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Fernanda Henriques

FILOSOFIA e GÉNERO
Outras narrativas
sobre a tradição ocidental
Biblioteca Nacional de Portugal
– Catalogação na Publicação

HENRIQUES, Fernanda, 1946-

Filosofia e género : outras narrativas


sobre a tradição ocidental. – (Forum de ideias ; 37)
ISBN 978-989-689-612-6

CDU 1

Título: Filosofia e Género.


Outras narrativas sobre a tradição ocidental
Autora: Fernanda Henriques
Edição: Fernando Mão de Ferro
Capa: Raquel Ferreira
Depósito legal n.º 414 748/16

Lisboa, Outubro de 2016


À Memória de
Maria Lúcia Lepecki
ÍNDICE

Prefácio ........................................................................................................... 9
Apresentação ..................................................................................................11

PRIMEIRA PARTE
PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS REGULADORES
DA LEITURA PROPOSTA NESTE LIVRO

Capítulo 1: Porquê este livro? ........................................................................19

Capítulo 2: Em busca de uma legitimidade filosófica


ou a relação Filosofia/História da Filosofia ...............................................25

Capítulo 3: Construir uma memória histórica:


uma necessidade para os Estudos Feministas ............................................33

Capítulo 4: É possível narrar o passado filosófico de outra maneira? ...........45

SEGUNDA PARTE
OUTRAS NARRATIVAS SOBRE
A TRADIÇÃO OCIDENTAL

Introdução ......................................................................................................59

Capítulo 1: Em busca de algumas raízes: Duas incursões interpretativas ......63

1.1. A herança grega – as ambiguidades da cultura e da filosofia Gregas .....63

1.2. A complexidade da concetualização das mulheres e do feminino


na Idade Média: “teologização” da inferioridade feminina
e da sua idealização ...................................................................................74
8 Fernanda Henriques

Capítulo 2: A Idade Moderna e a dimensão pública do debate


pela cidadania no feminino ........................................................................87

2.1. Exploração da herança cartesiana ...........................................................89

2.2. A Revolução Francesa e a criação da Sociedade Moderna:


inclusão e exclusão .................................................................................. 102

Capítulo 3: As grandes mudanças paradigmáticas da segunda metade


do século XX e a afirmação sistemática das mulheres no espaço
público e no debate teórico como sujeitos de enunciação ....................... 125

3.1. A situação das mulheres-filósofas no mundo contemporâneo:


questões e percursos ................................................................................ 126

3.2. Em busca de uma epistemologia da racionalidade fecunda


para os Estudos Feministas ...................................................................... 129

3.3. Ganhar o espaço público: o sentido fundador da obra


de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo ................................................ 144

3.4. A dificuldade de questionar os cânones:


Luce Irigaray e a fundação do ‘pensamento da diferença sexual’ ........... 169

3.5. As filósofas contemporâneas e o questionamento das perspetivas


tradicionais sobre a ética ......................................................................... 188

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................... 231


APRESENTAÇÃO

Este livro tem uma dupla origem. Uma origem remota, correspondendo à
investigação que fui desenvolvendo ao longo dos últimos 30 anos. Uma
origem próxima que se articula com as provas académicas de agregação
em filosofia que me permitiu organizar os diferentes materiais que fui
produzindo ao longo do tempo.
Nesse sentido, o texto que o consubstancia faz-se eco dos textos pro-
duzidos nos percursos da investigação e que foram dando conta das
plataformas conclusivas a que ela ia chegando1. Textos que, por outro
lado, foram escritos para situações específicas, como Colóquios ou Livros
de Homenagem, ou, ainda, números especiais de Revistas. Portanto,
textos avulsos, mas que, todavia, iam construindo fios de uma rede cuja
intencionalidade era dupla: por um lado, configurar uma epistemologia da
racionalidade que servisse os Estudos Feministas e, por outro, na mesma
linha, encontrar um processo de desnaturalização das nossas interpreta-
ções do passado que nos formam e informam. Por outras palavras, ler de
outra maneira os nossos legados culturais, procurando desconstruir ideias
feitas sobre as mulheres e o feminino e sobre os debates que sempre se
fizeram dessa temática, tendo como suporte uma conceção alargada de
racionalidade que a representa atravessada por uma raiz imaginativa que
a dinamiza e solta.
Para além desta apresentação e de um prefácio de Maria Irene Rama-
lho, o livro está organizado em duas partes. A primeira parte consiste
num conjunto de considerações gerais sobre os princípios hermenêuticos
que regulam a leitura que nele se propõe, estando organizada em quatro
capítulos. A segunda, subdividida em três grandes blocos, apresenta uma
série de interpretações desenvolvidas em torno da relação entre as mulhe-
res e a filosofia, desde a Grécia aos nossos dias, ensaiando caminhos para
raconter autrement o legado filosófico ocidental.

1 No final do volume, haverá uma lista identificadora dos textos aqui subsumidos.
10 Fernanda Henriques

****
Quero deixar um agradecimento muito sincero à Colibri, na pessoa do
Dr Fernando Mão de Ferro, pelo acolhimento caloroso que fez deste
projeto e à Professora Doutora Maria Irene Ramalho pelo prefácio que
teve a generosidade de escrever para esta publicação.
PREFÁCIO
FILOSOFIA, LITERATURA, FEMINISMO
– UM PERCURSO COM FERNANDA HENRIQUES

Peço, em parte, emprestado o título deste prefácio a um livro de Fernanda


Henriques, intitulado Filosofia e literatura. Um percurso hermenêutico
com Paul Ricoeur (Porto: Afrontamento, 2005). Trata-se de uma publica-
ção que resultou da tese de doutoramento da autora, defendida três anos
antes na Universidade de Évora. No prefácio que antecede a obra, o
filósofo da Universidade do Minho, Acílio Rocha, dá excelente testemu-
nho do contributo de Fernanda Henriques para a divulgação séria e com-
petente em Portugal de Paul Ricoeur, um filósofo a cujo pensamento a
autora se vinha academicamente entregando há vários anos, e a que de
resto dedicara já a dissertação de mestrado, apresentada à Faculdade de
Letras de Lisboa em 1989, e como revelam diversos artigos científicos
seus vindos a lume em diferentes tipos de publicação. Sirva de exemplo
“Concepções filosóficas e representações do feminino. Subsídios para
uma hermenêutica crítica da tradição filosófica”, que a Adriana Bebiano e
eu tivemos o prazer de incluir em Estudos feministas e cidadania plena,
um número especial de Revista Crítica de Ciências Sociais por nós orga-
nizado (n. 89, Junho 2010, 11-28). Como o próprio título deste livro
indica, o que particularmente captou o interesse da filósofa portuguesa foi
o modo como o filósofo francês desenvolveu largamente o seu pensamen-
to a partir de uma reflexão sobre a imaginação literária e o trabalho da
mimese na narrativa de ficção, e em particular sobre aquilo a que ele
chamou “mise en intrigue”. Nos três volumes de Temps et récit (1983-
-1985), Ricoeur mostra como o dinamismo da estruturação do enredo (ou
intriga), com os seus diferentes níveis de mimese, é uma boa forma de
entender o tempo e os processos de articulação da temporalidade com os
fenómenos culturais e sociais. São, afinal, as narrativas históricas e de
ficção de uma cultura que possibilitam o acesso à identidade, quer dos
indivíduos, quer das comunidades. Ou seja, é essa uma boa forma de
entender o pensamento filosófico na sua própria historicidade.
12 Fernanda Henriques

Se esse aspecto da obra de Ricoeur foi muito importante para a con-


cepção de Filosofia e literatura, uma outra dimensão da obra de Ricoeur dá
forma a este novo livro, sobre que aqui brevemente me debruço. Trata-se,
desta vez, do trabalho de Ricoeur sobre a metáfora, em La métaphore vive,
como um processo cognitivo original, e sobre a importância do discurso
poético, em geral, para olhar a história de modos diferentes, cuidadosa-
mente atendendo, ora aos seus silêncios, ora aos seus vieses. Chamou
Ricoeur a este processo de narrar a história “autrement raconter”, e é esse
o objectivo principal de Fernanda Henriques neste novo livro, intitulado
Filosofia e género. Outras narrativas sobre a tradição ocidental: Resultou
este novo livro das provas de agregação da autora, realizadas na Universi-
dade de Évora em Junho de 2014, e em que tive o gosto de participar.
Coube-me na altura apreciar o Relatório, cujo conteúdo me pareceu então
digno de uma publicação futura. Ora é justamente com base nesse Relató-
rio que em boa hora se constrói este livro, ampliando agora muito a maté-
ria original. Vou deixar de lado o meu velho contencioso com o lamentá-
vel uso de “género” para significar “mulheres” (esse não-conceito de
gender, como lhe chamou a filósofa feminista Rosi Braidotti) e limitar-me
a apreciar o notável esforço de Fernanda Henriques nesta obra para reflec-
tir, em especial, sobre duas ordens de questões: (1) a relativa ausência das
mulheres da história da filosofia; e (2) o relativo descaso a que é votado o
pensamento feminista na tradição filosófica hegemónica. Também aqui
Fernanda Henriques busca inspiração em Ricoeur, cuja racionalidade,
entretecida do poético, ela considera particularmente fecunda para o
desenvolvimento do pensamento feminista. Afinal, o filósofo francês lida
filosoficamente com matéria “feminina”, como tem sido em larga medida
considerada a dedicação à poesia. Pois não fez questão o grande poeta
modernista americano, Wallace Stevens, de manter o mais possível secreta
a sua escrita poética, por saber que essa actividade seria considerada muito
pouco viril num jovem aspirante ao mundo sério e duro das finanças e dos
seguros? O que, por outro lado, é curioso é que muitos filósofos continu-
em a recorrer tanto aos poetas para afinar as suas ideias, se não mesmo a
mergulhar na criatividade poética eles próprios. Muitos exemplos poderi-
am ser aduzidos, mas basta mencionar Heidegger e o seu Aus der Erfah-
rung des Denkens, inaugurado por um sugestivo conjunto de poemas, para
se entender que a experiência do pensamento filosófico tem as suas mais
fundas raízes no poético. A filosofia pode não saber dizer o que é a poesia
(muitos filósofos têm tentado sem grande êxito), mas compreende muito
bem que há muitas coisas que só o poético sabe dizer. O pensamento
filosófico tropeça facilmente sem a capacidade de espanto que a poesia
digna desse nome sempre traz consigo.
Filosofia e Género 13

Logo no início do seu livro, Fernanda Henriques interroga-se – como


pôde a dominação masculina ter sido tão completamente aceite? – para de
imediato reformular a pergunta de outro modo – como pôde a dominação
masculina parecer ter sido tão completamente aceite? (a ênfase é da
autora). Com efeito, um dos contributos deste livro para o pensamento
filosófico actual é reivindicar uma memória crítica para os Estudos Femi-
nistas (como faz, por exemplo, a classicista americana Page du Bois na
sua releitura da antiguidade grega) e, ao mesmo tempo, pôr em relevo o
papel de muitas mulheres, filósofas de formação (como a própria autora)
ou não, para uma transformação feminista do pensamento contemporâ-
neo. Isso não a impede, porém, de mencionar notáveis mulheres pensado-
ras (como, por exemplo, a beneditina do século XII, Hildegarda de Bin-
gen e, eu acrescentaria, a escritora do século XX, Gertrude Stein) que
sempre subscreveram a superioridade masculina. Ou, pelo contrário, de
analisar com demora as ideias de um feminista do sexo masculino como
François Poulain de la Barre (1647-1725). O objectivo último do livro
que tenho agora em mãos é justamente pensar a natureza humana no
mundo independentemente do modelo masculino do pretenso universal
neutro, que continua a pautar-se pelo homem vitruviano de Leonardo.
O trabalho de releitura dos textos clássicos da filosofia ocidental, a que se
entrega Fernanda Henriques neste livro, e que já esboçara no mencionado
artigo publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais, demonstra como
metade da humanidade tem sido sistematicamente silenciada pela filoso-
fia; ou, quando muito, representada de forma grosseiramente enviesada:
mulheres vistas apenas, como as viu Aristóteles, como não-homens.
O que é preciso evitar, sublinha Fernanda Henriques explicita ou im-
plicitamente ao longo do seu livro, é que de mulheres como não-pensadas
se passe a falar de mulheres como impensáveis. Ou, pior ainda, acrescen-
taria eu, como não-pensantes. Que o devenir femme da filosofia, propug-
nado por Deleuze & Guattari e louvável como forma de contestação do
pensamento filosófico hegemónico, não acabe por negar às mulheres o
ser-sujeito da filosofia, resultando assim numa forma porventura menos
deselegante de silenciamento. Curiosamente, o poeta modernista portu-
guês Mário de Sá-Carneiro tinha já esboçado, no poema “Feminina”, um
gesto semelhante ao de Deleuze & Guattari, ao projectar no ser-mulher a
infinita liberdade, ou licença, e a ampla gratuitidade da poesia. Ao mes-
mo tempo, porém, “os de Orpheu” não incluíam mulheres como sujeitos
da poesia, a não ser a Violante de Cysneiros, inventada, como não-
-homem, por Armando Côrtes-Rodrigues por sugestão de Fernando
Pessoa. Como Fernanda Henriques bem acentua, o discurso masculino da
filosofia tem sido e continua a ser tão ruidoso que muitas mulheres filóso-
14 Fernanda Henriques

fas consideram sua tarefa primeira reinventar a língua para dizer “mulhe-
res”. Luce Irigaray é o exemplo que imediatamente vem à ideia. O reparo
irónico da filósofa francesa oportunamente comentado por Fernanda
Henriques – seria mais adequado falar de língua paterna do que de língua
materna – faz lembrar outra voz de poeta, a da canadiana de origem
caribenha, M. NourbeSe Philip, que, em “Discourse on the Logic of
Language”, explora a incapacidade da língua inglesa – na verdade, sua
“língua-mãe” – para a dizer mulher e negra, precisamente por falar priori-
tariamente o patriarcado e o racismo. Não foi por essa mesma razão que a
Maina Mendes do romance de Maria Velho da Costa escolheu ser muda?
Tinha razão Rimbaud ao afirmar que os poetas vão sempre à frente.
Fernanda Henriques convoca neste livro um conjunto de mulheres que
entraram na filosofia, para parafrasear o título de um artigo do início
deste século, de autoria da filósofa da Faculdade de Letras de Lisboa,
Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Depois de passar em revista o trabalho de
várias feministas ao longo dos últimos três séculos, de Olympe de Gou-
ges e Mary Wollstonecraft a Simone de Beauvoir e Carol Gilligan, Fer-
nanda Henriques debruça-se, com muita argúcia e espírito crítico, sobre o
contributo de quatro mulheres filósofas contemporâneas para o questio-
namento das perspectivas tradicionais sobre a ética, tendo especialmente
em conta a ressignificação do conceito de cuidado. Depois de rever o
conceito heideggeriano de “Sorge” com a ajuda da filósofa da Universi-
dade de Évora, Irene Borges-Duarte, Fernanda Henriques conclui o seu
livro analisando atentamente o pensamento da portuguesa Maria de
Lourdes Pintasilgo, da espanhola Adela Cortina e das americanas Martha
Nussbaum e Seyla Benhabib (esta última nascida na Turquia e de ascen-
dência sefardita). Sublinhe-se que nenhuma destas pensadoras é indife-
rente à literatura e ao poético, como não o é a autora deste livro. A con-
clusão de Fernanda Henriques é cautelosa: será decerto cedo para decidir
se a entrada das mulheres na filosofia transformou substancialmente o
saber filosófico, mas a verdade é que nenhuma destas quatro pensadoras
deixou o campo teórico da filosofia como o havia encontado. O mesmo
direi eu de Fernanda Henriques.

Maria Irene Ramalho


(MIR escreve de acordo com a antiga ortografia)
PRIMEIRA PARTE

PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS REGULADORES


DA LEITURA PROPOSTA NESTE LIVRO
A primeira parte deste livro pretende desenvolver considerações de
natureza teórica-filosófica, que se constituem como os supostos funda-
mentais da organização das temáticas e dos percursos de leitura apresen-
tados e assenta naquilo que está subjacente ao projeto artístico que Judy
Chicago desenvolveu durante os anos 1970, The Dinner Party, e que
alimenta e explicita a sua afirmação a nossa herança é o nosso poder: ou
seja, para o que aqui é o caso, importa procurar na nossa tradição filosófi-
ca temas, figuras e textos que possamos reconhecer como sendo o passa-
do das reivindicações de dignidade e de igualdade pelas quais os movi-
mentos de mulheres se bateram na segunda metade do século XX.
Encontrar essa herança representa dar perspetivação histórica à praxis
teórica que esses movimentos desenvolveram, permitindo enraizá-la no
tempo e, assim, dar-lhe mais força legitimadora e mais poder discursivo.
Há que dizer, contudo, que esta atitude não é nem isolada nem original.
Mary Ellen Waithe, no projeto que coordenou e que originou, nos anos
1990, os quatro volumes de A History of Women Philosophers1, explicita
mesmo que The Dinner Party foi uma das fontes a que recorreu na sua
demanda pelos nomes das mulheres que pudessem ter relevância filosófi-
ca. No meu caso, não é como fonte de informação que o trabalho de Judy
Chicago funciona, mas sim como horizonte simbólico ou, melhor ainda,
como ideia reguladora. A sua defesa de que a nossa herança é o nosso
poder implica que essa busca de raízes é absolutamente necessária e,
nesse sentido, como diz muitas vezes Adela Cortina, se é necessário tem
de ser possível.

1 Mary Ellen Waithe, A History of Women Philosophers, Dordrecht, Kluwer


Academic Publ, 1992. 4vv.
1 – PORQUÊ ESTE LIVRO?

1 – De um certo ponto de vista, o que aqui se propõe é quase uma impos-


sibilidade. Era preciso ser especialista de todas as épocas filosóficas,
mesmo só na perspetiva do Ocidente, para ter condições de desenvolver
uma proposta de leitura alternativa da nossa tradição filosófica, coisa que,
em si mesmo, é hoje, inconcebível. Propor a possibilidade dessa quase
impossibilidade releva de duas opções de fundo:
a) Acreditar firmemente em que há uma dimensão de justiça nesta hi-
pótese de trabalho que se contextualiza num espírito paralelo ao de Ge-
rald Messadié quando afirma na sua obra, Histoire Générale de Dieu1,
que escrevemos os livros que necessitamos de ler – e, obviamente, não
encontrámos escrito. Ou seja, no fundo, estou a responder à necessidade
pessoal de ler uma outra abordagem da nossa história filosófica.
b) Subtitular este projeto hermenêutico com a classificação de subsí-
dios. É, efetivamente, disso que se trata – de apontar caminhos de leitura
que, alguns dos ótimos estudos de especialidade já disponíveis parecem
legitimar. Nesse quadro, há alguma parasitação investigativa a suportar
esta proposta. Espero, contudo, deixar claras todas as minhas dívidas,
explicitando bem as gigantes e os gigantes em cima de cujos ombros
ousei empoleirar-me.

2 – A presente proposta de leitura é feita do interior de uma perspetiva


feminista, ou seja, ela representa uma tomada de posição positiva em face
de uma abordagem epistemológica das temáticas – quaisquer que sejam –
do ponto de vista da busca de uma diferenciação e de um equilíbrio entre
ser mulher e ser homem. Dito de outra maneira, não se considera aqui a
hipótese de que haja um universal neutro para falar da humanidade, pelo
contrário, o suposto é que essa pretensa neutralidade esconde, em primei-
ro lugar, a valorização da existência de mulheres e de homens e, em
segundo lugar, é pensada a partir dos homens tomando-os como modelo e

1 Gerarld Messadé, Histoire Générale de Dieu, Paris, Éditions Robert Laffont, 1997.
20 Fernanda Henriques

referência da humanidade. No entanto, Feminismo é um chapéu que


cobre muitos feitios de cabeças, algumas delas rivais profundas. A litera-
tura feminista fala hoje já de um pós-feminismo. Isto é, o que está em
causa, atualmente, não é apenas defender-se um feminismo da igualdade
ou um feminismo da diferença sexual, como há 30 ou 40 anos atrás. As
polémicas hoje são muito mais complexas e, por exemplo, em relação à
temática referida da igualdade ou da diferença, hoje discute-se, antes de
tudo, a problemática da(s) identidade(s) e do seu sentido. Emergentes das
chamadas correntes de pensamento pós-modernas e pós-coloniais, as
novas correntes feministas têm de si uma forte consciência de rutura e
separação em relação ao, chamemos-lhe, feminismo clássico. Cito como
um exemplo paradigmática a polémica desenvolvida em França, no
contexto do livro Fausse Route, de Elisabeth Badinter2. Um dos grupos
feministas que mais criticou a autora e a obra foi o que se designa por
chiennes de garde que, num texto publicado em 23 de Maio de 2003,
deixa clara a rutura entre duas formas de racionalidade, a moderna e a
pós-moderna, e entre os dois tipos de feminismos, o tradicional e o atual,
delas decorrentes. O texto, embora comece por agradecer a Elisabeth
Badinter o seu contributo para a emancipação das mulheres, termina com
uma demarcação clara de um feminismo “de outro tempo”. Dizia-o assim:
Les femmes du vingtième siècle étaient consentantes. Les femmes du vingt-
-et-unième siècle seront désirantes. Le féminisme du vingt-et-unième siècle
sera le féminisme de la sexualité. Voilà pourquoi vous, Elisabeth Badinter,
ne pouvez plus faire partie du mouvement féministe aujourd’hui.3
Na perspetiva dessa radicalidade, este projeto pode ser lido como um
feminismo conservador e passado de moda. Assumo-o. E, além disso,
defendo-o.
Assumo-o, por reconhecer que esta proposta, ainda que se desenvolva
dentro dos quadros de um pensamento hermenêutico aberto a algumas
posições da racionalidade pós-moderna, nomeadamente, a sua defesa de
uma razão fraca, assenta, contudo, num conjunto de premissas da herança
moderna, como, por exemplo, esta ideia da importância de encontrar
raízes históricas que essencialmente a configuram.

2 Elisabeth Badinter, Fausse route, Paris, Odile Jacob, 2003. Cf. a análise desenvol-
vida em F Henriques, “Elisabeth Badinter: Racionalismo, Igualdade e Feminismo”,
in Lígia Amâncio, Manuela Tavares, Teresa Joaquim, Teresa S. de Almeida
(Orgs.), O longo caminho das mulheres: feminismos 80 anos depois, Lisboa, Dom
Quixote, 2007: 245-254.
3 http//chiennesdegarde.org.
Filosofia e Género 21

Defendo-o, por duas ordens de razões: (1) em Filosofia as modas são


irrelevantes e o essencial do sentido do pensado permanece; no caso
vertente, esse essencial diz, exatamente, respeito ao impensado das teori-
as e das concetualizações, impensado que se torna necessário significar;
(2) no âmbito da perspetiva do valor heurístico da posição ricoeuriana do
‘conflito das interpretações’, a complexidade das questões das mulheres
só terá a ganhar com abordagens divergentes e mesmo opostas, pelo que
recuso que qualquer hermenêutica feminista possa ter um valor absoluto e
possa ser a explicação cabal de uma questão.
Contudo, ainda que no interior de uma pluralidade de perspetivas, no
Feminismo ou se está dentro ou se está fora. Na verdade, se bem que
radical, tal afirmação é essencialmente verdadeira, porque estar dentro do
Feminismo significa três coisas básicas, mas controversas: 1. Assumir a
sua legitimidade e pertinência; 2. Considerá-lo um eixo fundamental da
investigação em qualquer área do saber: 3. Aceitar os riscos de que, na
base, ele supõe sempre uma atitude desconstrutora do adquirido ou uma
‘hermenêutica da suspeita’. Neste sentido, propor uma qualquer atividade
no quadro do Feminismo supõe, inevitavelmente, uma tarefa de legitima-
ção perante o saber canonicamente constituído e, por maioria de razões,
perante o saber filosófico para quem a relação entre Filosofia e Feminis-
mo ainda é vista como uma ligação sem relevância para uma grande parte
de especialistas. Para essas pessoas, no máximo, essa relação é uma
forma light de Filosofia e, provavelmente, não passa de uma hermenêuti-
ca da cultura. No meu entender, é este quadro de subvalorização que
explica, pelo menos em parte, um certo tipo de invisibilidade que provoca
uma espécie de ausência de história dos Estudos Feministas. É como se
não avançassem, por um lado, e, por outro, não tivessem quaisquer reper-
cussões no saber em geral. É por isso, que quase todos os textos ou inves-
tigações feministas começam por se lamentar do facto de que tudo se
passa como se a abordagem dessas temáticas tivesse sempre de começar
do princípio, como se nada se tivesse passado antes.
Algumas autoras falam de uma indiferença que origina um eterno
recomeço. Maria de Lourdes Pintasilgo, na sua visão de ‘profecia realis-
ta’, refere o facto histórico de as mulheres terem adquirido direitos
sociais e económicos antes da aquisição dos direitos cívicos e políticos
e, nesse contexto, afirma que elas terão transposto para o mundo do
trabalho remunerado a mesma perceção de invisibilidade do seu traba-
lho doméstico4.

