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___.:-- ROBBRTO EsPOSITO

umanos
T ERMOS DA
Nenhum conceito atraiu tanto o interesse da filosofia política
nos últimos dez anos quanto o conceito de biopolítlca. [ ... ) Bssa
atenção renovada pela biopolítica data de quando pareceu que
tal conceito poderia captar, na fusão entre biologia e política,
uma transformação do modo como a própria política é entendida
POLÍTICA
COMUNIDADE, IMUNIDADE,
e teorizada. [ ...] Tonto o precário desembarque dos imigrantes
nas costas dos países ocidentais - com a respectiva resposta por
BIOPOLÍTICA
parte da política (e, ultimamente, da polícia) - quanto a prática
terrorista de homens e mulheres que se explodem com a
Intenção de suprimir o maior número de vítimas possível, em
função de uma presumível recompensa mundana ou religiosa,
dão a impressão de que a política e o poder est tjam
relacionados, m uito mais do que antes, à própria vida [ ... ]. E, no
entanto, apesar de todo o interesse que essa categoria provocou,
[ .. . ) poucos são o s que se puseram duas perguntas
fundamentals: de onde a biopolítica se origina e o que quer dizer
fundir os lemas do bios e da política em um único vocábulo?
Timothy Gampbell
INTRODUÇÃO DE TrMOTl1Y CAMPBELL

TRADUÇÃO
ANCIBlA Cotrro MACHADO FONSECA
JOAO PAULO ARROSJ
LUIZ ERNA!il FRJTOLI
RICARDO MARCl'.I O FONSECA

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BIOPOLÍTICA
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ROBERTO EsPOSITO
UIH!
UFPR
UNIVUIIDAOI fl!OUAI. DO ml
TERMOS DA
Reitor
Ricardo Marcelo f'onseca

Vice-Reitora
POLÍTICA
Oraclela Inês Bolzón de Munlz COMUNIDADE, IMUNIDADE,
Pró-Reitor de Extensão e Cultura BIOPOLÍTICA
Leandro f'ranklln Oorsdorf

Diretora da Editora UPPR INTRODUÇÃO oe TIMOTHY CAMPBl!LL


Suzete de Paula Bomatto

Vice-Diretor da Editora UPPR


Rodrigo Thdeu Oonc;alves

Conselho Editorial que Aprovou este Livro TRADUÇÃO


Adriano Nervo Codato lttmoouc;Ao, or. TIMOTHY CAMPBUL, PAKI'?. II, PAR're III, rrens 3 e 4
Allan Yalenza da Silveira Ltnz ERNAl'fl f'RrrOLI
Cristina Oonçatves de Mendonça
David José de Andrade Silva PAKI'?. I
Edlson Luiz Almeida 1izzot JoÃo PAULO ARRos1
Everton Passos
PAKrn Ili, rrerts 1 r. 5
Ida Chapaval Pimentel
ArlcmLA ColTTO MACHADO FoNsOCA
Lauro Brito de Almeida
Márcia Santos de Menezes PAKre III, m11 2
Maria Auxllladora M. dos Santos Schmidt RICARDO MARceLO FoNSOCA
Maria Cristina Borba Braga
Naotake f'ulwshlrna
Serglo Luiz Meister Berleze
Serglo Sald Staut Junior
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l
l Turmlnl della poUtlca. Comunltà, lmmunltà, blopollUca C 2008, Mfmesls edlzfonf ..
Roberto e.spo.sfto
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TERMOS DA
) POLÍTICA
CoMunm.o.De, IMIJNIDM>I:,
BIOPOúnCA
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
l
Coordenação edltorlal
) Rachel Cristina Pavlm

l Equipe de tradutores
Angela Couto Machado fbnseca, João Paulo Arrosl,
) Luiz emanl Fritoli e Ricardo Marcelo fbnseca
) Revisão

)
) Paula Lorena Silva Melo

Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica


Rachel Cristina Pavlm
Ws caminhos trilhados pela filosofia crítica do filósofo l'rancês Mlchel
f'oucault, longe de parecerem um "modismo", como tantos que acometem
) Série Pesquisa, n. 311
nossa vida acadêmica, criaram raízes efetivas na cultura filosófica de nos-
sos dias. Passados mais de trinta anos de sua morte, o impacto causado
t Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas
Biblioteca Central. Coordenação de Processos Técnicos: pela sua obra, Inesperadamente enriquecida com obras "inéditas" - ou
) esposlto, Roberto stja, os seus cursos proferidos no College de France - atribui colorações
) Turm~ da política: comunidade, Imunidade, blopolítlca j Roberto esposlto; novas ao debate contemporâneo. Mas mais do que isso: suas ideias (fe-
lntroduçao ~e Timothy campbell; tradução: Introdução, Parte 11, Parte 111, Itens
) 5 e 4, de Luiz emanJ frltoll; Parte 1, de João Paulo Arrosl; Parte m, Itens 1 e s, de cundas, com um conteúdo crítico inusitado, mas muitas vezes ainda por
Angela Couto Machado f'bnseca; Parte Ili, item 2, de RJcardo Marcelu f'onseca
- Curitiba: ed. UJTR. 2017. . serem melhor escavadas) semearam desdobramentos multo ricos e, so-
) 216p. - (Pesquisa; n. 511)
bretudo, tremendamente fincados nos desafios políticos e jurídicos atuais.
) Inclui referências e notas bibliográficas Um exemplo destes ricos desdobramentos, dentre tantos, pode
ISBN 978-85-8480-094-0
se dar pela fortuna de que hoje desfruta a categoria "biopolítlca,.. Conceito
) Título original: 'Iermlnl della polltlca: comunltà, lmmunftà, biopolltlca
trabalhado de modo original por roucault, acabou por ser apropriado e
) 1. Política. 2. l"llosofia. 5. Blopolítlca. 1. Título. n. Série.
CDD520.0l desenvoMdo por parte relevante da filosofia contemporânea, Inclusive no
Andn=e Cmollnn Orol\5 CM 9/1.384
) 'debate filosófico brasileiro. Parece Inegável que os novos horizontes do
poder moderno, as novas formas de s1tjeição e suas Intersecções com os
) ISBN 978-85-8480-094-0
Ref. 880 poderes "Institucionalizados,. (aqueles que f'oucault chama de poder "so-
~ berano" ou poder jurídico") são temas que Inevitavelmente permeiam o
Direitos desta edição reservados à
) debate contemporâneo. I!., dentro desse debate, é também inegável que o
Editora UFPR
pensamento italiano assumiu um enorme protagonismo.
} Rua João Negrão, 280, 2° andar - Centro
'lei.: (41) 3360-7489 l!.m particular no Brasil, quem segue essa discussão certamente
) 80010-200 - Curitiba - Paraná - Brasil
lembra do sucesso obtido aqui, no início dos anos 2000, por alguns livros
www.edltora.ufpr.br


j
edltora@ufpr.br
2017
de Antonio Negrl (sobretudo aqueles em parceria com o norte-americano
Michael Hardt) e por autores que se autodeclaravam na trilha da Investiga-
ção da "biopolitlca minore,,. Mas talvez o maior fenômeno Italiano dessa
j iE=I
lwoctoçlo Brasflctlre
tribo nesta parte do sul das Américas tenha sido o grande êxito verificado
du Editoras UntffrsftArtas
j nos últimos quinze anos por Olorgio Agamben. A quantidade de livros des-

I
se autor traduzidos aqui no Brasil - talvez um dos países em que ele alcan- . Resta aplaudir a sensibilidade da Editora Uf'PR (na sua direção e
ce maior ê)dto editorial - demonstram como os textos Intuitivos e cheios no seu conselho editorial) em acolher essa importante iniciativa cultural e
de "inslghtsu desse filósofo Italiano atual encontraram um solo fértil no . por estar comprometida com a negociação dos direitos para essa edição
debate críUco brasileiro. Não só nas faculdades de filosofia, mas também desde o ano de 2013, quando eu fiz a "ponte" entre o autor e a editora
nas de direito, história, letras etc., Agamben tomou-se uma referência em universitária. Seguramente com isso se concretiza um importante aconte-
tantos percursos críticos do pensamento. Particularmente no meu caso, cimento para toda aquela comunidade acadêmica brasileira - crescente,
os entrecruzamentos feitos por ele entre "norma# e "exceção" e "direito" e multidisciplinar e cada vez mais relevante - que se ocupa em refletir sobre
•ratou entre ~utros tantos, me serviram muito.
I
os desafios da política contemporânea em chaves novas.
Mas apreciando o cenário filosófico italiano e o Interesse cres-
Ricardo Marcelo Fonseca
cente do leitor brasileiro pelo tipo de abordagem a que referi acima, pa-
recia haver uma lacuna importante a ser preenchida: trazer de modo mais Professor do Departamento de Direito Privado da Ur'PR
Pesquisador do CNPq
apropriado ao nosso ambiente acadêmico as ideias desse pensador italia-
Reitor da UFPR (2016-2020)
no hoje tão Influente e Instigante que é Roberto esposito, ainda Insuficien-
temente lido (e, diria eu. de modo lf'\justlficável) no país.
Basta que se diga que aquele que é um dos seus livros mais in-
fluentes - Blos - Blopolltica e filosofia, publicado originalmente em 2004
- veio à luz (em Portugal) em 2010, e aqui no Brasil a primeira e única
publicação de livro deste autor até agora aconteceu em 2013, e foi o seu
Pensamento vivo - origem e atualidade da filosofia italiana, pela editora
Uf'MO. Todavia, pode-se dizer que não havia ainda na nossa língua uma.
amostra mais completa do percurso original de sua reflexão: temas que
para ele são centrais, como ..comunidade·, •impessoal" e sobretudo a in-
flexão "'imunitária.. que ele dá, em maneira tremendamente original, à re-
flexão sobre a blopolítlca. Não se tinha ainda uma visão de cortjunto para o
leitor brasileiro. Não havia até agora, justamente até a publicação do livro
que o leitor tem em mãos.
'lermos da política - comunidade, imunidade, biopoütica de
fato parece ser a porta de entrada perfeita para o leitor brasileiro ao pen-
samento instigante de Roberto Bsposito. Com uma longa introdução - que
consta também da edição italiana original - feita pelo professor da Univer-
sidade de Cornell, nmothy Campbell (0 pensamento de Roberto t:sposito
rio debate filosófico contempor&teo), as três partes que compõem o livro,
ao recolherem ensaios escritos ao longo do percurso do autor entre 1996
e 2008. dão conta precisamente de temas caros à sua reflexão e que tanto
hoje magnetizam uma importante parcela crítica de leitores brasileiros
(niilismo, nazismo, totalitarismo, violência, além, claro. de suas marcas
originais sobre os temas da "comunidade", "Imunidade,., "blopolítlca" e de
sua .. filosofia do impessoal"),
j
J
l
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)
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l SUMÁRIO
l
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)
)
)
AoveR'rtNCIA / 11
) PoLtntA, IMUNIDADE, V1DA / 1:3
O pensamento de Roberto esposlto no debate contemporâneo •
) 71mothy cantpbell

:. PARTE 1
) A LEI DA CoMUNIDADE / 69
) MELANCOLIA E CoMUNIDADE / 85
} CoMUNIDADE E NIILISMO / 97

) PARTE II
) DEMOCRACIA IMUNrr."1\JA / 115
LIBERDADE E IMUNIDADE/ 127
)
IMUNIZAÇÃO E VIOLl!NCIA / 1:39
)
PARTE III
}
151
BIOPOLtnCA e f'ILOSOf'IA /
) 0 NAzlSMO ENós / 165
) PoLtnCA e NATUREZA HUMANA / 177

) TOTALrrARISMO ou BIOPOLtnCA: PARA UMA lrrreRPRBTAÇÃO f'ILOSÓf'ICA


DO Stc. XX/ 191
) PARA UMA f'ILOSOflA DO IMPESSOAL / 203
)
)
)
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l
ADVERTÊNCIA

Ws ensaios presentes neste volume foram escritos ao longo de uma


década, entre 1996 e 2006. Alguns deles são inéditos. Os outros foram
publicados nos seguintes volumes de coletâneas e revistas: "La legge della
comunità" in Micromega. Almanacco di filosofia 1996; ''Malinconia eco-
munità11 inArcipelago mallnconia, Roma, Donzelli 2001, organizado por B.
f'rabotta; "Comunità e nichilismo" in M.W., Nichilismo e polltica, Roma-
-Bari, Laterza 2000, organizado por R. esposito, e. Galli e V. Vitiello; "De-
mocrazia immunitaria" in Micromega, n. 4, 1999; "Libertà e immunità" in
Micromega, n. 4, 2000; "li nazismo e noi", ln Micromega. Almanacco di fi-
losofia 2003; "Politica e natura umana" in .Post-umano. Relazioni tra uomo
e tecnologia nella società delle reti, Milano, Querini 2006, organizado por
M. Pireddu e A. Tursi; "1btalitarismo o biopolitica. Per un'interpretazione
fllosoflca dei Novecento" in Micromega, n. 5, 2006. Em alguns casos os
títulos foram ligeiramente modificados em relação aos originais. Agradeço
aos diretores das revistas e organizadores pela permissão de republicar
esses textos.

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POLÍTICA, IMUNIDADE, VIDA
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} O pensamento de Roberto Esposito

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l no debate contemporâneo

Timothy Campbell
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)
• ~ u m conceito atraiu tanto o Interesse da filosofia polltlca nos
últimos dez anos quanto o conceito de biopolítica. f"ilósofos provenientes
de diferentes tradições, como o marxismo, o pós-estruturalismo e a psi-
canálise, utilizaram-no para descrever aquilo que surgiu como mudanças
) radicais na semântica da vida. essa atenção renovada pela biopolítica data
) de quando pareceu que tal conceito poderia captar, na fusão entre biologia
e política, uma transformação do modo como a própria política é enten-
)
dida e teorizada. nata-se de uma mudança reconhecível não somente no
) âmbito do debate filosófico, mas também no âmbito de mídias populares
) como a televisão e a Internet. Tonto o precário desembarque dos imi-
grantes nas costas dos países ocidentais - com a respectiva resposta por
)
parte da política (e, ultimamente, da polícia) - quanto a prática terrorista
) de homens e mulheres que se explodem com a intenção de suprimir o
) maior número de vítimas possível, em função de uma presumível recom-
pensa mundana ou religiosa, dão a impressão de que a política e o poder
j estejam relacionados, muito mais do que antes, à própria vida, ou s~a,
) que se use a vida humana como meio para adquirir poder ou como seu
) instrumento de expressão. e, no entanto, apesar de todo o Interesse que
essa categoria provocou, atestado pelo espaço crescente destinado por
) dicionários e antologias a ela dedicados, poucos são os que se puseram
} dUas perguntas fundamentais: de onde a biopolftlca se origina e o que
} quer dizer fundir os lemas do bfos e da política em um único vocábulo?
A não formulação dessas questões Impediu, até agora, a elaboração de
}
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1.3
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ThRMos DA PoLfno.
CoHUNID'DC, l11UNID,\DC, 8IOl'OLITICA
f
uma verdadeira genealogia, e resultou em uma carência de análises capaz
f
exemplo, colocava-a no coração da teoria dos sistemas; assim como, em
(
de historlclzar o termo e ao mesmo tempo caracterizar seu significado de 1988, Donna Haraway elaborou um discurso sobre o sistema imunitário
maneira positiva ou negativa. No vazio hermenêutlc-.o que assim se deter- in~ernamente à própria interpretação dos corpos pós-modernos; e Jean {,
minou Inseriu-se o filósofo Roberto esposlto, com o seu Importante livro Baudrillard, já no início dos anos noventa, falava da esterilização artificial (
de 2004, lnUtulado Justamente Btos. BlopoUUca e filosofia. Analisando os capaz de compensar o enfraquecimento das defesas imunitárias intemas1 •
atuais dispositivos de biopoder e ao mesmo tempo delineando uma ampla Para todos esses o conceito tende facilmente a deslizar para o de "au-
(1
história da biopolítlca desde Hobbes até as guerras em andamento, nesse toimunidade", apresentado como o último horizonte da política contem- f
texto - como nas duas obras a ele ligadas, em uma espécie de trilogia, porânea. Outros autores continuaram a discutir sobre imunidade durante (
Communttas e lmmunltas - esposito lança um feixe de luz sobre os moti- os anos noventa, de Agnes Heller até Marc C. 1àylor, mas nenhum deles a
vos pelos quais a política moderna foi tão profundamente marcada por um
(,
situou no centro da política contemporânea tão vistosamente como o fez
interesse pela· vida humana enquanto tal. Jacques Derrida em uma série de escritos e de entrevistas sucessivos aos (
Que f.sposlto tenha sido o primeiro a Inaugurar essa linha de eventos de 11 de setembro de 2001 2 • falando de agressão autoimunitária
{
pesquisa não deve causar surpresa. Há cerca de vinte anos ele tem es- suicida, ele assimila a figura da autoimunidade ao trauma e à coação a re-
tado Intensamente empenhado na Investigação problemática das raízes! petiçã<>3. Como o leitor se dará conta, muitos elementos diferenciam o uso (
das mais significativas categorias filosófico-políticas. A partir da noção de que esposito faz dessas categorias daquele de Derrlda, assim como do (
"1mpolftlco·, em categorias do lmpoUUco, e da análise sobre a origem e o significado a elas conferido por outros autores previamente mencionados,
destino da comunidade - que é o subtítulo de seu livro de 1998 - o filósofo especialmente no que se refere à inversão antinômica da imunidade em t>
italiano nos forneceu uma dara perspectiva de desconstrução da políti- seu contrário comunitário, e os efeitos que daí derivam para a compreen- lL
ca moderna. o que torna .Bios particularmente relevante é sua tentativa são da biopolítica. Por isso, na primeira parte deste ensaio procurarei os {'
de descobrir na relação entre comunidade e imunidade uma espécie de pontos de convergência e de divergência do modo como Esposito utiliza o
{l
mecanismo Imanente subjacente ao processo bJopolítlco. Nesse sentido a paradigma em questão em relação ao uso que dele fazem Derrida e outros
imunidade aparece como o impensado (ou mais propriamente o removi- filósofos. (,
do) das discussões correntes sobre a biopolítica - tanto das interpretações Na segunda parte situarei seu pensamento no âmbito da reflexão (j_'
que dirigem o foco sobre a figura do homo sacer e do estado de exceção, biopolítica mais geral. Nesta, naturalmente, a obra de Michel foucault, e
quanto das que remetem a uma vital biopolítica da multidão. Na presente em particular seus seminários de 1975 e 1976 sobre biopolítica e racismo, «.
introdução ao pensamento de f.sposito, procurarei tornar e.xplícita a ava- merecem a máxima atenção, visto que justamente a partir deles Esposito (
liação crítica de tais Interpretações produzidas na Itália e no exterior. Mas (
Blos, e de modo mais geral o pensamento de l!sposito, é muito mais do
que Isso. Cle constitui uma das mais potentes lentes disponíveis para ob-
{
servar como a vida continua a ser tomada - e frequentemente aniquilada 1 LUHMANN, N. Slsteml soc:lall. Bologna: li Mullno, 1990; HARAWAY, D. Biopolltica (1
dei corpl postmodernl: la cosUtuzlone dei sé nel dlscorso sul sistema lmmunltario. ln: Manl{esto
- pela política; e é, ao mesmo tempo, uma brilhante tentativa de abrir um Cyborg. Mllano: fe.ltrlnelll, 1995; BAUDRJLLARD, L, La trasparenza dei male. Mllano: SugarCo, ('
horizonte de uma possível blopolítica afirmativa, escapando assim de uma 1990. Cf. também a discussão de R. UNOf:R sobre os ªdireitos de imunidade- e a democracia
radical, em r.tlse necesslty: anU-necessltarian social theory ln the service of radical democracy. {·
concepção totalmente negativa dos processos em andamento. Com esse Cembridge: C&mbrldge Universlty Press, 1987, p. 515-517 e 550. Agradeço a Adam Sltze por ter
chamado minha atenção para a Importante contribuição de Unger para a teoria Imunitária.
objetivo, em primeiro lugar esboçarei as linhas fundamentais da contribui- 2 rr:HRêR. r.; ttr:LLf:R, A. Blopolltlcs. Brookfleld: Ashgate, 1994; HeLLeR. A.;
{)
ção desse autor para a atual compreensão da blopolftlca, particularmente PUNTSCHCR Rlf:KMANN, S. (r:d,). Questlonl dl blopollttca. Roma: Bulzlonl, 2003; bem como
HCLLf:R. A. 1heory of modemlty. Malden, MA: 61ackwell, 1999, Quanto a TAYLOR, M. C., cf. Nots. {'
em relação ao eixo conceituai de Blos, ou saja, ao paradigma da "imuniza- Chicago: Unlversl~ of Chicago Press, 1993 e Hldlng. Chicago: Unlverslty or Chicago Press, 1998.
5 Df:RRIDA. J. Fede e sapere. Le due fonU delta ªrellglone• ai llmlU della sempllce (1
ção·. A categoria de ..Imunidade" goza de uma longa e bem conhecida his- raglone. ln: Df:RRIDA. J.; VATnMO, O. (Org.). La rellllk>ne. Roma-Bari: Laterza, 1995, p. 5-75;
tória na recente reflexão crítica. ~m seu livro de 1984, Nlklas Luhmann, por ld., l'bUtiche deU'amlctzla. Mllano: Cortina, 1995; ld., Autolmmunità, sulcldl reall e slmbollcl. Un
dialogo con Jacques Derrlda. ln: OORRADORJ, O. Dlaloghl con Habermas e Derrlda. Roma-Barl:
í ~
La,térza, 2005, p. 93-145; ld., Statl canaglla. Mllano: Cortina, 2003. (:
14 15 t)
{ 1

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ROBl:RTO &POSITO

extrairá argumentos para as próprias reflexões em Bios'. Mas como bem


'} compreensão dessas contribuições italianas para a deftnlc;ão de blopoUtlca
sabe quem quer que tenha acompanhado a recente discussão da temática
é crucial se quisermos entender a originalidade da argumentação de es-
l biopolítica, outros dois autores, ambos italianos, dominam a discussão con-
-, temporânea sobre a relação entre vida e política nas suas possíveis configu-
rações: são Oiorgio Agamben e Antonio Negri. Em 11omo sacer, em o que
posito. Mas também outros textos nos ajudarão a situar Blos no quadro do
atual debate sobre a biopotrtlca - estou pensando nas reflexões de Judith
} Butler sobre o luto e a comunidade em Precarlous Llfe e em Ofulng an Ac-
resta de Auschwitz e em O aberto Agamben analisa a biopolítica em uma
count of Oneself, assim como nas meditações deleuzlanas de Kelth Ansell-
l chave essencialmente negativa, ancorando-a ao estado soberano de exce-
-P'earson sobre a simbiose, bem como nas Regras para o parque humano,
ção que separa a vida nua (zoé) das formas de vida qualificadas (bios) 5 • Já
J para Negri, autor de Império, Juntamente com Hardt, a biopolítica assume
de f'eter SloterclUk. no recente ensaio sobre O futuro da natureza humana,
) de Jürgen l1abermas e nos trabalhos de Ronald Dworkin sobre eutanásia e
uma clara tonalidade positiva, visto que é pensada em relação à categoria
6 abortoª. Thmbém nestes casos a pesquisa de esposito compartilha com tais
) de multidão • é entre essas duas polaridades contrapostas que deve ser
autores uma série de temáticas - que vão da noc;ão de comunidade à re-
) colocada a elaboração de Esposito sobre o bios. De fato, como procurarei
ferência critica à engenharia genética que promete abolir preventivamente
defender nestas páginas, Bios, embora tenha plena autonomia conceituai,
) as "vidas desprovidas de valor', como as definiram Binding e l1oche9 • Mais
pode ser lido como uma espécie de cruzamento semântico entre a posição
alguns autores devem ser acrescentados a esse catálogo, sobretudo em re-
) de Agamben e a de Negri, no sentido de que Esposito - embora concordan-


lação à dialética entre comunidade e imunidade. Eu os introduzirei no mo-
do em certos aspectos com a análise negativa do primeiro - não se abstém
mento oportuno, de modo a amarrar alguns fios soltos que Inevitavelmente
de criticar o déficit de historicidade que caracteriza seu vínculo constitutivo
) 7 sobram quando se escrevem Introduções amplas como esta. Na parte final
com o estado de exceção • Em algumas das suas mais convincentes pági-
do presente ensaio proporei algumas considerações gerais concernentes à
) nas, ele tende principalmente a situar a origem moderna da biopolítica nas
acepção afirmativa da blopolftica aventada em Blos, especialmente através
) dobras imunitárias das categorias de soberania, de propriedade e de liber-
da definição dos dispositivos de imunidade e o modo com que ela permite
dade, como emergem dos escritos de Hobbes e de Locke. É a esse ponto


)
que o desvio diferencial em relação a Hardt e Negri também se toma daro.
Em essência, para o autor de Bios não é errado apontar para uma biopolíti-
ca afirmativa - projeto em que ele mesmo se empenha - mas não antes de
• desenvolver uma critica da concepção neoliberal. Quais práticas podemos
adotar, quais tipos de discurso se tomam disponíveis, para contrastar a
reprodução da Inflexão imunitária, e portanto negativa, da biopolítlca mo-
) derna? Como defende esposito, nenhuma questão exige hoje uma nossa
ter desconstruído criticamente o enredo imunitário de biologia e política. A
} resposta tanto quanto esta.

)
4 FOUCAULT, M. Bl.sogna dlfendere la socletà. Organizado por: f. ewald, M. Ber-
) tanl e A. f'ontana. Mllano: Feltrlnelll, 1998. De f'oucault cf. também Nasclta delta blopoUUca.
Organizado por: A. f'ontana. Mllano: FeltrlneUI, 2005. '
CoMUNIDADe/JMUNIDADE

) 5 AOAMBEN, O. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. 1\'adutor: Henrique


Burlgo. Belo Horizonte: Editora UFMO, 2002. Bel. Italiana: Homo sacer: li potere sovrano .e la
nuda vlta. Torlno: Elnaudl, 1995; ld., O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Para apreciar a originalidade da Interpretação blopolftlca desse
} Paulo: Boltempo, 2008. Bel. Italiana: Quel che resta dl Auschwitz: l!archMo e li testlmone. Torl- filósofo, é preciso começar a reconstruir a relac;ão da comunidade com a
no: Bollatl Boringhleri, 1998; ld., O aberto: O homem e o anlmaJ. 'lradutor: Pedro Mendes. Rio
) de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Bel. Italiana: /:aperto: L:uomo e l'anlmale. Torino: Bollatl
Borlnghleri, 2002.
) 6 HARDT, M.; NEORJ, A. Império. 1\'adutor: Berllo Vargas. Rio de Janeiro: Record,
8 8trn.ER. J. Vlte precarfe: contro l'uso delta vlolenza ln rispqsm ai lutto coletivo.
~005. ed. ltallana: Impero. Mllano: Rfzzoll, 2001; Jd., MulUdiJo: guerra e democracia na era do
império. 1\'adutor: Clóvls Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004. Ed. Italiana: Moltltudlne. Mlla- Roma: Melteml, 2004; Jd., Olutng an account of oneself, a critique of ethlcal vlolence. New York:
) no: Rlzzoll, 2004. f'ordham Unlverslty Press, 2005; ANSELL-PEARSON, K. 771e ulrold ll{e: perspecllves on Nietzsche
7 A esse propósito cf. os primeiros trabalhos Hlosóflco-polftlcos de ESPOSITO, R. and the nanshuman CondlUon. Newl'brk: RouUedge, 1997; ld., Oermlnal llfe: the dllference and
) Vlco e Rousseau e li moderno Stato borghe.se. Barl: De Donato, 1976; La polltlca e ta storta: repetltlon of Deleuze, New York: Routledge, 2000; HABERMAS, J, li futuro della natura umana.
Machlavelll e Vico. Napoll: Llguorl, 1980; Ordlne e conflltto: Machlavelll e la letteratura polltlca Torlno: elnaudl, 2002; DWORKIN, R. Ufe's Domlnlon: an argument about abortlon, euthanasla,
} dei Rlnasclmento Italiano. Napoll: Llguorl, 1984; categorle deU'lmpoUUco. Bologna: li Mullno, and lndMdual freedom. London: Vlntage, 1994; ld., Souerelgn Vlrtue: the theory and pracllce of
1988; Noue penslert sulla pollUca. Bologna: li Mullno, 1993; J:orlglne della pollUca: Hannah equallty. Boston: Harvard Unlverslty Pr'e:ss, 2000.
Arendt o Simone Weil? Roma: Donzelll, 1996. 9 BINDINO, K.; HOCHE, A. Dle l'relgabe der Vernlchtung lebensunwerten Lebens:
) 1hr Mass und lhre f'orrn. Leipzig: F. Melner, 1920.
) 16
17
~
ThRl'los DA PoLITICA
CoHut11°"oc, l11Un1°"oe, 610t'OLIT1CA

imunidade, como ele a delineia não somente em Bios, mas também nos te a ninguém. Desde a própria origem (ausente), a communitas gira em
seus livros precedentes: Communltas. Origem e destino da comunidade torno de um dom (faltante) que os seus membros não podem conservar
e Jmmunttas. Proteç4o e negaç4o da ulda. Analisando esses conceitos, o para si mesmos. esse débito, ou obrigação. constitui uma espécie de "de-
autor se pergunta se a relação entre comunidade e imunidade é definitiva- feito" original para todos aqueles que fazem parte da comunidade. Esse
mente uma relação de contraste e justaposição ou, ao contrário, é parte de "defeito", que coincide com o próprio circuito de doação, provoca efeitos
um movimento mais amplo no âmbito do qual cada termo está Inscrito na desestabilizantes sobre a identidade individual dos sujeitos em comum.
lógica do outro. o pressuposto desse enredo refere-se aos mesmos funda- Receber diretamente o dom Inibe a capacidade do indivíduo de identificar
mentos da comunidade. Naturalmente, quando aludimos à comunidade, a si mesmo. ou si mesma, como parte ou não da comunidade.
somos Imediatamente levados a pensar em algo de comum compartilha- ! Prefiro deixar de lado, por enquanto, essas características "defei-
do pelos membros de um grupo. 1àmbém para Bsposlto é assim: a comu- tuosas" da communitas e reintroduzir a questão da imunidade, visto que
nidade é constituída por um elemento comum - mas que não se configura é Justamente o mecanismo imunitário a ligar a semântica da comunidade
como "próprio" de alguém, e que se inicia. aliás, Justamente onde o pró- à da blopolftica e a tornar os dois conceitos. de comunidade e imunidade,
prio acaba. Bsse elemento é o que diz respeito a todos, ou muitos; que é, inseparáveis. A imunidade não se limita a negar a comunidade protegen-
portanto. '"público.. , em contrdposição a "privado.. ou "geral., (mas também do-a do que lhe é externo, mas está inscrita no mesmo horizonte comum
"coletivo", em contraste com "particular") 10• Acommunltas é definida, nes- do munus recíproco. Imune é aquele (o sl.tjeito imunitário é obviamente
sa reconstrução. segundo os três significados do termo do qual ela deriva. declinado no masculino nas fontes latinas citadas ao longo da análise) que
ou stja. o latim munus. Se os primeiros dois - onus e ofllciwn - remetem é exonerado, ou dispensado, pela lei da doação recíproca. Aquele que foi
respectivamente a ..obrigação" e ..oficio". o terceiro gira. paradoxalmente. dispensado das obrigações comuns ou que goza de uma autonomia, ori-
em torno do motivo do dom. Baseando-se nos clássicos estudos de Mauss ginal ou sucessiva, em relação ao débito inicialmente contraído. Emerge
e de 5envenlste11 • o filósofo Italiano entende a nuance específica de mu- aqui claramente a relação que a imunidade mantém com a identidade
nus como algo que não é um simples dom (Indicado em latim pelo termo individual. Ela caracteriza os instrumentos mediante os quais o indivíduo é
donum), mas um dom que pede, aliás, exige. wna contrapartida: "uma defendido dos "efeitos expropriativos·• da comunidade, ou seja, dos riscos
vez que alguém tenha aceitado o munus. encontra-se na obrigação (onus) de contato com aqueles que dessa identidade individual foram privados14 .
de retribuí-lo em termos de bens ou de serviços (ofllclum)" 12 • O munus, Desse modo são reconstituídas as fronteiras que separam o que é próprio
em síntese, é uma forma mais Intensa de dom. visto que implica neces- do que é comum. Daí deriva que a condição imunitária implica "o 'não ser·
sariamente uma recompensa por parte do beneficiado. Vêm à tona, desse ou o 'não ter' nada em comum" 15• Desse ponto de vista pode-se dizer que
modo, as consequências Implícitas dessa análise. Diferentemente do do- a imunidade por um lado pressupõe a comunidade e por outro a nega.
num, o munus indica "somente o dom que se dá. não o que se recebe", t como se a comunidade se duplicasse, protegendo-se de um possível
"a obrigação que se contraiu com o outro e que solicita uma adequada excesso de expropriação. A conclusão de Esposito é que "para sobreviver,
desobrigação·. e enfim "a gratidão que exige nova doação· por parte da- a comunidade - qualquer comunidade - é obrigada a introjetar a modali-
quele que o recebe 13• Neste ponto a acepção particular de "comunidade" dade negativa do próprio oposto; mesmo que tal oposto permaneça como
adotada por Csposito se torna clara: o pensamento da comunidade - ou um modo de ser, Justamente de privação e contraste, da própria comuni-
através da comunidade - se refere a um dom recíproco que passa continu- dade"16. Essa incorporação de um negativo está na base de sua interpreta-
amente de um ao outro e que não pode, portanto. pertencer estavelmen- ção da biopolítlca moderna. Ele reconhece no sujeito moderno, titular de
direitos políticos e civis, a tentativa de imunizar-se do contágio da possível
10 CSPOSITO, R. Commwutas. lbrlno: Blnaudl, 1998. (ed, ampliada, 2006), p. XII.
11 MAUSS, M, Sagglo sul dono. ln: - - J 1torfa generafe deUa ma,gla e attrf saggt.
lbrlno: e.lnaucll, 1 ~ . p. 1~292: BCN'VeNIStt, t.. li uocabolarlo deUe lsUtuztonl bu:fo-europee.
Torlno: f.lnaucll. 1976, '2 v. 14 BSPOSITO, R. B(os: blopollUca e fllosofia.1brino: fünaudi, 2004, p. 47.
12 r..sFOSrro, a. Conuru.utüas, dt, p. xm. 15 lbld., p. 48.
1~ \b\d., p. )UV. 16 lbld., p. 49.

19
18
RoseRTO Eseosn-o
T!cP.Mos °" PoLlTICA
Cot,un:KW)t.. , ~ . ~

comunidade. Mas essa ex· ê · d t - · ..


19 n cra e pro eçao daquilo que é comum acaba entre o munus comum, que Esposito associa com o estado hobbeslano
por colocar em risco a própria comunidade, quando o m ecanismo imuni- d e conflito generalizado, e a Instituição d e um pode r soberano apto a pro-
tário g ira sobre os próprios eixos para inverter-se no próprio oposto. teger, o u m e lho r, a imunizar, a comunidade dos seus efeitos dissolutivos.
Querendo levar às extremas conclusões o seu raciocínio, seria mais a pro-
priado falar do soberano como d aquele que imuniza a comunidade do
I MUNIDADE E MODERNIDADE
próprio excesso comun i tário: em outras palavras, do desejo de cada u m d e
adquirir os bens d e outro e da violência implícita n essa intenção. Quando
.. . Aqu:les que conhecem os trabalhos d e Jean-Luc Nancy sobre a os m embros individuais se s ubme te m ao poder soberano - quando se dão
comunidade inopera nte" e as reflexões de AJfonso l,ongis sobre O " nada conta d e não poder mais suportar as infinitas ameaças que a comunidade
e m comum" compa r tilhado p erce berão o eco de ambos nas páginas p re- infüge sobre s i m esma - então p o d e-se dizer que e la está definilivamente
cedentes". O que d ifere nc ia o pa radigma d e Esposito dos d e les é s ua imunizada através do dispositivo soberano. Sendo o p erigo do conmto -
interpretação da imunidade como uma categoria his tó rica inextricavel- que coincide com a interação, ou, ta lvez, m elhor dizendo, com a igualdade
m ente conectad a à modernidade. o fato d e que a política tenha sempre, e n tre se us m embr os - constituído no próprio coração da comunidade,
de a lguma m aneira, se preocupado em defender a vida não n ega O
fa to d eve-se concluir que a imuni zação não precede n em segue a sua instau-
d e que som ente a partir de um certo m o m e n to, coincidente justam ente ração, mas aparece simul taneamente a ela como a sua íntima essência. O
c~m a o rigem da m odernidade, essa necessidade de auto proteção tenha momento e m que a aporia imunitária da comunidade é reconhec ida com o
;•do reconhecida não mais simplesmente como um dado, m as por um o problema estratégico da nascente Europa dos Estados-nação marca o
~do_ como um problema e por outro co mo um a opção estra tégica. Isso exór dio da modernidade, visto que justamen te naqu e le mom ento o poder
s ignifica que todas as civilizações, passadas e presentes, p useram-se _ e soberano se liga intrinsecamente à autoconservação negativa da v ida'º·
de a lg um modo resolve ra m - a exig ê n cia da própria imunização, mas que Neste ponto outras duas considerações deve m ser feitas. Em
som ente a civilização moderna sobre ela constituiu sua mais íntim a essên- primeiro lugar, d esviando a a tenção para os caracteres imunitários d a so-
cia. Poder-se-ia chega r a afirmar que não foi a m odernidade a colocar il berania, como ela emerge na era moderna, Esposi to r emete à distinção
q~-~ stão da,.autoconservação da vida, mas foi esta a pôr e m vida, ou seja, e n tre o paradigma de soberania e o d e governamen talidade. Recor damos
a inventar a modernidade como apara to hi stó rico-categoria l capaz d e que p ara Foucault a governamentalidade diz respeito às "táticas d e gover-
resolvê-la 18 •
no que permitem d e finir a cada vez o q u e compete ao Estado e o q u e n ã o
. Em síntese, a m odernida d e não com eça s implesm ente com a lhe compete, o que é público e o que é privado, o que é estatal e o que
instituição do poder soberano e a s ua teori zação e m Hobbes, como sus- n ão o é, etc.'"º· 1àis táticas estão ligadas à emergência da população como
tenta Fo ucaul t. Ela em e rge qua ndo se torna p ossível teorizar uma relação objetivo do poder, e m um processo que culm ina no fin al do séc. XVIII, com
especial atenção às campanhas médico-san itárias voltadas à diminuição
da taxa de mortalidade. Um regime de governamentalidade com p le to não
N 17 Parece-me que esposllo l enha se aproximado da perspecUva expressa
~ ncy na Commw1auté d ésoeuurée, p rincipalme nte no que diz r es it a por pode ser pe nsado separadamente d o advento do biopoder que assume o
~•dade _em re lac;fto ao s ujeito enten dido em termos metallsicos. Na~ ~~e~c~ad~o~m~-
é
d
:!:~ªi° t\ece a ligação de uma vida s upe rio r, Imortal ou transmortal, entre sJellos [ .. .J ::.::~
r u vam ente - se pudermos fala r neste caso de uma •constituição· _ o rdenada à m o rte
contro le da vida em geral, con stituindo dois polos: um na dime nsão do

aqueles que talvez erro neamente sáo chamados os seus 'membros' (


nela, de um o rganismo)" (Cf NANCY J L 1.,a tà a menos que nao se trate,
42
>- F"ara Espos lto Isso não diz respeÍto·~~m e n~~';:';;:~rt~~~iu~:o~~~ ~=~r~°.J:º~~~~9-~2
m as também à ameaça mortal que cada um d eles representa ra t no a e ,
·,t
1 9 Vtja-se, a propósito, a a ná lise do paradigma lmunllárlo re toma da por Bonito
sarnente esse risco, com a exigência d e Imunização que d ai dei::'va a~";u: o utros. É p reci-
Oliva e m · oalia comunltà lmmune a lia lmmunltà comunltarla: sulle recentl rin esslonl d i Roberto
0 ~poslto", no volume de D!acrltlc.s 2 , 2 006, dedicado ao pensamento do nló!IOío Italiano: "O
~e:~7.,:~~~ti~~i:~:~~!~~1~:'e~~~:~~:~~:~~n~: :,~"u~~e~:~:n;t~~~~~;;;~:=
percurso da mode rnidade madura d e.sala a relação original (entre o zôon e o político) e toma
7
dess _m odo a o_rigem biopolítica d a comunidade se m ostrará c lara a t ravés da s u~ di
aporetrca com a 1munldac1e. a
e
ca
i:t7 Imanentes as razões da convivência, que é sempre provocada pela condição de solidão e de
Insegurança do Indivíduo·. ,
18 ESPOSITO. R. Bfos, cil., p. 52.
20 rülJCAULT, M. l.a governamentalità.Aut-Aul, p. 168-169, 1978. clt., p. 29.

20
21
ThRMos DA PoLITICA
CoMUNIDADI:, IMUNIDADI:, B1orot.lTICA

corpo, outro na dimensão da população11 • em cada caso esposito mostra A AUTOIMUNIDADE APÓS O 11 DE SETEMBRO
como foucault oscila entre soberania e governamentalidade justamente
pela falta de teorização sobre a dimensão Imunitária de ambos os termos. Mas o diagnóstico de esposito sobre o atual cenário biopolítico
Ambos, de fato, encontram-se Inscritos no moderno horizonte blopoUtico ! não se limita à leitura da dialética antlnõmlca entre comunidade e imu-
graças a um processo de modernização que reforça exponencialmente as nidade e à genealogia moderna da imunização através da Instituição da
próprias características Imunizantes. em segundo lugar, a concentração soberania. em- Btos e em Jmmunttas ele delineia os contornos de uma
teórica sobre a categoria de Imunidade pode ser comparada às recentes crise autoimunitária global que cresce dia a dia, de maneira cada vez mais
tentativas, principalmente de Judith Butler, de construir uma linguagem insidiosa e até mesmo letal. A sua origem, segundo o autor, deve ser bus-
conceituai para descrever gênero e sexualidade como modos de relação, cada principalmente na incapacidade geral de avaliar o quanto das presen-
uma linguagem que nos permita "pensar em como as relações não so- tes dificuldades é resultado de uma remoção coletiva da lógica imunitária
mente nos constituem, mas são também o que nos desestablllza"ll. A refe- Implícita no pensamento político moderno. Tumbém Derrida, a partir dos
rência de esposlto a um munus desde sempre Imunizado e Imunizante por seus escritos com Vattimo sobre a religião, depois em Políticas da amizade
um lado confirma a centralidade atribuída por Butler à relação social entre e enfim na famosa entrevista logo após 11 de setembro de 2001, traba-
os corpos vulneráveis, mas por outro evoca a ameaça latente nela contida. lhava em um diagnóstico autoimunitário sobre a atual situação política.
Bm outras palavras, uma ecologia da interdependência social dos corpos Gostaria de resumir brevemente o modo como ele associa política e au-
não produz necessariamente uma consciência de vulnerabilidade - pode, toimunldade, de maneira a evidenciar a desconformidade em relação ao
aliás, aumentar as exigências de proteção. Daí a frequente referência de uso que esposito faz do termo. Definir a diferença entre suas perspectivas
Butler à Imunidade cada vez que o corpo aparece em toda a sua vulne- é uma passagem necessária para compreender mais a fundo a dimensão
rabilidade, ou se determina um risco de contágio simbólico por parte do contemporânea do poder e as estratégias potencialmente resolutivas da
suposto inimigo33 • No que lhe diz respeito, dir-se-ia que esposito procura atual fase de crise política. em Fé e razão - a sua contribuição ao livro A
algo diferente: a articulação de uma semântica política que possa conduzir reUgião, de Vattimo - Derrida utiliza a ótica da imunidade para descrever
a uma vida não imunizada (ou radicalmente em comum) 24 , uma situação em que a religião volta a enfrentar o discurso político. É sig-
nificativo que a virada em andamento tenha sido identificada justamente
na relação da religião com essa categoria. Para Derrida o termo "(auto)
Imunidade" nomeia o modo como religião e ciência estão imbricadas uma
na outra. Nesse sentido, toda análise contemporânea da religião deve par-
21 l'OUCAULT. M. Blsogna dlfendere la socletA. cll, p. 206 et seq.
22 mrneR. J. Vlte precarte. clL. p. 44. Cf.. também de BuUer. a análise da opaci- tir do reconhecimento de que desde o fim do séc. XX ela acompanha e
dade do s1.f.lelto. em Olvlng an accow1t of 011eselft, cll, p. 20.
25 8utler se aproxima de l'.sposlto na descrição do s1.f.lelto violento. autocentrado:
precede aquilo que o filósofo chama "razão teletecnocientífica", ou stja,
"as suas ações remetem à construção de urn s4)elto que quer restaurar e conservar o próprio t9das aquelas tecnologias que diminuem a distância e aumentam a velo-
domínio através da destruição slstemáUca das próprias relações multilaterais [ ••• ). Um s4Jelto
que se sustenta sozinho. que procura reconstruir a própria imaginada Inteireza. às custas de cidade da comunicação global, associadas por Derrida ao capitalismo e à
negar a própria wlncrJl>llldade, a própria dependência, o próprio ser exposto. enquanto explo-
ra esses mesmos aspectos nos outros, tomando-os desse modo 'outro• em relação a s1• (Vlte língua Inglesa.
precarle, dL, p. 62). Mas o mesmo movimento que toma a religião e a teletecnociên-
24 e5l'OSITO, R. lntroduzlonc a Oltrc la poUUca: Antologia dell'lmpollUco. MUano:
Bruno t1ondador1. 1996. p. 1. Para que não pareça que eu quero reduzir as suas respectivas cia coextensivas determina um contramovimento imunitário. Buscando as
posições a uma corac:terlzaçâo hobbeslana da blopolíUca no caso de f.sposlto e a uma busca he-
geliana do reconhecimento do s4)elto no caso de BuUer, é preciso dizer que ambos reconhecem raízes etimológicas do termo religio, que ele associa à repetição e depois à
a exlgênqa de repensar a mudança daquilo que hoje quallnca a vtda. Para BuUer essa busca está representação, Derrida mostra como a iterabilidade da religião pressupõe
fundamentada na necessidade de alargar "a diferente repartição da dor que decide qual sajelto
merece. ou não, ser pranteado• (Vlte precarle. dl p. 12-15); da( a Importância que ela confere algo 'de automático e de maquinal; em outras palavras, exige uma técnica
.às narrações dos múltiplos e mutáveis c;.quemas normativos do que é, ou não é. declarado
humano pela mídia. fbr sua vez. Csposlto concentra a atenção no processo de Individuação pressuposta à posslbllldade da fé. Derivar a técnica (a tecnologia) da fé na
que se determina tanto no nfvel slngular quanto no nfvel coletivo. defendendo que "'se o Sl4)elto iterabllldade da religião lhe permite identificar a lógica imunitária subja-
é sempre penaado dentro da forma do bto.-;, este, por sua va. se Inscreve no horizonte de um
aan que forma um todo único com o ser do homem• (cf. Bíos. dL. p. 199).

2.3
22
J
l

'
l
l
cente ao atual momento de renovação religiosa e de crise polrtlca. ASsfm
ele se exprime: "O mesmo movimento que torna indissociáveis religião
comunidade, toda auto-co-1munidadell'l7 • Para Derrlda (assim como para
esposfto) a aporia da Imunidade opera em toda comunidade, baseada em
"um princfplo de autodestruição sacrificial que prajudlca o principio de
e razão teletecnocientffica, no seu aspecto mais critico, reage Inevitavel-
proteção de sl'"28. Na origem da imunidade religiosa se situa a distinção
l mente a si mesmo. Secreta o seu antídoto, mas também o seu poder de
-, autoimunidade. estamos em um espaço em que toda autoproteção do
entre a vida bio-zoológlca e a vida transcendental, Isto é, a vida sacra que
reclama sacrifícios para proteger o próprio valor separado. Se se quisesse
indene, do são e salvo, do sacro (heillg, holy) deve se proteger da pró-
) procurar um momento blopolftico na análise de Derrlda sobre a religião,
-, pria proteção, da própria polícia, do próprio poder de rtjeição, do próprio
simplesmente, isto é, da própria autoimunidade"~. No quadro de uma
ele deveria ser identificado justamente na diferença entre uma vida sim-
plesmente biológica e uma vida transcendental que exige continuamente
l sobreposição entre os âmbitos da religião e da razão teletecnocientífica,
-, para Derrida a imunidade é sempre autoimunidade e, portanto, sempre
destrutiva. Deve-se falar de imunidade porque a religião - o autor substitui
ser conservada,
nata-se - é supérfluo especificá-lo, não obstante o contexto
) contemporâneo que Informa a semântica de Derrlda - de uma aporia con-
frequentemente este termo pelo termo "fé" - não poderia se pem1itir o
ceituai pressuposta à discussão sobre o capitalismo, a vida e a tecnologia
) compartilhamento da própria performance com a tele-razão, visto que os
no final do século xx. ~crevendo em 1994, ele remete a esses eventos,
efeitos desta minam as suas bases tradicionais, que consistem em manter
) mas na sua averiguação crítica da ressurgência da religião, a autolmuni-
um espaço sacro separado da lógica da iteração. Mas deve-se falar tam-

, ) bém de autoimunidade já que a proteção do espaço sacro - o "indene" da


citação precedente - é tornada possível justamente pela mesma iterabili-
dade, pelos mesmos elementos de performance que ele compartilha com
dade resulta como co-origlnária da religião ocidental. Se tal movimento
antinômico se reproduz também internamente à dimensão polftlca, Der-
rida não O diz, pelo menos em l'blíticas da amizade. Ao contrário, nesse
) texto, após uma devida nota de reconhecimento em relação a Blanchot,
a razão teletecnocientífica. O que resulta disso tudo é um ataque protetivo
) Bataille e Nancy, ele ajusta o foco sobre uma diferente acepção política de
contra a própria proteção, ou stja, aquilo que se define come uma crise
comunidade, baseada em uma certa forma de amizade na ou da separa-
) autoimunitária. Não deve surpreender que a autoimunidade religiosa te-
ção, fltosoftcamente subsequente à tentativa de pensar uma comunidade
nha, para Derrida, também uma dimensão biopolítica, embora ele nunca
) futura de amigos solitários. Ele assim escreve:
se refira expressamente a ela. Assim a repetida proclamação segundo a
) qual as religiões conferem valor à vida deve ser considerada somente em
Anuncia-se aCJSlm a comunidade anacorétlca daqueles que amam afas-
} relação a um certo tipo de vida, a transcendental. A vida para muitas re-
tar-se. o convite lhes chega daqueles que amam somente separar-se,
ligiões "é sacra, santa, infinitamente respeitável, mas somente em nome afastar-se [•.• ]. Aqueles que amam somente separar-se desse modo são
_)
daquilo que, nela, vale mais do que ela, não se limitando à naturalidade amigos lntratávels da singularidade solitária. Convidam-nos a entrar
) do bio-zoológico (por isso sacrificável)"26 • Desse modo a vida biológica é nessa comunidade da desconexão social, que não é necessariamente
transcendida ou se torna somente um suplemento que a religião fornece uma sociedade ·secreta, uma col'\)ura, o compartilhamento oculto de um
)
saber esotérico ou crlptopoétlco. O conceito clássico do segredo perten-
à verdadeira vida. Mas, assim fazendo, a transcendência expõe a comuni-
) ce a um pensamento da comunidade, da solidariedade ou da seita, da
dade, constitutivamente formada em tomo da vida, do "espaço de morte
lnldac;ão ou do espaço privado que representa Justamente aquilo contra
) que se liga à automação, à técnica, à máquina, à prótese, à virtualidade; 29
o que insurge o amigo que lhes fala, como amigo da solldâo.
} em poucas palavras, às dimensões da suplementaridade autoimunitária e
autossacrificial, aquela pulsão de morte que atormenta em silêncio toda
t
)
25 oeRRIDA. J. /"ede e sapere, cJt., p. 47-48. cr., a esse propósito, as páginas 27 lbld., p. 57. r to .__
) que Foucault dedica ao tema em l:ermeneutlca dei soggetto. Mllano: Peltrfnelll, 2003. Agradeço 2s td. cr., sobre o tema, o recente artigo de moMSON, A. J. P. Wha s ~me
a Adam Sltze por ter-me indicado as Importantes conexões entre a blopolítfca e estes últlmos rwdemocmcy to come"? l'bstmodem Cultwe, v. 15, n. 3, maio 2005.
0
) seminários roucaultlanos. · · 29 oeRRIDA, J. Polltlche dell'amlclzla, clt., p. 50-51.
26 lbld .• p. 56.
} 25
24
)
}
ThRMos DA PoúnCA
CoHun1o.-.or., b1un1o.-.or., 8IOl'OúncA

Emerge aqui uma forma particular de relação política, ligada à mesma"51 • A democracia é caracterizada por uma constitutiva subtração à
..comunidade daqueles que não têm comunidade" de que falava Batallle e possibilidade da própria realização.
ao menos Inicialmente protegida da tendência autolmunltárta da religião. A anállse de Esposito sobre a aporia imunitária da comunidade,
Aquilo a que Derrlda se refere é a categoria de singularidade, em que de modo muito semelhante à interpretação de Derrtda sobre a democra-
justamente a separação remete ao que é comum. Ao mesmo tempo o cia, evoca alguns aspectos dessa antinomia, embora tenhamos que estar
filósofo antepõe às próprias reflexões o act)etivo "anacorético". associan- atentos a não associar demasiado estreitamente suas perspectivas. Em
do a ele a forma de amor à distância típico daqueles que se retiraram do primeiro lugar porque Bsposlto não compartilha a ideia de remeter todo
mundo da política por razões religiosas. Desse modo ele quer sugerir que o processo de imunização a uma tendência suicida de caráter autoimune
na separação dos indivíduos é possível evitar algumas das características implantada no próprio coração da comunidade. Não é isso, ao menos, que
imunitárias que emergiram na discussão sobre a fé. ele pretende provar no amplo projeto de que lmmunitas e Bios são parte
Se me demorei nesses dois textos em uma apresentação do constitutiva, dirigido principalmente a conceber uma biopolítica afirma-
pensamento de Esposito, é porque eles esclarecem alguns aspectos da tiva através do paradigma imunitário. A sua original elaboração de uma
teorização sobre a autoimunidade global elaborada por Derrida logo após imunidade "positivaff, evidenciada no exemplo da gravidez, prova que o
o 11 de setembro. Sem poder reconstruir toda a trama do seu raciocínio, processo de imunização não deve necessariamente degenerar - como,
basta enfatizar que a introdução da noção de imunidade em um discurso ao contrário, parece considerar Derrida - em uma crise autolmunitária
mais diretamente político - stja na entrevista já mencionada, stja nas mais de resultado suicida. Desse modo Esposito traça as linhas de um modelo
recentes reflexões sobre a democracia em J::stados canalhas - demons- afirmativo de biopolítica, enquanto Derrida quase nunca torna explícita
tra como Derrida estende o processo de autoimunid;:st:le a duas questões a linguagem biopolítica subjacente à sua análise. Não deve, todavia, ser
correlatas: por um lado à constitutiva "pervertibllldade da democracia", perdida de vista a circunstância que Derrida inscreve em um diferente con-
Intrinsecamente ligada à sua própria definição, e por outro à mudança texto, que é o que caracteriza a política externa americana após o 11 de
suicida da política externa• americana a partir dos anos oitenta. :em relação setembro, entendida essencialmente como reação autoimune à preceden-
à primeira, a democracia aparece profundamente caracterizada por uma te guerra fria. foi justamente nesse momento que ela armou e adestrou os
atitude paradoxal, que é a de postergar continuamente o momento em primeiros "combatentes pela liberdadeff durante a fase quente do conflito
que poderia ser plenamente realizada como a forma de governo em que no Afeganistão no Início dos anos oitenta. Assim Derrlda pode afirmar:
os muitos decidem e ao mesmo tempo experimentar a possibilidade de
que, quando isso acontecer, esses muitos decidam suspender a própria Imigrantes, adestrados, preparados para a sua ação nos Estados Unidos
democracia. 'lendo como pano· de fundo a recente experiência argelina e pelos Estados Unidos. esses sequestradores incorporam, por assim
dos anos noventa, Derrlda defende que a democracia frequentemente se dizer, dois suicídios em um: o deles (e estaremos sempre desarmados
diante de uma agressão suicida, autoimunitárla. porque é isso que ater-
suicidou porque há sempre alguns que não fazem parte dos "muitos" e
roriza mais), mas também o suicídio daqueles que os acolheram, arma-
que por isso devem ser excluídos e expulsos. O resultado - aproximável
ram e adestraram.32
à dialética comunidade/imunidade no pensamento de :esposito - é que "a
topologia autoimunltária impõe sempre que a democracla 5Etla mandada •
A autoanálise coletiva iniciada pelos ingleses em resposta aos
alhures, que stja expulsa ou rtjeitada, excluída com o pretexto de protegê-
atentados terroristas de Londres no verão de 2005 é uma prova evidente
-la Internamente afastando, excluindo externamente os inimigos externos
da correção da análise de Derrida. Uma analogia com o que aconteceu ali
da democraclaN30. Para Derrlda a autoimunldade está "inscrita diretamen-
pode ser encontrada por ocasião das explosões de Oklahoma City (embo-
te na democracia·, que ·não é jamais exatamente o que ela é, jamais sl

51 lbld., p. M-64.
Yt\ Df.RIUDA. J. Statl canaglla, cil., p. 61.. 52 DeRRIDA. J. Autolmmwútà, clL, p. 103.

