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FILOSOFIA e GÉNERO
Outras narrativas
sobre a tradição ocidental
Biblioteca Nacional de Portugal
– Catalogação na Publicação
CDU 1
Prefácio ........................................................................................................... 9
Apresentação ..................................................................................................11
PRIMEIRA PARTE
PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS REGULADORES
DA LEITURA PROPOSTA NESTE LIVRO
SEGUNDA PARTE
OUTRAS NARRATIVAS SOBRE
A TRADIÇÃO OCIDENTAL
Introdução ......................................................................................................59
Este livro tem uma dupla origem. Uma origem remota, correspondendo à
investigação que fui desenvolvendo ao longo dos últimos 30 anos. Uma
origem próxima que se articula com as provas académicas de agregação
em filosofia que me permitiu organizar os diferentes materiais que fui
produzindo ao longo do tempo.
Nesse sentido, o texto que o consubstancia faz-se eco dos textos pro-
duzidos nos percursos da investigação e que foram dando conta das
plataformas conclusivas a que ela ia chegando1. Textos que, por outro
lado, foram escritos para situações específicas, como Colóquios ou Livros
de Homenagem, ou, ainda, números especiais de Revistas. Portanto,
textos avulsos, mas que, todavia, iam construindo fios de uma rede cuja
intencionalidade era dupla: por um lado, configurar uma epistemologia da
racionalidade que servisse os Estudos Feministas e, por outro, na mesma
linha, encontrar um processo de desnaturalização das nossas interpreta-
ções do passado que nos formam e informam. Por outras palavras, ler de
outra maneira os nossos legados culturais, procurando desconstruir ideias
feitas sobre as mulheres e o feminino e sobre os debates que sempre se
fizeram dessa temática, tendo como suporte uma conceção alargada de
racionalidade que a representa atravessada por uma raiz imaginativa que
a dinamiza e solta.
Para além desta apresentação e de um prefácio de Maria Irene Rama-
lho, o livro está organizado em duas partes. A primeira parte consiste
num conjunto de considerações gerais sobre os princípios hermenêuticos
que regulam a leitura que nele se propõe, estando organizada em quatro
capítulos. A segunda, subdividida em três grandes blocos, apresenta uma
série de interpretações desenvolvidas em torno da relação entre as mulhe-
res e a filosofia, desde a Grécia aos nossos dias, ensaiando caminhos para
raconter autrement o legado filosófico ocidental.
1 No final do volume, haverá uma lista identificadora dos textos aqui subsumidos.
10 Fernanda Henriques
****
Quero deixar um agradecimento muito sincero à Colibri, na pessoa do
Dr Fernando Mão de Ferro, pelo acolhimento caloroso que fez deste
projeto e à Professora Doutora Maria Irene Ramalho pelo prefácio que
teve a generosidade de escrever para esta publicação.
PREFÁCIO
FILOSOFIA, LITERATURA, FEMINISMO
– UM PERCURSO COM FERNANDA HENRIQUES
fas consideram sua tarefa primeira reinventar a língua para dizer “mulhe-
res”. Luce Irigaray é o exemplo que imediatamente vem à ideia. O reparo
irónico da filósofa francesa oportunamente comentado por Fernanda
Henriques – seria mais adequado falar de língua paterna do que de língua
materna – faz lembrar outra voz de poeta, a da canadiana de origem
caribenha, M. NourbeSe Philip, que, em “Discourse on the Logic of
Language”, explora a incapacidade da língua inglesa – na verdade, sua
“língua-mãe” – para a dizer mulher e negra, precisamente por falar priori-
tariamente o patriarcado e o racismo. Não foi por essa mesma razão que a
Maina Mendes do romance de Maria Velho da Costa escolheu ser muda?
Tinha razão Rimbaud ao afirmar que os poetas vão sempre à frente.
Fernanda Henriques convoca neste livro um conjunto de mulheres que
entraram na filosofia, para parafrasear o título de um artigo do início
deste século, de autoria da filósofa da Faculdade de Letras de Lisboa,
Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Depois de passar em revista o trabalho de
várias feministas ao longo dos últimos três séculos, de Olympe de Gou-
ges e Mary Wollstonecraft a Simone de Beauvoir e Carol Gilligan, Fer-
nanda Henriques debruça-se, com muita argúcia e espírito crítico, sobre o
contributo de quatro mulheres filósofas contemporâneas para o questio-
namento das perspectivas tradicionais sobre a ética, tendo especialmente
em conta a ressignificação do conceito de cuidado. Depois de rever o
conceito heideggeriano de “Sorge” com a ajuda da filósofa da Universi-
dade de Évora, Irene Borges-Duarte, Fernanda Henriques conclui o seu
livro analisando atentamente o pensamento da portuguesa Maria de
Lourdes Pintasilgo, da espanhola Adela Cortina e das americanas Martha
Nussbaum e Seyla Benhabib (esta última nascida na Turquia e de ascen-
dência sefardita). Sublinhe-se que nenhuma destas pensadoras é indife-
rente à literatura e ao poético, como não o é a autora deste livro. A con-
clusão de Fernanda Henriques é cautelosa: será decerto cedo para decidir
se a entrada das mulheres na filosofia transformou substancialmente o
saber filosófico, mas a verdade é que nenhuma destas quatro pensadoras
deixou o campo teórico da filosofia como o havia encontado. O mesmo
direi eu de Fernanda Henriques.
1 Gerarld Messadé, Histoire Générale de Dieu, Paris, Éditions Robert Laffont, 1997.
20 Fernanda Henriques
2 Elisabeth Badinter, Fausse route, Paris, Odile Jacob, 2003. Cf. a análise desenvol-
vida em F Henriques, “Elisabeth Badinter: Racionalismo, Igualdade e Feminismo”,
in Lígia Amâncio, Manuela Tavares, Teresa Joaquim, Teresa S. de Almeida
(Orgs.), O longo caminho das mulheres: feminismos 80 anos depois, Lisboa, Dom
Quixote, 2007: 245-254.
3 http//chiennesdegarde.org.
Filosofia e Género 21
8 Numa entrevista à Revista Isegoría, n.º 38 (2008), 197-203, Celia Amorós – professora
na Universidade Complutense de Madrid e uma figura matricial da filosofia de raiz
feminista em Espanha – remonta ao curso de 1987/88 a criação do Seminário
Feminismo y Ilustración, onde desenvolveram as suas atividades de investigação um
conjunto de nomes que marcaram a investigação filosófica de cariz feminista em
Espanha, bem como a sua ligação ao grupo fundador do Instituto de investigações
feministas, cuja atividade se destacou em 1989, nas comemorações do bicentenário da
Revolução Francesa. Na mesma entrevista, fica claro a existência de um partenariado de
trabalho de Celia Amorós com grandes nomes dos Women’s Studies.
9 O panorama europeu e americano mostra um tipo de realidade muito diferente da
nossa, se bem que não seja possível dizer que os Estudos Feministas tenham
alcançado uma ressonância académica correspondente ao fulgor que os anos 1970,
80 e mesmo inícios de 90 pareciam anunciar. Mesmo sem fazer uma pesquisa
muito aprofundada, damo-nos conta de uma implantação académica assinalável
desta área temática, quer na existência de institutos europeus de estudos feministas
(onde não estamos presentes) – (por exemplo, CHRISTINA INSTITUTE, University of
Helsinki. Finland; DEPARTMENT OF SOCIOLOGY, University of Bergen. Norway;
EQUIPE SIMONE Université de Toulouse-le Mireil. France; INSTITUTO DE
ESTUDIOS DE LA MUJER, Universidad de Granada. Espanha; RESEARCH CENTRE
ON VIOLENCE, ABUSE AND GENDER RELATIONS, Leeds Metropolitan University.
UK) – quer na existência de Departamentos ou Gabinetes específicos para os temas
de Género – (por exemplo, Université de Lausanne; Université de Neuchâtel;
Université du Tessin; Université de Bâle; Université de Berne; Université de
Zürich; Université de Saint-Gall; Université de Lucerne) –, quer, sobretudo e
finalmente, na existência de formação conducente a grau, em muitas e prestigiadas
universidades do mundo e também de 12 Cátedras da UNESCO.
10 Ex aequo, Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, n.º 5
(2001); n.º 6 (2002).
2 – EM BUSCA DE UMA LEGITIMIDADE
FILOSÓFICA OU A RELAÇÃO
FILOSOFIA/HISTÓRIA DA FILOSOFIA
1 Cf. P. Ricoeur, Histoire et Vérité, Paris, Éditions du Seuil, 1955. Troisième édition
augmentée de quelques textes, Paris, Éditions du Seuil, 1978: 11.
26 Fernanda Henriques
que ficavam dessa forma fora de tal comunidade. Elas eram outras,
estranhas e exteriores ao “nós” emissor de discurso.
Neste quadro, mais do que os conteúdos que iam sendo reiterados so-
bre as mulheres, o efeito mais nefasto desta situação para a concetualiza-
ção do feminino e das mulheres, em termos de autodesignação, foi ela ter
recusado às mulheres o princípio de individuação. A ideia das mulheres
como coletivo que não pertencia a um “nós enunciador” era absolutamen-
te tida como natural. Rousseau, por exemplo, tomava isso como tão
próprio da natureza das coisas que considerava que o exemplo de mulhe-
res notáveis existentes era totalmente irrelevante e sem significado.
Poulain de la Barre, uma das vozes discordantes da monofonia sobre o
feminino e as mulheres, chama a atenção para outro efeito devastador
dessa monofonia – a interiorização que as próprias mulheres fazem do
que é dito sobre elas, como se verá mais adiante.
Contudo, apesar da generalidade da situação, o ponto de vista de al-
gumas autoras, há momentos de agravamento dessa assimetria do olhar
concetual.
Por exemplo, para Geneviève Lloyd, que também se retomará mais
adiante, o processo de constituição do pensamento ocidental põe, de
facto, de manifesto uma longa tradição de aliança entre o masculino e a
razão; contudo, no século XVII, assente em Descartes, produz-se uma
mudança qualitativa nessa situação, porque a estreita ligação estabelecida
entre o método e a razão, por um lado, a ideia de que é possível “treinar”
a razão, aperfeiçoando o seu exercício por meio de regras claras de pro-
cedimento, por outro, e, por fim, a separação radical entre a substância
pensante e o corpo, vão definir um novo espaço de pensar o humano e o
seu desenvolvimento, de tal modo que acabam por excluir as mulheres do
campo da racionalidade. Segundo a sua leitura, até ao século XVII, as
mulheres foram representadas com sendo menos racionais que os ho-
mens, mas a partir do século XVII elas ficam pura e simplesmente fora
da racionalidade, pelo que a sua tarefa fica determinada com base nessa
separação constitutiva.
Neste contexto, vale a pena referir o trabalho de Lígia Amâncio, na
década de 1990, sobre as representações sociais do feminino e do mascu-
lino, em Portugal.
Lígia Amâncio interroga as representações sociais estereotipadas liga-
das aos dois sexos e obtém o seguinte interessante quadro:
Filosofia e Género 31
Masculino Feminino
Ambicioso Afável
Autoritário Afetuosa
Aventureiro Bonita
Corajoso Cuidada
Descuidado Curiosa
Desorganizado Dependente
Dominante Emocional
Forte Feminina
Independente Frágil
Lutador Inferior
Machista Maternal
Objetivo Meiga
Paternalista Sensível
Racional Sentimental
Rígido
Seguro
Superior
Viril
dismo sobre o que é ser mulher e sobre o feminino que, ao longo dos tempos, os
homens – filósofos e teólogos – enunciaram.
2 Michèle Riot-Sarcey, “Les Femmes de Platon à Derrida ou l’impossible sujet
d’histoire”, Les Temps Modernes n.º 619 (2002): 95-114, onde a autora evidencia
esta ideia a propósito da Antologia de Françoise Collin, Evely Pisier et Elene
Varikas.