4 Cf., Maria de Lourdes Pintasilgo, Para um novo Paradigma: um mundo assente no


cuidado, Porto, Afrontamento, 2012.
22 Fernanda Henriques

Aproveitando a sua visão, sugeriria que essa perceção de invisibilida-


de foi também transposta para o trabalho teórico desenvolvido pelas
mulheres e que, como consequência direta disso, as conclusões da inves-
tigação feminista ou as suas perspetivas sobre as problemáticas raramente
são incorporadas nas obras gerais. O caso que aqui mais me interessa
sublinhar é o das Histórias da Filosofia. Ainda que neste momento já haja
muito material produzido sobre a contribuição das mulheres ao longo do
desenvolvimento da tradição ocidental, nenhuma História Geral da Filo-
sofia ou, por exemplo, nenhuma História da Filosofia do século XX
incorpora o resultado dessas investigações ou, pelo menos, o debate da
problemática. Esta situação representa a negação da existência canónica e
do direito de cidadania às questões e aos temas que questionem uma
herança tradicional e queiram dinamizar uma outra memória do passado.
Teresa Joaquim, num belíssimo texto, A (im)possibilidade de se ser
filósofa, faz, em simultâneo, vários registos interrogativos sobre esta
questão da relação entre as Mulheres e a Filosofia. Centrando-se na sua
experiência pessoal, narra as razões epistemológicas e histórico-culturais
que a obrigaram a ‘deslocar a questão’ que como investigadora queria
desenvolver e que o quadro institucional da Filosofia não lhe permitia
fazer, dentro das fronteiras daquela área disciplinar. Por isso, diz, deslo-
cou-se para o campo da Antropologia, para poder falar de casas, de
objetos, de relações entre as pessoas, das suas relações com os espaços e
os tempos, dos seus conflitos,5 mas, acrescenta, que apesar desse detour
voltou a ser importunada pelas questões filosóficas basilares e a encon-
trar, de novo, o prazer na leitura dos textos da filosofia. É nesse vai-e-
-vem que se questiona sobre o significado da exclusão das mulheres do
campo da teorização e da abstração, ao longo dos séculos, denunciando a
falta de espaço de sentido para um certo tipo de questionamento.
Nem as raízes filosóficas, nem o quadro interrogativo evocados por
Teresa Joaquim correspondem às minhas interrogações e ao meu ponto
de vista – o meu caminho filosófico é outro –, contudo, o seu texto repre-
senta, por um lado, uma síntese de leituras e de perspetivas muito interes-
santes sobre o tema, e, por outro, é uma ‘pedrada no charco’ de um certo
marasmo teórico da cultura portuguesa, denunciando o quase total alhea-
mento destas problemáticas – e, aqui, alheamento é mais negativo que
oposição – por parte da atividade filosófica portuguesa.
Este é o primeiro e, porventura, o maior risco que corre a presente
proposta de leitura da nossa tradição filosófica: o de não ter legitimidade

5 Maria Luisa Ribeiro Ferreira, org., Também há mulheres filósofas, Lisboa,


Caminho, 2001:17-40: 22.
Filosofia e Género 23

no olhar filosófico canónico. No entanto, no panorama académico portu-


guês, ela sofre, ainda, da fragilidade acrescida de ser um fenómeno isola-
do, porque, entre nós, os temas ligados aos Estudos Feministas têm pouca
implantação universitária e, mesmo a que têm, é muito mais nas áreas da
Literatura, da Psicologia Social e da Educação e, um pouco, na História.
Na verdade, temos um curso de Doutoramento em Estudos Feministas na
Universidade de Coimbra, com uma radicação na Literatura, há um
Mestrado na Universidade Aberta – que, foi, aliás, o primeiro mestrado
do género em Portugal e que cumpre este ano 20 anos de funcionamento
– de carácter interdisciplinar e, há, também, núcleos de estudo, em várias
outras universidades, mais ligadas a projetos de investigação do que,
propriamente, a formação académica conducente a grau, embora, num ou
noutro caso, esses núcleos de estudo tenham dado origem à criação de
cursos ou especializações de Mestrado, de vida fugaz. O que vai apare-
cendo, aqui e ali, são unidades curriculares, geralmente de cunho optati-
vo, ligadas a pessoas que desenvolvem estudos na área e que vão negoci-
ando a sua inserção nos Cursos/Departamentos6.
Em relação à Filosofia, especificamente, o único acontecimento ver-
dadeiramente importante no panorama nacional diz respeito ao projeto
Filosofia no Feminino, desenvolvido, entre meados da década de 1990 e
início da de 2000, no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de
Lisboa, que, tendo, embora, originado uma produção científica notável
não teve prolongamento na criação de nenhum curso específico, de
licenciatura ou de pós-graduação, nem alterou significativamente a práti-
ca da investigação e da produção filosófica entre nós7.
No meu entender, há um outro fator ligado aos Estudos Feministas na
nossa vida académica que vale a pena assinalar: trata-se da grande influência
que as teorias queer têm dentro de alguns dos grupos que estão a apostar nos
Estudos Feministas. Essa situação, em si mesma válida, pode ter, contudo,
uma consequência fragilizadora dessa área de estudos entre nós, na medida

6 Cf., para informação mais detalhada sobre estes cursos/unidades curriculares:


Maria Johanna Schouten, Uma Sociologia do Género, Famalicão, Húmus, 2011.
7 Na Universidade de Évora houve, entre 2005 e 2009, um Mestrado em Educação
– Questões de Género e Educação para a Cidadania – cujo trabalho permitiu,
posteriormente, abrir um ramo de especialização do Mestrado em Filosofia
denominado Ética, Género e Cidadania. Há dois anos letivos foi criado um
Mestrado nas Artes, no âmbito das questões de género e existem algumas
participações em projetos internacionais, mas ligados às questões do melhoramento
do estatuto das mulheres nas áreas do emprego e da cidadania, como é o caso do
Projeto Winnet8, que envolve vários países europeus.
24 Fernanda Henriques

em que representa passear na pós-modernidade sem ter percorrido a moder-


nidade e, assim, deixar demasiadas coisas importantes impensadas.
É neste quadro geral – ao contrário, por exemplo, do que aconteceu e
acontece em Espanha, onde a Filosofia e também a História têm uma
importância relevante nos Estudos Feministas8 –, que, em Portugal, a
Filosofia, como tal, é uma presença marginal, sem qualquer influência
decisiva no desenvolvimento e nas orientações dessa área de estudos9.
Nos números 5 e 6 da Revista Ex aequo10, onde se procurava fazer o ba-
lanço dos Estudos sobre as Mulheres em Portugal, creio que as considera-
ções feitas acima se encontram totalmente corroboradas. Por um lado,
vemos longos caminhos de investigação desenvolvidos, mas sempre a
título pessoal e com muito pouca ressonância institucional e ainda menos
resultados em termos de infiltração ou de implicações efetivas no modo de
produção geral dos diferentes saberes. Por outro lado, nota-se, perfeitamen-
te, a ausência de um trabalho sistemático nesta área do ponto de vista da
filosofia, com exceção do projeto Filosofia no Feminino, já mencionado.

8 Numa entrevista à Revista Isegoría, n.º 38 (2008), 197-203, Celia Amorós – professora
na Universidade Complutense de Madrid e uma figura matricial da filosofia de raiz
feminista em Espanha – remonta ao curso de 1987/88 a criação do Seminário
Feminismo y Ilustración, onde desenvolveram as suas atividades de investigação um
conjunto de nomes que marcaram a investigação filosófica de cariz feminista em
Espanha, bem como a sua ligação ao grupo fundador do Instituto de investigações
feministas, cuja atividade se destacou em 1989, nas comemorações do bicentenário da
Revolução Francesa. Na mesma entrevista, fica claro a existência de um partenariado de
trabalho de Celia Amorós com grandes nomes dos Women’s Studies.
9 O panorama europeu e americano mostra um tipo de realidade muito diferente da
nossa, se bem que não seja possível dizer que os Estudos Feministas tenham
alcançado uma ressonância académica correspondente ao fulgor que os anos 1970,
80 e mesmo inícios de 90 pareciam anunciar. Mesmo sem fazer uma pesquisa
muito aprofundada, damo-nos conta de uma implantação académica assinalável
desta área temática, quer na existência de institutos europeus de estudos feministas
(onde não estamos presentes) – (por exemplo, CHRISTINA INSTITUTE, University of
Helsinki. Finland; DEPARTMENT OF SOCIOLOGY, University of Bergen. Norway;
EQUIPE SIMONE Université de Toulouse-le Mireil. France; INSTITUTO DE
ESTUDIOS DE LA MUJER, Universidad de Granada. Espanha; RESEARCH CENTRE
ON VIOLENCE, ABUSE AND GENDER RELATIONS, Leeds Metropolitan University.
UK) – quer na existência de Departamentos ou Gabinetes específicos para os temas
de Género – (por exemplo, Université de Lausanne; Université de Neuchâtel;
Université du Tessin; Université de Bâle; Université de Berne; Université de
Zürich; Université de Saint-Gall; Université de Lucerne) –, quer, sobretudo e
finalmente, na existência de formação conducente a grau, em muitas e prestigiadas
universidades do mundo e também de 12 Cátedras da UNESCO.
10 Ex aequo, Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, n.º 5
(2001); n.º 6 (2002).
2 – EM BUSCA DE UMA LEGITIMIDADE
FILOSÓFICA OU A RELAÇÃO
FILOSOFIA/HISTÓRIA DA FILOSOFIA

1 – Em termos de síntese, poder-se-á dizer que esta publicação pretende,


por um lado, pensar a articulação entre Filosofia e Género, tanto do ponto
de vista da possibilidade filosófica dessa articulação como daquilo que
ela implica em termos de releitura do cânone filosófico. Nessa medida,
importa legitimar, pelo menos, duas coisas interligadas: (1) que a articu-
lação Filosofia e Género é um filosofema, ou seja, que há sentido filosó-
fico em questionar aquela articulação e que desse questionamento resul-
tam perspetivas novas de compreensão quer da Filosofia, quer para o
pensamento da diferença sexual; (2) que a História da Filosofia é, em si
mesma, uma questão filosófica e, portanto, não se pode reduzir a um
elencado de autores/temas estruturados por uma vertebração cronológica.
Na sua obra Histoire et Vérité, Paul Ricoeur dá conta das condições
em que a atividade de historiador da filosofia se deve exercer, apresen-
tando duas ordens de exigências: (1) as exigências subjetivas, ligadas aos
pressupostos de quem assume a tarefa e (2) as exigências decorrentes da
natureza epistemológica da própria matéria a trabalhar. Esse conjunto de
condições determina, simultaneamente, o perfil de quem faz História da
Filosofia e a epistemologia dessa mesma disciplina. Desta maneira, para
Ricoeur, a História da Filosofia deve ser abordada numa posição media-
dora entre um estatuto de cientificidade estrito e uma perspetiva especula-
tiva, pelo que identifica o seu “ofício” limitado por uma dupla fronteira –
a dimensão estritamente crítica de historiador e a abertura ao sentido
escatológico, ligada a uma teologia da história1. Ou seja, como autor,
Ricoeur não reconhece em nenhuma dessas fronteiras o seu grupo de
pertença, colocando-se numa situação de “entre dois”. Quanto à própria
natureza epistemológica da disciplina, Ricoeur posiciona-a, igualmente,

1 Cf. P. Ricoeur, Histoire et Vérité, Paris, Éditions du Seuil, 1955. Troisième édition
augmentée de quelques textes, Paris, Éditions du Seuil, 1978: 11.
26 Fernanda Henriques

entre a Sociologia do Conhecimento e a Filosofia da História, que toma


como, originariamente, filosófica2.
É na dialética de todas estas exigências que se vai definir o princípio
hermenêutico de leitura da Tradição filosófica em geral e de cada filoso-
fia particular.
A dependência da história da filosofia em relação a uma Sociologia do
Conhecimento enraíza-se na dependência mais funda que, do ponto de
vista deste autor, a atividade filosófica tem da História. No meu entender,
Paul Ricoeur defende a ideia da relação radical entre a Filosofia e a
História a partir da perspetiva de que, como conhecimento do passado da
humanidade, a História se constitui como uma via de acesso ao seu modo
de ser, ou, melhor dizendo, a um grau purificado e trabalhado criticamen-
te da subjetividade humana (de alguma maneira, com ressonância de
Dilthey). Nesse contexto, o conhecimento histórico pode fornecer ao
filosofar uma espécie de representação de si da subjetividade humana, em
geral, que pode funcionar como referência e contraponto da consciência
de si da subjetividade pessoal de quem faz a investigação. Dito de outra
maneira, o conhecimento histórico funciona como espelho e condição de
aprendizagem de uma filosofia que radica numa certa tradição reflexiva,
configurando-se como uma mediação do acesso a si de um Cogito que se
reconhece como ferido e desapossado do poder constituinte do sentido.
Em Histoire et Vérité, Ricoeur di-lo deste modo:
(...) o filósofo tem uma maneira própria de acabar em si mesmo o traba-
lho do historiador; esta maneira própria consiste em fazer coincidir a
sua própria «tomada» de consciência com um «retomar» do historiador.3
Contudo, nada do que foi dito decorre de uma visão historicista ou
mecânica. Pelo contrário, Ricoeur afirma que a Sociologia do Conheci-
mento determina as correlações significativas entre as teorias e os seus
contextos, à qual a atividade filosófica não é indiferente, nem imune, mas
a essência da prática da filosofia escapa inteiramente à Sociologia do
Conhecimento, que poderá fazer monografias dos grandes filósofos, mas
que perde a originalidade e a especificidade de cada pensamento singular.
Isto é, aquilo que pode fazer de uma filosofia um momento significativo
da constituição histórica do pensamento filosófico pode ser, exatamente,
o que não é captado na abordagem sociológica. Por outro lado ainda, a
dimensão filosófica e inovadora de cada filosofia está no tipo de resposta

2 Cf. Ibidem: 12 e 61-65.


3 Ibidem: 35.
Filosofia e Género 27

elaborada, mas, também e, porventura, sobretudo, na originalidade da


constituição de uma problemática, isto é, na adequação entre a resposta e
a questão que a condiciona. Assim sendo, a sociologia do conhecimento é
apenas um quadro de objetividade a ter em conta na abordagem da Histó-
ria da Filosofia, que, todavia, não deve ser descurado.
Quanto ao outro pólo dialético – o da Filosofia da História – em His-
toire et Vérité são apresentadas as duas maneiras extremas em que ela se
pode materializar: (1) captando cada filosofia como uma unidade irredu-
tível e singular, em si mesma completa, ou (2) procurando a filosofia
única de que cada filosofia constitui um momento do desenvolvimento
necessário. Ambas são, em si mesmas, insustentáveis, porque significam,
embora de maneira diferente, uma supressão da História: a primeira,
dissociando pensar e temporalidade; a segunda, dissolvendo a História na
lógica da realidade.
Deste modo, Paul Ricoeur preconiza que a abordagem da tradição
filosófica deve sustentar a tensão dialética entre todas as variáveis,
mas tomando em consideração a novidade específica de cada filosofia.
Segundo ele, a abordagem da História da Filosofia deve atender à
captação do núcleo original das diferentes realizações filosóficas, não
sendo particularmente significativo que se procurem desenterrar todas
as influências de onde cada pensador ou pensadora arranca, porque o
importante é o modo como essas fontes foram subsumidas e origina-
ram um questionamento próprio, capaz de protagonizar o tempo em
que emerge.
Este excurso por Paul Ricoeur e por Histoire et Vérité serve para for-
necer contexto legitimador à globalidade do percurso de leitura que vai
ser apresentado, reconhecendo, por um lado, que ele decorre de pressu-
postos filosóficos pessoais em relação quer à responsabilidade da Filoso-
fia nas diferentes concetualizações das mulheres e do feminino ao longo
da nossa Tradição filosófica, quer, por consequência, à necessidade de
inverter a prática filosófica de modo a fornecer novas perspetivas de
conceber a natureza humana.
Para dizê-lo ainda em termos ricoeurianos, penso qu’il faut raconter
autrement a nossa Tradição Filosófica para conseguir uma aproximação
mais justa entre “História da Filosofia e Verdade”. Por outro lado, a
proposta de leitura apresentada aqui também quer estar em sintonia com
Paul Ricoeur quando afirma: (1) que tem de se dar alguma atenção à
Sociologia do Conhecimento na abordagem da História da Filosofia, de
modo a não ignorar as condições culturais em que emergem as filosofias
e as questões filosóficas; (2) que se deve também ter em atenção uma
certa dinâmica dialética no interior da própria Tradição filosófica que se
28 Fernanda Henriques

analisa e observá-la, um pouco, em perspetiva; (3) que mais importante


do que detetar todas as origens e influências é escutar a novidade emer-
gente em cada momento histórico.
Dentro deste quadro, a decisão pela linha de leitura apresentada na se-
gunda parte do livro representa uma resposta à seguinte interrogação:
Como desenvolver uma perspetiva da História da Filosofia centrada no
papel desempenhado pela problemática do feminino e das mulheres sem
percorrer passo a passo o caminho histórico?, consubstanciando uma
proposta pessoal, com todos os riscos inerentes, nomeadamente os de
subjetivismo, fechamento e incompletude.
Por outro lado, ela assenta na convicção de que é filosoficamente le-
gítimo e culturalmente necessário reler a história da filosofia na perspe-
tiva de fazer aparecer a maneira como nela se configurou a conceção do
feminino e de como essa conceção determinou o papel das mulheres na
vida social. Tal releitura, ainda que parcelar, terá uma consequência
direta sobre a renovação do conhecimento filosófico e, simultaneamen-
te, permitirá alargar o olhar sobre o debate contemporâneo em torno das
problemáticas de género ou feministas, ao mesmo tempo que o torna
mais crítico.

2 – Que importância pode ter uma certa reversão da leitura canónica


da Tradição Filosófica?
A resposta a esta outra interrogação assenta no assumir da herança
Hermenêutica, em diferentes perspetivas, mas essencialmente decorrentes
da sua ideia básica de ser a historicidade a nossa referência e a nossa
constituição. Compreender isto significa reconhecer que a História traba-
lha a nossa consciência, embora não o faça mecanicamente, e que come-
çamos sempre o nosso percurso de humanos in medias res, tendo o dever
de compreender aquilo que trabalha em nós e de clarificar o mais possível
os nossos supostos, sabendo que as nossas ideias nunca serão puras.
Nesse sentido, é fundamental interrogar a história da cultura e da filosofia
com novas questões, através de outros textos e sem medo de eventual-
mente não acertarmos ‘à primeira’. Penso que, aqui, o ousar kantiano tem
um papel preponderante – ousar romper convicções arreigadas e verdades
demasiadamente bem conhecidas, mas também, ousar novos caminhos
interpretativos e levantar novas hipóteses. Talvez não haja nada de novo
debaixo do sol, mas há, certamente, novas interpretações a fazer, sobretu-
do, interpretações mais consentâneas com uma maior justiça humana.
Este trabalho da História sobre a nossa consciência é particularmente
relevante no que se relaciona com a problemática das mulheres e do
feminino, uma vez que, como afirma a filósofa espanhola Amelia Valcá-
Filosofia e Género 29

rcel ‘ser mulher é uma heterodesignação’ que o mesmo é dizer que as


mulheres foram definidas “de fora”, como objetos e não foram, durante
muitos séculos, sujeitos de enunciação, ao nível das ideias dominantes.
Esta posição, no fundo, é equivalente à de Simone de Beauvoir quando
fala das mulheres como o “outro”. Em ambos os casos o que está em
causa é chamar a atenção para o facto de que o que é o feminino ou o que
é ser mulher foi, fundamentalmente, dito e transmitido por homens, até
meados do século XX. A relevância da situação advém de que não se
trata de meros pontos de vista, mas sim de uma monofonia reiterada ao
longo dos séculos e emitida do lugar da autoridade, especialmente por
filósofos e por teólogos.
Para além de tornar o coletivo mulheres apenas um objeto – aquilo so-
bre que se falava – essa heterodesignação ajudou a dissolver a ideia de
que ser mulher também poderia ser um projeto individual. No seu artigo
“A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”, Michèle Crampe-
-Casnabet chama a atenção para alguns elementos importantes para a
compreensão deste fenómeno da heterodesignação do feminino. Desde
logo, a sua afirmação de que, no quadro do que é uma representação,
aquilo que é representado é sempre derivado, e, por outro lado, o facto de
que uma representação tanto pode ser fiel ao que é representado, como
pode ser um puro produto da imaginação. Diz, exatamente, a autora:
Uma representação significa o que está presente no espírito; esta pre-
sença pode ser mais ou menos adequada à realidade da coisa ou da
pessoa representada, pode ir até à deformação figurada dessa reali-
dade e confundir-se, então, com uma produção puramente imaginária,
fantasmagórica. O ser representado é sempre segundo, mediatizado re-
lativamente ao sujeito que é a sede da representação.
Assim, pode-se dizer que a mulher é um objeto de representação consti-
tuído por um outro sujeito diferente de si, que se coloca no seu lugar, o
sujeito masculino.4
Seguindo esta linha de pensamento, dizer que ser mulher é uma hete-
rodesignação significa dizer-se que “ser mulher” corresponde àquilo que
os homens disseram durante séculos, desenvolvendo, enquanto sujeitos
do discurso e pertencentes a uma comunidade, a ideia de um “nós”, com
poder de nomear e categorizar “os outros”, no caso vertente, as mulheres,

4 Michèle Crampe-Casnabet, “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”,


in George Duby e Michelle Perrot (coord), História das Mulheres. Do Renas-
cimento à Idade Moderna, Porto, Afrontamento/Círculo de Leitores, v3, 1994:369-
-407-369.
30 Fernanda Henriques

que ficavam dessa forma fora de tal comunidade. Elas eram outras,
estranhas e exteriores ao “nós” emissor de discurso.
Neste quadro, mais do que os conteúdos que iam sendo reiterados so-
bre as mulheres, o efeito mais nefasto desta situação para a concetualiza-
ção do feminino e das mulheres, em termos de autodesignação, foi ela ter
recusado às mulheres o princípio de individuação. A ideia das mulheres
como coletivo que não pertencia a um “nós enunciador” era absolutamen-
te tida como natural. Rousseau, por exemplo, tomava isso como tão
próprio da natureza das coisas que considerava que o exemplo de mulhe-
res notáveis existentes era totalmente irrelevante e sem significado.
Poulain de la Barre, uma das vozes discordantes da monofonia sobre o
feminino e as mulheres, chama a atenção para outro efeito devastador
dessa monofonia – a interiorização que as próprias mulheres fazem do
que é dito sobre elas, como se verá mais adiante.
Contudo, apesar da generalidade da situação, o ponto de vista de al-
gumas autoras, há momentos de agravamento dessa assimetria do olhar
concetual.
Por exemplo, para Geneviève Lloyd, que também se retomará mais
adiante, o processo de constituição do pensamento ocidental põe, de
facto, de manifesto uma longa tradição de aliança entre o masculino e a
razão; contudo, no século XVII, assente em Descartes, produz-se uma
mudança qualitativa nessa situação, porque a estreita ligação estabelecida
entre o método e a razão, por um lado, a ideia de que é possível “treinar”
a razão, aperfeiçoando o seu exercício por meio de regras claras de pro-
cedimento, por outro, e, por fim, a separação radical entre a substância
pensante e o corpo, vão definir um novo espaço de pensar o humano e o
seu desenvolvimento, de tal modo que acabam por excluir as mulheres do
campo da racionalidade. Segundo a sua leitura, até ao século XVII, as
mulheres foram representadas com sendo menos racionais que os ho-
mens, mas a partir do século XVII elas ficam pura e simplesmente fora
da racionalidade, pelo que a sua tarefa fica determinada com base nessa
separação constitutiva.
Neste contexto, vale a pena referir o trabalho de Lígia Amâncio, na
década de 1990, sobre as representações sociais do feminino e do mascu-
lino, em Portugal.
Lígia Amâncio interroga as representações sociais estereotipadas liga-
das aos dois sexos e obtém o seguinte interessante quadro:
Filosofia e Género 31

