primeiro contacto com a filosofia. Em Roma, conhe­
cera o filósofo platónico Nigrino: consagrou-lhe um diálogo (Nigrino, ou
o retrato de umfilósofo). Talvez apreciasse mais o espírito da escola cíni­
ca e a recordação das sátiras de Menipo (de que se falou no capítulo pre­
cedente): Menipo figura em diversos diálogos (está em dez dos trinta
diálogos dos mortos). Mas a principal reacção de Luciano a estes filóso­
fos e às suas discussões é a de fazer rir às suas custas. Nos seus escritos
da altura, que são a parte principal da sua obra, ri-se deles e das suas dou­
trinas - tal como dos caprichos humanos em geral. Encontrou a sua via,
o seu género, o seu tom. No entanto, depois de vinte anos desta vida bri­
lhante e divertida, renuncia outra vez: deixa Atenas. Os seus últimos anos
estão menos bem conhecidos: sabemos, apenas, que retomou as suas via­
gens, depois exerceu funções no Egipto e morreu no final do século.
A sua obra é ampla e extraordinariamente variada. Guardaram-se em
seu nome oitenta e dois escritos: esta quantidade inclui, sem sombra de
dúvida, obras que não são dele (como o tratado Sobre a deusa síria, que
descreve, em jónico, manifestações religiosas muito pouco do seu gosto);
não possuímos com certeza a sua obra integral.

315
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Esta obra inclui um pouco de tudo - e até versos (Já que há duas
pequenas composições dramáticas e uma recolha de uns cinquenta epigra­
mas). Podemos descurá-los, como podemos descurar os textos propria­
mente sofísticos, de pura virtuosidade (Elogio da mosca, Julgamento
das vogais, ou discursos fictícios como o Tiranicida). Fica, ainda, uma
série de peças através das quais este moralista cheio de fantasia critica
os caprichos daqueles que o rodeiam.
Por vezes, a sua crítica pode ser simplesmente literária. É o caso no
pequeno tratado Sobre o modo de escrever a história, em que se ri da forma
de escrever história que se usava no seu tempo e dos autores «que se
rasgam em elogios sobre os príncipes e os generais, elevando até às
nuvens os da sua nação e depreciando indecentemente os inimigos», ou
então realizam as narrativas fabulosas e os prólogos grandiloquentes,
mais ou menos bem copiados dos escritores anteriores. A crítica de Lucia-
no é razoável e distingue bem os defeitos da época.
Do mesmo modo, ri-se dos romances contemporâneos quando escre­
ve Uma história verídica: decide, por seu turno, escrever um, «só para
não ser o único a não beneficiar da faculdade de contar histórias fantásti­
cas» (3); e refere que nada será verdadeiro: segue-se a narrativa de viagens
fantásticas, que levam à lua, depois ao estômago de uma gigantesca
baleia, depois à ilha dos bem-aventurados e à terra dos sonhos... O princí­
pio é a paródia, mas o talento de Luciano toma-a, por si mesma, atraente.
O carácter irracional de muitos textos da época é objecto de severas
zombarias. E dois tratados devem ser postos em contraste com a Vida
de Apolónio de Tiana, a que nos referimos mais acima. A carta Sobre a
morte de Peregrino zomba do suicídio espectacular da personagem e de
toda a hipocrisia de que não deixara de dar provas: a credulidade da época
mostra-se no fim, quando a morte do pouco recomendável Peregrino
adquire o aspecto de uma apoteose acompanhada de milagres. Do mesmo
modo, o tratado intitulado Alexandre ou o falso profeta é a história de
um impostor, que simulava arrebatamentos divinos, fazia habilidades de
prestidigitação, pronunciava oráculos e enchia Roma com os seus suces­
sos. A crítica é particularmente áspera e sem dúvida justificada. Importa,

(3) N.T.: A tradução foi retirada da tradução portuguesa: Luciano, Uma História Verí­
dica, (prefácio, tradução e notas de Custódio Magueijo), Lisboa, Editorial Inquérito, 1985.

316
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

ainda, acrescentar que Luciano estendia esta crítica a formas muito par­
ticulares de credulidade: foi, muitas vezes, comparado com Voltaire e,
como Voltaire, detestava a superstição. O seu pequeno tratado Sobre o
luto difama os ritos fúnebres e as crenças que eles implicam. E o modo
irreverente como põe em cena os deuses é, precisamente, de um espíri­
to que designaríamos como voltairiano.
Mas esses ataques à credulidade já nos fizeram passar dos modos
literários para as crenças e as doutrinas. Ora, neste domínio, importa
precisar que Luciano reserva os seus ataques mais virulentos para os filó­
sofos, para as suas doutrinas abstrusas e as suas querelas. Um título como
O leilão ciefilósofos é característico: trata-se de uma pequena seita diver­
tida, em que Zeus põe à venda os representantes das principais escolas
filosóficas: as doutrinas de cada um, resumidas de fora, parecem extra­
vagantes e ridículas. Os mesmos filósofos reaparecem no Pecador ou os
ressuscitados com outras; desta vez, é a filosofia que os julga; e, para se
apoderar deles, atrai-os com ouro. Ataques análogos encontram-se no
Timon, em que um filósofo de longas barbas é apanhado em flagrante
delito de cupidez, e, sobretudo, no Icaromenipo. Tal como Uma história
verídica, este diálogo pressupõe uma viagem «para além das nuvens», até
à morada de Zeus; mas a ideia é que, de tão alto e tão longe, vêem-se melhor
as loucuras dos homens. Primeiro, Menipo, a meio caminho, pára para os
contemplar; depois, chegado à morada de Zeus, assiste ao trabalho deste
último, que vela pela administração do mundo e pelo controlo dos votos
contraditórios ou absurdos dos homens. Mas, de todos estes males, um
dos piores é, mais uma vez, a atitude dos filósofos, «essa raça preguiço­
sa, altercadora, vaidosa, irascível, gulosa, extravagante, inchada de orgu­
lho, cheia de insolência...»; a solução impõe-se: Zeus decide fulminá-los.
Por estas evocações vemos que, na realidade, Luciano censura aos
filósofos que tenham mais vaidade e extravagância do que os outros
homens, mas que no resto partilham os seus defeitos. Com efeito, na
maioria dos seus pequenos tratados ou diálogos, Luciano procede como
moralista e mostra aos homens as suas loucuras. Esses pequenos trata­
dos ou diálogos são mais originais pela forma do que pelo conteúdo.
As ideias, com efeito, são simples e razoáveis. Vemos sucederem-
-se os ridículos de uma sociedade, o parasita, o misantropo, etc. Dois
temas regressam com frequência: Luciano volta-se, geralmente, quer con­

317
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

tra a vaidade das riquezas, quer contra a vaidade dos desejos. O tema da
riqueza aparece, por exemplo, no Sonho ou o galo: é o diálogo entre um
sapateiro, que sonha com a fortuna, e o seu galo, que é a reencarnação
de Pitágoras e lhe revela as preocupações dos ricos: reconhece-se o tema
da fábula do Sapateiro e do financeiro. A mesma ideia reaparece no
Tímon ou o misantropo, em que intervêm a Pobreza e a Riqueza, como
no Pluto de Aristófanes. E também a encontramos no Caronte ou os con-
templadores, onde Caronte, tirando um dia de férias, observa as infeli­
cidades dos grandes e dos ricos. Quanto à vaidade dos desejos, que já
vimos manifestar-se em diversos textos (como o Icaromenipo ou até no
diálogo do galo), ela é o tema central do diálogo intitulado o Navio ou
os desejos, onde cada um se entrega loucamente a sonhos irrealizáveis.
Esta sabedoria seria muito pouca se não fosse servida por uma forma
alegre e encantadora. A literatura grega tinha praticado muito o diálogo
antes de Luciano: basta lembrar os diálogos de Platão; esta tradição
explica, sem dúvida, as características desta forma literária, adequada a
quem quer discutir ideias. Mas os diálogos de Luciano são muito diferen­
tes dos de Platão. Têm a mesma ironia sarcástica que as sátiras dos cínicos,
o mesmo tom natural alegre que as cenas da comédia nova. Por aí, criam
uma nova forma literária; e Luciano teve consciência disso, visto que
declara muitas vezes que anteriormente não havia qualquer relação entre
o tom do diálogo e a comédia e que ele foi o primeiro a associá-los; diz,
por exemplo, na Dupla acusação, 34, que, antes, o diálogo lhe parecia
venerável, mas pouco gracioso para o público: «Comecei a ensiná-lo a
andar no chão, como os homens; lavei a sujidade com que estava cober­
to e, ao forçá-lo a sorrir, tornei-o mais agradável aos espectadores. Mas,
sobretudo, associei-o à comédia e, com esta aliança, conciliei-o com a
benevolência dos ouvintes que, até aí, receavam os espinhos com que
estava armado e não ousavam tocar-lhe mais do que a um ouriço.»
Finalmente, já em Platão o diálogo tinha posto mortos a falar, mas
referindo-se à época da sua vida: Luciano ficou célebre pelos seus diálogos
dos mortos. Tal como os viajantes imaginários, que vão «para além das
nuvens», os diálogos de Luciano vão em direcção a mundos irreais, abrindo-
-se, assim, possibilidades acrescidas. Relativamente a este aspecto, ele iria
ter muitos émulos, em França e noutros locais: os Diálogos dos mortos de
Fontenelle e os de Fénelon são, entre outros, dois bons exemplos.

318
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

Não seríamos capazes de nos espantar com tal posteridade: para o


fim da literatura grega clássica, Luciano, que não era Grego e vivia numa
época que nada tinha de clássico, marca assim, até nas suas inovações,
uma espécie de completa graça clássica. E, no entanto, o mundo onde
ele vivia e que se reflecte, mais ou menos, na sua obra, era um mundo
em transformação, em desordem e prestes a desmoronar-se em todos os
domínios.

VI.
A FILOSOFIA

Antes de evocar o surgimento na literatura grega deste elemento


absolutamente novo que a literatura cristã constitui, convém lembrar
que, face a estas obras históricas, romanescas, ou retóricas, continuava
a desenvolver-se o pensamento filosófico e este evoluía numa direcção
profundamente original: Luciano permite que se faça uma boa ideia.
Isto não é de todo verdade da actividade científica. A época já não
é para grandes descobertas. No entanto, as investigações nos vários
ramos continuam. A astronomia produziu, na época de Marco Aurélio,
o famoso sistema de Ptolomeu, que se inscreve na sequência das des­
cobertas da época alexandrina; e a medicina, na mesma época, conta
com um nome ilustre, o de Galeno, que foi uma verdadeira súmula crí­
tica dos conhecimentos acumulados neste domínio. Era de Pérgamo e
tinha adquirido uma vasta cultura. A sua bibliografia era constituída por
mais de cento e cinquenta obras: muitas foram conservadas, quer em
grego, quer em traduções latinas ou árabes; mas nem todas tratavam de
medicina. Enfim, podemos acrescentar que, a partir da segunda metade
do século i d. C., a farmacopeia contava com um nome destinado a ficar
célebre e uma obra que nos seria conservada, a de Dioscórides.
Todos estes nomes foram importantes durante a Idade Média, mas
é evidente que são poucos e que evocam apenas uma importante reno­
vação.
Em contrapartida, algumas doutrinas filosóficas adquirem, ao longo
dos quatro primeiros séculos da nossa era, uma extensão muito grande
e uma nova cor.

319
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

O cepticismo fica à margem. Pelo menos, é representado por um dos


seus grandes nomes: o de Sexto Empírico («o empírico»!), que viveu
pelo fim do século u e combateu resolutamente os dogmáticos, os eru­
ditos, os retores. A própria violência dos ataques que conduz contra o
poder da razão talvez seja um sinal dos tempos.
A renovação mais clara manifesta-se entre os estoicos e, sobretudo,
entre os platónicos.
Na época, o estoicismo era representado por um escravo frígio e por
um imperador. Epicteto viveu sob o reinado de Nero e dos seus suces­
sores. O seu senhor mandou instruí-lo; e Epicteto, liberto mais tarde,
pôs-se a ensinar a filosofia estoica, primeiro em Roma, depois no Epiro;
teve inúmeros discípulos; Arriano aplicou-se a dar a conhecer o seu pen­
samento, publicando as Conversações e o Manual. No estoicismo, reteve
sobretudo a moral e, na moral, a ideia de uma libertação do sábio. O seu
amor pela humanidade parece um sinal dos novos tempos. Quanto ao
imperador Marco Aurélio (121-180), apesar de Romano, escreveu frequen­
temente em grego; a sua obra essencial é constituída pelos seus Pensa­
mentos, que se apresentam um pouco como um diário da sua vida interior
nos anos de 170-174. Nela exprime um ideal de serenidade, de aceita­
ção, de aspiração a imitar Deus; o mais notável é que ele dá a esse ideal
um cunho pessoal e vivido. O filósofo estoico adquire uma feição cada
vez menos doutrinária, cada vez mais interior: enquanto o Cristianismo
começa a difundir-se, a filosofia não-cristã já assume certos traços da fé
e do diálogo com Deus.
Quanto ao platonismo, é renovado a partir de dentro com tal poder
que devemos falar, para esta época, de neoplatonismo. O responsável
por esta renovação interior é Plotino.
Plotino nascera no Egipto em 204; depois de uma juventude estu­
diosa em Alexandria foi ensinar para Roma e levou ali, apesar do suces­
so, uma vida austera e modesta, antes de morrer, em Itália, com a idade
de sessenta e seis anos. Não deixou de ensinar e de escrever, desordena­
damente, o conteúdo das suas meditações. O seu discípulo Porfírio iria
publicar estas séries de reflexões, reagrupando-as em seis séries com
nove tratados, intitulados Enéades (ou «novenas»),
Plotino é discípulo de Platão; vale-se dele; reflecte a partir das suas
obras. Mas o importante é que não retém o platonismo todo. O que para

320
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

ele conta, acima de tudo, é o movimento inicial do platonismo, que dis­


socia o mundo sensível do mundo das ideias, considera o primeiro infe­
rior e pretende, o mais possível, libertar-se dele. A libertação do corpo
e a assimilação a Deus, tal como as encontramos no Fédon, são o pró­
prio núcleo do pensamento de Plotino. E a ideia da revelação do Bem,
com o seu carácter indizível, tal como a encontramos na carta VII de
Platão, define bem o seu fim último.
Só que, ao privilegiar estes aspecto, Plotino introduziu no platonis­
mo uma nova parte e um tom muito mais místico. Quis, como Epicteto,
um afastamento completo do mundo sensível, realizado por meio de uma
espécie de ascese; mas esta devia conduzir, não apenas à contemplação
do Bem, como em Platão, mas a uma verdadeira união com ele. Imitar
Deus era um fim reconhecido por Platão e por Marco Aurélio: Plotino
acrescenta-lhe a ideia de uma verdadeira comunicação com Deus, obti­
da por meio do êxtase. E esse aspecto místico do seu pensamento não
era apenas uma questão de tom afectivo: implicava a crença em tudo o
que pode servir de intermediário entre o homem e Deus - ritos, astrolo­
gia, crença nas divindades. Embora este neoplatonismo seja infinitamen­
te menos racionalista e infinitamente mais religioso do que o platonismo
de que se reclamava. Já não se preocupa com a dialéctica. Nem se preo­
cupa com o pensamento político. Rompe com o real para procurar, desde
logo, o além.
Esta renovação do platonismo desempenhou uma função importan­
te; e parece característica em muitos aspectos. Tentámos, por vezes, apre­
sentá-la como o efeito de influências orientais; e é muito possível que
estas tenham existido. Plotino viveu em Alexandria; e não esconde que
desejou conhecer a sabedoria da Pérsia e da índia. No entanto, parece que
a sua elaboração do platonismo é sobretudo em função dos novos tempos.
As próprias influências orientais fazem parte do alargamento do império.
A aproximação das doutrinas prova uma agitação das ideias e uma aspi­
ração comum. A insistência numa aventura espiritual do indivíduo e o aban­
dono da reflexão política correspondem ao novo estado político. E, acima
de tudo, o misticismo que surge ali associa-se ao mesmo tempo ao desejo
de evasão e ao gosto do irracional, que então se difunde um pouco por
todo o lado. E como não ver que estas novas tendências, em Plotino como
em Marco Aurélio, anunciam o triunfo iminente do Cristianismo?