Filosofia e Género 35
7 Ibidem: 104.
8 Cf., Ibidem: 96.
38 Fernanda Henriques
Se, por outro lado, também acreditarmos com Paul Ricoeur que “La
classe d’école est à cet égard un lieu privilégié de déplacement de points
de vue de la mémoire”9, teremos de reconhecer que é necessário assumir
a responsabilidade ético-política de construir uma justa memória sobre a
temática das mulheres e do feminino que possa sustentar novos pontos de
vista autorizados e ensinados.
9 Ibidem: 148.
Filosofia e Género 39
examining the politics of recognition. Ed. Amy Gutmann, Princeton, New Jersey,
Princeton University Press, 1994. Axel Honneth, The struggle for recognition: the
moral grammar of social conflicts, Cambridge, Polity Press, 1995.
13 O confronto Fraser e Honneth materializou-se na obra já clássica: Nancy Fraser
and Axel Honneth, Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical
Exchange, Londres-Nova Iorque, Verso, 2003. Porventura, em termos da possível
influência do pensamento feminista nas teorizações mais alargadas, este exemplo
seja muito eloquente por poder marcar como a situação atual das pensadoras
feministas se vem consolidando – perspetiva que, de alguma maneira, defendo na
segunda parte.
42 Fernanda Henriques
5 Paul Ricoeur, Temps et Récit III, Paris, Éditions du Seuil, 1985: 280-299.
6 Na sua obra dos anos 1955 – antes da formulação do seu pensamento hermenêutico
– Histoire et Vérité, já referida, Ricoeur exprimirá esta ideia dos limites da
racionalidade pela expressão ‘dialectique à synthèse ajournée’, para pôr em evi-
dência o modo de funcionamento de uma racionalidade finita.
7 A obra de Paul Ricoeur é a expressão desta sua perspetiva por pôr em confronto
pontos de vista opostos e daí extrair linhas de progressão racional que não são nem
sínteses superadoras, nem meios-termos ecléticos, mas plataformas de desenvol-
vimento que recolhem elementos de ambas as perspetivas confrontadas.
48 Fernanda Henriques
21 Ibidem: 334.
22 Paul Ricoeur, La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit.: 106..
54 Fernanda Henriques
OUTRAS NARRATIVAS
SOBRE A TRADIÇÃO OCIDENTAL
INTRODUÇÃO
Questões Respostas
O que é que herdámos da Grécia, sem A ideia do universal neutro, com
refletirmos no seu processo de consti- tudo o que lhe vem associado
tuição, tomando‑o como natural?
8 Cf., por exemplo, Ana Iriarte, Safo. Madrid: Ed. del Orto, 1997.
Filosofia e Género 69
relações que mantinha com o seu círculo de alunas, ela representa trans-
formar a interpretação de uma situação educacional comum na Grécia,
como se fosse uma especificidade e, por outro lado, essa interpretação,
transformando-se no seu avatar, não corresponde ao modo como essa
ideia se liga com outras figuras notáveis da Grécia, como é o caso de
Sócrates, cuja apresentação nunca começa a partir da sua paixão por
Alcibíades. Contudo, no contexto da mundividência e da moral comum
ocidental, relacionar uma figura notável com a homossexualidade era
uma forma de a denegrir e, portanto, de obscurecer o seu valor. Deste
modo, a receção de Safo representa o protótipo da imagem dominante das
representações míticas do feminino: ou divina ou malvada.
Quanto a Aspásia, a maior parte das pessoas para quem o seu nome
tem algum significado associam-na à sua relação amorosa com Péricles,
de quem foi amante. Saberão, certamente, também, que ela tinha uma
grande influência nele, nomeadamente, para as coisas negativas, mas, de
um modo geral, não se associará Aspásia a um círculo de elite intelectual
de Atenas, onde ela pontificava como os homens notáveis que também o
integravam, evidenciando com a sua existência que havia, em Atenas,
outras maneiras de se ser mulher sem ser a de esposa fiel e submissa de
qualquer ateniense, garantindo através dessa fidelidade e submissão a
honra do nome e a posse dos bens.
Este olhar sobre Aspásia testemunha do mesmo ideologismo interpre-
tativo que se encontrou em Safo, mostrando que, quando não é possível
ignorar as mulheres, se divulga delas aquilo que é mais desprestigiador
aos olhos de uma moral, também ela apenas, pretensamente, neutra.
O estudo introdutório à edição bilingue de uma obra sobre Aspásia, de
José Solana Dueso, termina de uma forma lapidar para o meu propósito:
[…] as informações platónicas sobre Aspásia respondem à realidade
histórica. Considero que esta é a melhor hipótese para explicar o que
os críticos chamam reiteradamente o “mistério” ou o “enigma” de
Menexeno. O motivo pelo qual a imensa maioria de autores modernos e
alguns antigos não só não aceitam essa hipótese como nem sequer a
consideram digna de estudo é já outra questão que nos levaria a temas
fundamentais da história ideológica do Ocidente.9
Importa ter em atenção que é, de novo, a receção de Platão que está no
cerne da controvérsia; no caso trata-se do diálogo Menexeno, onde Aspá-
sia aparece referida como mestre de retórica e autora de discursos.
Por seu lado, Dueso propõe outra leitura: a de que essas comédias es-
tivessem a fazer ressonância de uma contestação de mulheres, no âmbito
do círculo de Péricles.
Não sendo eu própria especialista da antiguidade grega não posso di-
rimir este confronto interpretativo; contudo, como leitora, não posso
deixar de dizer que é notável que Aristófanes tenha escolhido desenvol-
ver uma intriga com protagonistas femininas a propor soluções políticas
em situações de crise e que, em ambos os casos, tais figuras femininas
tenham conseguido mobilizar-se, organizar-se e ocupar o espaço público
que, teoricamente, lhes estava vedado. Seja o que for que se queira pen-
sar, parece-me forçoso pôr uma de duas hipóteses: ou o próprio Aristófa-
nes pensou por si mesmo a possibilidade que encenou – o que significa
reconhecer que as mulheres poderiam desempenhar tais papéis – ou,
então, fez-se eco de outros ou outras que assim pensavam. Em qualquer
dos casos, parece assinalável que a força, o poder e a capacidade de
mobilização e de ação pública das mulheres tenham sido postas em cena
na Grécia do século V e tenham sido aplaudidas pelos gregos. Por outro
lado, o facto de as soluções propostas pelas mulheres serem originárias da
experiência e da mundividência femininas, como diz Claude Mossé, só
lhes retira valor efetivo se se considerar que apenas as soluções do mundo
e da vivência masculina são eficazes e adequadas. Como em qualquer dos
exemplos citados as ditas soluções masculinas se tinham mostrado in-
competentes e gerado o caos, faz sentido que se procurassem alternativas.
Melanipa, a filósofa é o título de uma tragédia de Eurípedes de que
apenas nos chegaram alguns fragmentos. O título da peça corresponde ao
seu conteúdo porque põe em cena uma mulher filósofa ou, pelo menos,
uma mulher que filosofa. A história é a seguinte: seduzida por Poseidon,
Melanipa teve dois gémeos. Com medo de seu pai Éolo e por ordem do
deus, pôs os filhos num estábulo. Descobertos os gémeos e levados a
Éolo, este, considerando-os monstros, condenou-os a serem queimados
vivos. Melanipa intervém, demonstrando, através de argumentos racio-
nais, que as crianças não poderiam ser monstros e teriam de ter uma mãe
humana e, finalmente, acaba reconhecendo ser ela a mãe. O pai cega-a e
enclausura-a, mas, decorridos 16 anos, será libertada pelos filhos e pelo
próprio pai, recuperando a vista.
Severine Auffret13 dedica um estudo a esta obra, do qual retirarei al-
gumas notas interpretativas:
– Começando com a exploração do significado do nome da protago-
nista, Melanipa, que remete para égua negra, a autora interpreta-o como
13 Cf., Severine Auffret, Melanipe la philosophe. Paris, Maison des Femmes, 1988.
Filosofia e Género 73
14 Em 2006, é publicada uma tradução francesa desta obra, nas edições Arléa, onde
Claude Tarrène, que faz a apresentação da obra, afirma que esta publicação repara
uma dupla injustiça: ao autor, Gilles Ménage, e às mulheres qui pensèrent dans la
Grèce ancienne.
74 Fernanda Henriques
que nunca foi o caso e ainda hoje carece de o ser, nomeadamente porque
mesmo a espiritualidade das mulheres é pensada a partir da sua determi-
nação biológica – a maternidade – sendo que o corpo sexuado masculino
nunca é evocado para caracterizar o ser do homem. Não há dúvida que
hoje os documentos eclesiásticos partem da afirmação da igualdade entre
a mulher e o homem; contudo, importa apontar três aspetos, no contexto
dessa afirmação de igualdade: (1) a Igreja Católica nunca se retratou das
conceções sobre a mulheres que foram defendidas ao longo dos tempos19,
(2) a partir da igualdade entre mulheres e homens, a caraterização das
mulheres vai ser feita em termos de “procurar a sua especificidade, tal
como ela é ditada pela natureza”,20 sendo que não se faz um percurso
equivalente para os homens, (3) toda a argumentação sobre a impossibili-
dade de as mulheres acederem ao ministério ordenado põe de manifesto
que, afinal, não há igualdade entre mulheres e homens.
A questão central parece ser a de uma forte ambiguidade na maneira
como a Igreja Católica concebe o ser mulher e o feminino, ambiguidade
que, também ela se perfila na Idade Média, onde a par com uma profunda
misoginia, podemos assistir, por um lado, a um esforço teórico imenso
para salvar a ideia da igualdade perante Deus, de mulheres e homens, e,
por outro, à força e mesmo ao poder que tiveram algumas mulheres
dentro da Igreja, como é o caso, por exemplo, da, já clássica, Hildegarda
de Bingen.
19 Para uma autora como Elisabeth S. Fiorenza esse gesto é absolutamente essencial
e, também, absolutamente devido às mulheres.
20 Fernanda Henriques e Teresa Toldy, “Desconstruindo antropologias assimétricas”,
op. cit.: 21.
76 Fernanda Henriques
21 Cf. para este tema a obra de Kari Elisabeth Børresen, uma das primeiras
investigadoras de Teologia feminista, que tem um conjunto importante de textos
sobre o tema em causa. Quero, sobretudo, chamar a atenção para o título do seu
texto de 1968, onde a questão fica claramente marcada: Kari Elisabeth Børresen,
Subordination et équivalence. Nature et rôle de la femme d’après Augustin et
Thomas d’Aquin, Oslo-Paris, Maison Mame, 1968 (o sublinhado é meu). Na
conferência que apresentou ao II Colóquio Internacional de Teologias Feministas,
realizado em Lisboa, em Novembro de 2012, “HUMAN CORPOREALITY in
CHRISTIAN DOCTRINE and SYMBOLISM: Historical Impact and Feminist Critique”,
foi possível contactar diretamente com a imensa riqueza e originalidade do seu
pensamento.
22 St. Agostinho (Cidade de Deus), in Françoise Collin, Evelyne Pisier e Eleni
Varikas, Les Femmes de Platon à Derrida, Paris, Plon, 2000: 90.