Características dos estereótipos masculino e feminino5

Masculino Feminino
Ambicioso Afável
Autoritário Afetuosa
Aventureiro Bonita
Corajoso Cuidada
Descuidado Curiosa
Desorganizado Dependente
Dominante Emocional
Forte Feminina
Independente Frágil
Lutador Inferior
Machista Maternal
Objetivo Meiga
Paternalista Sensível
Racional Sentimental
Rígido
Seguro
Superior
Viril

Este quadro, que em linguagem de Paul Ricoeur poderá ser designado


como decorrendo da nossa memória coletiva, tem vários aspetos signifi-
cativos, dos quais se podem destacar, os três a seguir apresentados.
1. Primeiro, salientar que ele ilustra claramente a separação entre mascu-
lino e feminino, em termos de assimetria: racionalidade e objetividade
para o lado do masculino, emoção e sensibilidade para o do feminino.
2. Em segundo lugar, fazer notar como há um número de características
maior para representar o masculino (18 traços) do que para o feminino
(14 traços, sendo um deles redundante: feminino). Esta situação pode
ser explicada pela ausência sistemática da referência ao feminino
quando se fala de antropologia, nomeadamente de natureza humana.
3. Finalmente, marcar bem como o masculino está ligado a uma posição
de superioridade e o feminino de inferioridade, quer explicitamente,

5 Lígia Amâncio, Masculino e Feminino – A construção social da diferença, Porto,


Afrontamento, 1994. O quadro é retirado de: “Género, representações e
identidades”, Sociologia, Problemas e Práticas, 14 (1993), 127-140, 133.
32 Fernanda Henriques

quer por associação a traços mais valorizados socialmente, no caso do


masculino. Note-se: o masculino é Corajoso, Dominante, Forte, Inde-
pendente, Lutador, Seguro e Superior e o feminino é Curiosa, Depen-
dente, Frágil, Inferior, Meiga e Sentimental.
Romper com esta herança distorcida é, pois, um dever de justiça em re-
lação ao que é ser mulher. Contudo, a certeza de que é possível encontrar
na história da nossa cultura e na da filosofia espaços impensados e teste-
munhos de homens e de mulheres não explorados, cuja articulação poderá
constituir uma linha de enraizamento que fortaleça simbolicamente o
processo de resgate do feminino e das mulheres ainda hoje não é líquido.
Como já se disse, Judy Chicago e o seu projeto The Dinner Party é inspira-
dor e referência simbólica desta proposta na medida em que dá corpo à
necessidade de encontrar antecedentes e heranças simbolicamente legiti-
madoras e empoderadoras para as mulheres. Na verdade, o projeto The
Dinner Party, inicialmente pensado por Judy Chicago e depois levado a
termo por um grupo coordenado por ela, corresponde a uma época em que
o mais importante era, sem sombra de dúvida, fazer aparecer nomes de
mulheres com relevância. Dar visibilidade às mulheres do passado e às
suas histórias era a palavra de ordem dos Feminismos, em todos os campos
teóricos, de modo a que fosse possível enraizar as ideias e as reivindicações
que as lutas feministas esgrimiam, no presente. Contudo, o slogan a nossa
herança é o nosso poder aponta num sentido mais amplo do que uma mera
visibilidade restrita. O projeto The Dinner Party, ao conseguir desocultar
39, mais 999 nomes de figuras de mulheres reais ou míticas e ao represen-
tá-las com recurso a gestos, símbolos e tradições de natureza feminina
evidenciou não apenas a importância das mulheres na nossa cultura como
também mostrou que o feminino é representável a partir de si mesmo e,
portanto, acessível à inteligibilidade. Seguindo esta linha de pensar, o que
vai estar em causa na seleção e na organização da segunda parte deste livro
é dar visibilidade ao feminino e às mulheres na nossa tradição filosófica,
mas é, ao mesmo tempo, tentar ressignificar as nossas conceções sobre essa
tradição, ensaiando uma outra forma de a narrar.
3 – CONSTRUIR UMA MEMÓRIA HISTÓRICA:
UMA NECESSIDADE PARA OS ESTUDOS
FEMINISTAS

Retomando a posição de Poulain de la Barre, antes referida, que chamava


a atenção para o efeito devastador da interiorização que as próprias
mulheres fazem do que é dito sobre elas, procurar-se-á neste capítulo
apresentar a importância de construir uma memória histórica que outorgue
poder aos Estudos Feministas, para parafrasear o dito de Judy Chicago.

1 – Na verdade, considero que a visibilidade histórica das problemáti-


cas que integram os Estudos Feministas é fundamental para os fortalecer
e para lhes dar direito de cidadania no conjunto dos saberes.
Dar às mulheres a consciência de que a humanidade sempre pensou de
forma divergente e que a história do nosso pensar tem recursos não
explorados nos quais há vestígios de interrogações sobre a igualdade
entre a natureza humana no feminino e no masculino e, por essa via,
sublinhar que algumas temáticas que os Estudos Feministas puseram de
manifesto não são fortuitas, antes possuem um enraizamento histórico
que lhes dá amplitude é, diria, um imperativo ético e o pagamento de uma
dívida indeclinável, não apenas às mulheres, mas à humanidade no seu
conjunto.
Na Introdução de O segundo sexo, Simone de Beauvoir menciona
que o facto de, ao contrário dos outros grupos discriminados, as mulhe-
res não terem uma história onde se possam rever é uma dimensão que
não só fragiliza a sua imagem como também as destitui de um recurso
argumentativo para o debate público. Elas foram maioritariamente
pensadas como um segundo sexo e, se não se desocultam outras perspe-
tivas, ser o segundo sexo pode parecer natural e, portanto, ‘inscrito na
natureza das coisas’1.

1 Como já se disse, esta posição é equivalente à de Amelia Valcárcel, ao dizer que


‘ser mulher é uma hererodesignação’, para marcar a reiteração de um monocor-
34 Fernanda Henriques

Neste quadro, parece de facto urgente ressignificar as narrativas que


herdámos da nossa história cultural sobre o feminino e sobre as mulheres,
contextualizando-as e confrontando-as com outras que também ocorreram
mas não foram incorporadas no pensamento dominante. Ficaram nas
margens e, como tal, foram esquecidas ou ignoradas. Raconter autrement,
para usar de novo a expressão de Paul Ricoeur, que se desenvolverá no
capítulo seguinte, parece, pois, um caminho de justiça e, simultaneamente
de desnaturalização de uma certa conceção do feminino que parece
situar-se fora da historicidade das ideias, retirando às mulheres a dignida-
de de serem sujeitos da História2.
A leitura proposta quer, por isso, mostrar que é necessário procurar na
nossa tradição novas possibilidades de pensar o feminino, que não foram
desenvolvidas ao nível das perspetivas antropológicas canónicas, de
forma a poder dar às mulheres modelos em relação aos quais elas possam
formular uma imagem de si mais gratificante e que possam servir de
referência positiva na construção das suas identidades. Neste contexto,
quero ensaiar uma contribuição que mostre que é necessário e legítimo
narrar de outra maneira a história da nossa cultura em geral e a história da
filosofia em particular, para poder encontrar novos textos, novos nomes e
também novas interpretações que ponham a claro o papel das mulheres
no movimento global do pensamento e da vida.
Como é que outras narrativas do passado podem representar percursos
de desnaturalização?
Se nos centrarmos na ideia gadameriana de consciência histórica que
‘urbaniza’ a ideia de Heidegger de uma pré-compreensão inerente a
qualquer compreensão, encontraremos um ótimo recurso de análise
porque ele evidencia que a história nos trabalha de alguma maneira.
Para Gadamer, a nossa consciência histórica é, simultaneamente, con-
dição de possibilidade e de constrangimento do modo como interpreta-
mos a realidade. De acordo com ele: ter sentido histórico significa sermos
capazes de pensar no quadro do nosso horizonte histórico e, nessa medi-
da, enquanto seres pertencentes a uma cultura, estamos condenados a ter
uma consciência histórica, ou seja, a darmos conta de nós dentro do
desenrolar de um processo que nos contextualiza e, de alguma maneira,

dismo sobre o que é ser mulher e sobre o feminino que, ao longo dos tempos, os
homens – filósofos e teólogos – enunciaram.
2 Michèle Riot-Sarcey, “Les Femmes de Platon à Derrida ou l’impossible sujet
d’histoire”, Les Temps Modernes n.º 619 (2002): 95-114, onde a autora evidencia
esta ideia a propósito da Antologia de Françoise Collin, Evely Pisier et Elene
Varikas.
Filosofia e Género 35

nos forma. Gadamer chama preconceito ao resultado do trabalho da


história sobre nós, pretendendo designar com essa noção aquilo que
poderíamos caraterizar como esquemas de significação trans-subjetivos,
e que funcionam como princípios de leitura da realidade. Tais esquemas
de significação representam o que, em linguagem de Kant, se pode desig-
nar como os óculos constitutivos da humanidade que a confinam a um
irredutível Standpunkt, que, contudo, não é um relativismo e sim uma
consequência inevitável da finitude humana.
Desta maneira, no caso vigente, o da heterodesignação do feminino e
das mulheres, a eficácia do trabalho da história originou, em mulheres e
homens, esquemas de significação trans-subjetivos que marcam uma
leitura da humanidade com duas medidas e dois padrões de valorização: o
masculino como norma e o feminino como derivado.
Mas, diz também, Gadamer:
A consciência histórica não escuta de forma beatífica a voz que lhe chega
do passado mas, refletindo sobre ela, recoloca-a no contexto em que ela se
enraíza para avaliar a significação e o valor relativo que lhe pertence. Este
comportamento reflexivo perante a tradição chama-se interpretação3.
Assim sendo, pertencermos a um tempo e a uma cultura significa pos-
suirmos uma herança, constituída por um conjunto de recursos de inter-
pretação, com a qual nos orientamos como humanos. Contudo, segundo a
própria indicação gadameriana, a interpretação deve configurar-se como
um comportamento reflexivo perante a tradição ou herança cultural que
coube a cada pessoa e não representar uma aceitação passiva dela. Ou
seja, “ter sentido histórico” obriga a reconhecer o legado cultural que
recebemos, mas, ao mesmo tempo, re-avaliá-lo e re-interpretá-lo, de tal
forma que possamos re-configurar, cada vez com maior equidade, a
herança cultural que queremos deixar depois de nós.
Naquilo que aqui é o caso, o das representações do feminino, este tra-
balho de interpretação é particularmente delicado, na medida em que tem
de ser feito ao arrepio daquilo que mais profundamente nos constitui,
tendo de tomar sempre, num primeiro momento, a figura da desconstru-
ção, uma vez que as representações mais consistentes simbolicamente
advêm de uma conceção antropológica assimétrica, em que o masculino é
o padrão e o feminino o derivado4.

3 Hans-Georg Gadamer, Le problème de la conscience historique (1958), Paris,


Seuil, 1996: 24-25. Sublinhado meu.
4 Ver a este respeito a recolha de representações do feminino, ao longo da tradição
ocidental, de Benoîte Groult, Cette mâle assurance, Paris, Albin Michelle, 1993.
36 Fernanda Henriques

Nesse quadro, penso que se deve tomar algum distanciamento em re-


lação às propostas interrogativas elaboradas por Jane Mansbridge e Susan
Okin, para abordar os Estudos Feministas, nomeadamente no que se
refere à interrogação, ‘Como é que a dominação masculina pode ter sido
tão completamente aceite?’ propondo que ela deve ser reformulada desta
forma: “Como é que a dominação masculina assumiu o aspeto de parecer
ter sido tão completamente aceite?”5, na medida em que considero que
para se reescrever a nossa História Comum, de homens e de mulheres,
tem de se desocultar os ruídos à aceitação universal da dominação mascu-
lina que houve em todas as épocas, por um lado, e, por outro, trazer à luz
os sinais claros da grande ambiguidade e da grande complexidade nas
relações de poder entre os sexos, de que todas as épocas testemunham.
Se admitirmos passivamente que a dominação masculina foi sempre
completamente aceite estamos a fazer uma nova discriminação em rela-
ção à nossa herança cultural, porque não só não estamos a fazer justiça a
todos aqueles e a todas aquelas que se insurgiram contra a dominação do
masculino, como também estamos, por nossa vez, a invisibilizar o seu
esforço, reiterando um certo legado cultural que o conseguiu escamotear.
Por sua vez, o modo como Paul Ricoeur trabalha a relação entre me-
mória e história, que se desenvolverá no capítulo seguinte, permite tam-
bém aprofundar mais a ideia da necessidade de raconter autrement, para
se poder desnaturalizar as conceções sobre o feminino e sobre as mulhe-
res, procurando dar voz à polifonia de perspetivas sobre o feminino que
se desenvolveram, mas que a interpretação dominante tende a ocultar.

2 – Para Paul Ricoeur, a memória é a matriz da história, na medida em


que ela é a guardiã da problemática da relação representativa do presente
ao passado6.
Isto não significa, contudo, que memória e história sejam vistas como
indistintas, salientando o autor que a primeira diz respeito à fidelidade e a
segunda à verdade. O que está em causa é a consideração de um tipo de
relação de potenciação mútua, em que a memória serve a história e esta
consolida e perpetua uma memória determinada, ou melhor, legitima uma
certa memória. Neste sentido, aquilo que La mémoire, l’histoire, l’oubli

Obviamente que há muitas outras antologias também significativas, mas a conden-


sação que é feita naquela obra, por ser uma condensação, é muito explícita.
5 Cf., Jane Mansbridge e Susan Okin “Feminism”, in Robert E. Goodin and Philip
Pettit (ed.), The Blackwell Companion to Contemporary Political Philosophy,
Oxford, Blackwell Publisher, 1993: 269-290.
6 Paul Ricoeur, La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris, Éditions du Seuil, 2000: 106.
Filosofia e Género 37

põe de manifesto é a influência que a história pode exercer sobre a me-


mória, nomeadamente sobre a memória coletiva, permitindo pensar um
círculo hermenêutico indestrutível entre ambas.
Para o que aqui nos ocupa esta perspetiva da importância da história
sobre a memória é absolutamente determinante. Diz, especificamente
Paul Ricoeur:
[…] a memória imposta está suportada por uma história que é ela
mesma autorizada; uma história oficial, uma história apreendida e ce-
lebrada publicamente. Com efeito, uma memória exercida é, no plano
institucional, uma memória ensinada7.
Do conjunto da análise que Ricoeur leva a efeito do tema da memória,
importa relevar, para a temática em causa, esta dimensão da memória
exercida, porque é ela que se articula diretamente com o esquecimento,
no âmbito das implicações do uso e do abuso de ambos. O autor fala de
abuso de memória e de abuso do esquecimento, como dois extremos
indesejáveis, para realçar a dimensão ético-política do dever de uma justa
memória. A este respeito Ricoeur dirá que tanto o trop como trop peu de
memória revelam e relevam de um deficit de crítica8. Neste contexto,
Ricoeur analisará certos fenómenos sociais – como celebrações e come-
morações que exaltam uns acontecimentos esquecendo outros – para, por
analogia, falar de memória recalcada ou memória manipulada. Em qual-
quer dos casos, fica por sarar uma ferida social ou fica por saldar uma
dívida de memória.
Este aspeto representa um fulcro essencial do presente texto, na medida
em que ele quer denunciar a injustiça da perpetuação de um ponto de vista
único sobre o passado, acabando por destituir a possibilidade de outras
perspetivas (memórias), tornando o passado encerrado, fechado, ou seja,
fazendo do passado uma tradição morta que é necessário ousar reativar.
No que respeita às questões ligadas aos Estudos Feministas, esta pers-
petiva tem-se convertido numa ‘memória ensinada’, que silencia ou
minimiza o contributo das mulheres para o desenvolvimento da cultura e
da história e desfaz a própria possibilidade de algumas interrogações que
interessam vivamente a esses campos teóricos para poderem constituir-se
como temas pertinentes e relevantes. Tal é o caso, por exemplo, das
questões antropológicas que, simultaneamente, ignoram a existência de
dois sexos e discriminam o sexo feminino.

7 Ibidem: 104.
8 Cf., Ibidem: 96.
38 Fernanda Henriques

Se, por outro lado, também acreditarmos com Paul Ricoeur que “La
classe d’école est à cet égard un lieu privilégié de déplacement de points
de vue de la mémoire”9, teremos de reconhecer que é necessário assumir
a responsabilidade ético-política de construir uma justa memória sobre a
temática das mulheres e do feminino que possa sustentar novos pontos de
vista autorizados e ensinados.

3 – Há uma outra dimensão do pensamento ricoeuriano que permitirá


salientar a importância de construir uma memória crítica para os Estudos
Feministas: trata-se da problemática da identidade e do reconhecimento.
A questão do trop e do trop peu de memória como um desvio a uma
memória crítica, prende-se, igualmente, com a maneira de conceber a
identidade que, do ponto de vista de Paul Ricoeur, está indelevelmente
ligada ao tempo, por ser concetualizada como identidade narrativa, mas
também ligada ao reconhecimento e à vulnerabilidade, do mesmo modo
indelével. Na verdade, para Ricoeur, a relação identidade-reconhecimento
é originária, sendo a categoria de identidade narrativa que assegura o
primeiro reconhecimento necessário, expresso na articulação entre identi-
dade e reconhecimento de si.
Esta posição, aliás, articula-se com outras linhas teóricas do pensar ri-
coeuriano, nomeadamente a ideia de que o saber de si de uma subjetivi-
dade corporal – de um Cogito ferido – só pode realizar-se através da
mediação hermenêutica e nunca por um saber direto, intuitivo. No caso
vertente, a tónica é posta na ideia de que são as narrativas históricas e de
ficção de uma cultura que possibilitam o acesso à identidade quer dos
indivíduos quer das comunidades.
Nesse sentido, identidade, reconhecimento e tempo constituem uma
trilogia hermeneuticamente interligadas, sendo, para além disso – ou por
causa disso – marcadas pelo traço inapagável da precariedade ou vulne-
rabilidade. Num certo sentido, a conceção ricoeuriana de identidade
narrativa é mesmo a perspetiva mais paradigmática do traço de vulnera-
bilidade que marca toda a compreensibilidade humana.
Desde o seu aparecimento no final de Temps et Récit III, a identidade
narrativa funciona como uma hipótese teórica permitindo a articulação
de duas espécies de narrativa – a da história e a da ficção. A categoria
identidade narrativa é, como Paul Ricoeur lhe chama, um rejeton, ou
seja, um produto, simultaneamente, princípio de solução e problema,
resultante de um longo percurso através da narrativa histórica e da narra-

9 Ibidem: 148.
Filosofia e Género 39

tiva da ficção, que Temps et Récit consubstancia. Deste modo, a ligação


da identidade ao tempo está nela incrustada desde o seu aparecimento,
pelo que a emergência da problemática da identidade se dá, pois, na
radicação aporética da problemática da temporalidade e, como conse-
quência, eivada da mesma vulnerabilidade. Em Soi-même comme un
Autre, Paul Ricoeur desenvolve sistematicamente esta problemática, no
quadro da hermenêutica do si mesmo, mantendo quer a dimensão de
fragilidade constitutiva inerente à ideia de identidade narrativa, quer a sua
inscrição na temática da temporalidade.
Em La mémoire, l’histoire, l’oubli, retomam-se estes pontos de vista
da fragilidade da identidade e da sua inscrição temporal, esta última
tratada no quadro da memória e da história, afirmando mesmo Ricoeur
que “a primeira causa da fragilidade da identidade é a sua difícil relação
ao tempo” e acrescentando o papel determinante da memória na constru-
ção da identidade10. Por essa razão, continua a dizer que o cerne desta
problemática da identidade está ligado à mobilização da memória.
Mas há uma outra posição de Paul Ricoeur que pode ajudar a aprofun-
dar a compreensão deste papel da memória na construção da identidade –
trata-se da posição do autor sobre a relação entre a interpretação dos
textos e o saber de si, do si mesmo. O percurso sobre a sua obra dá conta
daquilo que para ele é essencial no saber de si: compreender-se é com-
preender-se perante um texto. Assente na recusa de que o saber de si de
uma subjetividade corporal possa ser acessível a qualquer tipo de intui-
ção, Paul Ricoeur introduzirá a mediação pelos textos como um percurso
insuperável nesse objetivo.
Esta posição ricoeuriana que acentua, em simultâneo, a fragilidade da
identidade, a sua constitutiva dimensão temporal e a sua intrínseca de-
pendência da textualidade – e, portanto, dos legados que a tradição dispo-
nibiliza a cada qual para se organizar como um ser capacitado para a
responsabilidade, mas também para ser um sujeito de direitos – volta a
permitir defender como legítima e necessária uma outra abordagem da
nossa tradição. É neste quadro que penso que se poderá contextualizar o
que Paul Ricoeur diz em Parcours de la Reconnaissance a propósito
desta relação entre identidade e reconhecimento, no âmbito de certos
tipos de discriminação.
Nessa obra, Ricoeur diz que os movimentos feministas contribuíram
para popularizar o tema do reconhecimento, acrescentando que eles
fizeram uma reivindicação sobre uma identidade específica que queria ser

10 Paul Ricoeur, La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit.: 98.


40 Fernanda Henriques

reconhecida como coletiva para poder permitir que os seus membros


individuais atingissem a estima de si mesmos. Nesse contexto, Ricoeur
explicita a importância do reconhecimento para a formação da nossa
identidade, dizendo duas coisas:

uma dimensão temporal «qui embrasse des discriminations exercées


contre ces groupes dans un passé qui peut être séculaire»11.
ário fazer uma discrimination inversée em relação a
esses grupos.

Nesta perspetiva, chega-se a outro momento determinante desta refle-


xão e que se concretiza na seguinte interrogação: poderão as narrativas da
história da filosofia e as da cultura em geral ajudar as mulheres a ter a
possibilidade de se construírem como identidade – tanto individual, como
coletivamente – em termos de equilíbrio humano e de positividade? Por
outras palavras: há manifestações de reconhecimento positivo das mulhe-
res e do feminino, nos textos, nas teorias e nas explicações que a tradição
ocidental põe ao seu dispor para se identificarem como mulheres?
Não creio que a resposta a esta interrogação possa ser afirmativa. Pelo
contrário, penso que a memória coletiva que vamos construindo na nossa
sociedade é absolutamente consonante com a afirmação de Ricoeur de haver
grupos cuja identidade foi discriminada dans un passé qui peut être séculaire
e em relação aos quais é necessário fazer uma discrimination inversée. Nesse
sentido, penso que é urgente ensaiar novos percursos hermenêuticos pelo
nosso passado cultural e filosófico, uma vez que, tal como as conhecemos, as
visões sobre o feminino e sobre as mulheres não lhes permitem ter bons
referenciais para se identificarem como grupo humano em termos de equilí-
brio igualitário, sendo necessário erncontrar outros e diferentes pontos de
vista para superar esse passé séculaire de discrimination.

4 – Esta grande importância dado ao par identidade-reconhecimento


assume um grande relevo, desde o final da década de 80, através de
alguma filosofia política que se tem adentrado na problemática do reco-
nhecimento como forma de atingir um maior grau de equilíbrio e de
justiça na vida coletiva. Tal é o caso de Axel Honneth e de Charles Tay-
lor, para quem o reconhecimento intersubjetivo é a condição determinan-
te para a constituição efetiva de um processo identitário não distorcido12.