'26 27

L
j
J
}
l ra, em relação ao que aconteceu no Reino Unido, houvesse uma menor não é O único resultado possível. Pelo menos esposito considera que
consciência dos elementos que produziram uma Instância imunitária sui-
l outro caminho possa ser percorrível: um caminho que passa pela Iden-
cida). Em todo caso, associando a política ~erna americana ao suicídio tificação e a desconstrução dos principais dispositivos blopolfticos, ou
l autoimunitário, Derrida não somente confere um significativo contexto melhor, tanatopolftlcos, que caracterizaram o paradigma Imunitário ao
l histórico aos eventos de 11 de setembro, mas implicitamente os conecta . longo de todo O séc. XX. Somente após ter compreendido o modo como
) à eficiência técnica e à tecnologia avançada, como já anunciado nas suas as mais Influentes categorias políticas modernas agem para imunizar 0
precedentes análises sobre a religião. Embora não haja espaço para• Ir corpo político coletivo das potências que por sua vez remetem à Ideia de
)
-, além de um simples aceno, é preciso dizer que isso constitui uma ulterior . communitas, poderemos dirigir nosso olhar a algo como uma blopolítlca

, prova da ligação, realizada pelo fundamentalismo islâmico radical, entre


elemento religioso e performance tecnológica. Stja como for, o que mais
importa em relação ao nosso discurso de fundo é a convicção de Derrida
afirmativa. Ela não pode brotar senão de uma inversão dialética no pró-
prio Interior do dispositivo Imunitário. Uma vez reconhecido este último
como O arrartjo estrutural de que o biopoder se revestiu desde a origem
)
de que o 11 de setembro não pode ser compreendido independentemente da modernidade, poderemos nos colocar a questão de como romper a
) da figura da imunidade. Isso quer dizer que, enquanto os Estados Unidos conexão mortífera entre biologia e política a favor de uma "comunidade
) continuarem a fazer o papel de "garantidores ou guardiões de toda a or- que vem". o primeiro passo é o abandono de uma poUtlca sobre os cor-
dem mundial", prosseguirá a agressão imunitária provocada por eventos pos como fundamento conceituai do processo de Imunização. Mas, para
)
traumáticos que poderiam se revelar até mais graves do que o ataque às persegui-lo, é necessário articular uma nova lógica caracterizada por
) Torres Gêmeas. aquilo que, com um léxico deleuziano, Esposlto define "singularidade
) Em que, então, a interpretação da biopolítica por parte de · impessoal" ou "impessoalidade singular", como a "que percorre tanto os
Esposito se diferencia da de Derrida? Antes de mais nada, enquanto a homens, quanto as plantas, quanto os animais, independentemente das
)
ênfase deste último recai repetidamente sobre a autoimunidade como matérias da sua individuação e das formas de suas personalldades"34 •
) resultado necessário da geopolítica americana já na fase anterior ao 11
) de setembro, Esposito mais cautelosamente evita confundir imunidade
e autoimunidade; ele antes volta várias vezes à questão do munus e A BIOPOLITICA B O PBNSAMBNTO ITALIANO CONTEMPORÂNBO
}
à tendência, típica de toda a modernidade, de se proteger da possível
) ameaça nele contida". 'lratando de maneira analítica o imperativo imu- A referência a uma "comunidade que vemn remete imediata-
nitário que reveste todos os sistemas sociais contemporâneos e o círculo mente a outros dois pensadores italianos contemporâneos profundamen-
J
vicioso por ele desencadeado, entre proteção e risco, Esposito por um te empenhados na elaboração teórica da blopolítica. Naturalmente falo de
)
lado descreve a deriva imunitária da biopolítica, mas por outro não exclui Antonio Negri e de Oiorglo Agamben. Não é por acaso que hoje a filosofia
) a possibilidade de uma sua reconversão dialética em termos comunitá- italiana está se impondo como o principal espaço de reflexão sobre essa
) rios. Repercorrendo todas as passadas tentativas americanas de colocar categoria. Poucos âmbitos se revelaram tão férteis para o ensinamento de
o próprio país (homeland - este termo em si já constitui um poderoso Foucault, tão adequados historicamente e politicamente a absorver e dar
} operador imunitário) a salvo de possíveis ataques, damo-nos conta de i continuidade à sua obra. O motivo disso me parece que deve ser buscado
) ter entrado há tempos naquele horizonte crítico diagnosticado tanto por principalmente na rica tradição italiana de pensamento político - basta
) Derrida quanto por Esposito. Apesar disso, uma crise autoimunitária hoje recordar Maquiavel, Vlco, De Sanctis, Croce, Oramscl -, associada a uma
história e um cenário geopolítico caracterizado pelo "modelo imunitário"
) ' .
33 Dito Isso, é também verdade que, se remetermos a uma série diferente de
textos, é possível uma outra, mais políUca, Interpretação de Derrtda. Refiro-me a Spettrl dl Marx.
J Milano: CorUna, 1994, bem como aos mais recentes escritos derrtdlanos sobre a hospitalidade.
Hent De Vrfes analisa o pensamento de Derrtda e o tema da hospitalidade no úlUmo capítulo do
) seu Rellglon and vlolence: phllosophlcal perspectlves from Kant to Derrfda. Baltimore: Johns 34 esrosrro, R. Bíos, ctt., p. 214. A citação foi extraída de oeumze, a. Loglca
Hopkins Unlverslty Press, 2002. dei senso. Mllano: f'eltrinelll, 1975, p. 100.
J
j 28 29
l
ThRMOS DA POLITICA
CoMUNIDlll>r:, IMUNID,\DI:, BtOPOUTICA
f
das cidades-l!stado35. Muitas outras concausas poderiam ser evocadas a
propósito. mas o que daí resulta é um crescente empenho da filosofia
italiana em direção a uma categorização da poUtle:a em termos biopolltl-
espécie humana. Mas o que de todo modo aparece com grande ênfase,
saja para Agamben e Negri, saja para l!sposito, é a relação que roucault
delineia entre o biopoder emergente no final do séc. XVIII, frequentemente
'
(
{'
cos36. Dito Isso, quanto mais nos aprofundamos no recente pensamento em contraste com os mecanismos indMdualizantes da disciplina, e o seu (
biopoUUco Italiano, mais parece evidente o seu afastamento ao longo de extremo desenvolvimento no nazismo. Para f'oucault o que os mantém no
eixos conceituais contrapostos: o primeiro associado à obra de Agamben e
(,
mesmo horizonte é o seu empenho comum em limitar o elemento de ca-
à tonalidade negativa da sua reflexão; já o segundo atribuível à interpreta- sualidade nos processos biológicos da vida e da morte. Isso não quer dizer f
ção radicalmente afirmativa contida nos escritos de Hardt e de Negrl. Visto que os nazistas agissem de maneira unidirecional sobre o corpo político; (
que a originalidade da análise de Esposito não pode ser apreciada senão como f'oucault nota repetidamente, eles frequentemente recorreram ao
atrav~ do diálogo implícito desenvolvido em Blos tanto com Agamben aparato das disciplinas; de fato, "'nenhum estado foi mais disciplinar do
(
quanto com !fardt e Negri, é necessário resumir as suas respectivas posi- que o regime nazistan59, presumivelmente porque as tentativas de ampliar {
ções. O que resulta da reflexão de esposito éjustamente uma aguda crítica o biopoder dependiam do uso de determinados mecanismos disciplina- ({
desses autores, fundamentada principalmente na averiguação da sua falta res. Para f'oucault, de qualquer modo, a especificidade letal do dispositi-
de uso do paradigma imunitário. O fato de que todos esses pensadores vo nazista reside na sua habilidade em combinar, e assim intensificar, o
{
partem essencialmente dos mesmos textos, ou ~a. dos cursos foucaul- poder dirigido ao corpo dos indivíduos com aquele dirigido ao corpo da (
tianos compilados com o título l!m defesa da sociedade e do quinto capí- população. (,
tulo da Vontade de saber, induz-me a partir deles, para depois chegar às Certamente outros vetores, oportunamente trazidos à luz por
suas diferentes Interpretações de f'oucault. Para este último a biopolítica é diversos estudiosos, reforçam a análise foucaultiana da biopolítica, mas o
(
um outro nome para indicar uma tecnologia política, o biopoder, distinto que foi dito basta para definir a base textual sobre a qual Agamben, Hardt (
enquanto tal do mecanismo disciplinar originado no final séc. XVIII. esta e Negri, e o próprio esposito construíram as suas respectivas interpreta-
{>
nova configuração do poder visa a assumir o controle da vida e dos pro- ções40. Assim a noção de biopolítica de Agamben é, certamente, depen-
cessos biológicos do homem como espécie. O aparato biopolítico inclui dente dessa que acabamos de delinear - a ideia de que a modernidade (
técnicas ..de previsões, de estimativas estatísticas, de medidas globais..; produz um certo tipo de corpo blopolítico o acomuna a f'oucault. Mas o {
em poucas palavras, os "mecanismos de segurança em torno do que há , principal instrumento conceituai utilizado pelo filósofo italiano continua
{
de aleatório em toda população de seres viventes. Tratar-se-á, em suma, sendo por um lado a clara distinção entre blos e zoé, por outro lado o
de otimizar um estado de vida"-'7 • O modo como a blopolítica é definida na · modo particular como ele liga a exceção soberana à produção de tal corpo {
análise de f'oucault conduz a uma importante distinção em relação à cate- biopolítico, ou melhor, zoopolítico. Não por acaso Homo sacer se abre (
goria de soberania: ..A soberania fazia morrer e deixava viver. Mas eis que Justamente com esta distinção:
{
agora aparece um poder que eu definiria como um poder de regulação,
que consiste, ao contrário, Justamente em fazer viver e deixar morrer"38, Os Gregos não tinham um único termo para exprimir aquilo que nós {
Biopoder, nesse sentido, é aquilo que garante a continuidade biológica da entendemos com a palavra vida. Eles se serviam de dois termos, se- ( 1

manticamente e morfologicamente distintos, embora atribuíveis a um


35 Cf. também La clttA blopollUca: mltologle della slcurezza. Mllano: Bruno Mon- étlmo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos {
dadorl, 2005 (em especial p. 20-27, de Andrea Cavallettl, em que o autor lnlt:rpreta a vida das
cidades em cha\'e lmurútárla). Vt;Ja-se também a minha entrevista com l!sposlto no volume {)
c1tado de DlaalUcs.
:s6 CI. também as recentes e biilhantes contribuições de Slmona l'brtl à discus- 39 lbid., p. 224. {
são Italiana sobre a biopolftlca. Além do seu trabalho sobre o 1btalltarlsmo (Roma-6arl: Laterza 40 Cf. especialmente VIRNO, P. OrammaUca della molUtudine. Roma: Derive
2001), reftro-me ao seu óUmo BlopollUca dellc anlme. l'floso{la poUUca, n. 3, p. 397-418, 2003.
Neste úlUmo, ela examina os elementos amblvalentes que conectam algumas teses da nossa
Approdl, 2002; BAZZICAWPO, L.; esrosrro, R. (Org.). lblltlca della utta. Roma-Barl: Laterza,
2005; ORCJ!.NHALOtf, S.; WlNCKLCR. e. A. (Org.). Oouernlny Chlna's populaUon: from Lenlnlst
\'
tradlção ftlosóflca ao totalitarismo nazista. to neoliberal blopolltlcs; BRANIJIMARTC, R.; CHIANTCRA-STU1TC, P. (Org.). Lesslco dl blopollU- (\
37 fOUCAULT, M. Bfsogna dl{endere la socletà, clt., p. 212. ca. Roma: Manlfestollbrl, 2006; CUTRO, A. Blopolltlca: storta e attualltà dl un concetto. Verona:
38 lbld., p. 213. Ombre Corte, 2005; o volume de rfloso{la pollUca, 1, 2006, dedicado à blopolíUca.
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os seres viventes (animais, homens ou deuses) e blos, que lndlcaw a
forma ou maneira de viver própria de um Indivíduo ou de um grupo.•1
particular a atribuição do poder soberano aos médicos e aos cientistas
que faz com que o homo sacer não stja mais simplesmente o análogo do
soberano, mesmo procurando demonstrar como o espaço blopolftlco da
1
Deixando de lado por enquanto a questão sobre se esses termos
l modernidade está ligado ao nascimento dos campos de concentrac;ão46•

)
exaurem o léxico grego relativo à vida, Agamben procura demonstrar a Mas a Impressão prevalenle que as suas páginas comunicam é a de um
preponderância da zoé para a produção do corpo biopolítico42 , o pressu- certo achatamento da especificidade da blopolftlca moderna em favor de
) posto dessa opção deve ser buscado naquela que ele, na esteira de carl um original e eterno estado de exceção, pensado em termos metafísicos,
} Schmitt, chama de "exceção soberana", ou stja, o processo mediante o que teria desde o princípio erodido as bases poHticas da vida social. Para
qual o poder soberano pressupõe a exclusão daqueles que - do ponto de Agamben o bios autenticamente polftico se retira, desde sempre, em favor
} vista da pólls - parecem nada mais do que vivos43 • Desse modo Agamben do elemento puramente biológlco47 • O resultado é uma política potencial-
) pode falar de uma exclusão inclusiva da zoé da vida política, "quase como mente sempre em ruínas, como defende Marco Revelll48, ou col'\)ugada
) se a política fosse o espaço em que o viver deve se transformar em viver necessariamente na forma de uma biopolítlca negativa.
bem e o que deve ser politizado fosse desde sempre a vida nua"44, Uma Se a caracterização negativa da biopolítica contemporânea em
) série de fatores converge para fazer da política o lugar da exclusão, mas o Agamben depende do predomínio da zoé sobre a vida politicamente qua-
) principal dentre eles é o papel desempenhado pela linguagem, através da lificada, a sua radical reconversão positiva r~lizada por Hardt e Negri gira
) qual o homem "separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, em tomo da definição produtiva do blos e da tentativa "'de identificar a di-
mantém-se em relação com ela em uma exclusão inclusiva•~. o homem mensão materialista do conceito, para além de toda teoria que se limite a
) sacro é precisamente a figura que constitui o que para Agamben é a re- um plano puramente naturalista (vida como zoé) ou antropológico (como
) lação política original: ele é o nome daquela vida excluída da vida política tende a fazer, em especial, Olorgio Agamben), acabando, na realidade, por
) (do bios) instituída pela soberania. 1àl tese não é tanto o resultado de uma tomar esse conceito praticamente indiferenten49• Deixando de lado o ad-
ontologia da exclusão (e, portanto, da matabilidade incondicional), quanto jetivo "Indiferente", que me parece não capte bem o caráter radicalmente
) o produto de uma relação em que o blos é fundado não sobre outra forma negativo da perspectiva de Agamben, o que qualifica a posição de Hardt e
} de vida, mas principalmente sobre a zoé e sobre a sua principal caracterís- Negri é o modo como eles associam as formas contemporâneas de sub-
) tica, a de ser vida nua e portanto matável. Nesse quadro, o papel designa- jetividade coletiva à transformação da natureza do trabalho em sentido
do ao estado de exceção é relevante; de fato, ao menos inicialmente, para imaterial, de acordo com o Já teorizado também por outros pensadores
j Agamben a biopolítica está desde sempre inscrita na exceção soberana. marxistas italianos50 • Pensar essas mudanças da forma-trabalho - caracte-
) Desse modo ele enfraquece a hipótese foucaultiana do nascimento do bio- rizada não mais pela produção em fábrica, mas pela ''potência Intelectual,
} poder na segunda metade do séc.· XVIII - vinculando-o de algum modo à
soberania - e põe em primeiro plano o momento em que a biopolítica se
) radicaliza a ponto de se transformar em tanatopolítica tanto nos Estados
46 Nesse sentido compartilho a Ideia de e. Vogt, segundo o qual Agamben se
destaca nitidamente da análise de l'bucaulL Cf. o seu recente Sldtlng the camp. ln: _ _•
) totalitários quanto nos democráticos. Certamente Agamben mantém al- l'blltlcs, metaphyslcs and death: essays on Qlorglo Agamben's Homo Sacer. Durham: Duke
Unlverslty Press, 2003. p. 74-101.
guma distinção entre o modelo clássico e o moderno de biopolítica - em 47 Agamben prossegue a própria análise sobre a blopol(Uca em 1:aperto, clt., em
) que o que ele chama de "máquina antropológica" produz um estado de exceção que redefine
continuamente o limite entre humano e Inumano. Na medida em que se Inscreve no horizonte
) do estado de exceção, a modernidade, e com ela o discurso antropológico do séc, XIX. perma-
nece envolvtda em uma aporia poUtlca (e metafisica}: •enquanto nela está em Jogo a produc;Ao
41 AOAMBeN, o. Homo sacer, clt., p. 3.
) 42 Sobre Isso, cf. DUBReUIL, L. Llvlng polltlcs: blos, zue, llfe. Dlaaltlcs, v. 36, n.
do humano através da opoetc;ao homen,/anlmal, humano/Inumano, a máquina funciona ne-
2, p. 8.'5-98, 2006. cessariamente através de uma etdusão (que é também e desde sempre uma captura} e uma
lndusão (que é também e desde sempre uma exdusêo}" (p. 42),
) 43 SCHMl1T, e. Tuologla polltlca. ln: _ _• Le categorle dei "pollUco", Bologna: li 48 Cf, lmWLLI, M, La pollUca perduta. 1brino: e1naudl, 2003.
Mullno, 1_972. Agamben discute detalhadamente a relação entre SChmltt, Beajamln e o estado 49 HARDT, M,; NeORJ, A. Impero, dL, p • .:591,
} de exceçao em Stato dl eccezlone. 1brlno: Bollatl Borlnghlerl, 2005. 50 Cf, o livro, já citado, de VIMO, P. Orammatlca della molUtudlne, bem como a
44 AOAMBeN, a. Homo Sacer, clt. p. 10. coletânea de ensaios de M. HARDT e A. NOORI sobre o pensamento radical: Labor of Dlonysus:
) 45 lbld., p. 11.
a critique of the state-form. Mlnneapolls: Unlverslty of Minnesota rress, 1994.

} .32 .3.3
ThRM05 DA POL(TICA
Co11u111DADc, l11u1110,,.oc. BtoroúTtCA

imaterial e comunicativa" - através da categoria foucaultiana de biopoder Esposito toma uma posição divergente tanto da de Agamben
permite a Hardt e a Negri ver na blopolítica o espaço em que se exerce o quanto da de Hardt e Negri. Partamos do primeiro. Certamente a sua gene-
poder no império e simultaneamente o espaço em que emergem novas alogia da blopolítica compartilha muitos elementos com a perspectiva de
formas de subjetividade, que eles chamam de "singularidades sociais#. Agamben, centrada sobre a figura do homo sacer. Dir-se-ia que o capítulo
Desse modo o termo "biopolítlca" se refere não somente às novas forma- de Blos sobre a tanatopolítica constitui ao mesmo tempo uma espécie de
ções deflnldéls como "multidões•. mas também ao advento de uma Inédita diálogo Implícito com a interpretação de Agamben sobre o nazismo e uma
forma democrática de soberania, centrada em uma prática radicalmente sua crítica. Para compreender seu sentido devemos repercorrer breve-
diferente da Ideia de ·comum". Como os próprios Hardt e Negri admitem mente as linhas de base da análise de Esposito sobre a biopolítica nazista.
explicitamente, entender a multi~ão de maneira ontológica como uma for- Significativamente, ele começa indicando uma oscilação no delineamento
mação social de tipo biopolítlco. marca uma significativa tomada de dis- foucaultlano do regime hitleriano. Por um lado Foucault considera que ele
tância, se não uma seca ruptura, em relação à concepção de :roucault. 1
manifesta a mesma valência blopolítica de outros regimes políticos mo-
Enquanto este último frequentemente associa os elementos negativos do dernos, em particular o socialista, ao qual atribui uma matriz de tipo racis-
blopoder ao seu objeto, ou stja, ao sajeito biopolítlco, Hardt e Negri des- ta. Por outro, ele parece privilegiar a natureza singular do "evento nazista".
vinculam a blopolítlca de seu arraigamento no blopoder na fase atual do o que resulta disso é uma certa incoerência hermenêutica: ou a biopolítica
império para lê-la sobretudo - e de maneira afirmativa - como categoria nazista é assimilada ao socialismo com base no racismo comum - e então
social. Assim "a produção biopolftica é, antes de qualquer outra coisa, uma não constitui mais um exemplo irredutivel; ou então conserva uma pecu-
questão ontológica, no sentido em que cria continuamente um novo ser liaridade própria em relação ao cortjunto da política moderna e então é
social e uma nova natureza humana" ligada "a uma corrente continua de dificilmente associável ao socialismoM.
encontros, de comunicações e de concatenações entre corpos"51 • Os dois O segundo vetor diferencial em relação a Foucault deve ser bus-
autores adotam uma atitude análoga em relação a Agamben, renunciando cado na pergunta de fundo que Esposito faz em relação à concepção na-
à sua interpretação da biopolítlca novecentista e evocando em seu lugar zista da vida: por. que - ele se pergunta - diferentemente de todos os ou-
uma nova forma de soberania em que o estado de exceção está destina- i tros regimes políticos passados e presentes, somente o nazismo levou as
do a ser logo ultrapassado por uma produção rizomática de multidões tentações homicidas da biopolítica à sua plena realização? A sua resposta,
destinadas a desvelar a natureza ideológica da soberania modema52 • •Em que remete à categoria de imunização, dá a entender que ele rajeita uma
relação a esta úlUma, a multidão produz um conceito de "comumn que sobreposição demasiado imediata entre a tanatopolítica dos anos trinta e
"rompe a continuidade da soberania política moderna e ataca o coração a biopolítica contemporânea55 • Ele antes procura inscrever os principais
do biopoder, desmistificando sua sacralldade. é preciso reapropriar-se de vetores da política nazista no mais amplo projeto de imunização mortifera
tudo o que é geral ou público, a fim de que saja administrado pela mul- da vida. Nesse sentido a morte se toma ao mesmo tempo o objeto e o
tidão e, as.sim, tomado comum--:u. Segundo o léxico até agora utilizado, instrumento terapêutico para tratar o corpo político alemão - simultanea-
pode-se concluir que Hardt e Negri justapõem a própria biopolítica afir- mente a causa e o remédio da "doença". Na última parte de Bios dedica-se
mativa, associada à multidão e ao "comum". ao biopoder como expressão amplo espaço à análise dos dispositivos imunitários do nazismo como
privilegiada da soberania moderna. articulação decisiva para reconstruir a passagem da biopolilica moderna

51 tlARDT, M.; NOORJ, A. Moltltudlne. ciL, p. 401.


52 Certamenle a ótica delcuzlana é c:rudal para dar conta da visão aflrmaUva 54 cr. o ensaio, aqui publicado, de e5POSJTO, R. 1btalltarlsmo ou biopolltlca:
da biopolftlca de ltm'dl e Negri, como. aliás, eles mesmos admitem: um novo sentido do co- para uma Interpretação tllosófaca do séc. XX, em especial p. 191·202.
mum. baseado na multldão. desvela a natureza Ilusória da soberania moderna. Cf., a propósito, 55 t preciso notar que grande parte da crfUca de l!sposlto a foucault coincide
NOORJ, A. flatrm. Alma venus. Multltudo. Roma: Manlfatotlbrl. 2000, p. 127: ·A teleologia do com a de Agamben. Mas enquanto roucault associa o socialismo ao nazismo por causa do ra-
comum, enquanto motor da transformaçào ontológica do mundo. não pode ser submetida à te• cismo comum, Agamben põe cm relação a blopolíUca nazista com as democracias modernas
orla da medlaçao soberana, A mediação soberana é, de fato, sempre fundação de uma unidade através do estado de exceção. O resultado, no final, não muda: em ambos os casos a evidencia-
de medida, enquanto a transformação ontológica é sempre desmeaurac1a·. ção dos traços comufl[) entre o nazismo e as democracias ocidentais evoca o risco de atenuar a
55 ttAKDT, M.; NOORI, A. Moltttudlne, cit., p. 241. absoluta singularidade do primeiro.

34 35
)
j
-
''
l
à tanatopolítica totalitária. A máquina imunitária nazista é caracterizada
pela absoluta normalização da vida, pela dupla clausura do corpo e pela
finalidades terapêuticas que os nazistas atribuíam ao campo de concen-
tração: somente através do extermínio dos Judeus eles com:lderavam que

-,'
supressão antecipada do nascimento. f'alta-me espaço para analisar cada
o ghénos alemão poderia ser protegido e reforçado. Assim, para Esposito,
um desses dispositivos - e, além disso, o leitor poderá reconhecê-los nas
a especitlcidade da experiência naz~sta, em relação à modernidade, reside
páginas mais envolventes de Bios. Mais útil é identificar o ponto em que
) na reallzação política da biologia, visto que "o transcendental do nazismo
a descrição da biopolítica nazista elaborada por Esposito diverge da de
é a vida, o sajeito é a raça e o léxico a biolo~ia"58.
l Agamben. Para começar, concentrando a atenção sobre o modo como o
bios se torna uma categoria política e o nómos uma categoria biológica,
l Esposito não contesta frontalmente a leitura de Agamben sobre o estado
) UMA BIOPOLfTICA Af'IRMATIVA?
de exceção como aporia da política ocidental, que os nazistas intensificam
l até o ponto de fazê-lo coincidir com a norma. Ele antes privilegia o para- As mesmas motivações que guiam a critica de Esposlto a Agam-
digma de imunização como o instrumento mais adequado a compreender
) ben determinam também o seu distanciamento de Hardt e Negri. Esposito
a política social, jurídica e médica dos nazistas, no qual também o estado não somente mostra que não compartilha a centralidade, por eles teorizada,
) de exceção deve ser enquadrado. A ótica da imunização implica uma crí- da multidão no âmbito de uma blopolítlca afirmativa capaz de contrastar o
) tica das categorias com que o nazismo foi até agora definido, das quais biopoder - ele nota como a linha Interpretativa deles se estende multo além
as principais são Justamente as de soberania e de estado de exceção56.
) das intenções manifestas de f'oucault quando este fala da resistência da vida
Desse modo Esposito se distancia da inserção, realizada por Agamben, do diante do poder -. mas coloca em questão o uso que eles fazem da cate-
) horizonte da soberania no da biopolítica (por isso não recorre à figura do goria de biopolftlca como eixo conceituai da crítica ao império: "se a vida é
) "muçulmano" como encarnação do homo sacer no séc. XX), deslocando mais forte do que o poder que, mesmo assim, a assedia, se a sua resistência
o foco da análise sobre os elementos biocráticos da ditadura nazista. Ele
) não se deixa dobrar pelas pressões daquele, então por que o resultado ao
nota, por exemplo, o papel desempenhado pelos médicos na legitimação qual a modernidade chega é a produção em massa da morte?"59. em uma
) das normativas nazistas inseridas no código processual do Reich, como série de entrevistas sucessivas a Blos, Bsposito continuou a problematizar
} demonstra a presença, expressamente exigida, de um médico em todas a posição de Negri e HardL o que dela não o convence é principalmente a
as operações homicidas dos campos de extermínio, a partir da seleção das
) remoção que ele vê do aspecto negativo da biopolftlca modema60• Para ele a
vítimas até a cremação nos fomos. Nesse sentido as análises de Esposito figura da multidão utilizada por Negri é atravessada pela mesma antinomia
} não somente desenvolvem a clássica descrição de Robert Lifton do Estado imunitária que percorre a biopolftlca negativa de Agamben. De que modo,
) nazista como "biocracia", mas - o que é ainda mais importante - põem afinal, a categoria de multidão poderia fugir à aporia imunitária que habita
em Primeiro plano o papel desempenhado pela imunização para a iden-
) toda forma de comunidade? Embora não o afirme de maneira tão explícita,
tificação de todos os seus objetivos políticos; além disso, a politização
) nazista da medicina não pode ser plenamente entendida fora da tentativa
) de proteger biologicamente a raça ariana~7 • Por isso, é central, na iden- 58 ESPOSITO, R. B(os, dt., p. 117. em lmmunltas Csposlto toma explícita a pró-
pria Intenção de prtvllegiar a noção de Imunização em relação à de estado de excec;ao. Pazen~o
tificação da tonalidade biopolítica do hitlerismo, o reconhecimento das
) alusão a Agamben, ele nota que a ·estrutura lrredutlvelmente antinômica do nómos baslleus
- baseada na Interiorização, ou melhor, no 'Internamento', de uma exterioridade - é particular-
mente evidente no assim chamado caso de exceção, que cart Schmltt situa Justamente na 'esfe-
j ra mais externa' do direito· (p, ~ 7 ) . Neste caso, Bsposlto tende a pensar a Imunidade através
da referência à concepção bert)amlnlana do direito como vtolêncla, mas em outro ponto ele se
t 56 Cf., a respeito, o capítulo sobre a soberania em Nove pensterl sul/a polltlca
de R. Esposlto (Bologna: li Mullno, 1995, p. 87-111). ' refere mais precisamente a Batallle. V~a-se, em especial, categorle dell'lmpolltloo, sobre o
débito que Bsposlto contrai em relação a este último, sobretudo no que diz respeito ao conceito
57 fbdemos falar do nazismo como de uma "blocraclaH. o modelo é o da teocra-
) cia - um sistema de governo sacerdotal sob a égide da prerrogativa dMna. No caso da blocrecla de partaae, entendido como copresença liminar de separação e concatenação (clL, p. 22),
n~lsta, a prerrogativa divina foi substituída pelo tratamento mediante purificação e revftallza- 59 ESPOSlTO, R. B(o..'9, dt., p. 33, ·
) çao da raça ariana. Llfton fala de "ativismo biológico- na ecologia assassina de Auschwitz, con- 60 cr. especialmente a notdvél discussão entre Espostto, Negrl e Veca, Dlalogo
cluindo que a visão nazista da terapia não pode ser separada do homicídio em massa (LlfTON sull'lmpero e dernocrazla. Hlcromega, n. 5, p. 115-154, 2001, bem como a recente elaboração
R. / mediei nazlstl. Milano: Rlzzoll, 200.'.5). ' da relação problemáUca entre democracia e blopolftlca no ensaio de Bsposlto, Já citado, 1btall-
} tarlsmo ou blopol(Uca.
) 36
37
ThRMOS DA PoLITICA
Cot1Ul'IIOI\DC, IMUl'IID,\DC, B10rot.lTICA

ele dá a entender que a caracterização social do biopoder não pode, de si só subtraída a uma exigência imunitária. Como Esposito recentemente
modo algum, proteger a perspectiva de Hardt e Negri daquela longa e letal observou, "sem esse aparato defensivo a vida individual e coletiva perece-
genealogia em que a vida é protegida e reforçada através da morte - por ria"61. O que o afasta de Hardt e Negrl é uma motivada desconfiança de que
aquilo que &posito chama de "o enigma da blopolítlca'". a multidão possa, de algum modo, transcender a aporia Imunitária que
ele havia lançado as bases para tal critica desde o começo dos b1Sldla qualquer outro tipo de comunidade. Tulvez na nova configuração
anos noventa quando, em uma série de reflexões sobre o impolfllco, havia do comum que eles descrevem, e com as atuais mudanças na natureza
iniciado uma rigorosa desconstrução de multas das mesmas categorias da produção imaterial, o mwws global possa se transform~r de modo
que subjazlam às análises de Hardt e Negrl, em especial a de soberania. que a multidão, diferentemente de qualquer formação social precedente,
Certamente é plausível (e produtivo) ler Blos segundo uma ótica lmpolí- não terá mais necessidade de imunizar-se dos riscos da communitas. E
tlca, com base na qual J::sposito vê na biopolítlca a úlUma e mais recente justamente essa resposta parecem dar Hardt e Negri: uma rede de singu-
das modernas categorias políticas que requerem uma desconstrução. Não laridades rizomátlcas está menos inclinada a imunizar-se, visto que pela
é por acaso que no primeiro capitulo do livro a perspectiva biopolfllca não sua própria natureza implica a oportunidade de infinitos contatos virtuais.
é entendida somente como uma das mais cáusticas maneiras de organizar Mas Esposito se pergunta justamente se essas singularidades que agem
o discurso político contemporâneo, mas também como o desafio principal em comum, assim formando "uma nova estirpe, uma humanidade nova"62 ,
à clássica categoria de soberania. Para o filósofo italiano a soberania - tra- não produzem inconscientemente novas formas de imunidade.
ta-se daquela nova soberania global chamada de império ou da soberania A imunidade, sabemos, emerge como um elemento constitutivo
de longa duração dos Estados nacionais - não transcende a blopolítlca, da comunidade, sempre que o comum ameaça a identidade pessoal. Assim,
mas é Imanente àqueles mecanismos imunitários que ele vê governarem não é Impossível ler as páginas de Blos dedicadas ao mecanismo imunitário
todas as formas da política moderna. 1àmbém o conceito de multidão é em Locke como se fossem dirigidas a Hardt e a Negri. Escrevendo sobre o
tributário da soberania moderna, cajo horizonte último continua sendo o "risco potencial de um mundo dado em comum, e por isso exposto a uma
paradigma Imunitário. Em outros termos, a noção de multidão permanece indistinção ilimitada" e, portanto, potencialmente lesivo "à relação que pre-
ancorada às contradições gerais que revestem todo o espaço da blopolíti- cede e determina todas as oubas: a de cada um consigo mesmo'~, mais
ca. Desse modo não somente Esposito coloca profundamente em questão uma vez B.sposito identifica na identidade pe.ssoal o sajeito, e ao mesmo
o valor hennenêuUco da ideia de soberania Imperial para a compreensão tempo o objeto, da proteção imunitária. A res communls que Hardt e Negri
do cenário político contemporâneo - ou, rnais ainda, para o esboço de veem como uma das mais Importantes produções da multidão é entendida
uma política que virá -, mas percebe um resíduo de soberania também por Loclre, na interpretação de Esposito, como uma ameaça para a res pro-
na figura da multidão. Mas Blos contém uma outra, menos explícita, re- prla. Seguindo essa linha de análise, ele se pergunta o que se toma a iden-
serva em relação ao uso que Hafdt e Negri fazem do termo "blopolftlca". tidade pessoal quando é a multidão a produzir o novo sentido do comum.
Sabemos que para eles a multidão produz um novo conceito de comum,
de modo a constituir uma ruptura em relação a todas as formas de Estado
61 Entrevista de Esposito em DlacrlUcs, clL nmdo mais espaço, seria de grande
soberano. Isso em razão de sua atividade econômica e biopolítlca, que Interesse estudar como a análise da neovanguarda literária Italiana, à qual ele dedicou o seu
coincide em caráter comum com as redes Informáticas e com todas as primeiro livro, conforma, em certos aspectos, as suas mais tardias reflexões sobre Imunidade e
blopolftlca. V~a-se, por exemplo, a analogia entre a Ideia de communltas como esfera vital e a
formas comunicativas e cooperativas de trabalho. A multidão mobiliza o poética, por ele analisada, de Nannl Balestrlnl (ESPOSITO, R. ldeolo9le della neo-auanguardla.
Napoll: Llguorl, 1978, p. 127-195).
comum na passagem de uma res publtca a uma res communls, no sentido 62 HARDT, M.; NOORI, A. Mollltudlne, clL, p. 409. Mas deveríamos nos perguntar
de que Incorpora cada vez mais a potência expansiva da nova comunidade se as Inter-relações da rede não correm o risco de experimentar justamente aquele gênero de
doença autolmune que, por exemplo, Baudrillard ldenUflca como o traço principal da política
de Indivíduos. Mas a dlalétlca, já delineada, entre communltas e tmmu- corrente (cf. BAUDRILLARD, J. Proftlassl e vindenza. ln: La trasparenza dei mate, clL, p. 71: ""lb-
dos os sistemas Integrados e superlntegrados, os sistemas técnicos, o sistema social, o próprio
nltas leva a pensar que não haja lei comum capaz de unir os membros· pensamento na lntellg~la artUtclal e os seus d~rlvados, tendem a esse limite da lmunode-
de uma comunidade potencial - ou, neste caso, de uma multldâo - por Hclêncla. Mirando à eliminação de toda agressão externa, eles secretam a própria vlrulêncla
Interna, a sua reverslbllldade maléllca") .
•, 65 ESPOSrro, R. B(os, clt., p. 65.

38 .39
.,
)

) ROBf:RTO &POSIT'O

l
A ameaça em relação a ela diminui em razão das novas formas de comÜni-
l cação e de trabalho ou aumenta justamente pela progressiva extensão que,
o filósofo recontextualiza, por Isso, o seu primeiro trabalho
sobre a comunidade como base teórica para tentar essa complexa
l segundo Hardt e Negri, adquire a multidão? O que aqui está em questão
operação: aquele termo se torna, de fato, o operador semântico atra-

'
não é somente um jogo de identidade e diferença, mas a prevalência de
vés do qual uma declinação Imunitária do blos pode ser invertida no
uma sobre a outra na figura da multidão. Vasta por esse ângulo, a ênfase
} seu oposto. Ele baseia esse projeto na convicção de que a filosofia
que eles colocam no seu caráter singular e comum pode parecer um modo
contemporânea não conseguiu captar substancialmente a relação en-
l de prevenir a objeção de que existe uma antinomia constitutiva entre essa
tre as práticas tanatopoUticas do nazismo e a hodierna \'>lopolf tlca: "A
l forma social e a identidade pessoal dos sujeitos que a formam.
verdade é que simplesmente se considerou que a queda do nazismo
) deve1ia arrastar para o Inferno - do qual havia surgido - também as
) UM B/0S EM COMUM? categorias que haviam marcado seu perfi1•65 • Somente Identificando
0 aparato imunitário da máquina mortífera nazista e depois a inver-
}
tendo, a filosofia contemporânea pode captar os caracteres negativos
Uma vez fixadas essas coordenadas diferenciais, a pergunta que
) da atual biopolítica global e assim criar um novo léxico capaz de se
daí deriva diz respeito à forma que o próprio Esposlto confere à concepção
) da biopolítica em si, de modo a evitar as dificuldades registradas nas outras ~omparar com ela e mudá-la.
perspectivas até agora examinadas. Após dois iluminantes excursus sobre a É com essa finalidade que esposlto coloca em tensão a vi-
)
semântica da vida em Arendt e em Heidegger - que podem ser lidos como são negativa de Agamben com a noção de ·comum" em Hardt e Negri.
) ele não se limita a oferecer uma simples escolha entre imunidade e
um debate indireto com as problemáticas do homo sacer e do conceito hei-
) deggeriano de "aberto" - Esposito começa a esboçar os contornos de uma comunidade que de uma vez por todas anuncie uma nova natureza
· humana. A continuidade entre a biopolftlca nazista e a contemporânea
_) concepção afirmativa do bios, capaz de "abrir a caixa preta da biopoJítlca". Ele
o faz retomando aos três dispositivos já mencionados do regime nazista, com pressuposta por Agamben mostra-se, desse ponto de vista, menos im-
) a intenção de virá-los pelo avesso. Como já vimos, eles são a normalização pregnada pela contiguidade semântica entre Imunidade e comunidade.
} absoluta da vida, a dupla clausura do corpo e a supressão antecipada d o ~ Correndo o risco de reduzir a complexidade do raciocínio de esposito,
cimento. O efeito de sua reelaboração, destinado a inverter os procedimentos pode-se dizer que se a tanatopolítica nazista constitui a expressão mais
)
imunitários do nazismo, poderá surpreender e parecer quase um desafio para radicalmente negativa da Imunização, então, Invertendo seus termos, a
j filosofia pode se mostrar como uma série de passagens para pensar a
o leitor. Naturalmente .Esposito tem consciência de tal possível reação de re-
} jeição. Por isso a sua resposta antecipada merece uma longa citação: vida qualificada do blos como forma de vida em comum. Tol concepção
positiva da blopolítica, todavia, pressupõe um conceito de vida capaz
)

,
de livrar o indivíduo da própria síndrome Imunitária (e, portanto, da
Mas o que significa, exatamente, virá-los pelo avesso? B virá-los pelo
J avesso a partir de dentro? A tentativa que deve ser feita é a de assumir sua própria configuração lndlvldual) 66 • Isso significa referir-se à aber-
as mesmas categorias de .. vida", de "corpo" e de "nascimento", conver-
tendo suas declinações imunitárias, isto é, autonegativas, em uma dire-
) ção aberta ao sentido mais origina[ e Intenso da communttas. Somente
65 Jbld., p. 161, da d Do H
) desse modo - no ponto de cruzamento e de tensão entre as reflexões 66 Nesse senUdo a concepção da blopoUUca de Esposlto difere e nna a-
contemporâneas que mais se aprofundaram nessa estrada - será pos- raway. esta, como sabemos, remete diretamente ao paradigma Imunitário corno a um modelo
) sível traçar as primeiras Unhas de uma blopolíUca finalmente afirmativa: de lnterac;Ao. Embora ela nao cante suas loas, reconhece nele o modo pós-moderno através do
qual O •si permeável (é) capaz de Interagir com os oull"Os (humanos e nAo humanos, Interno
não mais sobre a, mas da vida. 64 e externo) mas sempre com consequências llmJtadas" (HARAWAY. D. BlopollUca dl carpi post-
) modeml, dL, p. 165-166). Slgnlflcatlvamente, Isso Inclui "possibilidades e Impossibilidades
situadas de Individuação e ldenUftcac;Ao: e de fusões e perigos parciais'" (p. 166). Blos desloca
) a ênfase do corpo Individual à noc;Ao de vida, que não pode ser remetida a um lndtvfduo espe-

; 64 lbld., p. 171-172.
cmco mas sim ao motor dinâmico daquilo que é virtual, e às singularidades que precedem a
gên~ dos si Individuais. Bm outras palavras, à communltas como ao modo pré-Individual de
ter e de ser em comum.
) 40
41
Thru10s DA PoLITtc.A
CoftUNlo.\01:, IP'IUNlo.\OI:, 8IOl"OLITICA

tura original que coloca cada um em comum com os outros67 , como te - ele escreve, seguindo Bataille - é a nossa comum impossibilidade
se deduz da comparação, iniciada pelo filósofo, com as obras de Mer- de ser o que no~ esforçamos em permanecer - indivíduos isolados" 7 º.
leau-Ponty, de Levlnas e de Deleuzeee. Na remissão à "singularidade Nesse sentido Agamben e esposito certamente concordam
em comum• pode-se captar um eco das páginas de Agamben sobre a acerca da lrreduUvel diferença entre indivíduos, ou sajeitos, e comunida-
Comunidade que vem, sobretudo quando este vincula o tema da vida de. Mas para Batallle, como para Bsposito, o elemento crucial para uma
nua ao da lncomunlcabllldade. Sabemos que para Agamben a comuni- comunidade que vem é o que força cada membro da comunidade para
dade que vem se esboça quando emerge um contexto de vida em que fora d~ si - não a própria morte, "visto que ela é inacessível", mas prin-
a morte assume significado, ou stja, quando pode ser comunicada. cipalmente ''a morte dos outros" 71 • em tal perspectiva a comunicação se
Somente quando a morte Individual - precedentemente Insignificante e determina quan"do os seres perdem uma parte de si - o que Bataille cha-
sem sentido - encontra um ~lgniftcado, pode-se falar propriamente de ma de "ferida· ou "laceração" - em uma modalidade exproprlativa que os
singularidades capazes de comunicar-se enb·e si. 'Jal comunidade será, põe em contato separando-os de sua própria identidade. t nessa noção
consequentemente, "sem pressupostos e sem sttjeltos, [exposta] a uma batailliana de "comunicação forte", ligada ao sacrifício de si, que esposl-
comunicação que não conheceria mais o lncomunicável"159 • Algo seme- to identifica a chave para definir uma comunidade em que a comunica-
lhante se encontra também em Esposlto, embora BLos não se delongue ção stja constituída pelo "contágio provocado pela ruptura das fronteiras
sobre os aspectos comunlcaUvos de uma blopolítica afirmativa. Para re- individuais e pela Infecção reciproca das feridas"72 , em uma espécie de
cuperá-los precisamos tornar a Communitas, onde Esposito liga algu- argui-evento da contaminação comunicativa. A questão implícita nessa
mas formas de comunicação à abertura constitutiva de toda vida singu- concepção é: como criar as condições pelas quais tal contágio possa ser
lar a cada outra vida singular. Aqui a sua distância teórica de Agamben realizado sem pôr em movimento todo o sistema imunitário. Para fazer
pode ser ent~ndida em relação às respectivas leituras de Heidegger e isso precisamos Inventar um novo léxico sobre as fronteiras da vida em
de Bataille. Quando Agamben confere relevo à morte como Instru- o formas blo-juridicas que reconheçam a presença do um no outro, de
mento através do qual uma vida pode descobrir (ou recuperar) uma modo que "qualquer vivente deva ser pensado na unidade da vida"73 , no
autêntica abertura do Daseln, repercorre, de fato, aqueles momentos sentido do co-pertenclmento daquilo que é diferente. A insistência de
do pensamento de Heidegger que celebram a morte como horizonte esposito na diferença deriva de uma maior atenção aos processos de
úlUmo da nossa existência. Para esposlto tal perspectiva não é de todo individuação, como o leitor poderá deduzir principalmente do terceiro
adequada a inaugurar um pensamento da comunidade futura. "'A mor- ~pitulo de Bios, em que o autor encontra o pensamento hiperindividua-
lista de Nietzsche. Isso pode, de algum modo, explicar sua defesa do blos
como vida singular diferente da zoé.

67 Aqui emergem diversos pontos em comum entre a leitura do s14Jelto em r.spo-


slto e a perspcc.tlva de BuUer: "Mas será que queremos aJlnnar que é o nosso status de 'sajelto' 70 esPOSITO, R. Communltas, clt., p. 159. A propósito disso, cf. a sugestiva lei-
que cria essa ligação, mesmo que, para m11ltas de nós, o 'SI.IJelto' ~ múlUplo e fragmentado? tura de Adriana cavarero sobre a relação entre linguagem e pollUca no pensamento de Hannah
Mas será que a lnslstenda no Sl.l)elto como preconcuc;ao do agir políUco não cancda aqueles Arendl, à qual remete, por sua vez, também r.sposlto, no que diz respeito ao vfnculo entre co-
mecanismos de dependência, mais c:ruclals, que nos põem em relação e pelos quais ganham munidade e comunicação: "Segundo Arendt, a palavra, mesmo quando entendida como phoné
vida o nosso pensamento, a nossa consUtulçáo, as bases da wlnerabllldade, da aflllação e da semantlké, não se toma políUca por causa das coLcms da comunidade que é capaz de significar.
resistência coleUva?" (6UTLeR. L. Vlte precarle, dL, p. 70-71). mas sim pela autorrevelação de quem - quaisquer que sajam os conteúdos específicos de seu
68 De especial Importância para esposlto é a c:otegorla de "carne·, que ele extrai discurso -, falando, e,cprlme e comunica, a respeito â'e si mesmo, sobre a sua conatural uni-
de Merleau-fbnty, pensada como aqullo que atravessa e suprime prevenUvamente as fronteiras cidade. A valência polfUca do significar se desloca, portanto, à palavra - e da linguagem como
Imunitárias do corpo. A carne oferece a e&paslto a possibilidade de teortiar uma politização , sistema de comunicação aos falantes" (A pli'l uocl: fllosofla dell'espresslone vocale. Mllano: fel-
da vida que nAo passe atnWá da aemàntic:a do corpo, visto que ela se refere a ·uma matéria trlnelll, 2005, p. ~07). Mas para a relação entre Indivíduo e comunicação f:sposlto se baseia em
mundial antecedente. ou sua:aslva, à consUtulção do 8&4Jelto de diretto• (Blos, dL, p. 182). O Batallle, em especial em seu livro sobre Nietzsche.
caráler tipicamente anU-lmunltárto da carne favorece -o eclipse do corpo polfttcx,• e com ele a 71 Cf. o que nota J. 5uUer em OlvfnR an account o/ oneself, clt., p. 75: Mo outro.
emergtnc:la de uma forma diferente de comunidade, em que a exposlç4o contagiosa aos outros poderíamos dizer, vem antes, e lssO slgnlftca que nAo há referência à própria morte que não saja
torne possfvel uma constituUva abertura. A carne aponta para o que é comum a todos, para um ao mesmo tempo uma referência à morte do outro·.
ser ao mesmo tempo •s1ngular e comum•. n esPOSrro, R. Commwútas. clt., p. 142.
69 AOAH~N. O. La comunuà che ulene. 1brtno: Clnaudt, 1990, p. 44. 75 esPOSJTO, R. Blos, clt., p. 214-215.

42 43
j
)
)
}
NASCIMENTO B AUTOIMUNIDADB
justamente, à diferença biológica em relação ao do feto. Isso não significa
l que o corpo da mãe se abstenha de atacar o bebê que carrega no útero -
l A ênfase atribuída, nesse quadro conceituai, ao homem como fá-lo, mas a sua reação Imunológica, ao Invés de expeli-lo, tem o efeito de
ser vivente (em oposição à distinção heideggerlana entre vida e exfstên-
l protegê-lo. Nesse exemplo da gravidez Esposlto percebe uma sugestiva
cia) traz à mente outras tentativas de pensar de maneira não ontológica a metáfora política para uma forma de vida social em que a diversidade mais
)
diferença entre diversas formas de vida. A Ideia de privilegiar a simbiose acentuada de um em relação ao outro, que segundo uma representação
) e a herança bacteriológica dos simbiontes talvez constitua a perspectiva tradicional deveria levar a uma guerrd destrutiva para ambos, toma-se a
mais sofisticada para mostrar como "entre devorações celulares e lnvasõ,es
l garantia da única convivência possível. O blos, como forma de vida em
abortadas" explode uma infecção recíproca em razão da qual as bactérias comum, emerge como o resultado de uma Imunização que se protege,
} "são reforçadas pela incorporação das suas doenças permanentes". Desse ela mesma, da tendência a atacar o que é outro, com a consequência de
) ponto de vista a vida humana parece nada mais do que uma vida conta- produzir uma defesa mais geral da comunidade. Isso pode dar conta do
) giosa, uma "colônia integrada de seres ameboldais", não mais distinguível trajeto que esposlto percorre ao atribuir ao nascimento uma, valência polí-

, t
da mais ampla história da simbiose, em que os germes "não se limitam
a causar doenças, mas aparecem também como portadores de vida',.,4,
Por outro lado, as interpretações antropocêntricas da natureza humana
são substituídas por perspectivas que não se concentram em uma espécie
tica. em algumas das páginas mais intensas de Blos ele dá a entender que
a Imunização não é o único procedimento capaz de proteger a vida, mas
que também o nascimento, o contínuo renascimento da vida em diferen-
} tes formas, pode desempenhar essa função. Discutindo as concepções de
particular, como justamente a humana, mas nos permitem pensar a vida Splnoza e de Simondon, ele estende a categoria de nascimento a todos os
)
como um cortjunto unitário através das suas diferentes formas (biológicas, momentos em que o sqfelto, ultrapassando um limiar inédito, experimenta
) sociais, econômicas). A referência à doença como fonte de vida remete à uma nova forma de individuação. ele se refere a um estrato vital que todos
) leitura de Nietzsche proposta em Bios e à categoria de compensatio utili- os seres viventes compartilham, a uma vida comum, desde sempre polftl-
zada em Immunitas, bem como à tese maqulaveliana da produtividade do ca no sentido de que constitui o fundamento do qual se origina o fenôme-
) conflito social, expressiva do fato de que algumas tipologias de imunidade no da Individuação continua. Desse modo ele elabora um conceito de blos
) não barram o avanço de formas de vida autenticamente políticas. A repre- de tal maneira que a zoé já esteja compreendida em seu interior: não há
} sentação do sistema imunitário em termos somente autodestrutivos nos vida sem a individuação determinada pelo nascimento. embora o filósofo
impede de ver que a imunidade não é sempre e somente uma proteção não o declare expressamente, a sugestão que deriva de seu discurso é a
_) negativa da comunidade vivente, mas pode também aumentar a capacida- de que uma nova blopolftica poderia ser aberta a partir de uma recombi-
j de dos seus membros de interagir com o ambiente e, portanto, potencia- nação dos termos através dos quais pensamos a conservação da vida. A
lizar a própria cor:nunidade.
} vida não pertence mais àqueles que dela são julgados dignos em relação a
O primeiro exemplo fornecido por f.sposito de tal abertura imu- outros que não o são, mas compete a toda forma de vida produzida pelos
) nitária à comunidade é constituído pelo nascimento. em Jmmunitas ele in- processos de individuação. Assim escreve ele:
) troduz o tema da gravidez como modelo de uma Imunidade que aumenta
) as possibilidades para o feto e para a mãe de permanecer saudáveis até Se se presta atenção, vida e nascimento são ambos o contrário da morte
o momento do parto. A sua interação se desenvolve segundo uma combi-


- a primeira de um ponto de vista slncrõnico, a segunda em uma pers-
nação em que o sistema de autodefesa da mãe funciona de modo a que pectiva dlacrOnlca. O único modo, para a vida, de retardar a morte não é
) o feto não se torne objeto do seu sistema imunitário. o sistema de auto- conservar-se como tal, talvez na forma Imunitária da proteção negativa,
proteção materno "se imuniza de um excesso de lmunização',.,s, graças, mas sim renascer continuamente em formas diferentes. 70
)
)
74 ANSeLL-reARSON, K. Vlrotd llfe, cit., p. 182, 189.
75 esrosrro, R. Immunttas, clt., p. 205.

'
) 44
76 e5POSITO, R. B(os, clt., p. 199.

45

'
\
ThRMos DA PoúnCA
CottuntD.\DC. l>!U111Do\DC, BtorouTICA
f
(,
Uma ontologia do Indivíduo, ou do sajelto, toma-se portanto lação ao tema da engenharia genética77 • O que falta nela é uma adequada
menos relevante do que o processo associado à aparição da vida Indi- reflexão sobre o papel que a biotecnologia exerce em relação à biopoUtica f
vidual e coleUva. Os esforços para imunizar-se diante da morte devem contemporânea. A descoberta do paradigma imunitário nos permite fixar f
dar a precedência a estratégias de promoção de novas formas de indivi- o ponto de possível intersecção entre a perspectiva biopolítica e a incer-
(
duação. A ênfase abibuída a estas últimas permite a Bsposlto sustentar teza ética que envolve a biotecnologia. Antes de avaliar o que a reflexão
que o sajelto é o Indivíduo que se autoproduz Individuando-se, que é o de esposlto pode oferecer à discussão sobre esta última, é necessário t
mesmo que dizer que o Indivíduo não pode ser definido fora da relação introduzir o contexto da polêmica gerada em tomo do ensaio de SloterdUk
f
com aqueles com os quaJs compartilha uma experiência de vida. Isso vale intitulado Regras para o parque humano: wna resposta à carta de Heideg-
(
também para o coletivo, que não é mais visto como a neutralização do ger sobre o hwnanismo. Incluída agora em um livro com o sintomático
Individual, mas principalmente como iam mais elaborado processo de in- título Ainda não fomos salvos, a reflexão de SloterdUk sobre a biotecno- {
dividuação. Ao invés de fechar o blos sobre si mesmo, Esposito imagina logia gira em torno da crítica do humanismo, contida na famosa carta de (·
uma sua modalidade que privilegie as condições em que a vida, expressa 1946 de Heidegger78 • A dívida de SloterdUk em relação a este último vale
em formas diferentes, tende a individuar-se. Não existe vida que não tenha certamente para explicar algumas das reações negativas manifestadas na t
nascido, e, portanto, que não esttja já inscrita originalmente no horizonte Alemanha em mérito ao desastrado título O parque humano, caracteriza- (
do blos. ~ modo ele reposiciona este último como vida comum a do, para alguns, pela semântica tanatopolítica nazista. Sete anos após sua (
todos os seres: não através da noção de um corpo coletivo - destinado publicação o ensaio perturba ainda, mas por razões diferentes das iniciais;
(
a desempenhar uma função imunitária - mas principalmente mediante referem-se à reconfiguração, realizada por Sloterdijk, da relação meta-
aquele coqjunto de conexões que foi definido com a expressão "carne do fisica entre homem e animal como o único Instrumento disponível para (
mundo". As páginas que dedica a f'rancis Bacon são significativas a esse construir uma vida "humana". De modo significativo a análise de Sloterdijk (·
respeito, no senUdo de que ele vê nos seus quadros não somente urna sobre o humanismo e o seu entusiástico apolo à bioengenharia se abre
{
inversão da prática tanatopolíUca nazista de animalização do homem, mas com uma boa dose de teoria dos meios de comunicação, não muito dis-
também uma abertura à carne, expressiva da mais ampla condição huma- tante daquela proposta por Luhmann e Kittel, embora jamais abertamente (,
na. Aliás, mais do que uma abertura à categoria de carne,.dever-se-ia falar reconhecida como tal. Basicamente o filósofo alemão liga o humanismo (
de um não pertencimento ou de um co-pertencimento que dê conta do a uma época marcada pelo predomínio do livro e essencialmente culmi-
(
fato de que aquilo que é dlferente não está hermeticamente fechado em nada no séc. XIX. antes de começar a declinar no séc. ~ quando então
si mesmo, mas permanece em contato com o fora. o que, na realidade, outros meios (rádio, televisão e mídias digitais) começaram a dominar os '{
não se refere tanto a uma exteriorização do corpo quanto a uma flexão intercâmbios comunicativos. Seguindo uma série de outros teóricos que (
que lhe impede uma absoluta Imanência em relação a si mesmo. é com · defenderam a capacidade da carta, e do seu formato mais extenso no livro,
base nesse pressuposto que algo como uma blopolíUca afirmativa começa de criar uma relação de amizade entre um autor e seus leitores, Sloterdijk
(
a ser imaginável. identifica uma relação entre o livro como mensagem postal - e aqui a sua (
dívida a Derrlda é evidente - e aqueles que se tornaram membros de uma f1
comunidade, graças à palavra escrita. Na medida em que torna possíveis
A BIOPOL(TJCA DA BIOT.OCNOLOQIA tais conexões, o livro está, para Sloterdijk, inapelavelmente vinculado ao l'
humanismo. Ele - naturalmente não todo livro, mas aqueles cajo valor (·
· O que nos diz a abertura ao blos, como categoria política com-
(
partilhada pela espécie humana, sobre aquele outro âmbito problemático 77 Um úUI resumo do debate é fornecido pelo ensaio de MSCHf:R, A. fllrtlng wlth
hoje tão decisivo como é a biotecnologia? essa questão está ausente da fasclsm: the SloterdUk debate. Radical PhUosophy, n. 9, p. 20--'5,Jan./fev. 2000.
78 SLOTeRDUK. P. Non slamo ancora staU satuaU: Saggl dopo Heidegger. Mlla-
l
polêmlca entre Peler SloterdUk e Jürgen Habermas (ou os seus porta-vo- no: Bomplanl, 2004. l"UbUcação no Brasil: SLOreRDIJK. P. Regras para o parque humano: uma
resposta à Carta de Heidegger sobre o humanismo. lradutor: Jo.cié Oscar de Almeida Marques. l·
zes), depois continuada na réplica de Ronald Dworkln a Habermas, em re- Sáo Paulo: estação Liberdade, 2000.

46 47 (
t'
<
j)

])
Roel!.RTO &POSrro
) Tr.N1os DA PoúnCA
eo.rur.1Do\DII, l11U111DADf., BIOf'0IJncA

) filosófico é determinado pelo número dos contatos amigáveis entre aumr parece repropor, pelo menos inicialmente, a distância, se não o abismo

'
e leitor, entre filósofo e discípulo - indica o modo ou, se preferirmos, a i escavado por Heidegger, entre o homem ..portador de mundo· e o animal
programação através da qual um ser humano se torna tal. Segundo Sloter-
l dijk, o humano literalmente incorpora a conexão humanizante entre autor
"'pobre de mundo·. Como o leitor recordará, estas definições do homem e
do animal são as categorias através das quais Heidegger critica o huma-
l e leitor. A troca de cartas - ele continua - é o meio inibidor por excelência, . nlsmo por ter subestimado o humano no homem, visto que os humanistas
) visto que o seu objetivo prevalente, ao criar essas conexões, é precisa- repetem incessantemente a definição aristotélica do homem como ..ani-
mente o de obstacular aquilo que é sempre possível para o emitente ou o
) mal mdonaJ·. Heidegger, por seu lado, assume a noção de mundo como
leitor, ou stja, tornar-se desinibido em relação à formação humana ou dei- o· horizonte em que o homem se distingue essencialmente do animal. O
) xar-se contagiar por outros meios que bestializam o homem, reforçando mundo não existe para o animal, mas define precisamente o horizonte em
} a sua natureza fundamentalmente animal. De maneira ao mesmo tempo que o homem dá sentido à própria existência. Mas enquanto se esperaria
iluminante e inquietante, a análise de Sloterdijk retorna à afirmada ani-
) que Heidegger se opusesse aos atuais experimentos de engenharia gené-
malidade do homem, mantida latente pela capacidade - inerente ao envto tica, visto que eles ameaçam elidir a Insuperável distância entre homem
) postal - de humanizá-lo, impedindo que a sua natureza animal capture e animal, Sloterdljk parece querer ultrapassar tanto Heidegger quanto o
) e assim domine o seu lado racional. Deixando, por enquanto, de lado as humanismo incapaz de confrontar-se com a bioengenharia, a ponto de di-
possíveis objeções à leitura melancólica que Sloterdijk faz do humanismo
) minuir o papel dos meios Inibidores e desinibidores. Com uma complexa
como forma de troca de cartas, o que importa para uma comparação com

,
) a biopolítica de Esposito é o papel que ele atribui a tal relação epistolar
para a produção do humano. O filósofo alemão vê o humanismo como o
modo através do qual um meio literário, na realidade o único meio capaz
série de passagens ele se afasta do livro como programação do homem
por melo da palavra escrita, através da categoria de "'domestfcação·. O ato
de domesticar o homem - um processo analisado em detalhes em um ou-
) tro ensaio ligado a Regras, intitulado justamente A domesticaç4o do ser:
de fazê-lo, desperta o homem no animal humano. A importância de en- o desdobrar-se da Uchtung - tem uma longa história, não simplesmente
) tender a literatura como programação da vontade do homem - notamos, ligada ao melo Inibidor da leitura, mas também à evolução e à ruptura
) de passagem, que para Sloterdijk a filosofia não é somente um gênero de epocal entre sapiens sem morada fixa e homo saplens, que representa o
) literatura, mas o mais importante para a criação do homem - reside preci- primeiro momento de uma vida domesticada. Defendendo que o procedi-
samente em enfraquecer toda leitura essencialista do humano como algo mento da bioengenharia é somente um pouco diferente da domesticação
) preexistente, já dado prescindindo da relação com o tempo e com a dife- d~ homo sapiens, SloterdUk insiste no fato de que ela permite retornar ao
} rença. Com a divisão dos meios entre aqueles que humanizam e os que primeiro momento da evolução, de modo que uma verdadeira figura de
desumanizam, Sloterdijk põe as premissas para associar o verbo alemão
) pós-humano possa emergir: "pós-humano" no sentido de que o humano
Lesen (ler) ao verbo Auslesen (selecionar). A leitura, ou a lição, toma-se, não é mais programado através do melo da troca de cartas, destinado a
} desse modo, uma poderosa forma de selecionar. Através dela certas partes criar vínculos de amizade entre os filósofos e os seus leitores ao longo dos
) de um coletivo (poderíamos usar o termo "comunidade") se tornam mais séculos, mas sim através de uma engenharia genética e biológica que não
humanas. Com o advento da engenharia genética, de todo modo, não se
} exigirá mais uma expedição epistolar para manter sob controle o animal
requer mais que o humano stja programado indiretamente mediante a que existe em nós. Daí a ênfase conferida à clonagem da ovelha Daisy em
} leitura, mas diretamente pelo mapa genético do homem. A diferenc;à entre 1997, porque naquele episódio encontramos o ponto de passagem de
) o ato de ler e esse gênero de intervenção direta, sob esta ótica, é somente uma antropologia do homem a uma antropotécnica já prefigurada para o
de grau e não de substância.
) homo saplens há milhares de anos.
O segundo ponto sobre o qual é necessário debruçar-se diz res- A que se refere o enigmático "parque humano" no título do en-
) peito à adoção, por parte de Sloterdijk, da carta de Heidegger, visto que saio? Não é por acaso que ele representa uma referência a Platão e aos
) ela tem um lugar relevante também na elaboração de Esposito. Sloterdijk trechos do Polltico e da República em que a comunidade humana é repre-

t
) 48 49
ThRMOS DA POLITICA
Co-tun1Mor:, ltwNIMDr;, B1oro1-tr1CA

sentada como um jardim zoológico, uma espécie de "parque blotemático", inquietante que alguns já vislumbraram entre a teorização de Sloterdijk
ou, em linguagem mais familiar, como uma cidade que torna possível uma , sobre o pós-humanismo, ligado à gestão do parque humano, e a tanato-
política essencialmente zoo-lógica. A política para Platão (e Implicitamen- política nazista que mandou para a morte milhões de pessoas com base
te para o próprio SloterdUk, que o Interpreta em chave antl-heldeggeria- na pressuposta diferença entre aqueles que eram dignos de viver e os
na), consistirá em uma divisão de papéis para o management, justamente que não o eram. Defender a antropotecnologla como um instrumento de
como acontece em um parque. Decidir quem será o blo-manager de tal domesticação do homem através da manipulação do patrimônio genético
parque é o problema mais urgente: "Se entre os guardiões e os habitantes - algo que SloterdUk nunca afirmou explicitamente, mas que está implícito
do zoo há uma diferença de espécie, então uns seriarri tão fundamental- em seu discurso -, assim como aprovar os trechos platônicos em que se
mente diferentes dos outros a ponto de não se considerar aconselhável teoriza uma diversidade de espécies entre guardiões ou pastores e mas-
um gula eletivo, mas somente um gula sábfo"79. Uma diferença de es- sas ou rebanhos, fez com que muitos o aproximassem perigosamente à
pécies entre o guardião e os animais que estão no zoo determina quem ideologia nazista. O filósofo alemão procurou prevenir essa objeção ante-
dirigirá o parque. Tui "'gula sábio", continua SloterdUk, impõe-se sobre o cipando a (ou, menos nobremente, escondendo-se atrás da) interpretação
rebanho porque "'está mais próximo aos deuses do que aqueles confusos heideggerlana do fascismo. sabe-se que para Heidegger o fascismo foi
seres viventes que ele vigiaH80. A sua tarefa será a de determinar a -~ome- uma forma particularmente virulenta de "humanismo militante", situado
ostase" - a expressão é do autor - que pode literalmente gerar dois tipos ao lado do bolchevismo e americanismo. Ele, segundo Sloterdük, inter-
de homens: de um lado o guerreiro e do outro o leitor de cartas com uma pretou o fenômeno fascista como "a metafísica da desinibição, e talvez
inclinação ftlosõfica. é ao segundo tipo, naturalmente, que caberá decidir também uma figura desinibidora da metafisica", visto que para ele "o fas-
o destino da comunidade humana através do sábio blo-management elo cismo era a síntese de humanismo e bestialismo, ou saja, a paradoxal
material humano do parque. Nesse ponto SloterdUk dirige-se a Nietzsche, coincidência entre inibição e desinibição"81 • Sem levar aqui em conside-
especialmente ao Nietzsche de Zarathustra e às páginas em que se fala ração as infinitas dificuldades de tal definição, o resultado estratégico que
da criação do super-homem, ou do que ele Ironicamente define como o daí deriva é evidente: interpretando o fascismo no modo em que poderia
"super-humanístico" ·crtador de um misto entre humanidade domesticada fazê-lo um teórico dos meios de comunicação para absolvê-lo da acusação
e gestão da espécie. SloterdUk se move com destreza entre Nietzsche, de estar envolvido na zoopolítica nazista, Sloterdijk perde de vista o que
Platão e, na conclusão do ensaio, a bioengenharia; mas parece inevitável seria realmente o seu modus vivendi, ou saja, a sua capacidade de combi-
que no fim da programação do humano através do meio humanístico, o nar meios humanizantes e meios desumanizantes na tentativa de construir
sábio pastor do rebanho, o guardião do zoo, se retire. Com ~ retirada um homem novo. O limite dessa perspectiva é que lhe falta uma análise
o fim da troca de cartas está ao alcance da mão, de modo que a única es- a~equada das práticas biopolfticas do nazismo para além dos meios que
trada percorrível para quem praticava o humanismo permanece a do uso ele utilizou; em síntese, a teoria mediológica empregada por Heidegger
tecnológico da engenharia- genética. o homem sábio dá lugar à versão e SloterdUk é simplesmente demasiado redutora para explicar a política
contemporânea do blo-manager, biólogo ou geneticista, que detennina a biológica do nazismo.
justa mistura entre humano e bestial antes evocada. A Impressão preva- Muito mais deveria ser dito para enquadrar a posição de Sloter-
lente que a conclusão do ensaio deixa é a de uma certa euforia em relação dljk sobre bioantropologla e biopolítica - uma mais ampla discussão de-
à biotecnologia, mas, Indo além, de uma espécie de melancolia pelo cre- veria certamente se estender à sua longa resposta aos críticos em relação
púsculo do humanismo. à Domesticação do ser, mas a síntese proposta é detalhada o bastante
um último ponto exige um esclarecimento, antes de propor u~a para nos permitir identificar alguns pontos de contato com Esposito. Co-
comparação com a reflexão de esposlto. 'lrata-se daquela assonância tão meçamos por notar que ambos compartilham o pressuposto da Carta de
Heidegger, ou saja, o do "fim da filosofia", isto é, da sua transformação em

79 sLQTf.KDUK. P. ~gole per U parco umano, p. 262.


80 ld, 81 lbld .• p. 252.