321
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Não podemos dissociar do nome de Plotino o do seu discípulo Por­


fírio, que não só publicou textos do seu mestre, mas redigiu a sua biblio­
grafia. Ele foi o grande profeta do neoplatonismo e acabou por tomar a
filosofia numa «ciência de Deus», ou theosophia. Além disso, interes­
sava-se pela história da filosofia e dos filósofos (na qual Diógenes Laér-
cio, quer dizer, de Laerte, na Ásia Menor, acabava de se ilustrar): também
temos, de Porfírio, uma Vida de Pitágoras. Sobretudo - facto novo no
exame das obras pagãs da época - ele pretendia defender o pensamento
dos seus mestres da nova religião: ele escreveu um Contra os cristãos',
com este homem do século m (viveu de 223 a 303 e era de Tiro), o diá­
logo centrou-se, por fim, entre o pensamento pagão e o pensamento cristão.
E já era tempo: Porfírio fora aluno de Longino, mas também conhecera
o grande doutor cristão Orígenes.
A tendência neoplatónica manteve-se depois de Plotino e de Porfírio.
No início do século iv foi ilustrada pelo Sírio Jâmblico (que escreveu,
também ele, uma Vida de Pitágoras): o seu tratado Sobre os mistérios
faz intervir um sacerdote egípcio e mostra a tendência cada vez mais
religiosa e orientalizante da filosofia. O neoplatonismo também iria
influenciar o imperador Juliano. No século v, é representado em Atenas
por Proclo (410-485), que nascera em Bizâncio. Entre as suas obras figu­
ram os Elementos de Teologia, um Comentário sobre o Timeu e um estu­
do Sobre a teologia de Platão, entre outros: estes títulos mostram com
eloquência a dupla inspiração do seu pensamento. Mas ele é mais siste­
mático e menos ardente do que os seus predecessores. Com ele, o neo­
platonismo organiza-se e condensa-se.
A veia mística que se manifestara aparece, por fim, numa série de
escritos, próximos do neoplatonismo, que podemos associar ao século m.
São os chamados escritos «herméticos», porque foram colocados sob o
nome de Hermes Trimegisto: sábio ou deus, este Hermes Trimegisto fez
revelações no Egipto (mais tarde, foi-lhe atribuída a invenção da alqui­
mia). Em torno desta personagem lendária formou-se uma literatura que
é o paralelo pagão daquilo que é, para os cristãos, a gnose: admite-se-
-lhe o dualismo e discutem-se os pontos de doutrina, procurando o meio
de melhor se unir a Deus. A influência oriental é sensível; é-o ainda mais
nos Oráculos Caldaicos, um escrito do mesmo género que data do reina­
do de Marco Aurélio. A época inteira inclina-se para a religião, o misti­

32 2
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

cismo e o mistério. Redescobrimos, ali, Platão, por causa do divórcio


entre o corpo e a alma; mas é um Platão sem a razão nem o esforço para
a clareza; é um Platão contemporâneo de Apolónio de Tiana e um Platão
tomado, neste mundo à beira da ruína, por um desejo de fuga a qualquer
custo - desde que seja uma fuga para Deus.
Em certos aspectos, o neoplatonismo não está tão afastado do Cris­
tianismo que não tenha podido ser utilizado pelos cristãos.

VII.
OS CRISTÃOS

Não poderíamos apresentar, aqui, mesmo abreviada, a história da


literatura grega cristã. Do século i ao v, ela está em pleno desenvolvimen­
to e representa uma quantidade de textos considerável. Por outro lado,
apesar dos possíveis pontos de contacto que acabam de ser assinalados,
os seus problemas, as suas referências, o seu quadro de pensamento e até
as suas tradições são outros. Tal como os historiadores cristãos apenas se
ocupam da Igreja, os pensadores cristãos ocupam-se da sua religião, da
revelação e das Sagradas Escrituras. E precisamente por isso que podemos
referir Sinésio de Cirene (370-413) para os escritos sofísticos de tipo tra­
dicional; ora, os seus textos são anteriores à sua conversão e foram segui­
dos por outros, de carácter totalmente religioso. Nesta época, quando se
é cristão, não se é nada mais. Também é preciso estudar esta literatura sui
generis em obras à parte, que lhe são consagradas. Apenas pareceu impos­
sível não referir, a respeito dos pensadores pagãos, a efeverscência cristã,
que data dos mesmos séculos e à qual, muitas vezes, eles respondiam;
mas não se trata de uma apresentação de princípio.
Por esta razão, podemos passar sobre os primeiros escritos cristãos,
em grego, que conhecemos: são cartas ou obras apologéticas, que não
ultrapassam o género do texto de circunstância. Em contrapartida, com
o fim do século n, vemos surgir grandes autores, com vastas ambições
intelectuais e que decidiram usar a herança da cultura grega para a defe­
sa do Cristianismo. Assim, vemos que fazem uma espécie de troca.
Enquanto as aspirações religiosas se desenvolvem no pensamento pagão,
as tradições literárias do paganismo vão inserir-se nos escritos cristãos.

323
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Pelo final do século n, o homem mais característico é Clemente, a


quem chamamos Clemente de Alexandria, porque foi para Alexandria
seguir o ensino de um antigo estoico convertido ao Cristianismo, e também
ensinou ali de 190 a 203. As perseguições puseram fim ao seu ensino;
iria morrer por volta de 215. Este homem, infinitamente erudito, pôs toda
a sua erudição ao serviço da fé. Deixou diversos escritos, entre os quais
três, de extensão desigual, que constituem como que uma sequência: são
o Protréptico, o Educador e os Estrômates.
Os títulos dos dois primeiros já são eloquentes. «Protréptico» sig­
nifica «que exorta». A obra, relativamente pequena, dirige-se aos espí­
ritos ainda indecisos, ou então insuficientemente penetrados pela fé, e
convida-os a rejeitar o paganismo, com o seu materialismo, as suas con­
tradições, a sua imoralidade. Quanto ao Educador, dirige-se aos conver­
tidos e é constituído por uma sequência de conselhos para aprender a
viver de acordo com o novo ideal. Por fim, os Estrômates dirigem-se aos
cristãos e tentam esclarecer-lhes todos os problemas de doutrina que o
Cristianismo pode apresentar: é uma obra em sete livros, que aborda
diversos temas («Strômates» siginifica «tapeçarias») e que é mais direc-
tamente teológico.
Esta gradação é característica do próprio espírito de Clemente, que
decide lutar contra o paganismo, mas sem cortar com a filosofia grega
e, pelo contrário, organizando uma espécie de passagem desta filosofia
para Cristianismo. Aos seus olhos, ela constitui como que uma prepara­
ção e uma propedêutica. Também se esforça por recuperá-la em benefício
da religião. Nos seus escritos encontramos uma quantidade de referên­
cias à filosofia pagã e um desejo deliberado de associar a razão à fé. Esta
mesma preocupação dá ao seu ensino o valor de um verdadeiro huma­
nismo cristão. E, inversamente, a sua obra impõe, de repente, o Cristianis­
mo no seio das letras gregas.
A sua importância aumenta mais pelo facto de ter sido mestre de
Orígenes.
Orígenes era um cristão de Alexandria, que mostrou muito cedo uma
dupla paixão pelo zelo cristão (isto mesmo no auge das perseguições) e
pelos estudos. Nascido em 185, ensinou jovem (ainda não tinha vinte
anos); mas em 232 teve de abandonar Alexandria, na sequência de uma
condenação por heresia. Ensinou, então, em Cesareia e, mais tarde, em

324
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

Tiro. Foi aí que morreu, com setenta anos, depois de ter sobrevivido à
tangente a diversas perseguições.
Discípulo de Clemente, Orígenes tinha, como ele, espaço para os
conhecimentos pagãos: o seu ensino partia da dialéctica e das ciências,
para se elevar progressivamente até à filosofia e à teologia. Por outro
lado, retomara o princípio (adoptado por Fílon) de distinguir nos textos
um sentido material e um sentido espiritual, admitindo deste modo, as
interpretações alegóricas: é, sem dúvida, daí que resultam as proposições
condenadas do ponto de vista da ortodoxia (como a desigualdade das
três pessoas divinas, que devia suscitar, igualmente, os problemas do
arianismo).
Mas esta mesma circunstância mostra que Orígenes é, apesar de
tudo, muito mais teólogo do que Clemente. É, de resto, um erudito.
Devemos-lhe uma edição das Escrituras em hebraico, com várias tradu­
ções justapostas, tal como escólios, homilias e comentários seguidos
sobre os vários pontos. Não hesita em suscitar as questões mais difíceis
relativas à revelação ou à encarnação. Por aqui dá o exemplo da exege­
se sagrada. O Tratado dos princípios (de que possuímos a tradução lati­
na) enquadra-se no mesmo espírito.
Ao mesmo tempo, Orígenes é um polemista, como Clemente, mas
muito mais sistemático e muito mais dialéctico. Quando um platónico
chamado Celso escreveu, sob os Antoninos, um tratado contra os cris­
tãos, intitulado Discurso verdadeiro, Orígenes decidiu escrever uma res­
posta, que nos foi conservada: é o Contra Celso, em oito livros, que ele
escreveu um pouco antes de 250. A crítica da filosofia grega, mal adap­
tada à massa da humanidade, é severa e firme.
Orígenes foi discutido, condenado, ouvido. Escreveram a favor e
contra ele. No entanto, estas discussões ficaram como debates de escola;
seria preciso esperar pelo século seguinte para vermos afirmar-se os
grandes talentos cristãos.
Esse século abre com Eusébio, de quem já falámos como historia­
dor (cf. pág. 307), mas que também praticou a exegese e a apologia. Com
efeito, ele escreveu duas grandes obras, a Preparação evangélica, em
quinze livros, e a Demonstração evangélica, em vinte livros; aí criticava
as teologias não-cristãs e demonstrava o acordo dos factos evangélicos
com as profecias. Trata-se, como nas suas obras históricas, de uma acu­

325
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

mulação erudita de factos e de citações, mais do que de um pensamento


crítico, ou o filosófico.
Em contrapartida, neste século iv, que nos seus inícios assistiu, simul­
taneamente, ao triunfo do Cristianismo (com a vitória de Constantino na
Ponte Mílvio, em 312) e a algumas das suas lutas internas mais agudas
(com a heresia do arianismo, condenada em 325), assistimos à eclosão
de grandes obras cristãs de propaganda, de exortação e de exegese, onde
a cultura grega introduz um verdadeiro brilho literário. Alguns destes
doutores cristãos foram, ao mesmo tempo que chefes espirituais, verda­
deiros homens de acção: a Igreja tornou-se num grande poder.
O primeiro em data é Atanásio, patriarca de Alexandria e o homem
mais encarniçado a lutar contra a heresia ariana: opondo-se aos discí­
pulos de Ario, tornava-se o campeão da «consubstanciacão». E não era
uma pura luta de ideias: nesta época perturbada, Atanásio não deixou
de ser honrado, exilado, chamado, reenviado pelos imperadores: apenas
os anos que precederam a sua morte (em 373) foram algo pacíficos.
A sua obra - e por bons motivos - reflecte, em parte, estas querelas.
Também inclui inúmeros trabalhos contra os discípulos de Ario, tal
como justificações e apologias relativas à sua própria atitude. Escreveu,
também, um Discurso contra os Helenos, uma Biografia de Santo Antão
e Cartas Pastorais. No conjunto, Atanásio é o feroz partidário de uma
rigorosa ortodoxia; não deixou de voltar à ideia da unidade de Deus e
da divindade do Verbo. Mais simples e mais nítido do que os autores
precedentes, afasta-se sobremaneira da filosofia grega; em contraparti­
da, tem o que aqueles não tinham: a eloquência arrojada e apaixonada
que lembra, ao serviço de uma causa muito pouco grega, a tradição ora­
tória da Grécia.
A defesa da ortodoxia passa, em seguida, para a cidade de que Eusé-
bio fora bispo e para a província da Capadócia, que adquiriu, no século iv,
uma grande importância religiosa: S. Basílio, o seu amigo S. Gregório
de Nazianzo e o seu irmão S. Gregório de Nissa são homens da Capadó­
cia; o próprio Basílio nascera em Cesareia e foi aí que conheceu, primeiro,
Gregório de Nazianzo; chegou mesmo a ser bispo aí.
Basílio, o Grande, nasceu cerca de 330 e morreu em 379. Filho de
um retor, fez sólidos estudos clássicos e foi, em Atenas, aluno de Libâ-
nio (cf. p. 333). Depois, entrou na vida religiosa e tomou-se bispo em 370.

326
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

Após a morte de Atanásio, foi ele o campeão mais firme da ortodoxia e


um chefe da Igreja com uma autoridade incontestada. Mas tinha um tem­
peramento mais flexível do que Atanásio e interessou-se mais pela moral
do que pela teologia. Uma das suas acções mais originais foi a de ter
desenvolvido, na Ásia Menor, a vida monástica, organizando comuni­
dades cuja regra ele fixava. Escreveu muito e encontramos na sua obra
trabalhos dogmáticos, como com os seus antecessores. Mas fez uma obra
mais pessoal em três tipos de textos, que são obras de predicador: as
Homilias, que abordam muitas vezes questões de moral, as escritos ascé­
ticos, que correspondem ao seu interesse pela vida monástica e fixam as
suas regras; e, por fim, as cartas. As homilias mostram-no a ensinar,
comentando muito simplesmente as Sagradas Escrituras (para as quais
reclama uma crença directa, sem alegoria nem transposição) e mara­
vilhando-se com as belezas do mundo. Quanto às suas cartas, formam
uma recolha que conta trezentas e sessenta e seis (nem todas autênticas);
foram escritas de 357 a 378 e dirigem-se a todo o tipo de corresponden­
tes, ao seu amigo Gregório, a bispos, a religiosas, aos seus parentes, a
magistrados. Esta correspondência constitui um documento muito rico
para a história da época; oferece também uma imagem viva deste homem
activo e generoso, sempre pronto a intervir nas questões práticas, a defen­
der a sua diocese ou os seus fiéis, mas também amigável, indulente, com­
preensivo.
A sua amizade com Gregório de Nazianzo toma-os mais unidos, um
e outro.
Gregório tinha, com alguns meses de diferença, a mesma idade. Tam­
bém ele fez estudos em Cesareia, depois em Alexandria e em Atenas.
Tomou-se sacerdote em 361, para ajudar o seu pai, o bispo de Nazianzo.
A continuação da sua vida mais não é do que uma série de alternâncias:
procura a solidão, deixa-se arrancar a ela, para prestar serviço ao seu pai
ou ao seu amigo Basílio, arcebispo de Cesareia, ou aos ortodoxos de
Constantinopla, ameaçados aquando da morte do seu caro Basílio. Mas,
de cada vez, regressa logo que pode à vida de solidão, a única que lhe
convém. E, todavia, associado ao seu amigo, dedicado à defesa das mes­
mas ideias e, contudo, com um temperamento muito diferente.
A sua obra também é paralela à de Basílio, mas inclui elementos de
um tom mais pessoal.