11 Paul Ricoeur, Parcours de la Reconnaissance, Paris, Stock, 2004: 311.


12 Charles Taylor, “The politics of recognition”, in Charles Taylor, Multiculturalism:
Filosofia e Género 41

A Charles Taylor interessa-lhe a relação do reconhecimento com a


identidade das culturas, relação essa que analisa através da ideia de
autenticidade. Uma vez que a identidade tem a ver com saber o que se é,
em relação aos outros, Taylor defende que é o reconhecimento que de-
termina de modo significativo a construção dessa compreensão de si ou
identidade. É no contexto das interações que as identidades se constroem.
Os outros, o seu olhar, determinam o modo como me olho e me avalio. Se
não há reconhecimento – no sentido de valoração positiva – essa não
valorização é interiorizada e torna-se opressora, levando à inautenticida-
de. Nesse sentido, ele defende a necessidade de serem criadas condições
societais para que se possam fazer reivindicações de reconhecimento, no
caso das diferenças culturais, de maneira a que as culturas – e os indiví-
duos, dentro delas – possam ser fiéis a si mesmos e aos seus ideais de
autenticidade.
O percurso de Axel Honneth – certamente a mais completa sistemati-
zação sobre a questão de reconhecimento – tem origem na perspetiva
hegeliana, aliás, bem indiciada no título da sua obra – luta pelo reconhe-
cimento. O importante no enraizamento desta abordagem é que, ao con-
trário da perspetiva Hobbesiana em que o princípio humano básico é o da
auto-preservação, põe em evidência que o reconhecimento é o elemento
decisivo da busca humana de ser. Nesse sentido, Honneth irá organizar
uma gramática dos conflitos sociais assente na ideia de que o não-
-reconhecimento (o desrespeito) é a determinação da dinâmica social das
resistências e dos conflitos. A obra de Honneth propõe três graus ou
esferas de reconhecimento: amor, direito e solidariedade que permitem,
respetivamente, a confiança em si mesmo, a autonomia e a imputabilida-
de e a estima social. É a dialética destas esferas que determina quer a
integração dos indivíduos e dos grupos na vida social quer a sua margina-
lização e exclusão com os consequentes conflitos e resistências.
Num certo registo crítico desta preponderância da temática do reco-
nhecimento, situa-se a voz feminista de Nancy Fraser13 que denuncia que

examining the politics of recognition. Ed. Amy Gutmann, Princeton, New Jersey,
Princeton University Press, 1994. Axel Honneth, The struggle for recognition: the
moral grammar of social conflicts, Cambridge, Polity Press, 1995.
13 O confronto Fraser e Honneth materializou-se na obra já clássica: Nancy Fraser
and Axel Honneth, Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical
Exchange, Londres-Nova Iorque, Verso, 2003. Porventura, em termos da possível
influência do pensamento feminista nas teorizações mais alargadas, este exemplo
seja muito eloquente por poder marcar como a situação atual das pensadoras
feministas se vem consolidando – perspetiva que, de alguma maneira, defendo na
segunda parte.
42 Fernanda Henriques

o reconhecimento seja uma base suficiente para garantir condições de


justiça social, propondo um pensamento alternativo que considere não
apenas as questões do reconhecimento mas também as da redistribuição14.
Para ela, uma teoria crítica do reconhecimento tem de assumir dois tipos
de injustiça: a injustiça cultural ou simbólica e a injustiça económica, que
não se identificam nem se dissolvem uma na outra. A primeira relaciona-
-se com os padrões culturais de representação social, tendo a ver com a
dominação, a invisibilidade ou o desrespeito e podendo ser remediada por
mudanças culturais e simbólicas. A segunda relaciona-se com a explora-
ção, a marginalização económica ou a privação de uma vida social digna
e só poderá ser mitigada por uma reestruturação político-económica.
No quadro de uma abordagem crítica do reconhecimento, Nancy Fra-
ser propõe dois tipos de medidas corretoras que atravessam o binómio
reconhecimento-redistribuição: as medidas de afirmação e as de trans-
formação. As primeiras querem reduzir os efeitos desiguais sem abalar as
estruturas que os sustentam. As segundas querem o mesmo objetivo mas
exatamente pela intervenção ao nível das estruturas.
Em termos de síntese, poder-se-á dizer que a complexa posição defen-
dida por Nancy Fraser assenta, em primeiro lugar, numa análise bidimensi-
onal do problema da justiça social, estabelecendo a necessidade de o abor-
dar quer pela via cultural do reconhecimento quer pela via económica da
redistribuição da riqueza, propondo o modelo de estatuto como pólo orga-
nizador; e, em segundo lugar, através desse modelo de estatuto, configurar
uma perspetiva triádica de resposta, defendendo que uma posição efetiva
de justiça tem de atender a três dimensões: (1) a económica (redistribui-
ção), (2) a cultural (reconhecimento e (3) a política (representação).
A sua denúncia da unilateralidade das perspetivas centradas apenas no
reconhecimento baseia-se em dois aspetos essenciais: (1) o perigo de uma
acentuação psicologizante do problema e (2) a sua tendência a uma

14 A minha análise vai centrar-se essencialmente nas seguintes obras da autora:


“From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a 'Postsocialist'
Age”, New Left Review I/212 (July-August 1995): 68 – 93); “Mapeando a
imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação”,
Rev. Estudos Feministas, Florianópolis, v.15, n.2 (2005): 291-308. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
-026X2007000200002> Acesso em 20 out. 2011; “Recognition without Ethics?”,
Theory, Culture & Society, n.º 18 (June 2001): 21-42; “Rethinking Recognition:
Overcoming Displacement and Reification in Cultural Politics”, New Left Review
3 (May/June 2000): 107-120; “A justiça social na globalização: redistribuição,
reconhecimento e participação, Revista Crítica de Ciências Sociais, 63 (Outubro
2002): 7-20.
Filosofia e Género 43

reificação da cultura. Estes dois aspetos confluem numa situação de


possível contradição mútua e podem levar a não atingir o objetivo de
partida – a obtenção de uma maior justiça social. Ou seja, enquanto uma
política unilateral de reconhecimento promove a diferenciação dos grupos
e, muitas vezes, fecha esses grupos – reificando-os e homogeneizando-os
– uma política de redistribuição tende a desestabilizar essa diferenciação
e a relativizá-la, podendo, por isso, entrar num conflito dilemático. Do
seu ponto de vista, o modelo de estatuto pode permitir ultrapassar o
dilema, por cinco razões fundamentais: (1) impedir o perigo da essencia-
lização das identidades, por não as acentuar unilateralmente como um
valor em si, (2) impedir também o perigo de colocar uma ‘reengenharia
das consciências’ no lugar da promoção das mudanças sociais, uma vez
que se define no plano institucional das normas e não nas relações inter-
subjetivas, (3) valorizar a interação entre os grupos e não o seu fechamen-
to, na medida em que defende a paridade da participação, (4) como
consequência da anterior razão, o modelo de estatuto evita a reificação
das culturas com a sua consequente estagnação e desenvolvimento de
possibilidades opressoras e (5) finalmente, tal modelo pode entrar no
debate político-social no âmbito estrito da justiça, numa dimensão deon-
tológica-moral, sem invadir o nível teleológico-ético da vida boa.

5-Será que a crítica de Fraser pode atingir a importância da construção


de uma memória crítica para os Estudos Feministas?
No meu entender, não só não o faz, como até lhe pode dar um maior
respaldo. Na verdade, sem entrar no plano total do debate que envolve a
discussão Fraser-Honneth, que fica fora do âmbito desta investigação,
penso que a proposta de análise feita pode integrar as críticas de Fraser,
porque o que está para mim em causa é algo equivalente ao que ela
designa de modelo de estatuto. Efetivamente, pode haver – e há – uma
dimensão subjetiva e intersubjetiva subjacente à posição que defendo de
se narrar a nossa história cultural e filosófica de outra maneira para se
proporcionar às mulheres uma imagem de si com maior riqueza e digni-
dade. Todavia, o meu objetivo quer ir mais longe e proporcionar a outros
textos, outras temáticas e outras perspetivas teóricas uma dimensão de
cidadania, facultando o acesso a uma “herança” de empoderamento, pelo
que o que estará em causa é a configuração de um outro estatuto teórico,
quer para as representações das mulheres e do feminino, quer para o
sentido dos seus debates alargando a quota da sua representação no palco
da história da cultura e do pensamento. Nesse quadro, e retomando de
novo a perspetiva de Nancy Fraser acerca do tipo de medidas com que se
pode querer corrigir efetivamente as injustiças, diria que raconter autre-
44 Fernanda Henriques

ment a nossa tradição cultural e filosófica constitui uma medida de


transformação, porque, ao permitir abalar uma consciência histórica
canónica e discriminadora, abre caminho a uma outra construção de
sentido. Nesse quadro, orientada pela ideia de que uma efetiva consci-
ência histórica obriga a uma re-interpretação do significado do lugar co-
mum da invisibilidade das mulheres ao longo da História, ou da sua
submissão pacífica e universal, a segunda parte deste livro propõe-se
discutir temas, textos e perspetivas que possam constituir-se como
subsídios para uma outra abordagem da tradição ocidental, apresen-
tando outras narrativas sobre ela.
4 – É POSSÍVEL NARRAR O PASSADO
FILOSÓFICO DE OUTRA MANEIRA?

Assente nos pontos anteriores parece líquido reconhecer a importância


de se procurar outra herança diferente da do pensamento dominante
para caldear a imagem transmitida e assimilada pela nossa cultura sobre
a questão do feminino e das mulheres. Assim, o que se procurará fazer
agora é mostrar que essa necessidade é filosoficamente legítima e
possível.
Esta posição não é pacífica, mesmo nos quadros do pensamento femi-
nista. Muitas perspetivas reputarão de inútil ou mesmo impossível tentar
resgatar outra memória do passado. E, certamente, como referi antes, ela
será designada de conservadora. Penso que é mais ou menos pacífico
dizer que essa será a visão de quem defende a alteridade absoluta do
feminino, como é, por exemplo, o caso de Luce Irigaray, para quem um
projeto de tentar ressignificar alguns passos da tradição não só pode ser
irrelevante como pode ser mesmo prejudicial, [porque] a tarefa não é
elaborar uma nova teoria de que a mulher seria o sujeito ou o objeto,
mas travar a própria maquinaria teórica, suspender a sua pretensão a
produção de uma verdade e de um sentido demasiado unívocos.1

1 – Comecemos por uma legitimação epistemológica, centrada na


ideia de uma racionalidade finita e inclusiva que, como até aqui, se pro-
curará fundamentar a partir do pensamento hermenêutico em geral, mas
filtrado, no essencial, pela perspetiva de Paul Ricoeur.
No meu entender, a base essencial da racionalidade hermenêutica em
geral é a configuração de uma epistemologia da racionalidade que assume
a finitude humana como linha decisória2 – ou, como diz Grondin, depois

1 Luce Irigaray, “Poder do discurso, subordinação do feminino”, Ex aequo, 8 (2003):


45-55 – 51.
2 Cf., Jean Greish, L’âge herméneutique de la raison, Paris, Les Éditions du Cerf,
1985.
46 Fernanda Henriques

de Heidegger, a finitude é o único universal da filosofia3. No caso da


hermenêutica ricoeuriana, essa epistemologia da racionalidade alia à
finitude a ideia de inclusão, como documenta eficazmente a sua categoria
de Conflito de Interpretações, decorrente da aceitação de que o campo
hermenêutico é constitutivamente fragmentado.
Porque é que é importante esta perspetiva no interior da problemática
em causa?
o-
sar as nossas clássicas visões do mundo, as nossas habituais abordagens
dos problemas, os nossos canónicos adquiridos teóricos com os contribu-
tos das investigações que ao longo dos tempos ficaram nas margens e
sem influência no pensamento dominante e, por essa via, enriquecer as
perspetivas que a humanidade tem de si própria e do mundo. Neste con-
texto, o Conflito de Interpretações é absolutamente essencial, na medida
em que supõe a finitude da razão sem, no entanto, fechar as suas hipóte-
ses de procurar uma compreensão efetiva da realidade. O que está em
causa nesta perspetiva é a unilateralidade inerente a qualquer processo
hermenêutico, considerando que a sua força e legitimidade interpretativa
derivam exatamente dessa unilateralidade.
Esta ideia ricoeuriana emerge como categoria explícita na obra sobre
Freud, dos anos 604, assentando na ideia, já referida, de que o campo
hermenêutico é constitutivamente fragmentado, não concedendo, por
isso, à razão humana a capacidade de lograr encontrar uma plataforma
unificadora última. Desta maneira, a inteligibilidade do Conflito de
Interpretações decorre da suposição do carácter unilateral de todas as
hermenêuticas que, deste modo, ficam acantonadas a uma limitação
intrínseca, devendo, por isso, reconhecer que o seu valor e a sua legitimi-
dade resultam do assumir de uma inelutável limitação. Assim sendo, o
Conflito de Interpretações assenta no pressuposto de que a força de cada
hermenêutica advém de integrar a fraqueza de ser apenas válida dentro do
campo que definiu como o seu espaço interpretativo. Esta posição de
Ricoeur tem a sua raiz na ideia defendida pelo autor de que somos pós-
-kantianos e pós-hegelianos, simultaneamente e, portanto, temos o dever
teórico de os pensar em conjunto, sendo, na minha leitura, a expressão
mais clara de pensar Kant e Hegel um com o outro e um contra o outro.
Na verdade, por um lado, o Conflito de Interpretações recolhe a ideia

3 Cf., Jean Grondin, L’Horizon Herméneutique de la pensée contemporaine, Paris,


Vrin, 1993.
4 Paul Ricoeur, De l’interprétation. Essai sur Freud, Paris, Seuil, 1965.
Filosofia e Género 47

hegeliana do poder da negação no desenvolvimento da realidade e no seu


conceito, mas, por outro lado e ao mesmo tempo, enquanto representa o
recusar à razão humana a possibilidade de fazer uma rememoração total,
vai-se enraizar na perspetiva kantiana de considerar a dialética como uma
doença da razão. Trata-se, no fundo, de que é necessário escolher entre
hermenêutica e saber absoluto, posição que Paul Ricoeur deixa clara no
capítulo ‘Renoncer à Hegel’, do último volume de Temps et Récit5. Em
síntese, a sua tese é a seguinte: Hegel é a eterna tentação de quem procura
a compreensão do real e, ao mesmo tempo, a irremediável impossibilida-
de imposta pelas exigências de um pensamento crítico. É nesse quadro
que se inscrevem duas perspetivas que o filósofo não se cansa de repetir:
por um lado, é necessário ‘explicar mais para compreender melhor’ e, por
outro, ‘é sempre possível compreender de outra maneira’. Dito por outras
palavras, o processo de tratamento de uma questão desenvolve-se, consti-
tutivamente, no quadro de uma circularidade que progride apenas na
medida em que se abre ao diálogo com diferentes abordagens de um
mesmo campo teórico e com o contributo de campos teóricos diferentes
sobre a questão em causa. Não se trata, pois, em nenhuma circunstância,
de uma progressão linear e retilínea conducente a um produto concetual
totalmente unívoco e unificado6. Na sua força ontológica e epistemológi-
ca, o Conflito de Interpretações, como destino da racionalidade, instaura
a tensão e a luta como formas de fecundidade concetual e de força heurís-
tica, dando, portanto, à negação um poder positivo de transformação e de
desenvolvimento, desvelando a sua aposta em que apenas o encontro
aberto dos opostos e da fecundidade instaurada pelo seu confronto pode-
rão originar um efetivo progresso do saber e da compreensão do real7. Por
outro lado, ao instaurar a tensão e a luta como dimensões constitutivas de
uma racionalidade finita, a ideia de Conflito de interpretações tem uma
eficácia epistemológica, mas que, contudo, se enraíza no solo ontológico
da incomensurabilidade entre o pensar e o ser.

5 Paul Ricoeur, Temps et Récit III, Paris, Éditions du Seuil, 1985: 280-299.
6 Na sua obra dos anos 1955 – antes da formulação do seu pensamento hermenêutico
– Histoire et Vérité, já referida, Ricoeur exprimirá esta ideia dos limites da
racionalidade pela expressão ‘dialectique à synthèse ajournée’, para pôr em evi-
dência o modo de funcionamento de uma racionalidade finita.
7 A obra de Paul Ricoeur é a expressão desta sua perspetiva por pôr em confronto
pontos de vista opostos e daí extrair linhas de progressão racional que não são nem
sínteses superadoras, nem meios-termos ecléticos, mas plataformas de desenvol-
vimento que recolhem elementos de ambas as perspetivas confrontadas.
48 Fernanda Henriques

Esta ‘fé racional’ no poder do conflito interpretativo e na sua fecundi-


dade teórica legitima a busca de outros modos de interpretar velhas
questões filosóficas, nomeadamente algumas que são particularmente
caras aos Estudos Feministas, sobretudo, a integração da posição ricoeu-
riana autorizaria ou, mesmo, obrigaria à inclusão nas Histórias da Filoso-
fia dos resultados das pesquisas feministas em termos filosóficos, coisa
que, como já se disse, não acontece e as novas hipóteses de leitura ou
adquiridos teóricos continuam a ser apenas “para uso interno” dos Estu-
dos Feministas, não contribuindo, portanto, para qualquer renovação de
perspetivas.

Num outro quadro de análise, em La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paul


Ricoeur fornece novos elementos de compreensão do modo como uma
racionalidade finita funciona no processamento da elaboração cognitiva:
trata-se da forma como interroga o sentido da condição humana situada e
do seu modo de conhecer. Pergunta o autor: O que é compreender sob o
modo histórico?8, interrogação totalmente essencial por remeter para o
facto de que, fora da possibilidade de realizar uma reflexão total, o ser
humano se vê empurrado para um modo de conhecimento de si e do
mundo, no quadro da sua ‘condição histórica’, ou seja, ‘uma situação na
qual cada um se encontra sempre implicado’9, evidenciando a intrínseca
articulação hermenêutica entre enraizamento histórico e compreensão da
realidade.
Para os Estudos Feministas, qualquer destes pontos de vista é funda-
mental, porque aquilo que ambos evidenciam é a constitutiva inerência
entre a interpretação e o quadro concetual de que parte e que a legitima.
Isto é, põem de manifesto que a interpretação é sempre perspetivada e,
nesse sentido, importa ter em atenção, no produto interpretado, a deter-
minação das linhas de perspetivação que o sustentam. Para citar um caso
teórico exemplar, pode-se referir a questão do desenvolvimento moral,
onde importará confrontrar as posições defendidas por Kholberg e por
Gilligan, tema que se desenvolverá na segunda parte deste livro.
Como referido no capÍtulo anterior, na Introdução de O segundo sexo,
Simone de Beauvoir interroga-se sobre a diferença específica que a
discriminação das mulheres tem em relação à dos negros, dos judeus ou
mesmo à das classes sociais, explicitando que essa especificidade releva
do facto de que a discriminação de qualquer destes grupos “aconteceu”,

8 Paul Ricoeur: La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit.: 373.


9 Ibidem: 378.
Filosofia e Género 49

ao contrário da das mulheres que “n’est pas arrivée”10. Esta afirmação é


extremamente interessante e fecunda do ponto de vista especulativo,
embora seja discutível11. A fórmula a que Simone de Beauvoir recorre
para assinalar que a discriminação das mulheres não é passível de se
referir a um começo específico, nem a um quadro cultural determinador,
põe em evidência a necessidade da interrogação sobre a compreensão da
situação das mulheres no decurso da História Humana sobretudo porque,
imediatamente, ela parece ser, do ponto de vista da racionalidade, incom-
preensível. Como pode metade da humanidade ter dominado e discrimi-
nado a outra metade e, ao mesmo tempo, constituir com ela o sentido do
próprio desenvolvimento humano? E, por sua vez, como pode metade da
humanidade ter-se deixado dominar e discriminar pela outra metade e, ao
mesmo tempo, constituir com ela o sentido do próprio desenvolvimento
humano? Contudo, o texto de Simone de Beauvoir tem um valor constitu-
tivo essencial mais profundo porque pretende deslocar a análise da ques-
tão para o campo filosófico restrito – o da ambiguidade ontológica da
existência. Nesse sentido, o valor essencial de O Segundo sexo consiste
em pôr de manifesto que, nesta questão, não importa encontrar os possí-
veis ‘porquês’ da sua facticidade, mas sim desenrolar o seu ‘como’ com-
preensivo.
Neste quadro, considero essencial tentar pensar ‘como’ é que o desen-
volvimento histórico-cultural da humanidade pode legitimar tal situação,
pela enunciação de uma perspetiva reiteradamente reiterada do que é ser
mulher e do que é o feminino, e, também pela utilização de uma utensila-
gem teórica ela mesma reiteradora. E, por isso, a questão do Conflito de
Interpretações me parece tão determinante para os Estudos Feministas,
na medida em que ele explicita a necessidade do confronto interpretativo
para uma mais profunda compreensão da realidade, pondo em evidência
que uma razão finita tem, inevitavelmente, de ser aberta e inclusiva.

Ainda neste âmbito da finitude da racionalidade e das diferentes im-


plicações que ela contém, a filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur é um
fecundo recurso teórico. Lembremos, apenas três caraterísticas da sua
obra ou de referências paradigmáticas dela:
Antes de tudo, a sua célebre expressão “explicar mais para com-
preender melhor” que se contextualiza, habitualmente, no quadro do tema

10 Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe I, Paris, Gallimard, 1976: 20.


11 Ver a este respeito a interessante análise de Michel Kail, Simone de Beauvoir
philosophe, Paris, PUF, 2006.
50 Fernanda Henriques

do sentido epistemológico das Ciências Humanas12. Paul Ricoeur retoma


o tema diltheyano depois do percurso de demarcação da interrogação
epistemológica desenvolvido por Heidegger, querendo salientar que a
relação entre explicar e compreender não decorre de dois quadros episte-
mológicos diferentes – o das Ciências Naturais e o das Ciências Humanas
– e, pelo contrário, constitui-se como dois momentos inseparáveis destas
últimas.
Contudo, a este nível, a expressão de Paul Ricoeur interessa-me com
outra dimensão ligada ao próprio sentido do texto que aponta para “com-
preender melhor”, mas não para compreender totalmente, indicando a
tarefa humana da compreensão como uma tarefa infinita.

“é sempre possível dizer o mesmo de outra maneira”, ideia que é muito


desenvolvida no quadro da temática da tradução que, sendo, embora, um
tema mais ou menos tardio no pensamento do autor, não só assume todas
as posições centrais desse pensamento como transforma o paradigma da
tradução num paradigma fecundo enquanto recurso teórico de análise13. E
o paradigma da tradução é corporizado pela ideia de que “a tradução é
uma equivalência sem identidade”14, marcando-a também com a dimen-
são da incompletude constitutiva. Retomando a afirmação de Ricoeur, ela
explicita claramente que não há compreensão absoluta e que temos de nos
enfrentar com a hipótese que haja sempre uma outra compreensão possí-
vel e legítima.

que marca a impossibilidade de um terceiro absoluto e, portanto, exclui a


ideia da possibilidade das mediações perfeitas. Essa dimensão ternária
tem a sua primeira expressão na projeto filosófico que o autor apresentou
em 1950, a Filosofia da Vontade, e onde propunha três momentos de
abordagem: uma Eidética, uma Empírica e uma Poética.