50 51
j
r
l
,
l Ro8CRTO ~POSITO

algo que concerne o que chamamos a existência do mundo. Para SloterdUI<


último, tomando _superável a distância entre animal e homem através da
l esse movimento da filosofia externo à troca de cartas faz de Heidegger não
engenharia genética, Esposlto utiliza a Carta não para autorizar a blotec- ·
) somente o mais formidável crítico do humanismo, mas - o que mais conta
nologla na época em que declinam os meios humanísticos, mas sim para
- um predecessor privilegiado para um certo tipo de pensamento que está
l se formando hoje sobre a relação entre animal e homem. Assim:
descerrar uma dlmen~o blopolftlca cajas conotações políticas formem
um todo unitário com o ser mesmo da própria vida. Essa diferença assu-
)
; me contornos mais claros se remetermos à distinção heldeggeriana entre
l Se quiséssemos ter falado mais uma vez, apesar das advertências de
mundo e ambiente. Para SloterdUk o mundo ~enota aquilo que separa o
Heidegger, em termos antropológicos, poderíamos então ter definido
l homem do animal; enquanto o animal está restrito ao próprio ambiente,
os homens das várias épocas históricas como animais, alguns dos quais
são capazes de ler e escrever, enquanto os outros não. Daí há sohiente p ser humano é o único que pode dele escapar, o único que é capaz de
l um passo - trabalhoso, é verdade - para chegar à tese segundo a qual "Irromper na dimensão ontológica sem Jaula, para a qual não consegui-
) os homens são animais, alguns dos quais criam seus semelhantes, en- mos encontrar na linguagem humana uma _caracterização melhor do que
quanto outros são criados. 82
) a palavra mais banal[...], ou st;ja, a expressão 'mundo',.., Nesse sentido

,
)
Segundo Sloterdijk, com o desenvolvimento das antropotécni-
cas o homem está finalmente emergindo em uma forma propriamente
ele entende o termo "mundo" mais ou menos como um ambiente sem
limites. Isso ·justifica o fato de que SloterdUk aprove as teses de Uexkilll,
e em particular de Rudolf Bllz, quando este defende que "nós não somos
) humana que o resgata de uma temporada obscura de tipo animal. 1àm- · animais, mas habitamos, de certo modo, em um animal que vive em co-
bém para Esposito a carta sobre o humanismo marca uma reviravolta cru~ mum com os seus semelhantes, compartilhando os objetos" (100)~. A
)
cial em um momento em que o pós-humanismo avança. e também para preeminência é conferida à vida humana associada à animal, enquanto
) ele a questão decisiva diz respeito à rejeição heideggeriana de submeter a zoé se toma o nome do animal que vive com os seus semelhantes. es-
) a primária e concreta experiência da vida às categorias teórir..as ligadas posito, ao contrário, não está Interessado em circunscrever o âmbito da
à transcendência do sltjeito de consciência. Embora para Esposito con- vida humana em relação ao reino animal, mas principalmente em atribuir
)
te mais um outro termo de Heidegger, "faktisches Leben'", a "facticidade um mais amplo contexto blopolftico à Carta de Heidegger. ele o faz da
) da vida", como pode se chamar uma vida que não responde a nenhuma seguinte maneira: considerando o mundo não somente como sajelto, mas
) instância externa: "visto que não se insere em nenhum desenho filosófico também como.objeto da vida. Assim "se o fenômeno do viver se determina
pré-constituído, isso quer dizer que a ela e somente a ela compete a pró- sempre como um viver ·em·, 'por' ou •com' algo que possamos Indicar com
) 83
pria decisão de existência" ; uma vida ou uma existência que decide por o termo 'mundo', devemos concluir que ·o mundo é a categoria funda-
} si e para si o próprio modo de ser. mental do sentido de conteúdo Inscrito no fenõmerio vida'. O mundo não
} é justamente aqui, porém, que a diferença entre os dois filóso- é o que contém, ou o ambiente clrcunstante, mas o conteúdo do sentido
fos emerge com mais clareza. enquanto para SloterdUk a vida até agora foi :da ,vldan&8. Pensar ao mesmo tempo o mundo e a vida é possível se reco-
)
essencialmente zoé, uma zoé voltada à domesticação da própria natureza nhecermos que esta última é sempre um viver ·em'", "'por" ou "com· algu-
) animal, para esposito a Carta de Heidegger abre principalmente a possi- .ma coisa. São estas três preposições que fazem do mundo o que confere
) bilidade de pensar uma vida, justamente aquela faktisches Leben, através sentido à vida. O mundo é o horizonte em que toda vida é desde sempre
da capacidade autoimanente de se fazer não somente zoé, mas também blos, em que o blos é compreendido fundamentalmente como uma forma
)
bios, ou stja, vida "intrinsecamente política", e portanto subtraída a qual- poUtlca de vida. Ele dá nome ao horizonte ontológico em que todas as for-
) quer coação metafisica. Se SloterdUk força o pensamento de Heidegger mas de vida estão Inscritas. Enquanto SloterdUk orienta a vida humana em
em uma direção que pode parecer contrária às próprias intenções deste
J
84 SLOTeRDUK. P. La domesUcazlone dell'essere. ln: . Non stamo ancora
) 82 lbid., p. 259. statl salvatl, clL, p. 128. --

,
J
52
83 l':SPOSITO. R. B(os, cit., p. 166. 85 ld.
86 ESPOSrró, R. B(os, clt•• p. 166-167.

53
Í.;

ThRHos DA PoLlnCA {
CoMUNlO,\l)f., IMUNU>Aot:, Biorot.iTICA

direção ao seu outro animal, de modo a fazer emergir entre suas fronteiras ao frio, ao calor e à inoculação de germes patógenos", Esposito nota iro-
t
internas um espaço no qual realizar a domesticação do animal em forma nicamente que "se os Internos nos campos de extermínio tivessem sido (
humana, Esposlto escolhe alargar aqullo que antes era associado somente considerados somente animais. teriam se salvadoH88 • A ideia de que se ha- f'
com o humano, definido justamente como "mundo", às outras formas de via transformado o campo de concentração em uma jaula de animais não
vida que vivem ·em", "por# ou ·com" algo outro além de si. Embora ele não consegue dar conta totalmente do que os nazistas efetivamente fizeram.
f
forneça muitos detalhes a respeito, a sua tese Implícita é a de que todas Isso sugere que aqueles que continuam a designar o ser humano como f,i
as formas de vida - não limitadas aos animais, mas incluindo as vegetais "animal racional", pensando que assim se opõem à Inflexão negativa da {
- sajam uma parte do blos, na medida em que seús ambientes comparti- tanatopolítica contemporânea, não podem ter êxito: pelo menos enquanto
(
lham um traço comum com uma outra vida. conUnuarem, justamente com<:> faz Sloterdijk, a considerar a vida como
t essa extensão do bios a todas as formas de vida; sem se Im- uma zoé animalizada em lugar de um bios que inclua também a zoé. (
portar com sua qualificação, que reduz as fronteiras de separação entre Além do maisJ deveria ser claro que Esposito remete a algumas {
mundo e ambiente, marcando um outro desvio hermenêutico de Esposlto das mesmas fontes de Sloterdljk, especialmente Platão e Nietzsche, em-
(
em relação a SloterdUk (e ao próprio Heidegger). Segundo o-autor italiano bora as suas conclusões sejam menos nitidamente orientadas a defender
a acentuada cisão deste último entre homem e animal - motivo pelo qual as razões da biotecnologia. A propósito disso, eu gostaria de chamar a {
o humano "é precisamente o não animal, assim como o animal é o vivente atenção do leitor para as páginas em que Esposilo reconstrói o léxico {
não humano" - é exatamente o que "vem separar ~da vez mais claramen- tanatopolítico com o qual um certo número de antropólogos e de propa-
(
te a sua mosooa do horizonte do bios"º7 • Para Esposlto a causa disso é o gandistas nazistas procurou associar os passos de Platão sobre a geração
fato de Heidegger não ter retornado à categoria de "vida fátlcau. o resul- e a educação do homem à política genocida de Hitler. O grande número de {
tado, paradoxalmente. é que, ao fixar a separação entre homem e animal, tratados surgidos durante os doze anos do Reich que retratavam o F'ührer (
Heidegger arrisca-se a produzir uma outra forma de humanismo, preci- como uma espécie de "guardião# platônico da raça germânica deveria nos
induzir a perguntar se as menções de Sloterdük a uma admissão antro-
{
samente aquele humanismo que ele mesmo submete à crítica na Carta.
Esse uso e abuso de Heidegger aparecem em uma luz diferente quando _pológlca do patrimônio genético humano, ou simplesmente à engenharia ([
a análise se refere à biopolíUca nazista. A ausência de uma reflexão de genética como maneira para humanizar o animal no homem, não acabam (
SloterdUk sobre esta impressiona, quando comparada à detalhada análise por emular perigosamente o catastrófico procedimento seletivo voltado a
de Csposito em Btos. Enquanto o primeiro fala dos nazistas somente em proteger e reforçar uma forma de vida através da morte de outras. Em pou-
{
termos vitalistlcos, como daqueles que integraram meios humanizantes e cas palavras, devemos estar muito atentos - é o que, no fundo, quer nos (
meios bestializantes na sua busca do homem novo (contrapondo a esses dizer Esposito - ao utilizar Platão em função da bioengenharia, justamente (
o pathos anUvitalísUco de Heidegger), Esposlto considera essa caracteri- recordando como ele foi usado na Alemanha nazista. A mesma atenção
zação demasiado redutora para a biopolíUca nazista e, portanto, também deve ser reservada à obra de Nietzsché. Tombém Esposito reconhece a

para a contemporânea. Os já mencionados dispositivos tanatopolíticos !=fo dimensão inquietante da biopolítica nletzschiana, o seu convite à defesa (,
nazismo exigem para ele uma obra bem diferente de desconstrução. Des- do corpo diante dos germes patógenos que o expõem à degeneração - e {
se ponto de vista a animalização do humano, por parte dos nazistas, não por esse lado certamente concorda com a interpretação de Sloterdijk. Mas
parece a questão decisiva. Aliás, Esposlto levanta uma sólida objeção em Esposlto mostra também um outro Nietzsche, menos inclinado à criação e
{
relação àqueles que querem ver na blocracia hltlerlana o deslocamento do mais atento a enfatizar os benefícios da degeneração. Este Nietzsche, ele {,
animal para_ o espaço um tempo habitado pelo homem. Discutindo sobre mesmo convalescente, está interessado nos benefícios da doença. Segun-
{
uma lei de 1933. em que urna das primeiras circulares nazistas '"proibia do a leitura de Esposlto "se a saúde não é mais separável da doença, se a
toda crueldade em relação aos animais, em particular no que diz respeito doença faz parte da saúde, não será possível separar o corpo individual e t

54
87
'
lbld., p. 170-171. 88 lbld., p. 159.

55
,.
{

(1

'
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, 1

r
-, Roe~RTO EsPOSrro
1

l social segundo linhas intransponíveis de tipo profilático e hierárqulconn.


l Impedir a degeneração e a doença torna impossível criar as condições
ideia de que, com a manipulação genética da espécie humana, o desen-
voMmento de alguns indMduos seria privado de um crescimento espontâ-
l para o desenvolvimento e o fortalecimento da vida. este Nietzsche mais
neo: saber que outros são responsáveis por quem ou o que são altera não
aberto ao comum deveria ser lido junto com o Nietzsche de Zarathustra
l para contrastar, ou ao menos complicar, o uso monolítico do filósofo em
somente o ~odo como eles se veem e as narrações que elaboram sobre
) defesa das intervenções biotecnológicas90• as próprias vidas, mas também a maneira como outros os veem (de certo
modo como privilegiados, como subtraídos à casualidade natural a que os
l homens comuns são normalmente submetidos). Desse modo, se a alguns
l tfABBRMAS, COMUNIDADE B BIOTÉCNICA membros fosse concedido Intervir geneticamente no desenvoMmento de
outros, o pedestal da sociedade seria irreparavelmente danificado.
l
VIStas as notáveis divergências das teses de SloterdUk em re- Certamente a análise de esposito tem algo em comum com
)
lação às de Esposlto, poderíamos esperar uma contiguidade deste últi- . o diagnóstico pessimista de Habermas sobre o regime eugenético libe-
) ral. A escolha Individual sobre a futura programação genética parece não
mo em relação à posição de Habermas. O fato de que não stja assim
) requer algumas explicações. Partimos do bem conhecido ponto de vista multo diferente do modo pelo qual, para Esposito, os lndMduos tentam
de Habermas, segundo o qual a programação genética, que permite aos Imunizar-se dos riscos da comunidade. Mas o filósofo Italiano se afasta
)
pais modificar a seu bel prazer as características dos filhos nascituros, de Habermas pelo menos por dois aspectos. Primeiramente colocando
) em foco o aspecto Imunitário da comunidade, ele desconstrói a concep-
põe em risco o futuro da natureza humana. Delineando a posslbilldade
) de uma transformação das relações interpessoais, Habermas argumenta ção de Habennas de uma comunidade transcendental estruturada_ com
que a nossa autocompreensão como membros da espécie humana serlà base na transparência da comunicação recíproca. Para esposlto nao há
)
alterada no momento em que uma pessoa, ou várias pessoas, pudessem um momento original da autocompreensão lndMdual a partir do qual os
) sajeitos formam uma comunidade, mas sim um mecanismo Imunitário
manipular a dotação genética da vida de uma outra. A própria base da so~
) ciedade livre oscilaria. E ele acrescenta: "esse tipo de dependência social que opera no selo da própria comunidade. cada um está unido ao outro
[ ... ) vem formar um corpo estranho nas recíprocas e simétricas relações pela falta que o subtrai à própria Identidade na forma do munus recípro-
)
de reconhecimento caracterizantes de uma comunidade moral e jurídica co. Em comum há somente "o nadan, como Esposlto Intitula a Introdução
) 91 de Communitas, e portanto nenhuma autocompreensão que possa unir
de pessoas livres e iguais" • A referência a corpos estranhos na definição
) dos novos protocolos manifesta claramente a presença em Habermas de as irredutíveis diferenças entre os sqjeltos. Base pressuposto, porém, não
um léxico imunitário. Além disso, tem-se a impressão de que para ele as coincide com o risco, temido por Haberrnas, da alteração biotecnológica
)
relações simétricas entre os membros de um grupo são equiparadas aos da espécie. Isso não Impede que também Esposlto critique asperamente o
} léxico biopolítlco em que estão Inscritas as práticas da genética neoliberal.
fundamentos de uma comunidade qualificada em sentido moral. Dir-se-ia,
) em síntese, que ele pressupõe uma origem não problemática da comuni-. Embora em Blos ele não assuma esta última como objeto específico de
dade como causa e ao mesmo tempo efeito da "natureza humana". Daí a critica_ como fará em Turcelra pessoa (cqja análise fica fora desta Introdu-
j
ção, escrita antes de sua publicação) - certamente para ele a programação
} genética não pode ser separada da história da blopolítlca Imunitária do
1\\ 89 lbld., p. 109. séc. XX. No Intervencionismo blogenético - sempre a melo caminho entre
:, 90 Dito Isso, por~m, é preciso acrescentar que nos seus mais recentes trabalhos
SloterdUk apresenta um modelo de Imunologia, pensado através da categoria de "esfera", que Intenção terapêutica e d~o de melhoramento - se determina o domínio
) tem vários pontos de contiguidade com a perspectiva de Esposlto. V~a-se especialmente
•·. capítulo Intitulado 1msformazJone lmmunologlca: verso "socletà" dalle paretJ sown. Jn: •n
0 da esfera privada sobre questões de interesse público. Como Esposlto de-
~ mondo dentro U capltale. Roma: Melteml, 2006, p. 197-205. Além disso, no terceiro volÜmede monstra na sua reconstrução histórica, esse resultado foi de certo modo
Y SphJlren, Schãwne (Frankfurt a. Maln: Suhrkamp, 2003),Justamente no capítulo sobre a emer-
1\ gêncla dos sistemas Imunitários, SloterdUk refere-se explicitamente à Jmmw1ltas de Esposlto. antecipado na eugenétlca americana do Início de séc. XX. A verdade é
J 91 HABeRMAS, J. Il futuro delta natura wnana: 1 rlschl dl una genetlca llberate. que, no reino da biotecnologia e da engenharia genética, a polftica con-
) Organizado por: L. Ceppa. lbrlno: elnaudl, 2002, p. 66.

) 56
57
TcRMOS DA PoLITICA
CoHun101\0r., IHunu:>,~or., B1oroLtrtCA

Unua a ser orientada pelo sonho da perfeição biológica. Mas isso não é Aqui Bsposito ressalta implicitamente a assonância entre a lin•
tudo: a genética neoliberal parece frequentemente combinar-se com os guagem neoliberal e a tanatopolítlca - não certamente a repetição, ou o
três procedimentos Imunitários da tanatopolítlca nazista. o enorme pres- retomo, do nazlsmo,·mas sua dívida comum com os termos da moderna
tigio de que gozam hoje os biólogos. aos quais é confiada a esperança biopolítlca imunitária.
de alongar a duração da vida, demonstra-nos como a sua normatlzação
tem crescido de maneira exponencial. como testemunha o exemplo. com
o qual e&poslto abre Btos. da criança francesa nascida com sérias lesões . DwoRKIN e A NORMA De VIDA
genéUcas. e que já adulta citou em Juízo o médico da mãe, pela falta de
diagnóstico sobre sua doença. Pode-se facilmente imaginar outros casos A perspicácia do ponto de vista aberto por Esposito sobre o li-
do gênero, em que a falta de uma Intervenção genética poderia levar a beralismo nos permite situar a sua posição também em relação ao pensa-
comportamentos análogos em relação a pais e médicos. Mas também o mento de Ronald Dworkin sobre o aborto, a eutanásia e a biotecnologia. O
segundo procedimento imunitário da incorporação compulsória por parte que vem à tona é uma rigorosa desconstrução das características biopo-
do Estado pode ser vislumbrado em uma situação em que os corpos de líticas e Imunitárias de muitos dos termos por ele empregados. Vtjamos
uma próxima geração de Indivíduos geneticamente modificados poderiam como: em Domlnlo da vida, de 1994, Dworkin, partindo das conotações
ser considerados pertencentes àqueles que decidiram sobre sua futura sacras e invioláveis atribuídas à vida humana, empenha-se em desmontar
conformação. Um patrimônio hereditário baseado na eliminação dos ele- · qualquer argumento voltado a atribuir ao feto os direitos intrínsecos da
mentos mais fracos poderia ser determinado no Ocidente. não mais atra- pessoa. A sua tese nasce da recondução do sacro ao âmbito da criação
vés da esterlllzaçáo e da eutanásia forçada, mas mediante a seleção prévia artística:
das características destjadas. Nesse sentido, se durante o nazismo se dizia
que os corpos dos cidadãos alemães· pertenciam ao Fahrer, a genética O nosso especial Interesse pela arte e pela cultura reflete a alta conta
liberal os entrega ao me~do e à ciência como os lugares em que pode em que temos a criação artística, e o nosso especial interesse pela SO·
ser medido seu valor biogenético. Assim também a supressão antecipada brevivêncla das espécies animais exprime um respeito paralelo pelo que
do nascimento. hoje normalmente efetuada nas situações em que o risco a natureza, entendida em termos divinos ou seculares, produziu. Bstas
duas bases do sacro se sobrepõem no caso da sobrevivência da nos•
de defeito genético é sensível. pode levar a Imaginar um progressivo desa-
sa espécie, porque nós consideramos crucial sobreviver não somente
parecimento da gravidez. Tudo Isso. naturalmente. não signlftca que para biologicamente, mas também culturalmente, que a nossa espécie não
Bsposlto a tanatopolítica nazista e a contemporânea genética liberal s~ain somente viva, mas prospere.93
a mesma coisa. No seu ensaio. publicado mais adiante. sobre totalitarismo
e blopolítlca. ele opõe uma série de objeções a toda iridevlda sobreposi-
Naturalmente a vida sacra defendida por Dworkin não é o bios
ção entre nazismo e liberalismo:
enquanto tal, mas o que ele chama vida subjetiva, o "valor pessoal que
temos em mente quando dizemos que normalmente a vida é a coisa mais
Se para o nazismo o homem é o próprio corpo, e somente isso, para
Importante que ele, ou ela, possui", quer dizer a vida nua. Ora, justamente
o liberalismo, a parUr de Locke, o homem tem, possui o próprio cor-
tal indistinção entre vida nua e bios constitui o motivo da sua incapacidade
po - e portanto pode usá-lo, transformá-lo, vendê-lo como um esaavo
interno. Nesse sentido, o liberalismo - naturalmente falo das categorias de pensar a vida nas suas diferentes formas. Não deve surpreender que o
conceituais - Inverte a perspectiva nazista, transferindo a propriedade relevo por ele éonferido à criação divina e artística reapareça na mais re-
do corpo do Bstado ao Indivíduo, mas no âmbito Interno do mesmo cente defesa da biotecnologia. No ensaio intitulado Playing Ood, Dworkin
léxico blopoUtlco.93

95 DWORKJN, R. Domlnlo da vida: aborto, eutanásia e liberdades Individuais. na-


dutor: Jefferson Lulz Camargo. 860 Paulo: Martins fontes, 2003. Cd. dL: U{e's Domlnlon, dt., p.
92 ~POSITO. R. 'R>taUtartsmo ou blopolillca, d. p. 191 et seq.
'76-77.

58
59
1
1

se ba le com convicção a favor do que se config u ra decidida m ente co m o ~


o u ao pré-individua l p erma n ecerá b loqueada e n q uanto a vida huma na fo r
um p rogra m a eu genélico n eolibe ral, embora coberto pelo uso do termo
entendida em termos d e s ujeito indivldual 06• A questão a se colocar é se
"individualism~ ético": "Não há n ad a d e errad o _ e le escreve_ n a ambição
tal estratégia represen ta um e fe tívo salto d e q u alida de e m re lação às a n -
de _torna ~ as vidas d as futuras gerações d e seres huma n os m a is longas e
g ú s tias d o p aradigma imunitário. A resp osta a ta l questão d e terminará o
mais ch eias d ~ talento, e, p o r tanto, m a is r ealizadas". 'i'\o con tr á r io _ pros-
destino d aquilo que pode se to rnar u m a n ova bio política afirmativa.
segue -, se b rincar d e ser De us s ignifica n os ba termos p a ra melh o rar a
no~sa esp écie, e p roj etar consciente m ente o m e lho ra m ento d o que De us,
deli_bera d a_me~te, o u a na tureza, às cegas, desen volve u d esd e sempre, UM B/0S FORTALECIDO?
então o p nme1ro princípio d o individua lis m o é tico p r escreve essa ba talha,
e o s~gundo veta, na a usência de uma clara evidê n cia d e p erigo, que se Co m o p o demos procura r inverte r a a tua l inflexão tan ato po lítica
lente impedir os cientistas e os m édicos que pre tende m realizá-la"94_ E, d a bio técnica e d a biopo lítica? A r esposta ú l tima de Esposito é con st itu-
por o u lro lad o, se a ên fase q u e e le concede à vida humana é extraída d a ída justamente p e la te n tativa de re pe n sar a re lação entre norma e vida
noção d e criação, o "Playing Go d " d o título não p o d e ser separa d o d e uma e m o p osição à sem ântica do nazis m o, o u saja, d e r ej eitar por prin cíp io
clara o p ção d e cará ter b io tecno lógico. Que m não estaria de acordo com to d a refe rê ncia a bsoluta a uma n o rma funda m e n tal d a qual todas as o u -
o previsível d esej o do indivíduo ainda não nascido d e vi ver uma vida mais tras d evem necessar ia m e nte d erivar. E isso porque " to d o com portam ento
longa e d e m aior s ucesso?
tem d entro d e si a n o rma q ue o leva a ser, interna m ente à m a is ger a l
Tombém nesse caso Esposi to nos p ermite ver o ponto cego da ordem n atural. Sendo o s ind ivíduos múl tiplos co m o o s infini tos modos d a
p roposta d e Dworkin. Apostando na inviolabilida d e d a vida humana indivi- substânc ia, isso que r dizer que também as n o rmas d everão ser mul tipli-
dua l, es te não alribui o jus to p eso à s ingularidad e d e cad a vida . Enquanto cadas p elo número cor r espondente',g7 • Uma vez que a no ção d e indivíduo
~ ~ntiver a ênfase no ind ivíduo e e m o utras fig uras trad icio nais de subje- tenha s ido distinguid a d a d e s ujeito individua l e ligada ao processo d e
tividad ~, a s ua con cepção p ermanecerá inutilizável p ara uma bio política indiv iduação d e cad a ser vivente, po d e re m os n os a te r à produção d e uma
a firma tiva. E o que é pior, nesse esque m a de raciocínio o individua lis mo mul tip licid ad e d e normas correspondentes à sing ularidade d e cad a vida.
ético facilmente se torna uma norma que tra n scende a vida justamente na o indivíduo n ão será m a is visto simplesm ente como o luga r em que um
medida em q ue a confina n os conto rnos fec hados de um s uje ito e d e um prece d ente program a gen ético é executado, m as como o ponto d e inte r -
corpo ind ividua l. Desse m o d o, acaba-se por imunizar a comunidade da secção d e uma individuação co nsolidad a p ela interde p endência d e to d a
potência de uma forma d e v ida ao m esmo tempo impessoal e s ingular : a for m a d e v ida. Desse m o do as normas imp o stas a o s indivíduos ced e r ão
m esm a que Esposi to anco ra ao bios d a c ommunitas. Não se tra ta, neste o lug a r a nor m as in d iv idualizantes que resp eitem o fa to d e que o corpo
caso, como o é p ara Dworkin, d e um coajunto d e c idad ãos que se reco- huma no " vive e m uma in finita série d e re lações co m o s dos outros'-oº.
95
nh ecem na co munidade , m as principalmente d e uma comunida d e n ão Aqui Espos ito, como em outros lugar es, r e m e te a Spinow, p ara e labora r
o rgan i zada e m torno d e conceitos d e cida d ão e de indivíduo. Em o utras uma sem ântica, n ão m a i s imunitária . com b ase n a qua l as normas sej a m
P~lavras, o vínculo estabe lecido po r Dwo rkin entre a natureza "sacra" da ad e rentes ao m ovimento da v ida e e m que o valo r d e toda n orma est e-
bi~tecno logia e a vida n ua não dep ende som ente d o pap e l p o r e le a tri- j a ligad o à su a traduzibilidad e d e um s ist e m a ao o utro. O r esu ltad o é a
bu ido à c riação, m as tam bém d a presença d e um léx.i co conceitua i ainda d esc o nstrução d e to do s iste m a norm a tivo fixo , sej a d e r esultado tan a to-
ind i vidua lista. O p roblem a de fundo não diz resp e i to tanto à vontade d o p o lítico saja d e inspiração n eoliberal. Nã o o bstante a s ó bvias dife r en ças,
governo de alimenta r, frea r o u re gular os d esenvolvime ntos tecno ló g icos ambos o s p aradigmas pressupõem uma nítida separação entre fo rmas de
quanto ao fa to de que uma real abertura ao im p essoa l, ao tra n sindividua l · v ida e n ormas a e las a plicadas do e,"(te r io r - e p ortanto uma crítica prévia

94 DWORKIN, R. Playlng Ood . l n: Souere/gn V/rtue, cll., p. 452. 96 D WO RKIN, R. Playing Ood , clt., p . 4 52.
95 DWORKIN, íl. liberal Communlty, p. 227. 97 ~POSITO, R. B(os, p. 206.
98 ld.
60
61
T~,u,,os DII Pocrnc.,.
CoHw110\0C, l ttUr,10,.or:, B1oroú1K.J1

da dive rs idade portadora d e contágio09 • A ê nfase a tribuída à difere nça (que m ente aqu e la que p ermite p en sar a vida a través d e todas as suas manifes-

não significa d iversi dade radical) nas páyinas finais de Bios está ligada à . tações dentro de u m único h orizonte d e sen t id o. Não h á zoé que possa ser

pe rsp ectiva da m u dan ça, que Esposito vê não som ente com o p rerrogativa separada d o bíos, v isto que " toda v ida é fo rma de vida e to d a forma deve

d a vida, m as també m como prcssupo::;to para uma radical ab e rtura e m se re laciona r à vida" 1º 2 • Aqui Esposi to interpreta a vid a s ingular de que fala

relação a um mun d o compreendido como uma inexaurível multiplic idad e D eleuze exatamente como o con trário da tan atopolíti ca nazista, com base
d e exp eri ên cias sing ula res. na qua l a lg umas vidas e ram conside rad as sem fo rma e, portan to, v io l en -

A q u estão última que parece e m e rg ir d e tal ela b o ração teórica tam e nte sep a ra d as d o b ios. O ad vento de u m a biopolítica afirmativa pode

é com o reforçar essa a b ertura do bios a o utras vidas se m d esen cad ear se d ete rminar some nte a p artir d o m o m ento em q ue se to m e consciên -

uma reação imunitária . Como j á antecipe i, a propósito do libe ra lism o d e cia d e que prejudicar uma p a rte d e v ida o u uma vid a individ ua l significa

Dworkin, trata-se d e desestabilizar a a bsoluta a utoimanência da vida indi- prejudicar toda a vida . Não há m a ior o bstáculo ao fortal ecimento d essa

vidua l a favor d e uma perspectiva ao m esm o te mpo impesso a l e s ing ula r. p ersp ectiva do que as práticas, estre itam e nte ligadas ao pa ra dig m a imuni-

A re ferê ncia ao último e nsaio d e Dele u ze, A in1an e n c ia: uma uída ... , p ermi- tário, que sep a ra m a z o é d o bios. Esp osi to pa rece co nside ra r que um novo

t e a Esposito contrapor a a b soluta ima nê ncia d a vida individua l à a bsoluta regime biopolítico possa se abrir som e nte quando uma pa rt icula r filosofia

s ing ularida d e d e " uma vida". Um passo p a rticula rmente s ignificativo d e d a vida começar a e m ergir d as d o bras d e uma o ntolo gia d a m orte , depois

De le u ze m erece m a is uma ci tação: que os dispositivos im unitários d o séc. XX tive re m alcançad o u m p o nto
de n ão r e to rno . Nesse sen tid o o sltjeito d e Bios é a vida no início do séc.
XXI, flagrad a no m o m e nto em q ue o processo de imunização que d ata d e
A vida d o Indivíduo deu lugar a uma v ida im p essoal, e todavia sin gular,
que exprim e u m puro evento lib erad o dos acidentes da vida e xterior e cinco séc ulos p a rece se abrir a u m a possível tra nsformação. Cinco sécu los
Interi or, ou seja, da su bj etividad e e d a o bjetívidad e do q ue acontece. certam e n te são longos, m as h oj e p o d er- se-ia m d eterminar cond ições que
" H omo tantum", do q ual tor!o.s têm compaixão e q u e conquista uma con sentisse m u ma n ova rearticulação e n tre b ios e zo é . O que o a utor nos
espécie d e L,eatitude. é uma h ecceld ad e, q u e n ão d er iva m a is d e uma o fe rece é a possibilidad e d e p en sar a dife re nça, e a justaposiçã o , e ntre
Individuação, m as d e uma sin gularização: vida de pura ima n ên cia, n eu-
uma " po lítica d e controle e d e n egação da v ida" e uma ou tra. con trár ia.
tra. além do b em e d o mal, pois som ente o s1.tjeito que a en carnava
em m eio às co isas a to rnav.:i boa ou má. A vida d essa individualidad e cap az d e a firmá -la'º 3 •
d esaparece em pro l da vida s ingula r im anen te a u m h omem que n ão
tem m ais no m e, e m bora não se c o nfunda c o m n enhum outro. Essê ncia
sing ular, uma v ida ... ",o VIDA COMO BIOS

Os excursus d e Esposito sobre a carne e sobre o ~ascim e n to Após ter an alisado a persp ectiva biopolítica de Esposito , e u g os-

p rocu ram fixar as cond ições n ecessárias para a a tualização d e tal h omo taria d e vol tar uma últim a vez às q u estõ es levan tadas p e la colocação d o

tantum ; imp lícita na s u a fig ura está uma "'n orm a d e v ida' que n ão s ub- paradig m a imunitá rio n o p ró p rio coração da política m o d erna . O que d eve
m eta a v ida à transcendê n cia da n o rma, m as faça d a norma o impulso p rime iramen te ser esclare cido é que a re fe rê ncia d o filósofo i talia no à co-

ima nente d a vida"'º ' · Se tivéssem o s q ue exprimir essa p ossibilidade em munidad e n ão d eve ser d e m odo a lg um confund ida com um nostálgico

te rmos bio políticos, p o d eríam os dizer q u e a categoria d e bíos é precisa- ape lo a uma n o va fo rma de comunitaris m o, seja d e tipo local, seja de tipo
g lobal. E isso não tanto p o rque a comunidad e sej a " inopera nte", como

99 Cf. o que Esposito escreve sobre Gchlcn e m Jmmunltas, cll., p . 1~: ·para
Gehlen o 'outro·, m a is do que um a lter ego , um s ,t}elto d i fe r e nte. ê a n tes d e tudo e essencial-
m e nte 'não e u·: o ' não' que permite ao e u autoldcnlllicar-se com o aqu ele que é Justam ente 102 Ibid .. p . 2 15.
1 0:} Gostaria de agradecer a Miguel Val ter por essa terminologia. Para u m a d is-
o utro em relação a o p ró prio o utro-.
cussão sobre a d i fe rença en t re blopoder e blopolítica. q ue me parece Im plíci ta na d istinção
100 D ELEUZ E. G. A lman ~ncla: uma v ida ...• l:ducaç..o 6( real ida de. n . 27. 2002.
precedente, c f. LAZZARATO. M. n ·om blopower to blopolltics. Dispon ível em : < h llp://WwW.gcnc-
E.d. Italiana: l:lmmanenza: una vlta .. . Aul -Aul , p. 271-272, 1996, cil. p. 6.
101 esr osrro. R. Bíos, cl t., p . 2H. rallon-onl ln e .org/c/fcbiopolillcs.hlm >.

63
6'2
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fiRMOS OI\ POÚTIC/\
C:0-D\Dt, brumDM>t, ~

--, defende Nancy, quanto porque uma comunidade pensada a parUr do ho:' plurlssecular, hoje talvez mais acelerado, mas nem tão diferente assim
l rizonte da communltas não pode ser dissociada do processo de imuniza- do modo como a tradição liberal desde o início se referiu às categorias
) ção. Ela não pode deixar de remeter à abertura, ou ao fechamento, das de indivíduo, propriedade e, naturalmente, liberdade. O mesmo projeto
vidas que comparUlham o munus sem jamais poder dele se apropriar de- autoconservador, agora readaptado às exigências da sociedade neoliberal,
l finitivamente. Quero dizer que, em vez de considerar tal perspectiva como revela-se não extensível a todas as formas de vida, mas inclusive baseado
} uma espécie de tradução da categoria de "inoperância" na de impossibi- na exclusão preventiva de algumas delas em razão de determinados cál-
l lidade, podemos entendê-la como um modo de redefinir as fronteiras do culos econômicos. Nesse sentido o neoliberalismo age ao mesmo tempo
bios. Ela se descerra no momento em que as crises imunitárias (e portanto como cobertura de um mecanismo imunitário extenso no plano global e
l também comunitárias) nos permitem entender quão limitada, e limitan- como imaginário coletivo em que a exigência de segurança individual e
l te, era a semântica comunitária habitual. Poderíamos dizer que espostto a liberação dos "espíritos animais" determinam a expulsão dos grupos
} desvela o modo como toda comunidade é desde sempre blopolítica, na mais frágeis e mais pobres do recinto de proteção do corl)unto social. Para
medida em que imuniza o próprio ser comum da interação constituída esposlto o liberalismo não somente enfraquece o vínculo entre território
} pela troca infinita do munus. Como esse ponto de vista pode ser reformu- e habitante, mas ao mesmo tempo eleva barreiras divisórias entre uma
) lado à luz da globalização? Esposito defende que a atual crise imunitária forma de vida e outra. Desse modo não se produz um bios impessoal sin-
) alcançou tais proporções em razão do enfraquecimento das soberanias gular, mas um blos circunscrito àqueles indivíduos capazes de obter pro-
nacionais (embora o Estado esteja longe de ser a única instituição lmu- teções de caráter pessoal. No ensaio intitulado On the Postcolony Achille
) nizadora). O que deveria ser feito, no nosso contexto global, é considerar Mbembe nota como todo o território do continente africano se tomou uma
J esse enfraquecimento estatal como a oportunidade única de uma época ' zona de imunidade enfraquecida ou inexistente, que, porém, não se traduz
) para uma reconversão afirmativa dos dispositivos biopolíticos em curso. em uma autêntica abertura à comunidade 106• é um outro efeito da ideolo-
Segundo Sloterdijk, por exemplo, o traço final da crise dos "coletivos po- gia neoliberal: promove imaginários étnicos e identitários como resultado
) líticos direcionados à segurança em grupo" é o resultado de "um plano 'eia força do mercado, segundo uma progressiva indistinção entre global e
) imunitário individualista": os indivíduos evadem dos corpos coletivos para local. O que realmente está crescendo na África, como em outras partes do
} buscar a felicidade individual, segundo o modelo americano 104• Natural- mundo, são as comunidades minadas pela falta de sistemas Imunitários
mente o ponto crítico de tal dinâmica é que à aquisição de prerrogativas capazes de protegê-las do saque e da expropriação ativados pelo biopoder
} imunitárias não podem ter acesso nem todas as sociedades nem todos os neoliberal.
1 5
} indivíduos º • Evidentemente a imunidade não pode ser garantida a todos. em Communltas, Immunltas, Blos e 'Jercelra pessoa Esposito
Essa busca de prerrogativas imunitárias de caráter individual, rasga o véu que cobre os efeitos destrutivos do projeto neoliberal. O que
) não extensível a toda forma de vida, coincide, em diversos aspectos, com . ele considera necessário é uma radical desconstmção da atual forma da
) um projeto de sociedade neoliberal. O desmantelamento do estado e dos Imunidade, ou stja, um completo desmonte dos dispositivos neoliberais.
) aparatos imunitários públicos a favor dos privados, corporativos e indivi- · o último capítulo de Blos abre uma série de perspectivas teóricas voltadas
) duais, acaba por enfraquecer a conexão orgânica entre o território e aque- a atenuar a força que a síndrome Imunitária exerce sobre o imaginário
le que o habita. O cuidado com que Bsposito descreve a fenomenologia moderno. Particularmente relevante, nesse sentido, é a referência a uma
) imunitária interna a todo tipo de comunidade histórica dá a entender que nonna subjetiva que tenha em seu centro "o impulso imanente da vida" 107•
) a globalização (ou talvez fosse melhor dizer a sua caracterização neolibe- Não pode passar despercebido como hoje o neollberalism~ continua a
_t ral) continua a desenvolver os pródromos de um mecanismo imunitário sltjeitar a vida a imperativos transcendentes que impõem, e permitem,

}
104 SLO'reRDIJK, P.1tasformaztone lmmunologlca, clt., p. 201.
) 105 No mesmo ensaio, SloterdUk escreve que a Imunidade ·nao acontecerá em
106 M8eM8E, A. on the l'bstcolony. Berkeley: Unlverslty of canromla Press,
todas {as sociedades] e não valerá para todosH (lbld.). 2001.
) 107 l!.SPOSITO, R. B(os, clt., p. 210.

) 64 65
a alguns indivíduos que se autolmunlzem às custas dos outros. Uma das
principais tarefas da fUosotla política é trazer a descoberto o pr~ufzo que
tal regime excludente causa à vida em seu col'\)unto. Como já tivemos
oportunidade de esclarecer, Isso não quer dizer de modo algum que o ne-
ollberallsmo reproponha a separação nazista entre uma vida digna e outra
indigna de ser vivida. O que o pensamento de Esposlto faz vislumbrar é ·
PARTE I
principalmente o fato de que ele Inicia justamente onde o liberalismo clás-
sico acabou - na conexão profunda entre a cultura do indivíduo e a retirada
da proteção das zonas débeis do blos global. Vidas demais, no contexto
geral do enfraquecimento dos aparatos nacionais e estatais, estão con-
fiadas a si mesmas e, portanto, abandonadas. eis o sentido llltimo que
assume a proposta de esposlto de contrapor uma polltlca da vida a uma
política sobre a vida - o de elaborar uma biopolftica afirmativa que, através
de uma compreensão cada vez mais límpida da dialética entre comunida-
de e Imunidade, contraste todo critério excludente de qualificação da vida.

'Iradução do inglês para o italiano de Michela Baraldl


Tradução do Italiano para o português de Luiz Brnant Frltoll

66
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l A LEI DA CoMUNIDADE
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1. Gostaria de empreender uma reflexão sobre a comunidade a partir
do seu étimo latino originário. Ainda que não stja diretamente atestado,
) o significado que todos os dicionários etimológicos apresentam como o
) mais provável é aquele que associa cwn e munus (ou munia). 'nll deriva-
ção é importante na medida em que qualifica de maneira precisa aquilo
) que têm em cor\)unto os membros da comunidade. Estes não são ligados
) por uma relação qualquer, mas precisamente por um munus, vale dizer,
) por uma "'tareran, um "dever•, uma ""lei•. Ou também - em outro significa-
do do termo, mais próximo ao primeiro do que poderia parecer - por um
) "dom"108, mas por um dom a fazer, e não a receber; e, portanto, também
} neste caso, por uma "obrigaçãon. Os membros da comunidade são tais se
e porque vinculados por uma lei comum.
)
Mas de que lei se trata? Qual é a lei a que a comunidade nos vin-
} cula? Ou - mais precisamente - que "nos põe em comum~ Não é preciso
) imaginar nada de extemo à comunidade mesma: é como se a comunidade
existisse antes da lei ou também como se a lei precedesse a comunidade.
}
A comunidade e a lei são um todo no sentido de que a lei comum não
} prescreve senão a exigência da comunidade mesma. É este o primeiro
} conteúdo - para usar uma expressão ainda Inadequada - da lei da comu-
nidade: a comunidade nos é necessária. 'nlmbém aqui não se deve pensar
}
em uma voz fora de cena que nos é dirigida na forma de uma lr\junção
) externa, mas em algo mais Intrínseco. A comunidade nos é necessária
) porque é o lugar mesmo - ou melhor, o pressuposto transcendental - da
nossa existência, visto que desde sempre existimos em comum. A lei da
)
} 108 A expressão usada pelo autor - dono - pode ser traduzida por '"dom•, '"dá-
diva", "'presente•, '"doac;ao•, entre outros. testa miríade de significados qut: o autor pretende
} deixar presente, polissemia contida também no termo em português '"dom•. (N. do T.)

)
69
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Ros~RTO ~Sl'OSITO T~RMOS DA PoLiTICA


CoHUNlllo'IOr., IHUNlllo'IO[, B101'C>LlnCA
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{
comunidade é, então, compreendida como a exigência, à qual nos senti- nós vivemos no resto entre o que devemos e o que podemos fazer. A tal
mos obrigados, de não perder esta condição originária. Ou, pior, de não a ponto que quando tentamos fazê-lo - construir, realizar, efetuar a comuni- f
subverter no seu oposto. Porque este risco não apenas está sempre poten- dade - terminamos Invariavelmente por subvertê-la no seu exato oposto: f,
cialmente presente, mas nos é constitutivo tanto quanto a lei mesma que em comunidade de morte e em morte da comunidade. Partamos do pri-
nos põe em guarda contra ele. Se desde sempre estamos na lei - poder-se- meiro ponto: a comunidade nos é necessária - é a nossa res, no sentido
f
-la dizer com tons paullnos - é porque desde sempre estamos na "culpa". J?feciso de que trazemos até o fundo a responsabilidade. Nesta proposição (1
Desde sempre estamos no esquecimento e na perversão da lei comum. se pode condensar a insistente crítica de Rousseau ao paradigma hobbe- {1
Deste ponto de vista - que é assumido não separada mas coajuntamente siano. Quando ele observa que "também se homens dispersos forem
{
ao primeiro - se deve dizer que não apenas a comunidade não foi Jamais sucessivamente submetidos a um só - trata-se, caso se queira, de uma
realizada, mas que ela é irrealizável. Não obstante a necessidade que a agregação, mas não de uma associação: não há nela nem bem público, {
exige. Não obstante o fato de que em certo sentido ela nos stja constante- nem corpo político" (ROUSSMU, 1972a, p. 284), está de fato imputando a f
mente presente. e, aliás, propriamente por isso. Como realizar o que pre- Hobbes não apenas a ausência, mas a expulsão violenta de toda ideia de
(
cede toda possível realização? Como constituir algo que Já nos constitui? comunidade. e isso propriamente na medida em que o filósofo inglês uni-
em tomo deste paradoxo podemos tentar uma primeira definição de ~ fica no grande corpo do Leviatã os indivíduos naturalmente conflituosos: (
munldade: ela é aquilo que nos é ao mesmo tempo necessário e impossí- se o liame que os associa não é outro senão o medo comum, o êxito que (
vel. lmpossivel e necessário. Que nos determina no distanciamento ou di- alcança não poderá ser senão uma servidão comum, vale dizer, o exato
(,
ferenc;a de nós mesmos. Na ruptura de nossa subjetividade. em uma falta contrário da comunidade. Esta última é precisamente aquilo que é sacri-
infinita, em um débito impagável, em um defeito irremediável. Poder-se- ficado no altar da autoconservação individual: os Indivíduos hobbesianos @>
-ia usar ainda a expressão, mais carregada, de "delito· - se a reportarmos podem salvar a própria vida apenas colocando a morte como o seu bem {:
ao slgnlflcado de deUnquere precisamente como ..falta de algo" (cf. BAAS, comum. Todos os reclamos a tal bem - Liberdade, Justiça, Igualdade - que
(1
1992, a que remeto também para a interpretação de Kant e de Heidegger): escandem a obra rousseauniana possuem este objetivo polêmico, pronun-

nós carecemos daquilo que nos constitui como comunidade. 'Janto que se ciam esta condenação, lamentam esta ausência: a comunidade humana (_,
deveria concluir que o que temos em comum é precisamente tal ausência falta a si mesma, não faz mais que delinquir, no duplo sentido da expres- (l
de comunidade. Que somos - como tol dito - a comunidade daqueles que são. E, todavia, ela é aquilo de que mais temos necessidade desde o mo-
(
não possuem comunidade (cf. CSPOSITO, 1988, p. 245-312, e as remis- mento em que faz parte de nós mesmos: ·~ forma mais bela da existência
sões ali contidas). Que a lei da comunidade não é senão a comunidade da é para nós aquela feita de relações e em comum, e o nosso verdadeiro eu <l
lei, do débito, da culpa, como, de outra parte, é demonstrado por todas não está todo só em nós" (ROUSSMU, 1972b, p. 1213). 'lambém a contí- ({
as narrativas que individuam a origem da sociedade precisamente em um nua proclamação da própria solidão - obsessivamente repetida sobretudo

delito comum: onde evidentemente a vítima, aquela que perdemps e que nos seus últimos escritos - possui em Rousseau o tom de uma silenciosa
por sua vez jamais tivemos, não é nenhum "pai primordial.., mas a comu- revolta contra a ausência de comunidade. ele é sozinho porque não existe {1
nidade mesma que ademais transcendentalmente nos constlb.li. comunidade - ou melhor, porque todas as formas de comunidade existen- { \

Tol consciência - mais ou menos explícita - não nasceu hoje, mas tes não são mais que o oposto da única autêntica. Contra tal situação a
{ /

atravessa toda a grclllde tradição filosófica, ao menos a partir de Rousseau. solidão protesta como o decalque negativo de uma absoluta necessidade
Toda a sua obro não faz senão pronunciar - aliás, bradar - esta terrível . de compartilhamento, que em Rousseau se manifesta, por extremo para- {;
verdade: a comunidade é aquilo que nos é necessário e que nos é de doxo, na comunicação, por meio da escrita, da própria impossibilidade de ('
antemão fechado. 1oda a história humana traz consigo tal ferida que do comunicar, na qual precisamente a escrita assume o caráter de "solidão
interior a corrói e a esvazia. ela não é interpretável senão em razão deste para os outros", de ..substituto da comunidade humana irrealizável na re-
'- .
..,mposs(vel,. do qual, porém, origina-se na forma de traic;ão necessária: alidade social" (BACZKO, 1974, p. 263). t~
\
70 71 f,
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Mas atenção: irrealizável na mesma perspectiva de Rousseau·:
a partir do momento em que a sua crítica comunitária ao individualismo
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um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual este


Indivíduo recebe, de um certo modo, a sua vida e o seu ser" (ROUSSEAU,
,
1972a, p. 296)? Aqui aparece evidente que o risco protototalltárlo está não

'
hobbesiano resta de fato interna ao mesmo paradigma, como já observara
Émile Durkheim (1918, p. 13-139) - o indivíduo fechado na sua perfeita certamente na contraposição entre o modelo comunitário e o lndMdual,
}
completude. O que é o seu "homem natural" senão uma mônada acostada mas na sua sobreposição que desenha a comunidade sobre o perfil do
} a outra somente pelo acaso ou pela desfortuna? E não é a condição asso- Indivíduo isolado e autossuflclente: a via que leva do um lndMdual ao um
} ciai a única que Rousseau julga feliz em contradição evidente com a pró- coletivo não pode senão fluir por um álveo organlcfstico. t como se ambos
pria intenção comunitária? Pois justamente aqui está o ponto que condena - Indivíduo e comunidade - não pudessem sair de si mesmos. Não sabem
}
à falência tal intenção: não é possível derivar uma filosofia da comunidade acolher o outro sem absorvê-lo e incorporá-lo,· sem fazê-lo uma parte de
} de uma metafisica do indivíduo. A pressuposta natureza absoluta do indi- si. Toda vez que na obra de Rousseau tal projeto toma corpo em uma reali-
) víduo não pode ser posta em comum sucessivamente. Não obstante todo dade coletiva - pequena pátria, cidade ou festa popular (cf. VERNES, 1978)
o esforço do autor, a antinomia não é solucionável. O resíduo, não apenas - a pungente exigência rousseauniana de comunidade se subverte no seu
l lexical mas filosófico, entre pressuposto e resultado permanece insanável mito. No mito, precisamente, de uma comunidade transparente a si mes-
) - a não ser a preço de uma torcedura que dá à comunidade de Rousseau ma na qual cada um comunica ao outro o próprio êxtase comunitário (cf.,
} - lá onde ele tenta uma representação em positivo - aqueles caracteres ainda que numa chave de leitura diversa, STAROBINSKI, 1982). O próprio
insustentáveis que foram reivindicados por seus críticos liberais mais se- sonho de absoluta auto-Imanência. Sem nenhuma mediação, ffltro, sinal
}
veros. A linha divisória é aquela que passa entre a exigência de comuni- que interrompa a fusão reciproca das consciências; sem nenhuma distân-
) dade presente em negativo na descrição crítica da sociedade existente e cia, descontinuidade. diferença de um outro que não é mais tal porque faz
) a sua formulação afirmativa. Ou ainda: entre a determinação lmpolítfca parte integrante do um: que é o um que se perde - e se reencontra - na
da ausência de comunidade - a comunidade como ausência, falta, débito própria identidade.
)
inexaurível em relação à lei que a prescreve - e a sua realização política. nata-se de um risco que ameaça, também de perto, o discurso
) Dito em síntese: a partir daqueles pressupostos metafísicos - o indivíduo de Rousseau, mas que não o arruína. O autor mesmo parece dar-se conta
} fechado na sua própria natureza absoluta - a comunidade política rousse- no momento em que se contém de transpor esta comunidade de cora-
auniana é vergada para uma possível deriva totalitária. Aqui, naturalmente, ção em comunidade política. E também nós devemos nos abster de ler o
}
não me refiro à categoria específica de "totalitarismo" como resulta das ex- Contrato social como a tradução política da comunidade de Clarens. Cer-
} periências do nosso século: é bastante notório, com efeito, que Rousseau tamente, aquela prefigurada pelo Contrato é uma democracia da identi-
) esttja sempre preocupado em tutelar o cidadão contra qualquer abuso do dade que exclui qualquer distinção entre governantes e governados, entre
poder estatal; e que, aliás, empregue o conceito de "vontade geral" pro- legislativo e executivo, entre povo e soberano. Mas propriamente por isso
)
priamente como corretivo automático contra qualquer tentação autoritária ela é declarada Irrealizável - a não ser por um povo de deuses. "Tomando
) nos confrontos com o indivíduo: sendo-lhe parte Integrante, ele está as- a palavra a rigor"' conclui Rousseau "'uma verdadeira democracia jamais

,
) segurado pelo fato de que todo comando da vontade foi emitido também
por si próprio (DERATHÉ, 1993, p. 305 et seq.).
existiu e jamais existirá" (ROUSSEAU, 1972a, p. 309). E, caso existisse,
seria a exata realização do próprio oposto. contra Rousseau - mas dentro
de sua perspectiva - esta conclusão subtrai a comunidade à potência do
. Mas não é exatamente este automatismo - a identidade pres-
suposta de cada um com todos e de todos com cada um - o mecanismo
totalizante de redução dos muitos ao um? Como entender de outro modo
seu mito. A antinomia não se deixa conciliar: a comunidade é ao mesmo
tempo necessária e lmpossfvel. ~CJta não apenas se dá sempre de ma-

'
}
)
o bem conhecido passo segundo o qual "aquele que sabe empreender a
instituição de um povo deve sentir-se capaz de mudar, por assim dizer,
a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si mesmo é'
neira defectiva - n6o alcança Jamais cumprimento - mas não é comuni-
dade senão do defeito, no sentido espec(flco de que o que nos mantém

)
} 72 73
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ThRMOS DA PoLÍTIG\
Cortur,m,wc, btUNIDl'DC, B1oroLlnc.,
f
juntos, que nos constitui enquanto seres-em-comum, seres-aí-com 109, é de é não apenas o fim mas a origem da humanidade, na medida em que f
precisamente aquele defeito, aquele inadimplemento, aquele débito. Ou os homens pertencem essencialmente ao mundo. A de Kant - continua
ainda: a nossa llnltude mortal, como em um lnesquec:ível passo do l!mCUo Arendt - é uma ruptura com relação a todas as teorias que subordinam a
f
o mesmo Rousseau havia pressentido: "A fraqueza (falblesse) do homem dependência do próximo à esfera das necessidades e dos interesses, vale {,
o torna sociável; as nossas misérias comuns levam os nossos corações à dizer, a todas as teorias utilitaristas. Contra estas Kant afirma que o juízo @"
humanidade: não lhes deveríamos nada se não fôssemos homens. [ ••• ] Os pressupõe a existência dos outros - e propriamente por isso será assumi-
homens não são naturalmente nem reis, nem grandes, nem cortesãos, do por· Arendt em relação ao âmbito da ação: ':Julga-se sempre enquanto
{1
nem ricos; todos nasceram nus e pobres, todos sqjeitos às misérias da membros de uma comunidade, guiados pelo sentido comunitário, pelo f1
vida, aos desprazeres, aos males, às necessidades, às dores de toda espé: sensus communis" (ARENDT, 1990, p. 115). A comunidade, em suma, é {
cie; enfim, todos são condenados a morrer. Eis o que é verdadeiramente constitutiva do nosso ser homens: Kant acolhe plenamente, e traz à com-
do homem; els aquilo de que nenhum mortal está isento" (ROUSSEAU, pleta consciência, a intuição de Rousseau.
{'
1972c, p. 501-502). Mas a relação entre os dois filósofos não é individuada tão só na (,
exigência de comunidade; quanto, mais a fundo, na consciência comum
2. A uma condusão não distante teria chegado Kant, assumindo da absoluta problematicidade da sua realização. Tumbém para Kant- nun-
f
conscientemente - e levando às suas extremas consequências - a con- ca tanto, aliás, como para ele - a comunidade, conquanto necessária, é t
tradição tolerada de maneira implícita por Rousseau. Não por acaso pro- impossível. A lei prescreve o que interdita e interdita o que prescreve. E é {
priamente a etite último ele havia atribuído o mérito de tê-lo conduzido por isso que - como concluía também Ooldmann - Kant está na origem (,
da solidão da pesquisa individual ao interesse pelo mundo comum dos do pensamento trágico em contraste radical com a linha hegelo-marxiana.
homens (KANT, 1902 et seq., p. 44). Nada mais do que o pensamento, para 1bdavia, diferentemente do que reputava aquele crítico - e os intérpretes
(,
exprimir-se e desenvolver-se, possui necessidade da comunidade. Kant o
havia dito precisamente nestes termos: "Mas pensaríamos nós bastante
que lhe desenvolveram o ponto de vista (como MASULW, 1965) - isto não
apenas não põe Kant em uma espécie de condição imatura com relação
«>
e pensaríamos bem se não pensássemos em comum com os outros aos
{)
aos seus sucessores dialéticos, já a partir de fichte, mas, ao contrário, o
quais comunicamos os nossos pensamentos, e que nos fazem parte dos preserva da sua tendência totalizante a historicizar a comunidade - no ((
deles?" (KANT, 1975, p. 105). Não é possível pensar fora da comunida- estado (Hegel) ou contra o Estado (Marx). Pois, propriamente aqui é posta {'
de - é o pressuposto kantiano que teria sido diversamente retomado por em jogo a verdadeira herança de Rousseau. 1ambém fichte - antecipando
(
uma série de intérpretes e autores que vão de Lucien Ooldmann a Hannah Marx - considera "cumprir" Rousseau (fICHTe, 1974, p. 79), mas preci-
ArendL Se para o primeiro "'a necessidade absoluta e Irrealizável de alcan- samente saturando em sentido mitopoiético aquela antinomia que Kant (
çar e realizar a totalidade constitui o ponto de partida de todo o pensa- mantém vitalmente aberta: se os homens estão unidos pela forma univer- ({
mento kantiano'" (OOLDMANN, 1975, p. 38), para a segunda a sociabillda- sal, estão irreparavelmente separados pelos conteúdos e pelos interesses

materiais. O único modo de realizar a comunidade seria aquele de superar
109 o neologismo Italiano con-essercl (c:on + essere + cO é uma fonna possfvel os interesses, as diferenças particulares, mas interesses e diferenças são (1
de traduzir o concelto do tuósoro alemão Martin Heidegger MUdasein, vocábulo formado pela
preposição mlt - que slgnlf1ca "com·. ·Junto· - e pelo substanti\'o Daseua que, no sentido usual.
de fato insuperáveis, porque também elas são constitutivas da nossa na- (,
significa "presença•, •c:x1stência•, '"vida·. Porém. na filosofia de tleldegger, este úlUmo assume tureza. o conteúdo sensível permanece irrecuperável à esfera da universa-
um senUdo multo próprio e fundamental. O termo Daseln é formado a partir do verbo sem {,
rser; e pelo advérbio de lugar da ("aí'", "aqui•. "'lã•. '"ali;. Sua tradução pelo composto "'ser-ai" lidade. A natural "sociabilidade" balanceada, e contraditada, por uma - na
é de uso corrente no Brasll, asslm corno, por outro lado, o emprego do termo em alemão sem mesma medida- natural "insociabilidade" (KANT, 1965, p. 127). É por isso (;
traduzi-lo. Por sua vez, optou-se por traduzir a expressáo Italiana con-essercl - formada pelo
vabo essercf (em geral traduzido no lnftnlti\'o por "'haver"', ·ex1st1r;, aqui substanUvado e que que a comunidade não somente não pode tomar-se realidade, mas não {
exprtme (Justam«ate como o seu correlato alemão Daselni a noção de presença. de existên-
cia - na su.s literalidade 9enulna. "ser-ai-com·, tendo em vista o Jogo linguístico feito no texto pode tampouco fazer-se conceito: deve - eis o que diz a mesma lei que a
com o termo~. •ser•, e sobretudo em função das menções à ftlosofta de Heidegger reltas '-
adiante pelo autor. ft>rmDS menos literais - e menos técnk:as- de baduzf.r con-e.sserd seriam
·c:o-ex1st!nc1a•, •c.o-«WStente·. -con-vtvênda·. ·con-v1vcnte·. (N. do T.)