327
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Primeiro - é um traço muito característico - este homem culto e


apaixonado pela solidão é um dos raros cristãos a ter praticado a poesia:
o cristianismo aproxima-se cada vez mais das letras gregas. Os seus poe­
mas são morais e religiosos; acrescenta-lhe os epitáfios e os epigramas.
Tem até um poema Sobre a sua própria vida e um outro, menos longo,
Sobre os males da sua alma: a expressão dos sentimentos pessoais já
não parece deslocada ao lado da teologia.
Por outro lado, nos cerca de cinquenta discursos conservados de
Gregório de Nazianzo, salientam-se textos de circunstância, textos de
teologia, ataques (contra Juliano), elogios fúnebres (como o de Ataná-
sio, em 373). Mas nesta última categoria entram peças muito pessoais,
como o elogio de Cesário (seu irmão) e, sobretudo, o elogio de Basílio,
em 379: desta vez, a emoção do amigo dá ao panegírico o tom de con­
fidência e a admiração do autor por aquele que ele celebra e que reveste
de um carácter pungente. Também aí, por consequência, a expressão dos
sentimentos pessoais penetra a literatura cristã.
Este exemplo é, evidentemente, privilegiado; mas as mesmas tendên­
cias encontram-se por todo o lado. Habituado à meditação, Gregório pare­
ce sempre, quando escreve, referir-se à sua experiência directa, ou então à
sua imaginação: os seus argumentos também têm um cunho pessoal.
Enfim, importa acrescentar que possuímos dele, como para Basílio,
uma recolha de cartas (há quase duzentas e cinquenta, que datam sobre­
tudo do fim da sua vida). A sua elegância e a sua brevidade relevam do
seu carácter letrado.
Depois disto, pode admirar-nos que tenha sido chamado «o Teólo­
go»: o cognome evoca a firmeza da sua doutrina nos seus cinco Discursos
de teologia, pronunciados na altura em que era bispo de Constantinopla;
de facto, a sua presença literária é mais original do que a sua teologia; e
podia suceder que a primeira tenha levado à segunda.
Quanto ao irmão mais novo de Basílio, Gregório de Nissa, tinha
menos dez anos, mas foi criado por ele, com as mesmas ideias. Também
ele escreveu, entre outras, um Elogio de Basílio, tal como um Elogio de
Macrina, irmã deles. Teólogo ardente, é mais filósofo do que os dois mais
velhos (vemo-lo nos seus tratados, como o Grande Discurso Catequé-
tico, nos seus inúmeros discursos, nas suas cartas). Mas ele também é

328
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

menos escritor e, por isso, menos importante do ponto de vista da lite­


ratura grega.
Em contrapartida, um outro cristão, contemporâneo destes três ho­
mens, ou quase (era alguns anos mais novo do que Gregório de Nissa),
ocupa neste aspecto um lugar relevante: é S. João Crisóstomo. A predi­
cação cristã associa-se verdadeiramente, com ele, à cultura grega, antes
que esta se extinga.
Nasceu em 345 em Antioquia e também ele recebeu uma sólida edu­
cação clássica: foi aluno de Libânio e destinava-se, inicialmente, à elo­
quência. Esta primeira formação produziu, mais tarde, os seus frutos.
Depois, João foi baptizado. O seu gosto levava-o ao recolhimento e ao
ascetismo: apesar dos seus mestres, praticou-os durante muitos anos; e
encontramos na sua obra este gosto pela vida monástica. De regresso a
Antioquia, exerceu o sacerdócio e durante dezasseis anos não deixou de
falar, pregar defender a virtude. Por fim, em 397, foi chamado, sem o ter
desejado, para o cargo de bispo de Constantinopla; e aí tudo correu mal;
teve duas altercações com o poderoso eunuco Eutrópio, depois com a
imperatriz Eudóxia. Foi deposto, expulso, chamado novamente, depois
afastado da sua igreja em 404 e enviado para o exílio: transferido rapi­
damente dos confins da Arménia para a costa oriental do mar Negro,
morreu no trajecto, em 407. Acabava, assim, nos sofrimentos da opres­
são, um homem que tivera sob o poder da sua palavra as multidões de
Antioquia e de Constantinopla...
Com efeito, João Crisóstomo foi, acima de tudo, um predicador.
Dele temos muitos tratados e cartas; mas o essencial da sua obra é cons­
tituído pelas homilias. E os tratados já se distinguem pouco das homi­
lias: não são tratados eruditos de teologia, mas exortações morais. E o
caso, por exemplo, dos tratados Sobre o sacerdócio ou Sobre o celibato,
ou ainda, os pequenos tratados também eles relativos ao celibato dos
cristãos e que se chamam Coabitações suspeitas ou Como observar a
virgindade. Estes títulos mostram suficientemente que João não estava
apenas preso à pureza de costumes, mas ao ideal de vida ascética e
monástica que praticara na juventude e que ainda não estava organiza­
da, com ordens e conventos com regras estritas.
Mas é sobretudo nas homilias, naturalmente, que se espalha a sua
predicação. Elas representam perto de vinte anos de sacerdócio (mesmo

329
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

em Constantinopla ele falava duas vezes por semana). Aí, João mostra-
-se um crítico severo e penetrante dos vícios que infligiam maus tratos
em seu redor: critica o gosto pelos prazeres, o hábito da usura, o luxo e
a dureza dos ricos: não é de espantar que tenha inquietado os poderosos
de Constantinopla. Aliás, ele sabe permanecer firme face ao poder e mos­
trar uma grande autoridade, como nas homilias Sobre as Estátuas, pro­
nunciadas em horas trágicas para Antioquia, que temia perante a decisão
que ia tomar a respeito do seu imperador. Mas, em geral, o tom de João
é mais doce. Ele acredita profundamente na bondade de Deus, no seu
amor pelo homem. Tal como S. Paulo, que ele admirava particularmen­
te, exalta a piedade, o perdão, a doçura. E a função de predicador é, aos
seus olhos, a de curar os males dos homens; ora, para curar um doente
não recorremos à cólera e à brutalidade: «Com efeito, se fosse caso de
castigar e desempenhássemos as funções de juiz, a indignação seria indis­
pensável, mas se renunciarmos a ter uma tal função para assumir a de
médicos ou de enfermeiros benévolos, então é preciso exortar e rogar
aos nossos doentes, se for necessário, abraçar até os seus joelhos, para
alcançar os nossos fins» (Coabitações suspeitas, 1). A palavra, que é
infinitamente poderosa e eficaz, também se deve tomar compreensiva e
penetrante.
O que equivale a dizer que a eloquência é por ele reconhecida como
um precioso meio de acção. E, para a enriquecer, usa os recursos que
aprendera a conhecer em jovem. As citações das Sagradas Escrituras
nele são inúmeras, mas também encontramos nas suas obras ecos e remi­
niscências de numerosos autores da Grécia clássica: Platão, Esquilo,
Homero ou Demóstenes. As suas frases tornam-se insistentes ou vastas,
como as deste último. E as suas imagens vêm da Bíblia,, mas também
dos poetas do século de Péricles, ou da sua própria experiência. Todos
estes homens estão juntos, empenhados num único movimento, e asso­
ciados no serviço por uma mesma causa. Se ele é «Boca de ouro», como
Díon, é porque João se afastou das querelas entre seitas e se associou à
herança da cultura pagã. E também porque, como esta mesma cultura,
ele quis dirigir-se directamente aos homens para os fazer viver melhor.
Com ele, assistimos assim a uma transferência da cultura grega para
o Cristianismo, doravante triunfante. Mas negligenciar o último esforço,
feito neste mesmo século para defender os valores pagãos, seria falsear

330
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

o quadro. A título de adeus ao paganismo - e à literatura grega - impor­


ta evocar este último sobressalto, que teve lugar em tomo do imperador
Juliano.

VIII.
O ÚLTIMO BRILHO DO PAGANISMO

Basílio, o Grande, e Gregório de Nazianzo foram, desde a juventu­


de, alunos de mestres de retórica pagãos, Himério e Libânio(4): o hele-
nismo tradicional ainda sobrevivia; e o facto é que, ao longo do século iv,
conheceu como que um último brilho. Este é encarnado por três professo­
res e um imperador: Himério, Libânio, Temístio - e Juliano. Eles formam
um grupo bastante homogéneo: os três professores, que representam as
três grandes cidades de Atenas, Antioquia e Constantinopla, são de datas
muito próximas; quanto a Juliano, esse é mais novo do que eles, dado
que nasceu em 331, quinze ou vinte anos depois deles; e também morre
mais cedo, pois é morto numa retirada militar, em 363. Protegera os três
mestres: chamou Himério a Constantinopla e este aceitou deixar Atenas
enquanto Juliano foi vivo; ofereceu, embora sem sucesso, altos cargos
a Temístio; e manteve com Libânio uma estreita amizade. De resto, Libâ­
nio e Temístio foram uma espécie de oradores oficiais, mais ou menos
em relação aos imperadores, capazes de dar conselhos políticos ou de
estabelecer modelos para os soberanos da época; eram também oradores
no sentido pleno que o termo tinha na cidade grega.
Himério ficou à margem. Era, acima de tudo, um sofista, exercia a
sua arte em Atenas, gostava de poesia e perseguia obstinadamente o
género tradicional de discursoso fictícios. Vinte e quatro dos seus dis­
cursos foram conservados: constituem menos de um terço da sua obra e
não nos fazem lamentar muito o resto, excepto na medida em que Himé­
rio é uma fonte, quer para a vida da época, quer para o conhecimento
dos poetas anteriores, que cita frequentemente.

(4) N.T.: A propósito destes dois nomes, a autora apresenta as duas grafias francesas
(Himérios ou Himérius e Libanios ou Libanius, respectivamente). Dado que em português
não há essa diferença, optámos por não fazer a tradução dessa observação.

331
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Libânio está menos fechado nas tradições da escola. Nascido em


Antioquia, foi aí que regressou para ensinar em definitivo, depois de ter
estado um tempo em Constantinopla e em Nicomédia. Mas este grande
professor, alimentado pelas letras clássicas, via mais longe do que o sim­
ples ofício literário: sem dúvida, deixou escritos técnicos, no género dos
de Himério; mas ele também sabia, de acordo com a tradição sofística,
imiscuir-se nos assuntos públicos, intervir, testemunhar, admoestar, per­
guntar, aconselhar. Os oradores sentem-se responsáveis pelas suas cida­
des, tal como os bispos; e foram conservados muitos discursos relativos à
sua cidade de Antioquia. Libânio chegava a estender os seus deveres para
lá da sua cidade: fiel à tradição helénica e pagã, depositara a sua espe­
rança em Juliano, que queria reafirmar os seus valores; muitos trabalhos
são consagrados a Juliano - como a Monódia a Juliano ou o Epitáfio de
Juliano, que chora a morte do príncipe e a de um sonho partilhado. Uma
correspondência que conta mais de mil e seiscentas cartas reflecte esta
actividade incansável de um homem aplaudido universalmente, mas que
via, aos poucos, morrerem os estudos e as ideias a que estava mais ligado.
Temístio, por fim, estava ainda mais próximo do poder e das ideias
políticas. Primeiro, este homem da Bitínia ensinou em Constantinopla, a
nova capital fúndada por Constantino em 330. Estava próximo dos impe­
radores, em relação com eles. Consagrou-lhes discursos, arengas oficiais,
elogios: como a Constâncio, em 347, a Joviano, a Valente, a Teodósio. Foi,
até, preceptor do filho de Teodósio, o futuro imperador Arcádio. Por isso,
Juliano não é a sua esperança particular, nem, talvez, o seu preferido. E é
uma teoria geral do bom rei, guiado pela filosofia, que se patenteia nos
seus discursos. Reconhecemos aqui um ideal antigo dos Gregos do sécu­
lo iv a. C. Temístio renovou-o um pouco, primeiro adaptando-o ao quadro
do império, depois enriquecendo-o com certos valores e certas ideias:
assim, fala geralmente da imitação de Deus, ou da sua clemência, de tole­
rância, de doçura. Mas, ao fazer apelar, com os seus votos, ao bom monar­
ca, formado apenas pelo pensamento pagão, reata manifestamente com o
passado. Do mesmo modo, ao contrário de muitos sofistas recentes, recu­
sa o divórcio entre a eloquência e a filosofia: este retor comenta Platão e
Aristóteles. Enfim, é penetrado pela eloquência antiga: este Bitínio defen­
de o aticismo. E, portanto, como os outros dois, fiel à tradição grega, que
parecia ameaçada e que ele queria reanimar a qualquer preço.