Filosofia e Género 77
B – Fugas e ambiguidades
Marie-Thérèse d’Alverny inicia o seu texto sobre as perspetivas de
teólogos e filósofos medievais sobre as mulheres, do seguinte modo:
Tratar da questão da mulher da perspetiva de teólogos e de filósofos do
século XII é uma tarefa ingrata de todos os pontos de vista. Sobre esse
assunto, os teólogos limitam-se a glosar os textos das Escrituras com o
auxílio dos escritos dos Padres da Igreja; não se pode esperar deles con-
siderações originais: Os moralistas repetem lugares comuns cuja
venerável antiguidade permite poucas variações. Quantos aos filósofos
naturalistas não se mostraram muito interessados na questão. É neces-
sário, por isso, resignarmo-nos a fazer uma exposição austera, ilustra-
da por textos a que falta variedade e que apenas dá uma imagem inexa-
ta dos homens que serão citados. Na verdade, há a mulher em si, um
tipo abstrato simbolizado pela nossa mãe Eva e as mulheres: familiares,
monjas, soberanas com as quais os monges e os clérigos mantiveram re-
lações durante a sua vida terrestre, bem como santas individuais das
quais eles tiveram de celebrar as virtudes […].26
O sublinhado que fiz da citação quer relevar, por um lado, o que foi
referido anteriormente – não há inovação nem renovação dos pensamen-
tos sobre as mulheres e o feminino, há apenas uma reiterada repetição a
partir da mesma origem – e, por outro lado, a ideia, também já antes
apontada, de uma profunda ambiguidade sobre as representações do
feminino. Provavelmente, mais do que de ambiguidade se deveria falar de
alguma esquizofrenia entre uma essência feminina – malvada e tentadora
– e as mulheres específicas que na sua diversidade não só não cabiam
nessa catalogação como a contradiziam.
Penso que é importante para uma leitura da tradição que quer explorar
novas hipóteses de interpretação ou, pelo menos, relativizar as liminar-
mente canónicas, fazer aqui alguns destaques que abram novas hipóteses
27 Ibidem: 117.
80 Fernanda Henriques
37 Cf., Paulette L’hermite Leclercq, «Les femmes dans la vie religieuse au Moyen
Âge. Un bref bilan bibliographique», CLIO. Histoire, femmes et sociétés [En
ligne], 8 | 1998, mis en ligne le 03 juin 2005, consulté le 03 juin 2013. URL:
http://clio.revues.
org/323; DOI: 10.4000/clio.323.
38 Cf., Georgette Epiney-Burgard, Emilie Zum Brunn, Femmes troubadours de Dieu,
Turnhout, Editions Brepols, 1988.
2 – A IDADE MODERNA E A DIMENSÃO
PÚBLICA DO DEBATE PELA CIDADANIA
NO FEMININO
Para aquilo que aqui nos ocupa, a problemática das conceções filosóficas,
a Modernidade começa com Descartes.
Hegel e Heidegger, dois eminentes intérpretes da tradição filosófica
ocidental, tendem a ver em Descartes o iniciador de um novo modo de
pensar.
Para Heidegger, é ele quem empresta o seu perfil ao projeto moder-
no do mundo, ele quem expressa a “decisão” ontológica da moderni-
dade, pela qual a verdade se converte no que se alcança “com méto-
do”. [Por ter sido] ele ainda quem deu à questão do método uma tão
clara prioridade sobre a questão do ser, que esta passa a ser tida em
conta somente na perspetiva do que dessa maneira se deixa desco-
brir[…].5
Para Hegel: Só agora chegamos propriamente à filosofia do mundo
novo, e começamos esta com Descartes. Com ele entramos especifica-
mente numa filosofia independente que sabe provir de maneira autó-
6 Hegel, Lições de História da Filosofia, citado a partir de: Manuel Carmo Ferreira,
“A leitura hegeliana de Descartes”, in Aavv, Descartes, Leibniz e a Modernidade,
op. cit.: 437-447 – 437.
7 Genevieve Lloyd, The man of reason, “male” and “female” in Western Philosophy,
Londres, Routledge, 1993: 30.
Filosofia e Género 91
8 J.J. Rousseau, Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1969, tomo IV: 448.
9 Celia Amorós, Tiempo de Feminismo, Madrid, Cátedra, 1997: 109.
Filosofia e Género 93
10 Cf., Daniel Armogathe, “De l’égalité des sexes, ‘la belle question’”, Corpus.
Revue de philosophie, n.º 1 (1985): 17-26. No mesmo número da Revista Corpus,
o artigo de Christine Fauré fala, igualmente, da relação do autor com a sociologia:
Cf., Christine Fauré, “Poullain de la Barre, sociologe et libre penseur”: 43-51.
11 Cf., Geneviève Fraisse, “Poullain de la Barre, ou le procès des préjugés”, Corpus.
Revue de philosophie, op. cit.: 27-41.
12 Daniel Armogathe, “De l’égalité des sexes, ‘la belle question’”, op. cit.: 17.
13 As datas de publicação das obras não aparecem sempre da mesma forma em
edições e comentários diferentes. Contudo, a publicação de Sur l’égalité … tem de
ser a primeira, uma vez que as outras duas obras lhe fazem referência. Os textos
que aqui vou citar encontram-se on line, em fac-simile, na Biblioteca Nacional de
França. Nesse sentido, porei apenas a referência ao número de página, em qual-
quer citação. Em relação a estes textos, ao contrário dos outros textos citados,
limitei-me a atualizar a grafia, sem os traduzir.
94 Fernanda Henriques
14 Daniel Armogathe, no texto antes referido, dá, no entanto, conta que as obras
foram lidas: Pourtant ses trois oeuvres furent souvent réédités: quatre rééditions
pour De l’égalité, deux pour De l’éducation, et trois pour De l’excellence. En
outre De l’égalité fut traduit en anglais em 1676, et fut ainsi connu de Mary
Wolstonecraft et de Stuart Mill. (24).
15 Poulain de la Barre, De l'éducation des dames: 114.
16 Se nos lembrarmos do comentário de Daniel Armogathe, atrás referido, de que
Poulain vulgarizou o pensamento cartesiano, podemos compreender que há uma
apreciação negativa da inflexão prática da sua obra. No meu entender, esta posição
releva, apenas, do velho preconceito sobre a supremacia do trabalho teórico. A
análise dos três textos de Poulain de la Barre põe em evidência o seu enfrentamento
Filosofia e Género 95
4.º Et ce qu’elle dit contre les femmes se peut aussi justement appliquer
aux hommes en substituant le mot d’homme pour celui de femme20.
Embora toda a análise realizada por Poulain de la Barre seja relevante,
as considerações totalmente desconstrutoras que leva a cabo no quadro do
livro do Génesis são, a meu ver, particularmente argutas. Em termos de
síntese, o autor quer mostrar as cinco situações seguintes:
inferior a Adão. Isso, acrescenta, foi uma conclusão humana, com muitas
outras, em que os homens fazem dizer a Deus o que lhes interessa.
Deus fez
primeiro o homem. Na sequência desta afirmação argumenta contra
aqueles que interpretam que Eva foi tirada do lado de Adão para se
submeter a ele, ainda que tivesse dignidade, porque se Deus a tivesse
querido fazer igual tê-la-ia tirado da cabeça ou se a quisesse fazer total-
mente sem dignidade a teria tirado dos pés, dizendo que se Deus a tirou
do lado poderá ser para seguirem a par: pour leur apprendre qu’ils dévoi-
ent aller de pair et coté à coté l’un de l’autre21.
a para Adão não tem de implicar domí-
nio deste sobre aquela. Neste particular, não deixa mesmo de ironizar,
chamando a atenção para o facto de que, na realidade, quem ajuda é
sempre superior a quem é ajudado, sendo, por isso, que pedimos a ajuda
de Deus.
A afirmação de que “as mulheres ficarão sujeitas aos seus maridos”
– depois do pecado – só vem na Vulgata, e acrescenta que mesmo que
não fosse esse o caso, em lado nenhum aí se fala de sujeição e que, no
máximo, isso seria um castigo por uma falta cometida e não teria nada a
ver com uma questão de natureza. Neste sentido, acrescenta, ainda, que
tal afirmação remete para uma situação anterior em que nenhum sexo
estaria subordinado ao outro.
De todos os argumentos aduzidos pelo autor, o que mais me surpreen-
de é aquele em que recorre ao uso da linguagem para encontrar um fun-
damento justificativo do facto de os homens se terem considerado mais
imagem de Deus do que as mulheres. Diz ele sobre isto:
Je ne sais même si le préjugé du langage ne contribue point à cette opi-
nion, et si les mâles ne croient pas aussi qu’ils s’approchent plus de
20 Ibidem: 93-94.
21 Ibidem: 19.
98 Fernanda Henriques
Dieu et qu’ils en sont plus estimés parce qu’ils le font parler comme
eux, en disant qu’il est Roy, Seigneur, père etc et non pas Reine, Dame,
mère, etc22.
Na sequência desta análise, a primeira parte do texto centra-se no pre-
conceito e na sua desconstrução. Começa pela ideia de que temos em nós,
sem questionar, um conjunto de ideias feitas, sendo que há uma fundamen-
tal: a desigualdade entre os sexos que decorre do costume, das leis, da
organização social, da leitura dos textos sagrados e da ausência de questio-
namento. Ou seja, Poulain de la Barre explica o estado de coisas vigente no
seu tempo sobre a diferença entre os sexos, para, a seguir, mostrar, através
de uma análise racional, que essas ideias são inconsistentes.
A segunda parte do texto é totalmente irónica – ela retoma os textos, os
autores e os exemplos dados anteriormente para justificar o uso tradicional
que é feito deles em desfavor da representação do feminino e das mulheres.
Finalmente, o autor considera que tem de clarificar, sem dúvidas pos-
síveis, a sua posição, dizendo:
Quoi que ce qu’il y a dans le livre de l’Égalité des Sexes et dans le Pré-
face de celui-ci puisse suffire pour satisfaire à toutes les difficultés con-
sidérables que l’on peut avoir sur ce sujet, il ne sera pas néanmoins
inutile d’y ajouter quelques remarques.
Il faut en cette rencontre comme en toute autre, prendre bien l’état de la
question, c’est-à-dire voir de quoi il s’agit précisément, et quel est le
dessein de celui qui parle pour demeurer dans les termes et les bornes
qu'il se prescrit. Nous prétendons amplement que les deux sexes consi-
dérés selon les avantages naturels du corps et de l’esprit sont également
capables, également nobles et également estimables23.
De l’égalité des deux sexes
É em De l’égalité des deux sexes que Poulain de la Barre apresenta
diretamente a sua posição sem desvios por outros temas, como é o caso
da Educação, em De l’éducation des dames, ou pela mediação de uma
retórica irónica, como em De l’excellence des hommes.
Aqui não somente se apresenta a nu o problema do preconceito, como
se mostram as suas causas, denunciando-o como preconceito.
A obra tem uma introdução onde aparecem os recursos cartesianos
que vão estar na base do desenvolvimento da argumentação, designada-
mente: 1. O valor da argumentação racional; 2. O valor da dúvida para
22 Ibidem: 61.
23 Ibidem: 267-268.
Filosofia e Género 99
24 Ibidem: 267-268.
100 Fernanda Henriques
25 Ibidem: 17.
Filosofia e Género 101
Quoi qu’il en soit, si on voulait examiner quel est le plus excellent des
deux Sexes, par la comparaison du corps; les femmes pourraient pré-
tendre l’avantage, et sans parler de la fabrique intérieure de leurs
corps, et que c’est en elles que se passe ce qu’il y a au monde de plus
curieux à connaître, savoir, comment se produit l’homme qui est la plus
belle, et la plus admirables de toutes les Créatures27.
Há duas coisas particularmente interessantes no raciocínio de Poulain
de la Barre e no seu programa de desconstruir a ideia de que a desigual-
dade entre os sexos tenha uma base racional. Uma é a denúncia de que a
ideia feita sobre o feminino é uma generalização abusiva, porque se
atribui às mulheres em geral as caraterísticas que foram observadas
apenas em algumas delas. A outra refere-se à suspeição daquilo que os
homens dizem sobre as mulheres, porque eles são juiz e parte nessa
matéria e, portanto, dificilmente isentos e que quando fazem apelo aos
autores que fundamentam as suas posições continuam num círculo fecha-
do e, por isso, dentro de uma tradição de preconceitos. Diz, neste contex-
to, a propósito de Aristóteles:
Son disciple Aristote à qui l’on conserve encore dans les Écoles le nom
glorieux de Génie de la nature sur le préjugé qu’il l’a mieux connue
qu’aucun autre Philosophe; prétend que les femmes, ne sont que des
Monstres. Qui ne le croirait, sur l’autorité d’un personnage si célèbre?