12 Cf., Paul Ricoeur, “Qu’est-ce un texte?”, in Paul Ricoeur, Du texte à l’action.


Essais d’herméneutique II, Paris, Seuil, 1986: 137-182.
13 É o caso, por exemplo, da prática psicanalítica. Em Itália, onde, aliás, Domenico
Jervolino tem defendido a relevância do paradigma da tradução na obra de Paul
Ricoeur, há um grupo de investigação constituído por psicanalistas e especialistas
de Paul Ricoeur que exploram esta ideia. Alguns dos seus trabalhos foram apre-
sentados no Colóquio internacional PAUL RICOEUR E “LES PROCHES”: VIVERE E
RACCONTARE IL NOVECENTO, realizado em Roma e Messina, de 23 a 27 de
setembro de 2013.
14 Paul Ricoeur, Sur la Traduction, Paris, Bayard, 2004.
Filosofia e Género 51

2 – Uma segunda linha legitimadora do sentido de se poder narrar o


passado de outra maneira corresponde a um caminho antropo-epis-
temológico, sendo conduzida ainda pela mão de Ricoeur e da sua perspe-
tiva sobre a capacidade humana de iniciativa

Quando se afirma que se deve narrar de outro modo a nossa tradição,


isso supõe, para além de um quadro epistemológico estrito, uma outra
dimensão que, continuando a caber no campo da epistemologia, releva
igualmente da antropologia, nomeadamente da conceção ricoeuriana da
capacitação humana para fazer surgir alguma coisa de novo no mundo –
que articula duas temáticas essenciais: a de ‘l’homme capable’ e a do
presente como iniciativa.
A questão da capacitação humana, embora sem essa designação, esta-
va já inscrita em Le volontaire et l’involontaire15, quando, ao analisar o
ato voluntário, Paul Ricoeur o colocava no quadro de uma liberdade
situada entre a pura espontaneidade e a total determinação. Dizia, então,
que ‘vouloir n’est pas créer’ e que ‘vouloir n’est pas subir’. Contudo, essa
situação de “entre” espontaneidade e determinação própria de uma liber-
dade corporal é marcada por uma dimensão de atividade essencial. Na
verdade, a estrutura triádica de Le volontaire et l’involontaire termina
com a ideia do Consentimento como o gesto humano decisivo de assun-
ção da sua finitude e da sua pertença a um mundo que o engloba e o
ultrapassa, mas não o destrói. A liberdade e a iniciativa humanas só têm
efetivação real se assumirem as consequências do seu enraizamento
existencial. Ter um corpo é ter, simultaneamente, poderes e não-poderes,
sendo que é na aceitação ou consentimento dos não-poderes que o poder
ou capacidade humana pode concretizar-se. Este é, aliás, o solo que
dinamiza o texto muito posterior de Paul Ricoeur La liberté selon
l’espérance16. Todavia, é em Soi-même comme un autre17 que o tema da
capacitação humana é tratado, no quadro da expressão ‘eu posso’, cuja
intencionalidade final é de pôr em evidência a capacidade humana para a
responsabilidade.
É esta posição de Ricoeur que lhe pode permitir considerar que é pos-
sível sonhar com uma história aberta a encontrar ‘as dimensões ainda não
exploradas do passado’. Diz o autor:

15 Paul Ricoeur, Le volontaire et l’involontaire, Paris, Aubier-Montaigne, 1950.


16 Paul Ricoeur, Le Conflit des Interprétations. Essais d’herméneutique, Paris, Seuil,
1969: 393-415.
17 Paul Ricoeur, Soi-même comme un autre, Paris, Éditions du Seuil, 1990.
52 Fernanda Henriques

Porque é que na passagem do futuro ao passado, o presente não seria o


tempo da iniciativa, isto é, o tempo em que o peso da história já está
arquivado, suspenso, interrompido e em que o sonho de uma história
ainda a fazer é transformado em decisão responsável?18
O que parece estar em jogo nesta citação é aquilo que se referia antes
sobre “é sempre possível dizer o mesmo de outra maneira”, afirmação
que representa a negação da possibilidade das mediações perfeitas.
Em termos do “fazer da história”, esta dimensão da iniciativa humana
é explorada por Paul Ricoeur, na base da inspiração de Reinhart
Koselleck, através das suas categorias de ‘espaço de experiência’ e ‘hori-
zonte de expectativa’, para referenciar a relação humana com o tempo
histórico. A compreensão ricoeuriana da condição histórica da humanida-
de passa pelo modo como instrumentaliza conceptualmente essas meta-
-categorias e como as subsume na perspetiva do presente como iniciativa.
Neste sentido, a iniciativa humana é vista como a sua capacidade de
começar algo, ainda que este começar seja donner aux choses un cours
nouveau, à partir d’une initiative qui annonce une suite et ainsi ouvre
une durée. Commencer, c’est commencer de continuer […].19
Na verdade, o texto acima citado põe de manifesto o modo como Paul
Ricoeur tematiza a relação entre passado e futuro na constituição do
nosso ser e do fazer da História.
Trata-se de relevar que há uma articulação fundamental entre o futuro
e o passado, embora essa articulação não seja de determinação liminar. É
como se se pensasse que cada futuro tem um passado próprio, que se
constitui como a sua condição possibilitante. Isto é, não há uma simetria
direta entre passado e futuro, até porque o passado não é algo fixo, imu-
tável, completamente dado. Pelo contrário, diz o autor: É preciso reabrir
o passado, reviver nele as potencialidades não cumpridas, bloqueadas,
mesmo destroçadas20.
Por outras palavras, somos seres afetados pelo passado e essa afeção
marcará o nosso futuro. Todavia, tal afeção não é uma marca indelével ou
um destino. É necessário trabalhar o passado como ‘espaço de experiên-
cia’, de maneira a transformá-lo numa tradição viva, exercendo o presen-
te como iniciativa, reabrindo-o e desocultando nele outras possibilidades
e direções. Por isso, é possível acalentar o ‘sonho de uma história ainda a
fazer’ ao nosso alcance e da nossa responsabilidade. O futuro é um ‘hori-

18 Paul Ricoeur, Temps et Récit III, op. cit.: 301.


19 Ibidem: 333.
20 Ibidem: 313.
Filosofia e Género 53

zonte de expectativa’, um pas encore, mas, como diz o texto, há um


trânsito entre futuro e passado. Nessa medida, os horizontes de expecta-
tiva não devem ser puramente utópicos, sem qualquer enraizamento ou
ressonância no passado, tornando-se fundamental desenvolver uma
investigação do passado no sentido de libertarmos as suas potencialida-
des não realizadas e mesmo bloqueadas e, a partir delas, configurar
novos horizontes de expectativa. Ou, como diz Ricoeur, há que ter em
conta que «le faire fait que la réalité n’est pas totalisable.» 21, o que
remete, de novo, para a ideia de que as ‘mediações imperfeitas’ são a
nossa estrutura matricial de inteligibilidade e, ao mesmo tempo, para a
possibilidade de conceber como possível e legítima a hipótese de procu-
rar um passado que possa ser correlacionado com um futuro onde as
questões de género, seja qual for a sua amplitude, possam figurar como
temáticas académicas inscritas, de direito, no cânone dos estudos gerais
e, nomeadamente, nos estudos filosóficos. Para isso, como se citava
antes, basta ‘dar às coisas um curso novo’ ou, ainda, continuar uma
tradição, mas com um novo começo, um começo que liberte todas as
vozes que ao longo dos tempos questionaram, refletiram e se posiciona-
ram sobre a natureza humana no feminino, muitas vezes em termos
polémicos ou contraditórios.
Para compreender melhor a posição de Paul Ricoeur importa recupe-
rar a articulação explícita que faz entre Memória e História, em La mémo-
ire, l’histoire, l’oubli, como se referiu no capítulo anterior, onde o autor
reitera a importância de procurar narrativas outras do passado para a
abertura de outros futuros possíveis e onde afirma que […]o meu livro é
uma defesa da memória como matriz da história, na medida em que ela é
a guardiã da problemática da relação representativa do presente ao
passado.22
É também nesse quadro que fala de trop e trop peu de memória em
relação a algumas situações históricas, para salientar que se trata de um
deficit de crítica, em ambos os casos. Para Paul Ricoeur tanto o abuso de
memória como o abuso do esquecimento representam dois extremos
indesejáveis que devem ser superados pelo dever de uma justa memória.
E porquê? Porque, sendo a memória a matriz da história, ela serve a
história e esta, por sua vez, consolida e perpetua uma memória determi-
nada, ou melhor, legitima uma certa memória, escamoteando (recalcando)
outras memórias possíveis, sendo, ainda, no quadro desta mesma perspe-

21 Ibidem: 334.
22 Paul Ricoeur, La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit.: 106..
54 Fernanda Henriques

tiva que se situa a sua interrogação de porque é que “o presente não


poderá ser o tempo da iniciativa”, mostrando, por um lado, a necessidade
de se recolherem narrativas várias do passado e, por outro, a possibilidade
de isso ser possível de ser feito a partir da conceção do presente como
iniciativa.

No fundo, o relevante para o que aqui é o caso, é a afirmação da di-


mensão não totalmente passada do passado.
Num texto de grande agudeza teórica, Le pardon peut-il guérir?, Paul
Ricoeur trata diretamente esta questão. O quadro em que se situa é parale-
lo ao que é convocado para articular a Memória e a História e, também,
da interpretação que faz do pensamento de Freud.
Paul Ricoeur explora a posição freudiana sobre o recalcamento de re-
cordações traumáticas que são substituídas por comportamentos de repe-
tição. Este comportamento concretiza-se na recusa de olhar para a ferida
e para o trauma, implicando a passagem à ação repetitiva para que não se
recorde aquilo que aconteceu e nos fere. No mesmo contexto, apropria-se,
igualmente, da ideia freudiana da impossibilidade de esquecer um objeto
perdido, situação que determina uma fixação que impede que cada sujeito
se liberte do objeto que perdeu e faça o seu luto – ou seja, separe o seu eu
do objeto perdido –, para poder partir para novos investimentos afetivos.
Em ambos os casos, estamos perante uma estrutura de comportamento
rígido, não criativo, nem realizador.
Será a partir do tema do perdão que Paul Ricoeur procurará acercar-se
de um uso crítico da memória que, como se viu, representa, simultanea-
mente, a superação da falta de memória ou esquecimento excessivo e do
excesso de memória, permitindo o trabalho da lembrança e a narrativa
das histórias do passado do ponto de vista do outro também implicado.
Diz o autor:
[…]o que é que, nesta circunstância histórica, corresponderia àquilo
que Freud denominou trabalho da lembrança? Não hesito em respon-
der: um uso crítico da memória.
Como é possível este uso? É preciso realçar aqui que é na narrativa
que a memória é levada à linguagem. […]É, pois, ao nível da narrativa
que se exerce primeiro o trabalho da lembrança. E a crítica ainda ago-
ra evocada parece-me consistir no cuidado em contar a outrem as
histórias do passado, em contá-las também do ponto de vista do outro –
outro, meu amigo ou meu adversário. Este rearranjo do passado, con-
sistindo em contá-lo a outro e do ponto de vista do outro, assume uma
importância decisiva, quando se trata dos acontecimentos fundadores
da História e da memória comum. É a este nível que a compulsão de
Filosofia e Género 55

repetição oferece a maior resistência; é a este nível também que existe


o mais difícil trabalho de lembrança.23
Como é então possível narrar o passado de outra maneira? No quadro
do tema do perdão – que articula com o de dívida – trata-se de uma
reconversão do sentido do passado. O passado, esse “já não”, contudo
persistente, não está fechado, encerrado, cumprido; pelo contrário, dirá
Ricoeur, para nós, leitores da História, o passado aparece-nos povoado
de projetos, muitos dos quais ficaram incumpridos, fazendo assim da
História, o grande cemitério das promessas, não mantidas, do passado24.
No meu entender, quer este narrar da perspetiva do outro – que pode
ser adversário – quer a ideia dos projetos e promessas incumpridas do
passado são bases fundamentais para procurar no passado sinais que
permitam apetrechar os Estudos Feministas de memória crítica. Na ver-
dade, parece ser possível e legítimo oferecer a mulheres e homens uma
visão do passado que se constitua como um novo ‘espaço de experiência’
teórica capaz de gerar novos ‘horizontes de expectativa’, porém, uma
expectativa que não seja puramente utópica e sim bem enraizada em
todos os acontecimentos passados que um certo cânone tem bloqueado e
impedido. Se como dizia Ricoeur, o passado tem potencialidades não
cumpridas e, portanto, como ele não é imutável, é possível e legítimo
reabri-lo e chamar à cena novas personagens ou novos textos, então, criar
um novo trânsito entre futuro e passado, no qual as investigações sobre as
mulheres não estejam excluídas ou acantonadas num gueto é legítimo e
fecundo.
É este conjunto de posições que permitem sustentar a linha interpreta-
tiva da leitura proposta na segunda parte deste livro de procurar outras
interpretações da nossa herança cultural e filosófica, porque ela chama a
atenção para o facto de que a perpetuação de um ponto de vista único
sobre o passado acaba por destituir a possibilidade de outras perspetivas
(memórias) tornando o passado encerrado, fechado e fazendo dele uma
tradição morta, ao mesmo tempo que reenvia à nossa responsabilidade
fazer de outra maneira.
No que respeita às designadas questões de género, este ponto de vista
tem-se convertido numa ‘memória ensinada’ que silencia ou minimiza o
contributo das mulheres para o desenvolvimento da cultura e da história e
desfaz a própria possibilidade de algumas interrogações que interessam

23 Fernanda Henriques (org.), Paul Ricoeur e a simbólica do mal, Porto, Porto


Editora, 2005: 37.
24 Ibidem: 38.
56 Fernanda Henriques

vivamente aos Estudos Feministas se poderem constituir como temas


pertinentes e relevantes. Tal é o caso, por exemplo, das questões antropo-
lógicas que, simultaneamente, ignoram a existência de dois sexos e
discriminam o sexo feminino. Esta aparente contradição é possibilitada
porque, por um lado, os textos que fazem a nossa memória coletiva e
ensinada falam de natureza humana em geral, sem diferenciações, mas
pensam-na a partir do masculino como modelo ou como pretenso univer-
sal neutro; por outro, há um ruído de fundo também incorporado na
memória coletiva e ensinada de que o feminino se define por derivação
do masculino e em relação a ele e, portanto, antropologicamente, as
mulheres são seres definidos pela falta, pela carência, seja na posição
aristotélica, seja na de Freud, para referir apenas os dois exemplos mais
paradigmáticos, tendo-se transformado o constructo vencedor em norma,
originando, ao mesmo tempo, uma espécie de naturalização de um único
ponto de vista explicativo.
A questão antropológica é um nó problemático central para se chegar
a pensar com equidade a relação entre os sexos, sendo nesse âmbito que
se enquadra a coleção dirigida por Nancy Tuana, cujo objetivo é uma
releitura do cânone filosófico à procura de um subtexto de género que tal
cânone, afinal, sempre incorporou, muitas vezes sem o explicitar. Esse
trabalho de releitura dos textos clássicos da filosofia não só traz à ribalta
a profunda responsabilidade da filosofia nas representações sociais do
feminino e das mulheres, como também põe em evidência que as posi-
ções filosóficas não são neutras e que o seu pretenso universal não teve
em linha de conta, pelo menos, metade da humanidade.
SEGUNDA PARTE

OUTRAS NARRATIVAS
SOBRE A TRADIÇÃO OCIDENTAL
INTRODUÇÃO

1 – Numa obra de Teologia Feminista, coordenada por Ann Loades,


Phyllis Trible, num pequeno texto sobre hermenêutica feminista relacio-
nada com os estudos bíblicos1, identifica três modos de aproximação ao
estudo das mulheres na Escritura. As primeiras feministas queriam identi-
ficar a situação das mulheres, trazendo à luz as suas vidas oprimidas,
mostrando e criticando uma cultura patriarcal. O desenvolvimento desta
primeira abordagem vai evoluir para uma segunda fase que, para além da
primeira tarefa, vai realizar uma outra que consiste em descobrir e deso-
cultar textos e tradições que foram sendo deixados no esquecimento,
como é o caso, por exemplo, dos textos referindo-se a Deus com imagens
femininas e das narrativas acerca das intervenções de mulheres na histó-
ria do povo. Ao contrário da primeira fase, que acentuava, sobretudo, a
dimensão de passividade das mulheres dando-lhes visibilidade, mas não
protagonismo, esta segunda alarga-se a mostrar as mulheres já como
interventivas no desenrolar dos acontecimentos. Este alargamento de
perspetiva é fundamental, porque inicia um percurso de ressignificação
do papel e do estatuto das mulheres e abre caminho para a construção de
novas representações sociais do feminino. Finalmente, uma terceira
abordagem liga-se, especialmente, a uma releitura dos textos, mesmo
daqueles em que as mulheres são maltratadas. A isto chama a autora
‘contar de novo, in memoriam’.
Creio que é pacífico dizer que estas três perspetivas de abordagem das
problemáticas ligadas às mulheres e ao feminino ocorreram em todos os
campos teóricos, sendo que, no meu entender, pode-se privilegiar uma ou
outra delas, mas não se pode, ainda hoje, ignorar nenhuma delas. Na
verdade, mesmo atualmente, tão necessário é sublinhar as estruturas
materiais ou simbólicas que explicam a subordinação social e política das
mulheres, como o é identificar um trabalho específico realizado por uma
mulher em qualquer área da vida social e que a história apagou, até

1 Phyllis Trible, “Hermenéutica Feminista y Estudios Bíblicos”, in Ann Loades (ed),


Teología Feminista, Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, 1997: 45-51.
60 Fernanda Henriques

porque é, porventura, do cruzamento das duas tarefas anteriores que


poderá emergir uma releitura dos acontecimentos. É esta dinâmica triádi-
ca que se desenvolverá nesta segunda parte.
2 – Por outro lado, em consonância com o que também ficou dito na
primeira parte, sobre a relação entre Filosofia e História da Filosofia,
optou-se por articular os conteúdos numa perspetiva histórica, enraizada
na posição de Paul Ricoeur, nomeadamente no que diz respeito à atenção
prestada à dinâmica interior ao próprio desenrolar da tradição, procuran-
do detetar ruídos emergentes e marginais ao corpo mais visível dessa
dinâmica. Nesse contexto, as leituras apresentadas têm uma estrutura
eminentemente temática, para melhor se poder encontrar raízes de algu-
mas interrogações que ainda hoje estruturam a pesquisa feminista e
também para poder surpreender a maneira como a emergência das ques-
tões sobre a igualdade entre mulheres e homens se organizou dentro da
dominância de algumas temáticas específicas, segundo as épocas, como é
o caso, por exemplo, do tema do acesso à educação, no quadro da moder-
nidade. Nesse sentido, o objetivo central será sempre duplo: compreender
a configuração da problemática, em cada momento histórico escolhido e,
simultaneamente, ver de que maneira a filosofia intervém. Esta posição
também releva da convicção de que não há oposição entre historicidade e
problematicidade, pelo contrário, qualquer problemática é melhor anali-
sada através da compreensão da sua emergência e dos seus desenvolvi-
mentos, situação que no caso dos Estudos Feministas é particularmente
relevante, uma vez que o fundamental, em cada momento, é desnaturali-
zar, ou seja, mostrar a contingência do constructo que estiver em causa.
O objetivo central desta segunda parte é ensaiar a possibilidade de
mostrar que há uma sistematicidade inteligível na abordagem da História
da Filosofia, do ponto de vista do “subtexto de género”, para usar a
expressão de Nancy Tuana. Ou seja, trata-se de mostrar que a nossa
Tradição filosófica pode ser lida a partir da necessidade de compreender
o lugar que as mulheres nela tiveram, enquanto sujeitos e objetos de
discurso. Nesse contexto, de facto, a abordagem poderia ser feita a partir
da questão da unidade/diversidade humana, tomando a questão do “géne-
ro” como filosofema. Todavia, essa leitura apenas relevaria uma proble-
mática estrita – certamente fundamental, e porventura, mais classicamen-
te filosófica, mas, ainda assim e mais uma vez, encerrada nos limites das
mulheres e do feminino.
Isso não era o meu ponto de mira.
De alguma maneira isso é um suposto deste projeto – haver legitimi-
dade filosófica em interrogar a realidade a partir da dimensão sexuada da
condição humana, tanto mais que isso sempre foi feito, umas vezes de
Filosofia e Género 61

modo explícito, outras vezes escamoteado sob a designação de homem


como universal. Efetivamente, toda a teorização filosófica sobre a nature-
za humana mais não faz do que propor conceções antropológicas pensa-
das por homens e tendo a masculinidade como modelo e, na sequência,
supor que essa perspetiva se aplicava às mulheres numa parte e na outra
elas eram inferiores, porque fugiam à regra. Esta luta titânica para manter
as mulheres na esfera da humanidade com reservas é o que fazem, pelo
menos, St Agostinho, quando quer justificar o dito de S. Paulo sobre a
necessidade de as mulheres cobrirem a cabeça e os homens não, ou S.
Tomás, ao defender o sentido humano da mulher ser a de auxiliar do
homem. Na minha leitura esses percursos teóricos querem exatamente
sustentar o paradoxo de as mulheres serem humanas, mas não completa-
mente. Aliás, aí também se inscreve a ideia do eterno feminino. Pelo
contrário, a intencionalidade fundamental deste projeto de leitura é inte-
grar as mulheres no movimento geral da História e procurar ver como
esse movimento as prendeu, mas também lhes abriu oportunidades de
libertação que elas, paulatinamente, foram aproveitando. Por isso, as
temáticas se desenvolvem em “crescendo” – (1) começam com uma
hipótese de leitura que quer desenterrar a ambiguidade do olhar Grego
sobre as mulheres e o feminino, bem como explorar algumas das ambi-
guidades da situação das mulheres na Idade Média, (2) continuam com a
análise da rutura que a Modernidade introduz no modo de pensar e viver
em geral e como essa rutura facilitou a abertura do espaço teórico para as
mulheres e (3) terminam com a afirmação do discurso filosófico de
algumas mulheres em áreas gerais da filosofia.
1 – EM BUSCA DE ALGUMAS RAÍZES:
DUAS INCURSÕES INTERPRETATIVAS

1.1. A herança grega – as ambiguidades da cultura e da Filosofia Gregas

1.2. A complexidade da concetualização das mulheres e do feminino na


Idade Média: “teologização” da inferioridade feminina e da sua idea-
lização

1.1. A herança grega – as ambiguidades da cultura e da Filosofia


Gregas
Este primeiro capítulo, propõe-se defender uma posição que, sendo
controversa, procurará ser fundamentada em estudos reconhecidos e com
argumentos que têm legitimidade. E pretende articular o pensar filosófico
com a concetualização social do feminino, na cultura grega, no momento
do aparecimento da Filosofia. Neste âmbito temático, parece ser legítimo
afirmar que recebemos da Grécia uma discriminação antropológica
fundadora, uma espécie de estereótipo arquetípico, que levou a pensar o
feminino como derivado e, consequentemente, as mulheres como o
segundo sexo, ao longo de toda a tradição ocidental. Mas parece ser
igualmente pacífico reconhecer que também veio da Grécia a concetuali-
zação do feminino e das mulheres no respeitante, por exemplo, à configu-
ração da força, da coragem e da convicção, como é o caso de Antígona,
ou da possibilidade das filósofas-rainhas, como é proposto em A Repúbli-
ca, de Platão. Nessa medida, então, poderá ser pertinente interrogar o
legado grego no quadro de uma hermenêutica da suspeita que permita
desnaturalizar a ideia de que a dominação masculina foi sempre pacífica
ou universalmente aceite.
64 Fernanda Henriques

A – Quadro hermenêutico de Leitura


Sendo a filosofia grega a nossa herança e o nosso destino, acolhê‑la,
no quadro de uma interrogação do ponto de vista do género, obriga a,
pelo menos, ensaiar ressignificá-la. É essa ressignificação que se procura-
rá desenvolver, no horizonte do seguinte quadro interrogativo:

Questões Respostas
O que é que herdámos da Grécia, sem A ideia do universal neutro, com
refletirmos no seu processo de consti- tudo o que lhe vem associado
tuição, tomando‑o como natural?

O que é que recusámos liminarmente? A proposta platónica


O que é que denegrimos ou minimi- A existência atestada da importância
zámos? de algumas figuras femininas, como
é o caso de Safo e de Aspásia
O que é que ignorámos ou não acei- Alguns insólitos da Cultura Grega, se
támos como herança? tivermos em conta a depreciação do
feminino, como por exemplo, o
inesperado da proposta platónica de
pensar a possibilidade de haver
filósofas‑rainhas ou dos exemplos de
Lisístrata, de Assembleia de mulheres
e de Melanipa, a filósofa.