74 75
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RoseRTO .EsPOSrro ~RMOS M PoúnCA
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reclama - restar uma simples ideia da razão, vale dizer, uma meta inalcan- .. A liberdade - els o ponto que distancia Kant de Rousseau - é
l çável, uma pura destinação. inextricavelmente conexa com o mal: ·A história da natureza começa com
) A afirmação kantiana segundo a qual "a ideia sublime, nunca- o bem porque esta é obra de Deus", escreve Kant em um texto dedicado
plenamente realizável, de uma comunidade ética se apequena muito nas precisamente a Rousseau; "a história da liberdade começa com o mal
l mãos do homem [ ... )" (KANT, 1970a, p. 425-426) é lida em continuidade porque é obra do homem" (KANT, 1965d, p. 202). Se o homem nasce
) com a rousseauniana, já citada, acerca da irrepresentabllldade de uma livre, na sua origem não pode haver senão o mal. É neste sentido que o
} verdadeira democracia. Com, ademais, a circunstância agravante de que, que temos chamado culpa - o nosso delinqulr como falta da comunidade
à diferença de para Rousseau, para Kant o homem é curvo por nature- para a qual não obstante tendemos e da qual não obstante contradito-
}
za - tanto que o estado de natureza é, como para Hobbes, um estado de riamente derivamos - é pressuposta como a condição transcendental da
) guerra (PHILONENKO, 1988, p. 28-29). t isto que, precluindo também a nossa comum humanidade (cf. ainda BAAS, 1992). Por Isso - escreve Kant
) referência positiva de Rousseau à origem natural, condena a condição po- - o homem, em vez de "atribuir as próprias culpas a uma culpa originária
J lítica a um insanável caráter aporético. Deste ponto de vista, o problema dos seus progenitores[ ... ] pode atribuir-se de pleno direito esta primeira
da política é claramente distinto do problema dos fins éticos. A política culpa e, assim, acusar-se de todos os males que o abuso da razão fez
) não pode ser pensada à luz do bem, assim como a prática é diversa da nascer [ ... ]" (KANT, 1965d, p. 210-211). •Já Cssslrer havia cortjugado Kant
) teoria. A comunidade ética poderia, no plano puramente hipotético, "estar e Rousseau dentro desta semântica da culpa (CASSIIIBR. 1970, p. 54 et
também em meio a uma comunidade política" (KANT, 1970a, p. 418), mas seq.). Mas agora é necessário dar um passo adiante no que concerne à
) uma difere da outra em linha de princípio, tanto que a comunidade política medida da sua lnelutabllldade. t Impossível esquivar-se dela não apenas
) não pode constranger os cidadãos a entrar na comunidade ética, sob pena e não tanto porque não se pode resistir à tentação de Infringir a lei, mas
) da ruína de ambas. Certamente, seria agradável poder imaginar uma cor- porque a lei - o imperativo categórico - não pode ser efetivada enquanto
} respondência entre as duas - prossegue Kant - mas é temerário propô-la. não prescreve nada além do que a própria obrigatoriedade, nenhum con-
Como diria Lyotard, a frase ética não pode ser vinculada à frase política teúdo ulterior à obrigação formal de lhe obedecer. é sabido: a lei impõe
) e à cognitiva senão pela frágil ponte do "como se" (LYOTARD, 1985). Mas somente agir de modo a poder constituir a nossa vontade como princípio
) sob a ponte passa um abismo intransponível. A relação resta puramen- de legislação para uma comunidade universal, mas não nos diz. de ne-
} te analógica: pode exprimir-se através de símbolos, sinais, emblemas - nhum modo, o que fazer. Ao contrário, nos diz que a sua força irtjuntiva
como o entusiasmo pela revolução (KANT, 1965c, p. 218-219) - mas não reside propriamente neste não dito. füs o que significa a •categoricldade"
} por provas ou exemplos históricos, que, pelo contrário, regularmente a do imperativo: de um lado, a sua soberania absoluta, Incondicionada,
) infirmam. A política pode auspiciar, ma~ não reivindicar nem prever ne- Inapelável; de outro, a sua subtração apriorfsttca a qualquer tentativa
cessariamente, o melhoramento dos homens: deve ser potencialmente de adlmplemento. ele não apenas é lnadlmpUvel, mas é o lnadlmplfvel
)
aplicável também a um povo de demônios (KANT, 1965b, p. 312). Ela não mesmo (NANCY, 1983). Este último ponto é fixado com particular relevo.
} é entendida no sentido de uma ampliação, mas de uma redução da liber- Nós não podemos adlmpllr a lei que nos é Imposta porque esta lei não
) dade. e isso em consequência, e não em contraste, com o caráter absoluto nasce de nós. esta não é, de modo algum, uma autoleglslação do sqfelto,
da liberdade mesma: propriamente porque esta é, por essência, illmi~da, · ainda que o sqfelto lhe estaja sqfelto. · Mas sqfelto somente na modali-
)
a tarefa da política é de limitá-la com o seu contrário, isto é, com um poder dade passiva da "sqfelção", do "assqfeitamento•; não naquela, ativa, da
) irresistível (KANT, 1965a, p. 129). Não por acaso o estado kantiano Inicia "subjetividade". Ao contrário, a lei corrói, Insidia, decompõe a nossa sub-
pela força e pela coação, mesmo se, à diferença de Hobbes, a soberania
t deva fundar-se sobre um princípio racional, mas, ainda uma vez, como se,
jetlvldade. Ela vem de fora e nos conduz para fora de nós. Não somente
no sentido de que não podemos dar a nós mesmos a própria lei, mas
} e somente como se, derivasse da vontade comum do povo. no sentido, mais radical, de que a lei, prescrevendo incondicionalmente
) o lnadlmplfvel, prescreve em um certo sentido a destituição do sqfelto a
)
) 76 77
ThRMOS DA POLITICA
CoHUNlo.\De, IHUNIUAOI:, BIOl'OLITIC.,.

que se dirige. Prescreve ao sl.\)elto um estatuto de contínua inadimplên- encontra no estado de quem 'ainda não adimpliu', por isso deve indagar-
cia. Um débito lnextlngufvel: "Não conta", dli Kant, •que o homem tenha -se o que deve, em geral. este 'ainda não' de um adimplemento, por sua
adotado uma boa Intenção e que persevere nela por t.oda a vida, porque vez Indeterminado, é o índice do fato de que um ser, o qual coliga o seu
isso não obsta que ele tenha começado com o mal e este é um débito mais (ntimo Interesse a um dever, é, no fundo, finito" (HBIDEOOeR, 1981,
que ele não poderá extinguir jamais" (KANT, 1970a, p. 594}. A lei endi- p. 187). Aqui, através de Kant, Heidegger não quer dizer simplesmente
vida infinitamente o sajeito. Isso não quer dizer que o exclua - Kant não que a inadimplência de um dever determina uma situação de finitude,
renuncia, de modo algum, à categoria de "sltjeito.,; aliás, pode-se bem mas que a flnitude coincide em última análise com aquele dever. Que
dizer que a coloque no centro do próprio sistema - mas, ao contrário, não se pode não ser finito no sentido impositivo de que se deve sê-lo. t
que o inclui na sua exterioridade. Subtrai-o a toda autoconsistência. e necessário olhar isso por ambos os lados: é-se finito porque não se pode
não apenas no sentido geral de que a sua correspondência à lei elimina atender à lei - e portanto a lei é algo que continuamente nos transcen-
por si só qualquer conteúdo subjetivo - sentimento, prazer, interesse - a de; mas tal transcendência, de um ponto de vista diverso, não é senão
favor da pura submissão ao dever formal, mas no sentido, mais específi- o limite da nossa possibllldade de atender à lei, e por isso é o índice e a
co, de que o imperativo pode se impor somente "sendo nocivo#, "lesan- medida da nossa finitude.
do,,, "humilhando" aquele núcleo irredutível da subjetividade constituído A lei, em suma, provém de um alhures que, todavia, faz parte de
pelo "'amor a si" (SelbstUebe) ou pelo "'amor próprio,, (ffigenUebe) (KANT, nós. Que nos constitui "sujeitos" - mas somente à lei mesma. t como em
1970b, p. 214-216). Sein und Zeit [Ser e tempo) está expresso na fórmula segundo a qual "a
Mas propriamente esta redução do sajeito em vista e por parte chamada surge em mim, de mim e acima de mim"11º (HEIDeooeR, 1969,
da lei, que de um lado lhe impede o adimplemento, de· outro individua p. 410). Com ela, Heidegger tomoujá uma estrada que, levando o trans-
uma forma subvertida - impolítlca - de comunidade. Precisamente, a da cendentalismo de Kant às suas extremas consequências, termina por tra-
Inadimplência, do defeito, da Onltude. Rompendo os limites lndlvtduais duzi-lo em um léxico diverso do seu - aquele, propriamente, da analítica
do sajelto - aqueles que ainda Rousseau conservava intactos -, esvazian- da existência. O que permanece comum aos dois filósofos, não obstante
do a sua ânsia de cumprimento, em suma, a lei, propriamente enquanto a evidente mudança de quadro conceituai e linguístico, é, por um lado, o
inadimplCuel, abre aos homens uma outra face do seu ser em comum. o caráter pressuposto da culpa com relação à definição do bem e do mal
que possuem em comum os homens? A Impossibilidade de realizar a co- moral: não é a opção malvada a determinar a caída na culpa - na culpa
munidade - responde Kant. e vale dizer: a sua existência finita. O seu ser não se "cai", se é dela que se provém - mas, ao contrário, é esta a tornar
mortais. O seu ser "no tempo'\ · poss(vel aquela; por outro lado, a necessidade de que de tal pressuposta
culpabilidade (Schuldlgseiri) se tenha "preocupação" - que é, pois, a mes-
5. Para a conclusão deste percurso há Martin Heidegger. ~o- ma coisa, visto que a "preocupação" (Sorge) 111 não significa senão que "O
priamente a ele, por outro lado, deve-se a interpretação de Kant mais·
claramente centrada sobre o motivo da finitude. Antes ainda que da po-
tência do imperativo, o sltjeito kantiano é "'finito,, pela própria dimensão 110 Preíerlu-se traduzir a passagem - "la chlamata sorge ln me, da me e sopra dl
me" - literalmente, preservando-se a opção do autor pela tradução Italiana de Ser e tempo. Indi-
temporal. Certamente, Kant não colhe ainda o caráter intramundano do cada na bibliografia. Cm todo caso, no original alemão o trecho citado apresenta-se da seguinte
forma: "Der Ruf kommt aus mlr und doch über mlch· (Seln Wtd Zelt, Tüblngen: Max Nlemeyer
sltjeito no sentido heideggeriano de ..ser-no-mundo,.; não obstante, sus- Verlag, 2006, p. 275). C nas traduções brasileira e espanhola consultadas, respecUvamente: "O
pendendo-o à estrutura apriorístlca da temporalidade, arranca-o de toda apelo provém de mim e, no entanto, de além de mim" (Ser e tempo. 'Jradutor: fausto Castilho.
Campinas: Cd. Unlcamp; ~trópolls: Vozes, 2012, p. 757); "La llamada procede de mi y. sln em- {:
pretensão de completude e o confia a uma figura radicalmente finita. bargo, de más allá de mi" (Ser y Uempo. 'Jradutor: J. e. Rivera e. Madrid: Trotta, 2006, p. 295).
(N.doT.)
Nesta se Insere a temática da lei segundo um nexo circular de ·causa e 111 Na tradução brasileira de Seln und Zelt, o termo alemão Sorge é vertido
efeito: propriamente porque estruturalmente finito, o sajeito é submeti- por "preocupação•. Na versão e:spanhola, por "cuidado•. A palavra Italiana cura abrange tanto
01:1 sentidos de "preocupação", "cuidado", "zelo", quanto de "Inquietação", "angústia", q que se
do à lei, mas é precisamente a sL\)eição à lei que o torna constitutivamen- afina com o emprego que Heidegger faz do termo Sorge (o Inquietar-se por, o cuidar de, o tratar
de, o preocuµar-se com, o responsabilizar-se por - enfim - o curar de, atestado em portuguê..OJ),
te finito - "U1'n ser profundamente Interessado em um dever sabe que se ligado ao tema da culpa (d. nota l 10 para bibliografia). (N. do T.)

78 79
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Ro8r:RTO Bsl'OSITO

ser-aí112 é, como tal, culpável" (HEIDEGGER, 1969, p. 423). Mas, enquanto


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racteres de um destino. t esta passagem que exclui toda semântica ética:
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para Kant o "preocupar-se" da culpabilidade originária consiste no empe-
nho (destinado ao insucesso) para a realização de determinados valores
ou para a aquiescência a determinadas normas, para Heidegger não quer
o fracas.c;o não está mais como tal na base de uma tentativa falida, mas é
a situação a partir da qual somente se dá experiência. Por Isso rigorosa-
mente míngua toda hipótese de •caída". O ser-af não pode "cair- porque é
"sempre já de-cafdo de si mesmo como autêntico poder-ser e Jogado no
dizer senão o simples reconhecimento da nulidade do próprio fundamen-
) to. Disto deriva - ou isto deriva do fato de - que não apenas, como já em mundo" (Hl!IDEOOER, 1969, p. 279), de modo que se pode dizer que ele
) Kant, a culpa não pode ser extinta; mas também que é preciso ..decidir-se" "cai de si mesmo e em si mesmo" {Hl!IDEOOER, 1969, p. 285). Mas se é as-
por ela n·a maneira, esta própria defeituosa, do "ter preocupação". t por · sim, Isso significa que a caída constitui a origem mesma do ser-af. e que,
)
isso que a "chamada" não afirma nada - e, aliás, fala no modo do silêncio. portanto, todos os autores que, a partir de Rousseau, buscaram - Inutil-
) Certamente, também em Kant, como se viu, a lei não prescreve senão mente - fundar a comunidade reconstituindo as condições lógicas originá-
) a sua inderrogável categoricidade. Mas isso advém sempre segundo um rias faliram não porque tais condições tenham desaparecido para sempre
léxico propriamente prescritivo: algo é prescrito. Em Heidegger, junto à . em uma voragem entrópica, mas porque estas não são senão aquela vo-
)
prescrição, cai também todo impulso à realização - ainda que fosse do ragem. Isso quer dizer que a comunidade não é realizável - caso se queira
) irrealizável. Em suma, enquanto em Kant é ainda possível - e, antes, intei- ainda usar esta terminologia inadequada - somente porque ela está já
} ramente necessário - falar de uma ética, ainda que "finita", em Heidegger desde sempre realizada, no sentido de que é aquele "defeito"' mesmo visto
a finitude é a única declinação da ética, no sentido radical do que lhe as- pelo lado da sua destlnalldade originária. Deste ponto de vista, qualquer
)
sinala o "fim". esforço de alcançar um fim é não menos inútil do que o de reencontrar
) O resíduo adquire plena visibilidade em relação à questão da co- uma origem. A comunidade não está nem antes nem depois da sociedade.
) munidade. Viu-se como a sua constituição é o objetivo mais intrínseco do Não é nem o que a sociedade destruiu - segundo a leitura nostálgica à ma-
kantismo - ainda que destinado a um inevitável fracasso. Ela é ao mesmo neira de Tõnnles -, nem o objetivo que esta deve colocar-se - segundo a
}
tempo aquilo a que todos os esforços dos homens dignos deste nome são leitura, utópica, de matriz marxiana. Assim como não é o resultado de um
) dirigidos, mas também aquilo que, dada a sua· natural insociabilidade, eles pacto, de uma vontade, ou de uma simples exigência compartilhada pelos
} não poderão jamais realizar completamente. Sob o aspecto categorial, o indMduos. Mas tampouco é o lugar arcaico do qual estes provêm e que
motivo de tal contradição concerne ao fato de que, como já Rousseau, abandonaram. E Isso pelo simples motivo de que os Indivíduos enquanto
} tais - fora do seu ser-em-um-mundo-comum-aos-outros - não existem:
também Kant não pode alcançar um êxito comunitário a partir de uma
) antropologia de matriz individualista. Verdade é que, com relação ao na- "Sobre o fundamento deste ser-no-mundo ·com', o mundo é já sempre
) turalismo do primeiro, este último realiza uma desconstrução da origem aquele que eu com-partilho com os Outros. o mundo do Ser-af é co-mun-
natural de tal forma radical a ponto de excluir-lhe toda qualificação afir- do. o ser-em é um ser-com com os Outros. O ser-em-si lntramundano
) dos Outros é um Ser-aí-com 11~ (HEIDEGGER, 1969, p. 205). Isso vale tam-
mativa. E, todavia, permanece, mesmo negativamente, no interior de um
) horizonte de tipo antropológico. Aliás, é propriamente esta negatividade bém quando o outro não estiver presente ou não for conhecido, desde o
) - a insociabilidade, em termos psicológicos - que barra a lei da comunida- momento em que também o ser sozinho - a condição transcendental do
de universal vetando sua realização. Em Heidegger, dá-se de maneira bas- homem originário de Rousseau - é uma figura determinável, em negativo,
} tante diversa. Thmbém para ele a comunidade, ao menos como a entende apenas a partir do comum. Atenção: disso não se deve deduzir, de modo
) Kant - a ética universalista -, não é realizável. Mas o que no kantismo se algum, que a comunidade esttja realizada, imanente a si mesma, coin-
coloca em termos de projeto inadlmplfvel, em Heidegger assume os ca- cidente com o próprio sentido - como aliás Heidegger arriscou pensar,
)
não apenas nos primeiros anos trinta, mas já em Ser e tempo, quando foi
) . 112 No original, l!ssercl. SubstanUwção do verbo essercf, a qual traduz o termo tentado a hlstoriclzá-la na "comunidade de destino" de um povo singular
técnico fundamental - Dasetn - da fll08ofla de Heidegger em Setn und zett. A tradução pelo sin-
) tagma ·ser-aí# é frequente no Brasil, como também simplesmente mantê-lo em alemão, Dasetn.
cr. nota 109. (N. do T.) 113 No original, con-&isercl. Cf, nota 109, (N. do T.)
)
) 80 81
Tl:KMOS DA POLITICA
C..-,,,v"1=oe, IMunn:v.oe, B1oroLiT1CA

(cf. HelDOOOtR, 1969, p. 548 et seq.). Ao contrário: corno já se dizia, ela OBRAS CITADAS
não somente se dá sempre de maneira defectiva, mas não é comunida-
de senão do defeito. O que nos mantém em comum - ou melhor, o que ARl!NDT, H. Tuorla del gludlzlo polltlco. Oenova: li Melangolo, 1990.

nos Institui enquanto seres-em-comum, seres-aí-com - é precisamente BMS, 6. Le corps du déllt. ln: M. W. PollUque et modemlté. l"arls: Oslrls, 1992.
aquele defeito, aquela lnadlmplêncla, aquele débito. Ou ainda, a nossa BACZKO, 6, Rousseau: Solltude et communauté. Paris: Mouton, 1974.
finltude mortal, na qual o que é frisado não é tanto a circunstância de que CASSIReR. e. ll problema Olan Olacomo Rousseau. rtrenze: La Nuova ltalla, 1970.
a relação com os outros é pensada na forma do ser-para-a-morte, mas DCRATHé, R. Rousseau e la sclenza polltica dei suo tempo. 6ologna: li Mullno, 1995.
a modalidade especifica que este assume: que é aquela, já reivindicada, DURKHl!IM, e. Le "Contrat social" de Rousseau. Reuue de Métaphyslque et de Horale, n. 25,
da recíproca "preocupação". t a preocupação, não o interesse, que está 1918.
na base da comunidade. A comunidade é determinada pela preocupação, E:SPOSITO, R. categorle deU'lmpolltlco. Bologna: li Mulino, 1988.
como esta por aquela. Não poderia ser uma sem a outra: "preocupac;ão- f'ICtfre, J. O. Sulla rluoluzlone francese. Roma-Bar!: Laterza, 1974.
-em-comum". Mas - els a novidade da analítica heldeggerlana em relação OOLDMANN, L. Jntroduzlone a Kant. Mllano: Mondadorl, 1975 (Título original: La communauté
a todos os seus precedentes - Isso quer dizer que a tarefa da comunida- hwnalne et l'unluers chez Hant).

de (admitido, e não concedido, que haja uma) não é a de libertar-nos da He1oeooeR, M. &sere e tempo. Organizado por: r. Chlodl. Torlno: Utet, 1969.
preocupação, mas, ao contrário, a de resguardá-la como o que somente _ _ • Kant a Uproblema della metajlslca. Organizado por: V. Verra. Roma-Barl: Laterza, 1981.
a torna possível. esta especificação dá conta da distinção heideggeriana KANT, 1. 6emerkungen zu den 6eobachtungen über das Oefühl des Schõnen und erhabenen. ln:
entre duas modalidades diversas - e opostas - do ..ter preocupação" do Kants Oesammelte Schrlften, 6erlln: Altademle-Ausgabe, 1902 et seq. 6. XX.

outro: por um lado, a de substituí-lo tomando o seu lugar, para libertá-lo . - - · ldea dl una storla universal dai punto dl vista cosmopolltlco. ln: 6OBBIO, N.; FIRPO, L.;
MATHll!U, V. (Org.). ScrltU poUtlcl. Torlno: Utet, 1965a.
da preocupação; por outro, a de solicitá-lo a ela. De libertá-lo não da, mas
- - · Per la pace perpetua. ln: 606610, N.; f'IRPO, L.; MATHICU, V. (Org.). Scrlttl polltlcl. lbrlno:
para a, sua preocupação (Fürsorge): "esta forma de ter preocupação, que
Utet, 1965b.
concerne essencialmente à preocupação autêntica, isto é, à existência dos
_ _• Se li genere umano sla ln constante progresso verso li megllo. ln: BOBBIO, N.; FIRPO, L.;
Outros e não a algo de que eles se preocupem, ajuda os Outros a se torna- MATHll!U, V. (Org.). Scrlttl pollUcl. Torlno: Utet, 1965c.
rem conscientes e livres para a própria preocupação" (HeIDeOCIBR, 1969, - - · Congetture sull'origlne della storia. ln: 606810, N.; FIRPO, L.; MATHIEU, V. (Org.). Scritti
p. 210). Isso significa que a figura do Outro coincide em última análise poUUcl. Torlno: Utet, 1965d.

com a da comunidade. Mas não no sentido óbvio de que cada um de nós _ _• La rellglon nel limlU della sempllce raglone. ln: CHIODI, r. (Org.). Saittl morall. Torino:
Utet, 197Qa.
tem a ver com o outro, mas sim no sentido de que o outrp nos constitui .
do fundo de nós mesmos. Não que comunicamos com o outro, mas que _ _• CrlUca della raglon pratica. ln: CHIODI, r. (Org.). Salttl morall. Torlno: Utet, 1970b.

somos o outro. Que somos nada além do que o outro - como certa vez _ _• Che cosa slgnl/lca orlentarsl nel pensare. Lanciano: Carabba, 1975.

Rimbaud teria dito. Ou que somos estrangeiros para nós mesmos, como LYOTARD, J.-r: ll dlssldlo. Mliano: Feltrlnelll. 1985.

multas vezes se repetiu. Mas aqui está o ponto: como traduzir esta fórmula MASULLO, A. La comunltà come fondarnento. Napoll: Llbreria Sclentlflca fdltrice. 1965.
na realidade da nossa subjetividade? Como '"convencer" a nossa obstinada NANCY, J.-L. J:lmpératl{catégorlque. l"arls: rtammarlon, 1983.
identidade? Ainda uma vez, a comunidade nos repropõe o seu enigma: PHILONCNKO, A. 7héorle .:t praxts dans la pensée morale et politlqLce de Kant et de Fichte en
impossível e pecessária. Necessária e impossível. estamos ainda longe de 1973.Paris:Vrln, 1988.

tê-lo pensado a fundo. ROUSSeAU, J.-J. Dei contratto soclale. ln: ROSSI. r. (Org.). Opere. f1renze: Sansonl, 1972a.
_ _• Rousseau gludlce dl Jean-Jacques. ln: ROSSI, r. (Org.). Opere. f1renze: Sansoni, 1972b.
_ _ • emmo. ln: ROSSI, r. (Org.). Opere. rtrenze: Sansonl. 1972c.
STAROISINSKI, J, Jean-Jacques Rousseau: La trasparenza e l'ostacolo. Bologna: li Mulino, 1982.

. WRNE:S, P.-M. La uUle, lil fite, la démocratle: RoUS5eau et les llluslons de ia communauté. Paris:
'l"ayot, 1978.

82 83
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' MeLANCOLIA e CoMUNIDADe

)
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f. Que relação se apr~nta entre estes dois termos? Há algo de essen-
cialmente "comum'" na melancolia? E é a melancolia algo que tem a ver
) com a forma mesma da comunidade? A resposta que a literatura sobre a
) melancolia deu a esta questão foi prevalentemente negativa. ~a na acep-
ção patológica de doença do corpo e do espírito, saja naquela, positiva, de
) excepcionalidade genial, a melancolia foi geralmente situada em um âm-
) bito indMdual não apenas diverso daquele da comunidade, mas também
) a ele contraposto. Pode-se, aliás, dizer que para grande parte da tradição
interpretativa - sobretudo de derivação sociológica - o homem melancóli-
) co foi definido precisamente a partir de tal contraposição ao viver comum.
) A partir do seu ser propriamente não comum: doente, anormal, também
} genial - mas em todo caso, e propriamente por isso, fora da comunidade,
se não contra ela. Mais semelhante a uma fera ou a um deus - segundo
} a clássica definição aristotélica -, mas não ao homem na sua generalida-
) de, à comum generalidade dos homens. E, de fato, conquanto difundida,
) repetida, multiplicada em uma infinita variedade de casos e de tipologias,
conquanto estendida a um número crescente de indivíduos, a melancolla
) foi sempre entendida e tratada como um fenômeno propriamente indM-
) dual: somente o Indivíduo ou os Indivíduos podem ser melancólicos. Não
) a sociedade enquanto tal, a partir do momento em que um dos caracteres
prevalentes da melancolia é precisamente a associabilidade, o isolamento
) e a recusa da vida coletiva. A qual, por sua vez, na sua intenção operativa e
) produtiva, na sua coação à ordem e à racionalidade, é Interpretada como o
que não tolera em seu Interior a melancolia - a ponto de se dever llbertar
J dela mediante a expulsão, a repressão ou a inclusão terapêutica. Perma-
) nece, em todo caso, o esquema contrastante: melancolia e comunidade

,.. são pensadas na forma de uma recíproca repugnância. Onde há uma não

85
Tl!.RMOS DA POLÍTICA
CoMllNIO..Ot., l,wr,10Aot., BIOl'OI.ITICA

pode haver a outra. elas são, não apenas de modo fálico, mas conceitual- tência da comunidade da própria essência. Como o limite infrangível
mente, incompatíveis. no qual a própria comunidade bate e ricocheteia sem poder transpor.
Mas as coisas apresentam-se verdadeiramente assim? é propria- Ou como a Coisa - la chose ou das Ding - que não é possível realizar
mente verdadeiro que a melancolia está confinada no exterior da comuni- porque feita de nada e da qual não é possível apropriar-se porque cons-
dade - ou, no máximo, nos seus pontos cegos, nas zonas Improdutivas e tituída pela expropriação mesma. O que é o "comum" senão a falta de
irracionais que esta traz consigo como resíduos, segundo o caso, expulsos "próprio"? Senão o não próprio e inapropriável? este é precisamente
ou conquistados para a plenitude da vida coletiva? Na verdade, a grande o significado também etimologicamente inscrito no munus do qual a
filosofia moderna - como já a grande tradição iconológica e literária - communitas deriva e que traz consigo como o seu próprio não se per-
contestou radicalmente essa leitura simplificada e superficial, chegando tencer. Como o não pertencimento, ou a Impropriedade, de todos os
a inverter o pressuposto de partida em uma imagem bem diversamente ~embros que a formam à maneira de uma recíproca alteração, que é a
problemática. em uma figura, aliás, ela mesma melancólica, dobrada au- alteração da comunidade mesma: o seu ser sempre outro daquilo que
tocrtticamente sobre si: em confirmação, todavia, do fato de que a melan- quer ser, o seu não poder consistir enquanto tal, a sua impossibilida-
colia não é, nem pode ser, um simples objeto de análise, mas algo - uma de de fazer-se obra comum sem se destruir - eis o sentido e a raiz da
potência, um imã, um abismo - que tende irresistivelmente a capturar e nossa comum melancolia. Se a comunidade não é senão a relação - o
a sugar o próprio sl..\)eito que analisa. Ao contrário, a verdadeira fllosofia "com" ou o "entre" - que liga mais sajeltos, isso significa que ela não
sempre percebeu não apenas o caráter '"comum· da melancolia ao longo pode ser, por sua vez, um sajeito, nem individual, nem coletivo. Que
de um percurso Interpretativo, hoje bem conhecido, que vai dos Padres da ela não é um "ente" mas precisamente um ni-ente 116 , um não ente que
lgraja a Heidegger; mas - isso que importa ainda mais - o caráter origina- precede e corta cada st.tjeito subtraindo-o à identidade de si mesmo e
riamente melancólico, lacerado, fraturado, da própria comunidade. Sem- consignando-o a uma alteridade irredutível.
pre percebeu que a melancolia não é uma doença ocasional, um caractere Deste ponto de vista - que não se limita a sondar o encontro,
contingente ou mesmo um simples conteúdo da comunidade, mas alg~ mas que interroga o cruzamento aporétlco entre comunidade e melan-
que lhe concerne bem mais intrinsecamente até lhe constituir a própria colia - é posta em dúvida toda fácil analogia entre communitas e res pu-
forma. Não algo que a comunidade contém em coajunto a outras inclina- blica. A comunidade não é uma res e menos ainda a Res. Não é a Coisa,
ções, posturas, possibilidades, mas algo pela qual ela mesma é contida e mas a sua falta. A fenda da qual o nosso cum brota e na qual tende con-
determinada. Ou, ainda mais precisamente, "decidida•: algo que corta e tinuamente a submergir. Se não se compreende este nexo constitutivo,
desloca a comunidade em relação a si mesma, constituindo-a exatamente instltutivo, entre coisa e nada - que a melancolia a um só tempo suporta
como aquele corte e aquele resto. Como uma falha e uma ferida em que e custodia - corre-se o risco de permanecer numa imagem redutiva e
a comunidade não experimenta uma condição temporária ou parcial, mas simplificada da comunidade. Ou, pior, de forçar-lhe o acesso até fazê-la
o seu único ~odo de ser. e, ao mesmo tempo, de não ser. De ser precisa- explodir, ou implodir, com efeitos catastróficos. eis o que a melancolia
mente na forma do próprio "não". Do que deve ser, mas que precisamente desde sempre nos ensina: que o limite não é eliminável. Que a Coisa
não pode ser - senão em uma modalidade defectiva, negativa, côncava. Na não é inteiramente apropriável. Que a comunidade não é identificável
modalidade da ausência de si mesma que Jacques Lacan definiu "manque -consigo mesma - com toda ela mesma e com ela como um todo - a não
à être"114 ou "pure manque"11~. ser numa forma precisamente totalitária. e o que foi o totalitarismo deste
Aqui, nesta desagregação inicial, nesta rachadura do próprio · século se não a Ilusão - a furiosa ilusão - de identificar a comunidade a
Início, está a melancolia: não na comunidade e tampouco da comunida- si mesma e, desse modo, cumpri-la? A tentação fantasmática de abolir o
de, mas como comunidade: como resíduo originário que separa a exls-
116 No original em Italiano. Preferiu-se manter a expressão empregada pelo au-
tor com o uso neológl<".O do hffen. que ressalta o nl privativo e o Jogo com a palavra ente, o que
114 •falta de ser'". \N. do T.) permitiria traduzi-la tanto por "não ente" quanto por "nada" (esta última sendo a tradução literal
\ 1a -pura ta\ta". (N. do T.) do Italiano nlente). (N. do T.)

86 87
;;
)
) Ro8tRTO ESPOSITO

1
limite, de preencher a falha, de fechar a ferida. A presunção criminosa de a favor daquele que, para defender as suas vidas, é por estes autorizado
l que se poderia curar definitivamente a comunidade da sua melancolia. a dar também a morte.

,' Que seria possível imunizar-nos da enfermidade melancólica destruindo


os germes portadores - talvez na carne do povo melancólico por excelên-
eia: sem se dar conta de que tentar liberar a coisa do seu nada significa
o caráter não apenas melancólico, mas sem dúvida lutuoso,
de tal concepção encontra a confrontação mais lcástlca no mito que em
1btem e tabu, de f'reud, parece percorrer até o detalhe a lógica sacrlfl-
l aniquilar a coisa mesma. clal do paradigma hobbeslano: não apenas o ato constitutivo da comu-
) nidade é situado no assassinato do pai por parte dos Irmãos, mas este
2. Pois, se fosse compreendido o nó originariamente estreito é sancionado por uma dupla renúncia necessária para a establllzação
} entre a coisa comum e o nada, o caráter constitutivamente melancó- da ordem civil - renúncia às mulheres por causa das quais os Irmãos
) lico da comunidade, não aconteceria de ao resto dedicar-se a filosofia Unham matado o pai, renúncia à sua própria identidade produzida pela
) moderna. A que remelem, de fato, todas as narrativas sobre o delito incorporação do pai morto e pela lden tlflcação com a sua figura. Aqui
fundador - de caim a Rómulo - senão precisamente ao delinquir (no a caracterização melancólica dos "muitos" - precisamente os Irmãos
) sentido latino de "falta") do qual a sociedade nasce e que traz consigo assassinos, com frequência interpretados de modo otimista como os
) inevitavelmente? O que elas significam, uma vez despidas de seu signi- cidadãos livres da democracia - assume talvez a sua forma mais radi-
) ficado mítico de sacrifício vitimário, senão o trauma, a fenda, a lacuna cal: os sqfeltos da polftlca moderna podem constituir-se enquanto tais
escavada desde a origem no corpo mesmo da comunidade? Mas aquele apenas assumindo o lugar do antigo soberano que mataram. Mas, de-
) que eleva ao nível da teoria aquela ·que na mitologia clássica é ainda uma vorando-lhe o corpo, estes Incorporam a própria morte. Podem assumir
) tonalidade melancólica é Thomas Hobbes - quando traduz o dellnqulr o poder somente morrendo eles mesmos como sttjeltos, assujeitando- ·-q;tC• ,,·

) dos mitos fundadores na forma terrivelmente literal do delito infraespe- -se à morte. Els o verdadeiro motivo do sentimento de culpa que tra-
cífico colocado no início da comunidade humana. Mais ainda do que nas zem consigo: não apenas o assassinato do pai, mas a assunção interio-
} páginas dedicadas especificamente à melancolia - madness, dejectlon, rizada da sua morte. esta é a forma extrema da melancolia polftica: sa-
) grief, mas também explicitamente melancholy, como é definida no Le- criffcio do pai, primeiro, e dos irmãos ao pai sacrificado, depois. Duplo
) viatã - é precisamente no pressuposto da matança generalizada como sacriffclo, sacrlffcio ao quadrado. Sangue e Inibição - Inibição e sangue.
forma originária da relação inter-humana que se encontra o caráter es- Nós - declaram os irmãos - somos o Soberano, a Comunidade, o Esta-
) truturalmente melancólico da teoria política hobbesiana. Para Hobbes a do. Mas o somos enquanto pertencemos desde sempre e para sempre à
} melancolia não é apenas uma das paixões destrutivas que, se privada morte que um dia demos e comemos. Somos o quejamals fomos e que
) de freios, corre o risco de conduzir os homens à guerra civil; e já isto a não podemos mais ser: somos o outro que pensávamos ter expulsado
define, mais que como uma patologia individual, com uma doença do para sempre e que sempre retorna em nós. O que representa a célebre
} polltical body, do corpo político no seu cortjunto. Mas ela se revela, a imagem do Leulatá, composta de tantas pequenas figuras Incrustadas
} uma consideração mais aprofundada, como a estrutura mesma de uma uma na outra, senão a Incorporação recíproca do pai morto nos filhos
) existência social inteiramente fechada no intercâmbio político entre dois e dos filhos no pai morto? E não era precisamente esta a essência ma~s
medos - o recíproco de cada um nos confrontos com o outro e o que negra da melancolia simbolizada em Saturno que devora os próprios
) o próprio Estado deve incutir para impedir a propagação destrutiva do filhos antes de ser, por sua vez, castrado por eles?
} primeiro. O que desse modo se configura é uma dupla melancolia ou Pode-se dizer que todo grande pensamento sobre a política
um dobrar-se da melancolia sobre si mesma - melancolia da causa e do traz consigo esta imagem de culpa e de perdição. Inclusive para aqueles
)
remédio, do estado natural e do estado civil, da violência originária e da que mais claramente contestaram a lógica sacrlftclal hobbeslana. Come-
) violência derivada. Não por acaso a ordem política - a Instituição do es- çando por Rousseau. Certamente, com relação a Hobbes, tudo aparece
) tado - é fundada sobre uma renúncia por parte dos súditos a todo poder invertido na intenção e nos êxitos, mas não o pressuposto de fundo de
}
} 88 89
\.

TeRMos DA PoLITICA f
CoHUNlo.\De, IHUNl""O~. BIOl"OUTICA

f
que a política permanece marcada por uma culpa originária. Por um de- .3. Já nesta passagem, porém, adverte-se algo, um tom, um
feito, por um débito,. por uma ferida que ela não poderá Ja.mals sanar acento, que força o quadro radicalmente negativo no qual até agora se t
historicamente porque a história mesma lhe é portadora na medida. em definiu a relação entre comunidade e melancolia: é verdade que a co- f
que se destaca da própria origem não histórica. Aqui, com relação ao munidade é por si só subtraída a toda possibilidade de cumprimento.
modelo sacriftclal hobbeslano, a melancolia, a doença dos ..muitos"', não . Que não se dá senão na forma da falta e do defeito. Mas contemporane-
f
concerne ao caráter lacerado da origem, mas sim à separação Irreversí- amente aquele defeito, aquele limite, é sentido também como o que une { ..

vel que nos arranca dela. Daí a melancolia do homem rousseauniano, se- os homens num destino comum: aquele, propriamente, da sua finitude f
parado do próprio pressuposto e em contradição com ele - como aquele mortal. Na realidade, para que este trânsito conceituai - não a uma lei-
{
que não pode ser o que deveria ser. A melancolia de uma existência que tura menos melancólica da comunidade, mas a uma interpretação mais
perdeu a própria essência e de uma essência que não encontra mais ma- articulada e aberta da melancolia - cumpra-se, é preciso esperar Kant. {
neira de se fazer existência. Em Rousseau, a fratura da melancolia corta o é com ele que, na filosofia moderna, inicia uma rotação do conceito de {
horizonte todo da história. A história mesma se configura como o estrato melancolia sobre si mesmo, cajos efeitos não são ainda hoje inteira-
{
ininterrupto da melancolia. Seguramente, a comunidade não é mais a mente percebidos, mas em cttja onda de choque ainda nos movemos
comunidade hobbesiana dQ delito, mas a ela é subtraída toda possível sem conhecer o ponto de onde ela nos impele. E isso não porque em {
realização. Aqui está a sua irremediável melancolia: ela não é definível Kant não ressoe ainda uma nota trágica, soturna, lutuosa, de origem (
senão com base na falta da qual deriva e que a conota como ausência, pietístico-luterana, relativa ao caráter irremediavelmente defeituoso da
(
ou defeito, de comunidade. Não é Interpretável a não ser em razão deste natureza humana - a metáfora do "pau torto" que nenhuma lei racional
impossível, do que ela não é e que não poderá jamais ser; assim como poderá endireitar. E tampouco porque falte na sua obra um léxico da (
a natureza não é reconhecível senão pelo lado da sua necessária des- "culpa" e do "mal radical" como elemento sinistramente caracterizante da (,
naturação, pelo cone de sombra que o seu contrário projeta sobre ela. esfera inteira do agir e do próprio ser do homem. Por esse lado, aliás, a
{)
lbda a obra de Rousseau - compreendidos seus textos autobiográficos posição de Kant é também mais desesperada que a de Rousseau, porque
que marcam um ápice da literatura melancólica de todos os tempos - é privada de toda mitologia positiva de origem natural: a filosofia kantiana (1
legível como pungente nostalgia nos confrontos da comunidade ausen- não prescreve algum retorno à origem natural do homem porque esta (\
te. 1ambém a contínua proclamação - sobretudo nos ~lUmos escritos contém um germe rad_icalmente negativo. É por isso que no homem de
(
- da própria solidão é o decalque negativo de uma absoluta necessida- Kant não há nenhum sonho de reapropriação da própria essência - como
de de compartilhamento. Jean-Jacques está sozinho porque não existe ainda ocorria em Rousseau e como para certas vozes ocorrerá em Marx: (
comunidade verdadeira, porque todas as comunidades existentes cons.: porque aquela essência é desde o início marcada por um traço que a {
tituem a sua mais direta negação. A sua própria escrita assume o caráter desfigura de maneira irremediável. Deste ponto de vista, não se pode
melancólico de "solidão para os outrosH. t - por extremo paradoxo - a mais dizer - como para Rousseau - que a origem natural decaíra na
(
comunicação da própria impossibllidade de comunicar. A reivindicação história, mas sobretudo que a história caiu, precipitoupse, na fenda da 4.
insatisfeita de um "lugar comu~" reconhecível somente pelo lado da sua origem. Na origem do homem, para Kant, hájá aquela liberdade que leva {·
subtração - na sua absoluta fragilidade: ..Os homens - escreve Rousseau implícita a possibilidade do mal.
no emmo - não são naturalmente nem reis, nem grandes, nem corte-
{
E, todavia - eis o eixo de rotação do discurso de Kant, desti-
sãos, nem ricos; todos nasceram nus e pobres, todos sajeltos às misé- nado a reconverter em termos afirmativos também a sua definição da (
rias da vida, aos desprazeres, aos males, às necessidades, às dores de melancolia -, se a liberdade traz consigo a possibilidade do mal, isso {
toda espécie; enfim, todos são condenados a morrer. Els aquilo que é signlflca também que a possibilidade do mal está sempre suspensa
(_ '
verdadelramente do homem; els aquilo de que nenhum mortal é isento,. em um ato de liberdade, que pode sempre converter-se em bem. E,
(ROUSSEAU, 1972b, p. 501-502). de fato, precisamente à liberdade - ao seu caráter profundamente an- { \

{
90 91 t
(.
(
j ,.-
)
) RoB~RTO Esrosrro

l tinômico - Kant liga a essência da melancolia. Como é sabido, Kant se Iconológica da melancolia encontrasse um lugar final de condensação e
l detém sobre o temperamento melancólico sobretudo no ensaio sobre de superação. Como se tal história se intenslflcasse até a incandescência
) o belo e o sublime: nele a melancolia é ligada de modo particular ao e a combustão - até queimar e assumir uma nova forma. Já em Ser e
que Kant entende por sublime, ou saja, àquele afeto que nasce da sen- tempo, de fato, Heidegger compreende ambas as declinações da me-
l sação de inadequação à tarefa da imaginação de adequar-se à ideia. t, · lancolia - a negativa, da trlstttla, da acédia, e a positiva, da consciência
) vale dizer, ligada àquele impulso que, aspirando à Uimitabllidade, faz a profunda da flnltude, situando-as - a primeira - na esfera do Inautêntico,
) experiência da infrangibilidade do limite. Como o sublime, assim a me- do impróprio e - a segunda - na esfera da existência autêntica e própria.
lancolia é a experiência traumática do limite: da tendência a transpô-lo enquanto no primeiro caso a melancolia (Schwermut) é o CQmportamen-
)
e da impossibilidade de fazê-lo. Isso - essa dialética.melancólica - tem to de passar de um desajo a outro sem satisfazer algum, e a sofrer o pró-
) a ver com a natureza mesma da lei kantiana, caracterizada por uma prio limite como obstáculo e vínculo, no segundo ela tem a ver sobretudo
) antinomia constitutiva. A lei - o imperativo categórico - não pode ser ja- com aquela angústia (Angst) a que se acrescentam não a depressão, mas
) mais realizada não apenas pela irresistível tendência do homem de ln- a "quietude"-e também a "alegria" de assu~ir o limite, a finitude, como a
fringi-la, mas, ainda mais a fundo, porque não prescreve nada além da nossa condição mais própria.
t própria obrigatoriedade, nenhum conteúdo ulterior à obrigação formal Porém, o que conta ainda mais, e que se esclarece de maneira
) da obediência. Por isso o imperativo categórico é não apenas inadimplí- sempre mais· umplda a partir da assim chamada virada heideggeriana
) vel, mas é o Inadimplível mesmo. Prescreve àquele ao qual se dirige um dos anos trinta, é que esta dupla fenomenologia da melancolia não tra-
estatuto de perene inadimplência. Daí a melancolia do sajeito kantiano duz duas possibilidades diversas e opostas da experiência humana, mas
) - mas também a consciência, que esta lhe restitui, dos próprios limites. sim as suas duas faces sempre cortjugadas - a partir do momento em
) É por isso - pode concluir Kant - que a melancolia é assimilável a uma que o autêntico .não é senão a consciência madura da nossa inauten-
virtude que vai muito além do genérico nexo aristotélico e flcinlano com ticidade originária, assim como o próprio é a assunção consciente do
)
a genialidade: a melancolia é para Kant uma virtude - porque, arran- caráter constitutivamente Impróprio da nossa existência. é por este lado
) cando o homem de toda autovalorização indevida, lhe promove aquela - certamente, por Heidegger, nem sempre trazido ao primeiro plano e
) consciência moral que forma um todo com a sua própria liberdade. em mais de uma ocasião também distorcido e trafdo - que a melancolia
} Batendo continuamente contra o próprio limite insuperável, o homem recebe uma outra formulação. é, vale dizer, entendida não mais - ou
melancólico é o único a compreender que o único modo de realizar a não somente - como uma postura anormal ou genial, mas como algo
) falta é o de mantê-la como tal. Que a Coisa é inseparável do nada. Que que tem a ver com a forma mesma do pensamento: "Todo agir criativo -
) o Real - "a coisa em si" - é inapropriável. Ele, o homem melancólico de escreverá então Heidegger - tem lugar na melancolia (Schwermut) [ ... ]
Kant, sabe que a comunidade enquanto tal não é realizável, que o mu- Enquanto agir criativo e essencial do ser-aí humano, a filosofia está na
}
nus da nossa communitas é a lei que veta o seu perfeito cumprimento. Onmdstlmmung 117 da melancolia" (HEIDEQQER, 1992, p. 271). Como é
t Mas talvez seja ao mesmo tempo o primeiro a saber que aquele munus entendida esta afirmação de Heidegger? em que sentido a melancolia
} é também um dom. Que aquele impossível, recordando aos homens a toca a filosofia até coincidir inteiramente com ela? Seguramente, res-
sua flnitude, os dota também da liberdade de escolha que ela comporta ponder de maneira adequada a esta questão signlflcaria ter já atraves-
)


como a sua necessária inversão. sado - e, antes ainda, apreendido em toda a sua extensão e intensidade

) 4. Ao fim deste percurso, e ao início de um novo pensamento


117 "Tonalidade afetiva fundamental", segundo a tradução brasileira da obra
da melancolia que não saja mais traduzível numa melancolia do pensa- heldeggerlana (Os conceitos fundamentais da mct,af(slca. 1l'adutor: Marco Antonio Cesanova.
) mento, que deixe ao pensamento a força e a coragem de livrar-se de toda Rio de Janeiro: forense Unlveralbirla, 2006. p. 213), ~mple de 4nlmo fundamental•, na ver-
são espanhola (Los conceptos fundlimentales de la metaf(slca. nadutor: Alberto Clrla. Madrid:
) tonalidade melancólica, ao fim deste percurso aberto por Kant há natu- Allanza edltorlal, 2007. p. 252). Outras formas, talve% menos técnicas, de se traduzir o vocábulo
Orundstlmmung seriam: ·disposição fundamental·, "afinação fundamentai-, ·estado de ânimo

,
) ralmente Heidegger. Nele é como se toda a história filosófica, literária e

92
fundamentnt•. (N. do T.)

93
\
ThKMos DA PoLITICA
CoMUNID,\DC, IHUNII.IIIDC, 6IOl'OLlí1<.A
f
- a margem sobre a qual ainda nos movemos. Significaria já estar na
f
abertura que o encerramento [chiusura] do horizonte metafisico.descer- f
ra [dlschiude] sobre os seus confins exteriores. Slgnlftcaria compreender BINSWANQCR. L. Melanconla e manla.1brlno: Boringhleri, 1983.

BURTON, R.Anatomla delta mallnconla. Venezla: Marslllo, 1985.


f
o sentido novo liberado pelo completo exaurimento de todo signltlcado
que a nossa civilização lncuravelmente hermenêutica sempre pressupôs COLANOCLO, e. Limite e melanconla. Napoll: Loffredo, 1998. f
e impôs à indeterminação originária do sentido. D1PPOLrro, 15. M. Oeometrla e mallnconta. Qenova: Marlettl, 1992. f.
Tudo isso está ainda distante das nossas possibilidades, con- esrosrro, R. Communltas: Origine e destino delta comunltà. Torlno: Clnaudl, 1998. @'
fiado a um tempo ainda por vir. e, entretanto, dele algo já se pode dizer· flmUD, s. Totem e tabu. ln: Opere. 1brino: Borlnghleri, 1975. v. vu.
a partir da margem mais extrema da filosofia de Heidegger. Algo que,
{
QALZIQNA. M. La malattla morale. Venezla: Marslllo, 1988.
ainda uma vez, tem a ver com a questão da comunidade. Afirmar que
HCIDCQQCR. M. l!ssere e tempo.1brlno: Utet, 1969.
t
a melancolia pode coincidir com a essência mesma do pensamento a (
_ _• 1 concettl fondamentall della meta{lslca: Mondo-flnltezza-solltudlne. Qenova: Marietti.
partir do momento em que não há nenhuma oposição entre autêntico 1992.
e inautêntico; que a nossa dimensão mais própria está precisamente na
(
HOBBCS, T. ll Levlatano. rtrenze: La Nuova ltalla, 1976.
consciência da nossa Impropriedade essencial - que não temos uma es-
KANT, 1. OlUca del gludlzlo. Roma-Barl: Laterza, 1970a.
{
sência diversa da simples existência: pois bem, tudo isso significa que a (
-~-·_.Critica delta raglon pratica. ln: So"lttl morall.1brlno: Utet, 1970b.
incompletude, a flnltude, não é o •limite da comunidade - como semp~e
imaginou o traço melancólico do pensamento - mas exatamente o seu
KLIBANSKJ, R.; PANOfSKJ, R.; SAXL, F. Saturno e la melanconla. Torlno: Clnaudl, 1983, (,
LCP8NICS, W. Melanconla e socletà. Napoli: Qulda, 1985.
sentido. Por Isso Heidegger pode escrever não apenas que "o ser-sozi- (
ROUSSl!AU, J.-J. Rousseau giudlce dl Jean-Jacques. ln: Opere. rtrenze: Sansonl, 1972a.
nho é um modo defeituoso do ser-com-, mas-também que "é a relação (,
mais vinculante nos confrontos dele" (Hl!IDEGCIBR). Porque a comuni- _ _ • emmo. ln: Opere. Mrenze: Sansonl, 1972b.

dade não é algo a que se deva retornar, como queria Rousseau, ou a _ _• Le passegglate solltarle. ln: Opere. Mrenze: Sansonl, 1972c. (1
que se deva aspirar, como queria Kant. Mas tampouco é algo a destruir, SCHICRA, r. Specchl della polltlca: Disciplina, melancolia, soclalltà nell'Occldente moderno. Bo- 4:: ✓
logna: li Mullno, 1999.
ou de destruível, como pensava Hobbes. Não é nem uma origem nem (1
STAROBINSKI, J. Storla dei tratamento della. mallnconla dalle orlglnl ai '900. Mllano: Querlnl,
um telos, nem uma finalidade nem um final, nem um pressuposto nem
1990.
uma destinação, mas a condição, ao mesmo tempo singular e plural, {
da nossa existência finita. t aqui - nesta assunção do limite não como (
espaço liminar a suportar ou a romper, mas como o único lugar comum
(
que nos foi destinado, como o munus originário que nos acomuna - que
o pensamento da melancolia toca o ponto para além do qual ainda não (
sabemos andar, mas a partir do qual ao nome antigo de "melancolia" { \

corresponderá um significado certamente diverso de todos aqueles que


{1
a tradição até agora lhe conferiu.
4-
t 1
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{
94 95 (
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'
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CoMUNIDADe e NIILISMO
}
)

,
)

)
} 1. Que relação se apresenta entre estes dois termos? A resposta prove-
) niente das várias filosofias da comunidade - mas também de uma Interpre-
tação difundida do niilismo - é no sentido de uma radical contraposição.
J Nilllsmo e comunidade estão numa relação não de simples alterldade, mas
) de contraste frontal que não admite pontos de contato nem zonas de so-
} breposição. Eles excluem-se reciprocamente: onde há um - ou quando há
) u'm - não há a outra e vice-versa. Que a oposição est~a situada no plano
slncrônico ou ao longo de uma trajetória diacrônica, o que conta é a lim-
) pidez da alternativa entre dois polos que parecem assumir significado exa-
) tamente a partir de sua irredutibllidade. O nlllismo - em suas conotações
mais peculiares de artificialidade, anomia, insensatez - é percebido como
)
aquilo que tomou impossível, ou inteiramente impensável, a comunidade,
} enquanto a comunidade se autolnterpreta desde sempre como aquilo que
) resiste à, contém a e contrasta com a deriva niilista. t substancialmente o
papel conferido à comunidade pelas concepções comunais, comunitárias,
_)
comunicativas que há mais de um século identificam nela a única proteção
} contra a potência devastadora do nada atualmente em expansão na socie-
) dade moderna. O que muda, no concernente a tal cenário, é a ordem de
sucessão que se atribui, conforme o caso, aos dois termos, e não o seu ca-
)
ráter rigidamente dicotômico. Se ferdinand Tõnnles situava a comunidade
) antes da sociedade - segundo uma genealogia mais tarde apropriada por
todas as filosofias do declínio, da traição e da perda nascidas tanto à direita
-•) quanto à esquerda na passagem do século -, os atuais neocomunitarlstas
de além-mar Invertem os tempos da dicotomia sem discutir, contudo, o pla-
) no de fundo: é a comunidade, ou melhor, as comunidades particulares em
) que se estiUtac;a o arquéttpo tõnneslano, que sucede à sociedade moderna
numa fase marcada pela crise do paradigma estatal e pela difusão do confli-
J
) 97
l .

TuRMOS DA PoLITICA f
Cot1ur,1°"oc, IHUM>ADC, B1ot"OLmCA

f
to multicultural. Neste caso, a comunidade não é mais compreendida como ra, mas sim a tendência de fundo da sociedade moderna que atingiu hoje
um fenômeno residual com relação às formas socioculturais assumidas a sua máxima expressão. e então? O único modo de solucionar a questão
f
pela modernidade, mas sobretudo como uma réplica à insuficiência do seu sem renunciar a nenhum dos seus termos passa pela necessidade de reu- (
modelo indMdualfstlco-universallsta: é a mesma sociedade dos indMduos, nir numa única reflexão comunidade e niilismo. e, aliás, de ver no cumpri- (,
Já destrutora da antiga comunidade orgânica, a gerar agora novas fomias mento do nlillsmo não um obstáculo intransponível, mas a ocasião para
comunitárias enquanto reação póstuma à própria entropia interna. -Volta a um novo pensamento da comunidade. Isso não quer dizer, obviamente,
{
se configurar também, por esse lado, a exdusão redproca com o niilismo: que comunidade e niilismo resultem identificáveis ou mesmo apenas si- f
a comunidade avança ou se retrai, expande-se ou se contrai, segundo ,o métricos. Que esttjam situados no mesmo plano ou ao longo da mesma {
espaço ainda não "colonizado" por aquele. Quando Habermas contrapõe trajetória. Mas sim que se cruzam num ponto do qual nenhum dos dois
uma racionalidade comunicativa a uma racionalidade estratégica, permane- pode prescindir, pois resulta, de diferentes maneiras, constitutivo de am- f;
ce no Interior do próprio paradigma interpretativo, com um ulterior acento bos. Este ponto - descuidado, recalcado ou anulado pelas atuais filosofias li
de caráter defensivo: a "comunidade ilimitada da comunicação" constitui ao comunitárias e em geral pela tradição filosófica-política - pode ser indica-
mesmo tempo o ponto de resistência e a reserva de sentido em relação à do como o "nada". t Isso que comunidade e niilismo possuem em comum
f
progressiva h1vasão da técnica. Que ela stja considerada como um a priori sob uma forma que até agora permaneceu amplamente não questionada. (
transcendentqt - ao invés de factual, como na mais rudimentar abordagem Mas em que sentido? Deixemos por ora em suspenso - com a (
neocomunltárla -, não desloca o quadro hermenêutico de fundo: também ressalva de retomá-la daqui a pouco - a questão, de maneira alguma sim-
(,
neste caso a comunidade, possível - se não real -, é entendida como a Unha ples, da relação do nada com o niilismo. E permaneçamos na comunida-
de confim e o muro de contenção frente ao avanço do niilismo. Algo de ple- de. Viu-se como ela foi tradicionalmente contraposta como a nossa própria (
no - uma substância, uma promessa, um valor - que não se deixa esvaziar coisa; e, aliás, como se a sua definição formasse um todo com tal contra- (,
no turbilhão do nada. t uma outra configuração daquele embate entre a posição: a comunidade não apenas diversa do e irredutível ao nada, mas
{
..coisa" e o '"nada" que serve de pressuposto a toda a tradição que estamos coincidente com seu mais explícito contrário - com um "todo" inteiramente
examinando: contra a explosão - ou implosão - do nada, a comunidade repleto de si mesmo. Ora, creio que stja exatamente este o ponto de vista {
mantém firme a realidade da coisa: antes, é a coisa mesma que se opõe à a ser não somente problematizado, mas sem dúvida invertido: a comuni- (i
própria aniquilação. dade não é o lugar da contraposição, mas o da sobreposição entre coisa e
(
nada. Procurei justificar esta tese mediante uma análise, ao mesmo tempo
2. Porém, trata-se de um pressuposto aceitável, ou não é Justa-
mente ele que bloqueia um pensamento da comunidade à altura· do nosso
etimológica e filosófica, do termo communitas a partir de munus, de que «
ele deriva (ESPOSITO, 1998). Aquilo que resultou de modo conclusivo é a (·
tempo - que é propriamente o do nlllismo completo? Se o assumíssemos . sua distância categorial de toda ideia de propriedade coletivamente pos-
enquanto tal, estaríamos necessariamente constrangidos à_ escolha entre (
suída por um conjunto de indivíduos - ou mesmo do seu pertencimento a
duas hipóteses igualmente inadmissíveis: ou negar a postura constitutiva- uma identidade comum. O que, segundo a originária valência do conceito, {'
mente niilista da época presente, ou excluir a questão da comunidade do os membros da communitas compartilham - justamente o complexo (mas {'
nosso horizonte de pertinência. Para falar de comunidade em termos não denso) significado de munus - é sobretudo uma expropriação da própria
simplesmente nostálgicos, restaria o caminho de circunscrever o niilismo (
substância que não se limita ao seu "possuir", mas envolve e deteriora o seu
a um aspecto, ou a um momento particular, da nossa experiência. Con- próprio "ser sajeitos". Aqui, o discurso assume uma dobra que o desloca (,
siderá-lo um fenômeno "'a termo·, destinado a certa altura a dissolver-se do terreno mais tradicional da antropologia, ou da filosofia política, àquele
ou, ao menos, a regredir. Ou ainda compreendê-lo como uma doença
4-
mais radical da ontologia: que a comunidade stja ligada não a um mais e
que Invadiu somente determinados órgãos de um corpo, por sua vez, são. sim a um menos de subjetividade significa que os seus membros não são '-
Contudo, tal raciocínio reducionista se choca contra todas as evidências, mais idênticos a si mesmos, mas estão constitutivamente expostos a uma {'
convergentes ao Indicar no nllllsmo não um parént~ ~em uma co1')untu- .
t
98 99 {'
(
<
j)
) \
-, RosimTO Esrosrro
\

)
tendência que os leva a forçar os próprios confins individuais para se defron- como relação. A dlstlnc;ão é Importante porque é a que nos restitui, de ma-
l tarem com o seu "fora". Deste ponto de vista - que rompe toda continuidade neira mais evidente, a sobreposição de ser e nada: o ser da comunidade
-,
}
l
do "comum" com o "próprio", ligando-o sobretudo ao impróprio - volta ao
primeiro plano a figura do outro. Se o sttjeito da comunidade não é mais
o "mesmo", será necessariamente "outro". Não um outro sttjeito, mas uma
cadeia de alterações que não se fixa jamais numa nova identidade.
é o resto, o espaçamento, que nos reporta aos outros em um comum não
pertenclmento. Numa perda de próprio que jamais chega a acrescentar-se
num bem comum: comum é somente a falta, não a posse, a propriedade,
a apropriação. Que o tem10 munus saja entendido pelos latinos tão só
1
} como o dom feito e jamais como aquele recebido - denotado porém pelo
:3. Mas se a comunidade é sempre dos outros e nunca de si, sig- vocábulo donum - quer dizer que é por princípio privado de "remunera-
)
nifica que a sua presença é constitutivamente habitada por uma ausência ção". Que a falha de substância subjetiva que ele determina permanece tal
) - de subjetividade, de identidade, de propriedade. Significa que ela não é - não é preenchível, sanável, cicatrizável. Que a sua abertura não pode ser
) uma "coisa" - ou é uma coisa definida precisamente por seu não. Uma "não · fechada por nenhuma reparação, ou ressarcimento, se quiser permane-
coisa". Ora, como é compreendido tal "não"? E como se relaciona com a cer efetivamente compartilhada. Pois no conceito de "compartilhamento"
}
coisa à qual concerne? Certamente, não no sentido de uma pura negação. o "com" está associado precisamente à "divisão". O limite a que ele alude
) O nada-em-comum não é o contrário do ente, mas sim algo que lhe corres- é aquele que une não no modo da convergência, da conversão, da con-
) ponde e lhe copertence muito mais intensamente. Entretanto, propriamente fusão, mas sim no da divergência, da diversão 119, da difusão. A direção é
sobre o sentido desta correspondência, ou copertencimento, é preciso não sempre de dentro para fora, Jamais de fora para dentro. A,comunidade é
)
incorrer em equívoco. O nada da communitas não é interpretado como o a exteriorização do interior. Por isso - porque oposto à ideia de Interiori-
) que ela ainda não pode ser; como o momento negativo de uma contradição zação, ou tanto mais de Internamento - o inter da comunidade não pode
) destinada a se resolver dialeticamente na identidade dos opostos. E tam- ligar senão algumas exterioridades ou algumas "safdas", alguns sttjeitos
pouco é interpretado como a ocultação em que a coisa se retira porque não debruçados sobre o próprio fora. Este movimento de descentramento é
)
pode desvelar-se na plenitude de uma pura presença. Em cada um destes reconhecível na mesma ·ideia de "partilha" - que remete coflluntamente
) casos, de fato, ele não permaneceria o nada da coisa, mas se transformaria a "compartilhamento" e a "partida": a comunidade não é jamais um lugar
) em algo outro a que esta última se relacionaria na forma da teleologia ou pe chegada, mas sempre de partida. e, aliás, a partida mesma em direção
da pressuposição. Seria o seu passado ou o seu futuro. Não o seu simples àquilo que não nos pertence e que não poderá jamais nos pertencer. Por
)
presente: aquilo que ela é - que não é outro senão ela. O nada não é, em isso a communitas está bem distante de produzir efeitos de comunança,
j suma, a condição ou o êxito da comunidade - o pressuposto que a libera de acomunação, de comunhão. Não aquece e não protege. Ao contrário,


}
para a sua "verdadeira" possibilidade-, mas sim o seu único modo de ser. A
comunidade, em outras palavras, não é interdita, obscurecida, velada, mas
constituída pelo nada. Isso quer dizer simplesmente que ela não é um ente.
expõe o s4.leito ao risco mais extremo: o de perder, com a própria individu-
alidade, os confins que lhe garantem a intangibilidade por parte do outro.
De resvalar subitamente no nada da coisa.
) Nem um sttjeito coletivo, nem um cortjunto de sujeitos. t sim a relação que
} não os faz mais serem tais - sujeitos individuais - porque interrompe a sua . 4. t em referência a tal nada que é colocada a questão do nii-
identidade com uma barra que os atravessa alterando-os: o "com", o "en- lismo, mas sob uma forma que preenche, juntamente à conexão, também
} a distinção dos planos sobre os quais ela se apoia. O niilismo - quero
tre", o limiar sobre o qual eles se entrecruzam num contato que os reporta


_)
aos outros na medida em que os separa de si mesmos.
Poder-se-ia dizer que a comunidade não é o inter do esse, mas o
esse como inter118: não uma relação que modela o ser, mas o ser mesmo
dizer - não é a expressão, mas a supressão do nada-em-comum. Certa-
mente, ele tem muito a ver com o nada, mas precisamente na forma do
seu aniquilamento. Não é o nada da coisa, mas do seu nada. Um nada ao
}
)
118 Em latim, inter ["no interior de doisH, "entre", "no espaço de"]; esse ["ser", 119 O termo Italiano dlverslone porta o sentido de ·desvio", de "mudança de
) "estar'1• (N. do T.) direção". (N. do T.)

t 100 101
Te.RMos DA PoLITICA
C0Mun1t>Al>r:., !t1llNll>At>t., Bu>rolhte.A f
quadrado: o nada multiplicado e ao mesmo tempo devorado pelo nada. a coisa mesma; por sacrificar ao interesse individual não apenas o inter
f
Isso significa que se dão ao menos dois slgnlftcados, ou dois níveis, do do esse, mas também o esse do inter. Todas as respostas modernas que, f
nada que se mantêm distintos, não obstante a e dentro de sua aparen~ nó curso do tempo, serão fornecidas ao "problema hobbesiano da ordem"
coincidência. ~nquanto o primeiro, como se viu, é o da relação - a lacuna,
ou o espaçamento, que faz do ser comum não um ente, mas uma relação
-, o segundo é, ao invés, o da sua dissolução: a dissolução da relação no
1
- sob a forma declsionlsta, funcionalista, slstêmica - correm o risco de
permanecerem presas neste círculo vicioso: a única maneira de conter os
perigos implícitos na carência originária do animal-homem aparece como
'
f
f
caráter absoluto do sem-relação. sendo a construção de uma prótese artificial - a barreira das instituições {
Se olhamos por este lado o absolutL.c;mo hobbeslano, as passa- - capaz de protegê-lo do contato potencialmente destrutivo com os seus
gens de tal "solução" assumem uma clareza sem confrontos. Que Hobbes semelhantes. Contudo, assumir como forma de mediação social precisa-
{'
inaugura o moderno nlllismo político não é, de fato, compreendido sim- mente uma prótese, ou saja, um não órgão, um órgão faltante, significa (·

plesmente no sentido corrente de que ele "descobre" o nada de substância fazer frente ao vazio com um vazio ainda mais extremo, porque desde o t(
de um mundo liberado do vínculo metafisico com respeito a toda ventas início preso e produzido pela ausência que deveria compensar. o mesmo
transcendente, mas, acima de tudo, no sentido de que o "recobre" com um principio representativo, concebido como o mecanismo formal destinado f
outro, e mais potente, nada que tem precisamente a função de anular os a conferir presença a um ausente, não faz mais que reproduzir e poten- (
efeitos potencialmente dlssolutivos do primeiro. Assim como a polnte 120 cializar aquele vazio na medida em que não consegue conceitualizar seu (
da sua filosofla polftica está na invenção de uma nova origem voltada a caráter originário e não derivado. Não consegue compreender que o nada
barrar, e reconvertei' em coação ordenadora, o nada originário - a ausên- que deveria suprir não é uma perda de substância, de fundamento, de va-
(,
cia de origem - da communltas. Naturalmente, essa estratégia contraditó- lor - ligados a um traço - que veio dissolver uma ordem precedente, mas é (
ria de neutralização - esvaziar o vazio natural mediante um vazio artificial o caráter mesmo do nosso ser-em-comum. Não tendo querido, ou sabido, (
criado ex nlhllo - nasce de uma interpretação inteiramente negativa, e escavar mais a fundo no nada da relação, o niilismo moderno se encontra
aliás catastrófica, do principio de compartilhamento, do compartilhamento consignado ao nada do absoluto - ao absoluto nada. (
inicial do ser. é propriamente a negatividade sem escapatória atribuída {,
à comunidade originária que Justifica uma ordem soberana - o estado , 5. t disso que tenta fugir a moderna filosofia da comunidade
{
Levlatã - capaz de Imunizar preventivamente a partir de seu Insustentável mediante uma opção igual e contrária que termina, todavia, por recair no
munus. Para que a operação tenha êxito - vale dizer, ~a logicamente mesmo niilismo que queria afrontar. O que se absolutiza, em vez do nada, (
racional, não obstante o altíssimo preço de sacrifício e de renúncia que é agora a coisa. Mas o que quer dizer absolutizar a coisa, se não aniquilar - (
requer -, convém não apenas que tal munus comum saja privado de sua e, portanto, ainda uma vez, potencializar - o próprio nada? A estratégia não
é mais a de esvaziar, mas, ao contrário, de preencher o vazio determinado,
(
vertente de excesso donativo a favor daquela de defeito; mas também que
este defeito, no sentido neutro do dellnquere latino - como falta -, ~a e aliás constituído, pelo munus originário. O que - a partir de Rousseau até t{
o comunitarlsmo contemporâneo - aparece como uma proposta alternati-
compreendido nos termos de um verdadeiro e próprio ..delito#, ou, antes,
va se revela, porém, como o reverso especular da imunização hobbesiana,
t
de uma irrefreável cadela de potenciais delitos.
com que compartilha s~a o léxico subjetivista, saja o êxito particularista
(
é esta torcedura interpretativa radical - do nada-em-comum à
comunidade do delito - que determina o cancelamento da communitas a - aplicado desta vez não ao indivíduo, mas à coletividade em seu con- {,
favor de uma forma política fundada sobre o esvaziamento de toda rela- junto. Aquilo que, em todo caso, acaba - triturado pela sobreposição de
inqividual e coletivo - é a relação mesma, entendida como modalidade ao
l
ção externa ao vínculo vertical entre indivíduos e soberano e, logo, sobre
mesmo tempo singular e plural da eKistência: anulada, no primeiro caso,
(
a própria dissociação. Partindo da exigência de proteger a coisa do nada
que parece ameaçá-la, Hobbes termina assim por aniquilar, com o nada, pelo caráter absoluto que separa os indivíduos entre si e, no segundo, l
pela sua fusão num único sajeito fechado na Identidade consigo mesmo.
l
120 "fonta", em francês, no original. (N. do T.) Se é assumida a comunidade rousseaunlana de Clarens como o modelo,