De dire que c’est une impertinence, ce serait trop ouvertement choquer
ses suppôts. Si une femme quelque savante qu’elle fût, en avait écrit au-
tant des hommes, elle perdrait tout son crédit, et l’on s’imaginerait
avoir assez fait pour réfuter une telle sottise que de répondre que ce se-
rait une femme, ou une folle qui l’aurait dit28.
26 Ibidem: 34.
27 Ibidem: 64. Aponta ainda o autor que as opiniões contrárias não têm fundamento:
Il y a des Médecins, qui se sont fort étendus, sur le Tempérament des Sexes au
désavantage des femmes, et ont fait des discours à perte de vue, pour montrer que
leur Sexe doit avoir un tempérament tout à fait différent du nôtre, et qui le rend
inférieur en tout. Mais leurs raisons ne sont que des conjectures légères, qui
viennent dans l’esprit de ceux qui ne jugent des choses que par préjugé et sur de
simples apparences. (62)
28 Ibidem: 74.
102 Fernanda Henriques
Esta ideia crítica sobre a autoridade dos antigos pode ser vista como
historicamente coerente. Aquilo que já me parece pouco adequado ao seu
tempo e ressoando a contemporâneo é a afirmação que faz na página
seguinte de que si elles ne sont pas faites comme Aristote, elles peuvent
dire aussi qu’Aristote n’était pas fait comme elles29.
29 O conjunto das três obras acimas referidas, como também já foi dito, consiste
numa exploração inusitada do pensamento de Descartes. Essa exploração é feita,
sobretudo, com base na confiança da razão que Poulain de la Barre, repetindo
Descartes, considera bem distribuída pela humanidade e na qual confia para
destruir o preconceito. Há, contudo, uma outra linha argumentativa usada por
Poulain de la Barre que arranca, igualmente, de Descartes – trata-se do dualismo
substancial, da distinção entre corpo e espírito. Com base nesta perspetiva, o autor
pode defender que a diferença entre os sexos apenas diz respeito ao corpo e que a
alma, unida ao corpo por Deus e segundo as mesmas leis, funciona em ambos os
tipos de corpos da mesma maneira.
30 Poulain de la Barre, De l’excellence …: 118.
Filosofia e Género 103
os motivos que justificam tal situação não têm nada a ver com a natureza
humana, embora se tenham serviço dessa conceção para se escamotearem.
No entanto, apesar de todo o ganho acima referido, convém, todavia,
não esquecer que estamos ainda, basicamente, embora já não exclusiva-
mente, no plano das mulheres como o outro ou na heterodesignação do
que é ser mulher, e que o facto de ter vencido a perspetiva rousseauniana
vai ser determinante para a configuração do estatuto de mulher-trabalha-
dora, na industrialização, servindo, como mostra o excelente artigo de
Joan Scott32, para determinar a constitutiva precariedade e desvalorização
do trabalho assalariado feminino, baseadas numa representação do femi-
nino totalmente ligada à natureza e, nesse contexto, por um lado, ligada à
produção dos filhos enquanto matéria bruta33 e, por outro, necessaria-
mente sob a proteção de alguém, fazendo da mulher-trabalhadora, uma
anomalia, um desvio, no plano da racionalização do trabalho.
Considerando que:
1.º o amor honesto, o matrimónio casto, a ter- 1.º A Razão quer (mesmo que
nura maternal, a piedade filial, o reconhe- passe por bárbara) que as
cimento das boas ações, etc., são anteriores mulheres (raparigas, casa-
à invenção do alfabeto e da escrita, e do es- das ou viúvas) nunca po-
tudo das línguas; subsistiram e podem ain- nham o nariz num livro,
da subsistir sem elas; nem ponham a mão numa
2.º os inconvenientes graves que resultam para os caneta.
dois sexos do facto de as mulheres saberem ler; 3.º A Razão quer que cada sexo
4.º a primeira lição que uma jovem recebe é o esteja no seu lugar e aí
primeiro passo que se lhe obriga a dar para permaneça.
afastar-se da natureza; 4.º A Razão não quer, nem se-
5.º a intenção da boa e sábia natureza foi que quer a língua francesa, que
as mulheres, exclusivamente ocupadas com uma mulher seja autora.
os trabalhos domésticos, se honraram por 12.º A Razão quer que os
ter nas mãos não um livro ou uma caneta, maridos sejam os únicos li-
mas uma roca e um fuso;
vros das suas mulheres, li-
7.º é perigoso cultivar o intelecto das mulheres; vros vivos nos quais, noite e
8.º a própria natureza ao prover as mulheres de dia, elas devem aprender a
uma prodigiosa aptidão para falar, parece ler os seus destinos.
ter querido poupar-lhes o trabalho de apren- 14.º A Razão quer que se dis-
der a ler e a escrever;
pense as mulheres do árido
17.º Margarida de Navarra, primeira mulher de e seco estudo da gramática.
Henrique IV, teria sido menos coquete se
22.º A Razão declara que uma
não soubesse escrever. Uma mulher que
maneja a caneta considera ter direito a per- mãe de família não tem ne-
mitir-se mais coisas que qualquer outra mu- cessidade de saber ler para
lher que só conhece a agulha; educar bem as suas filhas.
26.º a leitura é contagiosa: quando uma mulher abre 61.º A Razão quer que os chefes
um livro, já se crê capaz de escrever outro; de família, os pais e os ma-
31.º por pouco que saiba ler e escrever, uma
ridos, sintam o dever de
mulher considera-se emancipada e fora da cumprir as funções de leito-
tutela em que a natureza e a sociedade a res para com as mulheres.
puseram para seu próprio bem;
38.º apesar de tudo o que se tem dito, o intelecto
e o coração têm um sexo como o corpo;
57.º rezar o rosário é tão meritório perante Deus
como ler o seu ofício de manhã e de tarde;
79.º se comprovou que as Escritoras são menos
fecundas do que as outras mulheres.
Filosofia e Género 109
41 Sylvain Maréchal, Projet d’une loi portant defense d’appendre à lire aux
femmes: 51.
Filosofia e Género 111
menos, dois séculos, do ponto de vista legal e não sabemos por quanto
tempo mais, do ponto de vista dos tais esquemas de significação trans-
-subjetivos com que interpretamos o mundo e nele nos instalamos.
43 Ibidem: 76.
44 Mary Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Woman (1792), Londres,
Penguin Books, 1992: 91.
Filosofia e Género 113
45 Este gesto do marido, William Godwin, que foi o seu primeiro biógrafo, teve
consequências devastadoras, porque a informação divulgada por ele transformou-a
de conhecida e mesmo admirada – as suas obras mais conhecidas chegaram a ser
reeditadas – em repudiada e depois esquecida. Mesmo quando no final do século
XIX, em Inglaterra, se desenvolve o movimento feminista, a sua obra continua
esquecida, só vindo a ser reencontrada nos anos 70 e 80 do século XX.
114 Fernanda Henriques
46 Cf., por exemplo, Carol H. Poston, “Mary Wollstonecraft and “The Body
Politic””, in Maria J. Falco (ed), Feminist Interpretation of Mary Wollstonecraft,
Pennsylvania, The Pennsylvania State University Press, 1996: 85-104.
47 Maria Luísa Ribeiro Ferreira, “Mary Wollstonecraft e a educação da humanidade
pelas mulheres”, in As mulheres na filosofia, Lisboa, Colibri, 2009: 121-148.
Filosofia e Género 115
51 Cf. Maria J. Falco (ed), Feminist Interpretation of Mary Wollstonecraft, op. cit.:
15-32 e 47-60, respetivamente.
118 Fernanda Henriques
52 Ibidem: 21.
53 Ibidem: 27.
Filosofia e Género 119
54 Ibidem: 49.
120 Fernanda Henriques
sem ser profunda, etc56, ou seja, tem contornos indefinidos e a sua ima-
gem é construída através de sugestão e ocultações, como se se quisesse
que ela fosse uma sombra, mas não um indivíduo corporalmente definido.
Embora se assuma como mulher, Wollstonecraft explicita que não vai
debater a diferença entre os sexos. O seu objetivo, diz, é tratar as mu-
lheres, em primeiro lugar, como seres humanos que são, e, só depois,
considerar algumas caraterísticas particulares.
Também aqui em oposição fundamental a Rousseau, importa-lhe mar-
car que as mulheres são criaturas racionais, como metade da humanidade
que são. Nesse sentido, defenderá a ideia de que as mulheres devem
aceder ao conhecimento e à virtude que, de resto, deve ser comum a toda
a gente para poder influir na prática geral da vida.
Já no capítulo 1, Wollstonecraft desenvolverá, sistematicamente, este
aspeto, defendendo que a perfeição da natureza humana e a sua capacida-
de de felicidade dependem do desenvolvimento da razão, da virtude e do
conhecimento, sendo a razão o motor de todo o processo de tornar huma-
na a humanidade.
Neste capítulo, a autora envolve-se, diretamente, com as posições
rousseaunianas, particularmente o seu mito do bom selvagem, conside-
rando que os seus argumentos, sendo verosímeis, são, todavia, erróneos.
A posição de Wollstonecraft assenta numa dupla ideia: 1. a ideia de
uma criação divina e 2. a de que a criação da realidade inclui a perspetiva
de que ela é portadora de uma dinâmica de aperfeiçoamento, nomeada-
mente que o ser humano – mulher e homem – nasceu com o dom de se
aperfeiçoar. É no contexto desta discussão com Rousseau que Mary
Wollstonecraft dirá as palavras que referi no início deste ponto, para
marcar a sua crença no progresso da humanidade:
Rousseau trata de provar que tudo estava bem originariamente; uma
multidão de autores trata de provar que tudo está bem agora e eu quero
provar que tudo estará bem depois.
A sua leitura de Rousseau leva-a a rejeitar a solução por ele apresen-
tada, porque ela assenta no desprezo pela civilização e diz:
[…]e se Rousseau tivesse levado a sua investigação a um escalão mais
elevado […], a sua mente ativa ter-se-ia lançado a contemplar a per-
58 Ibidem: 183.
3 – AS GRANDES MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS
DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
E A AFIRMAÇÃO SISTEMÁTICA DAS MULHERES
NO ESPAÇO PÚBLICO E NO DEBATE TEÓRICO
COMO SUJEITOS DE ENUNCIAÇÃO
4 tópicos essenciais:
1. Notas sobre o modo como as mulheres foram tomando a palavra teórica
na atualidade.
2. Um percurso reflexivo sobre o estatuto epistemológico da racionalidade
no mundo contemporâneo e que facilitou a legitimidade de novos temas
e problemáticas.
3. Uma abordagem do significado de O Segundo Sexo na ressignificação do
estuto do discurso filosófico do/sobre o feminino.
4. Algumas reflexões em torno da proposta filosófica de Luce Irigaray, en-
quanto representante de um quadro filosófico sistémico.
5. Análise da temática ética contemporânea, como exemplo de uma inter-
venção sistemática de mulheres filósofas, nomeadamente de uma pen-
sadora portuguesa.
1 Cf., Michael Paraitre, Femmes philosophes, femmes d’action, Paris, Les Temps des
Cerises, 2004.
128 Fernanda Henriques
A – Percursos e debates
A filósofa espanhola Cristina Molina Petit publicou um artigo, num
número da Revista Isegoría dedicado à problemática do Género,4 onde
6 Cf., Teresa Rocha Barco (ed.), María Zambrano: La razón poética o la filosofía,
Madrid, Tecnos, 1997, sobretudo, o texto de Chantal Maillard, “La reforma del
entendimento. Hacía una superación de la razón poética”: 173-183.
132 Fernanda Henriques
7 Esta ideia aparece subjacente ao texto La metáfora del corazón, in María Zam-
brano, Madrid, Alianza Editorial, 1993: 49-58.