B – A problemática do falso neutro e as determinações


da sua herança
Celia Amorós, na apresentação da coletânea de estudos, Conceptuali-
zación de lo femenino en la filosofia antigua1, e no contexto da afirmação
que desde muito cedo há uma concetualização ideológica do feminino
que a contrapõe a um suposto universal neutro, diz duas coisas cuja
exploração parece ser fundamental para o que aqui se pretende:

1 Eulalia Perez Sedeño (org.), Conceptualización de lo femenino en la filosofia


antigua. Madrid, Siglo XXI, 1994.
Filosofia e Género 65

a. […] aquilo que é pensado como o genérico humano apresenta-se


num plano de abstração que neutraliza os opostos sexuais […]. Contudo,
não de tal maneira que aquilo que é proposto ao nível da abstração do
neutro possa ser comunicável no masculino ou no feminino: constituir-
-se-á como o masculino, que assumirá, deste modo, o neutro, e assim não
se porá a si mesmo como o masculino, e sim como o próprio genérico
humano.
b. Ao ficar do lado do diferente, do outro-diferente-do-neutro, e sendo
o neutro o pensado enquanto neutro – e vice-versa, na medida em que se
tornara neutro enquanto pensado –, o feminino tornar-se-á o não-
-pensado.
É esta perspetiva – que, de alguma maneira, subjaz à posição radical
de Luce Irigaray sobre a impossibilidade de as mulheres se poderem
dizer, enquanto mulheres, dentro da linguagem verbal que têm ao seu
dispor – que irá ser explorada. Essa exploração, por um lado, procura
evidenciar o sentido do escamoteamento do processo de assimilação entre
universal neutro e masculino e, por outro, procura mostrar a transforma-
ção do feminino de não pensado em impensável.
Este “peso” do universal pretensamente neutro será definitivamente
estabelecido com a perspetiva aristotélica sobre o cidadão como universal
político. Na obra que dedica a este tema, Amparo Moreno2, separando
“sexismo” de “androcentrismo”, mostra que a conceção herdada da
Política de Aristóteles sobre o universal homem não só exclui todas as
mulheres, como também muitos homens, porque a concetualização que
Aristóteles forjou, nomeadamente no livro I da Política, referia-se “ao
homem feito, aquele que assumiu os valores da virilidade, julgando-se
com direito a impor-se sobre outras e outros”3. O objetivo da obra de
Amparo Moreno é chamar a atenção para o facto de que a transmissão do
pensamento aristotélico se faz servindo a ideia de um universal neutro,
mas, de facto, ignorando a significação discriminadora que o próprio
referencial semântico do conceito tinha na origem, porque Aristóteles
sabia a quem se aplicava o seu conceito, sabendo quais eram os homens
que podiam ser cidadãos da sua polis, mas o Ocidente, quando recebe a
ideia aristotélica e usa homem para se referir à humanidade, está a esca-
motear a dimensão segregacionista que o termo tinha na origem, dando
ao discurso público aquilo que Moreno chama uma opacidade androcên-
trica. Isto é, ao relegar para o plano do impensado as condições de consti-

2 Amparo Moreno, La otra “politica” de Aristóteles. Barcelona, Icaria, 1988.


3 Ibidem: 18.
66 Fernanda Henriques

tuição do conceito naturalizámo-lo e, ao fazer isto, contribuímos para a


difusão de uma ideia de humanidade como devendo ser: viril, combativa,
dominadora e possuidora de propriedade.
Se se tiver ainda em atenção que, para Aristóteles, a polis representava
o modo de organização coletivo natural, legitimando na “natureza das
coisas”, quem tem naturalmente o poder de mandar e quem tem natural-
mente de ser mandado, compreender-se-á melhor que a transmissão do
pensamento político de Aristóteles, sem explicitação das suas condições
de produção e dos campos semânticos nelas envolvidos, pode funcionar
como uma reiteração de um pensar coletivo de natureza segregacionista.
Num texto de 1997, La politica de las mujeres, a filósofa espanhola
Amelia Valcárcel afirmava a dado passo que na maior parte do mundo
ocidental, a filosofia, a mais alta, difícil e abstrata reflexão das humani-
dades, é um dos veículos concetuais da sexualização, talvez o principal4.
Talvez se possa mesmo ir mais longe e considerar que as conceções
filosóficas, que ao longo do pensamento ocidental se foram desenvolven-
do, representam os fatores fundamentais de discriminação direta e indire-
ta das mulheres e do feminino na nossa cultura, por terem configurado
uma concetualização antropológica assimétrica e desvalorizadora das
mulheres. Nesse sentido, a posição aristotélica pode representar um dos
momentos fundadores da assimetria antropológica, sobretudo, no que
respeita aos direitos de cidadania das mulheres e do seu acesso à vida
pública, situação que, a tomarmos a sério aquilo que Paul Ricoeur dizia
sobre a necessidade de narrar de outra maneira os acontecimentos funda-
dores, torna imperioso explicitar e comentar.

C – Pensar o significado da proposta das “filósofas-rainhas”


de Platão
Quanto à segunda questão, a da proposta platónica em A República,
ela irá ser analisada, fundamentalmente, a partir da maneira como o
mundo académico recebeu a proposta platónica, tendo como base a obra
de Natalie Bluestone que faz a análise dessa receção, a partir de 18705.
Como se sabe, Platão fez duas propostas de organização social e polí-
tica: a da República e a das Leis, defendendo na primeira que, embora
como grupo, os homens sejam superiores às mulheres, há muitas mulhe-

4 Amelia Valcárcel, La politica de las mujeres, Madrid, Cátedra, 1997: 74.


5 Natalie H. Bluestone, Women in Ideal Society. Oxford/Hamburg/New York, Berg
Publ.Lted, 1987.
Filosofia e Género 67

res melhores que muitos homens e, portanto, deveria dar-se-lhes a possi-


bilidade de usufruírem de uma educação capaz de as tornar possíveis
governantes da cidade. Conhecendo a ideia platónica de que só quem
praticasse a filosofia poderia ser bom governante, a sua proposta para as
mulheres, em A República, significa que elas, pelo menos algumas,
poderiam chegar ao cume do saber, representado pela filosofia, podendo
ser rainhas da cidade justa.
Mesmo que se considere a proposta em termos de utopia, não parece
irrelevante que esta ideia tenha surgido uma vez na Grécia e que seja alvo
de argumentação numa das mais conhecidas obras da literatura filosófica
ocidental.
Contudo, a cultura ocidental aceitou como importante a obra, mas ex-
cluiu como ridícula, descabida ou contra “a natureza das coisas” a parte
da obra onde se defendia a possibilidade dupla do acesso das mulheres ao
máximo do saber e do poder. A análise que Natalie Bluestone faz da
receção académica desta questão, entre 1870 e 1970, encontra sete tipos
de interpretações hostis da proposta platónica, de que se destacarão as
seguintes quatro6:
– A igualdade não é uma temática: desvalorização da proposta.
– As mulheres são diferentes: a proposta é não-natural.
– As mulheres têm coisas melhores para fazer: a proposta é indese-
jável.
– Platão não quis realmente dizer aquilo: a proposta não é intencional,
não é adequada ou é cómica.
Se bem que a autora reconheça diferenças na receção do tema posteri-
ormente a esse marco temporal, não deixa de identificar a persistência do
estereótipo de leitura, sendo de realçar a de Allan Bloom que continua a
manter uma interpretação eminentemente sexista da proposta platónica7.
Penso que é extremamente significativa a recusa da academia a uma
proposta teórica bem como os elementos argumentativos aduzidos. Por
outro lado, não creio que ela não tenha tido uma decisiva eficácia histórica
na formação da nossa consciência coletiva e que não seja ela que ainda
hoje trabalha nas costas de cada uma e de cada um quando tem dúvidas
sobre a paridade ou sobre o valor das quotas, como processo de discrimina-
ção positiva, na vida política, funcionando ativamente como esquema de
significação pré-compreensivo na nossa interpretação da vida pública.

6 Cf., Ibidem: 21‑73.


7 Cf., Ibidem: 154 ss.
68 Fernanda Henriques

D – A minimização ou ocultação do feminino


Na mesma linha de pensamento, considero que há possibilidade de
explorar o que se passou com a herança de algumas mulheres da cultura
grega, como é o caso de Safo e de Aspásia, que podem ser tomadas como
paradigma da minimização ou ocultação do valor do contributo do femi-
nino para a história das ideias e da cultura.
A receção de Safo e Aspásia tem em comum o facto de ambas serem
articuladas com a questão da sexualidade; contudo, tem também diferen-
ças que se prendem com o que pode ter sido a sua história pessoal e os
tópicos pelos quais adquiriram relevância.
Safo tem duas associações imediatas no imaginário corrente: a décima
musa e lésbica. Em nenhum dos casos se atende à especificidade que a
tornou impossível de apagar da história: ter sido uma das grandes poetas
de todos os tempos.
Safo seria de Mitilene, cidade de Lesbos, a sua vida terá decorrido en-
tre a segunda metade do seculo VII e as primeiras décadas do seculo VI
a.C., sendo, por isso, ligeiramente posterior a Hesíodo e a Simónides,
poetas que deram do feminino visões bastante pouco positivas.
Segundo os estudos especializados, a informação sobre a vida de Safo
é muito contraditória, sendo a própria obra da autora que fornece melho-
res indicações sobre ela, permitindo conceber que era responsável por si e
pelo seu círculo familiar, estando muito longe da ideia feita da mulher
grega, confinada ao lar e com tutela8. Um dos preconceitos que a receção
da poesia de Safo parece não ter conseguido superar foi o acantonamento
da sua poesia a uma interioridade e a um sentimentalismo enclausurado
num Eros auto-contemplativo que é posto habitualmente em confronto
com a consciência cidadã de Alceo, com quem partilhou a pátria e a
época, mas que cantava a guerra e a vida ativa.
Como dizem alguns estudos, este preconceito tende a tornar simbólica
a própria figura de Safo, relegando-a para o plano do divino ao identificá-
-la como “a musa mortal”.
O outro preconceito diz respeito a própria vida de Safo, referindo-se à
sua assimilação com o lesbianismo, nome, aliás, recolhido da sua ilha
natal.
Esta situação é significativa do quadro ideológico em que as mulheres
são concetualizadas, porque, assentando a sua reputação de lésbica nas

8 Cf., por exemplo, Ana Iriarte, Safo. Madrid: Ed. del Orto, 1997.
Filosofia e Género 69

relações que mantinha com o seu círculo de alunas, ela representa trans-
formar a interpretação de uma situação educacional comum na Grécia,
como se fosse uma especificidade e, por outro lado, essa interpretação,
transformando-se no seu avatar, não corresponde ao modo como essa
ideia se liga com outras figuras notáveis da Grécia, como é o caso de
Sócrates, cuja apresentação nunca começa a partir da sua paixão por
Alcibíades. Contudo, no contexto da mundividência e da moral comum
ocidental, relacionar uma figura notável com a homossexualidade era
uma forma de a denegrir e, portanto, de obscurecer o seu valor. Deste
modo, a receção de Safo representa o protótipo da imagem dominante das
representações míticas do feminino: ou divina ou malvada.
Quanto a Aspásia, a maior parte das pessoas para quem o seu nome
tem algum significado associam-na à sua relação amorosa com Péricles,
de quem foi amante. Saberão, certamente, também, que ela tinha uma
grande influência nele, nomeadamente, para as coisas negativas, mas, de
um modo geral, não se associará Aspásia a um círculo de elite intelectual
de Atenas, onde ela pontificava como os homens notáveis que também o
integravam, evidenciando com a sua existência que havia, em Atenas,
outras maneiras de se ser mulher sem ser a de esposa fiel e submissa de
qualquer ateniense, garantindo através dessa fidelidade e submissão a
honra do nome e a posse dos bens.
Este olhar sobre Aspásia testemunha do mesmo ideologismo interpre-
tativo que se encontrou em Safo, mostrando que, quando não é possível
ignorar as mulheres, se divulga delas aquilo que é mais desprestigiador
aos olhos de uma moral, também ela apenas, pretensamente, neutra.
O estudo introdutório à edição bilingue de uma obra sobre Aspásia, de
José Solana Dueso, termina de uma forma lapidar para o meu propósito:
[…] as informações platónicas sobre Aspásia respondem à realidade
histórica. Considero que esta é a melhor hipótese para explicar o que
os críticos chamam reiteradamente o “mistério” ou o “enigma” de
Menexeno. O motivo pelo qual a imensa maioria de autores modernos e
alguns antigos não só não aceitam essa hipótese como nem sequer a
consideram digna de estudo é já outra questão que nos levaria a temas
fundamentais da história ideológica do Ocidente.9
Importa ter em atenção que é, de novo, a receção de Platão que está no
cerne da controvérsia; no caso trata-se do diálogo Menexeno, onde Aspá-
sia aparece referida como mestre de retórica e autora de discursos.

9 Jose Solana Dueso, (trad. e org.), Aspasia de Mileto. Testemonios y discursos.


Barcelona, Anthropos, 1994: XL-XLI.
70 Fernanda Henriques

Segundo Mary E. Waithe10, os comentadores desta obra de Platão di-


videm-se em dois grandes grupos: o que considera que o Menexeno
pertence ao corpo das obras platónicas, mas é a sua única obra não filosó-
fica, desprestigiando-a, portanto; e o grupo que considera que o que se
diz na obra em relação a Aspásia pertence, de facto, à própria Aspásia, e
que Platão o escreve porque reconhece a reputação dela como filóso-
fa/retórica, deixando clara a sua desaprovação em relação à influência
que os filósofos como ela tinham na Grécia.
Para Solana Dueso, que pertence a este segundo grupo, as palavras de
Platão sobre Aspásia demonstram a importância que ela teria nos círculos
respetivos. Na sua argumentação, Dueso põe a claro um aspeto decisivo,
referindo que, a não se tomar como fundado nos factos o que Platão diz
sobre Aspásia, estar-se-ia a usar um critério diferente daquele que se
utiliza habitualmente na receção da obra de Platão, nomeadamente no
caso de Lísias, no Fedro, de Górgias e de Protágoras em vários diálogos
platónicos.
Na sua obra sobre Aspásia, este autor reúne 34 testemunhos, 17 dos
quais referem a perícia retórica de Aspásia e outros a sua ligação com a
filosofia, pelo que considera absolutamente legítimo pensar que Aspásia
esteve ligada à filosofia e à arte de argumentar, salientando que o proces-
so de impiedade que foi movido contra ela só testemunha da sua impor-
tância e da sua relevância intelectual.
Dueso põe mesmo a hipótese de que em redor de Péricles e do seu cír-
culo se tenha desenvolvido um movimento de emancipação feminina que,
segundo a sua leitura, ajudaria a explicar não só o processo de Aspásia,
mas também comédias como Lisístrata e Assembleia de mulheres.

E – Questionando alguns insólitos da cultura grega


O último ponto da grelha interrogativa acima referida diz respeito à
tentativa de explorar um facto habitualmente não explorado como heran-
ça grega: o papel de relevo desempenhado por figuras femininas no teatro
grego e, para além disso, a existência de quatro peças de teatro, três
comédias e uma tragédia, onde as mulheres são protagonistas em situa-
ções totalmente inverosímeis no quadro da concetualização dominante do
feminino.
É nesse contexto, que convoco para o debate o papel das mulheres em
todo o teatro grego por pensar que há qualquer coisa que quer ser dita

10 Cf., Mary Ellen Waithe, (org.), A History of Women Philosophers, 1. Dordrecht,


Kluwer Academic Publ., 1992.
Filosofia e Género 71

através do protagonismo das mulheres no imaginário teatral da antiguida-


de clássica, através de quem são elaborados e discutidos os problemas
base da reflexão filosófica.
Numa obra fundamental na produção teológica feminista – Em me-
mória d’Ela – Elisabeth Fiorenza11 propõe-se, como especialista em
exegese neotestamentária, reconstruir a história dos princípios do cristi-
anismo através da configuração do seu Sitz im Leben, isto é, do contexto
global da sua emergência, mostrando as condições sociais, culturais e
ideológicas da produção dos textos para os poder arrancar a um valor
simbólico absoluto e, assim, enquadrá-los temporalmente, separando o
simbólico do histórico.
A meu ver, o teatro grego necessita da mesma operação reflexiva,
mas, no caso, para mostrar que o seu Sitz im Lebem é contraditório em
sentido oposto aquele que Fiorenza denuncia, uma vez que, sendo forte-
mente patriarcal, com a desvalorização total das mulheres e do feminino,
não é coerente com o papel das mulheres nos testemunhos textuais que
chegaram até nós, tornando-se necessário explorar a função simbólica
dessa contradição.
Ou seja, Fiorenza mostra que as condições contextuais da produção
dos textos bíblicos têm de ser identificadas para se aceder ao valor simbó-
lico das mensagens. No caso do teatro grego, algumas das peças que
chegaram até nós, para fazerem sentido, obrigam a questionar se o seu
contexto de produção é tão absoluta e pacificamente pratriarcal como a
herança canónica nos legou.
No quadro desta hipótese, penso que há duas situações paradigmati-
camente exemplares:
– A ligação das mulheres a problemas sociais graves – a paz e a vivên-
cia coletiva – como é o caso de Lisístrata e de Assembleia de mulheres.
– O totalmente inusitado da existência de uma peça cujo título é Me-
lanipa, a filósofa.
Claude Mossé12 retira a ambas as comédias de Aristófanes qualquer
significado político, considerando que quer Lisístrata quer Assembleia de
Mulheres apenas põem em cena figuras femininas com todas as caracte-
rísticas tradicionalmente adscritas às mulheres, especialmente as negati-
vas, fazendo propostas estritamente ligadas à mundividência feminina.

11 Cf., Fiorenza, Elisabeth Schüssler, In Memory of Her. A Feminist Theological


Reconstruction of Christian Origins, New York, Crossroads, 1992.
12 Cf., Claude Mossé, La Femme dans la Grèce antique, Paris, Albin Michel, 1983.
72 Fernanda Henriques

Por seu lado, Dueso propõe outra leitura: a de que essas comédias es-
tivessem a fazer ressonância de uma contestação de mulheres, no âmbito
do círculo de Péricles.
Não sendo eu própria especialista da antiguidade grega não posso di-
rimir este confronto interpretativo; contudo, como leitora, não posso
deixar de dizer que é notável que Aristófanes tenha escolhido desenvol-
ver uma intriga com protagonistas femininas a propor soluções políticas
em situações de crise e que, em ambos os casos, tais figuras femininas
tenham conseguido mobilizar-se, organizar-se e ocupar o espaço público
que, teoricamente, lhes estava vedado. Seja o que for que se queira pen-
sar, parece-me forçoso pôr uma de duas hipóteses: ou o próprio Aristófa-
nes pensou por si mesmo a possibilidade que encenou – o que significa
reconhecer que as mulheres poderiam desempenhar tais papéis – ou,
então, fez-se eco de outros ou outras que assim pensavam. Em qualquer
dos casos, parece assinalável que a força, o poder e a capacidade de
mobilização e de ação pública das mulheres tenham sido postas em cena
na Grécia do século V e tenham sido aplaudidas pelos gregos. Por outro
lado, o facto de as soluções propostas pelas mulheres serem originárias da
experiência e da mundividência femininas, como diz Claude Mossé, só
lhes retira valor efetivo se se considerar que apenas as soluções do mundo
e da vivência masculina são eficazes e adequadas. Como em qualquer dos
exemplos citados as ditas soluções masculinas se tinham mostrado in-
competentes e gerado o caos, faz sentido que se procurassem alternativas.
Melanipa, a filósofa é o título de uma tragédia de Eurípedes de que
apenas nos chegaram alguns fragmentos. O título da peça corresponde ao
seu conteúdo porque põe em cena uma mulher filósofa ou, pelo menos,
uma mulher que filosofa. A história é a seguinte: seduzida por Poseidon,
Melanipa teve dois gémeos. Com medo de seu pai Éolo e por ordem do
deus, pôs os filhos num estábulo. Descobertos os gémeos e levados a
Éolo, este, considerando-os monstros, condenou-os a serem queimados
vivos. Melanipa intervém, demonstrando, através de argumentos racio-
nais, que as crianças não poderiam ser monstros e teriam de ter uma mãe
humana e, finalmente, acaba reconhecendo ser ela a mãe. O pai cega-a e
enclausura-a, mas, decorridos 16 anos, será libertada pelos filhos e pelo
próprio pai, recuperando a vista.
Severine Auffret13 dedica um estudo a esta obra, do qual retirarei al-
gumas notas interpretativas:
– Começando com a exploração do significado do nome da protago-
nista, Melanipa, que remete para égua negra, a autora interpreta-o como

13 Cf., Severine Auffret, Melanipe la philosophe. Paris, Maison des Femmes, 1988.
Filosofia e Género 73

sendo o aspeto feminino e trágico do Centauro Quíron, antepassado dos


filósofos, por protagonizar o domínio do espírito sobre a potência e a
força animal que controla e subsume. Neste contexto, para Severine
Auffret, o trágico de Melanipa poria em cena não apenas a situação
grega, mas o paradigma da relação entre as mulheres e a Filosofia: fica-
rem sempre na sua margem e nas suas margens. A este respeito evoca a
obra de Gilles Menage, Historia mullierum philosopharum14, onde se
identificam 65 nomes de mulheres filósofas, o que prova também que é
na receção e na divulgação do pensamento ligado ao feminino e às mu-
lheres que se faz um ocultamento dessas heranças impedindo-se, portan-
to, a sua eficácia histórica.
– No âmbito desse ocultamento ou ilegitimação, Severine Auffret re-
fere o comentário de Aristóteles na Poética a este respeito, onde se diz
que Melanipa é um exemplo de mau gosto teatral, porque a personagem
não é convincente, uma vez que é inverosímil que uma jovem desenvolva
um discurso filosófico.
– Por fim, numa apreciação da figura de Eurípedes, a autora, salien-
tando o facto de a tragédia acabar bem, embora Melanipa filosofasse,
considera que Eurípedes quis pôr em cena, simultaneamente, a proibição
de filosofar que pesa sobre as mulheres e os motivos que as devem levar
a filosofar.
Mesmo sem entrar na discussão, a meu ver extemporânea, da possível
veia pré-feminista de Eurípedes, não se pode ignorar que ele escreveu
esta peça e que essa situação tem de ter um significado no âmbito da
representação das mulheres e das suas capacidades no mundo grego que,
no meu entender, é imperioso analisar, mesmo que isso vá ao arrepio das
tradições mais fortes que integram o nosso modo de pensar.

14 Em 2006, é publicada uma tradução francesa desta obra, nas edições Arléa, onde
Claude Tarrène, que faz a apresentação da obra, afirma que esta publicação repara
uma dupla injustiça: ao autor, Gilles Ménage, e às mulheres qui pensèrent dans la
Grèce ancienne.
74 Fernanda Henriques

1.2. A complexidade da concetualização das mulheres


e do feminino na Idade Média: “teologização”
da inferioridade feminina e da sua idealização15
Esta paragem no pensamento medieval para além de, como a anterior,
querer ser um exercício de aplicação de uma hipótese teórica, como já foi
dito, quer, sobretudo, marcar a profunda influência que o pensamento
medieval teve na conceção do feminino ao nível da nossa cultura porque,
por um lado, essa conceção é de alguma maneira teologizada, para usar a
expressão de Howard Bloch16 e, por outro, ela continua a ter ressonância
no mundo simbólico ocidental contemporâneo em virtude do quadro
concetual da Igreja Católica sobre as mulheres e o feminino.
Na verdade, como Teresa Toldy mostra nas suas diversas análises dos
documentos eclesiásticos17, há alguns tópicos centrais nesses documentos
que definem os universos feminino e masculino em termos de assimetria
estrutural e que são sistematicamente reiterados. Desde logo, a colocação
da caraterização do ser homem e do ser mulher ao nível de uma natureza
criada por Deus e por Si querida. Ou seja, partindo de uma determinada
interpretação do sentido da Criação da Humanidade que é tematizada no
horizonte do “querido por Deus”, a questão do masculino e do feminino
aparece fora dos quadros de uma historicidade que lhe permitiria aceder
por meios argumentativos. Usando as palavras da autora, A natureza
humana reflete a imagem de Deus, portanto, não se deixa determinar
pela sociedade, ou pelas circunstâncias históricas. Sendo assim, é eterna,
porque Deus é eterno, e está inscrita no coração do ser humano […]”18.
Esta perspetiva poderia não ter problema se houvesse uma afirmação
estrita de igualdade de mulheres e de homens, como imagem de Deus, o

15 Este subcapítulo retoma quase totalmente o seguinte texto: Fernanda Henriques,


“A «teologização» da inferioridade feminina e da sua idealização. A comple-
xidade da concetualização das mulheres e do feminino na Idade Média.” In A. P
Mesquita (Org.): A Paixão da razão. Homenagem a Maria Luisa Ribeiro
Ferreira. Lisboa, CFUL, 2014, 621-632.
16 R. Howard, Bloch, Medieval Misogyny and the Invention of Western Romantic
Love, Chicago e Londres, The University of Chicago, 1991.
17 Cf.. Fernanda Henriques e Teresa Toldy, “A conceção inferior do feminino como
‘entidade transparente’, na Filosofia e na Teologia”, in F. Henriques, T. Toldy,
Maria Carlos Ramos e Julieta Dias (org), Mulheres que ousaram ficar, Leça da
Palmeira, Letras e Coisas, 2012: 121-164.
18 Fernanda Henriques e Teresa Toldy, “Desconstruindo antropologias assimétricas”,
Impossibilia no 4, (Octubre 2012):18-33. Disponível on line.
Filosofia e Género 75

que nunca foi o caso e ainda hoje carece de o ser, nomeadamente porque
mesmo a espiritualidade das mulheres é pensada a partir da sua determi-
nação biológica – a maternidade – sendo que o corpo sexuado masculino
nunca é evocado para caracterizar o ser do homem. Não há dúvida que
hoje os documentos eclesiásticos partem da afirmação da igualdade entre
a mulher e o homem; contudo, importa apontar três aspetos, no contexto
dessa afirmação de igualdade: (1) a Igreja Católica nunca se retratou das
conceções sobre a mulheres que foram defendidas ao longo dos tempos19,
(2) a partir da igualdade entre mulheres e homens, a caraterização das
mulheres vai ser feita em termos de “procurar a sua especificidade, tal
como ela é ditada pela natureza”,20 sendo que não se faz um percurso
equivalente para os homens, (3) toda a argumentação sobre a impossibili-
dade de as mulheres acederem ao ministério ordenado põe de manifesto
que, afinal, não há igualdade entre mulheres e homens.
A questão central parece ser a de uma forte ambiguidade na maneira
como a Igreja Católica concebe o ser mulher e o feminino, ambiguidade
que, também ela se perfila na Idade Média, onde a par com uma profunda
misoginia, podemos assistir, por um lado, a um esforço teórico imenso
para salvar a ideia da igualdade perante Deus, de mulheres e homens, e,
por outro, à força e mesmo ao poder que tiveram algumas mulheres
dentro da Igreja, como é o caso, por exemplo, da, já clássica, Hildegarda
de Bingen.