102 10.3 (
(
(
J
)
) RostRTO esPOSrro

l reproduzido infinitas vezes, de tal autoidentiflcação, se lhe reconhecem ln ., por isso mesmo, reencontrável na Interiorização de uma existência mo-
l vitro todos os traços característicos: da incorporação recíproca daqueles mentaneamente exteriorizada. O que desse modo se presume possível,
) que lhe fazem parte à perfeita autossuficiência do cortjunto a que dão lu- e necessário, é a elisão - o preenchimento - daquele vazio de essência
gar, à inevitável contraposição que dela resulta nos confrontos de tudo o que constitui precisamente o ex da exslstentia: o seu caráter não próprio
l que está no seu exterior. O exterior enquanto tal é incompatível com uma porque "comum". t apenas assim - através da abolição do seu nada - que
) comunidade de tal maneira recolhida sobre seu próprio interior de modo a coisa pode ser finalmente realizada. Mas a realização, necessariamente
J a instituir entre os seus membros uma transparência sem opacidade, uma fantasmática, da coisa é precisamente o objetivo do totalitarismo. A lndlfe-
} imediatez sem mediações, que reduz constantemente cada qual a um ou- . renciação absoluta que termina por suprimir não apenas o próprio objeto,
tro não mais tal porque identificado preventivamente com o primeiro. Que mas o sajelto mesmo que a põe em obra. A coisa não é apropriável senão
) Rousseau não prev~a, e aliás constantemente negue, a traduzibllldade de na sua destruição. Ela não é reencontrável pelo simples motivo de que
) semelhante communauté de coeur121 numa forma qualquer de democra- jamais se perdeu: o que aparece perdido não é senão o nada do qual ela
cia política não elimina a potência de sugestão mitológica que ela exerceu é constituída na sua dimensão comum.
)
não apenas sobre a tradição romântica inteira, mas também, por outros
) modos, sobre o tipo ideal da Oemeinschaft122 orgânica - também esta 6. O primeiro pensador a procurar a comunidade propriamente
} fundada sobre a generalidade de uma vontade essencial superior hierar- no nada da coisa é Heidegger. Sem poder aqui repercorrer o complexo tra-
) quicamente àquela de seus expoentes individuais. jeto de Interrogação sobre a coisa, que se desenvolve ao longo de toda sua
Porém, há algo mais que concerne precisamente à recaída ln- obra, convém deter-se sobre a conferência de 1950 lntltuladajustamente
) conscientemente niilista desta oposição da comunidade ao niilismo da so- ')\ coisa" (Das Ding). E isso não somente porque nela tal trajeto parece
) ciedade moderna - ao qual ela se revela não apenas plenamente aderente, atingir seu cume, mas, mais Intrinsecamente, porque a "coisa.. - alhures
) mas estreitamente funcional como o seu simples reverso. Toda vez que interpelada sob a perspectiva estética, lógica ou histórica - é aqui recon-
ao vazio de sentido do paradigma individualista se quis opor o excesso duzida à sua essência comum. A expressão é compreendida em duplo
) de sentido de uma comunidade cheia de sua própria essência coletiva, sentido. Tonto naquele em que Heldegg~r põe em questão as coisas mais
) as consequências foram destrutivas: primeiro, nos confrontos frente aos modestas, habituais, à mão - neste texto, a jarra , mas também no sentido
) inimigos externos, ou internos, contra os quais tal comunidade se instituiu de que tal modéstia guarda o ponto vazio em que a coisa encontra o seu
e, por fim, também frente a si mesma. Como é notório, isso concerne, em significado menos óbvio, corno já fora dito em A origem da obra de arte: "A
} primeiro lugar, aos experimentos totalitários que ensanguentaram a pri- coisa, na sua modéstia, subtrai-se ao pensamento do modo mais obstina-
) meira metade do século passado - mas, de maneira diversa e certamente do. Ou propriamente este recusar-se da mera coisa [ ••. ] deverá pertencer à
menos devastadora, todas as formas de "pátria", "mátria" e "frátria" que essência da coisa?" (HEIDEOOER, 1968, p. 17). Precisamente para a defini-
) angariaram legiões de fiéis, patriotas, irmãos em torno de um modelo ção desta essência - a "colsldade da coisa" - é dedicado o discurso sobre
J inevitavelmente koinocêntrico. O motivo de esta trágica coação se repe- ')\ coisa". Ela não consiste na objetividade em que nós mesmos a repre-
J tir, e que tampouco hoje acena exaurir-se, está no fato de que, quando sentamos, mas tampouco consiste na produção da qual a coisa - produzi-
. a coisa se enche até a borda da própria substância, corre o risco de ex- da - parece "provir". E então? Propriamente aqui nos auxilia o exemplo da
) plodir, ou de implodir, sob o seu próprio peso. Isso acontece quando os jarra - mas também das outras "coisas" invocadas em ensaios dos mes-
J sajeitos reunidos no vínculo comunial individuam o acesso a sua condição mos anos, como a árvore, a ponte, a soleira. Que elemento característico
) de possibilidade na reapropriação da própria essência comum. Esta, por os reúne? nata-se, essencialmente, do vazio. o vazio é a essência destas
t sua vez, parece se configurar como a plenitude de uma origem perdida e, coisas, como também de todas as coisas. t assim para ajarra - literalmen-
te recolhida em tomo de um vazio e por ele, em última análise, formada:
) "Quando nós enchemos ajarra, no enchimento o lfquido flui najarra vazia.
121 em francês, no original, Mcomunldade de coração·. (N. do T.)
) 122 em alemão, no original, Mcornunldade·. (N. do T.) t o vazio o que, no recipiente, contém. O vazio, este nada na jarra [Dle
) 104 105

T~RMos DA PoLITICA
CoHUNltll\Dt. lMUNIOADr:, BIOf'OLITil-A

Leere, dleses Nlchts am Krug), é o que a jarra é enquanto recipiente que da distância? De uma distância que une ou de uma lortjura que avizinha? f
contém'" (HEIDEOGeR. 1976, p. 112). A essência da coisa é, portanto, o E o que é, afinal, o niilismo senão uma abolição da distância - do nada da f
seu nada. A ponto de que, fora da perspectiva que ele abre, a coisa perde coisa - que torna Impossível toda vizinhança? ·~ ausência da vizinhança {
a sua natureza mais própria até desaparecer ou, como Heidegger mesmo [DasAublelben der l'lahe), não obstante a eliminação das lortjuras, conduziu
se expressa, ~r. aniquilada: ali onde se esquece a sua essê.ncla, "na reali- ao domínio do sem-distância. Na ausência da vizinhança, a coisa enquanto
{
dade, a coisa enquanto coisa permanece Inacessível, nula, e neste sentido coisa, no sentido que se disse, fica aniquilada" (HEIDEGGER, 1976, p. 121). (
aniquilada [In Wahrhelt blelbtjedoch das Ding ais Ding verwehrt, nlchtlg
und ln solchem Slnne vernlchtet]" (HEIDEOOER, 1976, p. 115). 7. O único autor a medir-se com a questão aberta por Heidegger f
Tudo Isso pode parecer paradoxal: a coisa é aniquilada se não for - a relação entre a comunidade e o nada no tempo do niilismo cumprido {
apreendido até o fundo seu caráter essenclal. Porém - como recém-visto - é Oeorges Bataille: ·~ 'comunicação' não pode advir de um ser pleno e in- (
- este caráter essencial está preclsamente no seu vazio. t o esquecimento tacto a um outro: ela quer seres nos quais se encontre posto em jogo o ser
(
deste nada - do vazio - que consigna a coisa a um ponto de vista dentfftco, - neles mesmos - no limite da morte, do nada [néant)" (BATAILLE, 1970,
produtivo, nlllista, que a anula. Tcunbém por este lado nos encontramos p. 51). O trecho remete a um breve texto intitulado Nada, transcendên- (
diante da necessidade de instituir uma distinção entre dois tipos de '"nada": cia, imanência no qual o nada é definido como "o limite de um ser" para (
um que nos restitui a coisa na sua realidade profunda e outro que, ao con- além do qual ele "não existe mais. 'Este não-ser é para nós carregado de
sentido: sei que é possível me aniquilar [Ce non-être est pour nous pleln
{
trário, a subtrai de nós. E, aliás, ao anular o primeiro nada, anula-se a coisa
mesma que ele constitui. Heidegger, algumas Unhas adiante, nos fornece a de sens:Je sais qu'on peut m'anéantir)" (BATAILLE, 1970, p. 190). Por que {
chave deste aparente paradoxo: o nada que salva a coisa do nada - na me-. a possibilidade de aniquilar-se é carregada de sentido - e, aliás, constitui (
elida em que a constitui essencialmente enquanto coisa - é o nada do mu- o único sentido praticável na fase em que qualquer outro sentido parece
nus, da oferta que inverte o dentro no fora: '"o derramar dajarra é oferecer faltar? A pergunta conduz, ao mesmo tempo, à interpretação batailliana do
(
[Schenken)" (HEID&lOER. 1976, p. 114) 123• Não sozinho, mas de um munus , niilismo e ao ponto em que ela encontra aporeticamente .o lugar inabitável (
"comum" enquanto se dá na recolha e como recolha: "A essência do vazio da comunidade. O niilismo, para Bataille, não é a fuga do sentido - ou a {,
continente é recolhida no oferecer" (HEIDEOOER. 1976, p. 114). Heidegger partir do sentido - mas sobretudo o seu encerramento numa concepção
evoca a tal propósito as palavras do alto-alemão th1ng e dine justamente no homogênea e completa do ser. Neste caso - mais do que em qualquer
{
seu significado originário de "reunião". O dar, expresso pelo vazio da jarra, outro - o niilismo não coincide com o que ameaça esvaziar a coisa. Ao {
é também e acima de tudo um reunir. O quê? O que reúne - oferecendo - o contrário, é o que a obstrui numa plenitude sem falhas e sem fissuras. o
(
vazio da coisa? Heidegger Introduz, a esta altura, o motivo da "Quadratura·, niilismo, em suma, não é buscado por parte da falta, mas por aquela da
vale dizer, da relação entre terra e céu, mortais e divinos. Mas isso sobre o sua subtração. ta falta da falta - a sua remoção ou a sua reparação. o que {
que se concentra a atenção é a relação enquanto tal - o nada que ela põe nos subtrai à nossa alteridade bloqueando-nos em nós mesmos; fazendo 4
em comum é a comunidade do nada como essência da coisa. Não é preci- daquele "nós" uma série de indivíduos completos e voltados para o pró-
{
samente isto - a pura relação - que constitui o elemento comum de todas prio interior, inteiramente resolvidos em si mesmos:
as coisas anteriormente Invocadas: a árvore que liga a terra ao céu, a ponte (
que une as duas margens, a soleira que coqjuga o Interior com o exterior? (
Não se trata - como para a communltas - de uma unidade na distância e O tédio revela o que é o nada do ser encerrado em si mesmo [le néant
de l'être en{ermé sur lui-même]. Se não comunica mais, um ser isola-
(
do entristece, definha e sente (obscuramente) que, sozinho, não existe. (
123 Preferiu-se manter a tradução Italiana do ensaio de Heidegger uUllzadcl pelo r.ste nada Interior, sem via de saída, sem algum atrativo, o repele: ele
autor. ~ todo caso, na edição brasllelm do tt-Jtto hcldeggeriano, o referido trecho está tradu-
zido assim: "O vazar dajarra é doar" (l!nsalo.s ~ conferbtclas. Petrópolis: vozes. 2008, p. 149).
sucumbe ao mal-estar do tédio e o tédio do nada interior o lança naque- l
Thnto "doarN quanto "oferecer", "dar" e "presentear" são posslbllldades de traauzl, o termo le exterior, para a angústia (BATAILLB, 1970, p. 5.3). {
alemão SChenken. Ver a nota 108. (N. do T.)

106 107
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1
} RostRTO ~rosrro

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)
)
Aqui se toma claro o duplo nível da semântica do nada e, ao
mesmo tempo, a passagem que Bataille realiza do primeiro ao segundo:
do nada do indivíduo, do próprio, do interior ao nada-em-comum do ex-
Para além do meu ser está antes de tudo o nada. Pressagia a minha
ausência na laceração, no sentimento penoso de um vazio. A presença
de outrem se revela através deste sentimento. Mas ela é plenamente
revelada somente se o outro, por sua parte, se lndlna ele também sobre
l terior. 1àmbém este segundo é um nada, porém, é aquele nada que nos
a borda do seu nada, ou se aí cal (se morre). A comunicação advém tão
arranca do absoluto nada - do nada do absoluto - porque é o nada da só entre dois seres postos em jogo - lacerados, suspensos, Inclinados
) relação. O homem é estruturalmente exposto a - porém, se deveria dizer: ambos sobre seu nada [l'un e l'autre penchés au-dessus de leur néant]
) constituído por - esta paradoxal condição de poder fugir da aniquilação (BATAJLLE, 1970, p. 51).
) por implosão tão somente correndo o risco da aniquilação por explosão:
"O ser, na tentação, encontra-se, por assim dizer, esmagado pela dupla 8. Pode-se dizer que com Heidegger e Batallle o pensamento do
) tenaz do nada. Se não comunica, se destrói - no vazio que é a vida quando século XX sobre a comunidade alcança o ponto de máxima intensidade e,
) se isola. Se quer comunicar, corre o risco igualmente de se perder" (BA- ao mesmo tempo, o seu limite extremo. e não porque na sua filosofia eles
} TAILLE, 1970, p. 54). . não experimentem mais que uma concessão na direção mítica e regressiva;
·. Que Bataille - aqui como alhures - fale de "ser" aludindo à nossa tampouco porque em torno dela e depois dela não se registrem aprofun-
) existência não é interpretado somente como uma imprecisão terminológi- damentos, desenvoMmentos, novas intuições reconduzíveis, sob diversos
) ca devida ao caráter não profissionalmente filosófico do seu pensamento, títulos e com diversas declinações, à questão do cum, como demonstram
mas como o efeito querido de uma sobreposição entre antropologia e é:>n- os escritos - e as vidas - de S. Well, D. Bonhoeffer, J. Patocka, R. Antelme, O.
) tologia dentro da figura comum da falta, ou, mais exatamente, da dilace- Mandelstam, P. Celan. Mas porque também estes não puderam pensar a co-
) ração (déchirure). É verdade, de fato, que nós podemos nos defrontar com munidade senão a partir do problema posto, e não resoMdo, por Heidegger
) o ser exterior aos nossos limites tão só rompendo-os - e, aliás, identifican- e Batallle. t o mesmo motivo pelo qual tudo Isso - a filosofia, a sociologia, a
do-nos com tal arrombamento. Mas isso em virtude do fato de que tam- politologia da segunda metade do século -que nos separa deles permanece
) bém o ser é originariamente faltante a si mesmo, desde o momento em no esquecimento da questão da comunidade. Ou, pior, contribui para sua
) que o fundo das coisas não é constituído por uma substância mas por uma deformação quando justamente a reduz à defesa de novos particularismos.
) abertura originária. Isso - tal hiância -, acessamos nas experiências-limite A esta deriva - experimentada e produzida por todos os. debates em curso
_ que nos subtraem a nós mesmos, ao controle sobre a nossa existência. sobre indMduallsmo e comunltarismo -, somente há alguns anos responde,
} Mas estas experiências não são senão o efeito antropológico - ou a dimen- em particular na França e na Itália, a tentativa de reencaminhar uma nova
) são subjetiva - do vazio de ser que as origina: como um grande buraco reflexão filosófica sobre a comunidade a partir exatamente do ponto em que
) feito de muitos furos que alternativamente se abrem ao seu interior. Neste aquela precedente se Interrompeu na metade do século passado (cf., além
sentido, pode-se dizer que o homem é a ferida de um ser, por sua vez e de BSPOSITO, 1998: AOAMBEN, 1990; NANCY, 1992; BLANCHOT, 1994). A
} já desde sempre, ferido. Isso significa que quando se fala do ser-em-co- necessária evocação de Heidegger e Bataille que a conota se faz acompa-
) mum, ou "comunal", como do contínuo em que recai toda existência que nhar, entretanto, da precisa consciência de estar no inevitável exaurimento
) tenha rompido os próprios limites individuais, não é preciso compreender do seu Ié,dco, e numa condição ao mesmo tempo material e espiritual que
tal contínuo como um todo homogêneo - esta é precisamente a perspec- eles não puderam conhecer Inteiramente.
) tiva niilista. Nem, propriamente, como o ser - ou como o Outro do ser -, Aludo ainda uma vez ao niilismo - e mais precisamente à ulte-
) mas sobretudo como aquele vórtice - o munus comum - onde o contínuo rior aceleração que nos úlUmos decênios do século passado se produziu
) forma um todo com o descontínuo, como o ser com o não ser. Este é o t
no Interior do seu Ininterrupto "'cumprimentoª. justo ela provavelmente
motivo pelo qual a comunicação "maior" não possui o aspecto de uma que consente - mas também que Impõe - uma reabertura do pensamento
) adição ou de uma multiplicação, mas sim o de uma subtração. Ela não sobre a comunidade numa direção que Heidegger e Batallle puderam ape-
t passa entre o um e o outro, mas entre o outro do um e o outro do outro: nas intuir, mas não tematizar. Qual? Sem pretender fornecer uma resposta
~
) 108 109
TERMOS DI\ PoLITICA
CoP1un10Aoe, IHuruDU>e, 8K>rouTK..A
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exaustiva àquela que constitui a questão do nosso tempo, é inevitável vol- OBRAS CITADAS
tar, ainda uma vez, o olhar para a figura do "nada". "A questão - escreve o f
autor contemporâneo a quem, mais que qualquer outro, cabe o mérito de AOAM5eN, a. La comw1'tà che ulene. Torlno: elnaudl, 1990.
ter reaberto um caminho na clausura do pensamento da· comunidade - é BATAILLe, Q, Nietzsche. Mllano: Rlzzoll, 1970.
(
sobretudo saber como conceber o 'nada' mesmo. Ou é o vazlç, da vetda- BLANCHOT, M. La comunltà lncon{essablle. Mllano: feltrlnelll, 1994.
de, ou não é nada além do mundo mesmo e o sentido de ser-no-mundo" ~POSITO, R. Commwlltas: Origine e destino della comunità. Torlno: e1naudi, 1998.
(!
(NANCY, 1997, p. 62). Como entender esta alternativa - e trata-se verdadei- tteroeaaeR. M. Sentlerl lnterrottl. f'lrenze: La Nuova ltalla, 1968. {
ramente de uma alternativa? Poder-se-ia observar a este propósito como, _ _ • Saggl e dlscorsl. Mllano: Murcla, 1976. {
de um certo ponto de vista, é propriamente a ausência - e até o deserto -
NANCY. -,.-L. La comunltà lnoperosa. Napoll: Cronoplo, 1992.
de comunidade que indica a exigência como o que nos falta, e aliás como (
_ _ . li senso dei mondo. Mllano: Lanfranchi, 1997.
a nossa própria falta. Como .um vazio que não pede para ser preenchido
por novos ou antigos mitos, mas sobretudo para ser reinterpretado à luz
PAIIBYSON, L. Ontologia della llbertà. Tortno: elnaudl, 1995. t
\YelL, S. Non rlcominclamo la guerra dl "n'ola. ln: OAeTA, a. (Org.). Simone Well. s. Domenico di @
do seu próprio "não... Contudo, a frase de Nancy citada nos diz algo mais e
l"lesole: edizioni Cultura della Pace, 1992.
de mais preciso que poderíamos retomar do seguinte modo. O êxito a que (
levou o cumprimento extremo do niilismo - o desenraizamento absoluto, a (
técnica desenvolvida, a globalização integral - possui uma dupla face, dois
rostos que se trata não apenas de distinguir, mas também de fazer intera-
(
gir: poderia se dizer que a comunidade não é senão o limite que os separa (
e, ao mesmo tempo, os coqjuga. De um lado, o sentido resulta lacerado, (
desbordado, desertificado - e este é o aspecto destrutivo que conhecemos
bem: o fim de toda generalidade de sentido, a perda de controle sobre o
{
significado abrangente da experiência. Mas, de outro lado, precisamen- (
te esta desativação, esta devastação, do sentido geral abre o espaço da (
contemporaneidade à emergência de um sentido singular que coincide
propriamente com a ausência de sentido e, ao mesmo tempo, inverte-a
{
no seu oposto. é Justamente quando míngua todo sentido Já dado, dispos- {
to num quadro de referência essencial, que se torna visível o sentido do
({
mundo enquanto tal, Invertido no seu fora, sem remissão a algum sentido
ou significado que o transcenda. A comunidade não é senão o confim e o
(
trânsito entre esta imensa devastação do sentido e a necessidade de que 4
toda singularidade, todo evento, todo fragmento de existência ~a em si
('
sensato. ela remete ao caráter, singular e plural, de uma existência livre
de todo sentiao pressuposto ou Imposto ou posposto. De um mundo re-
{
duzido a si mesmo - capaz de ser simplesmente aquilo que é: um mundo 4.
planetário, sem direção nem pontos cardeais. Um nada-além-de-mundo. (
e este nada em comum que é o mundo a nos acomunar na condição de
exposição à mais dura ausência de sentido e, ao mesmo tempo, à abertura 4..
de um sentido ainda Impensado. \
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PARTE II
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DEMOCRACIA IMUNITÁRIA @"
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1 • "Comunidade" é uma palavra relacionável à democracia? Pode, pelo
{
{
menos, transformar-se nisso? Ou é demasiado profundamente radicada
no léxico conceituai da direita romântica, autoritária, racista? Eis a per- (
gunta que, já avançada a propósito do neocomunitarismo americano, volta ((
a dar as caras também na Europa no momento em que - principalmente
na França e na Itália - se está arriscando um novo pensamento sobre a (
comunidade. 'ltata-se de uma pergunta não somente legítima, mas, por (
certos aspectos, até mesmo inevitável, em uma fase em que a cultura de- (
mocrática se interroga sobre o próprio estatuto teórico e sobre o próprio
futuro. Isso não impede que seja uma pergunta errada na sua própria (
formulação - ou, de todo modo, mal colocada. Errada, ou mal colocada, (i
porque assume como indicador e termo de comparação, para a colocação
{
da categoria de comunidade, um· conceito - o de democracia - totalmen-
te incapaz de "compreendê-la". Não somente porque - ao menos na sua {
acepção moderna - incomparavelmente mais jovem, mas também porque (
mais achatado, cada vez mais esmagado dentro de uma dimensão toda
político-institucional.
i
Em relação a esse déficit de profundidade e de substância da (
noção politológica de democracia, a de comunidade mostra-se guarnecida {'
de muito maior densidade semântica. E isso se dá tanto no plano vertical
da história quanto no sincrónico do significado. Não é este o momento
l
para tentar uma sua reconstrução geral. Mas a pesquisa que realizei re- t·
centemente a partir da etimologia latina do termo communitas - e, antes 4. 1

ainda, do termo munus, do qual ele deriva - fornece uma primeira cons-
tatação da riqueza, histórica e semântica, do conceito (ESPOSITO, 1998).
O que se pode deduzir em relação ao quesito do qual partimos é que a
... pergunta correta não é se a comunidade pode ser compreendida no léxico

115
l R o 5 ~ EsPOSITO
1

l mo que saja por contraste, do mesmo tronco etlmológlco-conceltual. Essa


\
da democracia, mas no máximo se a democracia pode ser compreendi-
\
} da, ou pelo menos reconhecer algo da própria conotação, no léxico da conotação foi que acreditei poder recuperar na Ideia de ·imunização'", de- 1
l
l comunidade. Sem antecipar imediatamente uma resposta, um primeiro rivada, por extensão, do termo latino fmmunftas, justamente ligado ao de
l passo necessário deve ser feito em direção a uma maior focalização desse communftas pela relação, no primeiro caso negativa e no segundo positi- \
!
') último termo. Para isso não nos ajudam as dicotomias conceituais com as va, com o lema munus: se os membros da communftas estão vinculados
- quais a filosofia novecentista procurou defini-lo - na realidade perdendo pela mesma lei, pelo me-.smo ônus ou dom a ser doado - os significados de
} totalmente seu sentido original. Não falo somente daquela construída pe- munus -, ao contrário, lmmunls é quem deles está isento ou exonerado;
} los assim chamados communitarians americanos em relação a pretensos quem não tem obrigações em relação ao outro e pode, portanto, conser-
adversários liberais, dos quais constituem praticamente a exata interface, var íntegra a própria substância de sujeito proprietário de si mesmo (cf.
) no sentido específico de que compartilham inconscientemente seu léxico ESPOSITO, 2002). Qual é a vantagem dessa escolha etimológico-paradig-
} subjetivista e particularista, aplicado ao sltjeito em vez de ser aplicado à mática? Em primeiro lugar o fato de que a perfeita co-lmpllcação dos dois
} própria comunidade - as comunidades como tantos indivíduos distintos e conceitos exclui que possam ser dispostos ao longo de uma Unha de su-
) opostos uns aos outros-, mas também da mais consolidada contraposição cessão histórica que vtja um suceder ao outro, substituindo-o segundo as
entre "comunidade" e "sociedade", que encontrou o momento de máxima modalidades, otimistas ou pessimistas, de uma filosofia da história qual-
) organização tipológica em Oemeinschaft und Oesellschaft, de ferdinand quer: o Indivíduo, a sociedade ou a liberdade que - com base na atitude,
J Tõnnies (1963). E isso porque ela também, embora mais filosoficamente ; "progressiva" ou "regressiva", do Intérprete - superariam, ou perderiam,
) equipada do que a primeira, permanece toda interna a um dos seus dois a antiga comunidade. Mas também o tato de que ela nos abre um mais
termos - o de sociedade - a ponto de resultar inteiramente produzida por amplo horizonte de visibilidade sobre a própria dinâmica da democracia,
) esta. Tol ideia de comunidade não somente nasce da sociedade moderna, . entendida assim não somente em chave politológica, mas também, e so-
} mas só adquire sentido a partir do contraste com ela. t a Oesellschaft que bretudo, sócio-antropológica. Porque se há algo de que o Interminável
"constrói" o próprio avesso ideal típico para poder se autofundar - em debate contemporâneo sobre a democ~cia permanece carente é Justa-
) termos apologéticos ou denegridores, de acordo com o ponto de vista a mente esse olhar profundo à constituição do homo democratlcus que já
) partir do qual é observada e julgada. O fato de que a Oemeinschaft orgâni- Tocqueville havia inaugurado com uma intensidade sem comparação (cf.,
) ca de que falam Tõnnies e os seus tantos (e menos prudentes) imitadores para uma das poucas exceções positivas, CACCIARI, 1997).
novecentistas não tenha Jamais existido enquanto tal é ao mesmo tempo Pois bem, a categoria de "Imunização" é capaz de dar à análise
) sinal e confirmação do caráter mitológico da dicotomia que a fundamenta: da democracia a mesma densidade problemática e a mesma transversali-
) ela nada mais é do que uma figura da autointerpretação da sociedade na dade lntradisclpllnar com que a grande filosofia social entre os anos trinta
) fase do seu máximo desenvolvimento - que coincide com a da sua inci- e cinquenta - penso, além das pesquisas da escola de f'rankfurt, no traba-
piente crise. lho do Coll~ge de soclologle parisiense, e em particular, no grande ensaio
) Isso quer dizer que não se pode dizer nada sobre a comunida- de Bataille sobre o fascismo (BATAILLE, 1981) - sondou a antropologia do
) de? Que ela não tem um contrário, lógico ou histórico, capaz de defini-la homo totalltarlus. Desse lado vem plenamente à luz a relação profunda
categorialmente? Como procurei demonstrar, as coisas não estão exata- que liga em um único centro aporétlco comunidade e democracia: a de-
}
mente assim; trata-se somente de remeter a uma conotação que tenha a mocracia moderna fala uma linguagem oposta à da comunidade, na me-
) mesma profundidade diacrônica e a mesma potência semântica do cc;m- dida em que cada vez mais lntrojetou uma exigência imunitária.
) ceito ao qual contrastivamente se refere. Que aliás - mais do que a ele se
opor artificialmente de fora, como acontece para as ideias modernas de 2. Que a categoria de Imunização - no seu contraste frontal com
j a de comunidade - era a mais frutuosa chave de interpretação dos siste-
"indivíduo", de "sociedade" ou de "liberdade" - corresponde a ele em uma
) espécie de co-pertencimento original, isto é, compartilha com ele, mes- mas políticos modernos já era claro para a grande antropologia negativa
d~te século (cf. ACCARINO, 1991): de Plessner a Oehlen, até Luhmann,
)
) 116 117
RoBERTO ESPOSITO TERMOS DA PoLITIC•\
CoMUNID-\Dr., IMuni~or., B1orou,u ,,

através da reconversão sistêmica do "paradigma hobbesiano da ordem" inicial que o subtrai a si mesmo, reapropriar-se daquilo que não lhe é:
realizada por Parsons (cf. BORTOLINI. 2005). Já o primeiro, em um ensaio naturalmente próprio. Mas preencher aquele v-c1Zio, e tornar próprio o im-
Justamente intitulado Umltes da comunidade, contraporá a esta última a próprio, equivale a reduzir até a extinção o "comum". B, de fato, a exone-
lógica imunitária do "jogo democráUcoH (PLBSSNER. 2001): em um mundo ração da contingência ambiental, assegurada pelas instituições, coincide,
em que Indivíduos, naturalmente em risco, se enfrentam em uma compe- para o indMduo democrático, com uma tomada de distância do mundo
tição que tem como prêmio o poder e o prestigio, o único modo de evitar em que ele está radicado, e por isso mesmo, com uma suspensão da-
um resultado catastrófico é instituir entre eles uma distância suficiente quele mumlS comum que o obriga em relação aos outros. Desse modo
para imunizar cada um em relação a todos os outros. Contra toda tenta- ele é levado a fechar a sua abertura original e a circunscrever-se à esfera
ção comunitária, a esfera pública é o lugar em que os homens entram em do próprio interior. O que mais é a imunização, se não uma forma de
relação na forma da sua dissociação. Daí a necessidade de estratégias e progressiva interiorização da exterioridade? Se a comunidade é o nosso
aparatos de controle que permitam aos homens "viver lado a lado" sem "fora", o fora-de-nós, a imunização é o que nos redireciona ao interior de
se tocar, ou stja, ampliar a esfera da autossuficiência individual através nós mesmos, rompendo todo contato com o exterior. Quem levou essa
do uso de "máscaras" ou "armaduras·· que os defendam de um contato lógica às suas extremas consequências foi, com certeza, Niklas Luhmann.
indestjado e insidioso com o outro. Como nos recorda também canetti, Situada no ponto de cruzamento entre o funcionalismo de Parsons e o
nada assusta tanto o indivíduo como ser tocado por aquilo que ameaça paradigma regulador dos modelos cibernéticos, a sua teoria constitui a
atravessar as próprias fronteiras individuais (CANETII, 1981, p. 17-19). mais refinada explicitação da lógica imunitária como forma específica da
Nesse quadro antropológico - dominado pelo princípio do medo e da per- modernização. e, além disso, ele mesmo escreve não somente que "uma
sistência da insegurança - a própria política acaba por se identificar com série de tendências históricas indicam um empenho crescente em realizar,
uma arte da diplomacia que dissimula a relação de natural inimizade nas desde o início da época moderna, e particularmente do séc. XVII, uma
formas corteses do cerimonial, do tato, da compostura. imunologia social" (WHMANN, 1990, p. 588), mas também que o sistema
O que em Plessner mantém ainda um estatuto oscilante en·tre : imunitário, coincidente originalmente com o direito, se estendeu a todos
arte e técnica assume em Oehlen um decisivo caráter institucional. Ble · os âmbitos da vida social, desde a econômica até a política. Tui tendên-
também parte da observação hobbesiana (e nietzschiana) da carência na- cia Já se manifesta na definição inicial de Luhmann sobre a relação entre
tural do homem em relação às outras espécies animais e da necessidade sistema e ambiente - onde o problema do controle sistêmico das peri-
de transfonnar essa falta biológica em possibilidade de conservação da gosas turbulências determinadas pelo ambiente é resolvido não através
vida (OEHLEN, 1986). Mas, em relação ao seu predecessor, preocupa-se de uma simples redução de complexidade ambiental, mas principalmente
em estabilizar essa opção Imunitária em uma verdadeira e própria teoria mediante sua transformação de complexidade externa em complexidade
das Instituições (fADINI, 1995). em uma situação de excesso de impres- interna ao próprio sistema. Mas a essa primeira estratégia de interiori-
sões e pressões ambientais, elas têm a tarefa de exonerar o homem do zação ativada pelo procedimento imunitário acrescenta-se uma segunda
peso que a contingência dos eventos impõe a ele. Isso exige, porém, uma ainda mais carregada de consequências dissolutivas para a diferença am-
espécie de "plasticidade", ou stja, de capacidade de adaptação à situação biental, qual stja, a sua integral inclusão no interior do sistema, isto é, a
dada que não exponha o Indivíduo a um conflito Insustentável. Mas requer sua objetiva eliminação. lal desenvolvimento da perspectiva luhmanniana
também um domínio dos próprios instintos que iniba sua pulsão dissolu- - determinado pela adoção do conceito biológico de autopoiésis - consiste
tlva e os encaminhe em sentido autorreprodutlvo, do mesmo modo como no deslocamento do objetivo do nível defensivo do governo sistêmico do { 1
a satisfação de necessidades deve ser contida e desviada, em um quadro ambiente para o de uma autorregulação interna dos sistemas, totalmente { ,
de compatibilidade rigidamente controlado. somente mediante essa du- Independente e autônoma em relação às pressões ambientais: o sistema
pla renúncia o homem poderá imunizar-se estavelmente em relação aos se reproduz de formas cada vez mais complexas, constituindo ele mesmo 4_ '
perigos determinados pela pr~pria estrutura deficitária: preencher o vazio os elementos que o compõem. t evidente que essa lógica perfeitamente ( 1

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118 119 (
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circular tem o efeito não somente de romper qualquer canal de relação
com o externo, mas também de anular a própria ideia de "externo". Se
de uma rede de reconhecimentos Internos absolutamente autossuficiente.
t o resultado final da guerra Imunitária lançada desde o Início da moder- 1
mesmo as contradições que insidiam os sistemas democráticos têm, em nidade contra os riscos da "Infecção" comunitária: dizer que não há mais
l última análise, a função de pôr em alerta o seu aparato imunitário para um exterior do qual defender-se - que o outro não existe a não ser como
estimular sua reação defensiva contra toda ameaça de deflagração~ quer projeção do si - equivale a reconhecer que o sistema Imunitário não tem
)
dizer que elas não põem mais em contraste o externo com o interno. Nada fronteiras de tempo nem de espaço. Ele existe sempre e em todo lugar.
) mais são do que o externo do interno, uma sua simples flexão. Mas isso Coincide com a nossa Identidade. Somos nós Identificados a nós mesmos
l significa, ao mesmo tempo, que o sistema imunitário "imunizou" a própria - definitivamente subtraídos à alteração comunitária.
comunicação, incluindo-a no seu mecanismo referencial. Que todo o fluxo
) 3. E então? Se essa é a condição do nosso tempo, em que di-
comunicativo nada mais é do que uma projeção autorreprodutiva do pro-
) cesso de imunização: "O sistema imunitário", conclui Luhmann, "dispõe do reção voltar o olhar? t ainda realizável - nas nossas democracias - um
) emprego do 'não', dos casos de r~eição comunicativa. Tui sistema opera pensamento sobre a comunidade? t possível corlfugar de novo e de modo
sem comunicação com o ambiente" (WHMANN, 1990, p. 613). diferente comunidade e democracia? Imaginar uma democracia não Imu-
) nizante - nem imunizada? Ou o processo de Imunização generalizada
Se se comparam as passagens internas da teoria imunitária
) de Luhmann com a história daquele ramo cada vez mais central da bio- anulou, Juntamente à coisa, também a sua pensabllidade? Eu não creio
; medicina, que é a imunologia verdadeira e própria, as coincidências são que ~a assim. Não creio que esttja em pauta o fechamento do pensa-
impressionantes. Sabe-se que o objeto desta última é a capacidade dos mento sobre a comunidade. Ao contrário, penso que nunca como hoje se
) exija a sua reativação. O que mais nos dizem - de que falam, se não da
vertebrados de reagir à introdução de substâncias estranhas ao organis-
) mo com a produção de anticorpos capazes de defender a sua identidade questão da comunidade, da sua ausência, mas também da sua exigência

) bioquímica - em termos sistêmicos, de responder de maneira adequada os


- os corpos, os rostos, olhares de milhões de famintos, de deportados,
aos desafios do ambiente representados pelos antígenos externos. Mas de refugiados, cujas Imagens, nuas e terríveis, desfilam em nossas telas
) televisivas, vindas de todos os cantos do mundo? E não é ainda a comu-
esse quadro geral - com a passagem da imunologia química à imunologia
) molecular - sofre profundas modificações, que vão no mesmo sentido da- nidade - a relação, o nosso cum, "nós,. como cum - que remete a cada
quelas experimentadas pela teoria dos sistemas, isto é, da defesa em rela- nascimento e cada encontro, mesmo o mais anônimo, o mais quotidiano,
)
ção ao exterior à autorregulação interna. A questão fundamental trata do o mais aparentemente banal?
) E todavia - como sempre acontece - Justamente aquilo que se
papel do antígeno - isto é, do vírus recebido do exterior - na produção do
) anticorpo. De que modo a reação do anticorpo está ligada à ação antigê~i- deveria pensar mais é o que se subtrai à simples evidência. Torna-se o
ca? A resposta que Já na metade deste século vai ganhando corpo, desde mais dlffcll de ser pensado. E, de fato, Jamais como hoje o pensamento
)
Ehrlich até Jerne, é que o anticorpo imunitário não é determinado pela sobre a comunidade permanece exposto ao duplo risco do esquecimento
) e da deformação, da remoção e da traição. Do esquecimento, principal-
introdução do antígeno, mas preexiste a ele. Sem poder repercorrer nem
} mesmo parcialmente as etapas salientes de um longo e controvertido de- mente, porque o fim, a queda, do comunismo - de todo o comunismo e
bate (vtja-se TAUBER. 1999), o que conta para fins da nossa reconstrução de todos os comunistas - produziu um vazio de Ideias, oomo um vórtice
)
é que, exatamente como na teoria luhmannianna, também para a nova no qual a questão da comunidade parece ter sido sugada, mergulhada
} no descrédito e na vergonha de regimes explodidos ou lmplodldos sob
Imunologia molecular o problema central não é mais a capacidade do or-
t ganismo de distinguir os componentes próprios dos estranhos, mas sim o o peso de seus erros e de seus horrores. Mas a esse perigo de esqueci-
de autorregulação interna do sistema imunitário. Se as células de anticor- mento e de apagamento se associa e se sobrepõe um outro não menos
)
pos se comunicam mesmo na ausência de antígenos, isto é, de estímulos - e talvez mais - grave: o da perversão da Ideia de comunidade no seu
} externos, isso significa que o sistema imunitário assume as características oposto, naquilo que eleva muros em vez de abatê-los. Isso acontece longe
) de nós, na periferia do mundo, mas também perto de nós, no centro do

} 121
120
\
TeRMos DA Poüna
CoMUNlllAD~. IHUNIMD~. B101'0LhlCA
f
nosso mundo - quando ela é reduzida e depauperada na simples defesa de Batallle é de tipo transgressivo. Passa pela ruptura do cordão imunitário f
de novos particularismos, de pequenas pátrias fechadas e muradas diante e da identificação dos possíveis pontos de contágio entre os sajeitos que o f
de seus exteriores, contrapostas e hostis a tudo o que não lhes pertence, excedem. Das feridas através das quais se pode recolocar em movimento
{1
que se subtrai ao vínculo obsessivo da identidade e do próprio. Nesse a circulação social mediante a comunicação das recíprocas faltas (BATAILLE-,
caso, então, à imagem do deserto se sobrepõe a da fortaleza, para inver- 1997). Neste caso o apelo ao munus remete a uma Ideia de perda do pró- (
ter deflniüvamente o horizonte comunitário em uma nova, e ainda mais prio, de expropriação ou desapropriação, que contesta a lógica imunitária (1
prepotente, deriva Imunitária. O que são as novas comunidades étnicas, no seu próprio pressuposto, ou stja, a conservação e a defesa do "si"
{:
religiosas, linguísticas que surgem além do Adriático, na Ásia e na África, daquilo que o ameaça do exterior. Daí a contestação da economia restrita
mas também no centro de Los Angeles, se não a forma da mais exaspera- - como Bataille define o paradigma utilitarista das nossas democracias - a f
da autolmunização em relação à existência comum? Se não a modalidade favor de uma economia alargada ou geral, dominada não mais pelo impe- {,
mais desenfreada de autoapropriação daquilo que parece assediado pelo rativo do acúmulo, mas pelo princípio da despesa improdutiva e portanto
{.
outro? Se não a tentativa de abolição de todo exterior em relação a um também da doação. O que Bataille delineia é, de fato, uma concepção
interior Inteiramente voltado sobre a própria reprodução endógena? . da abundância energética radicalmente contraposta à teoria da carência f
A Ideia de communitas - e, antes ainda, de munus, da qual esta orgânica do animal-homem, própria da antropologia neohobbesiana de {
deriva - vai em um sentido radicalmente contrário a tal irrefreável Impulso Plessner e Gehlen. enquanto - como já vimos - esta põe em ato toda uma
série de dispositivos protetores voltados a exonerar o indivíduo dos seus
{
à interiorização, mas dever-se-ia dizer "internamento", de tipo imunitário.
Ao contrário, ela remete a uma a1eriorização da existência; ou, melhor vínculos comunitários, Bataille reconhece, nas entranhas do instinto de (.
ainda, a uma interpretação da própria existência como exterioridade, ex- autoconservação, uma tendência contrária. mas não menos forte, à disso- (
periência, êxtase, no sentido radical dessas expressões: como extravasa- lução da identidade individual em uma comum desapropriação donativa.
Se de tal tendência Bataille interroga a dimensão antropológi-
(
mento do sltjeito de si mesmo ou como sua abertura original à alteridade
que o constitui desde o Inicio na forma de um "ser com· ou de um "com.. ca, Heidegger desloca a atenção para a raiz ontológica. A sua pergunta {'\
serH. ttre-avec e Mltseln. São precisamente as duas perspectivas avan- não diz respeito tanto ao inter do esse, quanto ao esse do inter. não a
{
çadas neste século pelos dois maiores filósofos da comunidade, ou saja, socialidade do ser, mas o ser do cum e como cum. O que isso significa
em relação à questão da democracia? O que quer dizer que o próprio ser (
Martin Heidegger e Oeorges Bataille. Ora, eu creio que se deva resistir à
tentação de considerá-los justamente só filósofos - distantes e abstratos tem a forma do cum? Como se pode traduzir na nossa linguagem tal on- {
em relação ao problema com que nós hoje nos defrontamos. Se os lermos tologia da comunidade? Já na simples proposição de que a comunidade

sem nos deixar desviar pela particular densidade dos seus léxicos, não é, ou melhor, "se dá", prescindindo da nossa vontade, ou capacidade, de
realizá-la. Dá-se também - e talvez principalmente - nos momentos em (
podemos deb$ar de notar que falam precisamente disso. Da comunidade
como exterioridade daquilo que par~ce fechado ao próprio Interior, do que parece desaparecer do nosso horizonte. Em que - como antes se dizia {
núcleo Irredutível - porque vazio, feito de alteridades - daquele sistema - parece transformar-se em deserto ou deformar-se em fortaleza. Tombém
({1
imunitário que parece ·cada vez mais circunscrever o nosso horizonte de a negação da comunidade é algo que pertence ao nosso ser comum, é um
sentido. modo, mesmo que defectivo ou negativo, da comunidade - como também <l
Mas se é comum a questão que eles nos propõem - a do que a solidão, o conflito, a anomia. Heidegger, aliás, diz algo a mais - embora (
está "fora" do sajelto e para o sajeito -, diversos são os modos de en- depois venha a contradizer-se clamorosamente em outros momentos de {)
frentá-la e também as Indicações que nós mesmos podemos deduzir em sua obra e de sua vida - contra toda tentação de conceber a comunidade
relação à Interrogação de fundo da qual partimos: como pensar - mas nos termos do "autêntico" ou do "próprio" - como autoapropriação por {·
também viver - o ·comum" no tempo da imunização? Onde procurar o parte do homem, ou de um povo, da própria essência -, ela tem sem- 4. '
externo daquilo que se apresenta somente a partir do interno? o caminho pre a ver com uma modalidade inautêntica e imprópria. O que mais é o
li
l
122 123
t
{
{
,
l \1
l RostRTO Esrosrro
\
l "comum" se não o impróprio? Se não o que náo é próprio de ninguém, OBRAS CITADAS
} mas Justamente geral, anônimo, indeterminado? Sem determinação de
ACCARINO, 8. RaUo tmaglnls: Uomo e mondo nell'antropologla fll050flca. Mrenze: fbnte alle
l essência, de raça, de sexo: pura existência exposta à ausência de sentido,
Orazle, 1991.
de raiz e de destino.
J Mas há ainda um último lado a partir do qual ler o mlt de Heide-
BATAILLe, O. ll Colleglo dl Sociologia. Organizado por: D. Holller e M. Oallettl. 1brlno: Bollatl
Borlnghlerl, 1991.
) gger - também em relação à sua ambivalente avaliação da técnica: como _ _• La conglura saaa. Organizado por: R. esposlto e M. Oallettl. 1brlno: BollaU Borlnghlerl,

l extremo perigo, mas ao mesmo tempo como potencial recurso. Penso no 1997.
fenômeno da globalização, que da técnica constitui a última, mais Impres- BORTOLINI, M. l:lmmunltà necessarla: Thlcott Parsons e la sociologia della modernltà. Roma:
l sionante, configuração. Ele não se limita a representá-la, mas é a técnica Melteml, 2005.

,
} absolutamente desdobrada em uma potência planetária que não encontra
resistências e divergências senão para flexioná-las e homologá-las ao pró-
prio modelo. Nesse sentido a globalização exprime também o definitivo
CACCIARI, M. tarr.lpelago. Mllano: Adelphl, 1997.

CANeTTI, e. Massa epotere. Mllano: Adelphl, 1981.


esFOSITO, R. Communltas: Origine e destino della comunltà. 1brlno: Clnaudl, 1998.
)
fechamento do sistema Imunitário sobre si mesmo. Aliás, é a Imunização _ _• lmmunltas: Protezlone e negazlone delta vlta. 1brlno: Clnaudl, 2002.
) levada a um único princípio de regulação da vida individual e coletiva em l"ADINI, u. (Org.). Deslderlo dl ulta: Conversazlonl sulle metamorfosl dell'umano. Mllano: Mlme-
um mundo identificado a si mesmo: justamente "mundializado". E no en- sls, 1995.
)
tanto essa mundialização leva dentro de si também um outro resultado, oeHLeN, A. I.:uomo: la sua natura e li suo posto nel mondo. MIJano: f'eltrlnelll, 1986.
) WI1MANN, N. SL«iteml soclall: fondamenU dl una teoria generale. Organizado por: A. febbrajo.
~. :,,_'· .
que ultrapassa o próprio horizonte de Heidegger e de Batallle: ela não
) Bologna: li Mullno, 1990.
coincide somente com a destruição do sentido, mas também com a sua
subtração a todo princípio geral - a todo sentido dado, esperado, prescrito.
NANCY, J.-L. n senso del mondo. Organizado por: f: Ferrari. Mllano: Lanfranc:hl, 1997.
) .:1·.
PLCSSNeR. H. l llmlU delta C.'Olrtunltà. Organizado por: 8. Accarlno. Roma-Barl: Laterza. 2001.
A globalização é também a recondução do mundo à sua pura fenome-
) TAUBeR. A. l. l:lmmunologla dell'lo. Mllano: McOraw-Hlll, 1999.
nicidade: a não ser nada além de mundo (NANCY, 1997). Em suma, que
) ele stja o mundo somente - todo o mundo .;.. quer dizer também que é TÔNNie5, f: ComunftA e socletA. Mllano: Comunltà, 1965.

) somente o mundo: sem pressupostos, origens, fins transcendentes à sua


simples existência. Desse ponto de vista, então - que tem, no âmbito de
)
um mesmo movimento, a progressiva erosão do Estado-nação e da mo-
} dernidade que o havia gerado - talvez possa ser pensada, com todas as
} cautelas e as dificuldades que o caso exige, uma democracia Igualmente
planetária. Ou melhor, o problema da democracia pode ser levado ao úni~
)
co nível capaz de arrancá-lo à deriva imunitária à qual parece destinado: Q
) da comunidade mundial, isto é, do único mundo que temos em comum.
) Sabe-se que a imunização funciona através da admissão controlada do
"germe" comunitário que se quer neutralizar. E se tentássemos Inverter a
)
operação? Se tentássemos repensar a comunidade justamente a partir do
) cumprimento do processo de imunização? Afinal, um mundo sem exte-
) rior - totalmente imunizado - é necessariamente também um mundo sem
interior. No ápice do seu sucesso a imunização pode ser levada a Imunizar
t também contra si mesma: a reabrir a brecha, ou o tempo, da comunidade.
)
)
J 124 125
)
\
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f
f
{1
LIBERDADE E IMUNIDADE (
(1
(1
@:
{,
(,
1. Antes de chegar diretamente ao tema da liberdade - na sua rela- (
ção com a comunidade - gostaria de partir de uma consideração mais
(
fundamental que reveste lodo o léxico da política, qual seja, a crescen-
te dificuldade deste último de significar o próprio objeto, a verdadeira e (
própria barreira que parece ter se elevado entre linguagem e política. É (
como se a política se subtraísse à linguagem ou como se a linguagem
({ ,
não tivesse mais palavras para nomear a política. Já nos anos trinta des-
te século, Simone Weil escrevia: "Podemos tomar todos os termos, todas (
as expressões do nosso vocabulário político, e abri-los; no seu· interior (
encontraremos o vazio'' (WEIL, 1992, p. 111). Por que essa sensação de
(
vazio? Esse verdadeiro e próprio esgotamento do vocabulário político?
essa afasia progressiva e aparentemente irrefreável? Naturalmente poder- (
se-iam invocar as transfo~maçóes repentinas que transtornaram o cená- {
rio internacional na última década, tomando obsoleto o quadro catego-
(
rial precedente - justamente como havia acontecido entre os anos vinte e
trinta, embora no âmbito de um horizonte geopolítico bastante diferente (
do nosso. O que então se formava, literalmente desentranhando o léxico (
político anterior à crise, agon1 explode ou implode com análogos efeitos
{1
de desorientação linguística.
Mas eu creio que haja algo a mais por trás e por dentro dessa {·
afasia política. Uma dinâmica de mais longo prazo, que concerne, em úl- {·
tima análise, a toda a filosofia política moderna - e, mais precisamente,
{ )
ao seu caráter constitutivamente metafisico, em um sentido não muito
distante do que Heidegger atribuía a essa expressão quando tentava l'
uma desconstrução da tradição filosófica ocidental. Sem poder alargar 4. 1

o discurso a uma avaliação dessa tentativa, certamente problemática e


contraditória, digamos que o elemento metafisico da filosofia política
Í'

127 ,,
{

(
(
,
)
l
l
l moderna, o que ameaça fechá-la em uma trajetória circular e sem sa- outro. Se buscarmos a etimologia do termo latino communltas - como
} ída, consiste, em primeiro lugar, na sobreposição, que ela pressupõe, procurei fazer no livro que assim se intitula (ESPOSITO, 1998) - teremos
entre a esfera do significado e a do sentido. Na sua tendência a reduzir

'
a confirmação mais direta: ele deriva, por sua vez, de munus, que sig-
0 horizonte de sentido das grandes palavras da tradição política ao seu nifica "dom" ou também "obrigação· em relação a um outro. Isso quer
l significado mais imediato e manifesto. t como se a filosofia se limitasse dizer que os membros da comunidade - mais do que identificados por
} a uma abordagem frontal, direta, em relação às categorias da política; um pertencimento comum - são ligados por um dever de dom recíproco,
) ou seja, como se fosse incapaz de interrogá-las de maneira oblíqua, de por uma lei que os leva a sair de si para dirigir-se ao outro e quase a
flagrá-las de costas, de remontar à sua fonte última - ao espaço do seu expropriar-se em seu favor.
l impensado. lbdo conceito político tem uma parte iluminada, Imediata- Mas se é assim, se a Ideia de comunidade exprime uma perda,
) mente visível, mas também uma zona escura, um cone de sombra do uma subtração, uma expropriação, se remete não a um pleno, mas a um
) qual somente por contraste aquela luz irrompe. Ora, pode-se dizer que vazio e a uma alteração; pois bem, Isso quer dizer que ela é sentida como
a filosofia política contemporânea - sobretudo a de derivação analíti- um risco, como uma ameaça, para a Identidade individual do sajeito,
}
ca - ofuscada por aquela luz, perde completamente de vista a zona de justamente porque enfraquece, ou rompe, as fronteiras que asseguram

,
) sombra que circunda, ou corta, os conceitos políticos, constituindo seu
horizonte de sentido de uma forma de modo algum coincidente com
o seu significado manifesto. Porque enquanto o significado manifesto
sua estabilidade e sua própria subsistência. Porque expõe cada um a um
contato, ou mesmo a um contágio, potencialmente perigoso, por parte
do outro. Justamente em relação a essa ameaça - mitlcamente reescrita
) dos conceitos políticos é sempre unívoco, monollnear, concluso em si, em todas as narrativas que associam a origem da comunidade huma-
) o seu sentido de fundo é mais complexo, frequentemente contraditório, na a um delito fundador - a modernidade põe em ação um processo
) capaz de conter elementos reciprocamente contrapostos, característi- de Imunização, segundo o contraste paradigmático entre communltas e
cas antinômicas, um verdadeiro e próprio conflito para a conquista da immunltas: se a primeira obriga os indivíduos a algo que os Impele para
) significação mais plena. Se refletirmos sobre isso por um momento, to- além de si mesmos, a segunda reconstitui a sua identidade protegendo-
} das as grandes palavras da nossa tradição política - democracia, poder, -os de uma contiguidade arriscada com o diferente de si, liberando-os
) soberania - têm como pano de fundo, ou na sua origem, esse m1cleo de qualquer ônus em relação a si, reencerrando-os na concha da própria
antinômico, aporético, essa batalha intestina que as torna irredutíveis à subjetividade. Onde a communltas abre, expõe, revira o indivíduo para
) linearidade do seu significado de superfície. ' o seu exterior, libera-o para a sua exterioridade, a lmmunltas o reenvia a
) Uma primeira amostra desse desvio, desse desnível, entre sig- si mesmo, encerra-o na sua pele, reconduz o fora para dentro, eliminan-
) nificado manifesto e sentido de fundo foi o que busquei na análise crí- do-o enquanto fora. O que mais é a imunização se não a interiorização
tica da ideia de comunidade. O que daí resultou foi uma verdadeira e preventiva do externo, a sua apropriação neutralizante?
) própria inversão da definição conceituai que a filosofia política atribui a
) esse conceito. Enquanto, de fato, o neocomunitarismo americano, assim 2. Agora, a tese que pretendo desenvolver é a de que também
como a sociologia organicista alemã, associa a ideia de comunidade à o conceito de liberdade está submetido ao mesmo fechamento, à mesma
}
de pertencimento, de identidade e de propriedade - a comunidade como. operação de neutralização que experimenta o de comunidade. em que
) aquilo que identifica alguém com o próprio grupo étnico, a própria ter- sentido? Bem, antes de tentar responder a essa pergunta, coloquemo-
) ra, a própria língua - o termo original de "comunidade" tem um sentido -nos uma outra, preliminar: por que falar ainda de liberdade? Por que
radicalmente diferente. Além disso, basta abrir um dicionário para saber acrescentar mais uma reflexão às tantas histórias e às tantas filosofias
)


que "comum" é o contrário exato de "próprio": é comum o que não é da liberdade hoje em circulação? eu poderia replicar de Imediato que
próprio, nem apropriável por parte de ninguém, que é de todos ou pelo o que estou para propor não pretende ser nem uma história nem uma
) menos de muitos - e portanto que não remete ao mesmo, mas sim ao filosofia da liberdade - mas antes, a tentativa de libertar a llherdade tanto
da história quanto da fllosofla, para reconduzi-la àquela que foi definida
)
} 128 129
~
T~RMOS DA PoLIT1v,
Co,.tuNlllAl>-C, IPWnlD-\Dt. B1ot'OL1T1t..A

por Jean-Luc Nancy como a sua '"experiência#, a experiência da liberdade . Qual seja o resultado, em termos filosóficos, mas também
e a liberdade como experiência, com todo o perigo que o termo "expe- históricos, dessa configuração subjetivista, é fácil constatar. Uma vez
riência" etimologicamente contém (NANCY, 2000). Mas a resposta mais condicionada ao ato instaurador do sajelto - aquele que a filosofia pós-
adequada talvez saja que justamente a atual Inflação de discursos sobre -càrteslana chamou de "livre arbítrio" ou "indeterminação da vontade"
a liberdade - uma das palavras mais recorrentes não somente na lingua- - a liberdade não somente viu reduzido o próprio horizonte de sentido
gem politica, mas também na comunicação midlática - marca uma difi- em um significado cada vez mais empobrecido, mas encontrou-se con-
culdade fundamental para articular seu conceito. A impressão, em suma, tinuamente exposta ao risco de ser invertida no próprio oposto lógico,
é a de que quanto mais se fala dela, quanto mais se reivindica e reclama, isto é, na ordem (Hobbes), na soberania (Rousseau), no Estado (Hegel).
quanto mais é estampada em todas as bandeiras, tanto mais a liberdade Em todo caso, o que se registra em praticamente toda a filosofia políti-
foge para longe, no passado ou no futuro: ou como uma entidade que ca moderna - com a parcial exceção de Spinoza e, naturalmente, Kant
existiu, mas que depois desapareceu, como um astro que a um certo - é uma passagem lógica que, a partir de uma concepção toda subjetiva
ponto se apagou, embora continue a emitir uma luz cada vez mais débil; da liberdade, transforma-a no próprio oposto: em uma determinação
ou, ao contrário, como uma promessa de algo que convém manter a uma objetiva, dialeticamente assumida por parte do sajeito autodenomina-
certa distância, para não vê-la deflagrar, com efeitos destrutivos de anar- do livre. Ou por ele sofrida como o preço exterior que ele é obrigado a
quia e terror - como dizia Hegel sobre a liberdade absoluta. pagar à própria autonomia interior - é a posição de Lutero, para o qual,
Desse ponto de vista, quer se declare a liberdade já substan- justamente, no próprio íntimo, no foro interior da consciência, pode-
cialmente realizada nas nossas democracias liberais, quer saja ela adia- -se ser livre mesmo estando exteriormente acorrentado. É assim que
da para um amanhã nada próximo, permanece-se dentro do mesmís- toda a filosofia política moderna acaba invariavelmente por reconduzir
simo modelo interpretativo; qual seja: dentro de um quadro metaí1Sico a liberdade ao âmbito da necessidade, passando sem rupturas de uma
de tipo subjetivista, segundo o qual a cena política é habitada por um liberdade que necessariamente se liberta a uma necessidade que livre-
sajeito pré-formado e pré-definido - o indivíduo - que se dirige à liber- mente se necessita. Aqui já estamos naquele plano inclinado, naquela
dade como a um objeto a ser defendido ou conquistado, possuído ou deriva ao final da qual Adorno poderá dizer que a liberdade se "entre-
ampliado. Desse modo, a liberdade é entendida como uma qualidade, meou de tal maneira com a iliberdade que não é simplesmente inibida
uma faculdade ou um bem que um sajeito coletivo ou vários sajeitos por ela, mas tem nela o pressuposto do próprio conceito" (ADORNO,
devem adquirir na medida do possível; ou mesmo como um obstáculo 1970, p. 238).
que resiste - ou, ao contrário, resigna-se - a ser superado por parte de Como se justifica tal inversão de perspectiva? O que a motiva
uma vontade subjetiva, a ele externa e precedente. Antes existe o sujeito e a produz? De onde nasce essa contração lexical que reduz a liberdade
e depois a liberdade que ele adquire, ou procura adquirir, fazendo força a seu avesso nu? Provavelmente do temor da potência de ruptura - e
contra a necessidade. Há um muro, uma barreira, uma porta fechada que mesmo de destruição - que a ideia de liberdade contém em si. Da cons-
o sltjeito deve forçar, deslocar para frente, arrastar - se conseguir está . ciência - como escreveu Hermann Broch - de que a liberdade "é vulcão
livre, libertado ou em vias de libertação: a liberdade nada mais é do que e raio no ânimo humano; eis porque o guardião do fogo não pode evitar
se queimar sempre, para sua benção e condenação" (BROCH, 1996, p.
0 resíduo, o vislumbre, o ponto de fuga na pressão que a necessidade
exerce sobre nós. Um negativo puro que o sujeito deve arrebatar àquilo 134). Isso explica a necessidade de construir uma barreira de proteção
que O bloqueia e o vincula, se quiser ser verdadeiramente sajeito, sttjeito semântica q,ue acaba por acorrentar a experiência da liberdade em uma
da própria liberdade, de· uma liberdade apropriada e, allás, constituída representação Ideal destinada a encerrar o seu sentido excedente nas
como propriedade subjetiva. Desse modo a liberdade é entendida como fronteiras de um significado pressuposto a cada nova vez. A necessida-
aquilo que torna o sajeito proprietário de si mesmo. ~encialmente de - poder-se-ia dizer - de emparedá-la viva, de sufocar sua voz mais
"próprio", não mais ..comum". aguda e vibrante.