8 María Zambrano, Filosofía y Poesía, Madrid, FCE, 1987: 11.
Filosofia e Género 133
Creio que a resposta a esta questão supõe fazer um percurso que vai
da ‘crítica da razão à crise da razão’.
Numa nota ao prefácio da 1.ª edição da Crítica da Razão Pura, Kant
dizia que o seu século era “o século da crítica”, ou seja, o século onde a
razão, soberana, se reconhecia a si mesma a capacidade de se submeter a
um livre e público exame, a um tribunal, que instaurasse, claramente, um
quadro do seu funcionamento, relevando os seus poderes. O iluminismo
representava, assim, o Kairos da crítica da razão, o seu momento por
antonomásia e, simultaneamente, revelava a imensa confiança na razão,
ao supor a sua competência e a sua capacidade para apreciar e decidir
sobre a validade ou não-validade dos processos racionais.
Dir-se-ia, então, que a crítica ao poder e aos limites da razão configu-
raria um instrumento operatório poderoso e eficaz para compreender o
real e nele originar modos produtivos de viver.
Tal não foi, porém, o caso.
A herança da crítica da razão foi uma razão em crise, posta em ques-
tão por todas as hermenêuticas da suspeita – desde as clássicas de Marx,
de Nietzsche e de Freud às feministas, que evidenciam, cada uma à sua
maneira, os logros de uma crença na comensurabilidade direta entre
racionalidade e realidade, na transparência total da linguagem racional ou
seja, na sua pretensa objetividade neutral –, mas também, noutro horizon-
te, pela Escola de Frankfurt – querendo pensar a sociedade democrática
depois do fracasso da racionalidade posto a nu pela segunda grande
guerra – através de Adorno e Horkheimer e mesmo de Habermas, que
submeteram a racionalidade ocidental moderna a uma feroz denúncia
crítica, pondo a nu o seu fundo de totalitarismo que originou, no seu
entender, que o desenvolvimento da nossa cultura se realizasse através da
instrumentalização e da violência exploradora da realidade. De acordo
com estas perspetivas, o progresso das Luzes transportaria, conjuntamen-
te com a força emancipadora da razão, o duplo efeito perverso de uma
certa usura sobre o mundo natural e de uma ação de exclusão em relação
a tudo que não pudesse encaixar-se nos padrões tecnológicos e instru-
mentais. A razão forte que fundou a sociedade moderna aparece, por esta
via, configurada como uma razão opressora, quer essa expressão assuma
a forma de uma totalização exploradora, quer de uma totalização exclu-
dente; em ambos os casos, a racionalidade fica articulada com o exercício
da violência, da dominação e da exclusão9.
plano do racional aquilo que o sentimento quer dizer. Essa tradução seria
a própria operação hermenêutica:
[…] a oscilação é a forma universal de toda a existência finita[…].
[…] Razão e sentimento permanecem para mim também justapostos
mas tocam-se e formam uma coluna galvânica.
A vida mais interior do espírito é para mim esta operação galvânica, no
sentimento da razão e na razão do sentimento, onde, contudo, estes dois
pólos estão sempre de costas viradas um para o outro.17
Ou seja, sem propor a mistura ou a confusão entre o sentimento e a ra-
zão, Schleiermacher quer, todavia, poder pensar e pensar-se em unidade e,
por isso, explora a ideia de que o choque entre sentimento e razão produza
algo de novo, algo que, por seu lado, está transmutado, pertencendo a uma
natureza diferente de cada um dos elementos que o originaram.
Penso que a perspetiva aqui descrita para explicar o nascimento da
hermenêutica moderna como um processo de tradução no plano racional
das diferentes variáveis da existência humana, num desejo de as recondu-
zir a todas à unidade possível, pode servir como modelo analógico para
aquilo que é o centro das preocupações das pensadoras feministas que se
ocupam com as questões epistemológicas, nomeadamente, com a questão
de como traduzir, num discurso logóico, aceite pelo cânone cientifico, as
experiências das mulheres, ou como pensar uma epistemologia que não
dissocie as emoções da racionalidade.
Especificamente, os trabalhos de Alison Jaggar, como, por exemplo,
Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista, em que
aquela autora defende que as emoções podem não só ser úteis como
também necessárias à construção do conhecimento, contra aquilo que
designa como o mito positivista da investigação imparcial, vão nessa
linha. Segundo as suas próprias palavras, a autora pretende ‘construir
uma ponte’ ou vencer o hiato entre as emoções e o conhecimento. O seu
texto é alimentado por uma dinâmica dupla. Por um lado, quer destruir o
preconceito da imparcialidade científica, mostrando que ele é um mito
que classifica como classista, racista e masculinista; por outro, deseja
explorar o valor das emoções no processo de interpretação da realidade,
uma vez que elas, […] podem ajudar-nos a compreender que o que foi
geralmente considerado como facto, foi construído de maneira a obscu-
recer a realidade de pessoas subordinadas, especialmente as mulheres.18
17 Ibidem: 20.
18 Alison M. Jaggar, “Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista”,
in Alison M. Jaggar, Susan R, Bordo (eds,), Gênero, Gorpo, Conhecimento, Rio
Filosofia e Género 141
20 Cf. Elena Casado Aparicio, “A vueltas con el sujeto del feminismo”, Política y
Sociedad, n.º 30 (1999): 73-91, onde a autora faz um balanço perspicaz desta
problemática. Cf., igualmente, Maria Irene Ramalho.”Os estudos sobre as mu-
lheres e o saber: onde se conclui que o poético é feminista”, Ex aequo,
n.º 5 (2001): 107-122, onde se faz uma elegante e interessante proposta de se
tomar, em si mesmo, o poético como feminista, por estar mais próximo da ver-
dade e do ser, abrindo-se, enquanto palavra polissémica, à riqueza e fecundidade
daqueles.
144 Fernanda Henriques
23 Toril Moi, Simone de Beauvoir. The making of an intellectual woman, Oxford and
Cambridge, Blackwell Publishers, 1994.
24 Éliane Lecarme-Tabone, “Le couple Beauvoir-Sartre face à la critique féministe”,
op. cit.: 33.
148 Fernanda Henriques
25 Sylvie Chaperon, “Haro sur Le Deuxième Sexe”, in Christine Bard (dir), Un siècle
d’antiféminisme, Paris, Fayard, 1999: 269-283: 269.
26 Sylvie Chaperon afirma, sem rodeios, que “à bien des égards Le Deuxième Sexe
essuie les mêmes assauts que les oeuvres de Sartre: les mêmes auteurs, les mêmes
revues, les mêmes camps politiques, mais aussi les mêmes amis se retrouve dans
les deux cas.” (Ibidem: 271). Em relação a François Mauriac, a autora fala mesmo
de vingança pessoal.
Filosofia e Género 149
27 Segundo a mesma autora, a Revista La Nef deu voz a detratores, mas também a
entusiastas da obra, como Francine Beris.
28 É o caso de François Mauriac que diz a um colaborador de Temps Modernes que
sabe tudo sobre a vagina da sua patroa, que a própria Simone de Beauvoir refere
em La Force des choses.
29 Colette Audry, “Le Deuxième Sexe et la presse. Livre très lu, mal lu et mal
compris”, Combat, 22 de dez. de 1949.
30 Cfr., François Jeanson, Simone de Beauvoir ou l’entreprise de vivre, Paris, Seuil,
1966: 251-198.
31 Michèle Le Doeuff, L’Étude et le rouet, Paris, Seuil, 1989 e o de Michel Kail,
Simone de Beauvoir philosophe, Paris, PUF, 2006.
150 Fernanda Henriques
32 De notar que a análise da mulher frígida e da sua má fé é feita por Sartre, que
convoca mais 2 homens como testemunhas e referências de validação: o psiquiatra
e o marido. São 3 homens a julgarem uma mulher e a classificá-la.
152 Fernanda Henriques
40 Esta ideia é muito bem argumentada por: Barbara S Andrew, na obra “Beauvoir’s
place in Philosophical Thought”, já citada.
41 Sonia Kruks, “Simone de Beauvoir entre Sartre et Merleau-Ponty”, op. cit.: 87.
156 Fernanda Henriques
tão livre como o seu amo’, porque as restrições que modificam a sua si-
tuação vêm modificar interiormente a sua liberdade, até suprimir a sua
própria capacidade de fazer projetos42.
Ou seja, se as mulheres são historicamente ‘constituídas’ como o Ou-
tro desigual, a sua ‘situação’ é algo onde se encontram desde sempre, mas
não podem, realmente, escolher: a sua liberdade pode ser, somente, então,
uma possibilidade reprimida. Tanto mais que, na situação das mulheres,
não está em causa apenas uma relação de pessoa a pessoa, de mulher a
homem, mas sim um conjunto de instituições sociais que tendem a natu-
ralizar a inferioridade das mulheres. Basta pensar na relação homem-
-mulher, no quadro do casamento em que a legislação determina assime-
trias e distribui desigualmente os poderes.
Neste sentido, Sonia Kruks insiste em chamar a atenção para o facto
de Beauvoir reiterar que a ‘escolha’ que a maioria das mulheres faz de
aceitar uma situação de submissão não representa uma escolha de má-fé,
como o Sartre de L’Être et le Néant tenderia a considerar: é esta situação
que Beauvoir designa como a ‘imanência’ da situação das mulheres.
Em relação à invenção discursiva de Beauvoir, on ne naît pas femm-
me: on le devient, a análise que mais me agrada é a de Judith Butler,
nomeadamente porque ela a articula com a questão problemática da
relação sexo-género que é, certamente, como já referi, um caminho
filosófico essencial a desbravar.
Judite Butler vai fazê-lo, no sentido que a ela lhe interessa: o de mos-
trar que a questão da identidade é, em si mesma, uma ficção que serve
objetivos vários de poder. Contudo, a exploração que faz da posição de
Simone Beauvoir mostra a complexidade da questão e a originalidade
filosófica da perspetiva beauvoiriana.
Na última parte da análise que faz da posição de Simone Beauvoir,
Judith Butler diz o seguinte:
Com efeito, considerar que a mulher existe na ordem metafísica do ser
é entendê-la como o que já está realizado, sendo auto-idêntica, estáti-
ca; porém, concebê-la na ordem metafísica do chegar a ser é inventar a
possibilidade para a sua experiência, incluída a possibilidade de não
chegar a ser nunca uma ‘mulher’ substantiva, auto-idêntica.43
42 Ibidem: 89.
43 Esta análise da posição de Butler centra-se em: Judith Butler, “Variaciones sobre
sexo y género. Beauvoir, Wittig y Foucault”, in Seyla Benhabib y Drucilla
Cornella (eds.), (1986), Teoría Feminista y Teoría Crítica, Valencia, Ediciones
Alfons el Magnànim, 1990: 193-211: 210-211.
Filosofia e Género 157
44 Ibidem: 196.
45 Ibidem: 200.
158 Fernanda Henriques
46 Michel Kail começa o seu livro deste modo: “La littérature française comprend
deux études synthétiques consacrées à la philosophie de Simone de Beauvoir, la
brillante analyse de Michèle Le Doeuff (1989) et l’exposé systématique de cette
philosophie proposé par Éva Gothlin(1996). Nous leur devons l’essentiel, de nous
avoir convaincu que Beauvoir est une philosophe […].
Parce que nous n’avons plus à convaincre de la qualité de philosophe de Beauvoir,
nous avons choisi d’orienter notre commentaire sur ce qui fait la spécificité de son
discours théorique […].
O texto de Michel Kail, embora com outro objetivo, explora, tal como Sonia
Kruks, o tema da opressão.