A – Começo e reiteração: de interpretação a naturalização


– um exemplo
Sem fazer qualquer exegese que estaria fora do meu alcance, conside-
ro que no princípio esteve mesmo S. Paulo.
De facto, em Gálatas 28, faz-se a mais radical afirmação de igualdade
do cristianismo – a partir de agora não há mais, nem judeu, nem gentio,
nem escravo ou homem livre, nem homem, nem mulher, mas sereis todos
um em Jesus Cristo –, mas, contudo, não foi essa visão igualitária de
S. Paulo que se reproduziu e sim as suas afirmações quanto ao lugar
inferior e secundário das mulheres, ideias essas que foram, sucessivamen-
te, retomadas e reforçadas.

19 Para uma autora como Elisabeth S. Fiorenza esse gesto é absolutamente essencial
e, também, absolutamente devido às mulheres.
20 Fernanda Henriques e Teresa Toldy, “Desconstruindo antropologias assimétricas”,
op. cit.: 21.
76 Fernanda Henriques

Por exemplo, é de S. Paulo que St Agostinho parte para um exercício


teórico espantoso para defender, ao mesmo tempo, a igualdade entre
mulher e homem e a inferioridade da mulher.
O ponto de partida é a afirmação de S. Paulo de que as mulheres –
mas não os homens – deverão cobrir-se porque o homem é imagem e
glória de Deus e a mulher apenas glória do homem. St. Agostinho, a
partir da dicotomia cidade dos homens/cidade de Deus e da de cor-
po/espírito, vai estruturar uma fina argumentação para legitimar a subor-
dinação social das mulheres e, ao mesmo tempo, garantir a sua dignidade
espiritual21.
Para St. Agostinho é a natureza humana enquanto tal que é imagem de
Deus, pelo que a posição de S. Paulo careceria de fundamento, à primeira
vista. Nesse sentido, procura encontrar uma forma que dê pertinência a
essa posição, dizendo: A mulher com o marido é imagem de Deus, de
maneira que a unidade desta substância humana forma uma única ima-
gem; mas quando ela é considerada como auxiliar do homem – coisa que
lhe pertence apenas a ela – ela não é imagem de Deus; pelo contrário, o
homem, naquilo que diz respeito apenas a ele, é imagem de Deus, ima-
gem tão perfeita e tão completa que quando a mulher lhe fica associada
faz uma unidade com ele.22 Este conjunto de informações deixa claras três
dimensões:
A legitimação da situação de subordinação social das mulheres.
O facto de que St. Agostinho não aceitava liminarmente a igualdade
entre mulheres e homens.
A sua vontade de, apesar de tudo, garantir uma certa dignidade das
mulheres.

21 Cf. para este tema a obra de Kari Elisabeth Børresen, uma das primeiras
investigadoras de Teologia feminista, que tem um conjunto importante de textos
sobre o tema em causa. Quero, sobretudo, chamar a atenção para o título do seu
texto de 1968, onde a questão fica claramente marcada: Kari Elisabeth Børresen,
Subordination et équivalence. Nature et rôle de la femme d’après Augustin et
Thomas d’Aquin, Oslo-Paris, Maison Mame, 1968 (o sublinhado é meu). Na
conferência que apresentou ao II Colóquio Internacional de Teologias Feministas,
realizado em Lisboa, em Novembro de 2012, “HUMAN CORPOREALITY in
CHRISTIAN DOCTRINE and SYMBOLISM: Historical Impact and Feminist Critique”,
foi possível contactar diretamente com a imensa riqueza e originalidade do seu
pensamento.
22 St. Agostinho (Cidade de Deus), in Françoise Collin, Evelyne Pisier e Eleni
Varikas, Les Femmes de Platon à Derrida, Paris, Plon, 2000: 90.
Filosofia e Género 77

Mas, se na cidade terrena as mulheres têm necessidade dos homens


para chegar a Deus, St. Agostinho, recorrendo à dicotomia corpo e alma,
encontrará um meio de manter a desigualdade na terra e a igualdade no
céu, defendendo que as mulheres participam também da dimensão supe-
rior da alma e, por essa razão, poderão aspirar a uma participação plena
na Cidade de Deus sem perderem o seu sexo, […]porque elas serão
renovadas à imagem de Deus onde não há sexo, isto é, na sua alma
espiritual.23
O que é que está aqui em jogo?
As propostas de S. Paulo sobre as posições inferiores que as mulhe-
res deveriam ter – na catequese ou no dever de se cobrirem – advi-
nham da sua interpretação de que foi Eva e não Adão que se deixou
seduzir pelo mal e que foi Adão e não Eva o primeiro gesto criador de
Deus.24 Mas St. Agostinho não refez todo o percurso para aferir essa
interpretação, verificando a sua legitimidade; pelo contrário, parte
dessa interpretação como um dado adquirido, em si mesmo inquestio-
nável, e tenta legitimá-la e encontrar para ela uma estrutura de inteli-
gibilidade que, apesar de tudo, mantivesse a possibilidade de garantir
uma certa igualdade para as mulheres no plano espiritual. É esta
passagem de ponto de vista interpretativo a legitimação teológica que,
no meu entender, naturalizará uma certa figura ontológica das mulhe-
res fazendo-a aparecer como pertencendo à “natureza das coisas” e
estabelecida e querida por Deus.
Sirva como reforço desta interpretação a posição de Guilherme
d’Occam quando defende a separação do poder espiritual do poder terre-
no, posição que é tida como uma das primeiras tentativas de seculariza-
ção. Nesse exercício, Guilherme de Occam vai considerar que o poder
conjugal é dos poucos que tem origem divina, sendo, portanto, natural,
baseando a sua argumentação em St. Agostinho – que, como se viu, se
articula com S. Paulo – e em Aristóteles e, de ambos, aceitará e repetirá a

23 Ibidem: 92. Esta perspetiva é reiterada pelas posições de Elisabeth Børresen,


nomeadamente quando afirma: “En efecto, Agustín es el primer padre que afirma
explícitamente que las mujeres resucitarán com su cuerpo sexuado. Él propone,
por tanto, una exégesis inclusiva del vir perfectus, incluyendo hombre y mujer (Ef
4, 13: ‘A la edad madura del hombre, al desarrollo correspondiente a la plenitude
de Cristo’). Igualmente, la asimilación a Cristo en Rom 8,29: ‘semejante a la
imagen de su hijo’, ya no se interpreta según el sentido antíguo, que afirmaba que
las mujeres serían ‘transformadas en hombres’ en la orden de la salvación (De
civitate Dei XXII, 17)”.
24 Cf. As 1as Epístolas de S. Paulo a Timóteo e aos Coríntios.
78 Fernanda Henriques

ideia da secundariedade das mulheres e da sua natural submissão aos


maridos.25

B – Fugas e ambiguidades
Marie-Thérèse d’Alverny inicia o seu texto sobre as perspetivas de
teólogos e filósofos medievais sobre as mulheres, do seguinte modo:
Tratar da questão da mulher da perspetiva de teólogos e de filósofos do
século XII é uma tarefa ingrata de todos os pontos de vista. Sobre esse
assunto, os teólogos limitam-se a glosar os textos das Escrituras com o
auxílio dos escritos dos Padres da Igreja; não se pode esperar deles con-
siderações originais: Os moralistas repetem lugares comuns cuja
venerável antiguidade permite poucas variações. Quantos aos filósofos
naturalistas não se mostraram muito interessados na questão. É neces-
sário, por isso, resignarmo-nos a fazer uma exposição austera, ilustra-
da por textos a que falta variedade e que apenas dá uma imagem inexa-
ta dos homens que serão citados. Na verdade, há a mulher em si, um
tipo abstrato simbolizado pela nossa mãe Eva e as mulheres: familiares,
monjas, soberanas com as quais os monges e os clérigos mantiveram re-
lações durante a sua vida terrestre, bem como santas individuais das
quais eles tiveram de celebrar as virtudes […].26
O sublinhado que fiz da citação quer relevar, por um lado, o que foi
referido anteriormente – não há inovação nem renovação dos pensamen-
tos sobre as mulheres e o feminino, há apenas uma reiterada repetição a
partir da mesma origem – e, por outro lado, a ideia, também já antes
apontada, de uma profunda ambiguidade sobre as representações do
feminino. Provavelmente, mais do que de ambiguidade se deveria falar de
alguma esquizofrenia entre uma essência feminina – malvada e tentadora
– e as mulheres específicas que na sua diversidade não só não cabiam
nessa catalogação como a contradiziam.
Penso que é importante para uma leitura da tradição que quer explorar
novas hipóteses de interpretação ou, pelo menos, relativizar as liminar-
mente canónicas, fazer aqui alguns destaques que abram novas hipóteses

25 Cf. G. d’Occam (Court Traité du pouvoir tyrannique), in Françoise Collin,


Evelyne Pisier e Eleni Varikas, op. cit., 2000, 121-129.
26 Marie-Thérèse d’Alverny, “Comment les théologiens et les philosophes voient la
femme”, Cahiers de civilisation médiévale, 20e année (n.º 78/79), abril-setembro
1997: 105-129. (doi: 10.3406/ccmed. 1977.3067.
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ccmed_0007-731_1977
_num_20_78_3067.
Filosofia e Género 79

de questionamento. Nesse contexto, pode fazer sentido escutar também


um pouco aquilo que nos vem por mão da História que, nas últimas
décadas, tem posto a descoberto novas perspetivas interpretativas e novos
elementos de compreensão.

C – Inferioridade e transcendência ou superação do humano


O primeiro dos destaques que talvez valha a pena fazer prende-se com
sublinhar a outra face do feminino que a época medieval também confi-
gurou. Na verdade, à imagem da mulher inferior e raiz do pecado vai
contrapor-se, nos seus antípodas, a imagem de Maria – a segunda Eva –
pela qual a salvação entraria no mundo.
No percurso crítico que Marie-Thérèse d’Alverny faz, em torno dos
textos do século XII que retratam a mulher (e o feminino), no texto acima
mencionado, surge a determinada altura a referência a essa exaltação da
mulher através da figura de Maria. A autora refere um sermão de Abelar-
do para a festa da Assunção onde se contrapõem as imagens de Adão e
Eva e onde a inferioridade das mulheres e a sua transcendência aparecem,
em simultâneo:
(1) Adão foi criado fora do paraíso; Eva no paraíso;
(2) o Senhor ressuscitou da terra, o corpo de sua mãe, nos céus. Que
as mulheres tenham em consideração a que glória Deus elevou o
seu sexo inferior. O paraíso é a sua pátria natural, tanto o paraí-
so terrestre como o celeste.
(3) Eva foi criada do velho Adão: o novo Adão, redentor do antigo,
foi engendrado em Maria.
Na mesma linha, mas sem salientar a inferioridade da mulher, irão
dois sermões de S. Bernardo:
(1) O sábio Criador restaurou, em melhor, aquilo que tinha sido que-
brado; o Novo Adão toma o lugar do velho, Maria substitui Eva.
Uma vez que ambos os sexos pecaram, é necessário que ambos
apareçam na nossa “reparação”;
(2) para a redenção do género humano, Deus colocou em Maria todo
o preço do universo. E porquê? Talvez para que Eva seja perdoa-
da na sua Filha e a querela do homem contra a mulher seja, fi-
nalmente, apaziguada27.

27 Ibidem: 117.
80 Fernanda Henriques

Como interpretar esta verdadeira antinomia?


Evidentemente que a igualdade entre homens e mulheres enquanto se-
res singulares e empíricos nunca é um dado inquestionado, mas esta
“teologização” da transcendência da mulher através da figura de Maria
poderá, de alguma maneira, querer dar expressão às vivências de teólogos
e clérigos com as mulheres reais com quem privavam e com a sua com-
plexidade e, por outro lado, poderá também ter servido como uma brecha
no sistema, que permitiu que algumas mulheres de carne e osso tivessem
um papel efetivo ao nível da sociedade real.
Sejam quais forem as explicações e, ao mesmo tempo, as consequências
desta idealização da imagem das mulheres, o certo é que ela serviu de con-
trabalanço ao olhar profundamente amesquinhador sobre o feminino com
que o pensamento dominante as controlava e as aprisionava, reduzindo o seu
horizonte vital a uma única forma de vida cuja constante era a total submis-
são a uma figura masculina. Nesse sentido, embora tenha funcionado como
gaiola dourada, esta idealização do feminino funcionou, pelo menos, como
uma alternativa possível à orientação de uma outra forma de vida para as
mulheres que, no caso da época medieval, se integrava na mundividência
geral – a busca da santidade como horizonte de realização.
Ainda a este nível, vale a pena pensar também, na figura de Maria
Madalena.
Na obra que publicou em 1995, Dames du XIIèm siècle,28 Georges Du-
by dá conta do estranho lugar que Maria Madalena ocupou no imaginário
simbólico da Idade Média, mostrando como ele é atravessado pelo dilema
da inferioridade-transcendência, mostrando-se, por outro lado, como um
lugar importante da ambiguidade da época em relação às mulheres e ao
feminino. O percurso feito pelo historiador em relação à figura de Maria
Madalena mostra como ela foi venerada, corporizando, nomeadamente,
um lugar de culto e, ao mesmo tempo, como os louvores e as venerações
assentavam em caraterísticas dignificadoras das mulheres e do feminino,
mas, igualmente, noutras que evidenciavam a sua raiz diabólica.29

28 Georges Duby, Dames du XIIème siècle, Paris, Gallimard, 1995.


29 Importa ter em atenção, que durante a Idade Média – e até muito depois – era tido
como dado mais ou menos pacífico que Maria Madalena era uma designação única
para cobrir 3 mulheres específicas: Maria Madalena a quem Jesus Ressuscitado
apareceu em primeiro lugar, uma anónima, conhecida pecadora pública, que rega os
pés de Jesus com lágrimas e os enxuga com os cabelos e Maria, irmã de Marta e de
Lázaro. Tal assimilação deveu-se a uma homília do Papa Gregório Magno que as
identificou como uma única pessoa. Esta assimilação permite compreender a própria
evolução das bases da veneração de Maria Madalena.
Filosofia e Género 81

A informação mais interessante do ponto de vista da ambiguidade da


representação do feminino e das mulheres diz respeito à identificação de
um culto a Maria Madalena que Georges Duby faz remontar, na Europa,
pelo menos ao século VIII e que, no século XII fazia parte de um dos
lugares apresentados como assinaláveis, no âmbito das peregrinações a
Santiago de Compostela. Trata-se de Vezelay, de onde partia um dos
quatro caminhos de Santiago, onde se encontrava o corpo de Maria Mada-
lena e onde se realizavam grandiosas festas em sua honra, em 22 de julho.
No que diz respeito às variantes para os motivos do culto e do louvor,
Duby faz a análise de alguns sermões pronunciados em louvor de Maria
Madalena. O primeiro, segundo o autor, é atribuído a Eudes, abade de
Cluny, remontando ao século X. Nesse texto, Maria Madalena é apresen-
tada a partir de qualidades dignas: por um lado, exalta-se o facto de que,
sendo fraca e tímida, conseguiu vencer a fraqueza e a timidez e enfrentar
o túmulo vazio, demonstrando, assim, uma coragem assinalável; por
outro lado, é posto de manifesto o imenso amor de Maria Madalena que é
ligado à perseverança e à constância com que acompanhou Jesus durante
a paixão. Tais caraterísticas são exaltadas pelo abade como exemplo para
os seus monges as tomarem como modelo. Duby realça ainda, como o
abade releva o facto de que em Maria Madalena Deus retirou o opróbrio
ligado à raça feminina, ao fazer dela a primeira testemunha da ressurrei-
ção, pelo que uma mulher, pela sua própria força individual e pela sua
própria vida, serve de mediadora para a salvação das mulheres.
Este aspeto é interessante, pelo menos, por duas razões: (1) trata-se de
um indivíduo que ama sofre, peca e é resgatado – ou seja, é um ser imitá-
vel e não uma virgem mãe inacessível; (2) é a sua própria história que a
torna digna do olhar complacente de Deus. É essa história individual que
se converte em modelo e não uma maternidade salvífica.
Para assinalar a evolução negativa da figura de Maria Madalena, Ge-
orges Duby vai tomar como referência sermões de Godofredo de Vando-
ma feitos também em honra de Maria Madalena, no início do século XII.
Ao contrário do exemplo anterior, o que é realçado por este abade é,
fundamentalmente, que Maria Madalena foi, primeiro, uma grande peca-
dora que, depois, se arrependeu e fez penitência.
Ou seja, como todas as mulheres, ela seria porta do mal. Só se glorifi-
cou para poder abrir a porta do céu por ter apagado em si as marcas do
feminino, pela expiação.

D – Ruídos que rompem o sistema


A profunda ambiguidade da época medieval manifesta-se mais profun-
damente ainda na existência de algumas figuras femininas específicas, na
82 Fernanda Henriques

autoridade que tiveram e no papel que desempenharam, nomeadamente, a


já referida Hildegarda de Bingen, Santa e proclamada Doutora da Igreja
por carta apostólica de 7 de outubro de 2012, pelo Papa Bento XVI.
O seu nome, Bingen, vem do facto notável e, no mínimo, estranho, de
ter fundado, em 1150, o mosteiro de Bingen para se separar da comuni-
dade masculina de Disibod e salvaguardar autonomia material e indepen-
dência espiritual.
Tendo entrado ainda criança para o convento, Hildegarda de Bingen
mostrou-se uma grande estratega tendo conseguido esgrimir com figuras
eclesiais de poder da sua época de maneira a defender os objetivos liga-
dos às suas convicções espirituais. A sua imensa correspondência –
possuem-se cerca de 300 cartas – é dirigida às figuras mais notáveis e
poderosas da sua época e sempre com larga liberdade de espírito.
Hildegarda é, a todos os títulos, uma figura multifacetada e mesmo
contraditória. Em si própria, a sua história de vida pode ser analisada
como a expressão da própria ambiguidade da sua época em relação às
mulheres e ao feminino.
Na verdade, embora toda a sua vida manifeste uma excelente capaci-
dade de realização, uma forte perícia política e um grande sentido refle-
xivo e criador, a sua posição sobre as mulheres é, deveras, penalizadora.
De facto, considera-as fracas e, no fundo, inferiores aos homens. E o mais
interessante é que o explicita e o justifica em termos teóricos.
Na excelente obra de ficção sobre a sua vida, Scarlet Music30, Joan
Ohanneson imagina e dá corpo a uma figura humana plena de riquezas,
mas igualmente complexa e contraditória, permitindo-nos uma hipótese
possível de vislumbrar o que pode ter sido a existência de Hildegarda,
bem como as suas múltiplas realizações.
Também em termos meramente vitais, o seu testemunho é complexo.
A Abadessa de Bingen teve uma vida longuíssima, de 1098 a 1179, mas
atravessada por um permanente estado de enfermidade que, contudo, não
a impediu de exercer um “ministério público”31 que desenvolveu através
das pregações e que levou a cabo já com mais de sessenta anos de idade.
Além de tudo, há que salientar que essas pregações de Hildegarda não
foram apenas proferidas dentro das paredes dos Conventos. A Santa
Doutora terá pregado também para clérigos e mesmo para o povo.

30 Joan Ohanneson, Scarlet Music. Versão portuguesa: Música Escarlate, Lisboa,


Gótica, 2000.
31 Estou a repetir a expressão de Ana Maria Jorge em: “Testemunhar Deus no
Feminino. Histórias de vida na Igreja medieval” in M. Silva e F Henriques (coord),
Teologia e Género, Coimbra, Ariadne Editora, 2006: 33-55.
Filosofia e Género 83

Como pode o século XII ter aceitado a pregação de uma mulher?