332
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

Os esforços de todos três não foram estranhos à formação das ideias


do imperador Juliano (sobretudo os de Libânio); mas o ideal do renas­
cimento helénico que animava este último teve, ao mesmo tempo, raízes
mais profundas, um cunho mais religioso e um carácter mais militante;
além disso, o seu papel político aumentou, evidentemente, a sua impor­
tância.
Juliano era filho de um irmão do imperador Constantino. Tinha cinco
anos quando este morreu. Não conseguiram matá-lo com os seus, cuja
existência inquietava os herdeiros do trono (o seu pai, o seu irmão, um
tio, vários primos foram massacrados nessa altura). Juliano foi, assim,
criado longe do poder, solitário; mas o eunuco cita Mardónio, que foi o
seu pedagogo, recheou esta infância com o gosto pelas letras gregas. Esta
primeira iniciação ao helenismo, profúndamente assimilada e familiar,
iria completar-se mais tarde ao longo de uma instrução mais desenvol­
vida: Juliano obteve o direito de realizar os seus estudos, que o mantinham
afastado da política. Foi aluno dos retores e seguiu, em particular, os cur­
sos de Libânio em Nicomédia, antes de ir para a própria Atenas. Por outro
lado, Juliano aprendeu a conhecer o neoplatonismo, com o seu gosto
pelos mistérios e pelas iniciações, que os alunos de Jâmblico difundiam.
A herança helénica avivava-se, assim, sob duas formas, uma literária e
racional, a outra transformada pelas tendências místicas da época.
Sob esta dupla influência, Juliano encontrou meio de satisfazer as
suas necessidades espirituais nesta tradição renovada e renunciou ao
Cristianismo, no qual fora criado. Daí em diante, devia combatê-lo com
todas as forças.
Ora, os acontecimentos quiseram que em 355 Juliano fosse mandado
chamar de Atenas, nomeado César e enviado para a Gália, onde os seus
sucessos tiveram como resultado que fosse designado imperador pelas
tropas. Não iria reinar mais do que dois anos, de 361 a 363. Mas esta
carreira brilhante e breve deu à sua convicção oportunidade para se tra­
duzir em escritos e em acções.
Juliano foi atacado violentamente pelos cristãos como apóstata e
como perseguidor de cristãos. No entanto, era, acima de tudo, um idea­
lista e o seu gosto levava-o à tolerância.
Criticou o Cristianismo e escreveu um tratado Contra os cristãos
(que conhecemos pelas respostas que provocou. Lamentou-se dos absur-

333
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

dos da Bíblia, da injustiça e da dureza do Deus judeu. Também parece


ter tido horror à intransigência dos cristãos de então, que se perdiam em
querelas teológicas e recusavam todo o ideal de humanismo elaborado
pelos Gregos. E certamente que esperou que as crenças destes, com o
seu respeito pela vida política, pudessem dar ao império o seu desenvol­
vimento.
Em contrapartida, o paganismo a que ele se associava tinha todo o
calor místico que a época parecia encorajar. Conservamos dele um dis­
curso Sobre o rei Sol, que é uma espécie de meditação piedosa e exalta­
da em que se traduz a filosofia. Canta o Sol, que corresponde ao Bem do
qual ele emana, como em Platão, mas aqui revestido por um misterioso
poder de protecção e de unificação do mundo. Esse Sol «concede a todo
este universo aparente uma certa parte de beleza inteligível»; «vela sobre
o conjunto do género humano»; Juliano considera-o como os monoteís-
tas consideram o seu Deus: «Que ele me conceda uma vida virtuosa,
uma sabedoria mais perfeita, umainteligência divina. Que, em seguida,
eu me eleve para ele e me fize junto dele para sempre...». No entanto,
um culto igualmente ardente dirige-se a outros deuses; assim, conservou-
-se dele um discurso Sobre a mãe dos deuses, escrito numa única noite,
num impulso de devoção. De facto, Juliano conseguiu encontrar um sen­
tido religioso e filosófico para os mitos do paganismo. Reunindo num
sincretismo exaltado os cultos de Cibele ou de Atis aos do panteão clás­
sico e colorindo o conjunto do misticismo contemporâneo, Juliano quis
dar ao paganismo o fervor de que os cristãos pareciam ter o apanágio e
que o verdadeiro paganismo nunca conhecera.
Este ardor religioso completa-se com um sentido austero, e até um
pouco cruel, do dever moral; traduz-se, de forma mais ou menos franca,
em diversos textos e nas suas cartas. Talvez não seja preciso procurar
nos seus primeiros discursos, que são obras de circunstância e onde ele
nem sempre diz o que pensa, indícios a este respeito. E o caso dos elo­
gios de Constâncio e de Eusébia, ou o pequeno tratado Da Realeza, que
é um outro elogio de Constâncio. Mas há outros muito mais sinceros,
como a carta Ao Senado e ao povo de Atenas, que era, em 361, um mani­
festo e uma ardente justificação pessoal. Por vezes, deparamo-nos com
um tom mais directo, como no pequeno escrito satírico intitulado Miso-
pogon, ou «o inimigo da barba». Trata-se de uma justificação pessoal,

334
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

que nada tem de oficial e que se segue aos dissabores sofridos em Antio-
quia, em 362-363. Juliano esperara estabelecer nesta cidade um grande
culto do deus solar, Apoio; ora, as festas foram malogradas, o templo foi
queimado, riram-se do imperador, do seu físico desengraçado e da sua
barba. Em troca, ele voltou-se contra aqueles Sírios efeminados que
viviam no prazer. Prefere a virtude rústica dos Celtas. E, aceitando a
impopularidade, ele cita os seus actos de generosidade e censura a ingra­
tidão de Antioquia.
Nervoso, exaltado, apaixonado, Juliano entrega-se, neste texto, tão
directamente como o poderia fazer um Jean-Jacques Rousseau. Mas
apresenta também um certo ideal moral, que está latente noutros sítios
e só aqui encontra uma expressão mais viva.
Este ideal moral exige a justiça, a verdade, o desprezo pelos praze-
res. Mas também exige a um soberano virtudes mais específicas. O sobe­
rano deve, na medida do possível, «fazer bem aos homens». Era isto o
que diziam também Libânio e Temístio; mas Juliano ainda insiste mais;
e a ideia adquire um contorno pessoal, visto que, ao falar de si próprio,
Juliano afirma que tentou realmente fazê-lo, sempre. E como é que «se
faz bem»? Juliano interpreta esta ideia em termos de philanthrôpia, ou
«amor pelos homens», doçura, moderação. E volta a estes valores sem
cessar. Fala deles nalgumas cartas. Fala deles nos seus tratados; é, sem
dúvida, o traço mais autêntico desses elogios, compostos na juventude,
e pouco sinceros no que respeita aos factos. Fala deles, enfim, na sua
sátira intitulada Os Césares, onde se trata de apreciar os diversos sobe­
ranos e onde esse critério é usado muitas vezes - regressando a palma
ao imperador pagão e filósofo Marco Aurélio.
Pode parecer surpreendente que este elogio da doçura emane daque­
le que ficou conhecido pelas suas perseguições. De facto, Juliano come­
çara com éditos de tolerância em favor dos pagãos. Mas chegou muito
tarde; os cristãos não podiam renunciar às vantagens obtidas e as suas
resistências estimularam a sua. Até a bondade que ele recomenda aos seus
administradores tem por objecto, muitas vezes, a competição com os cris­
tãos. A luta foi travada; deu-se a batalha; e Juliano viu-se malogrado.

De entre todas as querelas que enchem o século ív, a mais confusa


talvez seja a que acabamos de ver e que opõe helenismo e Cristianismo.

335
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

O helenismo era uma coisa muito diferente de uma religião; e não se con­
fundia, de todo, com o paganismo. Com efeito, se os defensores do paga­
nismo desapareceram com Juliano, deixando um império daí em diante
cristão de cima abaixo, o helenismo não podia desaparecer desse impé­
rio do Oriente, cuja língua era o grego. Mas vale a pena perguntarmo-
-nos, em conclusão, sobre as razões desta confusão.
Elas são, parece-nos, de duas ordens diferentes.
As primeiras relevam da história da época. Com efeito, é claro que
nem os cristãos nem os pagãos queriam dissociar cultura e religião. Sem
dúvida, nem imaginavam que tal fosse possível. Muitas vezes, os cris­
tãos representavam uma nova camada social. Desdenhavam o conjunto
de uma tradição, na qual as obras literárias estavam todas penetradas por
deuses e por lendas do paganismo. É bastante correcto que, vários sécu­
los mais tarde, os doutores da Igreja consentiram em ir buscar à arte
grega os meios para servir a sua fé: estes mesmos empréstimos serviam
a sua polémica. E sucedia o mesmo com os pagãos. Sem dúvida, também
eles cediam a influências; sem dúvida, inventaram um misticismo pagão;
mas, ao ver os seus valores ameaçados pela religião, eles identificavam-
-nos com ela. Além disso, entre as dificuldades políticas, a dispersão
geográfica e a alteração das condições e dos problemas, é certo que a
cultura grega empobrecia e já não tinha a fecundidade de outrora. Foi
assim mais fácil identificá-la com a religião pagã, à qual não parecia ir
sobreviver: foi preciso esperar pelo Renascimento para que o helenismo,
enquanto cultura, reaparecesse no próprio seio do Cristianismo.
A estas primeiras razões acrescenta-se, para nós, os modernos, um
efeito falaz de perspectiva. Com efeito, se o helenismo parece extinguir-
-se com o paganismo, é um pouco porque um e outro desapareceram em
conjunto quando desapareceu no Império Bizantino-tal como no impé­
rio do Ocidente - a liberdade.
A liberdade política desapareceu em favor da autocracia. A liberda­
de filosófica e religiosa desapareceu sob a autoridade da Igreja. E ambos
os poderes se uniram, visto que o imperador era o chefe dessa Igreja: as
fileiras de onde saíram os mártires forneceram grandes administradores.
O helenismo viveu de interrogações e discussões, de lutas de ideias
e de lutas políticas, de descobertas, de esforços, de críticas e de esperança,
à procura da melhor vida possível. Já com Alexandre e, depois, com Roma

336
EXPOSIÇÃO SUMÁRIA SOBRE A ÉPOCA ROMANA

perdera todo o seu impulso; com a independência das cidades, com a


independência da própria Grécia, esgotara-se o fluxo vivo e claro das
suas perguntas sempre renovadas: o helenismo vive apenas daliberdade.
Pelo menos, ainda se pôde apaixonar quer pela história desse mundo,
semelhante ainda à do seu passado, quer pelas ideias, morais ou filosó­
ficas, que pareciam relevar sempre dele. Mas a qualidade da história
esboroava-se ao mesmo tempo que a liberdade política; e a renovação
as ideias não resistiu à perda da liberdade religiosa. Temos, assim, o sen­
timento de que o helenismo desaparecia com a própria vitória do Cris­
tianismo - enquanto acabava de desaparecer apenas com esta última
liberdade.
Ou, de preferência, ele acabava de adormecer: o helenismo ainda se
mantinha na Grécia bizantina; reapareceu fora da Grécia no Renasci­
mento; reapareceu também na Grécia que voltava a ser livre. Vive sempre.
E gostaríamos de pensar que este Compêndio, ao passar o testemunho
desta aventura espiritual do passado, pode, em certos aspectos, consti­
tuir também um contributo para futuros prolongamentos.

337
Bibliografia

A bibliografia apresentada aqui apenas pode ser sumária. Parece, assim,


necessário chamar bastante a atenção para o princípio que inspirou a sua esco­
lha e para as lacunas que cada um deverá suprimir.
1. Visto que não se trata de uma bibliografia demasiado erudita, demos aqui
preferência, sendo a qualidade igual, às obras em francês: as obras em línguas
estrangeiras que aqui são assinaladas são todas verdadeiramente importantes.
2. Visto que se trata de uma bibliografia apresentada capítulo a capítulo,
não encontraremos nela as obras de carácter geral, cuja leitura é, no entanto,
em muitos casos, mais enriquecedora do que qualquer outra, ou cuja consulta
é mais indispensável.
Por exemplo, não encontraremos aqui nem história grega (e, no entanto,
como compreender as obras sem conhecer a história?), nem história da civiliza­
ção. Também não encontraremos obras que tratem do conjunto ou de uma vasta
parte da civilização grega, como: W. Jaeger, Paideia, the Ideais of Greek Cultu-
re (publicado em 3 volumes, em alemão e inglês; o primeiro volume foi traduzi­
do em francês, na Gallimard, em 1964), ou Η. I. Marrou, Histoire de 1’éducation
dam 1'Antiquité (Le Seuil, 1948, 5a. ed.: 1960), ou então E. R. Dodds, The Gre-
eks and the Irrational (Berkeley, 1951), traduzido em francês: Les Grecs et
Virrationel (Paris, 1964), ou ainda B. Snell, Die Entedeckungdes Geistes (1948;
trad. inglesa 1953) (5), mais do que os antigos estudos de Blass ou de Norden
sobre a prosa grega.

(5) N.T.: Todas estas obras têm tradução portuguesa, respectivamente: W. Jaeger, Pai­
deia. A Formação do Homem Grego (S. Paulo, Martins Fontes,42001); Η. I. Marrou, História
da Educação na Antiguidade (S. Paulo, Herder, 1966), E. R. Dodds, Os Gregos e o Irracio­
nal (Lisboa, Gradiva, 1988), B. Snell, A Descoberta do Espírito (Lisboa, Ed. 70, 1992).

339
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

Do mesmo modo, não encontraremos as grandes recolhas, como os His-


toricorum Grcecorum Fragmenta de Jacoby, vasto conjunto cuja publicação
começou na Alemanha, em 1923, e onde se encontram os fragmentos dos his­
toriadores gregos cuja obra se perdeu (perto de novecentos autores). Também
não encontraremos a vasta empresa alemã da Realencyclopàdie (ou Pauly-
-Wissowa), que constitui, apresentada por ordem alfabética, como que uma
súmula do que sabemos sobre cada um: a bibliografia refere dois dos seus arti­
gos que ficaram célebres (Heródoto e Plutarco), mas os que tratam de Teofras-
to, Eforo, Diodoro, etc., são igualmente muito importantes.
Recomendamos aos leitores cultos a leitura das obras da primeira série e
aos futuros especialistas um primeiro contacto com os da segunda.
3. Para simplificar, enfim, não assinalámos para cada autor a existência de
edições da «Collection des Universités de France» (nas edições das Belles-
-Lettres). Estas edições, que existem para a maioria dos autores gregos conser­
vados e cuja preparação está em curso para os outros, constituem, para os
leitores franceses em particular, o mais precioso instrumento de cultura e de
trabalho. Têm o texto grego e a tradução francesa, com importantes introduções
e as notas mais indispensáveis. Essas traduções são as mais seguras, salvo
excepções assinaladas. Também são, excepto menção particular, as que são
citadas ao longo da obra, em todos os casos em que existem.
E evidente que há outras colecções apenas de textos (em particular a Teu-
bner e a Loeb) e também outras séries de traduções francesas. Delas apenas
assinalámos, evidentemente, as da CUF.
Estes são os complementos que esta escolha exigia. Por outro lado, para
quem queira ter um contacto mais estreito com qualquer outro autor grego, será
fácil completar a bibliografia: bastará recorrer, primeiro, às bibliografias das his­
tórias da literatura mais desenvolvidas (como a de A. Lesky), depois às biblio­
grafias fornecidas nas obras referidas. Poderá completar, recorrendo aos vários
volumes do Année Philologique, uma publicação que todos os anos assinala
todos os títulos relativos aos autores ou assuntos do domínio latino ou grego.
Para os principais autores, também há publicações irregulares, que fazem o ponto
da situação da bibliografia de um autor durante alguns anos (como Lustrum ou
algumas análises sistemáticas a encontrar nos Anzeiger fur die Altertumswis-
senschaft, ou nas Actes dos Congressos da Associação Guillaume-Budé, etc.).
As obras referidas acima remetem para aí. Há ainda listas de títulos escolhidos
(como A Concise Bibliography of Greek Language and Literature, por Kessels
e Verdenius, Apeldoom, 1979).