Filosofia e Género 159
autor, um ‘dado’ que não é ‘natural’: ser um dado não corresponde a uma
instância natural:
[…]o dado não deve ser confundido com o mítico dado natural; o que é
dado é sempre habitado por significações que os Outros aí deposita-
ram. Não há, primeiro, um dado natural ao qual se viesse a juntar logo
a seguir […] um sujeito encarregado de o representar; há sempre um
dado composto de sujeito e de objeto, há sempre já uma relação. O da-
do é relacional, o dado é a própria relação.50
O tópico fundante apresentado por Michel Kail em prol da sua tese é a
posição beauvoiriana sobre o binómio natureza-cultura que rejeita como
tal. Isto é, não há de início um dado natural do qual a humanidade se
demarcaria pela sua transformação. Para Beauvoir o ponto de partida é a
noção de ‘mundo’, na senda de Sartre e de Merlau-Ponty. O autor subli-
nha, aliás, que a recusa das explicações biologistas, psicanalíticas e do
materialismo histórico que o primeiro volume de O Segundo Sexo leva a
cabo têm por base o facto de que qualquer daquelas três perspetivas
aceitar e assentar na distinção entre natureza e cultura.
Que importância tem esta perspetiva de ‘mundo’?
Como assenta no primado da relação e não na separação sujeito-
-objeto, destruindo, ao mesmo tempo, um certo naturalismo da represen-
tação, vai permitir a Beauvoir descrever a situação das mulheres, no
quadro dessa estrutura compreensiva.
No plano das significações, as mulheres têm sempre acesso a um
mundo, digamos, já constituído pelos homens e, portanto, simbolicamen-
te determinado, pelo que vai fazer uma ontologia fenomenológica, não da
‘condição feminina’, mas da ‘situação existencial das mulheres’51.
Para o autor/comentador, a importância de Beauvoir para a filosofia
política é essencial. Segundo a sua análise, a filosofia beauvoiriana é
50 Ibidem: 34-35. Mais à frente (40), o autor vai chamar a atenção para o facto de
que, no quadro de uma perspetiva fenomenológica comum, Beauvoir, Sartre e
Merlau-Ponty desenvolvem, contudo, acentuações diferentes no que respeita à
superação do dualismo sujeito-objeto. Sartre centrar-se-á mais no pólo sujeito;
Merleau-Ponty no do objeto e “En choisissant d’analyser l’opression des femmes,
Beauvoir marque une indifférence plus consequente à l’égard de ce dualisme, et
impose la relation comme l’objet privilégié de la réflexion. ”
51 Nesta perspetiva é interessante lembrar a evocação que Beauvoir faz a Poulain de
la Barre, na Introdução do primeiro volume de O Segundo Sexo. Poulain de la
Barre é lembrado na sua chamada de atenção para o facto de que todas as
caracterizações do feminino que temos ao nosso dispor foram feitas por homens e
acolhidas e transmitidas por eles.
Filosofia e Género 161
política pela sua própria inspiração e não apenas porque das suas posições
se podem extrair perspetivas para a ação política. Para ele, a originalidade
de Beauvoir vem exatamente do modo como concebe a liberdade: como
sendo sempre pensada em relação a uma situação – ou seja, liberdade e
situação são contemporâneas: a situação não tem qualquer exterioridade
em relação à liberdade; a situação não é a soma de constrangimentos
exteriores. É no quadro desta conceção que faz a análise da opressão que,
por isso, se revela como paradoxal: opressores e oprimidos coabitam; há,
portanto, algum consentimento. Só uma perspetiva de ‘liberdade em
situação’ pode permitir analisar esse paradoxo, sem lhe retirar a sua
dimensão paradoxal. Aprofundar o conhecimento dele sem o reduzir a
nenhuma linha explicativa redutora. E é, ainda, a noção de mundo que
permite esse aprofundamento:
Esta análise [de O Segundo Sexo] mostra muito claramente que os opres-
sores dominam a significação da situação, determinando as condições da
relação. Eles mantêm os oprimido(a)s no ser e recusam-lhe o acesso ao
mundo, o acesso à existência. Quem se esforça para descrever a situação
na sua objetividade para extrair daí a racionalidade dela, permanece cego
a esta ‘verdade’ da opressão: é o senhor que, previamente, dá forma à re-
lação, se bem que os oprimido(a)s tenham a impressão de tomar lugar ‘de
forma natural’ num quadro objetivamente definido.52
56 Ibidem: 12.
57 Ibidem: 13.
58 Ibidem: 15.
Filosofia e Género 165
Este texto que, como já referi, suscitou muitas polémicas, tem, apesar de
tudo, a grande vantagem de colocar na mira da análise uma perspetiva oposta
à forma corrente de ver os problemas. E fá-lo por duas vias convergentes:
por um lado, ao indicar que se pode sobreviver sem o cromossoma y,
mas não se pode sobreviver sem o cromossoma x, faz do feminino a
estrutura matricial e a forma humana primordial e, portanto, inverte os
tradicionais modos de pensar o humano a partir do masculino;
por outro, colocando a construção da identidade masculina como uma
sucessiva e sistemática recusa do feminino, reitera a ideia de que o
feminino é a referência principial e, ao mesmo tempo, denuncia o ca-
rácter eminentemente frágil da identidade masculina, uma vez que a
sua definição é feita por negação do feminino.
Independentemente da adesão que se possa fazer às teses que atraves-
sam esta obra de Badinter, tem de se lhe reconhecer o mérito de ter
questionado a abordagem clássica de considerar o masculino como a
referência e o feminino como a derivação, pondo em relevo que se pode e
se deve pensar as relações entre o feminino e o masculino de outra manei-
ra e a partir de outros paradigmas.62
No que respeita à identidade feminina, ou, como diz Simone de Beau-
voir, o que é, afinal, uma mulher?, os Estudos Feministas, olhados no
conjunto da sua extensão e amplitude, dão respostas extremamente diver-
gentes, em função dos princípios hermenêuticos de que partem, havendo
muitas categorizações das diferentes perspetivas que procuram configurar
a natureza feminina.
Todos estes percursos teóricos em torno das identidades feminina ou
masculina são feitos, de algum modo, ‘à revelia’ do fundo filosófico de O
Segundo Sexo: penso, todavia, que representam caminhos possíveis de
reflexão a partir dele.
66 A posição que aqui quero evidenciar é paralela a que Teresa Toldy desenvolve a
propósito de Mary Daly: “Mary Daly: A exaltação de um feminismo ginocêntri-
co”, in M.ª Luísa Ribeiro Ferreira e Fernanda Henriques (org), Marginalidade e
alternativa, Lisboa, Colibri, 2016: 97-107.
172 Fernanda Henriques
71 Esta relevância está ligada a posições feministas radicais e ativistas, mas também
a outras, a que se poderia chamar conservadoras, como é o caso de Alles Bello.
72 Luce Irigaray, Je, tu, nous, op. cit.: 100.
174 Fernanda Henriques
73 Ibidem: 131.
74 Ibidem: 26.
75 Luce Irigaray, Parler n’est jamais neutre, Paris, les Éditions de Minuit, 1985: 294.
Filosofia e Género 175
la todas as outras transformando-a num poder que pode ser utilizado para
o bem ou para o mal, para libertar ou para oprimir.
A linguagem é o elemento determinante de transformação do mundo.
Nesse contexto, Gusdorf dá uma série de exemplos para demonstrar que
todas as revoluções – culturais ou políticas – estão associadas a alterações
no léxico e na gramática.
Em suma, Gusdorf despertou-me para a consciência de que quando
falamos, fala-se através dos nossos discursos um conjunto estruturado de
valores, muitas vezes em contradição com o que, genuinamente, julgamos
pensar. Pensemos, por exemplo, em expressões discriminadoras que estão
depositadas na linguagem através dos provérbios ou de frases feitas,
como por exemplo:
Burro velho não aprende línguas (discriminação com base na idade)
O trabalho é bom para o preto (racismo puro)
Maria rapaz (estereótipo com base nos papeis de sexo/género)
Certamente já dissemos estas frases como muitas outras, sem qualquer
consciência do seu peso discriminador e sem dele sequer nos aperceber-
mos. E que dizer de vocábulos como semítico e alarve? Quando as profe-
rimos alguma vez nos lembramos de que elas estão carregadas de ódios e
desprezos acumulados contra alguns povos?
O acumular de elementos – destes e de muitos outros – configuradores
da linguagem como poder81 – o poder de dominar, de ordenar, de manipu-
lar, de minimizar –, mas também, o poder de desenvolver, de fecundar e
de fazer crescer fez-me despertar para a relação entre a linguagem e a
situação das mulheres e entrar no campo da literatura especializada. Foi
nesse percurso que me confrontei com a posição de Luce Irigaray.
Por isso, dirá que existem “realidades sem ser”, isto é, zonas que a
linguagem discursiva não consegue articular para expressar. E se a filoso-
fia, na esteira de Aristóteles, confinou a realidade ao ser, ao que pode ser
dito, isso não significa, segundo a nossa autora, que essas zonas não ditas
da realidade não continuem a “vaguear como almas penadas” em torno do
espaço filosófico, importunando-o e interpelando-o.
No meu entender, ambas as autoras denunciam uma certa violência
sobre a realidade que fez/faz perder a sua potencial riqueza e diversidade,
embora o princípio hermenêutico de partida de cada uma delas seja
completamente diferente.
Preocupada com a, simultânea, diferenciação entre os sexos e o seu
apagamento, Irigaray chama ainda a atenção para que este discurso
pretensamente neutro, mas, de facto, masculino, é restritivo e empobrece-
dor, igualmente, para o próprio homem, não só por não ter uma alteridade
discursiva que o interpele, mas também porque a sua visão de si é forma-
tada por uma lógica estritamente binária e excludente, por um pensamen-
to disjuntivo ou alternativo que é, constitutivamente, redutor94.
Como já disse, os trabalhos de Luce Irigaray na área da linguagem são
mais interpeladores porque radicam numa investigação empírica sistemá-
tica. Em 1973, a autora publica uma obra sobre a linguagem das pessoas
dementes95, com base na análise dos resultados da aplicação de provas
psicolinguísticas (textos incompletos, faltas gramaticais ou semânticas,
sinónimos …) aplicadas a uma população de dementes com graus varia-
dos de deterioração mental e situações etiológicas diferentes.
Irigaray vai aplicar uma técnica semelhante de experimentação empí-
rica a rapazes e raparigas, mulheres e homens para analisar o seu respeti-
vo comportamento linguístico. Os resultados são interpeladores, dado que
a autora identifica uma conduta diferenciada entre os sexos em relação ao
uso da linguagem, numa percentagem assinalável. A partir sobretudo da
sua síntese em Le partage de la parole,96 é possível fazer em esquema as
diferenças no uso da linguagem, por cada sexo.
94 Tem alguma graça irónica as observações que Irigaray faz sobre a designação
‘língua materna’ dizendo que seria mais adequado chamar-lhe ‘língua paterna’:
Cf.: Luce Irigaray, Parler n’est jamais neutre, op. cit.: 319.
95 Luce Irigaray, Le langage des déments, Haia-Paris, Mouton, 1973. É uma versão
da sua tese de doutoramento em linguística.
96 Luce Irigaray, Le partage de la parole, Oxford, European Humanities Research
Center, 2001.