130 131
J
l
}
}
é aqui que se insere o apelo à categoria de Imunização, já coincidente com as fronteiras da urbs e dos seus domfnlos Imperiais.
l introduzida em contraste com a de comunidade. Para compreender Mas a verdadeira virada em direção Imunitária remonta à época medle-
) profundamente a passagem é necessário, também neste caso, retroce- V'dl, quando a liberdade - aliás, toda liberdade - assume precisamente 0
der em direção ao sentido original implícito no termo ..liberdade". Pois caráter de •direito particular", isto é, daquele conjunto de ·privilégios",
)
bem, por mais que isso possa surpreender, o que se descobre é que na "'Isenções· ou •imunidades" (fura et immunitates, Frelheiten em ale-
) mão, {ranchises em francês) que justamente dispensam determinados
origem da ideia de liberdade há algo que a liga Justamente à semân-
) tica da comunidade. Como, de fato, demonstrou Benveniste (1976, p. sujeitos coletivos (classes, corporações, cidades, conventos) de uma
247-256) - mas não somente ele (cf., por exemplo, ONIANS, 1998, p. obrigação comum para todos os outros: uma condição jurídica espe-
l cial, como a da libertas ecclesiae, Internamente a um ordenamento
271-278) - tanto a raiz indo-europeia leuth, ou leudh, da qual derivam
) hierárquico geral. Já aqui o trânsito de uma noção aberta e afirmativa
os termos gregos eleutherla e o termo latino libertas, quanto a raiz
) sânscrita frya, à qual remetem o Inglês {reedom e o alemão Frelhelt, a uma restrita e negativa - Imunizada e Imunizadora - da liberdade é
remetem ambos a algo que tem a ver com um crescimento comum. definitivamente consumado.
)
Isso é confirmado pela dupla cadeia semântica que descende de tais Quando a filosofia política moderna - a partir de Hobbes e do
) modelo Jusnaturallsta - tentar restituir ao conceito o caráter de univer-
raízes- ou seja, a do amor (lieben, lief, love, mas talvez também libet e
) libido) e a do afeto e da amizade (friend, Freund). Ambas atestam, sem salidade que lhe pertence, só poderá fazê-lo naquele quadro particu-
) sombra de dúvida, a conotação original comunitária da liberdade. Ela larista, então estendido e multiplicado por quantos são os Indivíduos
é uma potência conectiva, agregadora, acomunante, embora, mais do Igualados exatamente pela sua separação recíproca. A liberdade é 0
) que separa o si do outro, reconduzindo-o a si mesmo, o que o cura e o
que no sentido moderno de "participação" (mas não se perca de vista a
) modalidade transitiva do verbo "participar", isto é, tornar partícipe al- salva de toda alteração comum. Desde então - com todas as variantes
guém de alguma coisa, comunicar, compartilhar), no de pertencimento possíveis, de tipo absolutista, republicano ou liberal - a liberdade será
}
a uma raiz comum que cresce e se desenvolve segundo a própria lei in- sempre concebida como um direito, um bem, uma faculdade do indi-
) víduo que a detém: ou através da proteção da lei soberana (Hobbes)
terna. Portanto, liberdade na e como relação: exatamente o contrário da
) autonomia e da autossuficiência do indivíduo a que há muito tempo so- ou, ao contrário, protegendo-o em relação a ela (Locke). E em ambos
mos levados a associá-la. O sentido original da ideia de liberdade não os casos essa proteção - antes da vida e depois da propriedade indivi-
}
é, portanto, nada negativo - não tem nada a ver com uma ausência de dual - assume um caráter de nítida contraposição à dimensão polftlca
} enquanto tal. Como observa Arendt, a partir dos séculos XVII e XVIII a
impedimento, com a subtração a uma constrição, com o que fica isento
} de uma opressão. t um sentido potentemente afirmativo - de tipo ao liberdade é estritamente ligada à segurança: alguém é livre somente
mesmo tempo político, biológico e físico - que remete a uma expansão, enquanto e se estiver seguro - se a liberdade é "assegurada" pela sua
j
a um florescimento, a um crescimento comum ou que acomuna. conotação defensiva e autoldentitárla (ARENDT, 1970, p. 164 et seq.).
) Desse modo, o círculo "'metafísico'" da liberdade à necessidade está fi-
} 3. Ora, é justamente essa extraordinária extensão horizontal nalmente fechado, mesmo além e através do contraste de superfície
da ideia de liberdade-relação - ainda de certo modo presente na sua entre paradigma republicano (Montesquieu) e paradigma liberal (Cons-
)
formulação platônica e aristotélica - a ser progressivamente eliminada tant), ambos internos e diversamente expressivos do processo geral de
) juntamente com a sua declinação afirmativa: o que era um princípio Imunização da liberdade. A sua Identificação final com a propriedade
) imanente de desenvolvimento segundo a lei intrínseca da própria natu- - não somente pela parte liberal, mas também, paradoxalmente, pelo
reza tende irresistivelmente a se configurar como o perímetro externo soclallsmo dos "livres proprietários" - não constituirá senão a última
) que delimita o que pode ser feito em relação ao que nao deve ser feito. passagem de tal deriva anticomunitária: é livre quem é proprietário
) Já a juridicização da libertas romana constitui uma primeira contração daquilo que lhe pertence. A liberdade nada mais é do que o efeito, ou
) da universalidade do conceito dentro de uma órbita em última análise

) 133
132
TeRMOS DA PoLITICA
CoMUi,10o'Oc, h1ur,10o'Dr•• 81oroLmu
f '
a consequência, da propriedade. Uma figura do "próprio" - o contrário por nada, que não tenha nada atrás de si, como dirão diversamente
f
do "comumu. A desgastada contraposição contemporânea entre libe- Schelling e Heidegger (cf. PAREYSON, 1995), quer dizer que ela é puro f,
rais e communltarians não faz senão confirmar tal resultado Imunitário início. Que se unifica com o princípio e o nascimento daquilo que vem (;
no âmbito de um Idêntico léxico subjetivista e particularista, aplicado ao mundo, segundo as palavras de Hannah Arendt: ':Justamente porque
{
por uns aos lndlvfduos e por outros às comunidades. Para não falar de é um início, o homem pode dar início a coisas novas: humanidade e
Improváveis teorizações sobre "comunidades liberais" que, na busca liberdade coincidem" (ARBNDT, 1970, p. 182-183). t nesse significado f!
da mediação teórica e do compromisso prático entre dois conceitos original e radical que os homens são livres. (1
Já separados pela sua conversão imunitária, revelam-se incapazes de Mas livres para quê e em que sentido? Qual é o sentido mais
{
pensar tanto a liberdade quanto a comunidade, e muito menos a sua intenso e extremo da liberdade? O que é uma liberdade enfim livre para
original relação constitutiva. Arrebatada à Intensidade afirmativa da sua sê-lo? No encerramento de toda filosofia da liberdade parece perfilar- «
antiga raiz '"comum", a liberdade deverá agora adaptar-se a não poder -se um modo diferente de entendê-la, do qual não conhecemos ainda {,
ser caracterizada senão em negativo: como não domínio, não constri- nem o significado nem o nome. A ele pode aproximar-nos - certamen-
ção, não comunidade. Representadé:! somente a partir dos obstáculos te - a grande reflexão que vai desde Kant até Heidegger, passando
t
que se Interpõem ao seu impossível desdobramento, a liberdade arris- por Schelling. E, talvez mais ainda, uma inclinação ou uma decisão {
ca-se a ficar sem palavras assim que tais ~bstáculos parecerem faltar, pela liberdade que toca profundamente a grande poesia dos últimos (
transferindo-se, na realidade, para dentro dela até esvaziá-la de toda dois séculos - de Baudelaire a Mandelstam, de Hõlderlin a Celan. Assim
efetividade. Desde então, pode-se dizer, vivemos no "crepúsculo da li-
t(
como algo daquela liberdade-a-vir - aliás, como evento e como adven-
berdade" - como se exprimiu o grande poeta russo Osip Mandelstam to - lamptja aqui e ali, nas páginas de Sartre e de Adorno, de Anders (,
- em que "legiões de andorinhas com as asas amarradas obscurecem e de Bataille, de f'oucault e de Deleuze. Mas isso não basta. Nãp basta (( :
o sol·. entramos "no grande ano crepuscular· (MANDeLSTAM, 1994, p. para inverter uma deriva que parece arrastar a liberdade em direção a
([ )
307) em que a liberdade está acorrentada ao próprio contrário, esvazia- um resultado destinado - e portanto em direção à sua própria negação.
da de sentido, privada de toda facticidade. Não basta para libertar a liberdade, como pedia inutilmente Rimbaud ({ :
quando, pouco antes de cortar todo vínculo com o passado, escrevia ( ';
4. Mas a liberdade ou é um fato ou então não é. Ou se apossa a Izambard: "Tomei-me tremendamente obstinado a querer adorar a
da nossa experiência ao ponto de se unificar com ela ou fica bloqueada ·liberdade livre" (cf. BONNef'OY, 1988, p. 21). O único modo de subtrair
(
no círculo autodissolutivo da ideia, da essência, do conceito (cf. NANCY, a liberdade a tal deriva e a tal destino, de revitalizá-la e de restituir- {
2000). Por isso é preciso entendê-la não como algo que se tem, mas -lhe potência afirmativa, talvez seja reconduzi-la ao seu sentido primá- {
como algo que se é: o que liberta a existência para a possibilidade de rio, reconstruindo o vinculo semântico que, na sua origem, ligava-a à
existir enquanto tal. Uma "decisão de existência" que não pode se tornar comunidade, à potência agregadora de uma raiz comum. Entendendo
{
objeto de teoria, e nem tampouco propriamente de pe~samento, mas simultaneamente a comunidade não como lugar de identidade, de per- {,
somente prática de experiência. Já Hegel - forçando a liberdade aos tencimento, de apropriação, mas - ao contrário - de pluralidade, de di- {1
limites da sua significação filosófica - havia escrito que a liberdade é a ferença, de alteridade. t uma opção - filosófica e política - em que me
mais alta forma de nada para si, uma negatividade tão intensa a ponto parece poder ver a própria tarefa da filosofia política contemporânea: {·
de se inverter em absoluta afirmação, querendo com Isso dizer que a libertar ao mesmo tempo a liberdade do liberalismo e a comunidade ()
liberdade não é nada de dado, de adquirido, de permanente - que não do comunitarismo. Desconstruir, em suma, a primeira e mais radicada {
é uma substância, um bem, um direito a ser exigido ou defendido. Que daquelas falsas antíteses que a filosofia política moderna construiu na
ela não pode coincidir nem mesmo consigo mesma: não há liberdade tentativa de preencher o vazio de pensamento que ela mesma escava l
mas somente libertação. Assim como livre não se pode ser, mas somen- em torno, e dentro, dos grandes conceitos da política: se pensada afir- l'
te se tornar. Que a liberdade stja nada, que não s~a fundamentada
(
154 1.35 t

'
j

l
l
l mativamente, a liberdade não pode ser senão "comum" - de todos e de OBRAS CITADAS
} cada um, porque não própria de ninguém. Isso signlflca ser expressão
daquele mesmo munus originalmente compartilhado pelos membros ADORNO, T. H. W. DfaleWca negattva. lbrlno: f:lnaudl, 1970.
)
da communitas: "Aquele que doa a liberdadeH, escrevia René Char, "não AReNDT, H. Che cos'ê la llbertà. ln: 7ta passato e futuro. l'trenze: Yallecchl, 1970.
l é livre senão nos outros" (Le donneur de liberté n·est llbre que dans les BENVeNISTe, e. n uocabolarlo delle lstltuzlonl lndoewopee. lbrlno: t:lnaudl, 1976. v. 1.
) autres) (CHAR, 1983, p. 733). E ainda: "A todas as refeições consumi- BONNEl'OY, Y. t:lmposslblle e la llbertA. Oenova: Martettl, 1988.

) das em comum convidamos a liberdade. O lugar fica vazio mas o prato BROCH, H. J:assoluto terrestre. ln: M.W. Oltre ta polltlca. Mllano: Bruno Mondadorl, 1996.
permanece na mesa" (CtlAR, 1968, p. 75). Não há liberdade - queria CHAR. R. l'bgll d'lpnos. lbrlno: ernaudl, 1968.
} dizer Char - a não ser no lugar do em-comum, mesmo que - e talvez _ _• Oeuvres Complétes. Paris: Qalllrnard, 1985.
) sobretudo porque - aquele lugar esteja vazio. Mas - para concluir - o
f:SPOSn'O, R. Communltas: Origine e destino della comunltà. lbrlno: Elnaudl, 1998.
) que significa dizer que a liberdade ocupa o lugar vazio da comunidade?
MANDELSTAM, O. 7H.stfa. Paris: lmprlmerle NaUonale, 1994.
O que significa que o vazio da comunidade, e como comunidade, é o
l próprio lugar da liberdade? Comunidade e liberdade compartilham o
NANCY, J.-L. I:esperlenza della llbertà. 1brino: Elnaudl, 2000.

) ONIANS, R. B. Le orlglnl dei penslero europeo. Mllano: Adelphl, 1998.


mesmo munus. São uma o dom da outra e através da outra. Mas qual é
esse munus, esse dom e essa lei, que liberta a comunidade no momen- PAReYSON, L. Ontologia della llbertA. lbrino: Elnaudl, 1995.
)
to mesmo em que restitui à liberdade uma dimensão comum? Como \WIL, S. Non rlcomlnciamo la guerra dl 1l'ola. ln: OAETA, O. (Org.). Simone Well. s. Domenlco dl
) l"lesole: edlzlonl Cultura della Pace, 1992.
se cruzam, sem se identificarem, os dois termos, sempre diferentes, de
) comunidade e liberdade?
) Digamos que a liberdade é a dimensão singular da comuni-
dade. t a própria comunidade na sua extensão Infinitamente singular
) - e somente por isso também plural. Não a comunidade no singular e
) nem tampouco uma comunidade singular, mas comunidade estendida
) nas infinitas singularidades que são a pluralidade. Se é verdade que a
comunidade não é um sajeito ou uma substância comum, mas o modo
) de ser em comum de singularidades irredutíveis entre si, pois bem, a
) liberdade coincide com tal irredutibilidade. e com o intervalo, o limite,
) o limiar que separa a comunidade na forma do "toda vez", do "a cada
vez", do "um por vez". Que a coloca face a face com o próprio fora ou
} que projeta esse fora em seu interior sem neutralizá-lo previamente,
) conservando-o como tal. Poder-se-ia dizer que a liberdade é a exterio-
) ridade interna da comunidade. O que, da comunidade, resiste à imu-
nização, que não se identifica consigo mesma, que permanece aberta
j à diferença de si. O início, o pulso, a fenda que nela repentinamente
) se abre. A comunidade que se abre à singularidade de toda existência:
esta é a experiência da liberdade.
)


}
)
} 1.36 1.37
)
\
t
f
f,
{
IMUNIZAÇÃO E VIOLÊNCIA {
(,
(1
f
{.
(
f. Em um texto dedicado a Kant intérprete do Iluminismo, Michel Foucault {
ide~tifica a tarefa da filosofia contemporânea em uma atitude precisa: trata- @:
-se daquela relação, tensa e pungente, com o presente, que ele indica com
(
· a expressão "ontologia da atualidade". Como entender essas palavras? O
. que significa situar a filosofia no ponto, ou na linha, em que a atualidade se (
revela na densidade do próprio ser histórico? O que quer dizer, propriamen- (
te, ontologia da atualidade? Essa expressão alude, principalmente, a uma
(
mudança do olhar sobre nós mesmos. Remetermo-nos ontologicamente à
atualidade significa considerar a modernidade não mais como uma época ({ \

entre as outras, mas como a atitude, a vontade, de atribuir-se o próprio pre- {,


sente como tarefa. Há, nessa opção, algo - uma tensão, um impulso, o que
(
foucault chama de um éthos -, que vai inclusive além da definição hegelia-
na da filosofia como o próprio tempo apreendido no pensamento, porque (
faz do pensamento a alavanca que subtrai o presente à continuidade linear (
do tempo, suspendendo-o da decisão sobre o que somos e sobre o que
podemos ser. Já para Kant a adesão ao iluminismo não significava somen-
{
te ser fiel a certas ideias, afirmar a autonomia do homem, mas sobretudo (
ativar uma crítica permanente da própria historicidade, não rtjeitando nem (,
negando o presente, não o abandonando em favor de uma utopia irrealizá-
vel, mas invertendo a noção de possível nele contida - fazendo dele o apoio
(
para uma leitura diferente da realidade. (·
Essa é a tarefa da filosofia como ontologia da atualidade: entre-
('
mentes, no plano da análise, identificar a diferença entre o que é essencial e
o que é contingente, entre os efeitos de superfície e as dinâmicas profundas 4.
que movem as coisas, que transformam as vidas, que marcam as existên- t
cias. nata-se de flagrar o momento, o limiar crítico, a partir do qual a crô-
t'
, nica atual adquire a espessura da história. O que deve ser colocado é uma
{
139

'
(
1
l
l RoBCRTO f.sPOSITO

l questão de fundo sobre o sentido do que nós chamamos de "hoje". O que é membros da comunidade são caracterizados por essa obrigação do dom,
) 0 hoje no seu significado de cortjunto? o que o caracteriza essencialmente por essa lei da preocupação em relação ao outro, a imunidade implica a
} - isto é, na sua efetividade, nas suas contradições, nas suas potencialida- . isenção ou a revogação de tal condição: é Imune quem está protegido des-
des? Mas essa interrogação não exaure a tarefa da ontologia da atualidade. sas obrigações e dos perigos que envolvem todos os outros. Quem rompe
l ela nada mais é do que a condição para uma outra pergunta, que desta o circuito da circulação social, colocando-se em seu exterior.
) vez tem a forma de uma escolha e de uma decisão. O que, do presente, Ora, as teses de base que pretendo defender são essencialmente
o pensamento deve assumir como dado, e o que - quais possibilidades
l duas. A primeira é a de que esse dispositivo imunitário - essa exigência de
latentes - pode despertar e libertar? Qual é a parte do presente com a qual isenção e prot~o - originalmente atinente ao âmbito médico e Jurídico, foi
) engajar-se, pela qual arriscar, na qual apostar? Porque o pensamento não progressivamente se estendendo a todos os setores e linguagens da nos-
l deve limitar-se a descrever o que é, as linhas de força que atravessam o nos- sa vida, até se tomar o ponto de coágulo, real e simbólico, da experiência
} so tempo, mas reconhecer na atualidade o epicentro de um confronto e de contemporânea. Naturalmente, cada sociedade exprimiu uma exigência de
um embate entre perspectivas diferentes e mesmo contrapostas no âmbito autoprotec;ão. cada coletividade colocou urna pergunta radical sobre a con-
)
das quais ele mesmo se situa. o pensamento se situa, está sempre situado, servação da vida. Mas a minha impressão é a de que somente hoje, no final
} na fronteira móvel entre dentro e fora, entre processo e evento, entre real e da época moderna, tal exigência tenha se tornado o eixo de rotação em tomo
) possível. Essa fronteira, esse limite, esse fronte é o lugar próprio da filosofia do qual se constroem tanto a prática efetiva quanto o Imaginário de uma in-
- o seu horizonte de sentido e o seu destino contemporâneo. teira civilização. Para esboçar uma primeira Ideia, basta ohservar o papel que
)
tdessa questão, e dessa opção, que nasce o meu trabalho des- a imunologia - ou seja, a ciência dedicada ao estudo e ao fortalecimento dos
) tes anos. nata-se da tentativa, nada fácil, de identificar as palavras-chave, sistemas imunitários - assumiu não somente sob o perfil médico, mas tam-
) os paradigmas, em torno dos quais se estruturam as coordenadas de um bém sob o perfil social, jurídico, ético. Basta pensar no que significou a des-
certo momento histórico - mesmo que em uma forma não sempre visível coberta da síndrome da Imunodeficiência, Aids, em termos de normalização -
) a olho nu. Essa, ao menos, é a questão da qual parti e à qual ainda hoje isto é, de submissão a precisas normas não somente higiênico-sanitárias- da
) procuro responder: quais são os conflitos, os traumas, os pesadelos - mas experiência lndMdual e coletiva. Nas barreiras, não somente proflláticas mas
} também as exigências, as esperanças - que caracterizam o nosso tempo socioculturais, que o pesadelo da doença determinou na esfera de todos os
de maneira profunda? Pessoalmente, acreditei ter encontrado essa pala- vínculos inter-relacionais. Se se passa do âmbito das doenças Infecciosas ao
)
vra-chave, esse paradigma geral, na categoria de imunidade ou de imuni- âmbito social, da Imigração, tem-se urna primeira confirmação: o fato de que
_) zação. O que significa? Todos sabemos que na linguagem biomédica por o crescente fluxo Imigratório stja considerado, de modo totalmente despro-
) imunidade se entende uma forma de isenção, ou de proteção, em relação positado, um dos maiores perigos para as nossas sociedades Indica, também
a uma doença infecciosa, enquanto na linguagem jurídica ela representa por esse lado, a centralidade que está assumindo a questão imunitária. estão
) uma espécie de salvaguarda que põe alguém em uma condição de intoca- surgindo por todos os lados novas barricadas, novas barreiras, novas linhas
) bilidade por parte da lei comum. Em ambos os casos, portanto, a imuniza- de separação diante de algo que ameaça, ou pelo menos parece ameaçar, a
) ção alude a uma situação particular que põe alguém a salvo dos riscos aos nossa identidade biológica, social, ambiental. t como se tivesse se exaspera-
quais está exposta toda a comunidade. Já aqui se delineia aquela oposição do aquele medo de ser tocado - mesmo que involuntariamente-, quejá Biias
) fundamental entre comunidade e imunidade da qual nasce a minha refle- canetti indicava na origem da nossa modernidade, em um curto-circuito per-
) xão recente. Sem poder entrar demasiadamente no mérito de complexas o contato, a relação, o estar em comum,
verso entre tato, contato e contágio.
questões etimológicas, digamos que a imunidade ou, na sua formulação parece imediatamente esmagado sob o risco da contaminação.
)
latina, a immunitas, mostra-se como o contrário, o avesso, da communi- A mesma coisa se pode dizer em relação às tecnologias infor-
) tas. Ambos os vocábulos derivam do termo munus - que signiftca "dom", máticas: aqui também o problema maior, o verdadeiro e próprio pesadelo
) "ofício", "obrigação" - mas um, a communltas, em sentido afirmativo, en- de todos os operadores, é representado pelos assim chamados vírus dos
quanto o outro, a lmmunltas, em sentido negativo. Desse modo, se os computadores - não dos nossos pequenos aparelhos, mas dos grandes
}
} 140 141
~
Tr:RMos DA PoLITICA
CoHur,10Ao~. IHur,1DA1>~. B1oroLITicA
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sistemas Informáticos que regulam as relações financeiras, políticas, mi- licos e reais, reapareceram invencíveis - verdadeiros e próprios demônios
t
litares em âmbito mundial. Atualmente todos os governos ocidentais des- capazes de penetrar em nós e nos arrastar para o seu vazio de sentido. Foi {
tinam enormes cifras para o desenvolvimento de programas antivírus ca- então que a exigência imunitária cresceu desmesuradamente, até se tomar f
pazes de imunizar a rede Informática da Infiltração de agentes patógenos, o nosso empenho fundamental, a própria forma que demos a nossa vida.
Inclusive em relação a possíveis ataques terroristas. O fato de que também
no centro das grandes controvérsias nacionais e Internacionais haja hoje
uma batalha ~urídica sobre a imunidade de alguns personagens políticos
2. t justamente aqui, todavia, que se insere a minha segunda
tese - óu gaja, a ideia de que a imunidade, necessária para proteger a nossa
'
(:
(
- como foi para Pinochet ou Mllosevic, mas também para tantos outros - é vida, se levada além de uma certa medida, acaba por negá-la. No sentido
de que a obriga a uma espécie de jaula, ou armadura, na qual se perde não f
uma prova a mais do que afirmei. O que se teme, para além dos casos es-
pecíficos, é um enfraquecimento do poder soberano dos estados individu- somente a nossa liberdade, mas o próprio sentido da nossa existência indi- (.
. vidual e coletiva - isto é, aquela circulação do sentido, aquele e.xpor-se da
ais, uma ruptura das fronteiras jurícUcas dos ordenamentos nacionais em
existência fora de si, que eu defino com o termo communitas, aludindo ao
f
prol de alguma forma - ainda a ser construída - de justiça internacional.
caráter constitutivamente exposto da existência. Ao ex da existentia, como ~
~m suma, de qualquer ângulo que se observe o que está acontecendo
hoje no mundo, do corpo individual ao corpo social, do corpo tecnológico diria Heidegger. ~is a terrível contradição para a qual deve ser dirigida a {
ao corpo político, a questão da imunidade se instala no cruzamento de atenção: o que salvaguarda o corpo individual e coletivo é também o que (
impede seu desenvolvimento. I!, que, aliás, além de um certo ponto acaba
todos os percursos. O que conta é impedir, prevenir, combater com todos
os meios a difusão do contágio onde quer que ele possa ocorrer. por destruí-lo. Poder-se-ia dizer - para usar a linguagem de Walter Bertja- «
Como eu dizia, essa preocupação de autoproteção não pertence min, ele mesmo morto pelo fechamento de uma fronteira - que a imuniza- (
somente à nossa época. Mas o limiar de consciência em relação ao risco ção em altas doses é o sacrifício do vivente, isto é, de toda forma de vida {·
foi muito diferente ao longo do tempo, até tocar o ápice justamente neste · qualificada, às razões da simples sobrevivência. A redução da vida a seu
estrato biológico nu, do bios à zoé. Para permanecer tal, a vida é obrigada a
{)
período. Isso se deveu a uma série de concausas não estranhas àquilo que
se chama globalização, no sentido de que quanto mais os homens - mas dobrar-se a uma potência estranha que a penetra e a esmaga. A incorporar ([ /

também as ideias, as linguagens, as técnicas - comunicam e se entrelaçam aquele nada que quer evitar, permanecendo presa no seu vazio de sentido. (\
entre si, mais se gera, como contrapartida, uma exigência de Imunização Por outro lado, essa contradição - essa conexão antinômica en-
tre proteção e negação da vida - está implícita no mesmo procedimento (
preventiva. As novas alternativas bairristas podem ser e.xplicadas como uma
espécie de rejeição imunitária daquela contaminação global que é a globali- da imunização médica: como se sabe, para vacinar um paciente contra (
zação. Quanto mais o ·si" tende a se tomar "global,,, quanto mais se esforça uma doença, insere-se no organismo uma porção dela, controlada e sus-
para incluir o que se situa no seu exterior, quanto mais procura introjetar
toda forma de negatividade, mais reproduz de tudo isso. Foi justamente a
derrubada do grande muro, real e simbólico, de Berlim a produzir a edifi-
tentável. Isso significa que nesse caso o remédio é feito com o mesmo
veneno do qual deve proteger - quase como se para conservar alguém em
vida fosse necessário fazê-lo e.xperimentar a morte. Além disso, o vocábulo
'
4
(
cação de tantos pequenos muros - até transformar, e perverter, a própria phármakon contém desde a origem o duplo significado de "tratamento" e
(
ideia de comunidade na forma de uma fortaleza assediada. O que conta é de "veneno" - veneno como tratamento, tratamento através do veneno. É
como se os modernos procedimentos imunitários tivessem levado à sua (
impedir um e.xcesso de circulação e, portanto, de potencial contaminação.
Desse ponto de vista o vírus se tomou a metáfora geral de todos os nossos máxima intensificação tal contradição: cada vez mais o tratamento se dá {\
pesadelos. Na realidade houve um momento nas nossas sociedades em na forma de um veneno mortal. Se se aplica essa prática imunológica
{
que o medo - ao menos o de tipo biológico - se atenuou. falo dos anos internamente ao corpo social, percebe-se a mesma antinomia, o mesmo
cinquenta e sessenta, quando se difundiu a Ideia otimista de que a medicina paradoxo contrafactual: elevar continuamente o limiar de atenção da so- l·
antiblótlca poderia erradicar algumas doenças milenares. Assim foi, até que ciedade em relação ao risco - como há tempos estamos habituados a fazer ('
apareceu a AIDS. foi então que o dique psicológico ruiu. Os v(rus, slmbó- ' - significa bloquear seu crescimento ou até mesmo fdzê-la regredir ao seu
{
142 14.3 ('
(
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l
estado primitivo. t como se em vez de adequar o nível da proteção à efetiva cuto fatal do monotetsmo - não no mundo budista ou na ga1éxla hlndufsta.
)
entidade do risco, se adequasse a percepção do risco à crescente exigên- Por quê? Eu diria que as clvtllzações - Islâmica e cristã, através da judia - se

,t cia de proteção - ou stja, criasse-se artificialmente o risco para podê-lo


controlar, como, aliás, fazem comumente as companhias de seguros. Tudo
isso faz parte da experiência moderna. Mas a minha Impressão é a de que
c-.onfrontaram não como diferentes e opostas, como estão dizendo os teó-
ricos do conflito de clvtlimções, mas, ao contrário, como demasiadamente
·semelhantes, todas ligadas, nas suas categorias constitutivas, à lógica do Um,
) estamos tocando um ponto, um limite, a partir do qual esse mecanismo de à síndrome monoteísta. Que ela assuma no Oriente a figura do único deus e
) recíproca recarga entre seguro e risco, entre proteção e negação da vida, no Ocidente a do nosso verdadeiro deus, o d,nheiro como valor absoluto, não
) arrisca fugir ao controle. Para se ter uma ideia não metafórica, pense-se impede que ambas as lógicas esttjam submetidas ao princípio da Unidade.
no que acontece nas assim chamadas doenças autoimunes, quando o sis- Que ambas pretendam unificar o mundo com base no próprio ponto de vista.

,
) tema imunitário é tão potencializado a ponto de voltar-se contra o próprio
mecanismo que deveria defender, destruindo-o. Naturalmente os sistemas
imunitários são necessários. Nenhum corpo individual ou social· poderia
É esta - antes do petróleo, da terra e das bombas - a que eu gostaria de defi-
nir a aposta metafisica dessa guerra. Paradoxalmente o que está em jogo é a
questão da verdade. O embate sem trégua entre duas verdades pardais que
)
abrir mão deles, mas quando crescem desmesuradamente acabam por ambicionam apresentar-se como verdades globais, como, aliás, é próprio do
) levar à explosão ou à implosão todo o organismo. modelo monoteísta - ou ao menos do monoteísmo político, polltlmdo, visto
) t exatamente o que ameaça acontecer a partir dos trágicos even- que os monoteísmos religiosos contêm bem outros tesouros de espirituali-
) tos de 11 de setembro de 2001. Porque eu creio que a guerra em andamen- dade. Por um lado a verdade plena do fundamentalismo Islâmico, para a qual
to está duplamente ligada ao paradigma imunitário - que ela é a forma da a verdade coincide com si mesma - aquela escrita no Corão e dali destinada
) sua exasperação e ao mesmo tempo do seu enlouquecimento. O epílogo à conquista do mw1do. Por outro lado, a verdade vazia do niilismo ocidental,
) trágico daquela que se poderia chamar "crise imunitária#, no mesmo sen- do seu cristianismo secularizado - segundo a qual a verdade é que não e.xiste
) tido em que René Girard usa a expressão "crise sacrificial'", quando a lógi- verdade, visto que o que conta é somente o princípio de performance técnica,
ca do sacriffcio rompe as margens que circunscrevem a vitima escolhida, a lógica do luao, da produção total. São estas duas verdades, uma plena e
) para arrastar toda a sociedade na violência. É então que o sangue jorra uma vazia, uma presente a si mesma e a outra retirada na própria ausência,
) de todos os lados e que os homens são literalmente feitos em pedaços. mas ambas absolutas, exdusivas e excludentes, que se embatem, dentro da
) Quero dizer que o atual conflito parece ter brotado da pressão cortjunta de mesma obsessão Imunitária, pela <".onquista do mundo global, da globali-
duas obsessões imunitárias opostas e especulares - a de um integralismo
. l
dade de um mundo flexionado sobre si mesmo, pleno de si até explodir. o
_) islâmico decidido a proteger até a morte a própria suposta pureza reílgio- monoteísmo político - a ideia de que a um único deus deva corresponder um
) sa, étnica, cultural, da contaminação da secularização ocidental, e a de um único rei e um único reino - exprime a própria essência da lmunfz.ação na sua
} Ocidente empenhado em excluir o resto do planeta do compartilhamento versão mais violenta: o fechamento de fronteiras que não toleram nada do
dos próprios bens em excesso. Quando esses dois impulsos contrapostos próprio exterior, que excluem a própria Ideia de um exterior, que não admi-
) se imbricaram entre si de modo irresolúvel, o mundo inteiro foi sacudido tem nenhuma estraneidade que possa ameaçar a lógica do Um-tudo.
} por uma convulsão que tem as características da mais devastadora doença
autoimune: o excesso de defesa em relação aos elementos estranhos ao 3. Sem abrir agora o discurso sobre as responsabilidades políticas,
)
organismo se voltou contra este último com efeitos potencialmente letais. sociais, culturais, de tal estado de coisas, eu me limitaria a este dado Indubi-
t o que explodiu, Juntamente com as duas 1brres de Manhattan, foi o duplo tável: confiado a um regime autoimunitário -voltado obsessivamente à iden-
) sistema imunitário que até então mantivera o mundo unido. tidade do próprio si - o mundo, ou ~ - a vida humana no seu cortfunto, não

•t Não se perca de vista o fato de que essa trágica situação se desen-


rolou inteiramente no âmbito interno do triângulo do monoteísmo - cristão,
judeu e islâmico, com o seu epicentro, real e simbólico, em Jerusalém. Tudo
tem grandes possibilidades de sobrevivência. A proteção negativa da vida,
potencializada até Inverter-se no seu oposto, acabará por destrulr,Juntamente
ao intmlgo externo, também o próprio corpo. A violência da lnteriorlzac;ão - a
abolição do fora, do negativo - poderia inverter-se em absoluta exterioriza-
} aconteceu, encadeou-se e depois se desencadeou, lá dentro, dentro do dr-

t 144 145
T~RMOS DA POLITIC·\
CoHor,11:Moc. IMun1t1-o\nr.. B1orot1TK ...

ção, em negatividade integral. E então. o que fazer, como romper essa lógica ci~ encontrar o modo, as formas, a linguagem conceituai para converter
de morte? Onde reconhecer, como quer a ontologia da atualidade, o ponto a caracterização imunitária que assumiram todos os fundamentalismos
de inversão do presente em direção a um outro pmw{vel? :t dlffcil para quem políticos em uma lógica singular e plural. em que as diferenças se tornem
quer que stja dar uma resposta completa a tal questão. O que é claro é o que precisamente o que mantém unido o mundo. eu creio que o Ocidente - se
não é mais ~ível fazer. Certamente não se pode voltar ao 'modelo Westfa- se quiser usar essa categoria de forma não defensiva ou ofensiva contra o
lia", ao acordo dos Estados plenamente soberanos internamente e livres em que não é nada disso - tenha em si a força, as reservas, as fontes culturais
relação a todos os outros externamente, que ocupou a cena mundial por ao para tentar essa operação de radical conversão, utilizando esse vocábulo
menos cinco séculos. Assim como não é possível reconstruir um equilíbrio no seu significado mais intenso. E isso não obstante a sua tentação recor-
entre blocos contrapostos como o que dominou o mundo desde o fim da. rente de conformar o mundo a um único modelo. Desde Heráclito a ideia
segunda guerra mundial até a última década do século passado. Mas não é de que se pode estar unidos não pela homogeneidade, mas pela distinção
imaginável tampouco um retomo a uma constelação de lugares etnicamente e pela diversidade, faz parte da tradição que o Ocidente produziu, mas
definidos, unidos por uma relação e.xduslya entre terra, sangue e linguagem. jamais levou a cabo. Boa parte da sua história violenta é marcada por essa
o caminho a percorrer, na minha opinião, não passa pela dialética, só apa- remoção e por esse esquecimento. O trágico paradoxo que hoje vivemos
rentemente contrastiva, entre global e local, a que remetem praticamente · está no fato de que aqueles que declararam guerra ao Ocidente reprodu-
todas as filosofias políticas atuais, mas principalmente pela construção de ziram, e potencializaram até o paroxismo, a mesmíssima obsessão fóbica,
uma relação inédita entre singular e mundial. Mas Isso é, por sua vez, pen- a mesma convicção de que não pode existir comunidade, relação, entre
sável somente fora - na ruptura - do paradigma monoteísta e da sua lógica diferentes, que não stja aquela, autoimune, do embate mortal.
constitutivamente imunitária. A questão, posta nos seus termos radicais - os Nessa situação - em que as tendências mais destrutivas se refle-
únicos que conv~m a um pensamento crítico no presente e do presente - é tem e duplicam em uma mesma corrida em direção ao massacre - a única
a da saída do léxico teológico-político em que, não obstante tudo, es~os possibilidade é quebrar o espelho em que o si se reflete sem ver nada além
ainda Imersos, como demonstra a síndrome monoteísta de que se falava. E de_ si mesmo, romper o encantamento. O grande linguista francês Emile
não falo agora do mundo islâmico - mas do Ocidente, Impregnado de teolo- Benveniste recorda que o pronome latino "se", assim como os seus deriva-
gia poliUca na sua própria secuJarizaçao, como já nos explicou Carl SChmltt. dos modernos, leva no seu interior uma antiga raiz indo-europeia - da qual
Naturalmente isso - sair do léxico teológlco-politico do qual to- derivam os latinos suus e soror e os gregos éthos e étes -, que significa pa-
das as nossas categorias provêm, partindo da de soberania até a de pes- rente, aliado. Benveniste deduz daí que àquela raiz remontam duas distintas
soa jurídica - não é fácil. Mas não há outro caminho. Não é· possível voltar linhas semântlcas,·a primeira remetendo ao si individual e privado, expresso
atrás, a um mundo constituído por pedaços autônomos no seu inte~or e por (dios (que pertence a si mesmo}, a segunda a um círculo mais amplo em
potencialmente hostis ao próprio exterior. Mas não é possível tampouco que vários sajeitos se relacionam uns aos outros, e daí os termos hetairos
proceder nessa globalização de um ""si" incapaz de sair de si mesmo e e sodalis, ambos expressando um liame comunitário - algo que é comum
de extroverter-se no próprio fora. Isso significaria permanecer na lógica àqueles que são por eles caracterizados, como justamente acontece com o
destrutiva e autodestrutiva da lmmunitas. O contrário, quando se trata de munus da lmmunltas. Daqui a relação complexa entre o "si" reflexivo do "si
voltar a pensar no seu oposto - na forma aberta e plural da communitas. , mesmo" e a "si" distintivo e disjuntivo do sed, que atesta como na origem
o mundo - já irreversivelmente unido - deve ser não somente pensado, do que chamamos de "si" há justamente um vínculo indissolúvel de unidade
mas -praUcado", como unidade de diferenças, como sistema de distin- · e distinção, de identidade e alterldade. Sem conferir nenhum privilégio par-
ções, em que distinções e difere.nças não s~am pontos de r~istêncla ou ticular às etimologias, talvez na profundidade da nossa tradição linguística
resíduos em relação aos processos de globalização, mas a sua própria pudéssemos procurar as chaves para inverter, como dizia Foucault, a linha
forma. Naturalmente sei bem que transformar essa fórmula filosófica em do presente. Para libertar, na atualidade da sua história, uma outra possibi-
prática rea\, em lógica poliUca, é empresa nada fácil. e no entanto é pre- lidade, também ela presente, mesmo que jamais experimentada.

147
146

OBRAS CITADAS

BENJAMIN, w. Per la crlUca della violenza. ln: Angelus nouus. 'lbrtno: Elnaudl, 1962.
BENWNISTe, E. li uocabolario deUe lstltuzlonl lndoewopee. 'lbrtno: Elnaudl, 1976. \
CACCIARI, M. Oeo•fllosofla dell'l!Uropa. Mllano: Adelphl, 1997. PARTE III
CANE'ITI, E. Massa e potere. Mllano: Adelphl, 1981.

DERRIDA, J. Autolmmunltà. Sulcldl reall e slmbollcl. ln: BORRADORI, O. (Org.). l"floso/fa dei
terrore. Roma•Barl: Laterza, 2~.
ESPOSITO, R. Immunltas: Proteztone e negazlone della vita. 'lbrtno: Elnaudl, 2002.

fOUCAULT, M. Che cos'e l11lumlnlsrno. ln: PANDOLl"I, A. (Org.). Archlvlo l'bucault, 5. Mllano:
f'eltrlnelll, 1998.

QJRARD, R. La vlolenza e li sacro. Mllano: Adelphl, 1980.

MARRAMAO, a. Passagglo a Occldente: filosofia e globallzzazlone. 'lbrlno: 6ollaU Borlnghlerl,


2005.

148 j
BIOPOLÍTICA E FILOSOFIA

Í. Mais que o medo e a esperança, a sensação suscitada pelos eventos


mundiais dos últimos anos talvez stja a surpresa. Antes de serem positivos,
negativos ou até mesmo trágicos, esses eventos resultam, em primeiro lugar,
inesperados. Mais que isso: contrários a qualquer cálculo racional de proba-
bilidade. Do colapso imprevisível e não sanguinário do sistema soviético em
1989 ao ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, com tudo aquilo que
lhe seguiu, o mínimo que se pode dizer é que não apenas nada os fizesse
imaginar, mas que tudo levasse a senti-los inverossímeis. Naturalmente um
certo grau de imprevisibilidade pertence a cada evento coletivo, como a histó-
ria demonsba desde sempre. E contudo, mesmo nos casos de maior descon-
tinuidade - como a revolução ou a guerra-, sempre se pode dizer que fossem
preparados, ou ao menos consentidos, por uma série de condições que os
to~vam, se não prováveis, certamente possíveis. A mesma consideração
podê ser feita, de fom,a ainda mais clara, pelos quarenta anos posteriores ao
fim da segunda guerra mundial, quando a ordem bipolar do globo não deixa-
.va margens ao imprevisto - a tal ponto que tudo o que acontecia em qualquer
dos dois blocos aparecia como o resultado quase automático de uma partida
· conhecida e previsível em todos os seus movimentos.
Tudo isso - esta ordem política que parecia mais propriamente go-
vernar as relações internacionais - culminou imprevisivelmente na implosão
(no caso do sistema soviético) e depois na explosão (no caso do terroris-
mo). Por quê? Como se explica essa repentina mudança de fase? E onde,
exatamente, se origina? A resposta que frequentemente se apresenta a tais
interrogações inicia com o fim da guerra fria e ao consequente evento da
globalimção. Mas deste modo se arrisca trocar a causa e o efeito, oferecen-
do como explicação precisamente aquilo que precisa ser explicado. Mesmo
a tese, mais recente, que remete ao assim chamado conflito de civilização,

151
,
l
t
l apresenta em termos mais dramatizados uma emergência ou pelo menos 2. Eu creio que se deva fazer referência àquele col'\)unto de even-
l um risCO, efetivamente presente, sem lhe favorecer com uma Interpretação tos que, ao menos a partir dos estudos de Mlchel f'oucault - mas em verda-
) adequada. Por que a cMlização - se quisermos usar essa palavra pesada -, de desde um tempo antes - assumiu o nome de "blopolft1ca'". Sem poder
depois de ter convivido pacificamente por mais de melo milênio, ameaça hoje me demorar aqui na genealogia do conceito - que reconstruí em detalhe
l combater-se com êxitos catastróficos? Por que galopa na forma mais virulen- num livro recente (ESPOSrro, 2004; mas conferir também BAZZICAWPO;
) ta o terrorismo internacional? E por que, de modo correspondente, as demo- ESPOSITO, 2003; CUTRO, 2005; AA.W., 2006; VINALE, 2007; MARZOCCA,
cracias ocidentais não parecem estar em condições de afrontá-lo, se não por 2007) - e nem mesmo nos diversos significados que adquiriu ao longo do

'-,
)
meio de instrumentos e estratégias que a longo prazo minam seus próprios
valores fundadores? A resposta que geralmente se dá a esta última ques-
tão, relativa à crescente crise das instituições democráticas - à dificuldade
tempo (e até mesmo no Interior da própria obra de f'oucault), digamos que
na sua formulação mais geral esse conceito se refere à Implicação sempre
mais direta e Intensa que, a partir de uma certa fase da segunda modernida-
) de coqjugar direitos indMduais e direitos coletivos, liberdade e segurança -, de, se determina entre as dinâmicas políticas e a vida humana compreendi-
permanece fechada no círculo interpretativo que deveria abrir. A impressão é da em sua dimensão especificamente biológica. Naturalmente seria possível
)
que continuamos a nos mover no interior de uma semântica não mais capaz observar que a política desde sempre tem relação com a vida, que a vida,
) de reconstituir partes significativas da realidade contemporânea, que d~ qual- . Justamente no seu sentido biológico, sempre constituiu a moldura material
) quer modo continuamos na superfície, ou nas margens de um movimento na qual resulta necessariamente Inscrita. Não deveriam a política agrária

,
)
bem mais profundo. A verdade é que enquanto permanecermos presos den-
tro desta linguagem abundantemente clássica - dos direitos, da democracia,
da liberdade - não daremos um real passo avante diante de uma situação não
apenas totalmente inédita, mas cuja radical novidade lança uma luz diversa
dos antigos Impérios ou aquela higiênico-sanitária desenvoMda em Roma
caber, para todos os efeitos, na categoria de política da vida? E a relação
de dominação sobre o corpo dos escravos, por parte dos antigos regimes,
ou, mais ainda, o poder de vida ou de morte exercitado sobre os prisionei-
)
também sobre a interpretação da fase precedente. O que não funciona na- ros de guerra, não implicam uma relação direta e imediata entre poder e
) quelas respostas, antes mesmo de suas referências conceituais particulares, blos? Por outro lado, já Platão, em particular na RepúbUca, no Pol(tlco e nas
) é o mapa global no qual estão inseridas. Como compreender, por melo dei~, Leis, aconselha práticas eugênicas que chegam ao homicídio de crianças
) a escolha suicida dos terroristas camicase? Ou ainda as antinomias das guer- de saúde frágil. Todavia Isso não basta para situar aqueles eventos e tex-
ras chamadas humanitárias que acabam por devastar a própria população tos numa órbita efetivamente biopolítica, já que, na antiguidade e na Idade
) cuja salvação as conduz? E como conciliar a ideia de guena preventiva com média, nem sempre, ou mesmo nunca, a conservação da vida enquanto tal
) a opção pela paz compartilhada por todos os f..stados democráticos ou sim- constituiu o objetivo prioritário do agir político, como ocorre precisamente
) plesmente com o princípio secular de não ingerência nos eventos de outros na modernidade. Aliás, como lembrou sobretudo Hannah Arendt, até um
Estados soberanos? Parece-me que o plexo inteiro das categorias políticas certo momento a preocupação relativa à manutenção e à reprodução da
} modernas, baseado na bipolaridade entre direitos indMduaJs e soberania es- vida pertencia a uma esfera em si mesma não política e não pública, mas
) tatal, não apenas não ajuda a resolver problemas similares como contribui econômica e privada, a ponto que a ação política propriamente dita assumia
} para torná-los sempre mais insolúveis. Não se trata apenas de inadequação sentido e relevo exatamente pelo contraste com aquela esfera.
lexical ou de perspectiva insuficiente, mas de um verdadeiro efeito de dissi- t talvez com Hobbes, isto é, na época das guerras religiosas,
) mulação: é como se aquele léxico acabasse por esconder por trás da própria que a questão da vida se instala no coração mesmo da teoria e da práxis
) cortina semântica qualquer coisa de diferente, uma outra cena, uma outra política. Em defesa da vida é instituído o Estado Leviatã e em seu nome
lógica que há tempo pesa sobre suas costas, ainda que apenas recentemente os súditos consignam a ele os poderes dos quais são naturalmente foml-
)
esttja vindo à luz de forma explosiva. Do que se trata? Qual é esta outra cena, dos em troca de sua proteção. Todas as categorias políticas empregadas
) esta outra lógica, este outro objeto que a filosofia política não consegue ex- desde Hobbes e pelos autores, autoritários ou liberais, que lhe sucedem
) primir e ainda tende a ofuscar? - soberania, representação, Indivíduo - em realidade não são mais que

)
) 152 15.3
TeRMOS DA POLÍTICA
Co,,,ur,1~oc., b,unt~oc. B<0t'OL1TK.A
'f
modalidades, linguísticas e conceituais, de nomlnar ou traduzir em termos enquanto na primeira modernidade a relação entre política e conservação
f
fllosóflco-polítlcos a questão biopolítlca da salvaguarda da vida humana da vida, assim como foi fixada desde Hobbes, ainda era mediada, filtrada (
diante dos perigos da extinção violenta que a ameaçam. Nesse sentido por um paradigma de ordem que se articulava justamente naqueles con- (·
poderia chegar-se a dizer que não foi a modernidade a colocar o proble- ·ceitos de soberania, de representação e de direitos Individuais menciona-

ma da autoconservac;ão da vida, mas esta última a pôr em existência, por dos antes, em uma segunda fase, que de modos diversos e descontínuos
assim dizer, a "inventar" a modernidade como um complexo de categorias chega até nós, aquela mediação vem progressivamente desaparecendo em (,
em condições de resolver tal problema. Isso que chamamos modernidade, favor de uma sobreposição consideravelmente mais imediata entre política (.
em suma, poderia ser no seu coqjunto nada mais que aquela linguagem e bios. O relevo q~e as políticas sanitárias, demográficas e urbanas ad-
que consentiu dar a resposta mais eficaz a uma série de pedidos de auto- quirem na lógica do governo, já no final do século XVIII, dão o sinal desta f
tutela que surgiam do fundo mesmo da vida (cf. SLOTl!RDIJK, 2002). 1àl transformação. Mas Isto não é mais que o primeiro passo em direção a uma f
demanda por histórias salvíficas - pensemos. por exemplo, na do contrato caracterização blopolítica que investe todas as relações nas quais é organi- {
social - nesse caso teria nascido e teria se tornado sempre mais urgente zada a sociedade. fbucault analisou as variadas etapas desse processo de
(
à medida que começavam a se enfraquecer as defesas que até aquele gov~rnamentalização da vida- do assim chamado "poder pastoral", ligado
momento haviam constituído a concha de proteção simbólica da experi- à prática católica da confissão, à razão de estado, aos saberes de "polícia", f
ência humana a partir da perspectiva transcendente de matriz teológica. que faziam referência a todas as práticas voltadas ao bem-estar material (cf. (
Uma vez diminuídas tais defesas naturais, radicadas no senso comum, r'OUCAULT, 2005a, 2005b). A partir daquele momento, a vida, por um lado
(
essa espécie de invólucro Imunitário primitivo reclamava, enfim, um dis- - a sua manutenção, o seu desenvolvimento, a sua expansão - assume uma
positivo posterior. dessa vez artificial, destinado a proteger a vida humana relevância política estratégica e se toma o centro do cenário dos conflitos {
de riscos tornados sempre mais insustentáveis, como aqueles causados políticos; por outro lado, a política tende. ela mesma. a configurar-se segun- {
pelas guerras civis ou por invasões externas. o homem moderno, exa- do modelos biológicos e, em particular, médicos.
{
tamente porque projetado em direção ao externo, de uma forma nunca
antes experimentada, tem necessidade de uma série de aparatos imuni- 3. Como é sabido, também essa mistura entre linguagem polí- (,
tários destinados a proteger uma vida inteiramente entregue a si mesma tica e linguagem biomédica possui uma longa história - basta pensar na
,(
pela secularização dos referimentos religiosos. t então que as categorias .milenária duração da metáfora do "corpo político", ou também nos termos
políticas tradicionais, como aquela de ordem, mas também aquela de li- políticos de proveniência biológica como "nação" ou "constituição". Mas o (
berdade, assumem um significado que as coloca cada vez mais a reboque processo de duplo cruzamento de politização da vida e de biologicização da {
da exigência de segurança. A liberdade, por exemplo, deixa de ser entendi- política que se desenrola a partir do início do século passado possui uma
carga radicalmente diferente. ·Não apenas porque coloca a vida sempre mais

da como participação na condução polítlca da pólls para converter-se em
termos de segurança pessoal numa tendência que chega até nós: é livre no centro do jogo político, mas porque, em certas condições, chega a inver- (
aquele que pode mover-se sem temer pela sua vida e pelos seus bens. ter esse vetor biopolítlco no seu oposto tanatopolítlco - ligando a batalha ('
Isso não significa que estajamos ainda hoje dentro do campo de pela vida a uma prática de morte. nata da questão posta por fbucault nos
seus termos mais crus, quando ele pergunta, com uma interrogação que

problemas aberto por Hobbes - e tanto menos que suas categorias valham ·
para Interpretar a situação atual; caso contrário não nos encontraríamos na continua a nos interpelar ainda hoje, como uma política da vida ameaça {
necessidade de construir uma nova linguagem políUca. em realidade, entre continuamente traduzir-se em prática de morte (fOUCAULT, 1997, p. 206 (1
a fase que podemos definir genericamente moderna e a nossa decorre uma et seq.). 1àl conclusão Já estava de qualquer modo implícita naquilo que
clara descontinuidade que podemos situar exatamente naquelas primeiras eu mesmo defini como o paradigma imunitário da política moderna (ES- 4.
décadas do século passado, na qual se enraíza a verdadeira e própria re- POSITO, 2002), significando com tal expressão a tendência sempre mais (. '.

forte de proteger a vida dos riscos implícitos na relação entre os homens,


flexão blopolítica. Qual é a dlferen<;a em questão? Trata-se do tato de que, l
mesmo à custa da extinção dos laços comunitários - é, por exemplo, o que
{
154 155 ('
t
{
prescreve Hobbes. Como, para defender-se preventivamente do contágio, de\\cada, que é aquela que vai de uma po\ltlca da adm\nlstraç;ão da vida
uma porção do mal é il'\.letada no corpo daquele que se pretende salvaguar- biológica para uma potftica que prevê·a posstbllldade de sua transformac;ão
dar, na imunização social a vida é protegida de um jeito que lhe nega seu artificial. Desse modo, ao menos potencialmente, a vida humana se toma
significado mais intensamente comum. Mas um verdadeiro e próprio salto terreno de decisões que dizem respeito não apenas a seus llmltes externos
de qualidade em direção mortífera se dá quando essa dobra imunitária do - por exemplo aquilo que a distingue da vida animal ou vegetal -, mas tam-
percurso biopolítico se cruza primeiro com a parábola do nacionalismo e bém seus limites internos. Isso significa que será concedido e até mesmo
depois do racismo. t então que a questão da conservação da vida passa do requerido à polftica decidir qual é a vida biologicamente melhor e também
plano individual, típico da fase moderna, àquele plano do ~tado nacional como potenciá-la por meio do uso e da exploração ou, quando necessário,
e da população enquanto corpo etnicamente definido numa modalidade pela morte daquelas piores.
que lhe contrapõe a outros ~tados e outras populações. No momento em
que a vida de um povo, caracterizada racialmente, é assumida como o valor 4. o totalitarismo do século XX - sobretudo o nazista - marca o
supremo a se conservar intacto na sua constituição originária, ou até mes- ápice desse direcionamento tanatopolftico. A vida do povo é\lemão se torna
mo para expandir além de seus limites, é óbvio que a outra vida, a vida de o ídolo bfopolftico em nome do qual se sacrifica a existência de cada outro
outros povos e de outras raças, tende a ser considerada como um obstáculo povo e em particular o judaico, que parece contaminá-la e enfraquecê-la
a tal projeto e portanto a ele sacrificada. O bios é artificialmente recortado internamente. Nunca como neste caso o dispositivo imunitário marca uma
em uma série de limiares com zonas constituídas por diferentes valores que C"..Oincidência absoluta entre proteção e negação da vida. O potendamento
submetem uma parte sua ao domínio violento e destrutivo da outra. supremo da vida de uma raça que se pretende pura é pago com a produ-
O filósofo que percebe mais radicalmente essa passagem - assu- ção em larga escala da morte - antes a dos outros e, no fim, no momento
mindo-a em parte como próprio ponto de vista e em parte criticando-a nos da derrota, também a própria; como testemunha a ordem de autodestrui-
seus resultados niilistas - é Nietzsche. Quando ele fala de vontade de potên- ção transmitida por Hitler sitiado no bunker de Berlim. Como nas doenças
cia como do fundo mesmo da vida, ou quando põe no centro das dinâmicas chamadas autoimunes, o sistema Imunitário se toma tão forte a ponto de
inter-humanas não a consciência, mas o corpo mesmo dos indivíduos, faz agredir o próprio corpo que deveria salvar, determinando a sua decom-
da vida o único sajeito e objeto da política. Que a vida stja para Nietzsche posição. Acredito que não convenha detalhar a absoluta especificidade do
vontade de potência não quer dizer que a vida queira a potência ou que que ocorreu na Alemanha nos anos de 1930 e 1940 do século passado. A
a potência determine a partir de fora a vida, mas que a vida não coWtec.e m~.sma categoria do totalitarismo - que teve o mérito de chamar a atenção
modos de ser diversos de um contínuo potenciamento. Aquilo que condena sobre certas conexões entre os sistemas antidemocráticos do período - ar-
as instituições modernas - ~tado, parlamento, partidos - à ineficácia é pre- risca cancelar, ou ao menos desbotar, o caráter Irredutível do nazismo não
cisamente a incapacidade delas de se situarem nesse nível do discurso. Mas apenas com respeito a todas as categorias políticas modernas, das quais
Nietzsche não se limita a isso. O extraordinário relevo - mas também o risco marca a inclinação, mas também em respeito ao comunismo stallnlsta.
- de sua perspectiva biopolítica não está apenas no colocar a vida biológica, enquanto este último ainda pode ser considerado como uma
o corpo, no centro das dinâmicas políticas, mas também na lucidez absolu- extremlzação exasperada da filosofia da história moderna, o nazismo está
ta com a qual prevê que a definição de vida humana - a decisão sobre que totalmente fora não apenas da modernidade, mas também de sua tradição
coisa é, qual é, uma verdadeira vida humana - constituirá o mais relevante filosófica. Não que não haja uma filosofia sua - mas se trata de urna filosofia
objeto de embate dos séculos vindouros. Quando, em uma conhecida pas- Integralmente traduzida em termos blológicos (cf. LEVINAS, 1996). o nazis-
sagem dos r>-agmentos póstumos, ele se pergunta "por que não devemos mo não é - como contrariamente pretende ser o comunismo - a realização
realizar no homem aquilo que os chineses conseguem fazer com a árvore de uma fflosofla, porque foi, multo mais, a realização de uma biologia. Se o
- uma vez que ela de um lado produz rosas, de outra peras" (NIETZSCHE, transcendental - quer dizer a categoria constitutiva da qual descendem to-
1964 et seq., p. 432-433), estamos diante de uma passagem extremamente da..q as outras - do comunismo é a história, a categoria do nazismo é a vida,
entendida do ponto de vista da biologia comparativa entre raças humanas e

156 157
\
T~RMOS DA f'OLiTICA
CoMUI\IMOt, lm>l\lllAUt, Btut'OLITl<A
f
raças animais. Isso explica o papel absolutamente extraordinário realizado dando morte a uma vida desde sempre habitada e corrompida pela morte. f
no nazismo, por um lado, pelos antropólogos - em uma relação de estreita Assumiam a morte con:io objeto e também instrumento de cuidado a favor f
vizinhança com os zoólogos - ~
por outro lado pelos médicos. No primeiro · da vida. Por isso eles sempre tiveram o culto dos próprios antepassados
caso, a centralidade Imediatamente política da antropozoologla remete ao mortos: porque, em uma perspectiva biopolítica completamente transfigu-
t
relevo que os nazistas Impuseram à categoria da humanltas_ - um célebre rada em tanatopolítica, apenas à morte poderia caber o papel de defender f
manual de política racial recebeu exatamente esse nome (se trata de aON- a vid~ de si mesma, submetendo a vida por inteiro ao regime da morte. (
TtmR. 1937) - entendida como objeto de contínua reelaboração por melo As cinquenta milhões de mortes produzidas pela segunda guerra mundial
(
de definic;ão de tipo biológico entre zonas de vida constituídas e descons- constituem o resultad_o inevitável ao qual tal lógica deveria conduzir.
tltuídas de valor, como expressava um famigerado texto sobre a vida "'não (
digna de ser vivida" (BINDINQ; HOCKE, 1920). Quanto aos médico.,, suas 5. 1bdavia essa catástrofe não pôs fim à biopolítica, como mos- {
participações diretas em todos os estágios do genocídio - desde a seleção tra o fato de que esta, nas suas várias configurações, possui uma história
na entrada dos campos até a cremação final dos prisioneiros - são CQnheci- bem mais ampla e longa do que a do nazismo, que parece levá-la ao seu f
das e amplamente documentadas. Como se deduz de suas d~rações nos resultado extremo. A biopolítica não é um produto do nazismo, mas o f:
vários processos em que foram envolvidos, eles interpretavam. o trabalho
de morte como a própria missão do médico: aquela de curar o corpo da
nazismo é, eventualmente. um procluto exagerado e degenerado de uma
certa forma de biopolítica. É um ponto sobre o qual convém insistir com
t
força, pois pode conduzir e, aliás, já conduziu, a numerosos equívocos.
(
Alemanha acometido de um gravíssimo mal, eliminando de forma definitiva
a parte infectada e os germes invasores. Aos olhos dos médicos seus. traba- Contrariamente às ilusões daqueles que imaginaram ser possível retro- (
lhos possuíam o caráter de uma grJnde desinfestação, necessária em um ceder ao momento anterior àquele do parêntesis nazista para reconstruir (
mundo Já invadido por processos de degeneração biológica dos quais. a raça as mediações reguladoras dessa fase precedente, vida e política Já estão
Judaica constituía o elemento mais letal. ligadas em um nó que é impossível desfazer. Tuis ilusões foram alimenta- {
Desse ponto de vista o nazismo constitui um elemento de ruptura das pelo período de paz - ao menos no mundo ocidental - aberto ao fim (
e ao mesmo tempo de desvio também no interior da própria biopolítica, a da seg~nda guerra mundial. Porém, desconsiderando a circunstância de (
qual ele conduziu ao ponto de máxima antinomia, sintetizada no prindpio q~e também essa paz - ou não guerra, como foi a guerra fria - se funda-
de que a vida se protege e se desenvolve apenas aumentando progressiva-- menta~ sobre o equilíbrio do terror determinado pela ameaça atômica, e ('
mente o círculo da morte. Tumbém a lógica da soberania é ~dicalmente al- portanto completamente inscrita dentro de uma lógica Imunitária, ela não {
terada. enquanto nela, ao menos em sua formulação clássica, apenas o so- fez outra coisa do que remeter em qualquer década para frente ou para
{
berano mantém o direito de vida e de morte sobre os súditos, esse direito é trás o que de qualquer modo teria ocorrido. e, de fato, por outro lado, a
concedido a todos os cidadãos do Relch. Se se trata da defesa racial do povo falência do sistema soviético, interpretada como vitória definitiva da de- (
alemão, qualquer um é legitimado, mais que isso, é obrigado a produzir a mocracia contra os seus inimigos potenciais - se não até mesmo como 0 (
morte de todos os outros e, no fim, se a situação exigir, como no momento fim da história - marcou o fim daquelas ilusões. O nó entre política e vida l \
da derrota final, também a sua própria. Aqui, defesa da vida e produção de que o totalitarismo estreitou de uma forma destrutiva para ambos ainda
morte realmente alcançam um nível de absoluta indistinção. A doença que está diante de nós. Aliás, é possível dizer que tal nó tornou-se o epicentro (
os nazistas queriam eliminar era precisamente a morte da própria raça. era qe cada dinâmica politicamente significativa. Do relevo sempre maior as- t
a raça que eles queriam matar no corpo dos Judeus e de todos aqueles que sumido pelo elemento étnico nas relações internacionais ao impacto das
(1
pareciam ameaçar do interior e do exterior. Por outro lado, aquela vida in- biotecnologias sobre o corpo humano; da centralidade das questões sa-
fectada era já considerada morta. Por Isso os nazistas não percebiam a pró- nitárias como índice privilegiado de funcionamento do sistema econômi- {
pria ação como um verdadeiro assassinato. eles nada mais faziam do que co-produtivo à prioridade das exigências de segurança em todos os pro- (_ 1

restabelecer os direitos da vida restituindo para a morte uma vidajá morta, gramas de governo, a política aparece sempre mais esmagada sob a nua
{
" forma biológica, se não sob o corpo mesmo dos cidadãos em cada parte

158 159
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{
{
(
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'
)
)
do mundo. A progressiva indistinção entre norma e exceção determinada
pela expansão indiscriminada das legislações de emergência, coqj\lnta-
mente com o crescente fluxo de imigrantes privados de qualquer identi-
cer um momento ulterior também no tocante à tanatopolftlca nazista. Não é
ma~ somente a morte que ingressa rnas,;lvamente na vida, mas a vida que se
constitui como il1.9trumento de morte. O que é, propriamente, um camlcase,
) dade Jurídica e submetidos ao crivo direto da polícia, marcam um ulterior . se não um fragmento de vida que se despedaça sobre outras vidas para pro-
deslocamento em direção biopolítica. t necessário refletir sobre esse dado duzir morte? e o alvo dos atentados terroristas não se desloca cada vez mais
) mundial também para além das atuais teorias da globalização. Pode-se para mulheres e crianças, quer dizer, para as próprias fontes da vida? A bar-
) dizer que, contrariamente de como foi sustentado dtversamente por Hei- bárie da decapitação dos reféns parece reenviar ao momento pré-moderno

,
} degger e Hannah Arendt, a questão da vida hoje se coqjuga com questão
do mundo. A ideia filosófica, de derivação fenomenológica, de "mundo da
vida" é, enfim, invertida naquela, simétrica, de "vida do mundon, no senti-
dos suplícios em praça, com uma tonalidade hipermoderna constituída pela
plateia planetária da Internet de onde é ~fvel assistir ao espetáculo. o vir-
tual, diversamente _de oposto ao real, constitui nesse caso sua mais concreta
) do de que o mundo inteiro aparece sempre mais como um corpo unificado manifestação no próprio corpo das vítimas e no sangue que parece salpicar
de uma única ameaça global que ao mesmo tempo o mantém unido e ar~ na tela. Jamais como nos dias atuaLc; a política foi praticada sobre os corpos
)
risca destroçá-lo em partes: diferente de outro tempo, não é mais possfveJ e nos corpos, de vítimas desamparadas e inocentes. Mas o que é ainda mais
) que uma parte do mundo - a América, a europa - se salve enquanto outra signfficatfvo do atual direcionamento biopofftico diz respeito à circunstância
) se destrói. O mundo, o mundo inteiro, a sua vida, é unido num único desti- em que a própria prevenção em relação ao terror de massa tende a apropriar-
) no: ou encontrará o modo de sobreviver todo Junto ou perecerá todo Junto. -se dele e reproduzir a sua modalidade.. Como ler de outro modo episódios
Os eventos desencadeados pelo ataque terrorista do 11 de se- trágicos como aquele do massacre no teatro de Dubrovka em l'Ioscou, onde a
) polícia fez uso de gás letal, tanto para os terroristas quanto para os reféns? e


tembro de 2001 não constituem, como comumente é_dito, o começo, mas
simplesmente a eclosão de um processo Já iniciado no fim do sistema não seria, em outro nível, um caso exemplar de política sobre a vida a tortura
) soviético, do último katéchon que abrandou as forças autodestrutivas do largamente praticada nos cárceres iraquianos, a melo caminho entre a gra-
mundo pelo domínio recíproco do medo. Nessa altura, superado esse vação do corpo dos condenados da Colónia penal de Kafka e a bestialização
) último muro que conferia ao mundo uma forma dualista, as dinâmicas do inimigo pela mabiz nazista (CAVARERO, 2007)? Que na recente guerra do
) biopolíticas não parecem mais freáveis, contíveis no interior das velhas Afeganistão os mesmos aviões lançaram bombas e alimentos para a mesmfs-
barreiras. A atual guerra no Iraque possivelmente marque o ápice desse .sima população talvez stja um sinal tangível da sobreposição realizada entre
)
deslocamento, pelo modo como foi motivada, por aquilo que foi e como defesa da vida e produção de morte.
) é atualmente conduzida. Já a ideia de guerra preventiva desloca radical-
) mente os termos da questão, stja com respeito às guerras guerreadas, 6. Com Isso o discurso pode considerar-se fechado? Seria o úni-
stja com respeito à Guerra Fria. No que diz respeito a esta última, é como co resultado possível desse evento, ou existe um outro modo de praticar
) ou ao menos de pensar a blopolítica? Uma blopotrtica finalmente afirmati-
se o negativo do procedimento imunitário se redobrasse até ocupar o qua-
) dro inteiro. A guerra toma-se não mais a exceção, o último recurso, o des- va, produtiva, subtraída do retomo Irreparável da morte? t pensável - para
) vio sempre possível, mas a única forma de coexistência global, a categoria dizer em outras palavras - uma política não mais sobre a vida, mas da
constitutiva da existência contemporânea. A consequência disso - que não vida? e como deveria ou poderia configurar-se? Mas antes, um primeiro e

'• é surpreendente - trata de uma multiplicação desmesurada dos mesmos


riscos que se pretendia evitar. o resultado mais evidente é aquele da ab-
útil esclarecimento: reconhecida a legitimidade de toda abordagem, pes-
soalmente desconfio de cada curto-circuito imediato entre filosofia e polí-

,
) soluta sobreposição dos opostos - paz e guerra, ataque e defesa, vida e
morte, sempre mais ligados um ao outro.
Se pararmos para examinar detalhadamente a lógica homicida e
tica. A implicação de ambas não pode ser resumida em sobreposição, no
sentido de que não creio que caiba à filosofia a tarefa de propor modelos
de instituições políticas ou que, de outro modo, se possa fazer da blopo-
) suicida das atuais práticas terroristas, não teremos dificuldade em reconhe- lftica um manifesto revolucionário ou, de acordo com o gosto, reformista.