340
B IB L IO G R A F IA

CAPÍTULO I

Entre as edições comentadas, não podemos descurar, para a Ilíada e a Odis­


seia, Ameis-Hentze-Cauer (Teubner, 1910), para a Ilíada, Leaf (Londres, 1900-
-1902), para a Odisseia, Stanford (Londres, 1947). Inúmeras edições escolares
(entre as quais podemos referir os excertos da Odisseia nos clássicos Hachette,
por Bérard, Goube e Langumier. - Para os Hinos, Allen, Halliday, Sikes (Oxford,
3a. edição, 1936).
índices e léxicos diversos: Ebeling (Leipzig, 1880-1885, reimpr.); Gehring
(Leipzig, 1890, reimpr.); Prendergast-Marzullo (Hildesheim, 1960, para a Ilí­
ada)·, H. Dunbar (Oxford, 1880, reimpr.).
Principais obras em francês: P. Mazon, P. Chantraine, P. Collart, Introduc-
tion à riliade (CUF, 1942); P. Chantraine, Grammaire homériqne, 2 vol. (Paris,
Klincksieck, 1942 e 1953); A. Séveryns, Homère, 3 pequenos volumes (Bru­
xelas, 1945-1948); F. Roberi, Homère (Paris, PUF, 1950); G. Germain, La genè-
se de l Odyssée (Paris, PUF, 1954); E. Delebecque, Télémaque et la structure
de l Odyssée (Aix-en-Provence, 1958).
Em inglês: Μ. P. Nilsson, Homer and Mycenae (Londres, 1933); Rhys
Carpenter, Folktale, Fiction and Saga in the Homeric Epics (Los Ang., 1946,
reed.); C. M. Bowra, Heroic Poetry (Londres, 1952); D. Page, The Homeric
Odyssey (1955; 1976); G. S. Kirk, The Songs of Homer (1962), resumido em
Homer and the Epic (Cambridge, 1965, reed.); A. J. B. Wace e F. H. Stubbin-
gs, A Companion to Homer (Londres, 1963); Μ. I. Finley, The World of Odys-
seus (Londres, 1956; trad. fr., Maspero, 1969) (6); J. Griffin, Homer on Life and
Death (Oxford, 1980).
Em alemão: W. Schadenwaldt, Von Homers Welt und Werk (4a. ed., 1965);
K. Reinhardt, Tradition und Geist (1960), Die Ilias und ihr Dichter (1961).
Sobre os problemas relativos à composição acrescentaremos, em inglês,
J. Kakridis, Homeric Researches (Lund, 1949) e Homer revisited (Lund, 1971;
em alemão, A. Dihle, Homer-Probleme (Opladen, 1970): obras mais especia­
lizadas.

(6) N.T.: Existe uma tradução portuguesa: Μ. I. Finley, O Mundo de Ulisses (Lisboa,
Presença, 31988).

341
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

CAPÍTULO II

I. Hesíodo
- Edições: Teogonia, ed. comentada em Inglês: M. L. West (Oxford, 1966);
Trabalhos e Dias, ed. comentada em Inglês: M. L. West (Oxford, 1978), em
Francês: P. Waltz (1919), P. Mazon (1914); obras com fragmentos: Solmsen,
Merkelbach, West (Oxford, 1970); cf. apenas fragmentos: Merkelbach e West
(Oxford, 1967).
- índices: Paulson, 1890(reimpr. Olms, Hildesheim, 1963).
- Estudos: F. Solmsen, Hesiod and Aeschvlus (Ithaca, 1949); Entretiens de la
Fundation Hardt, VII, 1962: Hésiode etson influence\ sobre as outras obras
para além dos dois grandes poemas: J. Schwartz, Pseudo-Hesiodea: Recher-
ches sur la composition, la diffusion et la disparition ancienne d ’ceuvres
attribuées à Hésiode, Leiden, 1960. A propósito do mito das raças: J.-P. Ver-
nant, em Mythe et pensée chez les Grecs, 1965, pp. 19-47 (artigo que pro­
vocou várias discussões).

II. De Hesíodo a Píndaro


- Pequena edição com notas: J. Defradas, Les élégiaquesgrecs (PUF, 1962,
col. «Erasme»; A. Gerebaert e P. Collin, Choix depoètes Ivriquesgrecs (Paris,
10a. ed. 1977); traduções francesas: E. Bergougnan, Hésiode et les poètes
élégiaques et moralistes de la Grèce (Paris); M. Meunier, Sappho, Anacré-
on et les anacréontiques (Paris, 1932); A. M. Desrousseaux, Les poèmes de
Bacchylide de Céos (Paris, 1898); A. Bonnard, Lapoèsie de Sappho (Lau-
sanne, 1948); edições eruditas: Diehl, Anthologia Lyrica Grceca (Leipzig,
3a. ed. 1950-1954); D. L. Page, Poetce Melici Grceci (Oxford, 1962); Lobel
e Page, Poetarum Lesbiorum Fragmenta (Oxford, 3a. ed. 1968); J. Edmon-
ds, Elegy and Iambus (Londres, 1931) e Lyra Grceca (Loeb, 2a. ed. 1963);
M. L. West, lambi et elegi Grceci (Oxford, 2a. ed. 1971-1972).
- Estudos: C. M. Bowra, Greeklyricpoetry (Oxford, 2a. ed. 1961); H. Fraenkel,
Dichtung und Philosophie desfriihen Griechentums (Munique, 2a. Ed. 1962);
G. M. Kirkwood, Early Greek Monody (Comell Univ. Press, 1974); Entre­
tiens de la Fundation Hardt, X (1963): Archiloque\ H. D. Rankin, Archilo-
cus ofParos (1977); A. Masaracchia, Solone (Florença, 1958); J. Carrière,
Théognis de Mégare (Paris, 1948).

342
BIBLIOGRAFIA

III. Píndaro e Baquílides


Píndaro
- Edições críticas: Turyn (Oxford, 1944, Cracóvia, 1948); Snell (Teubner, 4a. ed.
1964) revisto por Maehler (Teubner, 1971-1975); Bowra (Oxford, 1968); com
comentários: Famell (Londres, 1932 e 1961); Burton (Oxford, 1962: para as Piti-
cas); J. Duchemin (PUF, 1967, col. «Erasme»: para as Píticas III, IX, IV e V).
Léxicos: Rumpel, 1883 (reimpr. Olms Hildesheim, 1961); Slater (Berlim, 1969).
- Estudos: A. Croiset, Lapoésie de Pindare et les lois du lyrisme grec (Paris,
1880); J. Duchemin, Pindarepoète etprophète (Paris, 1955); C. M. Bowra,
Pindar (Oxford, 1964). Podemos acrescentar: J. Péron, Les images mariti-
mes de Pindare (Paris, 1974); U. von Wilamowitz-Moellendorff, Pindaros
(Berlin, 1922) e J. H. Finley, Pindar and Aeschylus (Cam. Mass., 1955).
Baquílides
Edições: Snell (Teubner, 7a. ed. 1958); Maehler (Berlim, 1970).
- Estudos: A. Séveryns, Bacchylide, essai biographique (Paris, 1933).

IV. A filosofia pré-socrática


Edições: A única edição de autoridade é a de Diels revista por Kranz, corri­
gida e melhorada muitas vezes (utilizar sempre a última edição). Possui um
índice e os fragmentos considerados autênticos são acompanhados por uma
tradução alemã. Há inúmeras edições comentadas; como para Heraclito: Kirk
(1954, em Inglês).
- Sobre os Sete Sábios, Snell (Munique, reeditado várias vezes).
- Estudos: Não referiremos aqui nenhum estudo filosófico especializado, embo­
ra haja alguns muito importantes. Contentar-nos-emos em referir estudos
muito gerais, como L. Robin, La pensée grecque (Paris, 1928), ou melhor e
mais desenvolvido, W. K. C. Guthrie, A History of GreekPhilosophy (2 vols.,
em inglês, 1962); ver também, do mesmo autor, mas traduzido em francês
(em 1955): Orphée et la pensée grecque; sobre Heraclito, A. Jeannière, La
pensée d ’Héraclite d'Ephèse (Paris, 1959); entre as obras estrangeiras mais
conhecidas, importa referir: W. Jaeger, The Theology of early Greek Philoso-
phers (1947, texto alemão em 1953); H. Fraenkel. Dichtung und Philosophie
des friihen Griechentums (1951, revisto em 1962) e Wege und Formenfriih-
griechischen Denkens (2a. ed. 1960); G. S. Kirk e J. E. Raven, Thepresocra-
tic Philosophers, A Criticai History with a Selection o/Texts (1957) (7). Muitas

O N. T.: Existe tradução portuguesa: G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield, Os Filó­


sofos Pré-Socráticos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 62008.

343
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

pequenas monografias devem ser lidas com reserva, porque é grande a parte
da interpretação livre.

CAPÍTULO III

I. Esquilo
- Edições comentadas: E. Fraenkel, Agamemnon, 3 vols. (Oxford, 1950: comen­
tário muito importante); P. Groeneboom: edições comentadas das diversas
peças, em holandês e em alemão, de 1928 a 1952; Denniston e Page, Aga­
memnon (Oxford, 1957); H. D. Broadhead, Les Perses (Cambridge, 1960);
H. Rose, A Commentary on the surviving Plays of Aeschylus (Amsterdam,
1957-1958).
- Fragmentos: Nauck, Tragicorum Grcecorum Fragmenta (ed. revista várias
vezes); Mette, Die Fragmente der Tragõdien des Aischylis (Berlim, 1959).
- índice: G. Italie (Leiden, 1955.
- Estudos:
Sobre a tragédia em geral, grandes obras estrangeiras: M. Pohlenz, Die Grie-
chische Tragõdie, 2 vols. (Gõttingen, 2a. ed. 1954); A. Lesky, Die griechis-
che Tragõdie (Stuttgart, 1938, texto inglês em 1965); H. D. F. Kitto, Greek
Tragedy (1939) (8), depois Farm and Meaning in Drama (Londres, 1956);
B. Vickers, Towards Greek Tragedy (Londres, 1973); estudos mais particu­
lares: W. Kranz, Stasimon, Untersuchungen zu Form und Gehalt der grie-
chischen Tragõdie (Berlim, 1933); A. W. Pickard-Cambridge, The dramatic
Festivais ofAthens (Oxford, 1953). Vários estudos em francês, entre outros:
P. Masqueray, Théorie des formes lyriques de la tragédie grecque (Paris,
1895); O. Navarre, Le théâtre grec (Paris, 1925); J. de Romilly, La tragédie
grecque (PUF, 1970, col. «SUP»)(9); Le temps dans la tragédie grecque
(Paris, Vrin, 1971); J.-P. Vemant e P. Vidal-Naquet, Mythe et tragédie en
Grèce ancienne (Paris, Maspero, 1971).
Sobre Esquilo, em francês: M. Croiset, Eschyle, Etude sur Finvention dra-
matique dans son théâtre (Paris, 1928); G. Méautis, Eschyle et la trilogie
(Paris, 1936); J. de Romilly, La crainte et I 'angoisse dans le théâtre d Eschyle
(Paris, 1958); K. Reinhardt, Eschyle, Euripide, trad. do alemão (Paris, 1971).

(8) N. T.: Existe uma tradução portuguesa, H. D. F. Kitto, A Tragédia Grega, Coimbra,
Arménio Amado-Editor, Suc., 1972 (2 vols.).
(9) N. T.: Existe tradução portugesa, J. de Romilly, Λ Tragédia Grega, Lisboa, Ed. 70,
22008.

344
BIBLIOGRAFIA

Em línguas estrangeiras: B. Snell, Aischylos und das Handeln in Drama


(Leipzig, 1928); G. Murray, Aeschylus, the Creator of Greek Tragedv (Ox­
ford, 1940); G. Thomson, Aeschylus andAthens, A Study on the social Ori-
gins of Greek Tragedv (Oxford, 1941); O. Taplin, The Stagecraft of Aeschylus
(Oxford, 1977).

II. Heródoto
- Tradução francesa com notas: A. Barguet (em Historiensgrecs, I, La Plêiade).
- Léxico: J. E. Powell (Cambridge, 1938, depois 1960).
- Estudos: Ph.-E. Legrand, Hérodote, Introduction (Paris, Les Belles-Lettres,
1932); A. de Sélincourt, Lunivers d ’Hérodote (trad. do inglês, Gallimard,
1966). Em línguas estrangeiras (além do artigo sempre importante de Jaco-
by na Realencyclopàdie, 1913): M. Pohlenz, Herodot (Leipzig, 1937); J. L.
Myres, Herodotus, Father of History (Oxford, 1953); H. R. Immerwahr,
Form and Thought in Herodotus (Cleveland, 1956; obra muito útil e impor­
tante); K. von Fritz, Die Griechische Geschichtsschreibung (cf. pág. 348);
C. W. Fomara, Herodotus, an interpretative Essay (Oxford, 1971).

CAPÍTULO IV

I. Sófocles
- Edições comentadas: Tournier-Dcsrousseaux (Hachette, 1886, um pouco
antigo); Jebb (em inglês, um volume por peça, fim do século xix); Kamer-
beek (em inglês, na Brill, um volume por peça, a partir de 1953, ainda não
acabado); Kaibel, Electre, Berlim, 1911, em alemão).
- Fragmentos (além de Nauck): Pearson (Cambridge, 1917, 1963); Radt( 1977).
- índice: Ellendt, 1872 (reimpr. Olms, Hildesheim, 1958).
- Estudos em francês: C. Germain, Sophocle (Paris, Le Seuil, 1969, breve apre­
sentação); G. Ronnet, Sophocle poète tragique (Paris, 1969); K. Reinhardt,
Sophocle (trad. do texto alemão de 1933: Paris, Ed. de Minuit, 1971).
- Estudos em línguas estrangeiras: T. B. L. Webster, An Introduction to Sopho-
cles (Oxford, 1936); C. M. Bowra, Sophoclean Tragedv (Oxford, 1944);
C. H. Whitman, Sophocles, A Study in heroic Humanism (Harvard Univ. Press,
1951); G. M. Kirkwood, A Study on Sophoclean Drama (Comell Univ. Press,
1958: muito preciso); B. M. Knox, The heroic Temper, Studies in Sophoclean
Tragedy (Sather Class. Lectures XXXV, 1964: muito sugestivo).

345
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

II. Eurípides
- Edições comentadas: Septs tragédies dEuripide (Hipp., Médée, Hécube,
Iphigénie à A., Iphigénie en T, Electre, Oreste), por H. Weil (Hachette, 1868).
Edições da Oxford University Press, entre outras: As Bacantes (Dodds, 1944,
1960: notável), Alceste (A. M. Dale, 1954), Electra (Denniston, 1939), Medeia
(Page, 1938), Helena (A. M. Dale, 1967), etc. Muitas edições de peças iso­
ladas, entre outras: Héracles (Wilamowitz, Berlim, 1909), Hipólito (Barrett,
Oxford, 1964), Helena (Kannicht, Heidelberg, 2 vols., 1969), Orestes (Di
Benedetto, Florença, 1965), As Bacantes (Jeanne Roux, Paris, 1970,2 vols.;
M. Lacroix, Paris, 1976), etc.
- índice: Allen e Italie, 1954.
- Estudos em francês: P. Decharme, Euripide et l 'esprit de son théâtre (Paris,
1893: antigo); A. Rivier, Essai sur le tragique d 'Euripide (Lausanne, 1944);
J. Duchemin, L ’Agôn dans la tragédie grecque (Paris, Les Belles-Lettres,
1945: sobre a técnica dos debates); J. de Romilly, L 'évolution dupathétique,
d ’Eschyle à Euripide (Paris, PUF, 1962); F. Jouan, Euripide et les légendes
des Chants cypriens (Paris, Fes Belles-Fettres, 1966: sobre as tradições míti­
cas). Acrescentamos, sobre a religião: F. Chapouthier, Euripide et 1’accueil
du divin (Entretiens Hardt, I, pp. 205-237); sobre a política: E. Delebecque,
Euripide et la guerre du Péloponnèse (Paris, 1951) e R. Goossens, Euripide
et Athènes (Ac. de Belgique, 1962).
- Estudos em línguas estrangeiras: apresentações gerais: G. Murray, Eurípides
andhis age (Oxford 1913; 1946); G. Μ. A. Grube, The Drama of Eurípides
(Fondres, 1941); T. B. F. Webster, The Tragedies of Eurípides (Fondres, 1967:
cronologia da obra); Di Benedetto, Euripide: Teatro e Società (Turim, 1971).
Diversos aspectos: G. Zuntz, The política! Plays of Eurípides (Manchester,
1955: sobre as duas peças patrióticas); F. Strohm, Eurípides, Interpretatio-
nen zur dramatischen Form (Munique, 1957, Zetemata, 15); Euripide (expo­
sições e discussões: Fondation Hardt, VI, 1960, importante).