Filosofia e Género 185
Esquema 1
Mulheres Homens
Esquema 2
Exemplos de frases construídas por jovens Exemplos de frases construídas por jovens
adolescentes do sexo feminino adolescentes do sexo masculino
Construir frases com pronomes possessivos
Ela devolveu-lhe o seu livro Ele conduz o seu carro
Ela presta atenção ao seu sotaque Ele compõe a sua gravata
Ele lê o seu jornal
Doença carência
Fragilidade dependência
perda atraso
Filosofia e Género 191
Não posso fazer a síntese do ser no qual estou situado. O mundo é esse aí
onde cheguei ao nascer. Ele não é uma enumeração de objetos […] mas
o englobante indeterminado da minha subjetividade. Não sei o todo. Es-
tou no Todo.107
2. O seu comentário a Ser e Tempo, de Heidegger, no Curso sobre
Hermenêutica, de 1971-1972, em Lovaina, onde chama a atenção para a
importância fundamental que tem a análise heideggeriana, em termos da
deslocação das questões ligadas à compreensão, tal como elas tinham
sido herdadas de Dilthey, do campo da comunicação e do diálogo, para a
dimensão do seu enraizamento ontológico. Di-lo assim:
É muito importante que, em Sein und Zeit, a questão da compreensão
esteja completamente desligada do problema da comunicação com o
outro. […] Os fundamentos do problema ontológico devem ser procu-
rados do lado da relação do ser com o mundo e não do lado da relação
com o outro: é na relação com a minha situação na compreensão, fun-
damental da minha posição no ser, que está implicada, a título princi-
pial, a compreensão.108
O que me parece essencial nesta evocação de Paul Ricoeur, em rela-
ção à compreensão do conceito em causa, é o facto de ela nos reafirmar
essa dimensão de pertença ao mundo que marca uma existência corporal
e da qual decorre, necessariamente, uma atitude específica perante a vida
e o viver, no quadro da qual o Cuidado emerge como compromisso,
realismo, risco e aposta.
Retomando, de novo, a reflexão de Irene Borges-Duarte, vemos que,
para Heidegger,
No seu sentido mais puro, esta estrutura [a estrutura formal do Da-
sein] é um jogo intrínseco de projeção-retrojeção extaticamente tem-
poral: é um ser já de antemão o que, antecipando-se na expectativa, é
em cada momento lançado ao porvir, a partir da experiência feita e
guardada explícita ou implicitamente na memória. Heidegger designa
esta dinâmica formal com uma linguagem complexa, que nos basta
aqui registar: “a estrutura completa do cuidado, no seu sentido for-
mal, é ser-se antecipadamente no seu já estar a ser à beira de algo.
Na expressão pregnante de Ser e Tempo: “ser-se antecipadamente já
109 Irene Borges-Duarte, “A fecundidade ontológica da noção de cuidado…” op. cit.: 123.
196 Fernanda Henriques
114 É particularmente relevante para esta questão: Hans Jonas, Das Prinzip Verant-
wortung, Frankfurt, Insel Verlag, 1979. Para o tema da simultânea ligação e
demarcação de Jonas em relação a Kant, ver-se-á com proveito: Irene Borges-
-Duarte, “O Homem como fim em si? De Kant a Heidegger e Jonas”, Revista
Portuguesa de Filosofia, n.º 61 (2005), fasc 3-4: 841-868, texto ao qual esta
reflexão também é devedora.
Filosofia e Género 201
115 Como todas, esta caracterização é simplificadora. Fi-la para acentuar a ideia de que
Maria de Lourdes Pintasilgo denunciou sempre uma igualdade mesmificadora que
empobrecesse as mulheres e o mundo, em geral. No texto que corresponde à
conferência inaugural do XVII Congreso de la Federación Internacional de Mujeres
de Carreras Jurídicas – Castilla-La-Mancha y Toledo, 2000, Maria de Lourdes
Pintasilgo expressa a sua posição pelas palavras de Maria Irene Ramalho: procurar
uma igualdade que não descaracterize e uma diferença que não humilhe. Maria de
Lourdes Pintasilgo, “Cuidar o Futuro”, in Para um novo paradigma, op. cit.: 127.
116 Maria de Lourdes Pintasilgo, “Émergence du féminin et démocratisation du
politique”, in Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado.
Antologia de textos, Porto, Afrontamento, 2012: 25-33: 25-26.
Filosofia e Género 203
117 Maria de Lourdes Pintasilgo,” Culture politique et culture des femmes”, in Para
um novo paradigma, op. cit.: 49.
118 Isabel Allegro de Magalhães,” A dimensão do cuidar e a re-significação do
espaço público no pensar e agir de Maria de Lourdes Pintasilgo”, Ex aequo n.º 21
(2011): 37-51: 38.
204 Fernanda Henriques
dado se organiza como matriz da política ou, para repetir Irene Bor-
ges-Duarte, como exercício fáctico da responsabilidade.
Estes desenvolvimentos do pensar e do agir de Maria de Lourdes Pin-
tasilgo vão cruzar--se com a sua análise crítica de uma democracia desen-
carnada que não só não implica o exercício de uma cidadania participati-
va, como, pelo contrário, o remete para o simples direito de voto. Por
outro lado e em íntima relação com isto, Maria de Lourdes Pintasilgo
teorizará sobre a categoria de qualidade de vida em lugar da de desenvol-
vimento, defendendo uma cultura política ligada à ideia de compromisso
com um projeto humano e, simultaneamente, responsável pela sustentabi-
lidade do planeta.
Gostaria de acentuar aqui a perspetiva de cultura na expressão ‘cultura
política’ para pôr de manifesto que o que está em jogo é a proposta de
uma atividade governativa que ultrapasse a mera dimensão de gestão e se
configure no quadro de um horizonte da ‘coisa pública’ como ideal de
vida em comum capaz de promover horizontes de justiça e de igualdade.
Nos anos 1990, Maria de Lourdes Pintasilgo foi convidada a presidir a
uma Comissão Independente para as Questões da População e essa
situação pode ser lida como tendo funcionado como um laboratório
experimental das suas perspetivas teóricas.
O trabalho dessa Comissão compreende e demonstra que as questões
da população têm de ser articuladas com todas as outras dimensões da
realidade e, nesse sentido, explicitará que é necessário uma mudança
efetiva de paradigma de análise e de relação da humanidade com o seu
Oikos que é a Terra, sob pena de se poder assistir ao colapso da nossa
vida coletiva, propondo “uma orientação política inaugural e radical”121.
Dessa nova proposta política, destacam-se três ideias que são mais deci-
sivas para esta reflexão:
A ideia de que é imperioso cuidar do Planeta onde habitamos e pensar
a sua ocupação e gestão em termos de assegurar a sua viabilidade.
A ideia de que a política deve ter como horizonte prioritário assegurar
a qualidade de vida para todas as pessoas, em todas as sociedades,
perspetiva que deve substituir a do desenvolvimento.
A ideia de que devem ser as pessoas na sua concretude que devem
funcionar como finalidade da ação governativa.
Estas três ideias, inseparáveis entre si, põem no centro do debate teó-
rico-político as categorias de Cuidado, de Responsabilidade e de Justiça
que, a meu ver, correspondem à trilogia que dá corpo à ideia de que o
Cuidado é o exercício fáctico da responsabilidade e de que a ação políti-
ca se deve governar por ele.
Na conferência de abertura do XVII Congreso de la Federación Inter-
nacional de Mujeres de Carreras Jurídicas, do ano 2000,122 depois de um
diagnóstico sobre a realidade vivida no limiar da passagem para o novo
século, em que denuncia a ganância de lucro sem horizontes humanos, a
cegueira da lógica dos mercados e o sem sentido de uma globalização
ultraliberal, ao mesmo tempo que faz referência a alguns movimentos sociais
liderados por mulheres que procuram opor-se a este estado de coisas, Maria
de Lourdes Pintasilgo propõe, como saída, um novo paradigma: um mundo
assente no cuidado, no quadro do qual, analisa, sobretudo, as noções de
autonomia e de interdependência, mostrando os perigos da primeira e os
benefícios da segunda. Como muitas outras autoras – nomeadamente, Carol
Gilligan que cita e Seyla Benhabib que não cita – Maria de Lourdes Pintasil-
go denuncia o exacerbamento da noção de autonomia que, associado ao
neoliberalismo e ao individualismo, representa um forte entrave à compreen-
são sistémica da nossa posição no mundo, porque esta está cada vez mais
sujeita às leis da interdependência, situação que só pode ignorar-se com base
na subvalorização de uma enorme fatia de seres humanos e das suas respe-
tivas condições de vida, desprezando, portanto, totalmente, o princípio da
justiça. Do seu ponto de vista, só uma ação política baseada no Cuidado –
cuidado de si, cuidado da humanidade, cuidado do planeta – poderá permi-
tir romper com este estado de coisas. Di-lo assim:
Não bastará então acrescentar piedosamente
à democracia política
a democracia social, económica e cultural.
Haverá sim que construir a democracia simultaneamente
sobre a justiça e sobre o cuidado,
sobre os direitos e sobre as responsabilidades.
122 Neste texto, já antes referido, Maria de Lourdes Pintasilgo convoca uma série de
autoras e autores ligada(o)s à problemática do cuidado, à responsabilidade e
também à ação política: Martin Heidegger, Carol Gilligan, Joan Tronto, Hannah
Arendt, Hans Jonas, Emmanuel Levinas –. No meu entender, este conjunto de
referências é feito num duplo sentido: por um lado, mostrar a fundamentação
teórica daquilo que defende, e, por outro, pôr em evidência como, de lugares
filosóficos muito diferentes, há acordo de perspetivas sobre a urgência de
algumas temáticas. Sinais dos tempos? Espírito do tempo?
Filosofia e Género 207
123 Convém reiterar que Adela Cortina e Seyla Benhabib – bem como Martha
Nussbaum que se analisará a seguir – são autoras com uma vastíssima obra, cuja
riqueza temática ultrapassa muito o pequeno filtro de análise aqui selecionado.
Nomeadamente as implicações dos seus trabalhos ao nível do pensamento
político são hoje verdadeiramente reconhecidos.
208 Fernanda Henriques
Identificação
Adela Cortina assume plenamente a sua pertença à linha das éticas do
discurso:
A fundamentação racional que a ética do discurso oferece é a mais
acabada filosoficamente para dar conta de uma moral cívica como a
que chegou a configurar-se nas nossas sociedades através de um lar-
go processo histórico de evolução social, precisamente pela superio-
ridade da sua construção teórica em relação a outras fundamen-
tações. Mas, para além disso, a partir dela desenvolvem-se conceitos
tão valiosos para configurar uma moral cívica como o de pessoa, en-
tendida como esse interlocutor que se deve ouvir no momento de deci-
dir normas que o afetam, compromisso na elevação do nível material
e cultural das pessoas que têm de decidir, liberdade dos interlocu-
tores, entendida como autonomia, solidariedade, sem a qual o indiví-
duo não pode chegar a saber sequer acerca de si mesmo, aspiração à
igualdade, entendida como simetria no diálogo, e realização de todos
estes valores numa comunidade real em que vivemos aberta à comu-
nidade humana universal.128
O texto-citação é claro na explicitação das razões que levam a filósofa
espanhola a adotar as éticas do discurso. Por isso, vou apenas sublinhá-las
e comentá-las.
A primeira razão apresentada corresponde ao facto de serem elas que
oferecem uma mais sólida fundamentação para o exercício moral.
Esta questão é fundamental no quadro do pensamento cortiniano. Co-
mo já foi dito, ela é uma defensora acérrima da modernidade e, na se-
quência, da defesa da existência de uma racionalidade prática. No seu
entender, a corrente, de raiz Weberiana, que separa o mundo teórico do
discurso, Lisboa, Instituto Piaget, 1991) Seyla Benhabib considera que esse
objetivo não foi alcançado e propõe a sua perspetiva do ‘outro concreto’ no
quadro de um ‘universalilismo interativo’.
128 Adela Cortina, Ética aplicada y democracia radical, op. cit.: 208.
Filosofia e Género 211
Política, ética e religião, por esta ordem ou por uma diferente, são 3 di-
mensões irrenunciáveis do ser humano. Na história do Ocidente, e ape-
nas nela, estas entidades foram entendidas, essencialmente, a partir de
duas narrativas, duas parábolas, duas histórias sobre os vínculos hu-
manos: a que se conta no livro do Gènesis, a narrativa do “reconheci-
mento recíproco” […] e a do Leviatã de Hobbes, onde o fiat, o “faça-
mos o ser humano”, a palavra criadora pronunciada por lábios huma-
nos, é o contrato pelo qual se unem as partes do corpo numa comuni-
dade política artificial.