) A minha Impressão é que se deva percorrer um caminho mais longo e

t 160 161
\
ThRMOS DA PoLITlc.A
Co11ur.10..or:, !HUNtll,\Dt, BIOl'OLITtu
I
articulado, que passe por um esforço propriamente filosófico de uma nova OBRAS CITADAS
f
elaboração conceituai. Se, como crê Deleuze, a filosofia é a prática de cria- f
ção de conceitos adequados ao evento que nos atinge e nos transforma M.W. 5lopol1Uca, 2006. ln: l"iloso{la Polltlca, n. 1.
(
(cf. DeLEUZE; OUATTARJ, 1996), esse é o momento de repensar a relação 8AZZ1CAWPO, L.; ESPOSITO, R. (Org.). Polltlca delta ulta. Roma-5arl: Laterza, 2005.
entre poUtlca e vida de uma forma que, em vez de submeter a vida à dire- 81ND1NQ, K.; HOCKE, A. Dle ftelgabe der Vemlchtung leben.sunwerten Lebens: 1hr Mass und
t
ção da política - o que ocorreu no curso do último século -, introduza na lhre l"orm. Leipzig: Melner, 1920.
(
política a potência da vida. O que importa é reportar-se à biopolítica não ClJrRO, A. BlopoUtica, Verona: Ombre Corte, 2005.
(
de seu exterior, mas de seu interior, até fazer emergir dela qualquer coisa CAVARERO, A. Orrortsmo. Milano: feltrinelll, 2007.
que até agora ficou apertada pela figura do seu oposto. A referência a esse DELeuze, a.; QUAITARI, r. Che cos'e la flloso{la. Torlno: Elnaudi, 1996. f
oposto é necessária, se não por outro motivo, para fixar um ponto de parti- ESPOSITO, R. Immunltas: f'rotezlone e negazlone dela \ita. 'lbrlni: Einaudi, 1996. {
da e de contraste. Em Blos escolhi a via mais difícil - que é aquela de partir _ _• B(os. Blopolltlca e {Uosofla. 1brlno: Einaudl, 2004. (
do ponto da mais extrema direção mortífera da biopoUtica, vale dizer, do
l"OUCAULT, M. Blsogna dl{endere la socletà. Mllano: Feltrinelll, 1997.
nazismo, de seus dispositivos tanatopolíticos, para buscar justamente ne- (
_ _. Slcurezza, território, popolazlone. Milano: feltrinelli, 2005a.
les os paradigmas, as chaves, os sinais revertidos de uma outra política da
vida. Percebo o quanto possa parecer chocante contrastar com um senso
_ _• Nasclta dela blopolltlca. Mllano: feltrinelll, 2005b. t
comum, que por muito tempo buscou, intencionalmente ou não, remover
OALLI, C. La guerra globale. Roma-5arl: Laterza, 2002. {
a questão do nazismo daquilo que o nazismo pretendeu e, infelizmente,· OUNTHl!R, H. r. K. lfumanltas. Munchen: Lehmanns, 1957. {
praticou. como política da blos - ainda que, para reconstruir mais corre- e. Alcune rlflesslonl suita filosofia dell'hltlerlsmo. Macerata: Quodlibet, 1996.
LCVINAS,
(
tamente o léxico aristotélico, se devesse dizer da zoé. Os três dispositivos MARZOCCA, O. Ferche li gouemo. Koma: Manlfestollbri, 2007.

mortíferos do nazismo sobre os quais trabalhei são aqueles da normali-


(
NU!TZSCHC, f. rrammenti postuml. 1881-82, ln: Opere. Mllano: Adelphl, 1964 et seq. v. 2.
zação absoluta da vida, isto é, o aprisionamento da bios dentro da lei de SLO'reRDLJK, P. I:ultlma sfera: Breve storla Hlosófica dela globalizzazione. Roma: Carocci, 2002.
(
sua destruição; a dupla dausura do corpo, isto é, a imunização homicida VI~, A. (Org.). Blopolltlca e democrazla. Milano: Mimesis, 2007. (
e suicida do povo alemão dentro da figura de um único corpo racialmente
purificado e, enfim, da supressão antecipada do nascimento, como forma
(
de cancelamento da vida desde o momento do seu surgimento. A tais (
dispositivos não contrapus qualquer coisa externa, mas precisamente o {
seu contrário direto - uma concepção da norma imanente aos co~, não
imposta a eles a partir de fora. Uma ruptura da ideia fechada e orgânica
(
de corpo político em favor da multiplicidade da "carne do mundo;. e. por (
último, uma política do nascimento entendida como produção continua da (
diferença em relação a cada prática identitária. Sem poder aqui retomar
detalhadamente os argumentos propostos, esses se movem no sentido de
(
uma coajugac;ão inédita, por meio da reflexão filosófica, entre linguagem 4.
da vida e forma política. O quanto de ludo isso possa caminhar no sentido (
constituUvo de uma blopolítica afirmativa, ainda não é possível saber. O
que me interessava era pontuar os traços, desembaraçar os fios, abrir os
(
portões capazes de antecipar qualquer coisa que ainda não aparece com l'
clareza no horizonte.
\
\
162
163
'
t
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0 NAzISMO E Nós
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)
l 1. 1933-2003. t correto retornar à questão do nazismo setenta anos
) depois da sua tomada de poder? f.u creio que a resposta a essa pergun-
ta não tem como não ser afirmativa: não apenas porque cada vazio de
)
memória com relação a isso se constituiria numa afronta Insuportável
) para as suas vítimas, mas também porque, apesar da existência de uma
) literatura sempre crescente, permanece na sombra alguma coisa sobre
isso que nos diz respeito de modo multo próximo. Do que se trata? O
)
que nos liga Invisivelmente àquilo que também Identificamos como a
) mais trágica catástrofe política do nosso tempo - e talvez até mesmo de
) todos os tempos? A minha sensação é que esse elemento, ao mesmo
tempo Inquietante e fugidio, permaneça encoberto e escondido nos la-
)
dos ocultos do conceito de totalltarlsmo. Naturalmente, todos sabemos
) o quanto este último - sobretudo nas formulações de Hannah Arendt -
) contribuiu com o conhecimento do giro radical que em tomo dos anos
20 do século XX ocorreu com relação aos contextos Institucionais, polí-
)
ticos e éticos do período precedente (cf. f'ORTI, 2001). Contudo o con-
) . celto mesmo de totalitarismo acaba por elidir, ou pelo menos ofuscar,
) a especificidade do evento nazista com relação a outras experiências
colocadas no Interior da mesma categoria - sobretudo o comunismo
) soviético. Evidentemente que Isso não quer dizer que não exista nada
) que una de modo transversal os dois fenômenos - a sociedade de mas-
sas, a violência construtlvlsta, o terror generalizado e outras coisas. Mas

' )
t
esse nexo, até bastante evidente, não toca aquele último estrato que faz
do nazismo uma coisa Inassimilável a toda outra situação do passado
próximo ou remoto.
Deste ponto de vista também a relação com a chamada mo-
)
dernidade revela uma profunda diferença entre os dois "totalltarlsmosn:
)
) 165
')
\
TuRMos DA PoLITIC!\
Ú>Mur,1tliADr... IMUNH.Mnr., B1otu11," \
f
enquanto o comunista, ainda que com sua tipicidade, é gerado pelo seu povo não tem mais "a força para lutar pela própria saúde, cessa o direito
f
ventre - pelas suas lógicas, pelas suas dinâmicas, pelas suas derivações de viver nesse mundo de luta" (HITLER, 1941, p. 35). Num outro influente f
- o nazista marca uma drástica mudança de rota. Não nasce da extre- manual de medicina, no mesmo período, Rudolph Ramm tinha indica- f
mização, mas da decomposição da forma moderna. E isso não porque do no "médico do Volk" alemão "um soldado da biologia" a serviço da
' em si elementos, fragmentos, resíduos, mas porque os {
não contenha "grande ideia da estrutura biológica de Estado do nacional-socialismo"
reconduz, ou traduz, numa linguagem conceituai absolutamente nova, (RAMM, 1943, p. 178). Poder médico e poder militar remetem-se um ao (1
totalmente Irredutível aos parâmetros políticos, sociais e antropológicos outro - acrescentava Kurt Biorne (depois vice de Leonardo Conti no vér- ({
do léxico precedente. Se para o comunismo se pode sempre afirmar que tice da saúde pública), no ensaio de 1942 Intitulado programaticamente
ele "realize" de alguma maneira, ainda que de forma exasperada ou ex-
({
Artz im Kampf (Médico em luta) - porque ambos estavam empenhados
tremada, uma tradição filosófica da modernidade, isso não se pode dizer na batalha final pela Vida do Reich (BIOMe, 1942). (
de modo nenhum do nazismo. t por isso - antes de outras incompatibi- t necessário estar atento para não se perder a qualidade es- (
lidades mais contingentes - que o encontro com a filosofia de Heidegger pecífica desta semântica biológica, e médica em particular, adotada
revelou-se muito cedo um terrível equívoco para ambos. Mas exatamente
(
pelos nazistas. Interpretar a política em termos biomédicos e, inversa-
porque alheio a toda a linguagem moderna, porque situado fortemente mente, atribuir à biomedicina uma carga política queria dizer colocar- {
depois dela, o nazismo tangencia, de modo embaraçoso, uma dimensão -se num horizonte radicalmente diferente daquele de toda a tradição {
que faz parte da nossa experiência enquanto pós-moder~os. Contra1ia- moderna porque - são ainda palavras de Ramm - "o nacional-socialis-
mente àquilo que proclama uma c~rta wlgata, nós nãó estamos, não , (
mo, diferentemente de qualquer outra filosofia política ou de qualquer
estamos mais, no oposto do comunismo, mas sim do nazismo. t essa a outro programa de partido, está de acordo com a história natural e (
nossa questão, o monstro que nos persegue não só Indo atrás de nós, com a biologia do homem" (RAMM, 1943, p. 156). t verdade que desde {
mas também indo em direção ao nosso futuro. sempre o léxico político usa e incorpora metáforas biológicas - desde
(
aquela, de longa trajetória, do estado-corpo. e é verdade, como foi ilu-
2. Em que sentido? Dissemos que o nazismo não é uma filo- (
minado por foucault, que a partir do século XVIII a questão da vida foi
sofia realizada - como foi, pelo contrário, o comunismo. Mas essa não é
se intersectando progressivamente com a esfera do agir político. A pró- (
mais do que uma meia verdade; que deve ser completada da seguinte
pria ideia de National-1'iologie, ou de blologische Politik, têm origem
maneira: ele é multo mais uma biologia realizada. Se o comunismo tem
na. cultura guilhermina e weimariana (cf; WEINDLINO, 1989, p. 220 et
(
como transcendental a história, ·como sujeito a classe e como léxico a
seq.). Mas aqui estamos diante de um fenômeno muito diferente como (
economia, o nazismo tem como transcendental a vida, como sajeito a
entidade e significado. A metáfora se torna de alguma maneira real: {
raça, e como léxico a biologia. Claro, também os comunistas conside,;
não no sentido de que o poder político passou diretamente a médicos
ravam agir com base numa visão científica precisa. mas só os nazistas
e biólogos - ainda que em mais de um caso isso ocorreu - mas naque-
{
identificaram essa ciência na biologia comparada das raças humanas.
le, ainda mais relevante, de que os políticos assumiram um princípio {
Por Isso é necessário tomar como corretas as declarações de Rudolph
médico-biológico como critério guia das suas ações. Nesse sentido não {
Hess, Segundo o qual "o nacional-socialismo não é senão biologia apli-
se pode nem mesmo falar de uma simples instrumentalização: não se
cada,. (cf. Llf'TON, 1988, p. 51). Na. realidade a expressão foi usada pela
trata do fato de que a política nazista tenha se limitado a utilizar com
(
primeira vez pelo geneticista rrttz Lenz no muito afortunado manual de
fins legitimatórios a pesquisa biomédica de seu tempo. ela pretendeu {
Rassenhyglene escrito com Erwin Baur e Eugen Fischer, num contexto
identificar-se com aquela (AGAMBEN, 1995, p. 164). Quando Hans Rei-
no qual Hitler era definido como '"o grande médico alemão" capaz de dar
ter, falando em nome do Reich na Paris ocupada, declarava que "esse
l
'"o passo final na derrota do historicismo e no reconhecimento de valores
modo de pensar sob o aspecto biológico deve pouco a pouco se tornar l
puramente biológicos" (BAUR; flSCHER; LENZ, 1931, p. 417-418), B de
resto o próprio Hitler havia declarado em Mein Kampf que. quando um
o de todo o povo" porque nele está em Jogo "a substância" do próprio 4.
t
166 167 t
t
(
'
l
)

'
)
"corpo da naçãoff (REITER, 1942, p. 51), estava bem consciente de estar
falando em nome de algo que nunca fez parte da linguagem conceituai
pode ser legitimamente eliminada. Os médicos - ao menos os muitos
que se reconheceram no regime - não hesitaram em aceitar o mandato

'
moderna - e que, exatamente por isso, ao final da modernidade, nos e a executá-lo com ágil eficiência: da Individualização das crianças e
chama diretamente em causa. depois dos adultos destinados à '"morte misericordiosa" do programa
}
T4 à extensão daquilo que se continuou a definir como "eutanáslaH dos
) 3. Somente desse modo se explica a interseção que naqueles prisioneiros de guerra (código 14f13), até a grande Therapla magna
) terríveis doze anos se verificou entre política, direito e medicina em auschwltzclense: seleção na rampa de ingresso no campo de concen-
uma cortjunção cajo desfecho foi o genocídio. Claro, a participação da tração, Início do processo de gasificação, declaração de óbito, extração
} classe médica em formas de tanatopolítica não foi algo somente do na- dos dentes de ouro dos cadáveres, vigilância dos procedimentos de
) zismo. É conhecido o papel dos psiquiatras na aplicação do diagnóstico cremação. Nenhuma fase da produção da morte em série escapou ao
) de doença mental aos dissidentes da União Soviética do Gulag, ou o controle dos médicos. De acordo com uma disposição precisa de Viktor
dos médicos japoneses que no Pacífico promoviam vivisecção nos pri- Brack, chefe do Departamento de Eutanásia da Chancelaria do Relch,
) sioneiros americanos. Contudo tratou-se de algo diverso na Alemanha. somente eles tinham o direito de il\fetar fenol no coração dos "dege-
) 1àmbém de algo diverso. Não falo somente dos experimentos sobre nerados" ou de abrir a torneira de gás para o "banho" final. Se o poder
) "cobaias humanas" ou das coleções de crânios Judeus fornecidos aos último calçava as botas da SS, a autorlctas vestia o avental branco do
institutos de antropologia diretamente pelos campos de concentração. médico. 1àmbém as viaturas que transportavam o Zyklon-B a Blrkenau
) São conhecidos os graciosos presentes anatômicos enviados por Men- tinham o símbolo da cruz vermelha e a inscrição que se ressaltava na
) gele ao seu mestre Otmar von Verschuer, considerado ainda hoje um entrada de Mathausen era •Limpeza e saúde'". Na terra de ninguém des-
} dos fundadores da genética contemporânea. Sobre tudo isso Já houve o sa nova teo-blo-poUtlca os médicos se tomaram verdadeiramente os
juízo de um tribunal e também um código (de Nuremberg) promulgado grandes sacerdotes de Baal - que após alguns milênios se reencontrava
} na conclusão do processo contra os médicos considerados diretamente diante de seus antigos Inimigos Judeus e podia devorá-los à vontade.
) culpados de assassinato (cf. DE FRANCO, 2001). Mas a própria exigui- · Falou-se com razão que Auschwitz-Birkenau foi o maior laboratório de
} dade das condenações com relação à enormidade da coisa testemunha_ genética do mundo (KLEE, 1997).
que o problema não era tanto o da verificação - que era inevitável - da
} responsabilidade individual de cada um dos médicos, mas sim o papel 4. Como se sabe, o Reich soube recompensar bem seus mé-
} em geral que a medicina desempenhou na ideologia e na prática nazis- dicos. Não só com cátedras e Utulos honorfflcos, mas também com algo
} ta. Por que a profissão médica foi aquela que, muito mais que qualquer de mais concreto. Se Contl passou à dependência direta ,de Hlmmler, o
outra, deu uma adesão incondicional ao regime? E por que o regime cirurgião Karl Brandt, já encarregado da operação "'Eutanásia'", toma-se
) conferiu aos médicos um poder de vida e de morte tão extenso? Por que um dos homens mais poderosos do regime, submetido, no seu âmbito
} pareceu confiar exatamente ao médico o cetro do soberano e, antes - o, ilimitado, da vida e da morte de cada um - somente à autoridade
) ainda, o livro do sacerdote? suprema do f'ührer. Para não falar de Irmfried Eberl, "promovido" a
Quando Gerhard Wagner, F'ührer dos médicos alemães antes trinta e duas armas comandante do campo de 'n'ebllnka. Isso quer dizer
) de Leonardo Conti, disse que o médico "tornará a ser aquilo que fo- que todos os médicos alemães, ou que somente aqueles que aderiram
) ram os médicos do passado, retomará. a ser sacerdote; será o médico . ao nazismo, venderam conscientemente suas almas ao diabo? Que fo-
sacerdote" (cf. MÜLLER-HILL, 1989, p. 107), não fez outra coisa senão ram simples açougueiros com aventais brancos? Na verdade, ainda que
)
afirmar que a ele, e somente a ele, compete em última instância o Juízo fosse mais cômodo pensar assim, as coisas não ocorreram desse modo.
) sobre quem deve se manter vivo e quem deve ser rajeitado na morte. Não somente a pesquisa médica alemã era uma das mais avançadas, se
j Que é ele, e somente ele, a possuir a definição de vida válida, provida não a mais avançada, do mundo - a ponto de Wllhelm Hueper, pai da

,
}

)
de valor, e portanto apto a poder fixar os limit.es para além dos quais ela

168
carcinogénese profissional americana, pedir ao ministro nazista da Cul-

169
TcRMOS DA PoLITICA
CóMUNlll,\Or., IHUl<IOAOr., 510f'OUTKA
f'
f
,,
lura Bernhardt Rust para retornar a trabalhar na "Nova Oennania", mas tese, antes indicada, de que o transcendental do nazismo seja a vida,
os nazistas lançaram a mais ponderosa campanha do período contra o mais do que a morte. Ainda que depois, paradoxalmente, a morte fosse f
câncer restringindo o uso do amianto, do tabaco, de pesticidas e colo- considerada o único remédio apto a conservar a vida: ·~ mensagem
rantes, encorajando a difusão dos alimentos Integrais e a cozinha vege- dos nazistas - às vítimas, aos possíveis observadores e sobretudo a si
{
tariana, colocando-se atentos aos potenciais efeitos cancerígenos dos mesmos - foi: todas as mortes que praticamos são mortes médicas, di-
ralos X (que nesse melo tempo submetiam à esterlllzac;ão as mulheres tadas por razões médicas e executadas por médicos" (LIFTON, 1988, p. {1
que sequer valiam o custo de uma cirurgia de retirada das trompas de 191). No telegrama 71 enviado pelo bunker de Berlim, com o qual Hitler {
falóplo). ~m Dachau, enquanto a chaminé fumegava, se produzia mel comandava a destruição das condições de subsistência do povo alemão
biológico. O próprio Hitler, de resto, detestava o tabaco, era vegetariano que se demonstrava muito frágil, ficou de repente claro o ponto limite
t
e a favor dos animais, além de escrupulosamente atento a questões de da antinomia nazista: a vida de alguns, e afinal de um, só é consentida {
higiene (cf. PROCTOR, 2000). pela morte de todos. (
O que significa tudo Isso? Essa atenção até mesmo obses-
siva pela saúde pública, que além do mais obtém efeitos não Irrele- 5. Sabe-se que Michel Foucault interpretou essa dialética ta- «
vantes sobre a mortalidade por tumor na Alemanha daquela época? A natológica em termos de blopolítica: no momento em que o poder as- {
tese que se apresenta é que entre essa atitude terapêutica e o quadro sume a própria vida como objeto de seus cálculos e como instrumento (
tanatológico dentro da qual ela se insere não havia somente contra- de seus fins, é possível, pelo menos na presença de determinadas con-
dições, que decida sacrificar uma parte em benefício da outra (FOU- (
dição, mas conexão profunda: exatamente enquanto· obsessivamente
preocupados com a saúde do corpo alemão, os médicos operavam, no CAULT, 1998, p. 206, 227). Sem nada a retirar da força dessa análise,
creio, porém, que ela não baste para explicar tudo. Por que o nazismo
«
sentido especificamente cirúrgico da expressão, a incisão mortífera na (
sua carne. Ainda que isso resulte tragicamente paradoxal, foi, em suma, - diferentemente de todas as outras formas de poder passadas e pre-
sentes - impulsionou tal possibilidade homicida na direção de sua mais {
para executar a própria missão terapêutica que eles se fizeram carnífi-
ces daqueles que reputavam não essenciais_ ou nocivos ao aumento da completa realização? Por que ele, e somente ele, inverteu a proporção t{
saúde pública. Desse ponto de vista, por mais que custe fazê-lo, deve- entre vida e morte em favor da segunda até o ponto de projetar a pró-
(
-se sustentar que o genocídio foi o resultado não da ausência, mas da pria autodestruição? A tese que procurarei elaborar quanto a isso é
que a categoria da biopolítica deve ser integrada com a de imunização. (
presença de uma ética médica pervertida no seu contrário. Dizer que
na visão biomédica do nazismo tenha havido um salto do limite entre Porque somente esta última desnuda de modo claro o nó mortífero que (
a cura e o assassínio é ainda pouco. t necessário chegar a concebê-los aperta a proteção da vida com a sua potencial negação. Não só isso:
(
como dois caminhos de um mesmo projeto que fazia de um a condição também identifica na figura da doença autoimune o limite para além
necessária do outro: somente assassinando o máximo possível de pes- do qual o aparato protetivo se volta contra o próprio corpo que deveria (
soas é que se poderia curar aqueles que representavam a verdadeira proteger, conduzindo-o à explosão (cf. ESPOSITO, 2002). Que esta seja ( 1

Alemanha. Deste ângulo visual parece até mesmo plausível a circuns- a chave interpretativa mais adequada a perceber a especificidade do
{1
tância de que pelo menos alguns médicos nazistas tivessem verdadei- nazismo é, de outro lado, provado pela particularidade do mal do qual
ramente acreditado estar respeitando na sustância, se não na forma, o ele pretendeu defender o povo alemão. Não se trata de uma doença (
juramento de Hipócrates de não ferir de nenhuma maneira o doente. Só qualquer, mas de uma doença infecciosa. Aquilo que se queria evitar (1
que Identificavam o doente não no Indivíduo singular, mas no cortjunto a todo custo era o contágio por seres inferiores de seres superiores. (1
do povo alemão: era precisamente o seu cuidado a reclamar a morte A luta de morte construída e difundida pela propaganda do regime é
em massa de todos aqueles que ameaçavam a sua saúde com a sua a que opõe o corpo e o sangue originariamente sãos da nação alemã
aos germes invasores que penetraram em seu interior com o intuito
'-
própria existência. Nesse sentido somos obrigados a defender a hlpó- l
., de minar a sua unidade e a própria vida. t conhecido o de repertório
'-
170 171 f
(,
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}
l
que os ideólogos do Reich lançaram mão para representar os seus pre-

,
} tensos inimigos e antes de tudo os judeus: estes são, de tempos em
tempos e contemporaneamente, "bacilos", "bactérias'", "vírus", "parasi-
tas", "micróbios". Andrzaj Kaminski recorda que também os soviéticos
Naturalmente que essa representação estava em contraste patente com
a teoria de Mendel sobre o caráter genético - e portanto não c.ontaglo-
so - da determinação racial. Mas exatamente por Isso a única maneira
l de estancar o Impossível contagio pareceu ser a ellmlnac;ão de todos os
internados às vezes foram definidos nos mesmos termos (KAMINSKI, seus possfvels portadores. Não somente, mas também todos os alemães
) 1997, p. 84-85). E, de resto, a caracterização parasitária dos judeus podiam ter sido já contagiados. E também aqueles que poderiam sê-lo
l faz parte da história secular do antijudafsmo alemão e não somente no futuro. Na guerra persa e com os russos a alguns quilômetros do
alemão. Contudo, no vocabulário nazista essa definição adquire um sig- bunker, simplesmente todos o eram. Aqui o paradigma Imunitário da
}
nificado diverso. É como se aquela que era até um determinado mo- biopoUtlca nazista chega ao ápice de sua fúria autogenoclda. como na
} mento uma pesada metáfora realmente tomasse corpo. Isso é efeito da mais devastadora doença autolmune, o potencial defensivo do sistema
) biologização integral do léxico já acenado: os judeus não parecem com imunitário cresce até o ponto de virar-se contra si mesmo. O único resul-
parasitas, não se comportam como bactérias - o sáo. E como tais são tado possível é a destruição generalizada.
l tratados. Por isso o termo correto para o seu massacre, diferentemente
} de "holocausto", é "extermínio": exatamente aquele que se utiliza para 6. E nós? Os sessenta anos que nos separam do fim daquela
) os insetos, os ratos ou os piolhos. Nesse sentido é necessário atribuir trágica situação constituem uma barreira que parece difícil de romper
um significado absolutamente literal às palavras de Himmler dirigidas stja por quem for. considerar que ela se possa reproduzir, ao menos
)
à SS e que chegaram a Char'kov segundo as quais "com o antissemitis- no espaço sempre mais amplo daquilo que ainda chamamos de Oci-
) mo e como com a desinfestação, afastar os piolhos não é uma questão dente, é realmente árduo. Não seriamos os teóricos da categoria da
) ideológica, é uma questão de limpeza" (cf. KAMINSKI, 1997, p. 94). E de imunização se pensássemos que os doze anos da experiência nazista
resto o próprio Hitler usava uma terminologia imunológica ainda mais não tenham produzido anticorpos suficientes para nos proteger de seu
)
precisa: 'J\ descoberta do vírus judeu é uma das maiores revoluções retorno. e todavia, essas c.onsiderac;ões de senso comum estão bem
) deste mundo. A batalha na qual estamos hoje em dia empenhados é longe de fechar a questão - que, a partir de outro ponto de vista, como
) igual àquela que foi combatida no século passado por Pasteur e Koch Já se disse, permanece ainda sendo a nossa. Diria ainda algo a mais.
[ ... ] Vamos readquirir nossa saúde somente eliminando os judeus" (HI- Não somente o problema - a fenda horrenda - aberto pelo nazismo é
)
TLER, 1952, v. I, p. 321). algo que definitivamente não se pode considerar como definitivamente
) Não é necessário detalhar a diferença entre tal abordagem es- encerrado, mas, em alguns aspectos, parece reaproximar-se da nossa

,
)

)
pecificamente bacteriológica e a abordagem racial. Todo o desafio contra ·
os judeus tem essa característica biológica-imunitária: também o gás .
dos campos de concentração passava pelos tubos dos chuveiros destina-
condição quanto mais ela ultrapassa os limites da modernidade. A que-
da definitiva do comunismo soviético talvez assinale o ponto a partir
do qual podemos medir melhor a persistência, seguramente não do
dos à desinfecção. Só que desinfetar os judeus acabava sendo impossível nazismo, mas do solo, ou da fissura, do qual ele emergiu. e Isso não
) a partir do momento em que precisamente eles eram as bactérias das por acaso: é a consumação definitiva da filosofia da história comunis-
quais se devia livrar. A identificação entre homens e germes patogênicos ta - na medida em que se colocava ainda dentro da tradição moderna
)
chegou ao ponto em que o gueto de Varsóvia foi construído intencio- - a favorecer a re-emergêncla da questão da vida que estava de todo
} nalmente numa zona já contaminada. Dessa maneira, de acordo com modo no centro da semântica nazista. Nunca como hoje o blos - se não
) as modalidades das profecias realizadas, os judeus se tornavam vítimas a zoé - revela-se na encruzilhada de todos os percursos, no encontro
da mesma doença que havia justificado a guetização: finalmente eles se de todas as práticas: polftlcas, sociais, econõmlcas e tecnológicas. t
)
tornaram realmente infectos e portanto agentes de infecção (BROWNINO, por Isso que - exaurido o léxico conceituai (se não mesmo a exigência)
) 1998, p. 153). Por isso os médicos tinham muita razão em exterminá-los. do comunismo - são reabertas as contas com o nazismo, antes de re-
) . pentlnamente nos depararmos com elas estampadas na face. Quem se

) 172 17:3
~

Ti:.RMOS DA POLÍTICA
CoMUI\IO<Dt, IHunao.<nr., Baorotlra<:,
f
Iludiu, ao final da guerra, ou mesmo no pós-guerra, poder reativar as
f
OBRAS CITADAS
velhas categorias da democracia que salram formalmente vencedoras {
do embate, enganou-se redondamente. Considerar que a complexida- AOAMBeN, K. a. Homo :Jacer: li potere sovrano e la nuda vlta. Torlno: elnaudl, 1995. f)
de do mundo globalizado - com seus lancinantes desequilíbrios finan- 51\UR. e.; flSCHeR. e.; LeNZ, r. Orundrlss der menschllchen t:rbllchkeltslehre und Rassen-
hyglene. Milnchen: Lehmann, 1951. {
ceiros, de poder, de densidade demográfica - possa ser governada com
os instrumentos lnefetlvos do direito Internacional ou com os aqueles, BLOMe, K. Arzt lm Kampf. erlebnlsse und Qedanken. Lepzlg: Barth, 1942. f1
reciclados, dos tradicionais poderes soberanos é pura utopla. Significa BROWNINQ, e. K. Verso li genocldlo. Mllano: li Sagglatore, 1998.
f
não perceber que estamos próximos_ de um limiar tão dramático quan- · DE fRANCO, R. ln nome dl Ippoaate: Dall'Olocausto medico nazista all'elica della sperimenta-

to aquele situado no território armado dos anos 20 e 30 do século XX.


zione contemporanea. Mllano: Angell, 2001. t
Como naquela época - ainda que de modo diferente - o encontro, a sol-
e5POSITO, R. lmmunUas: Protezlone e negazlone della vita. Torino: l!lnaudl, 2002. {
FORTI, S. II totallt.arlsmo. Roma-Bar!: Laterza, 2001.
da, entre política e vida coloca para fora do jogo todas as tradicionais @
mediações teóricas e institucionais, a começar pela categoria de repre- FOUCAULT, M. Blsogrla dlfendere la socletà. Mllano: feltrlnelll, 1998.

HrTLeR. A. La mlabattaglla. Mllano: Bomplanl, 1941.


(
sentação. Uma olhada no panorama com o qual se Inaugura o século
XXI é suficiente para nos dar um retorno impressionante: da explosão _ _. Llbres propos sur la guerre et la palx recuelllls sur l'ordre de Martin Bormann. Paris: (
flammarlon, 1952.
do terrorismo biológico à guerra preventiva que busca responder a ele (
no mesmo terreno; dos massacres étnicos, ou stja ainda de tipo bioló- KAMINSKI, A. J. I campl dl concentramento dai 1896 a oggl. Torino: Bollati Borlnghieri, 1997.

gico, às migrações em massa que abalam as barreiras predispostas a KLEB, e.Auschwitz: Dle NS-Medlzln und lhlre Opíer. frankfurta. M.: 1'1scher, 1997. (1
contê-las; das tecnologias que investem não só nos corpos dos Indiví-
duos, mas também nas características da espécie, à psicofarmacologla
Llf'TON, R. J. Imediei nazlsU. Mllano: R.lzzoll, 1998.

MÜLLBR-HILL, 5. Sclenza dl morte. Pisa: ers. 1989.


«
(
que modifica os nossos comportamentos vitais; da política do meio PROCTOR. R. N. La guerra dl fflUer ai cancro. Mllano: Cortina, 2000.
(\
ambiente à explosão de novas epidemias; da reabertura de campos de RAMM, R. Arztllche Rechts-und ~tandeskunde: Der Arzt ais Qesundheltserzieher. Berlin: de
concentração em diferentes lugares do mundo ao ofuscamento da dis- Oruyter, 1943. {,
tinção jurídica entre norma e exceção. ~ tudo isso enquànto em todos RelreR. H. La bielogie dans la gestlon de l'ttat. ln: M.W. bat et Santé. Paris: Sorltot, 1942.
(1
(Cahlers de L1nsUtut Allemand).
os lugares explode mais uma vez de modo incontível uma nova, e po-
tencialmente devastadora, síndrome imunitária. Já se falou: nada disso WEINDLINQ, P. ltealth, Race and Oerman l'blltlcs between Natlonal Unlflcatlon 1870-194.5. {
Cambridge: catnbridge Unlverslty Press, 1989.
repete aquilo que aconteceu entre 1933 e 1945. Mas nada é completa- {
mente exterior às questões - de vida e de morte - que foram colocadas
{
naquela época. Dizer que estamos, hoje mais do que nunca, no reverso
do nazismo significa que não é possível se desembaraçar dele limitan-
{
do-se a colocar o olhar numa perspectiva distante. Que para de fato t,
invertê-lo - para recolocá-lo no inferno de onde ele saiu - é necessário {)
atravessar de novo de modo consciente aquelas sombras, responder,
naturalmente de maneira oposta, àquilo que então foi feito, às pergun- ('
tas que a partir dele se levantam. { )
( 1

l ,
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174 175 (
(,
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'
)
1
)
l PoLíTICA e NATUREZA HuMANA
1
)
)

,
)

)
) 1. A carta sobre o humanismo, publicada por Heidegger em 1946, no
) auge de uma derrocada histórica e também biográfica, parece fechar a
) história secular do humanismo. Não obstante todas as tentativas de res-
taurá-la de forma espirlh1allsta, marxista, existencialista - o ensaio de
t Sartre O existencialismo é um humanismo é do mesmo ano -, a grande
) tradição humanista não podia resistir ao duplo trauma de Auschwitz e de
} Hiroshima, em que a própria ideia de humanidade havia sido engolida
pelo seu oposto. Mesmo com todos os elementos ocasionais, e até mesmo
} instrumentais, que determinam a redação da carta, a necessidade dessa
} ruptura epistemoiógica está no centro do texto de Heidegger: uma cultura
do homem que não soube evitar - ou até favoreceu - uma hecatombe de
)
, cinquenta milhões de mortos no coração do séc. XX não pode pretender
) sobreviver a si mesma. A ideia de que após uma catástrofe de tais dimen-
} sões s~a possível restaurar o mito vétero-humanista do homem dono do
próprio destino é destinada à falência, por pelo menos duas ordens de
)
motivos: prlmeir<;> porque não é possível repercorrer a história para trás
) em direção a uma época Irremediavelmente exaurida; e depois porque
} justamente dela se originam os escombros fumegantes que no final da
guerra ocupam o campo em sentido simbólico e material.
)
e, no entanto, se a carta de Heidegger marca um ponto de não
) retorno em relação a tudo o que a Ideia de humanltas tinha significado
) por ao menos cinco séculos, não se pode dizer que ela ofereça uma lin-
guagem realmente Inovadora. e Isso não somente pelo comprometimen-
)
to temporário do seu autor com as potências do anti-humano, mas por
t uma razão mais intrínseca, inerente à sua própria definição de "'huma-
j nidade". Sem poder adentrar demasiadamente nos detalhes da questão,
digamos que é justamente a modalidade do destaque assumido por Hei-
)
.~ 177
0
TeRMos llA PoLITICA
Co-wr,u),f,DC, l~Ui"I D4l.Jt 6tóf'(.llJfw....A

degger em relação à tradição humanista - po r ele uniílcada ao longo d e eia do divino nos esteja m a is próxima do que a estraneidade dos seres
um fio que liga desd e a paideia g r ega, passando pe la romanitas a té os v iven tes" (HEIDEGGER, 1995, p. 49). Não obstante um p recoce interesse
s tudia humanita tis modernos - que o manté m no âmbito d a sua ó r b i ta pela " vida fálica", já m anifestado n os cursos friburguenses dos an os d e
sem ântica. Além d isso, ele m esm o havia decla rado que é p reciso p e n sar 1920; n ão obsta nte a lg u ma c uriosidad e em relação à m edicina e à p si-
"contra o humanis m o, porque e le n ão p õe a /lumanitas do ho m e m em quia tr ia - de que são testemunho o s seminários de Zollikon -. pode-se
um n ível bastante e levado" (HEIDEG GER, 1995 , p . 56j . O que q ueria di- dizer que a diferença a bissal instituíd a por Heidegger e n tre o hom e m e
zer He ide g ger com essas palavras? Em que sentido o humanismo teria o anima l é a m esma que man tém a s ua filoso fia bem d istante não so-
traído a s i m esm o, pon do o h o m em abaixo de seu s ignificado m ais pro- m e n te d o q u e os gregos c ham avam zoé, s im ples vida, m as de todo o
fundo? A resp osta do filósofo é b em conhecida: o humanismo n ão soube horizonte d o bios. Q ue o animal seja sucess ivam ente d efini do "pobre d e
se e m a nc ipa r d o 16.ico da m etafísica p o rque "p en sa o h o m e m a p artir d a mundo" - dife re ntem ente do h o mem, " fo rmado r d e mundo" - é um o utro
animalitas e n ão pensa e m direção d a sua humanitas" (p. 46). O homem m o do pa ra m a rcar o desvio irre dutível que, no Dasein, sepa ra a esfera
é entendido p e lo humanismo com o uma espécie anima l, n aturalmente d o ser- n o-m u ndo daque la d a v ida b io ló gica. E por o utro lado, tam bém
especia l p o rque e le é favorecido p elo caris m a da razão , mas nã o essen- em Sein und Zeit, o q ue faz d o home m um ser dig no d e ta l nom e não é a
cialme n te dife re n te d as o u tras. Sej a qual fo r o nome a ele conferido, vida , p resente ta mbé m e m todos os organism os infe rio res, mas q uando
acaba p o r ser concebido n a fo rma d o anima / r a tiona/e : "Em princípio'.', muito a m o rte que - d e m o do difer ente do que o corre com o ho m em
prossegue Heide g ger, "p ensa-se sempre no homo animalis , mesmo - e les sofre m inconsciente m ente, sem j am a is sere m capazes de p res-
quando a anima é posta corno animus s iue m ens, e esta última m a is tar - supo r. Ma is d o q u e o viven te, o ho m em é essenc ialmente o m ortal - o
d e como sujeito , com o p essoa, co m o espírito" (p . 45-46). Esse foi, para ser-para-a -mo r te. É esse o e le m ento que Heidegger põe no centro d a
o filósofo, o erro fata l que conduziu o humanismo antes a se contradize r pró pria o nto logia, em contraste com a tradição humanista, m as tam bém ,
e depo is a vol tar -se contra s i m esm o - n ão a b usca d e uma essê ncia conternpo ra nearnente, com tod o sab er positivo da vid a . A sua tese é a d e
huma na precedente à su a existê n c ia, ·com o ainda diria Sartre, m as a sua q u e para comp reende r a realidad e huma na m ais a fundo do que jam a is
fal ta d e dis tinção, e a té m esm o a s ua d erivação, de uma matéria v ivente o tenha feito o llum anism o, é preciso p ensá-la fora d o ho rizonte com um
não especifi~amente humana. A ani m a lização do ho m e m , exp erimen ta- do que som ente vive. A verdad e d o homem está, para Heidegger, a lém ,
d a nos campos d e extermínio nazistas en contraria, desse ponto d e v ista, o u antes, da sua simples vida - como demon stra tam bém o seu subs-
a própria raiz n a confusão ca tegoria l entre h o m em e anima l p ela qual o tanc ia l d esinteresse p e la esfera d o corpo. É por isso que, m esmo tendo
conceito humanista d e humanita5 é, desde o início, co nota d o. d eclarad o quere r dirig ir a pró pria m editação " não som e n te ao ho m em ,
Para tle idegg er, é essa ind istinção, o u união entre anima lidad e mas também à 'na tureza' d o hom e m ", e le exclui de tal natureza toda
e racio n alidad e, que subtrai o h omem d o huma nismo d a quela relação referência biológica; e, a liás, identifica justam ente e m ta l exclusão a es-
priv ilegia d a co m a esfera d o ser, reconhe cível som ente no elemento que trada q u e conduz àqu ela dimen são m ais origina l "em que a essência do
separa radicalme nte o gên ero human o d e qualque r o utro ser v ivente, o u ho m e m , d e terminad a pelo p r óprio ser, e ncontra seu lugar " (p . 78) .

seja, a ling uagem . Afirma-se que é a linguag e m que to rna o h omem ta l


2. Pod e-se dizer q ue Heidegger lenha conseguido verdade ira-
como é, que r d izer, p ara o filósofo a lem ão, ele é defin id o exatamente a
men te libertar-se da tradição que pretende criticar? Q ue fale urna lingua-
partir d a su a in su pe rável con tra p osição ao silê ncio do anima i ; m as justa-
gem de tod o d iferente daquela do h u m anismo clássico? É d ifícil respon-
m ente por isso, tam bém se proj eta pa ra fo ra d o campo da s ua d efinição
der a firmativam ente a essas perg untas. Naturalmente, é até demasiado
aquele fen ô m e no da simples vida que liga to d os os ser es viventes em .
evidente a descentralização d o e n te humano e m relação à d imensão d o
uma m esm a dime nsão b io lógica . Uma vez e m bocad a essa direção - que
ser, e m torno do que se constrói todo o pensamento heideggerian o; como
é a d a subtração do h o m em · (ou, ao m e nos, da sua verdad e última) à
é evidente a desconstrução da m etafís ica subjetivista - e obj etivista - que
dim ensão da vida - Heidegger p ode aventar a h ipótese d e "que a essên-
alribui ao homem a propriedade d e si m esm o e de tudo o que o circunda.

179
178
,
l
}
)
O Dasein não é o homem do humanismo, senão por outro motivo pelo que pode se tomar tudo - recriar-se segundo sua vontade. Propriamente

,
}
menos porque é constitutivamente atravessado por uma diferença em re-
lação a si mesmo que lhe subtrai toda coesão e consistência estável. Mas
falando, não é nem mesmo um ser, mas um devir em perpétua mudança.
Quando, após quatro séculos, Sartre escreverá - com jeito de

, tudo isso acontece em uma modalidade que em vez de contestar a sua estar abrindo um cenário radicalmente novo - "que o homem é livre e que
)
absoluta unicidade e desconformidade em relação aos outros seres viven- não há natureza humana em que eu possa me fundar- (SAKrRE, 1970, p.
tes, confirma-a e a aprofunda de uma forma não distante da tradicional 59), nada mais fará do que repropor a Ideia original da qual a tradição hu-
) antropodiceia. Uma vez abandonado por Deus ao seu destino mundano, manista. havia partido. Naturalmente, de um ponto de vista que pretende
o existente de Heidegger herda não somente sua absolutez, mas a supre- antepor o plano da existência ao da essência - mas remetendo a existên-
.,
l macia sobre todas as outras espécies das quais é separado, não por uma
natureza diferente, mas precisamente pela sua falta estrutural: a essência
cia ao mesmo caráter antinatural através do qual aquela tradição havia
pensado a essência. Basta substituir o termo "essência'" por "naturezan
) do homem está mais na estraneidade ao âmbito natural do que no perten- para compreender a convergência, de fato, entre duas posições diferentes
cimento a uma natureza específica. Aqui se radica, e se intensifica, aque- somente em linha de princípio: afirmar que "o homem nada mais é do que
)
la dicotomia conceituai entre ciências naturais e saber do homem que, aquilo que faz de si mesmo• (SARTIIB, 1970, p. 55) - como justamente
) justamente, Heidegger pretendia superar através de um léxico conceituai defende Sartre - significa colocá-lo em uma dimensão radicalmente histó-
) diferente. A realidade do homem - a existência - não é reconhecível atra- rica, Isto é, subtraída a todo pressuposto natural. t verdade que o homem
) vés das ciências naturais porque o homem não tem, propriamente, uma é sempre finito - mas justamente por Isso infinitamente criador de si mes-
natureza. Ou porque a sua natureza é justamente essencialmente inatural. mo: sujeito da própria substância, de uma forma que dissolve continua-
) mente a substância na própria subjetividade. A inserção de motivos mar-
Quando muito, ele tem uma "condição", como dirá - de um ponto de vista
) diferente - também Hannah Arendt em The human condition, comparti- xistas no precedente sistema fenomenológico não muda muito os termos
lhando nisso a premissa antibiológica do mestre: a vida é o pressuposto do seu discurso: a natureza, mais do que um componente biológico do
)
biológico do qual a existência humana deve se destacar para assumir o sajelto humano, é considerada o Instrumento material da sua autoprodu-
) significado - antropológico, político, filosófico - que lhe compete. Mas é çãé:> histórica. Quando Sartre Insiste no fato de que para o existencialismo
) justamente tal premissa antinaturalista a manter a humanltas de Heideg- o homem está sempre fora de si, voltado a uma contínua transcendência
ger nas proximidades daquela tradição humanista, em particular de Pico da própria condição natural, é preciso levá-lo ao pé da letra: embora Inse-
)
della Mirandola, que ele gostaria de exceder. Não havia sido justamente rido em uma série de condições materiais que o precedem, o homem ex-
} Pico a situar a dlgnltas humana em uma condição de excentricidade em perimenta a própria autêntica humanidade exatamente no ponto em que
) relação a todo ato natural? Não somente, mas a descobrir justamente nela · se destaca dela para se projetar segundo a própria decisão de existência.
a diferença, e também a superioridade, do homem em relação a todos os A sua natureza só Interessa na medida em que é superada. Submetida a
}
outros animais? Enquanto estes são dotados por Deus de uma determi- uma integral historfclzação, a dimensão da existência acaba por se situar
} nada natureza - ligados inexoravelmente a um ambiente natural, como em uma radical distância daquela da vida. Ou mesmo: a vida assume um
) sucessivamente Iria explicar a antropologia filosófica novecentista - o ho- caráter humano somente na subtração ao próprio slgnlflcado biológico.
mem, e somente o homem, não tem nenhum lugar fixo no mundo e justa- Se sob o perfil da terminologia filosófica Heidegger se afasta nitidamente
)
mente por isso pode escolher a seu bel-prazer. Assim, livre para se dege- dessa semântica, no sentido de que desconstrói todos os seus conceitos
t nerar em direção aos seres Inferiores ou para se elevar até os divinos, ele - desde o de sajelto ao de substância, do de natureza ao de história -, do
t é capaz de se transformar continuamente: "fingit, frabricat et transformat ponto de vista da relação entre humanltas e blos, permanece substancial-
mente dentro das suas fi'ontetras. A própria qualificação tempoml do Da-
se lpsum", segundo o próprio arbítrio (PICO DELLA MIRANDOLA, 1987, p ..
) seln, que desestrutura toda Imagem plena de subjetMdade, vai na mesma
8-9). Nenhum vínculo ontológico, nenhum caráter fixo, nenhuma invarian-
) te natural o liga a uma específica modalidade natural. Ele não é nada, por- direção antinaturalista. Mais do que realmente abandonado, o discurso
}
} 180 181
)
ThRMos DA PoLITtCA
CoMU1111:,...oc. b,ur,11,...oc. Btorounc,

humanista parece dialeticamente integrado - subsumido e superado - em melhor, mas o resultado, sempre modificável, de um conflito inextinguí-
uma configuração ulterior. Nenhum dos seus pressupostos de partida - vel entre tipologias biológicas diversas que competem para se afirmar.
rtjelção da noção biológica de nature:r.a humana, contraposição absoluta Como é sabido, éjustamente este último princípio o pressupos-
do homem às outras espécies viventes, subestimação do corpo como di- to assumido e levado às extremas consequências por Nietzsche. Tumbém
mensão primária da existência - é realmente colocado em discussão. Por neste caso, não é possível seguir aqui seu discurso em todas as suas infi-
trás da critica do humanismo volta a se desenhar o antigo perfil do homem nitas dobras, nuances, contradições. Mas no seu centro está certamente
essencialmente /wmanUS. a consciência do retardo e da inadequação do humanismo europeu - por
ele definido niilismo, justamente na medida em que pretende continua-
5. Mas há um outro motivo pelo qual não se pode dizer que mente repotencializar os próprios valores exauridos - em relação àquela
Heidegger Inaugure uma nova linguagem pós-humanista. I!. é a circuns- que parece a própria exigência da sua, e também da nossa, época, ou
tância de que, na realidade, essa linguagem não esperou a sua carta saja: não somente a centralidade científica, filosófica, política do bios no
para nascer. A usá-la, se não a Inventá-la, foram antes Darwin e depois seu cortjunto e nos seus limiares internos, mas também a batalha que se
Nietzsche - mesmo que segundo modalidades não sobreponíveis, que combate sobre os modos e sobre o resultado da sua transformação. O
levaram aliás o segundo a criticar asperamente o primeiro, conhecido, que Nietzsche colhe com uma lucidez de olhar superior a qualquer outro
todavia, de segunda mão e substancialmente mal-entendido: a que Niet- pensador do tempo é que por trás, e por dentro, da clássica questão da
zsche criticava -, identificando-a erroneamente com a doutrina positivista humanitas explodiu um conflito cl.tja aposta última é a própria definição
do progresso - mais do que a concepção original de Darwin, era a Inter- do que é o homem. Mas também do que ele pode se tomar no momento
pretação simplificadora que havia dado Spencer. Aliás, pode-se dizer que em que se põe a questão da sua produção modificada. Desse ponto de
o signlflcado mais pleno da perspectiva darwiniana resldiajustamente na vista deve-se dizer que Nietzsche retoma o antigo mito de Pico sobre a
desconstrução daquele progressismo teleológico e essencialista assumi- plasticidade humana - a produção, por parte do homem, da própria es-
do e elaborado pela tradição humanista. Sem podermos nos debruçar sência. Mas que ao mesmo tempo o traduz em termos biológicos, visto
como conviria sobre a estrutura geral da teoria da evolução darwiniana, que assume como objeto dessa transformação não a alma ou a condição
os pontos em que mais nitidamente se adverte o destaque do léxico hu- social, mas o corpo mesmo do homem - ou melhor, o homem como um
manista são essencialmente dois, naturalmente entremeados entre si: cortjunto blodeterminado em que alma, condição e corpo formam um
de um lado a substituição da busca da essência - ou mesmo da condi- único org~ismo vivente.
ção - do homem pela de uma natureza definida com base em uma série Naturalmente tudo isso não está isento de riscos inquietantes.
de invariantes de tipo biológico; e de outro a sua recolocação, mesmo No momento em que esse vetor antropotécnico - ou, como eu prefiro,
que saja com características próprias e peculiares, no Interior da cadeia biopolítico - de intervenção artificial sobre as características da natureza
geral das espécies viventes. Isso não quer dizer nem que Darwin reduza humana entra.em contato, ou em sinergia, com o outro pressuposto darwi-
o comportamento humano ao simples reflexo dos seus componentes niano da contiguidade com o mundo animal, ele mesmo flexionado em
orgânicos, nem que oponha a natureza à história como algo de estável · termos sociais ou até mesmo étnico-raciais, as consequências podem ser
e de fixo. Ao contrário, ele as Integra segundo um conceito de história devastadoras. Quando Nietzsche se pergunta "por que devemos realizar
natural que implica na modificação da natureza humana com base em no homem aquilo que os chineses conseguem fazer com o alfabeto - de
uma série de desvios da norma não predeterminados antecipadamente, modo que ele de um lado produz rosas, de outro peras" (NIETZSCHE,
mas produzidos espontaneamente e por acaso. e Justamente sobre essas 1964 et seq., p. 10), não está somente teorizando a passagem da seleção
variações se exerce aquele mecanismo de seleção natural que constitui o natural -darwiniana a um projeto de seleção artificial, mas está também
terceiro, e mais Intenso, elemento de divergência da tradição humanista: imaginando uma ordem antropológica em que o gênero humano é dividi-
a natureza humana não é um todo único que progride em direção ao do em categorias. não equivalentes entre selecionados e selecionadores.

182 183
J
l
l

'
)
)
Aliás, a comparação com a planta e com o animal, retomada em outros
textos, tem o sentido de uma deriva ideológica tendente à assimilação de
uma parte dos homens a espécies viventes de tipo inferior, necessárias ao
ma de condamado anti-humanismo? Ou o fim do humanismo abre ainda
um outro horizonte de sentido em que a clássica figura da humanltas se
presta a novas possibilidades Interpretativas? Em todo caso, o ponto de

,
domínio de outros, destinados, ao contrário, a performances superiores. onde se deve partir é a rtjelção de toda abordagem nostálgica - ou res-
l Tclmbém neste caso Nietzsche se apropria do motivo piquiano da oscila- tauradora - como aquela realizada no final da guerra por Lukács, contra
ção do ser humano entre uma degeneração em direção ao animal e uma as pretensões destruidoras da razão; e hoje, certamente com modalida-
) regeneração direcionada à dimensão divina. Mas, com a diferença de que des mais sofisticadas, reproposta Implicitamente por Habermas. Como
as diversas condições - animal e divina - em lugar de constituir as polari- defendeu - justamente em polêmica com este último - o filósofo alemão

-,l dades entre as quais oscila o gênero humano, tomam-se suas tipologias
antrópicas internas. Daí à animalização de um certo tipo de homem - e à
Peter SloterdUk, não somente o humanismo da primeira Idade moderna,
mas também a sua retradução política nas culturas nacionais oitocen-
) divinização de outro - levada às mais extremas e funestas consequências tistas, devem ser considerados fenômenos substancialmente esgotados
tanatológicas nas décadas sucessivas, o passo não é nem impossível nem (SLOTERDIJK, 1999). As sociedades contemporâneas não produzem mais
) as suas sínteses políticas segundo o modelo da sociedade literária. Nem,
imprevisível. Isso não quer dizer, evidentemente, esmagar Nietzsche sob
) um resultado pelo qual o seu pensamento não é de modo algum res- por outro lado, teria sido Imaginável, após o fim da juventude hltlerlsta, a
) ponsável - como tentaram fazer justamente aqueles que reivindicaram ar- reanimação de uma nova juventude goethiana. O próprio Heidegger não
bitrariamente sua herança. Mas termos como "domesticação" (Zãhmung) endereçou a sua carta à nação alemã, como havia feito, em seu tempo,
) e "criação" (Züchtung), referidos a grupos de homens selecionados para ftchte, mas a um correspondente estrangeiro - no caso específico, o fran-
) esse fim, abrem, de todo modo, uma brecha incontrolável na velha noção cês Jean Beaufrel Poder-se-ia dizer que hoje o termo humanltas, se ainda
) de hwnanitas, no âmbito da qual qualquer opção se torna possível. r;ssa quisermos usá-lo, não pode mais ser caracterizado em forma de tradição
ação de "domesticação" do homem em relação às suas tendências ferinas nacional, mas, em um sentido diferente e mais amplo - que eu definiria
) originais, que uma longa e gloriosa tradição, situada entre Erasmo e Goe- como ao mesmo tempo singular e mundial - referente a cada homem e ao
) the, havia pensado em termos de educação e formação espiritual, é agora mundo no seu cor\junto. Desse ponto de vista, não obstante as suas con-
} reinterpretada em sentido antropotécnico ou zootécnico. Por outro lado, tradições e o uso Instrumental que dele se fez, o pensamento de Nietzsche
como já se disse, o que iria acontecer na Alemanha nazista não é de todo marca um limiar de consciência para além do qual não é mais possível
) exterior a um fundo opaco desde o início presente na ratlo humanista E; recuar. Diferentemente do que foi proposto, ou pressuposto, por todos os
) antropocêntrica. Como revela o extraordinário desenvolvimento da antro- essenclallsmos, hlstorlclsmos, personalismos, laicos ou religiosos, vindos
) pologia alemã do tempo, Jamais separado daquele - paralelo e cruzado ... antes e depois dele, a humanidade do homem não pode mais ser pensa-
da zoologia, os nazistas nunca renunciaram à categoI:fa de humanltas - ao da externamente ao conceito, e aliás à realidade natural, do blos. A vida
) ponto de que diversos manuais de higiene racial tiveram Justamente esse singular e coletiva, nas suas exigências de conservação e de desenvolvi-
) título: não se esforçavam em melhorar o gênero humano imunizando-o mento, é hoje o único critério de legitimação universal que dá sentido às
) das suas escórias contaminadoras? Mais do que bestializar o homem, de práticas políticas, sociais, culturais do nosso mundo. Isso 'significa que a
fato, o nazismo alargou a definição de ánthropos ao ponto de compreen- noção de natureza humana - cada vez mais no centro não somente do
) der nela também os animais de espécies inferiores. Aquele sobre o qual Interesse científico, mas também do filosófico - deve ser pensada não em

'
se exercia a violência extrema não era simplesmente semelhante aos ani- oposição, mas em relação à da história.
mais. Era um animal-homem: um animal com o rosto de homem ou um Nesse sentido deve ser recuperada - naturalmente com todas as
)
homem habitado pelo animal. modificações necessárias - a Intuição original de Darwin, segundo a qual
} não somente Invariância e mutação não se excluem, mas se Implicam re-
) 4. Mas esse - destrutivo e autodestrutivo - é o único rosto do ciprocamente. No sentido de que, no ser humano, é justamente a dotação
pós-humanismo? É um dado necessário que ele se inverta em uma for-
~
) 184 185
\
\
ThRMos M PoLIT1e>.
eo..uNOIIDt, brun1Moc., BcoroLITK:A
f
Inata a abrir uma gama de possibilidades de aquisição que, por sua vez, se biocracla nazista, as possibilidades de modificação artificial da natureza (
refletem retroativamente sobre a própria programação genética: o homem f:lumana se dilataram enormemente. Não penso somente nas tecnobiolo-
- poder-se-la dizer - é programado para mudar continuamente a própria glas, mas, de modo mais geral, na drástica queda de mediações entre os
f
programação. o filósofo e historiador da medicina Oeorges cangullhe!I' âmbitos da política, do direito e da economia, por um lado, e na dimensão (·
defendeu que a saúde, para um ser humano, em vez de coincidir com uma do blos por outro. (
situação de nonnalldade estática, coincide com a capacidade do seu orga- Quando se fala - com toda razão - de biopolítica, alude-se pre-
nismo de mudar continuamente as próprias normas, enquanto a doença, cisamente ao fato de que a ser maciçamente afetadas pelos processos
fi
ao contrário, nada mais é do que a atrofia, o enfraquecimento, de tal po- sociopolíticos não são mais somente as faculdades que caracterizam o
(1
tência inovadora (cf. CANOUILHl!M, 1998). No fundo, é um novo modo de homem pelo aspecto da história, mas também as que o definem pelo as- {
entender - transportando-o para dentro do corpo - o motivo piquiano da pecto da sua natureza. Somente assim se podem explicar fenômenos de
(.
infinita variedade da natureza humana. Mas tal variedade, ao invés de uma outro modo indecifráveis, como por um lado a nova centralidade assumida
subtração milagrosa às leis da biologia, deve ser pensada precisamente pelo elemento étnico no âmbito dos atuais conflitos políticos, e por outro
{:
como o seu específico produto. Se Isso é verdade, dualismo metafisico de
matriz cartesiana e reduclonlsmo de resultado blossociológico mostram-
o uso imediatamente produtivo, no âmbito do mundo do trabalho, de uma
faculdade eminentemente natural como é a da comunicação linguística.
«
{
-se como os dois lados opostos e complementares de um mesmo erro, Apesar das profundas diferenças entre esses dois fenômenos, o que, em
que consiste, em um caso, em absorver a Invariante no contingente e, no todo caso, se determina é a inscrição de práticas de poder político e de (
outro, em dissolver o contingente na Invariante. Quando, ao contrário, o produção econômica no âmbito da esfera do bios - ou, visto de outro ân- (1
lugar comum da investigação filosófica - mas também científica - sobre a gulo, o ingresso prepotente da vida biológica nas dinâmicas sociopolíticas.
( )
natureza humana está situado exatamente no ponto de junção, ou no traço Quando a tais processos se soma a expansão da biotecnologia verdadeira
de lndlstlnc;âo, entre regularidades naturais e variações histórico-culturais e própria, permitida pelo hiperdesenvolvimento da engenharia genética e (
(cf. M.W., 2004), é Inútil dizer que isso torna totalmente obsoleta - e por- cognitiva, o quadro qu~ resulta pode parecer realmente inquietante. Aqui, {)
tanto fortemente conservadora - a contraposição entre ciências do espírito mesmo em relação às clác;sicas análises de foucault sobre o controle dis-
(l
e ciências naturais, mas também aquela entre empírico e transcendental: ciplinar dos corpos por parte de determinados regimes políticos, estamos
visto que como as atividades da mente e da linguagem estão conectadas em uma situação bem mais exposta, em que o próprio sltjeito do biopoder (
às estruturas orgânicas em que se Incorporam, assim estas são, por sua tende a se alargar e a se generalizar nos dispositivos planetários que regu- {
vez, modificadas pelas performances linguísticas e mentais que produ- lam a vida segundo procedimentos integralmente tecnicizados.
{
zem. Se, em síntese, o movimento da mão depende do comando do cére- e, todavia, não obstante os riscos inerentes a tais transforma-
bro, também o funcionamento do cérebro é, por sua vez, dependente das ções, elas não devem ser entendidas somente no seu efeito terrificante (
operações da mão. Nesse sentido é evidente que todo o curso da história - como o triunfo póstumo do inumano prognosticado pelos "biocatastro- {
é o produto livre e infinitamente variável de uma necessidade bionatural. fistas" (cf. LecoURT, 2003). e isso por mais de um motivo. Primeiro, por-
{1
que a técnica não é necessariamente contraposta à natureza; aliás, de
5. Mas se Isso é verdade, vale também a recíproca: como a na- certo modo deriva dela, no sentido de que a natureza humana apresenta { )

tureza influi poderosamente sobre a história, assim a história retroage de justamente uma tecnicidade original, como técnico é, de per si, todo mo- {
modo igualmente significativo sobre a natureza. E aqui tocamos o lado vimento do nosso corpo e todo som da nossa voz. Não só: mas a técnica,
mais complexo e também mais problemático da questão - o que, após e toda performance, desde a mais simples à mais sofisticada, influi retroati-
{)
juntamente com o "lado Darwtn·, poderíamos definir como o ..lado Nietzs- vamente sobre a nossa natureza. Desse ponto de vista, portanto, medida t·
che•. t o que definimos precedentemente como o vetor antropotécnico, no plano filogenético, toda tecnologia é, em princípio, biotecnológica. Na-
ou antropopolético, cada vez mais operante no mundo contemporâneo.
4.
turalmente, e justamente por isso, a técnica não é somente produção de
Digamos que em relação ao tempo de Nietzsche, e também ao da insana \1

186 187

'
{

)

l
l
l
manufaturados, mas também transformação daquele que os produz - al- OBRAS CITADAS
)
teração, além da matéria e do ambiente, também do homem. Justamente

''
)
aqui está o ponto mais delicado, a partir do qual todo o discurso sobre o
humanismo pode adquirir uma valência diferente e também inesperada.
rara começar, o humanismo, mesmo o clássico, não é todo igual. Contra o
M.W. La natura umana. Roma: DerM: e Approdl, 2004.
c.ANOUILHeM, o. li normale e li patologlco. 1brlno: etnaudl, 1998.

esrosrro, R. Bíos: Blopolltlca e filosofia. Turfno: elnaudl, 2004.


essencialismo antropocêntrico daqueles que viram no homem um modelo He10&10eR. M. Lettera sutr-umanestmo·. Mllano: Adelphl, 1995.