III. Aristófanes e a comédia


- Edições comentadas: Van Feeuwen (Leiden, 1893-1906, em latim); Acar-
nenses: Starkie (Fondres, 1909, em Inglês); Nuvens: Starkie (1911); Paz:
Mazon (Paris, 1904: em francês); Aves: Ph. Kakridis (Atenas, 1974, em grego);
Rãs: Radermacher (Viena, 1923, em alemão, revista por Kraus em 1954);
Assembleia das mulheres: Ussher (Oxford, 1973, em Inglês).
- Fragmentos de cómicos: Kock (1880-1888).

346
BIBLIOGRAFIA

- índice: Todd (Cambridge, Mass., 1932).


- Estudos em francês: P. Mazon, Essai sur la composition des comédies
d ’Aristophane (Paris, 1904); J. Taillardat, Les images d ’Aristophane, études
de langue et de style (Paris, 1962). Informações úteis nos pequenos extrac-
tos de Aristófanes e Menandro, por Bodin e Mazon (Hachette, 1904).
- Estudos em inglês: G. Murray, Aristophanes (Oxford, 1933); V. Ehrenberg,
The People of Aristophanes (Oxford, 2a. ed. 1951).
Estudos em alemão: H.-J. Newiger, Metapher undAllegorie, Stud. zu Aris­
tophanes (Munique, 1937, Zetemata 16).

CAPÍTULO v

I. Médicos, filósofos e solistas


Para Hipócrates, a antiga edição Littré (1839 ss.) continua a ser a única com­
pleta; outras, estabelecidas com um novo rigor, estão em curso de elabora­
ção (como, em Berlim, o grande Corpus Medicorum Grcecorum. Entre as
edições comentadas em francês é de assinalar L 'ancienne médecine, por A.-J.
Festugière (Paris, 1948).
- Estudos: L. Bourgey, Observation et expérience chez les médecins de la
collection hippocratique (Paris, 1953); R. Joly, Le niveau de la Science hyp-
pocratique (Paris, 1966). Existem trabalhos mais especializados sobre as
diversas escolas (como Jouanna, Joly).
- Para os filósofos e os sofistas, texto: Diels-Kranz, Die Fragmente der Vor-
sokratiker (grego e alemão: é bom consultar a última edição). índice. - Para
Antifonte, o orador e o sofista estão agrupados naCUF (ed. L. Gemet, 1923).
índice de Antifonte: Van Cleef, 1895. - Para os sofistas, a edição comentada
na pequena colecção italiana «La Nuova Italia» (rica em bibliografia, inter­
pretações por vezes muito pessoais).
- Estudos: E. Dupréel, Les sophistes (Neuchâtel, 1948-1949); M. Unterstei-
ner, Isofisti (Turim, 1949; trad. inglesa Oxford, 1954); F. Heinimann, Nomos
undPhysis, Herkunft und Bedeutung einer Antithese... (Bâle, 1945); W. K.
C. Guthrie, The Sophists (Cambridge Univ. Press, 1971).

II. Tucídides
- Edições comentadas em alemão (Classen-Steup, reeditado muitas vezes a
partir de 1897), em inglês (Marchant, reeditado muitas vezes a partir de
1893), em francês para os livros I e II, A. Croiset (Hachette, 1886); livro II,

347
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

1-65, R. Weil (PUF, 1965, col. «Erasme»). - Comentário histórico por A. W.


Gomme, Andrewes e Dover, Oxford (continua a partir de 1945, muito impor­
tante).
- índice: Bétant (1847, reimpr. 1963); Van Essen.
- Estudos:
Em francês: A. Thibaudet, La campagne avec Thucydide (NRF, 1922); J. de
Romilly, Thucydide et l ’impérialisme athénien, La pensée de l 'historien et
la genèse de 1’ceuvre (Paris, 1947); J. de Romilly, Histoire et raison chez
Thucydide (Paris, 1956); P. Huart, Le vocabulaire de 1’analyse psychologi-
que dans Toeuvre de Thucydide (Paris, 1968).
Em inglês: J. Finley, Thucydides (Harvard, 1947); H. D. Westlake, Individu­
ais in Thucydides (Cambridge, 1968); V. Hunter, Thucydides, the artful
Repórter (Toronto, 1973).
Em alemão: K. von Fritz, Die Griechische Geschichtsschreibung, I (2 vols.,
Berlim, 1967); Η. P. Stahl, Thukydides, die Stellung des Menschen im ges-
chichtlichen Prozess (Munique, 1966); C. Schneider, Information undAbsi-
cht bei Thukydides (Gõttingen, 1974, Hypomnemata, 41).

CAPÍTULO v i
- Edições comentadas:
Andócides: Mystères, Mac Dowell (Oxford, 1962); Paix et Retour, Albini
(Florença, 1961 e 1964).
Iseu: Wyse (Cambridge, 1904: comentário abundante).
Demóstenes: ainda encontramos muito na notável edição de H. Weil, na
Hachette (1873-1886). Inúmeras edições comentadas de discursos isolados
em diversas línguas, como Sobre a lei de Leptino, por Sandys (Cambridge,
1890), Contra Mídias, por Goodwin (i b i d 1906), etc.
Oradores secundários: texto em J. O. Burtt, Minor Attic Orators (Loeb,
1954); para Demades, V. de Falco (Pavia, 1932).
- índice:
Andócides - Licurgo - Dinarco: Forman (1897).
Lísias: Holmes (1895, reimpr. 1944).
Demóstenes: Preuss (1892, reimpr. 1963).
Esquines: Preuss (1896, reimpr. 1926).
- Estudos gerais: podemos ainda tirar partido de Blass, Die attische Beredsam-
keit, que incide sobre toda a eloquência grega (1892). Mais recentemente:
G. Kennedy, The Artof Persuasion in Greece (Princeton, 1963). Em francês:

348
BIBLIOGRAFIA

O. Navarre, Essai sur la rhétorique grecque avant Aristote (Paris, 1900: um


pouco antigo).
- Estudos particulares:
Para Lísias, K. J. Dover, Lysias and the Corpus Lysiacum (Sather Lectures,
39, 1963).
Para Demóstenes, bibliografia importante. Apresentação simples: G. Mathieu,
Démosthène, I ’homme et i ’ceuvre (Paris, 1948: volume pequeno). Obras eru­
ditas: A. Schaefer, Demosthenes imd seine Zeit (4 vols., 1856, reimpr. Amo
Press, 1979); P. Cloché, Démosthène et la fin de la démocracie athénienne
(Paris, 1937); W. Jaeger, Demosthenes, der Staatsman undsein Werden (Ber­
lim, 1959; edição inglesa do mesmo ano); ver também, do mesmo autor,
Paideia, t. 111. Para o estilo (além de Blass, Die Attische Beredsamkeit, 3a.
parte, I): G. Ronnet, Etude sur le style de Démosthène dans les discourspoli-
tiques (Paris, 1951).
Para Licurgo: F. Durrbach, L 'orateur Lycurgue (Paris, 1889).

CAPÍTULO VII

I. Isócrates
- índice: Preuss (1904, reimpr. 1963).
- Estudos: G. Mathieu, Les idéespolitiques d Lsocrate (1925, livro essencial).
Acrescentamos para a retórica: W. Jaeger, Paideia, livro IV, caps. 2 a 6. Para
completar, eventualmente, com A. Burk, Die Pàdagogik des Isokrates ais
Grundlegung des humanistischen Bildungsideal (1923); H. Werdsdoerfer,
Die Philosophie des Isokrates im Spiegel ihrer Terminologie - Untersuchung
zur fruhattischen Rhetorik und Stillehre (Leipzig, 1940); para a política: P.
Cloché, lsocrate et son temps (1963).

II. Xenofonte
- Estudos: E. Delebecque, Essai sur la vie de Xenophon (1957, discussão
muito carregada sobre a cronologia toda). Juntamos: A. Croiset, Xénophon,
son caractère et son talent (1873); J. Luccioni, Les idées politiques et socia-
les de Xénophon (1948); do mesmo autor: Xénophon et le socratisme (1953);
L. Gauthier, La langue de Xénophon (1911): O. Gigon, comentários alemãos
sobre os primeiros livros dos Memoráveis (1953 ss.).

349
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

CAPÍTULO VII

I. Platão
- Edições comentadas: há inúmeras edições comentadas. A antiga edição de
Stallbaum (notas em latim) ainda pode ser útil. E preciso referir como excep-
cionalmente preciosas as edições comentadas do Górgias por E. R. Dodds
(Oxford, 1959, em inglês), e da República por Adam (2 vols., Cambridge, 1905-
-1907, em inglês). De assinalar igualmente as edições de Hackforth, mais sumá­
rias (Fedro, 1952; Fédon, 1955). O livro de R. Weil, L archéologie de Platon
(1959) é um comentário muito rico e pormenorizado do livro III das Leis.
- índice e léxico: Ast (1935-1938), reimpr. 1956; Des Places (Paris, 1970).
- Estudos: encontramos bibliografias muito pormenorizadas em várias obras.
Referimos aqui sobretudo os estudos gerais, principalmente franceses. P.-M.
Schuhl, L 'oeuvre de Platon (Paris, 1954: breve apresentação); A. Diès, Autour
de Platon (2 vols., 1927); R. Schaerer, La question platonicienne, étude sur
les rapports de la pensée et de 1’expression dans les dialogues (1938); A.-J.
Festugière, Contemplation et vie contemplative selon Platon (1950); V. Gol-
dschmidt, Les dialogues de Platon, structure et méthode dialectique (Paris,
1947, obra notável, mas um pouco difícil); J. Moreau, Réalisme et idéalisme
chez Platon (1951); J. Laborderie, Le dialogueplatonicien de la maturité (Paris,
1978). Devemos, igualmente, assinalar duas obras importantes em alemão:
U. von Wilamowitz-Moellendorff, Platon, sein Leben undseine Werke (1919,
diversas reedições) e Friedlaender, Platon (3 vols., 1928 ss.), obra da qual
existe uma tradução inglesa. Sobre as imagens e os mitos: P. Louis, Les méta-
phores de Platon (1945: extenso repertório); A. de Marignac, Imagination et
dialectique, essai sur I’expression du spirituel par I 'image (1951: reflexão
sobre alguns exemplos); P. Frutiger, Les mythes de Platon (1930).

II. Aristóteles
- Edições: são muito numerosas para cada tratado. (Para os fragmentos: Rose,
2a. ed., 1886; Ross (Oxford, 1955). Assinalaremos entre as edições comen­
tadas: para a Política, Newmann (4 vols., 1887-1902, em inglês); para a Retó­
rica: Cope-Sandys (1877, em inglês); para a Poética, G. F. Else (1957, em
inglês: longo comentário seguido); para a Ética a Nicómaco, Gauthier-Jolif
(4 vols., Lovaina-Paris, 1970, em francês). As edições juntamos as excelen­
tes traduções de J. Tricot, na Vrin, em Paris.
- índice: Bonitz (1870, reeditado várias vezes).

350
BIBLIOGRAFIA

- Obras:
Em francês: L. Robin, Aristote (1944), R. Weil, Aristote et 1’histoire, essai
sur la «Politique» (1960); P. Louis, La découverte de la vie, Aristote (1975).
Em inglês: W. D. Ross, Aristotle (1923, reeditada várias vezes); W. Jaeger,
Aristotle (1934, tradução do texto alemão, publicado em 1923; reedições
posteriores); G. E. R. Lloyd, Aristotle (Cambridge, 1968).
Em alemão: Jaeger: ver acima; F. Solmsen, Die Entwicklung der Aristote-
lischen Logik undRhetorik (Berlim, 1929); L. Diiring, Aristoteles (Heidel-
berg, 1966).
Em várias línguas: La «Politique» d Aristote - Entretiens de la Fondation
Hardt, XI, 1965.

CAPÍTULO IX

Há sobre o mundo helenístico em geral um estudo muito bom de Claire


Préaux, na colecção «NouvelleClio» (2 vols., Paris, 1978); ver também E. Will,
Histoirepolitique du monde hellénistique (2 vols., Nancy, 1966-1967).

I. Menandro
- Edições de Menandro: Kõrte-Thierfelder (apenas o texto, última ed., 1959,
com índice). Alguns textos comentados em pequenos excertos de Aristófa-
nes e Menandro por Bodin e Mazon (Paris, Hachette, 1904). Para o Díscolo,
edições e traduções muito numerosas, duas das quais, diferentes, por J. M.
JacquesnaCUF (1963; 1976). Ver também J. Martin (com notas, Paris, 1961,
reed. 1972, col. «Erasme»); E. W. Handley (Londres, 1965), e tradução de
A. Bataille (Paris, Gallimard, 1962).
- Estudos sobre Menandro: G. Méautis, Le crépuscule dAthènes et Ménan-
dre (Paris, 1954: anterior à descoberta do Díscolo).
Em línguas estrangeiras: T. B. L. Webster, Studies in Menander (1950; 1960);
Studies in Later Greek Comedy (1953; 1971); A. Barigazzi, La formazione spi-
rituale di Menandro (Turim, 1965); Entretiens de la Fondation Hardt, XVI,
1970: Ménandre', Gomme-Sandbach, Menander: a Commentary (Oxford, 1973).
- Outros autores cómicos: Kock (cf. pág. 346); Schroeder, Novce Com. Fragm.
(Bona, 1915); J. M. Edmonds (Thefragments ofAttic Comedv, III A, Leiden,
1961: para utilizar com precaução).
- Estudos: W. H. Friedrich: Euripides und Diphilos (Munique, 1953, Zete-
mata, 5); T. B. L. Webster (cf. supra).