[…] [Sem esta relação] A política democrática perde as suas mais pro-
fundas raízes e fica uma democracia liberal débil, a ética conforma-se
Filosofia e Género 213
130 Adela Cortina, Alianza y Contrato: Política, Ética y Religión, Madrid, Editorial
Trotta, 2001: 11.
131 Para Adela Cortina, a universalidade é um requisito da globalização da vida
social: Sobre isto diz o seguinte em Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de
la ciudadanía, Madrid, Alianza, 2005: 260-261: “En una Aldea Global el egoís-
mo es actitud pasada de moda, como los son las pequeñas endogamias, los
vulgares nepotismos y amiguismos, las aldeítas locales, la defensa de “los míos”,
“los nuestros”, sea en la política, sea en la economía, en la universidad o en el
hospital. Ante retos universales no cabe sino la respuesta de una actitud ética
universalista, que tiene por horizonte para una toma de decisiones el bien
universal, aunque sea preciso construirlo desde el bien local.”
214 Fernanda Henriques
Demarcação
No entanto, como já se disse, a adesão de Adela Cortina às éticas do
discurso não é absoluta, sendo feita num registo crítico que dá continui-
dade aos seus princípios próprios de pensar. A autora di-lo com a mesma
clareza com que tinha manifestado a sua adesão:
[…] penso, neste ponto, que a ética não pode limitar-se a fundamentar,
porque uma ética pós convencional de princípios tem de mostrar – em
estreita colaboração com outros saberes – como os princípios podem
encarnar-se na vida social e pessoal.133
É, pois, a vontade de dar ‘corporeidade’ à ética do discurso, sem re-
nunciar ao seu formalismo, que vai orientar o pensar cortiniano, cuja
concretização mais explícita é a publicação da sua obra, em 2007, Ética
de la razón cordial, onde afirma:
Ninguém duvida de que necessitamos de alimentação, vestuário, habi-
tação e cultura, liberdade de expressão e de consciência, para levar por
diante uma vida digna. Mas necessitamos, também, e, em certas
ocasiões, mais, de consolo e esperança, de sentido e carinho, esses bens
de gratuidade que nunca se podem exigir como um direito; que são par-
tilhados por quem os dá, não por dever, mas sim por abundância de co-
ração.134
Esta obra, embora por outros caminhos e relevando de outros argu-
mentos, situa-se na mesma procura de Seyla Benhabib de alargar a ética
discursiva.
O projeto explícito do livro Ética de la razón cordial é retomar a ideia
de uma ‘ética mínima’ e repensá-la, vinte anos depois, embora mantendo
a sua matriz essencial, analisando-a em termos intrasubjetivos e no con-
texto das transformações que a sociedade foi sofrendo durante esse tem-
132 Adela Cortina, Ética aplicada y democracia radical, op. cit.: 136.
133 Adela Cortina, Ética sin moral, Madrid, Tecnos, 1990: 41.
134 Adela Cortina, Ética de la razón cordial, Oviedo, Nobel, 2007: 63.
Filosofia e Género 215
po. Ou seja, tendo em conta que uma ética mínima, como ética própria
das sociedades pluralistas, deve ser: 1. procedimental; 2. portadora do
capital ético partilhado pela sociedade; 3. uma ética das pessoas, enquan-
to cidadãs, esta obra quer agora valorizar aquilo que é convocado na sua
efetivação, realçando os valores e os sentimentos mobilizados nessa
efetivação, dando integralidade humana à razão procedimental e mos-
trando o caráter dialógico da pessoa.
Nesse contexto, mantendo a importância da defesa de uma ética susten-
tadora do exercício da cidadania, posição clássica da autora, trata-se, agora,
de completar essa dimensão da ética através da explicitação daquilo que é –
ou deve ser – mobilizado subjetivamente no comportamento ético. Por
outras palavras, trata-se de dar ‘carne’, dar ‘vida humana’, à estrutura
procedimental da ética de mínimos, sem lhe retirar a dimensão formal, o
que pode ser lido como querendo caldear a justiça com a compaixão.
Retomando as suas palavras:
Esta é a tarefa que se propõe Ethica cordis: tentar superar as limi-
tações de uma ética mínima procedimental, atualizando, ao mesmo
tempo, as suas explicitações numa ética que não é já apenas baseada
na razão procedimental, mas sim numa razão humana integral, numa
razão cordial.135
Adela Cortina parte da seguinte pergunta diretora: o que é que nos
obriga, perante nós e perante os outros, a agir eticamente? E, em conti-
nuidade direta com tudo o que escreveu sobre a pessoa e a sua dignidade
intrínseca, bem como sobre o seu caráter relacional, vai colocar a ideia de
reconhecimento no cerne da sua resposta.
No capítulo oitavo do seu livro, Adela Cortina vai tratar daquilo que
denomina reconhecimento cordial cuja base é a compaixão e que supõe
uma racionalidade cordial, isto é, uma visão integral sobre a racionalida-
de humana que aglutina intelecto e emoção, ampliando o nosso olhar
sobre a realidade. É no cerne dessa racionalidade que se configura a
compaixão, raiz do vínculo comunicativo ou da tomada de consciência
que a relação é aquilo que nos constitui como humanos, isto é, que somos
um diálogo. Esse vínculo comunicativo assenta na ideia de que a outra
135 Ibidem: 32. Mais à frente (191), a autora dirá o seguinte, sobre a ética da razão
cordial: “[…] Ética de la razón cordial […] empeñada en la tarea de mostrar
como el vínculo comunicativo no sólo cuenta con una dimensión argumentativa,
no sólo revela una capacidad de argumentar sobre lo verdadero y sobre lo justo,
sino que cuenta también con una dimensión cordial y compasiva sin la que no
hay comunicación”.
216 Fernanda Henriques
136 Tal como Paul Ricoeur na sua obra La mémoire, l’histoire, l’oubli (Paris, Seuil.
2000), Adela Cortina também refere aqui as Comissões de Verdade da África do Sul.
Filosofia e Género 217
137 Este texto sobre Seyla Benhabib reproduz quase integralmente o texto publicado
em: Fernanda Henriques, “Seyla Benhabib e a articulação entre justiça e cuidado
no pensamento ético”, in M.ª Luísa R Ferreira e F. Henriques (coord), Margina-
lidade e Alternativa, op. cit.: 31-39.
138 Consultar: http://globetrotter.berkeley.edu/people4/Benhabib/. Penso que é este
interesse que a leva a dizer, em mais do que um texto, que a Filosofia deve ter
uma tarefa mediadora, mais do que de unificação ou de totalização.
218 Fernanda Henriques
139 Cf., Seyla Benhabib, Situating the Self. Gender, Community and Postmodernism
in contempory Ethics, New York, Routledge, 1992. Esta vai ser a obra deter-
minante para a reflexão aqui proposta. No fundo, trata-se de mostrar que a crítica
de Habermas a Kant, na linha de Hegel, não vai suficientemente longe, sobretudo
no que diz respeito a perspetiva sobre o universalismo que continua a ter em
conta apenas na sua dimensão formal, sem atender às relações morais específicas
e efetivas.
Filosofia e Género 219
140 Esta ideia do valor das diferenças é um fator determinante da conceção da autora
no plano político. Nesse sentido é essencial a sua obra The Rights of Others:
Aliens, Residents and Citizens, Cambridge, Cambridge University Press, 2004.
141 Expressão e conteúdo que retoma de Hannah Arendt. Cf., Seyla Benhabib,
Situating the Self, op. cit.: 9.
Filosofia e Género 221
142 Num texto muito crítico, Teresa Toldy mostra as fragilidades desta perspetiva,
comparando-a com a de Judith Butler: Cf., Teresa Toldy, “O CUIDADO e o
ESPAÇO PÚBLICO: compaixão ou vulnerabilidade? Martha Nussbaum vs. Judith
Butler”, publicado em 2010, em CDRom, pela Fundação Cuidar o Futuro.
143 Cf., entre outros, Martha Nussbaum, Cultivating Humanity: A Classical Defense
of Reform in Liberal Education, Harvard, Harvard University Press, 1997.
222 Fernanda Henriques
A capacitação e a justiça
Desde o seu trabalho no World Institute for Development Economics
Research, de meados dos anos 1980 a meados de 1990, onde colaborou
com Amartya Sen, Martha Nussbaum apresenta o que se pode designar
por uma filosofia do desenvolvimento que tem como base a perspetiva
das capacidades, ou da capacitação humana, e que carateriza como uma
perspetiva que configura as condições que possibilitam viver uma vida
com dignidade. Embora reconheça que é Amartya Sen que funda a pers-
petiva das capacidades, Nussbaum considera que lhe dá um contributo
pessoal e uma fundamentação filosófica própria, operacionalizando a sua
formação como especialista em filosofia Grega. Segundo diz, ambos
reconhecemos que as ideias que eu tinha estado a seguir no contexto da
minha ocupação académica, com a filosofia de Aristóteles, tinham uma
assombrosa semelhança com as que ele tinha estado a seguir, durante
alguns anos, no campo da economia144.
O essencial desta perspetiva da capacitação humana está orientado pe-
la interrogação: O que é que alguém é capaz de fazer ou de ser?, sendo a
resposta a tal interrogação que se deve constituir como referência para
avaliar o nível de desenvolvimento de uma sociedade.
Essa perspetiva assenta em dois tópicos essenciais: (1) a ideia aristoté-
lica/marxista de que há um funcionamento verdadeiramente humano e (2)
a ideia kantiana de que o Ser Humano é um Fim em si mesmo.
Em termos do solo da economia, onde se inscreve, tal perspetiva cor-
responde à definição de um campo que se poderia designar como uma
economia com ética que quer ser uma alternativa a uma perspetiva mera-
mente instrumental da economia, e introduzir a ideia de finalidade na
perspetiva económica. Esta perspetiva alargada da economia denuncia que
o desenvolvimento seja equivalente ao crescimento económico de uma
sociedade, mostrando que ele é apenas uma parte desse desenvolvimento,
defendendo, por outro lado, que tem de haver uma política económica que
seja também social e cujo objetivo seja promover a qualidade de vida145 das
populações, que não se reduz apenas à acumulação de bens ou de riqueza.
Nesse sentido, o desenvolvimento das sociedades deixa de ser medido
apenas pelo PIB, para se ocupar com outras variáveis, nomeadamente, a
146 Martha Nussbaum refere-se amiúde a esta questão das preferências adaptativas,
próprias dos grupos discriminados, como as Mulheres e que advêm de contextos
de injustiça e servem para os reproduzir.
224 Fernanda Henriques
147 Embora nas linhas essenciais o pensamento de Martha Nussbaum e Amartya Sen
seja convergente, há focos de divergência entre eles, de que destaco o facto de
que, ao contrário de Sen, Nussbaum propor uma lista de 10 capacidades que
considera as capacidades humanas centrais e, a seu ver inegociáveis por
corresponderem a uma ideia do que deve ser um ser humano.
148 Martha Nussbaum propõe-se tratar de mais duas situações de discriminação: a
globalidade dos povos – que está na linha da sua defesa de uma cidadania
cosmopolita – e os animais não humanos.
149 Martha Nussbaum, Las fronteras de la justicia, Barcelona, Paidós, 2007: 93.
Filosofia e Género 225
«««««
Tendo em conta o conjunto das ideias de Martha Nussbaum acima
apresentado, parece claro que ela representa um certo arejamento na
maneira de pensar em filosofia, introduzindo no seu interior temas de
fronteira e muitas vezes controversos,
Nesse sentido, e, embora como já foi dito, ainda seja muito cedo para
se poder reconhecer se o acesso sistemático das mulheres à prática da
filosofia introduz nesta e no seu desenvolvimento alguma ou algumas
alterações estruturais, não parece haver dúvida de que qualquer das
autoras citadas neste capítulo não deixou o campo teórico da filosofia
como o havia encontado, semeando, pelo menos, dúvidas e inquietações
numa certa paz canónica.
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