}', absoluto e inimitável, autores como Bruno e Spinoza nos dão o sentido
da absoluta multiplicidade de formas que pode assumir a natureza hu-
mana. A diversidade, a alteridade, a hibridação não são necessariamente
um limite e um perigo do qual nos devemos guardar, em nome da pureza
Ll!COURT, D. ffumafn posthumafn. Paris: Puf, 2<n~.
MARCHeSINI, R. f'o.st.human. 1brino: Bollatl Borfnghler1, 2002.

NleTZSCHe. r. frammentl postuml 1981·1982. ln: Opere. Mllano: Adelphl. 1964 et seq.

) PICO DCLLA MIRANDOLA. a. Dlsc:OrSO sulla dlgnltA dell'uomo. Bresda: La Scuola, 1987.
autocentrada do indivíduo e da espécie - segundo uma semântica imuni-
SARTRe, J .• r. I.:eslstenzlaU.smo ê wt umaneslmo. Mllano: Mursla, 1970.
l tária que levou às formas mais cruéis de eugenética homicida. Se redire-
SLOreRDLJK. f! Regole per li parco umano. ln: _ _• Non slamo ancora statl saluatl: Saggl
cionadas da lógica bloqueada e excludente da immunitas àquela aberta dopo Heidegger. Mllano: Bomplanl, 2004.
)
e inclusiva, da communitas (ESPOSITO, 2002), elas são também uma ri-
) queza e uma oportunidade. Isso vale em relação tanto a outras espécies
) viventes, como são principalmente os animais, quanto a formas e matérias
não orgânicas. As duas coisas não devem ser separadas: no sentido de
)
que a relação infraespecífica entre homem e animal, que remonta à época
) da domesticação, constituiu o primeiro segmento antropotécnico, ou saja,
) autotransformador, de todo o processo de hominização. t por isso que,
contrariamente ao pressuposto da bestialização do inimigo, realizada à
)
perfeição por todos os racismos, antigos e recentíssimos, empenhados na
) fabricação simbólica do homem-animal, a relação - e também a conjuga-
} ção - com a teriosfera, ou seja, com o mundo animal, sempre constituiu
um avanço decisivo da cultura humana (cf. MARCHESINI, 2002). Diferen-
)
temente do que pensava o próprio Heidegger, o animal não é o passado
) ancestral, o rosto de pedra, o enigma mudo, mas o futuro do homem:
) um lugar, e um limiar, de onde o homem pode tirar estímulos para uma
elaboração mais complexa e aberta da própria hwnanltas. Algo análogo
)
se pode dizer para a técnica - quando ela não contradisser claramente,'
) mas levar ao máximo desenvolvimento, as possibilidades biológicas conti-:-
) das na nossa natureza naturalmente alterada. evidentemente, como toda
oportunidade máxima, esta também está situada no avesso de um risco
> não indiferente. Entre os dois lados dessa folha estão escritos, por en-
) quanto em letras não todas decifráveis, a história e o destino daquilo que
) vem após o humanismo.

)
)
} 189
188
TOTALITARISMO OU BIOPOLÍTICA PARA UMA
INTERPRETAÇÃO F1Losóf'ICA no Stc. XX

f. Para uma interpretação filosófica do séc. XX. O que isso quer dizer?
Como entender essa expressão? Que significado conferir-lhe? A essas per-
guntas é possível fornecer duas respostas diferentes e, por certos aspec-
tos, até mesmo opostas. A primeira é a clássica, praticada de fato pela
grdllde filosofia novecentista - desde Husserl, de Heidegger, de Sartre,
para dizer somente os nomes mais célebres. f!.la consiste em ler os acon-
tecimentos da história contemporânea em uma chave interpretativa forne-
cida pela própria filosofia e indicada como a única capaz de compreender
sua essência. Quer se considere que ela é identificada na crise das ciências
europeias, no desdobramento do niilismo ou na libertação dos povos opri-
midos - para ficar no âmbito dos autores citados -, o século vinte é, de
todo modo, interpretado segundo as exigências internas de uma dada fi-
losofia empenhada em fornecer-lhe um sentido, em colocar seus fenôme-
nos ao longo de uma única direção. f!.ntre filosofia e história se determina,
desse modo, uma relação externa e, por assim dizer, impositiva. Somente
à filosofia compete o papel de atribuir um significado de conjunto a uma
série de fatos de outro modo insensatos.
A essa primeira resposta - que provocou inclusive análises de
relevo epocal - corresponde, ou se contrapõe, uma outra, destinada a
inverter sua lógica. De fato, ela dispõe a relação entre filosofia e história
em uma figura diferente, voltada não mais a subordinar a dinâmica histó-
rica à lógica de uma dada filosofia, mas principalmente voltada a colher
em determinados eventos históricos um elemento ou um caráter em si
filosófico. Neste caso o sentido não lhes é mais impresso do exterior, de
um ponto coincidente com a perspectiva filosófica de quem os observa,

191
;
}
ThRHos DA PoúnCA
RoscRTO Bsrosrro

.,
l
mas aparece como gerado e constituído pelos próprios fatos - pela sua
CotwnlMM, IKllfflMDZ,

-se do paradigma do totalitarismo e do de biopoUtlca. Apesar das tentati-


810f'01.h1cA

} novidade, pelo seu alcance, pelo seu efeito. 'lalvez esse deslocamento do vas de mantê-los juntos em um único quadro que vê um como a continua-
olhar também ressoe naquilo que a grande filosofia novecentista - desde ção ou a conftrmac;ão do outro - no sentido de um totalitarismo blopolftico
)
Heidegger a Wittgenstein e Kojeve - definiu, por um lado, como "fim da ou no de uma blopolítica totalitária -, na realidade, trata-se de modelos
l filosofia" e, por outro, como "fim da história": o que acabava, na realidade, Interpretativos não somente logicamente divergentes, mas destinados a
) era um modo de olhar para a história como objeto de exercício filosófico. excluir-se reciprocamente porque, no fundo de sua divergência - antes
Desde então, pode-se dizer, a história não foi mais objeto, mas quando ainda de determinados conteúdos -, há uma diferença de configuração
)
muito sttjeito, de filosofia. Assim também a filosofia se tomou não mais a relativa justamente à relação entre filosofia e história, ao modo em que a
} história é pensada pela e na filosofia.
-, forma, mas o conteúdo da história. Porque se os eventos do nosso tempo
são, eles mesmos, carregados de uma densidade filosófica, então a tarefa No modelo que remete à categoria de totalitarismo, a história é
lida ao longo do fio da sucessão cronológica. Bsta se apresenta atraves-
da reflexão não será mais a de atribuir à história um sentido adequado à
)
própria configuração, mas a de mensurar-se com o sentido originalmen- sada por uma fratura fundamental entre duas opções - a democrática e a
) te presente nos eventos que interroga. Mas atenção: isso não porque a totalitária - que se sucedem, alternando-se no tempo: a uma longa fase
) história seja dotada de um único sentido pressuposto - justamente essa de desenvolvimento geral da democracia liberal, sucede, nas décadas cen-
havia sido a pretensão de todas as filosofias da história, progressivas ou trais do século passado, uma temporada totalitária tanto no Oeste quanto
)
regressivas, ascendentes ou descendentes - que fossem -, mas porque, no Leste, por sua vez superada em dois momentos, em 1945 e em 1989,
) ao contrário, ela é constituída pelo confronto e pelo embate entre vários pela vitória do modelo liberal-democrático, atualmente hegemónico no
) vetores de sentido, frequentemente em competição recíproca. Os eventos Ocidente. o que daí deriva é uma dupla configuração histórico-filosófica:
que são mais carregados de sentido - como, por exemplo, o ataque às 1br- para começar, a história moderna é situada ao longo de uma única linha
)
res Gêmeas - são justamente os que determinam uma repentina inversão vertical - antes ascendente e progressiva, depois, a partir dos anos vinte
) no sentido precedente, que abrem repentinamente uma nova e diferente do século passado, regressiva e degradante; e enfim, de novo, na segun-
) fonte de significação. Desse modo radical deve ser entendida a expressão da metade do séc. XX, reconvertida à justa direção, apesar dos riscos de
segundo a qual a história contemporânea é história eminentemente filo- involução que hoje se esboçam, sobretudo no mundo islâmico. A essas
} fraturas no eixo vertical corresponde, no horizontal, uma substancial ho-
sófica. Não quer dizer simplesmente que ela pode ser compreendida es-
) sencialmente somente do ponto de \'ista da filosofia, e não daquele, mais mogeneidade entre formas, conteúdos, linguagens que, porém, parecem
} redutor, da economia ou da sociologia ou da politologia, como - de ma- profundamente diferentes: não somente os do nazismo e do comunismo,
neira precoce e desatendida - havia defendido Augusto Dei Noce (1982), sobrepostos em um único bloco conceituai, mas também os do liberalis-
) mo e da democracia, homologados sem tantos problemas pelas exigên-
mas também que os seus eventos decisivos - guerra mundial, advento da
) técnica, globalização, terrorismo - são potências filosóficas em luta pela cias de uma filosofia da história mais Inclinada às assimilações do que às
) conquista e pelo domínio do mundo; pela conquista da sua interpretação diferenciações. O fato de que o paradigma de totalitarismo remonte a uma
dominante e, portanto, do seu significado último. Por isso, antes ainda do filosofia da história bastante tradicional é, além do mais, comprovado pelo
} recurso, contínuo e contraditório, da categoria de -origem'". Que tal termo
que o petróleo, as armas, a democracia, a aposta metafisica do conflito em
) andamento é a definição do sentido da história contemporânea. apareça nos títulos de dois dentre os seus textos mais significativos - As

) origens do totaUtarlsmo, de Arendt (l 999) e A9 origens da democracia


2. E.u gostaria de tentar associar esses dois modos de entender· totalitária, de 1almon (1967) - não é uma circunstância casual, mas o
) a história contemporânea - o da mais tradicional filosofia da história e o sinal mais evidente dessa Inerência de uma categoria que se pretende
) da história como filosofia - a dois paradigmas hermenêuticos frequente-· nova, justamente a de totalitarismo, a um quadro filosófico absolutamente
mente confundidos e sobrepostos entre si, e que, no entanto, mostram-se clássico. l!.m todos os ensaios filosóficos sobre o totalitarismo o olhar do
}
radicalmente alternativos nos seus pressupostos e nos seus efeitos. Trata-
J
192 193
)
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TcRMos DA PoLtT1c,
CoMuM>11oc, IMtJn1C>11oc, B1ol"OLl"nc
f
intérprete aponta. de fato. para a origem. é absorvido na sua busca - de Era uma dificuldade, um desvio lógico, ao qual não escapavéi
onde nasce. o que o gerou, qual é o fundamento primeiro daquilo que o f
nem mesmo o grande ensaio de Arendt, cindido em dois desde a sua
totalitarismo novecentista traz ao mundo? Mas Justamente aí, nessa per- composição, entre uma magistral reconstrução genealógica do antissemi•
(
gunta sobre a origem, torna-se evidente a primeira antinomia de todo tismo nazista que remonta aos anos da guerra, e uma parte sucessiva e (
o paradigma: como localizar a gênese daquilo - o fenômeno totalitário sobreposta, bem mais fraca, de comparação com o comunismo staliniano,
- que, justamente, se declara, como faz Arendt, inadmissível a qualquer
{,
evidentemente condicionada pelo clima da incipiente Guerra Fria. o moti-
outra fonna de governo e, portanto. subtraído a toda sequência genética
vo dessa desconformidade, imputável empiricamente ao fechamento dos
(i
de tipo casual? Por que procurar a origem daquilo que parece não ter arquivos soviéticos, deve ser relacionado ao ponto crítico de todo O mode- {
origem? Como manter juntas descontinuidades de princípio - o absoluto lo interpretativo, ou seja, à dificuldade de encontrar as raízes do comunis-
novum do evento totalitário - e continuidades de fato, a sua derivação de (f
mo soviético na mesma deriva degenerativa - da crise do .Estado-nação ao
uma origem precedente? Imperialismo colonial, até a explosão do racismo biológico - que conduziu
(,
Duas são as possíveis estratégias de resposta. ambas típicas ao nazismo. Como reunir, em um único horizonte categorial. uma con- {
do modelo historicista: a primeira é aquela, adotada por Arendt, de re- cepção hipematurallsta, como a nazista, com o paroxismo historicista do
meter toda a tradição política ocidental a uma perda originária - a da (
comunismo? O que tem a ver.justamente do ponto de vista filosófico, uma
pólls grega - que condena toda a história sucessiva a uma despolitização teoria da absoluta igualdade - como o é, pelo menos nos seus princípios, (
destinada a conftuir na deriva antipolítica do domínio totalitário. Desse o comunismo - com uma teoria, aliás, uma prática, da absoluta diferença, (
modo o totalitarismo novecentista, entendido como uma dinâmica, aliás. como foi o nazismo? Um desenho de cores puras, baseado em uma única
uma lógica, em si unitária, acaba por parecer o resultado - certamente (
oposição vertical entre o tempo da democracia e o tempo do totalitarismo,
não necessário antecipadamente, mas tornado de fato como tal, pelo parece prevalecer sobre as grandes cesuras lógicas, categoriais, linguísti- (
menos diante de certas condições - de uma lógica igualmente homo-
cas que cortam a história moderna com uma complexidade incontível na ([ J
gênea como aquela à qual remete a modernidade em seu cortjunto. t grade de malhas estreitas do paradigma de totalitarismo.
verdade que - ainda para Arendt - entre os dois segmentos se determi- (~
Não por acaso - justamente por essa dificuldade lógico-históri-
na uma repentina aceleração que diferencia suas características, mas ca - se o livro de Arendt permanece um grande livro sobre o nazismo, os (
ao longo de uma mesma linha de desenvolvimento que se inicia com livros sucessivos de Aron, 1almon e furet serão livros sobre o comunismo (
Hobbes - interpretado desastradamente como aquele que '"forneceu ao e somente sobre ele. O motivo de tal escolha - na realidade de tal neces-
pensamento político o pressuposto de todas as teorias raclaisff (AimNDT, (
sidade -, que deixa fora do discurso o outro polo do paradigma, foi já in-
1999, p. 219)- para se precipitar, no final, no abismo de Auschwitz e de . dicado por Aron, no seu ensaio sobre Democrazia e totalitarismo, no fato (
Kolyma. A outra via, esta percorrida por 1almon e depois, diferentemen- de que a interessar o Intérprete são somente os regimes que se profes- {
te, também por François furet (1995), é buscar a origem do totalitarismo sam democráticos e, aliás, derivam efetivamente de um desvio perverso
no âmbito da própria tradição democrática a que ele deveria se contra- {,
da democracia (ARON, 1973). Tonto 1àlmon quanto furet - mas também
por. o significado do totalitarismo é também, neste caso, identificado em Gauchet (1976) e Lefort (1981) - convalidam essa tese de Aron: o totalita- {:
uma doença originária, situada se não mais em Hobbes ou em Rousseau. rismo, naturalmente aquele de esquerda, nasce de uma costela doente da {
no evento decisivo e caracterizante da modernidade, ou saja, na revo- democracia. e não exteriormente a ela. Aliás, o regime totalitário não deri-
lução francesa. Mas desse modo o paradigma em questão permanece { :.
va de um defeito, mas quando muito de um excesso, de um excedente. de
ertjaulado em uma segunda antinomia não menos evidente do que a . democracia - de uma democracia tão radical, extrema, absoluta, tão plena t
primeira: se a referência à revolução francesa, Isto é, ao experimento de substância Igualitária. a ponto de romper os próprios limites formais
de mais radical democratização política. pode valer para o comunismo. 4.
e assim implodir no próprio oposto. O comunismo - é a tese de Oauchet
como explicar atra~és dele também o nazismo? (·
- se institui através de uma subversão perversa do modelo democrático

194 {
195
(
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'
l
l longe de predispor todo o quadro da filosofia moderna em d\rec;ão a uma
que distorce fantasmagoricamente seus traços, mas sempre no âmbito

,
) interno do mesmo pressuposto. Ele é ao mesmo tempo o sonho e o pe-
sadelo da democracia. A este ponto a cadeia de aporias do paradigma de
totalitarismo se toma evidente. Se o comunismo não somente se situa no
única deriva despolitizante - como acontece no modelo arendtlano - des-
configura a cena, dispondo-a ao longo de diferentes vetores de sentido
que se acavalam ou conflltam, sem nunca se sobrepor ou unificar em uma
l horizonte conceituai da democracia derivada da revolução francesa, mas única linha de deslocamento. A força da perspectiva blopoUtica está Jus-
} em um certo sentido a leva a cabo e somente assim à dissolução, se está tamente na capacidade de ler esse enredo e esse conftlto, esse desvio e
a ela ligado na sua gênese e no seu excesso igualitário, como pode ainda essa Implicação: o resultado potentemente antinômico do cruzamento en-
l tre linguagens originalmente heterogêneas, como são as da polftica e da
sustentar a distinção - fundante de todo o discurso - entre totalitarismo
l e democracia? Como pode o totalitarismo definir-se o oposto daquilo de biologia. o que acontece quando um '"fora" - a vida - Irrompe na esfera do
) que germina? l!.m segundo lugar, se ta~ vínculo antinômico com a demo- polftico, fazendo explodir a sua suposta autonomia, deslocando o discurso
cracia pode valer para o comunismo, certamente não vale para o nazismo, para um terreno Irredutível aos termos tradicionais - democracia, poder,
}
que coerentemente é expulso do quadro analítico de todos esses autores. ideologia - da filosofia política moderna?
) é nessa moldura que deve ser situado o fenômeno do nazis-
Mas nesse caso a própria consistência lógica da categoria de totalitarismo
) perdeu força. Já oscilante no plano histórico, ela desaba também no filo- mo, que deve ser interrogada a sua heterogeneidade radical. Sem precisar
sófico, do qual parecia derivar a sua caução última. chegar a interpretações mais recentes, já uma testemunha não suspeita
)
de simpatias de extrema esquerda, como ernst Noite, Identificava a falácia
) 3. Diversamente do paradigma de totalitarismo, o de biopolítica teórica de situar no mesmo plano lexical uma Ideologia - já catastrófica
) não parte de um pressuposto filosófico - de nenhuma forma de filosofia nas suas consequências políticas - como a comunista, com algo, justa-
da história - mas dos eventos concretos. Não somente dos fatos, mas tam- mente o nazismo, que de nenhum ponto de vista pode se Inserir na mes-
)
bém das linguagens efetivas que os tomam compreensíveis. Antes mesmo ma categoria (NOLTI!., 1989). Que, diferentemente do que pensava Arendt,
) da análise de Foucault (2005a), é à genealogia de Nietzsche, e mais preci- não é uma '"Ideologia", porque pertence a uma dimensão subjacente e
) samente à sua cjesconstrução do conceito de origem - aquela origem ain- diferente em relação à das ·tdelas·, da qual nasce o comunismo marxista.

} da buscada pelos teóricos do totalitarismo - que é preciso voltar-se para o nazismo não é uma espécie diferente no âmbito do mesmo gênero -
identificar o ponto de vista desse novo olhar. Se não existe uma origem o totalitário - porque se situa fora daquela tradição ocidental que com-
) plena e absoluta do processo histórico; se a origem não é, jamais, única; preende como sua linhagem extrema também a filosofia do comunismo.
) se ela se duplica e multiplica sempre em muitas origens, que, portanto, Contra tal tradição, unificada para além das suas diferenças Internas pela
não são mais definíveis como tais (cf. FOUCAULT, 2001, p. 43-64) - como referência comum a uma ideia universal de tipo transcendente, o nazismo
}
explica Nietzsche, em um contraste radical com todas as formas de his- elabora uma concepção radicalmente diferente, que não precisa mais se
) toricismo filosófico -; pois bem, toda a vicissitude histórica do Ocidente é legitimar em uma ideia, qualquer que stja, porque encontra o seu ftm-
) destinada a assumir um aspecto irredutível à linearidade de uma mesma damento intrínseco na sua simples fon;a material. esta, por sua vez, não
perspectiva. Toda a interpretação da modernidade mostra-se profunda- é o produto - contingente ou necessário - de uma história que define a
)
mente alterada por ela. cai, em relação a ela, qualquer pos.sibilidade de relação entre os homens com base nas suas decisões livres ou mesmo,
) leitura unificada, a favor de um quadro marcado por desvios horizontais como considera o comunismo, nas suas condições sociais, mas um dado
) e verticais que rompem com todo pressuposto continuísta. Não só, mas absolutamente natural que conceme à nua esfera biológica. Reconhecer
aquela que no precedente paradigma se configurava como uma história no nazls1no a tentativa, única no seu gênero, de libertar os traços naturais
) toda contida na linguagem especializada da política amplia-se agora a da e,cistêncla da sua peculiaridade histórica, significa Inverter a tese aren-
) uma relação mais complexa derivada do encontro, do embate ou da sobre- dtlana da sobreposição totalitária entre ftlosofta da natureza e ftlosofla da
) posição com outros léxicos disciplinares que interagem e se contaminam
entre si com efeitos inéditos. A entrada em cena da vida biológica, bem
)
}
197
196
TtRMOS DA PoLITICA
CoNurnCM.oc:.. 1,.,uN11"ot. Bt0t"'l')Lll1'- .4,

história. Significa, aliás, identificar na sua lnasslmllabilidade o ponto cego, transferindo a propriedade do corpo do Estado ao indivíduo, mas no âm-
e portanto a Impraticabilidade filosófica, da noção de totalitarismo. bito interno do mesmo léxico biopolítico. Mas justamente a caracterização
examinado do ponto de vista blopolítlco, o séc. XX, e aliás todo biopolftica do liberalismo o separa da democracia. Com um exagero não
o curso da modernidade, não é determinado, decidido, pela antítese, su- de todo irtjustificado, poder-se-ia dizer que o motivo pelo qual, após os
perficial e contraditória, entre totalitarismo e democracia, mas por aquela assim chamados totalitarismos, não é possível voltar à liberal-democracia
bem mais profunda - porque atinente ao âmbito de conservação da vida está no fato de que ela jamais existiu enquanto tal. Assim como deve ser
- entre história e natureza, entre historiclzação da natureza e naturalização desconstruída a assimilação de nazismo e comunismo na categoria de
da história. Bem mais profunda, quero dizer, porque não atribuível a uma totalitarismo, de modo igualmente claro deve ser problematizada a noção
bipolaridade simétrica, visto que aquela natureza - entendida em sentido de liberal-democracia. A ideologia do liberalismo, na sua lógica, nos seus
biológico, como fez o nazismo - não é uma anti-história, uma filosofia ou pressupostos, na sua linguagem conceituai - anti-igualitária, particularis-
uma ideologia oposta à da história, mas uma não-ftlosofta e uma não-ide- ta, às vezes até naturalista -, se não oposta, é bastante diferente daquela,
ologia. Não uma filosofia política, mas uma biologia política, uma política tendencialmente universalista, igualitária, da democracia, como bem no-
da vida e sobre a vida invertida no seu contrário, e por isso produtora de tou carl Schmitt em um grande ensaio dos anos vinte sobre parlamenta-
morte. Como escreveu Levinas já nos anos trinta, no nazismo "o biológico, rismo e democracia (SCHMlTI, 1923). Se adotarmos uma representação
com toda a fatalidade que comporta, torna-se bem mais do que um objeto da _modernidade não de tipo historicista - isto é, se rajeitarmos a ideia de
da vida espiritual, torna-se seu coração" (LeVINAS, 1996, p. 31). t este o urna sucessão cronológica entre regimes liberal-democráticos e regimes
elemento Imediatamente bio-, isto é, tanato-polítlco, do nazismo - não o totalitários - a favor de uma representação diferente de tipo, digamos,
número das suas vítimas, até inferior ao do stalinismo comunista - a tor- genealógico ou topológico, veremos que a verdadeira separação, a linha
nar historicamente e teoricamente inservível a categoria de totalitarismo. divisória conceitualmente significativa, não é a vertical, entre totalitarismo
e liberal-democracia, mas a horizontal e transversal, entre democracia e
4. Contra a Ilusão daqueles que imaginaram que a dupla catás- comunismo de um lado - o comunismo como a realização parox.ística do
trofe - uma por explosão e a outra por implosão - daqueles que foram igualitarismo democrático - e biopolítica do outro, separada em duas for-
chamados de totalitarismos pemlitlria voltar ao velho léxico político que o mas antitéticas, mas não desvinculadas, que são nazismo e liberalismo,
precedia, a questão da biopolítica está ainda, e cada vez mais, diante de biopolítica de estado e biopolítica individual.
nós. Desse ponto de vista, o fim da segunda guerra mundial não marca, no Além disso, roucault (2005b) havia identificado o caráter bio-
plano da linguagem nem tampouco da prática material, a vitória da alian- político do liberalismo - situando-o no plano do governo da vida, oposto
ça entre democracia e comunismo, mas a de um liberalismo situado no enquanto tal, ou ao menos estranho, aos procedimentos universalistas da
mesmo regime blopolíUco que - naturalmente dedinado de modo oposto democracia. A democracia, ao menos aquela que se autodefine como tal,
- havia dado lugar ao nazismo. Quero dizer que o nazismo, nisso muito fundamentada na primazia da lei abstrata e no direito igual de indivíduos
mais novo do que o comunismo, certamente sai da guerra definitivamente · dotados de razão e vontade, acabou Já nos anos de 1920 e 30, e não é
derrotado no plano militar e político, mas não de todo no plano cultural e mais reconstruível - e, multo menos, exportável alhures. Naturalmente,
linguístico - no sentido de que a centralidade do blos como objeto e sajeito se se reduz o regime democrático somente diante de vários partidos for-
da política é confirmada, embora mudada para uma chave liberal, ou s~a, malmente concorrentes e do método eleitoral para formar maiorias go-
de apropriação, e possível modificação, do corpo, não por parte do estado, vernamentais, pode-se sempre defender, como se fez recentemente, que
mas do indivíduo proprietário de si mesmo. Se para o nazismo o homem o número das democracias no mundo está em contínuo aumento. Mas,
é o próprio corpo, e somente Isso, para o liberalismo, a partir de Loclre, o desse modo, perde-se de vista a transformação radical que as conformou,
homem tem, possui o próprio corpo - e portanto pode usá-lo, transfonná- arrastando-as em uma órbita semântica irredutível ao que o conceito de
-lo, vendê-lo como um escravo interno. Nesse sentido, o liberalismo - na• democracia pressupõe. Atenção: defendendo esta tese não me refiro a dis-
turalmente falo das categorias conceituais - inverte a perspectiva nazista,

198 199
funções, defeitos, limites, contradições de per si implícitos em toda forma c;ão, ou de desincorporação, ressoa na proposição que deseja a pessoa
política, necessariamente imperfeita e incompleta. Mas a uma laceração no centro da práxis democrática; onde por "'pessoa" deve ser entendido,
profunda do próprio horizonte democrático. Isso é visível assim que se dá segundo o significado original do termo, Justamente uma subjetividade
um afastamento do plano da forma em direção ao do conteúdo, da "ma- desencamada e, digamos, distinta daquele cor\)unto de Impulsos, neces-
téria", do atual regime político. É verdade que a democracia enquanto tal sidades, desejos agregados na dimensão corpórea (d. ESPOSITO, 2007).
não tem "conteúdos" - é uma técnica, um cortjunto de regras voltadas a Quando, com a reviravolta blopolftica que estamos reconstruindo, jus-
distribuir o poder de maneira proporcional à vontade dos eleitores. Mas é tamente essa dimensão corpórea se toma o Interlocutor real - simulta-
precisamente por isso que ela explode, ou implode, no momento em qu_e neamente sujeito e objeto - do governo, o que é posto em discussão é
é preenchida por uma substância que não pode conter sem se transformar principalmente o princípio de Igualdade, inaplicável a algo como o corpo,
em algo radicalmente diferente.
constitutivamente diferente de todos os outros, segundo critérios definí-
Trata-se justamente da vida biológica dos indivíduos e da po- veis e modificáveis a cada vez. Então o que é revogado não é somente o
pulação, que se instala no centro de todas as decisões políticas signifi- princípio de Igualdade, mas também toda uma série de distinções, ou de
cativas. Naturalmente isso não quer dizer que no confronto e no embate oposições em que se baseia, ainda antes da democracia, toda a concep-
entre as forças políticas não estejam em jogo também outras opções que ção política moderna da qual ela é gerada, ou seja, aquelas entre público
dizem respeito às relações internacionais e à ordem interna, ao mode- e privado, artificio e natureza, direito e teologia. Porque no momento em
lo de desenvolvimento econômico e à definição dos direitos civis. Mas que o corpo substitui, ou '"preenchen, a subjetividade abstrata da pessoa
o elemento deflagrador, em relação ao quadro democrático tradicional, jurídica, toma-se dificll, senão Impossível, distinguir o que diz respeito à
está na circunstância de que cada uma dessas opções refere-se, sem esfera pública do que concerne à esfera privada. Mas também, ao mes-
outras mediações, ao corpo dos cidadãos. Se se considera que no nos- mo tempo, o que pertence à ordem natural e o que pode ser submetido à
so país as leis que mais mexeram com a opinião pública foram aquelas Intervenção da técnica, com todas as questões de caráter ético e também
sobre a proibição do fumo, sobre as drogas, sobre a segurança no trân- religioso que essa escolha comporta.
sito, sobre a imigração, sobre a fecundação artificial, tem-se a medida e o motivo de tal Indistinção - e dos contrastes Irreconciliáveis
também a direção dessa mudança de paradigma: o modelo do cuidado que ela inevitavelmente determina - é que a vida humana é precisamente
médico se tomou não somente o objeto privilegiado, mas a própria for- aquilo em que público e privado, natural e artificial, política e teologia se
ma da vida política, isto é, de uma política que somente na vida encon- entrelaçam em um vínculo que nenhuma decisão por maioria será capaz
tra a única fonte de legitimação possível. t o que acontece quando os de desfazer. t por isso que a sua centralidade não é compaUvel com o léxi-
cidadãos são continuamente interpelados, ou pelo menos objetivamente co conceituai da democracia. Contrariamente ao que se poderia Imaginar,
envolvidos, em relação a questões atinentes à conservação, às fronteiras a insurgência da vida nos dispositivos do poder marca o eclipse da demo-
ou à exclusão dos próprios corpos. Mas - chegamos ao ponto decisi- cracia, ao menos da democracia como até agora nós a Imaginamos. O que
vo - no momento em que o corpo vivente, ou moribundo, se toma o não quer dizer, naturalmente, que não seja Imaginável um outro tipo de
epicentro, simbólico e material, das dinâmicas e dos conflitos políticos, democracia - compativel com a reviravolta blopoHtica em andamento, já
entra-se em uma dimensão que não está simplesmente, como às vezes Irreversível. Mas onde buscar, como pensar, o que possa significar, hoje,
se diz, "após" ou "além" (cf. OUSO, 2004; ELEFANTE, 2006), mas defini- uma democracia blopolftlca, ou uma blopolftica democrática - capaz de
tivamente fora da democracia. Não somente dos seus procedimentos, se exercer não sobre os corpos, mas a favor dos corpos - é bem diffcll de
mas da sua linguagem, do seu sistema conceituai. Ela sempre se ·voltou indicar de maneira determinada. No momento podemos somente vislum-
a um cortjunto de sajeitos igualados precisamente pelo fato de serem brá-lo. O que é certo é que para ativar uma linha de pensamento nessa
separados dos próprios corpos, isto é, entendidos como puros átomos direção é preciso desfazer-se de todas as velhas filosofias da história e de
lógicos dotados de vontade racional. Tombém esse elemento de abstra- todos os paradigmas conceituais que a estas remetem.

200
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NOLTB, I!.. Nulonalsoclalsmo e bolsceulsmo: La guerra e.Mie europea (1917-1945). 1'1renze:
Isso - essa tácita convergência - é evidente em um âmbito aparentemente
Sansonl, 1989.
conflitivo, como aquele da bioética. O forte debate entre laicos e católi-
SCHMrrr, e. Dle gelstesge:.chlchtUche Lage dea heullgen Parlamelltarlsmus, München-Lelpzlg:
Duncker at ltumblot, 1923. cos se concentra, na realidade, sobre o momento preciso no qual um ser
TALMON, J. Le oriQlnf della demoaazla totalitarla. Bologna: li Mullno, 1967. vivo passa a ser considerado pessoa (desde a fase da concepção para os
católicos e mais tarde para os laicos), mas não sobre a validade decisiva
de tal atribuição. Tomar-se pessoa por decreto divino ou por via natural: é
geralmente esse o limiar, a passagem crucial por meio da qual uma ma-
téria biológica vazia de significado vem a ser qualquer coisa de intangível.
Aquilo que desse modo fica pressuposto, antes mesmo de outros critérios
ou princípios normativos, é a absoluta prevalência ontológica - o valor a
mais incomensurável - disso que é a pessoa em respeito àquilo que não é:
somente a vida que passou por aquela porta simbólica - stja ela sagrada
ou qualitativamente apreciável - é aquela que tem condições de fornecer
as credenciais da pessoa.
encontramos a mesma pressuposição no plano do direito, re-
forçada por um aparato argumentativo mais elaborado: ao menos na con-
cepção jurídica moderna, para poder reivindicar aqueles que chamamos
direitos subjetivos, é preciso estar preventivamente imerso no recinto da
pessoa. Assim como ser pessoa significa usufruir por si mesmo desses
direitos. A tese mais recorrente - penso na Itália nos últimos trabalhos de
Stefano Rodotà (2006) e de Luigi FerrajoJI (200 J) - é que o renovado valor

202 203
da categoria de pessoa esttja no fato de que apenas essa tenha condi- homem e cidadão, espírito e corpo, direito e vida. No momento em que as
ções de preencher a lacuna que, desde a origem do ~tado moderno, se atuais dinâmicas de globallmção despedaçam a velha ordem mundial, as
determinou entre o conceito de homem e aquele de cidadão. Tui lacuna reflexões filosófica, Jurídica e polftica voltam com ainda maior convicção a
- como sustentou Hannah Arendt desde o imediato pós-guerra (ARENDT, confiar no valor unlftcante da ideia de pessoa.
1996) - nascia do caráter em si particularista da categoria de cidadão, en-
tendida como membro de uma dada comunidade nacional e portanto não 2. Com quaJs resultados? Somente um primeiro olhar sobre o
extensível a todo homem enquanto tal. Somente uma noção potencial- quadro internacional abre interrogações inquietantes a propósito disso:
mente universal como aquela de pessoa - se pensou - teria consentido o nunca como hoje os direitos humanos - a partir do primeiro entre esses,
alargamento dos direitos fundamentais a todo ser humano. A partir daqui aquele da vida - permanecem negados desde a raiz. Nenhum direito é tão
o convite, por parte de uma larguíssima frente cultural, para transitar da contrariado quanto o da vida, por milhões de vítimas da fome. da doença
noção restrita de cidadão, ou também de indivíduo, àquela mais geral de e da guerra. Como é possível. da coisa originária, tal deslocamento exa-
pessoa - como sustenta Martha Nussbaum em um livro recente (NUSS- tamente no momento em que a referência normativa ao valor da pessoa
BAUM, 2002), com uma formulação retomada de modo variado por grande é afirmada em todas as linguagens e estampada em todas as bandeiras?
parte da filosofia contemporânea. Seria possível responder, como geralmente se faz, que isso ocorra por-
O mesmo movimento de ideias é registrado no Interior da pes- que tal direcionamento à pessoa é ainda parcial, reduzido e incompleto.
quisa mais especificamente teorética. A reflexão sobre a identidade pesso- francamente me parece uma resposta frágil, saja no plano histórico ou
al - e portanto o renovado interesse pela categoria de pessoa - constitui naquele plano conceituai. A minha impressão - expressa de maneira mais
um dos raros pontos de encontro entre a filosofia analítica de tradição argumentada num livro recente (ESPOSITO, 2007) - é que o raciocínio es-
anglo-saxónica e aquela continental. Naturalmente segundo tipologias di- ttja Invertido: não é a existência restrita, a parcialidade ou a Incompletude
ferentes, mas no interior do mesmo horizonte de sentido definido pela da ideologia da pessoa, mas, contrariamente. sua invasão, o seu excesso,
referência privilegiada à noção de pessoa. Se os analíticos, de Strawson que produz tais resultados contrafactuais. Se se dissipa a névoa em tomo
a Parfit, a consideram o ponto de partida indispensável para a elaboração da suposição de um principio que assumiu o caráter de um verdadeiro e
de uma ontologia completa da subjetividade, autores italianos de matriz próprio fundamentalismo personalista. o que se toma aparente é que a
fenomenológica propuseram explicitamente uma nova filosofia da pessoa, categoria de pessoa não pode sanar e preencher a lacuna entre direito e
pontualmente baseada numa retomada da fenomenologia personalista de homem - tomando, com isso, possível qualquer coisa. como os direitos
ecJith Stein (cf. de MONTICELLI, 2000). Tudo isso enquanto, já alguns anos humanos -, pois é Justamente a categoria de pessoa a produzir e alargar
antes, Ricoeur recuperou e relançou em chave hermenêutica o personalis- tais direitos. O problema que temos diante de nós - a absoluta impratica-
mo católico francês. Em resumo, se na cultura contemporânea existe um bilidade de um direito do homem enquanto tal - não nasce do fato de que
ponto de convergência incontestado, quase um postulado que age como não tenhamos entrado definitivamente no regime da pessoa. mas do fato
condição e fonte de legitimação para cada discurso "filosoficamente cor- de que dele ainda não saímos.
reto", este é justamente a afirmação da pessoa - do seu valor filosófico, Percebo que afirmo algo - uma linha de raciocínio - que se
religioso, ético e polftlco. Nenhum outro conceito da tradição ocidental choca contra uma evidência consolidada na tradição moderna e até mes-
parece gozar hoje de um similar consenso generalizado e transversal. De mo constitutiva da própria modernidade (a es.,e respeito. BODEI, 2002).
resto, Já a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 o havia Mas aeio que se deva exercer um olhar de mais longo alcance histórico,
assumido na base de sua própria formulação: após a catástrofe da guerra capaz de perceber por trás e por dentro das óbvias descontinuidades
e a derrota de uma concepção como aquela nazista, voltada expressa- epocals vínculos subterrâneos, articulações profundas. menos eviden-
mente a esmagar a Identidade humana sob a nua biologia, pareceu que tes, porém, Igualmente operantes. Desse ponto de vista - aberto sobre
somente a Ideia de pessoa pudesse reconstituir o nexo despedaçado entre um duplo eixo de perspectivas, horizontal e vertical -, aquele ponto de
vista da pessoa parece, mais que um simples conceito, um verdadeiro e

204 205
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TtRMOS D,\ PoLin


e
COl'lu111o.u>c, IM1J1110..ot, B1otour
f
próprio dispositivo performativo de longo ou longuíssimo período, cajo
rença pressuposta em respeito àqueles homens e mulheres, que não sã (

,.
pessoas ou o são apenas em parte e temporariamente - sempre expostc
primeiro resultado é justamente o de cancelar sua própria genealogia e (
ao risco de caírem no horizonte da coisa. Aquilo sobre o que o direito rc
com ela seus efeitos reais. Tui genealogia da pessoa é reconstr~.dda em
mano se exercita com inalcançável criatividade impositiva é, efetivamentE
toda a sua complexidade, a partir da distinção, anas também da relação,
que desde o início se instaura entre suas duas raízes ..:. aquela cristã e
não apenas a distinção entre pessoas, semlpessoas e não pessoas, ma (',
também a elaboração de situações intermediárias, de zonas de indistinçã,
aquela romana. A partir do momento em que precisamente no ponto de (1
e de exceção que regulam o trânsito e a oscilação de um estado ao outrc
tangência dessas raízes saja individuada a potência de separação e de
seleção que constitui o efeito mais relevante do dispositivo da pessoa.
Que cada filho fosse, ao menos no período arcaico, sajeito ao poder d, f,
Um primeiro elemento de separação já está Implícito na ideia de máscara
vida e de morte da parte do pai, autorizado a matá-lo, vendê-lo, empres {
tá-lo e expô-lo, significa que ninguém em Roma, mesmo se nascido livre
- o significado etimológico do grego prósopon e do latino persona - que, (
é deflnttivamente fixado ao estatuto de pessoa. Muito mais que um dad<
apesar de arterenle, "grudado" no rosto do ator empenhado em repre-
natural, isso é a projeção artificial, o resíduo excepcional que se distanci, {
sentar o personagem, jamais coincide com ele. Nem sequer no ritual da
máscarc1 mortuária, que deveria fazer transparecer a verdadeira natureza
de uma condição servil comum. Ninguém .nasce pessoa - qualquer urr {
pode tomar-se, porém, precisamente empurrando aqueles que o circun-
espiritual do homem que ela recobre, essa diferença é minorada. Aliás, (
dam para a dimensão de coisa.
propriamente neste caso, está em primeiro plano aquela cisão originária,
Esse procedimento de seleção e de exclusão por meio do dis- {,
típica da concepção cristã, em base a qual é justamente a não coincidên-
positivo da pessoa, Upico do direito romano, se comunica, naturalmente. (
cia da pessoa em respeito ao corpo vivente que a confina para permitir o
com transformações, com os sistemas jurídicos modernos, como reconhe-
trânsito à vida ultraterrena. Saja a Ideia da dupla natureza de Cristo, seja
ceram aqueles historiadores do direito capazes de ver, através das mudan-
á
aquela da relação trinitária, confirmam este resíduo internq, esta divisão
ças mais radicais, também as linhas de continuidade ao longo das quai~ ('1
estrutural da dimensão pessoal: a unidade - entre natureza humana e
os sistemas jurídicos se determinam. Ora, sem esvaziar o contraste epocal ('
natureza divina ou entre corpo e alma - no interior da pessoa humana
entre a concepção objetivista do direito romano e o subjetivismo individu-
sempre passa por uma incancelável separação. (·
alista do direito moderno, o traço comum que os conecta em uma mesma
3. Ainda mais marcada, porque codificada segundo um preciso órbita semântica pode ser rastreado exatamente na diferença pressuposta (
aparato doutrinário, é a separação que, na experiência jurídica romana, entre a qualidade de pessoa e o corpo humano no qual ela acaba por ser (
conota o conceito de pessoa. Não obstante todas as mudanças entre as di- implantada. Apenas uma não pessoa, quer dizer, uma matéria vivente não
pessoal, pode dar lugar, como pano de fundo e como objeto de soberania
(
versas fases do direito romano, o que sempre permanece fixo é a diferença
de principio entre a pessoa artificial e o homem como ser vivo da qual dos outros, a algo como uma pessoa. Mas, por sua vez, a pessoa somen- (

,~
aquela é conexa (cf. sobretudo THOMAS, 1998). O testemunho mais evi- te é tal se reduz à coisa uma parte ou o cortjunto de seu próprio corpo.
{'
dente de tal dlsposiUvo de separação está no fato de que, como é notório, Pessoa não apenas não coincide com homo (termo este com o qual 0

nem todos os homens em Roma e até mesmo só uma pequena parte deles latino identifica prevalentemente o escravo), como se define na diferença
- os patre.s, quer dizer, os homens, adultos e livres - são definíveis como em relação a ele. t esse o motivo originário - plantado como um núcleo {
pessoa para todos os seus efeitos, numa relação de diferença face aos arcaico na nossa contemporaneidade - pelo qual a categoria de pessoa (
escravos, remetidos ao regime da coisa e de outras categorias, situadas não consente pensar um direito propriamente humano e até mesmo 0
entre a coisa e a pessoa. Incapacitado de me ater aqui sobre as múltiplas torna conceitualmente impossível. Pessoa é o termo técnico que separa a i
tipologias de homem que a máquina Jurídica romana prevê, ou melhor, capacidade jurídica da naturalidade do ser humano e que portanto distin- l·
produz, aquela que interessa para o objetivo de nosso discurso é o efeito gue cada homem do seu próprio modo de ser - é a não coincidência, ou {
de despersonalização - o que vale dizer, o de redução à coisa - implícito mesmo a divergência, no homem, do ser em respeito ao seu mOdo de ser.
no conceito de pessoa: a sua própria definição nasce na negação da dife-

t
207
206 t
é
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'
)

'' Quando Hobbes sustentará que "pessoa é aquela cltjas pala- como aquele de pessoa, desde o início constituído por uma dupla co-

•,..
vras ou ações são consideradas ou como suas próprias ou como repre- notação, cristã e romana, teológica e jurídica -, conhece um dos seus
sentantes de palavras ou ações de um outro homem" (HOBBES, 1976, pontos de máxima expressão na bloétlca de descendêncta liberal. Se já
p. 155), não fará mais que levar tal cisão à definitiva realização - a tal para Locke e MUI, pessoa é somente aquela que é proprietária do próprio
ponto que o termo "pessoa" ~mbém poderá ser usado por um ente corpo, autores como Hugo engelhardt e Peter Slnger retomam expres-
não humano, como uma igrtja, um hospital ou uma ponte. Não apenas samente a doutrina romana da distinção de princípio entre pessoa e não
) a máscara não adere mais ao rosto que cobre, como pode cobrir - no pessoa - por melo dos estágios intermediários das quase-pessoas, das
) sentido técnico de representar - também o rosto de um outro. é verda- semlpessoas e das pessoas por um tempo. Não só isso, mas atribuem

,
)

)
de que, ao menos a partir da Revolução Francesa, todos os homens são
declarados iguais porque igualmente são sujeitos de direito. Mas Isso
não afasta que esta atribuição de subjetividade se refira ao elemento
não corpóreo, ou além de corpóreo, que habita o corpo cindindo-o em
às primeiras - vale dizer, às pessoas verdadeiras e próprias - o poder
de manter na vida ou de rtjeltar pela morte as segundas, com base em
considerações de ordem social e econômica. Como confirmação - se
fosse ainda necessária - da conexão estrutural entre os movimentos,
duas partes, uma de tipo racional, espiritual ou moral - exatamente apenas aparentemente opostos, de personalização e de despersonaliza-
) aquela pessoal - e uma outra de tipo animal. Não por acaso, no próprio ção: toda atribuição de personalidade contém sempre, Implicitamente,
) momento em que colabora à formulação da Declaração dos Direitos um exercício de reiflcação em face do estrato biológico Impessoal do
Humanos de 1948, o filosofo católico Jacques Maritain pode sustentar qual se afasta. Somente se existirem seres humanos assimiláveis à coi-
)
:iue o termo "pessoa" indica todo aquele que tenha condições de exer- sa, será necessário conotar outros como pessoas. Para que venham a
} :er domínio sobre sua parte biológica propriamente animal: "se uma existir pessoas, é preciso colocar em evidência um traço diferenciado em
} :oncepção política sã - ele escreve - depende antes de tudo da consi- relação àqueles que não o são mais, não o são ainda, ou não o são de
} :leração da pessoa humana, essa deve ao mesmo tempo levar em conta nenhum modo. O dispositivo da pessoa, em suma, é aquele que a um
> fato de que tal pessoa é aquela de um animal dotado de razão e que só tempo sobrepõe e justapõe homens-humanos e homens-animais. Ou
) ~ imensa a parte animal" (MARITAIN, 1991, p. 52). A partir daqui uma também, que distingue uma parte do homem verdadeiramente humana
} iupla separação - a primeira interna ao próprio homem, dividido entre de uma outra de caráter bestial e escrava da primeira. Mas, separando

} 1ma vida pessoal e uma outra, submetida a essa, de tipo animal. e uma a vida de si mesma, o dispositivo da pessoa é também o Instrumento
;egunda, entre homens pessoas - porque capazes de dominar a própria conceituai pelo qual é possível destinar uma porção à morte: "Hoje os
} >arte irracional - e homens incapazes de tal autodomínio e portanto si- pais - argumenta o liberal Slnger - podem escolher entre fazer viver ou
) uados abaixo da pessoa. nata-se de um constructo lógico - mas, como suprimir a sua prole apenas no caso em que uma eventual anomalia saja
j fito várias vezes, produtor de potentes efeitos impositivos - que re- descoberta durante a gravidez. Não existe nenhum motivo lóglcó para

)
,
}
nonta ao início de nossa tradição filosófica. Como havia Intuído Heide-
19er, no momento em que se define o homem como "animal racional"
• segundo a formulação aristotélica retomada por Marltain -, depois se
orça a escolher entre duas possibilidades, em última análise especu-
limitar a faculdade decisional dos pais apenas a esse gênero de anoma-
lias" (SINQER, 2004, p. 211).

5. t a esse mecanismo de separação e de exclusão, construí-


:tres: e isto é, ou espremer a parte racional sob aquela Imediatamente do em nome da pessoa, que gostaria de contrapor um pensamento, se
.orpórea, como fez o nazismo; ou, ao contrário, submeter a segunda ao não mesmo uma prática, do Impessoal. Não no sentido - quero dizer
••
t lomínio da primeira, como sempre fez a tradição personalista. desde já - de negar o quanto de nobre, de justo e de digno tantos con-
tinuam a ver no termo '"pessoa". Mas, ao contrário, para valorizá-lo e
) tomá-lo efetivo. Porém isso - esse projeto - não pode deixar de passar
4. esse dispositivo separatista e excludente, que, como se vê,
) ,travessa e transcende a oposição convencional entre cultura laica e por uma crítica radical daquele processo de despersonalização, ou de
;) :ultura católica - exatamente porque encontra origem em um conceito, reificação, inerente ao mesmo dispositivo de pessoa, ao menos como

J ma 209
J
t
TuRMOS DA PoLITI {
Ú>MUNIDADt, IMUNU>ADt, BIOFOLIT

até agora funcionou e ainda funciona. Por outro lado, tal pensamento bem longe de ser a pessoa, é isso que, em um se~ humano, é impe:
t
do impessoal, não nasce agora, ainda que talvez apenas hoje tenha soai. Tudo o que é impessoal no homem - continua Weil - é sagrad,
{
conquistado a urgência de uma tarefa não mais adiável. Isso está já e somente isso" (\VeIL, 1996, p. 68). Se o direito pertence à pessoa, (f
virtualmente, ou implicitamente, presente em certas zonas não apenas justiça é situada na ordem do impessoal. t o que transforma o própri (,
da filosofia, mas também da arte contemporânea, há tempo voltada no impróprio, o imunitário no comunitário. Apenas desativando o dl:
para uma desconstrução radical da identidade pessoal, como também
a alguns segmentos da prática psicanalítica pós-freudiana (cf. sobre o
tema MONTANI, 2007 e LISCIANI PeTRINI, 2007). Sem Imaginar poder
positivo da pessoa o ser humano será finalmente pensado enquanto t,
- por aquilo que há, ao mesmo tempo, de singular e de absolutamer
te geral: "cada um daqueles que penetraram na esfera do impesso;
,~

{
reconstruir por inteiro essa tradição escondida, precisamente porque encontra uma responsabilidade em face de todos os seres humano:
coberta e sufocada pelos saberes e pelos poderes da pessoa, gostaria Aquela de proteger neles não a pessoa, mas tudo o que na pesso (
de voltar a chamar alguns de seus traços ou passagens, capazes de contém a frágil possibilidade de passagem ao impessoal" (WEIL, 199« {·
fornecer uma pista para um trabalho que somente poderá ser coletivo p. 62). Como se vê, Weil não requer a negação da pessoa. Não faz d
(
e de longo período. impessoal o seu oposto - a sua simples negação. O impessoal é, inve1
farei Isso no Interior de três horizontes de sentido, de três sarnente, aquilo que, no interior da pessoa, bloqueia o mecanismo d (
âmbitos semânticos - que são aqueles da justiça, da escritura e da vida, discriminação e de separação em relação a todos que não são aindé (
reconduzíveis sobretudo a três nomes da cultura filosófica do século que não são mais e que não foram nunca declarados pessoa.
(
XX. O primeiro é aquele da Simone Wcil. No centro de sua obra há uma Se Simone Weil situa o impessoal no horizonte da justiç,
polêmica explícita diante daquela conexão hierárquica e excludente en- Maurice Blanchot o remete ao regime da escritura: apenas a escritur, {
tre direito e pessoa, que se fez referência até o presente momento: despedaçando a relação interlocutória que na palavra dialógica liga {
"'A noção de direito arrasta naturalmente atrás de si, pela via de sua primeira e a segunda pessoa, abre passagem ao impessoal. Quand
(
própria mediocridade, aquela de pessoa, porque o direito é relativo às afirma que "escrever equivale a passar da primeira à terceira pessoé
coisas pessoais. t situado nesse nível. Adicionando à palavra direito a (BLANCHOT, 1977, p. 506), ele alude não apenas à renúncia da poss (,
palavra pessoa, o que Implica o direito da pessoa ao que se chama sua bilidade de falar em primeira pessoa, da parte do escritor, em favor d (
própria realização, seria feito um mal ainda mais grave• (WelL, 1996, p. impessoalidade de uma história Interpretada por personagens, esse
(
76). Aquilo que Weil compreende, conectando-o pela raiz ao dispositivo mesmos privados de identidade ou de qualidade, como o homem d
da pessoa, é o caráter por si particularista, ao mesmo tempo privado Musil. Alude também ao descentramento da própria voz narrativa - {
e privatlsta, do direito. Isso, uma vez entendido como prerrogativa de que foi feito em primeiro lugar por Kafka -, em que o impessoal penetr (
determinados sajeltos, exclui por si todos os outros que não pertencem na estrutura mesma da obra, expondo-a a um contínuo derramament
à mesma categoria. é por Isso que o direito subjetivo - ou, mais ainda, de si mesma. Isso implica dois efeitos ligados a um mesmo moviment•
(
pessoal - sempre tem relação, por um lado, com a troca econômica comum: por um lado, a redução, a verdadeira e própria afonia da vo {\
entre bens mensuráveis e, por outro, com a força. Apenas esta última narrativa, coberta pelo turbilhão anônimo dos eventos; por outro Jade {'
tem condições de impor o respeito a um direito assimétrico àqueles a perda de identidade dos sujeitos da ação em relação a si mesmo~
{'
que dele não participam. Dessa maneira, aquilo que se produz é um processo de despersonali
A partir disso, a conclusão de Weil: se a pessoa sempre cons- zação que investe a inteira superfície do texto, suspendendo-a de sua 1\ '
tituiu o paradigma normativo, a figura originária no interno da qual o margens e fazendo-a girar vertiginosamente sobre si mesma. É aquil,
i
direito expressou sua própria potência seletiva e excludente, o único que Blanchot define como "relação de terceiro gênero", aludindo a un
modo de pensar uma Justiça universal, porque de todos e para todos,
não pode estar se não no lado do impessoal: •Aquilo que é sagrado,
deslocamento do inteiro campo de perspectiva, comparável a um ver
dadelro e próprio salto de paradigma epistemológico. '

f,

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210 21]
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)
)
Mas, talvez aquilo que conte ainda mais é que tal movimento de ·uma" vida, como se intitula o último de seus textos. Porque a vida,
) ie despersonalização, experimentado pela escritura, não permanece mesmo sendo comum a todos que vivem, não é jamais genérica, mas
t >ara Blanchot confinado no campo da mera teoria e é submetido a um é sempre de alguém. Que, porém, não tem a forma exclusiva e exclu-
ipo de experimentação política. f'alo de toda uma série de interven- dente da pessoa, porque, contra o recorte de seu dispositivo separa-
t ;ões, de declarações, de tomada de posições - que surgiram sobretudo dor, torna-se uma coisa só consigo mesma. A vida, antes de qualquer
) 1as décadas de 1950 e 1960 do século passado - em que a impesso- subjetivação jurídica, constitui o ponto Indivisível onde o ser do homem
) alidade, Isto é, a exclusão do nome próprio, constitui não somente a é perfeitamente coincidente com o seu modo, em cqla a forma - exa-
orma, mas o próprio conteúdo do ato político: a sua dimensão não tamente de vida - é forma de seu próprio conteúdo. t l,sto que preten-
)
,essoal, seu sentido coletivo e comum. "Os intelectuais - ele escreve de Deleuze quando associa a vida a Isso que ele mesmo define como
) ,ara Sartre em dezembro de 1960 - [ ... ] fizeram a experiência de um "plano de imanência•. Trata-se da margem, sempre móvel, sobre a qual

,
) nodo de ser cortjunto, e não penso apenas no caráter coletivo da De-
:laração, mas também em sua força impessoal, pelo fato de que todos
1queles que assinaram lhe deram seu próprio nome, mas sem auto-
a Imanência-, o ser vida da vida, se dobra· sobre si mesma, etlminando
qualquer figura de transcendência, qualquer extrapolação do ser para
além da substância vivente. Nesse sentido, a vida, se assumida na sua
) izar a falar da própria verdade particular ou da reputação nominal. A potência Impessoal, é aquilo que contradiz na raiz a separação hierár-
) >eclaração representou para eles um tipo de comunidade anônima de quica do gênero humano e do próprio homem em duas substâncias
,ornes" (BLANCHOT, 2004, p. 51). sobrepostas, ou subpostas: a primeira de caráter racional e a segunda
)
O terceiro horizonte de sentido, ou âmbito semântico, para onde de tipo animal. Não por acaso, no topo da desconstrução da ideia de
) : reconduzido o paradigma do impessoal, é aquele da vida. Na filosofia pessoa - em todas as suas tonatldades filosóficas, psicanalftlcas e po-

,
) .ontemporânea ele se situa no segmento que cortjuga o nome de Mlchel
'oucault e de Oilles Deleuze, ligados desde o princípio e até mesmo no
,Jano biográfico pela comum desconstrução do paradigma da pessoa:
líticas - Deleuze põe a figura do "devir anlmaln. Em uma tradição que
sempre definiu o homem no destacamento e na diferença do gênero
animal, salvo a eventual animalização de uma parte da humanidade,
) Foucault mesmo - escreve Deleuze - não era percebido exatamente como porque não suficientemente humana, a reivindicação da animalidade
) 1ma pessoa. Até mesmo em circunstâncias insignificantes, quando entra- como nossa natureza mais intrínseca para portar à luz rompe com o
a em uma sala, acontecia algo, como uma mudança de atmosfera, uma interdito fundamental que desde sempre nos governa. Contra a divisão
)
., spécie de evento, produzia-se um campo elétrico ou magnético, como pressuposta pelo dispositivo da pessoa, o animal no homem, em cada

, referirem. Isto não excluía em absoluto a doçura ou o bem-estar, mas


ão era da ordem da pessoa" (DELBUZE, 2000, p. 154). Aquilo que liga
•eleuze e Foucault em uma relação que vai além da simples amizade,
homem e em todos os homens significa multlplicldade, pluralidade e
metamorfose: "Não se vem a ser animal - afirma Deleuze - sem uma
fascinação pela mudança e pela multlpllcldade. fascínio do fora? Ou a
)
xatamente porque não há nada de pessoal, é propriamente esse chama- multiplicidade que nos fascinajá está relacionada a uma multlptlcldade
) o à terceira pessoa - aquela que Benveniste define Justamente como não que habita em nós?" (O8LEUZE; OUATTARI, 1987, v. I, p. 347). O "devir
) essoa, pois atravessada e destituída pela potência do impessoal (BEN- animal" do homem e no homem signlftca - e requer - o derretimento
ENISTE., 1971, p. 275). "Como em Blanchot - escreve ainda Deleuze -, do nó metafisico ligado peta Ideia e pela prática de pessoa a favor de
) á em Foucault a promoção do 'si': trata-se então de se analisar a terceira um modo de ser homem não mais em trânsito na direção da coisa,
t essoa. fala-se, vê-se, morre-se. Sim, existem os sttjeitos, mas são grãos mas, finalmente, coincidente apenas consigo mesmo.

t ue dançam no pó do visível e dos interstícios móveis, em um murmúrio


nônlmo" (DELEUZE, 2000, p. 144).
) Esse murmúrio anônimo, mas também múltiplo, impessoal
) rias também singular, tem em Deleuze a forma da vida - ou melhor,
}
t ~12 213
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