351
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

II. As escolas filosóficas


- Edições dos fragmentos: F. Wehrli, Die Schuhle der Aristoteles (10 peque­
nos vols., 1944 ss.); H. von Amim, Stoicorum Veterum Fragmenta (4 vols.,
IV = índice; 1903-1924, div. reimpr.); A. C. Pearson, The fragments ofZeno
and Cleanthes (para as notas; Londres, 1891); Posidónio: Edelstein-Kidd
(Cambridge, 1972) e para os fragmentos históricos, Jacoby (Fr. Hist. Gr., n°.
87); Epicuro, Usener, Epicurea (Leipzig, 1887, reed. 1966); C. Bailey, Epi-
curus (Oxford, 1926, com notas); G. Arrighetti, Epicuro (Turim, 1960); Dió-
genes de Enoanda por R. Grilli (Milão, 1960).
- Textos traduzidos: Les Stoiciens, textos escolhidos por J. Brun (Paris, PUF,
1957); E. Bréhier e P.-M. Schuhl (Paris, 1962, «La plêiade»; 1964).
- Estudos:
Em francês (por ordem cronológica): V. Brochard, Les sceptiques grecs
(Paris, 1887; 1923); Ed. Bevan, Stoiciens et sceptiques (trad. fr., Paris, 1927);
L. Robin, La morale antiqúe (Paris, 1938); A.-J. Festugière, Epicure et ses
dieux (Paris, 1946); J. Brun, na colecção «Que sais-je?»: Lestoicisme (1958);
L'épicurisme (1959); Marie Laffranque, Poseidoniosd’Apamée (Paris, 1965).
Em línguas estrangeiras: G. Murray, The Stoic philosophy (Londres, 1915);
M. Pohlenz, Die Stoa (Gõttingen, 2 vols., 1948; 1949; 1955, obra essencial).

III. A poesia alexandrina


1) Calímaco: para este autor, tal como para Menandro, convém ter sempre em
conta a data, por causa das novas descobertas de fragmentos em papiros.
- Edições: na CUF adquirir a 4a. edição, por E. Cahen (1953); a edição mais
útil e a mais importante é a de R. Pfeiífer (2 vols., Oxford, 1949-1953), com
comentários em latim e índice. Comentário sobre os Hinos por E. Cahen
(Paris, 1930).
- Estudos: E. Cahen, Callimaque et son oeuvre poétique (Paris, 1929); Cl.
Meillier, Callimaque et son temps (Lille, 1979); R. Pfeiffer, Kallimachoss-
tudien (Munique, 1922; em Alemão, mas muito importante).
2) Para os outros poetas, apenas indicamos aqui as principais edições comentadas:
- Apolónio de Rodes: (além da CUF, que inclui uma introdução e um comen­
tário importante de F. Vian) H. Fraenkel (Oxford, 1961), a completar com
um volume de notas em alemão (Munique, 1968). Ver também, para o canto
III, F. Vian (PUF, 1961, «Erasme»),
-Teócrito: Gow (Oxford, 1950, reed. 1952, com introd., comentário, biblio­
grafia); Idílios II, V, VII, IV, XV por P. Monteil (PUF, 1968, «Erasme»); a

352
BIBLIOGRAFIA

edição da CUF (Legrand, 1927) oferece, no t. II dos Bucólicos gregos, os


outros poetas do género. Podemos acrescentar para Teócrito o Léxico de
Rumpel (1879; reimpr. Hildesheim, 1961).
- Herondas: Headlam e Knox (Cambridge, 1922, reed.); Puccioni (Florença,
1950).
- Arato: E. Maass (Berlim, 1893; 1954); J. Martin (Florença, 1956, com trad.
francesa).
-Nicandro: Gow e Schofield (Cambridge, 1953).
Ver, além disso, U. von Wilamowitz-Moellendorff, Hellenistische Dichtung
in der Zeit des Kallimachos (2 vols., Berlim, 1924, reimpr. 1973).

IV. Políbio
- Comentário histórico de importância capital: F. W. Walbank (1957 ss.;
em inglês, em curso).
- índice: Mauersberger (Berlim, publicação em curso desde 1956).
- Estudos:
Em francês: P. Pédech, La méthode historique de Polybe (Paris, 1964); J. A.
de Foucault, Recherches sur la langue et le style de Polybe (Paris, 1972,
muito técnico).
Em inglês: K. von Fritz, The Theory of the Mixed Constitution (New York,
1954); F. W. Walbank, Polybius (Berkeley, 1972).

CAPÍTULO X

Introdução: os poetas
F. Vian, Recherches sur les Posthomerica de Quintus de Smyrne (Paris, 1954).

I. Plutarco
- Edições: às edições completas, muitas vezes anotadas (mesmo na CUF), pode­
mos juntar as edições comentadas das Vidas ou dos tratados; por exemplo:
Diálogo do amor, por R. Flacelière (Paris, 1952), O Banquete dos Sete Sábios,
por J. Defradas (Paris, 1954), Da virtude ética, por D. Babut (Paris, 1969)...
- Estudos:
Em francês: D. Babut, Plutarque et le stoicisme (Paris, 1969, obra impor­
tante); R. Flacelière, Sagesse de Plutarque (Paris, 1964; apresentação de
extractos traduzidos); Actes do VIII Congresso da Associação G.-Budé (Paris,
1968: informação bibliográfica e comunicações).

353
COMPÊNDIO DE LITERATURA GREGA

Em inglês: R. H. Barrow, Plutarch andhis Times (Indiana Univ. Press, 1969);


C. P. Jones, Plutarch and Rome (1970).
Em alemão: Ziegler, artigo «Plutarco» na Realencyclopàdie, 1951,636-692;
R. Hirzel, Plutarch (Leipzig, 1912, «Erbe den Alten»),
Sobre o género da biografia: A. Dihle, Studien zur griechische Biographie
(Gõttingen, 1965, em alemão); A. Momigliano, The Development of Greek
Biography (Harvard, 1971, em inglês).

II. Os historiadores
Para as obras perdidas, a edição dos fragmentos continua a ser a de Jacoby.
Para as obras conservadas, diversas edições: a publicação de Diodoro está em
curso na CUF, que já tem a índia, de Arriano, por P. Chantraine.
- Edições comentadas de alguns livros de Diodoro (livro I por M. Burton, em
inglês, livro XVI por M. Sordi, em italiano) e de Apiano por E. Gabba, em
italiano.
- Estudos gerais: Ed. Schwartz, Griechische Geschichtsschreiber (Leipzig,
1937, em alemão); G. de Sanctis, Studi di Storia delia Storiografia greca
(Florença, 1951, em italiano).
- Estudos particulares: E. Gabba, Appiano e la Storia delia Guerre Civili
(Florença, 1956, em italiano); F. Millar, A third century Historian, A study
of Cassius Dio (Oxford, 1964, em Inglês); A. Momigliano, estudos sobre os
historiadores cristãos e pagãos, em The conflict between Paganism and Chris-
tianity in theFourth Century (Oxford, 1963, em inglês, trad. italiana, 1968);
J. Sirinelli, Les vues historiques d ’Eusèbe de Césarée durant la période pré-
nicéenne (Paris, 1961).

III. A retórica
- Estudos: A. Boulanger, Aelius Aristide et la sophistique dans la province
d ’Asie au IIesiècle de notre ère (Paris, 1925); B. P. Reardon, Courants litté-
raires grecs des IP et IIP siècles après J.-C. (Paris, 1971).

IV. O romance
- P. Grimal: Romans grecs et latins, textos apresentados, traduzidos e anota­
dos (Paris, 1958); Reardon (fim do volume referido acima); em inglês, B. E.
Perry, The ancient Romances, a lit. hist. Account oftheir Origins (Berkeley,
1967); tudo, sem esquecer, em alemão: E. Rohde, Diegriech. Roman (Leipzig,
1876), reeditado várias vezes.

354
B IB L IO G R A F IA

V. Luciano
- A edição Jacobitz (1836-1841) inclui um índice. Várias edições comentadas
de obras isoladas; como, em francês, Mentiroso e Sobre a morte de Peregri­
no, por J. Schwartz (Strasbourg-Paris, 1951), Navio ou os Desejos, por G.
Husson (Paris, 1970).
- Estudos: M. Caster, Lucien et lapensée religieuse deson temps (Paris, 1937);
J. Bompaire, Lucien écrivain, imitation et création (1958, «Bibl. Ecoles fran-
çaises d’Athènes et Rome», 190); J. Schwartz, Biographie de Lucien de
Samosate (Bruxelles, 1952). Em italiano: A. Peretti, Luciano, Un intellectu-
ale greco contro Roma (Florença, 1946). Em alemão: artigo de Helm, na
Realencyclopàdie (1927).

VI. A filosofia
- Epicteto. Edição comentada de Schweigháuser (Leipzig, 1799-1800,5 vols.).
Com índice: Schenkl (1894, reed.).
Estudos: Th. Colardeau, Etudes sur Epictète (Paris, 1903); G. Germain,
Epictète et la spiritualité stoicienne (Paris, 1964).
- Marco Aurélio. Edições comentadas: Farquharson (Oxford, 1944,2 vols. em
inglês); W. Theiler (Zurique, 1951).
- Estudos: a obra de E. Renan, Marc Aurèle (t. VII de L 'histoire des origines
du christianisme) ainda continua a ser para ler.
- Plotino:
Estudos em francês: J. Trouillard, La procession platonicienne (Paris, 1955) e
Lapurification platonicienne (Paris, 1955); E. Bréhier, Laphilosophie de Plo-
tin (Paris, 2a. ed., 1961); P. Hadot, Plotin ou la simplicité du regard (Paris, 1963).
Em diversas línguas, obra colectiva: Entretiens de la Fondation Hardt, V, Les
sources de Plotin (1960). Em inglês: Th. Whittaker, The neo-platonists (1928,
reimpr. Olms Hildesheim, 1961). Em alemão, artigo na Realencyclopàdie por
Schwyzer (1951). - Podemos juntar-lhe um estudo mais geral: P. Lévêque,
Aurea Catena Homeri, une étude sur l 'allégorie grecque (Paris, 1959).
Hermetismo: A.-J. Festugière, La révélation d ’Hermès Trismégiste (Paris,
1944-1954, 4 vols.: obra capital).

VII. Os cristãos

Os textos completos estão na Patrologia grega de Migne; os principais


foram editados e traduzidos nas edições do Seuil; há textos na CUF (como os
de S. Basílio).

355
COMPENDIO DE LITERATURA GREGA

- A. Puech, Histoire de la littérature grecque chrétienne depuis les origines


jusqu ’à la fin du IV siècle (Paris, 3 vols., 1928-1930).

VIII. O último brilho do paganismo


- A.-J. Festugière, Antioche paienne et chrétienne. Libanios, Chrysostome et
les moines de Syrie (Paris, 1959); P. Petit, Libanius et la vie municipale à
Antioche au IV siècle après J.-C. (Paris, 1955) e Les étudiants de Libanius,
unprofesseur defacultè et ses élèves au Bas-Empire (Paris, 1956); J. Bidez,
La vie de l 'empereur Julien (Paris, 1930); obra colectiva: L 'empereur Julien,
de Vhistoire à la légende (Paris, 1978).

Esta bibliografia é a da edição de 1980. Podê-la-íamos completar com as


publicações mais recentes, com as indicações dadas na Cambridge History of
Classical Literture, I, Greek Literature (ed. P. E. Easterling e B. M. W. Knox),
publicada em 1985, e com as diversas rubricas do Dictionnaires des Littératu-
res, a ser publicado nas Presses Universitaires de France.

356
QUADRO CRONOLÓGICO
QUADRO CRONOLOGICO

Nota preliminar: o quadro abaixo agrupa informações de ordem diferente (datas de um nascimento, de uma obra, de uma morte) e de natureza
imprecisa. Com efeito, frequentemente estamos pouco seguros das datas exactas relativas aos autores da Antiguidade, alguns são objecto de
discussão: as indicações dadas aqui constituem, assim, marcas aproximadas.

I . O P E R ÍO D O A R C A IC O
A contecimentos Poesia épica e Didáctica Lirismo Filosofia
1500-1200: mundo aqueu

1180: data tradicional da tomada


de Tróia

1200-1100: invasões dóricas


358

Século vm
750-600: desenvolvimento da' Homero
colonização

Século VII Hesíodo Arquíloco, Tirteu, Semónides,


Calino

Alcman, Terpandro
Mimnermo Tales

Século VI Sólon, Safo, Alceu


594: reformas de Sólon em Atenas Anaximandro, Anaxímenes,
Xenófanes, Pitágoras
A c o n te c im e n to s P o e s ia é p ic a e D id á c tic a L ir is m o F ilo so fia

Teógnis, Anacreonte
561-528: Pisístrato tirano de Atenas Heraclito
Simónides

Parménides
525: nascimento de Esquilo
(morre em 455)

518: nascimento de Píndaro


(morre em 438)

510: fim da tirania em Atenas


359

I I. O S É C U L O V
Acontecimentos Teatro História Filosofia
499: nascimento de Sófocles nascimento de Heródoto (morre
(morre 406-405) em 425)

490-480: guerras médicas, vitórias cerca de 490: nascimento de


gregas em Maratona e depois em Protágoras (morre c. 420)
Salamina

cerca de 480: nascimento de Empédocles


Eurípides (morre em 406-405)

477: fundação da liga de Delos:


Atenas tem, a partir daí, a hegemonia
A c o n te c im e n to s T eatro

472: Esquilo, Os Persas


(primeira tragédia conservada)

460: partido de Péricles


preponderante em Atenas

458: Esquilo: Oresteia

cerca de 445: nascimento de


Aristófanes (última obra: 388)
360

443: fundação de Túrio


442: Sófocles: Antígona

438: Eurípides: Alceste (primeira


tragédia conservada de Eurípides)

431: início da guerra do Peloponeso: 431: Eurípides: Medeia


Atenas e seus aliados contra Esparta

429: peste de Atenas, morte de Péricles 428: Eurípides: Hipólito

425-422: Aristófanes,
sucessivamente: Acamenses,
Cavaleiros, Nuvem, Vespas
H is tó r ia F ilo s o fia

cerca de 470: nascimento de


Sócrates

cerca de 460: nascimento


de Tucídides................................. de Demócrito, de Hipócrates

Anaxágoras

Protágoras redige as leis para


Túrio

Tucídides começa a sua história


da guerra

427: embaixada de Górgias a Atenas

424: Tucídides exilado


A c o n te c im e n to s Teatro

421: paz de Nícias, entre Atenas e


Esparta (quebrada em pouco tempo)

415-413: expedição ateniense na Sicília 414: Aristófanes: Aves

412: Eurípides: Helena

411: breve revolução oligárquica em


Atenas

410: Eurípides: Fenícias


409: Sófocles: Filoctetes
408: Eurípides: Orestes

406-405: morte de Eurípides e


de Sófocles, Rãs de Aristófanes

404: fim da guerra do Peloponeso:


derrota de Atenas

403: a oligarquia dos Trinta em


Atenas, o seu derrube

401: partida da expedição para a 401: Sófocles: Edipo em Colono


Ásia, com Xenofonte
H is tó r ia F ilo s o fia

Fim da narrativa de Tucídides

Início da eloquência

403: Lísias: Contra Eratóstenes


III. O SÉCULO IV
Acontecimentos Teatro Eloquência Pensadores Filosofia
399: morte de Sócrates 399: Andócides: cerca de 398: primeiros
Sobre os mistérios diálogos de Platão
(nascido em 427)
392: Aristófanes: 393: Isócrates (nasce
Assembleia das mulheres em 436) abre a sua escola

388: Aristófanes: Pluto cerca de 390: Xenofonte


fixa-se em Cilunte

387: Platão funda a


Academia
362

380: Isócrates: Panegírico


377: constituição da Segunda
Confederação ateniense

371: fim da hegemonia de


Esparta

367: segunda viagem


de Platão à Sicília
362: fim da hegemonia
tebana

360: subida de Filipe ao


trono da Macedónia
A c o n te c im e n to s T eatro E lo q u ê n c ia

355-354: início de
Demóstenes na vida
política
349: Demóstenes: Olintiacas

342: nascimento de
Menandro
341: Demóstenes Sobre o
Quersoneso, Filípica III

338: vitória de Filipe em


Queroneia

334-323: Alexandre na 330: Demóstenes: Sobre a


Ásia Coroa

323: morte de Alexandre 322: morte de Demóstenes


P en sadores F ilo so fia

cerca de 355: morte de


Xenofonte
Isócrates: Areopagitico

347: morte de Platão

342: Aristóteles encarregue


da educação de Alexandre

338: morte de Isócrates

e de Aristóteles
IV. O PERÍODO HELENÍSTICO
Acontecimentos Literatura latina Teatro Poesia História Filosofia

Teofrasto, sucessor
de Aristóteles

316: Menandro, Historiadores de 306: Epicuro abre


o Díscolo Alexandre Dúris a sua escola

301: Zenão abre a sua


escola em Atenas

293-292 (?): morte de 290-285: Calímaco


Menandro fixa-se em Alexandria
285-246: Egipto: 282: Cleantes chega
Ptolomeu II Filadelfo a Atenas

275: Teócrito Idílio XVI


Arato convidado para
a Macedónia
Morte de Timeu 270: morte de Epicuro
(c. meados do século) 262: morte de Zenão

246: Eratóstenes
encarregue da
Biblioteca de
Alexandria
264-241: no Ocidente: 244: último poema
primeira guerra púnica datado de Calímaco
A c o n te c im e n to s L ite r a tu r a la tin a Teatro

247-222: Egipto: Névio


Ptolomeu III
Evérgeta

200-197: Oriente e Énio, Plauto, Catão


Ocidente: primeira
guerra entre Roma
e a Macedónia

196: proclamação
por Flaminino da
independência grega

148: Macedónia,
província romana
P o e s ia H is tó r ia F ilo so fia

c. 250-240: Apolónio,
Argonáuticas

c. 205: morte do
estoico Crisipo

c. 200 (?): nascimento


de Políbio (morre com
82 anos)

185-112: Panécio

167: Políbio em Roma


156: embaixada de
Caméades a Roma

146: regresso de
Políbio à Grécia
Acontecimentos Literatura latina Teatro

106-43: Cícero
100-44: César

82-79: ditadura de Sila 86-34: Salústio

70-19: Virgílio
59: César cônsul 59-17 d. C., Tito Lívio

44: morte de César


366

27: subida de Augusto


ao poder
P o e s ia H is tó r ia F ilo so fia

135-51: Posidónio
c. 90: nascimento de
Diodoro

Entre 60 e 55:
nascimento de Dionísio
de Halicamasso

39: Fílon de
Alexandria embai­
xador em Roma
36: último
acontecimento
contado por Diodoro
V. O P E R ÍO D O R O M A N O
Acontecimentos Literatura latina Poetas Prosadores Cristãos
29-68: Roma: os Césares Ovídio, Fedro c. 40: nascimento de Díon
Crisóstomo (morre em 120)

Séneca (4 antes?-65 depois) c. 50: nascimento de


Plutarco (morre em 120)

Plínio, o Antigo, 23-79 Epicteto


69-79: Roma: os Flávios

Plínio, o Jovem, 61-112 95: nascimento de Arriano


Tácito, 55-120 (morre em 175)

96-112: Roma: os c. 120: nascimento de


Antoninos, dos quais: Luciano (morre no final do
século)
117-138: Adriano c. 124: nascimento de Pausânias
Apuleio

129-189: Élio Aristides


161-180: Marco Aurélio 155-235: Díon Cássio 1507-215: Clemente de
Alexandria

185-255: Orígenes
Tertuliano (fim II-início III) 204: nascimento de Plotino
(morre em 274)
A c o n te c im e n to s L ite r a tu r a la tin a P o e ta s

312: vitória de Constantino Quinto de Esmima


na Ponte Mílvio

c. 340: nascimento de
Amiano Marcelino

330: Bizâncio capital Santo Hilário, Santo


do império Ambrósio, S. Jerónimo

354-430: Santo Agostinho


368

361-363: reinado Nono de Panópolis


de Juliano (século V)
P rosadores C ristã o s

265-340: Eusébio de
Cesareia

295-373: Atanásio

314-395: Libânio

317-388: Temístio 330: nascimento de


S. Basílio e de S. Gregório
de Nazianzo
Jâmblico 345: nascimento de S. João
Crisóstomo

410-485: Proclo
r
índice Onomástico
O índice remete para as páginas do livro onde os autores são considerados
por si mesmos: não tivemos em conta aquelas em que são referidos de passa­
gem, seja em função de um outro, seja ao longo de uma análise de ordem geral.
Reagrupámos no final as obras que nos chegaram sem nome de autor.

Adriano de Tiro, 310 Apiano, 304, 305


Afareu, 141 Apolodoro (de Atenas), 281
Ágaton, 140, 145 Apolodoro de Caristo, 265
Alceu, 59, 65, 66, 358 Apolónio de Rodes, 272, 273, 275-
Alcídamas, 207 -278,282
Álcifron, 314 Apolónio de Perga, 283
Álcman, 60, 67, 358 Aquiles Tácio, 313
Alexandre Poliistor, 302 Arato (homem político), 285
Alexis de Túrio, 147 Arato (poeta), 280
Amónio (filósofo platónico), 294 Arcesilau de Pítane, 266
Anacreonte, 59, 66, 67, 359 Arctino de Mileto, 49
Anaxágoras, 152, 164, 360 Aríon de Metimna, 65, 90
Anaxímenes (o filósofo), 77, 358 Aristarco, 272
Andócides, 180-182 Aristéneto, 314
Antíoco de Ascalão, 266 Aristides (Élio), 310
Antí fanes, 147 Aristipo, 227
Anti fonte, orador, 159-162 Aristobulo, 284
- o sofista, 159-162 Aristófanes, 141-147
- o trágico, 141 Aristófanes de Bizâncio, 272
Antístenes, 227, 265 Aristóteles, 243-256
António Diógenes: Maravilhas, 312 Aristóxeno de Tarento, 266

369
C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

Arquíloco, 61 -62 Demades, 200


Arquimedes, 283 Demétrio de Faleros, 262, 266
Arquitas, 76 Demócrito, 153
Arriano (o historiador), 304, 305, 320 Demóstenes, 179, 180, 187-200
Asclepíades de Samos, 281 Dexipo, 306
Astídamas, 141 Diágoras de Meios, 155
Atanásio (santo), 307, 326-328 Dicearco, 266
Ateneu, 306 Diceógenes, 141
Atidógrafos, 102 Dídimo, 273
Dífilo, 265
Baquílides, 74 Dinarco, 200
Basílio (S.), 326-328 Diodoro Sículo, 302, 303
Bíon de Borístenes, 267 Diógenes deApolónia, 153
Bíon de Esmima, 279 Diógenes de Enoanda, 269
Diógenes Laércio, 245
Calímaco, 273-278, 280, 281, 283 Diógenes o cínico, 267
Calino, 62 Díon Cássio, 305, 306
Calístenes, 244, 284 Díon Crisóstomo, 293
Cárcino, 140 Dionísio de Halicamasso, 302, 308
Cares, 284 Dioscórides, 319
Cáriton, 312 Dúris, 284
Caméades, 270
Cecílio de Calacte, 308 Éforo, 213, 219
Celso, 325 Empédocles, 83, 84
Cleantes, 267 Eneias o táctico, 306
Clearco, 216 Epicarmo, 141, 142
Clemente de Alexandria, 324 Epicteto, 304, 305, 320, 321
Clitarco, 284 Epicuro, 269, 270
Colotes, 270 Epiménides, 77
Córax, 157, 160 Eratóstenes, 182-185,281,283
Corina, 74 Escopeliano, 310
Crates o cínico, 267 Esopo, 75
Crates o cómico, 142 Espeusipo, 244
Cratino, 142 Esquilo, 89-102, 121
Crisipo, 267 Esquines, 196, 197
Crítias, 140, 154, 162 Esquines de Esfeto, 227
Ctésias, 219 Estesícoro, 67

370
ín d ic e o n o m á s t ic o

Estesímbroto de Tasos, 173 Hecateu, 102


Estobeu, 306 Hegésias de Magnésia, 282
Estrabão, 301 Helânico, 102
Estráton de Lâmpsaco, 266 Heliodoro (o romancista), 313
Euclides (o matemático), 283 Heraclito, 79, 80
Euclides de Mégara (filósofo), 227 Heraclito de Halicamasso, 281
Eudemo, 247 Hermes Trimegisto, 322
Eudoxo de Cnido, 241 Hermipo, 142
Eufórion de Cálcis, 281 Herodes Ático, 310
Eugámon de Cirene, 49 Herodiano, 306
Eunápio, 306 Heródoto, 102-114
Êupolis, 147 Herondas, 279, 280
Eurípides, 129, 141 Hesíodo, 53-60
Eusébio de Cesareia, 307 Himério, 331, 332
Evémero, 285 Hiparco (o astrónomo), 283
Eveno de Paros, 207 Hiperides, 198
Hípias, 158
Fânocles, 281 Hipócrates, 151
Favorino, 310 Hipónax, 62
Fénix de Cólofon, 280 Homero, 19-50
Ferécides de Siro, 77
Filarco, 303 íbico, 67
Filémon, 265 Iseu, 186
Filócoro, 285 Isócrates, 205-214
Filodemo, 269
Fílon de Alexandria, 271 Jâmblico (o filósofo), 322
Fílon de Larissa, 266 Jâmblico (o romancista), 313
Filostéfano de Cirene, 281 Jambulo, 312
Filóstrato, 310, 311 Jerónimo de Cárdia, 284
Fócio, 200 João Crisóstomo (S.), 329
Frínico (cómico), 89, 92 Josefo (Flávio), 304
Frínico (trágico), 147 Juba de Mauritânia, 302
Juliano, imperador, 331-336
Galeno, 319
Górgias, 157, 158 Lesques, 49
Gregório de Nazianzo, 326-328 Leucipo, 153
Gregório de Nissa, 328, 329 Libânio, 331-333

371
C O M P Ê N D IO D E L IT E R A T U R A G R E G A

Lícofron, 277, 281 Píndaro, 68-74


Licurgo, 198, 199 Pirro, 284, 285
Lísias, 182-186 Pírron, 270
Loliano, 310 Pitágoras, 76-79
[Longino], Sobre o Sublime, 308, 309 Píteas, 283
Longo, 313,314 Platão, 228-243
Luciano, 314-319 Platão o cómico, 147
Plotino, 320-322
Magnes, 142 Plutarco, 294-301
Marco Aurélio, 320-322 Pólemon (sofista), 310
Mársias de Pela, 284 Poliano, 306
Máximo de Tiro, 310 Políbio, 285-290
Meléagro de Gádaros, 281 Polícrates, 207-209
Meleto, 141 Porfírio, 320-322
Melisso, 83 Posidónio, 268, 301
Menandro, 260-265 Pratinas, 89
Menipo (o cínico), 267 Proclo: Crestomatia, 49
Mosco, 279 Proclo (o filósofo), 322
Museu, 294 Pródico, 158
Protágoras, 155-158
Nearco, 284 Pseudo-pitagóricos, 270, 271
Nicandro de Cólofon, 280, 281 Ptolomeu I, 284
Nicetes, 310 Ptolomeu (o astrónomo), 319
Nicolau Damasceno, 302
Nigrino, 315 Querémon, 141
Nono, 294 Quinto de Esmima, 293
Quiónides, 142
Olimpiodoro, 306
Onesícrito, 284 Safo, 65-67
Orfeu, 75 Semónides, 62
Orígenes, 324, 325 Sexto Empírico, 320
Simónides de Ceos, 67
Panécio, 268 Sinésio de Cirene, 323
Paníasis, 103 Sócrates, 227, 228
Parménides, 81-84 Sófocles, 117-129
Parténio, 281 Sófron, 278, 279
Pausânias, 306 Sólon, 62-65

37 2
ÍN D IC E O N O M Á S T IC O

Tales, 77, 78 Zenódoto, 272


Teles, 267 Zenão, o estoico, 267
Temístio, 331, 332 Zenão de Eleia, 82
Teócrito, 277-281, Zonaras, 305
Teodoro de Bizâncio, 207 Zósimo, 306
Teodoro de Cirene, 241
Teodoreto, 307 Obras sem nome de autor conhecido:
Teofrasto, 244-246, 266
Teógnis, 62, 63 Anónimo de Jâmblico, 162
Teopompo, 213, 219 Antologia Palatina, 275
Terpandro, 67 Antologia Planudea, 282
Téspis, 89 Batracomiomaquia, 49
Timeu, 285 Cantos cíprios, 49
Timocreonte, 74 Carta de Aristeu a Filóstrato, 271
Tímon de Fliunte, 271 Edipodia, 49
Tirteu, 62 Epígonos, 49
Tísias, 157, 160 Helénicas de Oxirrinco, 219
Trasímaco, 158, 159 Hinos homéricos, 50
Tucídides, 163-175 Margites, 49
Nostoi [Regressos], 49
Xenófanes, 78, 79 Oráculos Caldaicos, 322
Xenofonte, 214-224 Raciocínios duplos, 162
[Xenofonte], Const. de Atenas, 220 Suda, 306
Xenofonte de Éfeso, 312 Tebaida, 49
Xifilino, 305 Tomada de Ecália, 49

373
C O M P Ê N D IO

1. Compêndio de Sociologia, L u c ia D e m a r tis


2. Elementos de Antropologia Social e Cultural, J e a n - P a u l C o lle y n ,
3. História das Ideias Políticas, v o l. I, D m itr i G e o rg e s L a v r o f f
4. Manual de Arqueologia Pré-Histórica, N u n o B ic h o
5. Psicologia Social, J .-P .-L e y e n s e V in c e n t Y z e r b y t

6. Noções de Lógica, P h ilip p e T h iry


7. Compêndio de Literatura Grega, J a c q u e lin e d e R o m illy

-f. S
W D fE b a Costa Id e C u c to
MAT 033720-4
Epopeia, retórica, teatro, filosofia, história, poesia, romance, a literatura grega
antiga, ponto de partida de todas as literaturas europeias, vai de descoberta em
descoberta. De Homero a Plutarco, a obra de Jacqueline de Romilly cobre este
vasto período do «milagre grego», com especial incidência nas épocas de maior
florescimento, e mostra a dinâmica de que está imbuída esta literatura, facultando,
para cada obra, os instrumentos de análise que a permitem compreender melhor.

JACQUELINE DE ROMILLY (1913-2010) foi uma ilustre filóloga, helenista e


académica francesa e um dos maiores vultos mundiais dos estudos gregos clássi­
cos. Foi a segunda mulher a integrar a Academia Francesa e a primeira mulher
a dar aulas no prestigiadíssimo Collège de France, precisamente sobre o seu as­
sunto de eleição e que a apaixonou toda a vida: estudos gregos e clássicos.
Personagem de inv ulgar erudição, foi uma incansável pedagoga que sempre sali-
. entou a importância de se estudar em detalhe a civilização e cultura grega clássicas,
que enformaram o universo cultural europeu e humanista.
Da siui autoria estão publicadas por Edições 70 Homero e A Tragédia Grega.

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