Do ponto de vista de Maria Leonor Xavier,32 a aceitação e o reconhe-
cimento de que Hildegarda de Bingen foi alvo ficaram a dever-se ao facto
da sua, digamos, tradicionalidade. Segundo aquela autora é a fidelidade à
tradição doutrinária que terá permitido que a contemporaneidade tenha
ultrapassado, de alguma maneira, a sua condição de mulher. Assim,
Leonor Xavier aprecia a obra de Hildegarda mais como um baluarte da
tradição do que um marco de inovação.
Ana Maria Jorge prefere realçar o caráter arrojado e inusitado das reali-
zações da Abadessa de Bingen e, nomeadamente o seu olhar próprio sobre
algumas temáticas teológicas, como, por exemplo, a sua associação do
amor de Deus ao amor maternal que dá vida e é misericordioso. Diz ela:
Enquanto representante da ordem beneditina, Hildegarda foi uma
mulher integrada no sistema feudal e na hierarquia socio-religiosa do
mesmo mas “ultrapassou-os”. Foi uma mulher de profundas intuições
teológicas que soube integrar o elemento feminino na sua teologia fa-
lando do amor de Deus como amor maternal que dá vida e se manifesta
pela doçura da misericórdia.33
Uma coisa parece ser inquestionável: a dimensão complexa e enciclo-
pédica da obra que Hildegarda nos legou e que vai da medicina à música,
passando pela teologia e pela filosofia.
A sua vida parece poder ser analisada em duas fases distintas. A pri-
meira é constituída pelos primeiros 50 anos, sendo mais ou menos anó-
nima; a segunda corresponde aos anos seguintes e carateriza-se, dir-se-ia,
pela glória, já que a Abadessa de Bingen será uma das vozes, do norte da
Europa, mais ouvidas na segunda metade do século XII, sendo considera-
da uma espécie de consciência espiritual da época.
A sua obra é vastíssima e diversificada, integrando três dimensões:
(1) epistolar e poética34, (2) tratados científicos e (3) tríptico visionário.35

32 Cf., Maria Leonor Xavier, “Hildegarda de Bingen. As suas visões e as suas


razões”, in Maria Luisa Ribeiro Ferreira (org), Pensar no Feminino, Lisboa,
Colibri, 2001: 189-205.
33 Ana Maria Jorge, “Testemunhar Deus no Feminino. Histórias de vida na Igreja
medieval”, op. cit.: 38.
34 Joaquim Félix de Carvalho e José Tolentino Mendonça coordenaram uma
publicação bilingue com alguma obra poética da autora: Hildegard von Bingen,
Flor Brilhante, Lisboa, Assírio e Alvim, 2004.
35 Cf., Hildegarde de Bingen, Le livre des oeuvres divines, Paris, Albin Michel,
1982: « Présentation”: xv-ci.
84 Fernanda Henriques

Para além da sua música, que se divulgou muito no final do século


XX, a obra teórica mais interessante é constituída pela trilogia ou tríptico
das suas visões: o Liber scivias Domini, cujo título é uma abreviatura de
Scito vias Domini (Conhecei os caminhos do Senhor), composto entre
1141 e 1150, o Liber vitae meritorum, composto entre 1158 e 1163 e o
Liber divinorum operum, composto entre 1163 e 1170.
Também a estrutura narrativa deste tríptico é paradoxal – trata-se de
uma obra que, antes de mais, narra as visões de Santa Hildegarda e são
essas visões que sustentam e legitimam os textos que, segundo uma das
maiores estudiosas de Hildegarda de Bingen, Adelgundis Führkötter, não
se inscrevem na linha mística que conduzirá até Teresa d’Ávila, mas
antes nos profetas do Antigo Testamento.
Hildergarda de Bingen quer ser um veículo da transcendência, um lu-
gar de passagem. Nesse sentido, repete dois temas incansavelmente:
sempre teve visões e é ignorante. Um e outro querem descentrar o olhar
de si mesma para o verdadeiro lugar de emissão do discurso: a voz divi-
na, origem da verdade e da salvação. Nesse sentido, a interpretação das
visões é tão importante como a sua descrição pormenorizada porque a
visão e a sua significação fazem uma totalidade. Na verdade, Hildegarda
de Bingen quer-se apagar completamente como autora. Aliás, reitera que
só passou à comunicação das suas visões quando isso lhe foi imposto –
“Escreve o que vês e o que ouves”, recebe como ordem e, por isso, em-
preende a comunicação das suas visões com mais de 40 anos de idade,
embora elas sempre a tenham acompanhado.
Ana Maria Jorge chama bem a atenção para o paradoxo que representa a
figura de Hildegarda de Bingen e como, enquanto paradoxo, põe de manifes-
to a complexidade da situação das mulheres na Idade Média. Diz ela:
Ela mostra bem como a mulher, excluída por muitos da cultura erudita
e da esfera do poder na época medieval, podia reivindicar pelas letras e
pelo vigor do estilo de vida o privilégio de “ver” a Cristo e de O teste-
munhar. A sua vida de monja fala-nos da vitalidade do Evangelho que
desconcertou e desafiou a sua época mesmo para além dos muros do
claustro.36
Esta referência ao facto de Hildegarda de Bingen ser monja não é ir-
relevante. Na verdade, os conventos representam outra dimensão de
ambiguidade da Idade Média em relação às mulheres. Embora também
a este nível haja várias linhas de discriminação, desde a existência de

36 Ana Maria Jorge, “Testemunhar Deus no Feminino. Histórias de vida na Igreja


medieval”, op. cit.: 38.
Filosofia e Género 85

um número inferior de espaços conventuais para mulheres e homens, 37


até ao facto da imposição de uma tutela masculina nos conventos femi-
ninos, a verdade é que os conventos foram, igualmente, lugares de
liberdade para as mulheres, permitindo o seu desenvolvimento intelec-
tual e a sua criatividade.
Neste contexto – e também como elemento de estranheza no quadro
da situação subalterna das mulheres na Época Medieval – importa ter em
atenção o movimento das Beguinas.
A etimologia do nome beguina não é pacífica. Há muitas e divergentes
hipóteses de radicação da palavra.
Em si mesmo, o movimento das Beguinas é um movimento de espiri-
tualidade que se desenvolveu sobretudo nos Países Baixos e na Alema-
nha, onde ainda hoje é possível encontrar os seus espaços, sendo constitu-
ído por mulheres sozinhas que não faziam votos, mas dedicavam a vida à
oração, ao ensino e às boas obras, vivendo em pequenas comunidades,
não conventuais, que se organizavam em pequenas aldeias em torno de
uma Igreja. Aquilo que constitui estranheza no seu modo de vida é uma
espécie de secularização em que viviam e também a sua independência
em relação a uma tutela masculina. Do ponto de vista da espiritualidade a
sua importância é revelada por várias intervenções da Cúria em relação à
sua existência, umas vezes condenando-as outras aceitando-as.
Ficaram como nomes mais destacados deste movimento38: Marguerite
Porète que foi queimada por heresia, Mathilde de Magdebourg, Hedewi-
ges de Antuérpia e Juliana de Norwich.

Dentro do espírito da leitura que se quer apresentar aqui, o importante


de tudo o que ficou dito é consciencializar que é preciso olhar para o
nosso passado histórico com abertura e com a convicção que ele tem
muito para nos revelar acerca do modo como mulheres e homens viveram
e pensaram.

37 Cf., Paulette L’hermite Leclercq, «Les femmes dans la vie religieuse au Moyen
Âge. Un bref bilan bibliographique», CLIO. Histoire, femmes et sociétés [En
ligne], 8 | 1998, mis en ligne le 03 juin 2005, consulté le 03 juin 2013. URL:
http://clio.revues.
org/323; DOI: 10.4000/clio.323.
38 Cf., Georgette Epiney-Burgard, Emilie Zum Brunn, Femmes troubadours de Dieu,
Turnhout, Editions Brepols, 1988.
2 – A IDADE MODERNA E A DIMENSÃO
PÚBLICA DO DEBATE PELA CIDADANIA
NO FEMININO

2.1. Exploração da herança cartesiana

2.2. A Revolução Francesa e a criação da Sociedade Moderna: inclusão e


exclusão

Seja como Projeto inacabado, seja como Projeto fracassado, a concetua-


lização da Modernidade continua a trabalhar-nos. No contexto dessa
afirmação, gostaria aqui de retomar as considerações de Vattimo em
O fim da Modernidade1, no que diz respeito à demarcação entre história
– o processo objetivo que nos integra – e historicidade – modo específico
de estarmos conscientes de pertencer à história como processo.
Ao fazer essa demarcação, aliás assente numa perspetiva heideggeria-
na, Vattimo quer igualmente salientar que a possibilidade de realizar uma
História Universal/unitária é radicalmente posta em causa com aquilo que
habitualmente se designa por pós-modernidade, sobretudo pelo facto de –
a fazer-se – ela representaria sempre e só o imperialismo de um ponto de
vista – o dos vencedores.
É, exatamente, por essa consciência da historicidade que a História
nos trabalha. Ou seja, a nossa relação com a História dá-se no quadro da
semântica do conceito heideggeriano de Verwindung, isto é, como algo
de que estaremos sempre convalescentes – com um certo tipo de ligação
– mesmo quando tomamos em relação a ela distância crítica.
No caso da questão das mulheres esta ideia é particularmente impor-
tante, porque foi na Modernidade que se forjou um novo imaginário

1 Gianni Vattimo, O Fim da Modernidade, Lisboa, Presença, 1987.


88 Fernanda Henriques

antropológico e social que poderia ter sido a oportunidade teórica de


ultrapassar o enviesamento antropológico discriminador das mulheres e
do feminino que o pensamento tradicional dominante sustentava; contu-
do, a Modernidade acabou por excluir o feminino e as mulheres das
novas conceções e pontos de vista, sendo dessa perspetiva ganhadora que
ainda hoje estamos convalescentes.
O projeto da Modernidade, como o define, entre outros, Habermas2,
foi formulado no século XVIII pelos filósofos ilustrados, tendo como
meta central desenvolver o conhecimento, fundar universalmente a moral
e o direito e, em última análise, potenciar o desenvolvimento das possibi-
lidades cognoscitivas e aproveitá-las para uma configuração racional das
relações humanas. Ou seja, podemos dizer acerca do projeto da Moderni-
dade que ele corresponde a um triunfo da Razão, vista como recurso de
análise, de progresso e de emancipação.
Dentro desta perspetiva, cabe perguntar o que resultou para a concetu-
alização da natureza das mulheres e do feminino deste triunfo da Razão3.
Lamentavelmente, o fervilhar das ideias que então se concretizou não
contribuiu para apagar a ideia antropológica mais enraizada na nossa
cultura, de fazer do macho a verdadeira forma da humanidade e, pelo
contrário, fazendo calar todas as novas possibilidades de concetualização
do feminino que então emergiram, conseguiu vestir a mesma ideia com
novas roupagens. Contudo, poderia ter sido de outra forma, porque algu-
mas mulheres e alguns homens trouxeram à luz do debate público novas
formas de pensar a humanidade nas suas duas morfologias, pretendendo
que também as mulheres lograssem usufruir do processo de emancipação
e autonomia que a Modernidade instaurou.
Na verdade, os alvores da idade moderna originaram a configuração
de dois percursos possíveis para as mulheres, que se podem substanciali-
zar na linha que articula Descartes (1596-1650) com Rousseau (1712-

2 Cf., especialmente, Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade,


Lisboa, Dom Quixote, 1990.
3 No quadro da abordagem racional que se queria desenvolver, considero muito
interessante e significativo da situação das mulheres o modo como elas aparecem na
Encyclopédie de Diderot e D’Alembert. Na verdade, o artigo Femme tem 3
abordagens feitas por três autores diferentes – todos homens, evidentemente:
1 Abade Mallet – antropologia, onde é analisada a inferioridade da mulher e se
procura ver se há razões para essa inferioridade; 2. De Jaucourt – direito natural,
onde, como fêmea do homem, a mulher é definida essencialmente como propriedade
do marido; 3. Corsambleu Desmahis – moral, onde se desenvolvem as ideias comuns
aceites como fazendo parte da natureza das mulheres. No texto, antes referido, de
Michèle Crampe-Casnabet, faz-se uma análise interessante desta situação.
Filosofia e Género 89

-1778), que saiu vencedora, e na que, partindo também, de Descartes, o


faz aliando Poulain de la Barre (1647-1723) e Mary Wollstonecraft
(1759-1797) que, embora derrotada ao nível do pensar dominante, repre-
senta a prova de que a dominação masculina não foi sempre universal-
mente aceite e a nossa herança histórica poderia ter sido outra.
O presente capítulo pretende dar corpo a esse conflito e às contradi-
ções que ele patenteia.
Na verdade, a Modernidade foi capaz de pensar princípios de grande
valor antropológico, como os de autonomia e de liberdade; foi, igualmente,
capaz de os explorar e de os afirmar como universais; todavia, simultanea-
mente, não foi capaz de os estender a toda a humanidade, excluindo deles,
para o que aqui é o caso, as mulheres4. Evidentemente que para isso foi
necessário encontrar razões justificativas e construir teorias legitimadoras.
Os princípios filosóficos cartesianos, quer numa decisão explícita, quer
como assimilado histórico, tiveram aí uma importância decisiva.

2.1. Exploração da herança cartesiana

Para aquilo que aqui nos ocupa, a problemática das conceções filosóficas,
a Modernidade começa com Descartes.
Hegel e Heidegger, dois eminentes intérpretes da tradição filosófica
ocidental, tendem a ver em Descartes o iniciador de um novo modo de
pensar.
Para Heidegger, é ele quem empresta o seu perfil ao projeto moder-
no do mundo, ele quem expressa a “decisão” ontológica da moderni-
dade, pela qual a verdade se converte no que se alcança “com méto-
do”. [Por ter sido] ele ainda quem deu à questão do método uma tão
clara prioridade sobre a questão do ser, que esta passa a ser tida em
conta somente na perspetiva do que dessa maneira se deixa desco-
brir[…].5
Para Hegel: Só agora chegamos propriamente à filosofia do mundo
novo, e começamos esta com Descartes. Com ele entramos especifica-
mente numa filosofia independente que sabe provir de maneira autó-

4 Sobre esta questão de quem ficou de fora da concetualização libertadora da


Modernidade, ver o excelente texto de Boaventura de Sousa Santos, “Para além do
Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes”, Revista
Crítica de Ciências Sociais, 78, Outubro 2007: 3-46.
5 Irene Borges-Duarte, “Descartes e a Modernidade, na Hermenêutica Heideggeria-
na”, in Aavv, Descartes, Leibniz e a Modernidade, Lisboa, Colibri, 1998: 507-524
– 510-513.
90 Fernanda Henriques

noma da razão e que sabe ser a consciência de si o momento essencial


do verdadeiro.
(…) Descartes é um dos homens que começaram outra vez tudo do
princípio; com ele levanta-se a cultura, o pensar da nova época6.
Um e outro autor colocam, pois, Descartes como um iniciador.
Hegel considerando Descartes como um recomeço essencial, sendo
que essa decisão tem a ver com a essência da verdade, da verdade do
verdadeiro; Heidegger acentuando que a novidade cartesiana é a ideia
de método.
Também para algumas feministas, algo se inicia com Descartes. E esse
algo foi particularmente nefasto para as mulheres. Na verdade, quer a ideia
de método, quer a correspondente conceção de razão em que assenta a
posição cartesiana sobre a dualidade substancial servirão como bases para
acantonar as mulheres a uma região espiritual diminuída e, poderíamos
mesmo dizer, fora do campo da racionalidade, como se verá a seguir.

A – A dualidade substancial e a representação do feminino:


o debate em torno da natureza prática da racionalidade
femininanos alvores da Modernidade
Como já se disse antes, para Geneviève Lloyd é a Descartes que de-
vemos uma teoria do espírito que permite fundamentar uma divisão
sexual do trabalho mental, na sequência da qual foi atribuída às mulheres,
como tarefa, o resguardar da sensibilidade e aos homens o desenvolvi-
mento da razão. Diz ela:
A tarefa da Mulher é a de preservar a esfera da interligação entre o
espírito e o corpo, a que o Homem de Razão recorrerá para conforto,
calor e descanso. Se ele pretende exercitar a mais exaltada forma de
Razão, deve ter por detrás emoções suaves e sensualidade; a mulher
mantê-las-á intactas para ele. Estava, então, aberto o caminho para as
mulheres serem associadas não apenas a uma presença inferior da
Razão, mas a uma forma diferente de carácter intelectual, construída
como complementar da Razão “masculina”7.

6 Hegel, Lições de História da Filosofia, citado a partir de: Manuel Carmo Ferreira,
“A leitura hegeliana de Descartes”, in Aavv, Descartes, Leibniz e a Modernidade,
op. cit.: 437-447 – 437.
7 Genevieve Lloyd, The man of reason, “male” and “female” in Western Philosophy,
Londres, Routledge, 1993: 30.
Filosofia e Género 91

Contudo, não foi a filosofia cartesiana a responsável direta desta situ-


ação, mas a operacionalização educativa que Rousseau levou a cabo e
que tratou as mulheres como enteadas.
A obra pedagógica de Rousseau é, sem sombra de dúvida, o legado
mais funesto que as mulheres herdaram e, lamentavelmente, herdaram-no
de alguém que representa, na memória histórica, uma referência funda-
mental para pensar a democracia e a educação.
Para Rousseau, a pedagogia tem uma dimensão política. A remissão
que faz para Platão – que define na sua República a paideia capaz de
formar bons ou boas governantes, ou seja, aqueles e aquelas que têm
capacidade para adquirir as condições para dirigir uma cidade justa –,
deixa perceber não só o sentido político que atribuía à educação, como
também põe de manifesto que a sua proposta educativa tinha em vista a
construção de uma Cidade Nova. Nessa medida, a configuração diferen-
ciada que faz da educação masculina e da feminina, em função de uma
ideia de natureza humana idealizada, simultaneamente supõe e produz
uma conceção do feminino ligada à fragilidade, à sensualidade e à sujei-
ção, marcando, claramente, a ideia de que a racionalidade feminina se
restringe a uma natureza estritamente prática.
Em Émile representa-se um ser genérico, um homem universal, e, por-
tanto, está em questão uma perspetiva educativa que decorre de uma
determinada conceção de natureza humana.
Tendo isso em conta como dado, fácil se torna perceber como no proje-
to emancipador proposto por Rousseau para a realização do ser humano,
pior do que estarem excluídas, as mulheres estavam consideradas como
instrumentos ao serviço do desenvolvimento da outra parte da humanidade.
Ao contrário da educação de Émile – que deveria respeitar o seu ritmo
individual e salvaguardar o fortalecimento da sua liberdade e autonomia,
configurando a sua força e especificando a sua individualidade –, a edu-
cação de Sophie é perspetivada na base de que o feminino não tem indi-
vidualidade. Nas mulheres, o indivíduo é o espelho do grupo. A identida-
de feminina é pensada e apresentada como a de um coletivo, definindo
um destino e uma prisão. Não há individualidades entre as mulheres. Para
Rousseau, de tal maneira todas as mulheres se equivalem que ele retira
qualquer valor representativo às mulheres que, por qualquer motivo, se
distinguiram do seu destino comum. Nelas predomina a regra e não a
exceção, e a regra é: beleza, manha, fraqueza, desregramento, arbitrarie-
dade, sensibilidade, docilidade, dependência, fragilidade. A existência de
uma diferença radical entre a natureza humana masculina e a feminina,
pensada em termos de assimetria valorativa, era um dado evidente para
Rousseau:
92 Fernanda Henriques

O ser supremo quis em tudo fazer honra à espécie humana: ao dar ao


homem inclinações desmedidas, deu-lhe, ao mesmo tempo, a lei que as
regula, para que ele seja livre e se comande a si mesmo; ao atribuir-lhe
paixões imoderadas, juntou a essas paixões a razão para as governar;
ao atribuir à mulher desejos ilimitados, juntou a esses desejos o pudor
para os conter.8
Não são apresentados argumentos justificativos, mas o texto não tem
dúvidas em colocar o homem na esfera da racionalidade, com a qual pode
estruturar e gerir as suas tendências para o desregramento, e a mulher fora
dela, estando, por isso, impedida de poder realizar qualquer gestão de si
mesma. Para as mulheres, destituídas de uma racionalidade plena, só resta
esperar que o pudor as obrigue a controlar os instintos.
A razão fundamental da esquematização desta diferença assimétrica
entre os dois sexos assenta na inscrição direta das mulheres no plano da
natureza, sendo o feminino o lugar a partir do qual se pensa o sexo.
Homem e mulher são sexuados, mas a sexualidade é apenas constitutiva
da natureza feminina, porque a mulher é sempre e só fêmea, enquanto no
homem o sexo é apenas uma das suas múltiplas determinações.
Assim, o destino comum das mulheres é serem educadas para agradar
e dar prazer aos homens, e a última parte de Émile está destinada a definir
as regras dessa educação de maneira a retirar às mulheres qualquer possi-
bilidade de, ao menos, transformar esse destino em projeto pessoal. A
debilidade da sua natureza obriga a que estejam sempre sujeitas ao domí-
nio de um homem qualquer: o pai, o marido ou, até, um filho.

B – A inusitada interpretação cartesiana de Poulain de la Barre


François Poulain de la Barre (1647-1725) representa outra herança
cartesiana possível, mas que, todavia, não deixa de ser totalmente inusita-
da. Nas palavras de Celia Amorós, Poulain de la Barre é a fonte para
dotar o feminismo da sua própria memória crítica9.
Completamente desconhecido dos Departamentos de Filosofia, este
autor foi, contudo, um exemplar discípulo de Descartes porque pensou a
partir dos princípios cartesianos, não tendo sido um mero comentador do
seu pensamento. Daniel Armogathe considera que Poulain de la Barre, de
facto, aplicou e desenvolveu os princípios da filosofia cartesiana, mas
também o fez, por vezes, ao nível da sua vulgarização por estar mais

8 J.J. Rousseau, Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1969, tomo IV: 448.
9 Celia Amorós, Tiempo de Feminismo, Madrid, Cátedra, 1997: 109.
Filosofia e Género 93

interessado nas suas aplicações concretas do que no seu rigor teórico,


propondo mesmo que Poulain de la Barre seja considerado o verdadeiro
fundador da sociologia10.
Poulain de la Barre foi, simultaneamente, precursor de algumas posi-
ções teóricas, como a da igualdade entre os sexos e entre os seres huma-
nos em geral, e também um, chamemos-lhe, ‘ativista’ em relação aos
ideais da Modernidade a despontar.
Geneviève Fraisse, no seu interessante artigo sobre o processo desen-
volvido por Poulain de la Barre em relação aos preconceitos, fazendo
uma revisão do conjunto dos trabalhos daquele autor, salienta os três
temas centrais e inovadores sobre os quais Poulain de la Barre se centrou:
(1) a língua francesa ou a modernidade, (2) a igualdade entre os sexos e
(3) a necessidade de praticar o livre exame nas questões religiosas11.
Poulain de la Barre nasceu em Paris e estudou teologia na Sorbonne,
onde se formou na tradição escolástica. Contudo, essa formação foi
perturbada pelo facto de, enquanto estudante, em 1671, ter descoberto,
numa semi clandestinidade [a] filosofia cartesiana12 à qual se ‘conver-
teu’. O impacto do pensamento cartesiano em Poulain de la Barre foi tão
grande que ele próprio o comenta na sua obra De l’éducation des Dames.
Poulain de la Barre foi padre católico, mas, em 1688, tornou-se calvi-
nista e deslocou-se para Genève, onde morreu.
Entre 1673 e 1676, este autor publicou três obras em torno da questão
da igualdade entre os sexos, a saber: (1) De l’éducation des dames pour
la conduite de l’esprit dans les sciences et dans les moeurs, Entretiens, (2)
De l’excellence des hommes contre l’égalité des sexes, (3) De l’égalité
des deux sexe, Discours physique et moral ou l’on voit l’importance de se
défaire des préjugés13. Estas obras não tiveram a repercussão que o autor

10 Cf., Daniel Armogathe, “De l’égalité des sexes, ‘la belle question’”, Corpus.
Revue de philosophie, n.º 1 (1985): 17-26. No mesmo número da Revista Corpus,
o artigo de Christine Fauré fala, igualmente, da relação do autor com a sociologia:
Cf., Christine Fauré, “Poullain de la Barre, sociologe et libre penseur”: 43-51.
11 Cf., Geneviève Fraisse, “Poullain de la Barre, ou le procès des préjugés”, Corpus.
Revue de philosophie, op. cit.: 27-41.
12 Daniel Armogathe, “De l’égalité des sexes, ‘la belle question’”, op. cit.: 17.
13 As datas de publicação das obras não aparecem sempre da mesma forma em
edições e comentários diferentes. Contudo, a publicação de Sur l’égalité … tem de
ser a primeira, uma vez que as outras duas obras lhe fazem referência. Os textos
que aqui vou citar encontram-se on line, em fac-simile, na Biblioteca Nacional de
França. Nesse sentido, porei apenas a referência ao número de página, em qual-
quer citação. Em relação a estes textos, ao contrário dos outros textos citados,
limitei-me a atualizar a grafia, sem os traduzir.
94 Fernanda Henriques

desejava. Ele esperava reações e críticas que não aconteceram. Só no


século XX, as suas ideias foram, efetivamente, compreendidas e aceites.14

Análise das obras de Poulain de la Barresobre a igualdade entre os sexos


As três obras acima referidas, ainda que escritas no horizonte da defe-
sa da igualdade entre os sexos, focam, contudo, o problema de diferentes
maneiras, aliás, como os próprios títulos indicam.
De l’éducation des dames
Em De l’éducation des dames, o autor expõe, quase sistematicamente,
a sua relação com Descartes e o modo como o interpreta. Nela aparecem
todos os temas importantes da filosofia cartesiana na sua dimensão de
rutura com um pensar tradicional, nomeadamente, a dúvida e a separação
dos preconceitos, o cogito e o saber de si como princípio e orientação de
todo o saber, o método e a importância da ordem, as ideias claras e distin-
tas como critério de verdade. Todavia, Descartes aparece como alguém
que abre um caminho, mas que não é para seguir cegamente. O próprio
Poulain de la Barre se assume como intérprete de Descartes, designada-
mente na forma como analisa a dúvida que pragmatiza. Di-lo assim:
Néanmoins pour être en état de rendre raison de nôtre propre existence
autrement que ne ferait un ignorant, si quelqu'un nous la demandait il
faut nous-faire à nous mêmes les mêmes demandes que d'autres nous
pourraient faire et conclure que nous existons, parce que ce qui doute
agit, et que ce qui agit existe15.
O texto evidencia a importância da dimensão de ação que a atividade
do pensar pode ter e não apenas o facto teórico do pensar. No quadro
dessa eficácia pragmática do pensar, ou seja, da sua repercussão no plano
da vida em comum e das relações interpessoais,16 duvidar deve ter um

14 Daniel Armogathe, no texto antes referido, dá, no entanto, conta que as obras
foram lidas: Pourtant ses trois oeuvres furent souvent réédités: quatre rééditions
pour De l’égalité, deux pour De l’éducation, et trois pour De l’excellence. En
outre De l’égalité fut traduit en anglais em 1676, et fut ainsi connu de Mary
Wolstonecraft et de Stuart Mill. (24).
15 Poulain de la Barre, De l'éducation des dames: 114.
16 Se nos lembrarmos do comentário de Daniel Armogathe, atrás referido, de que
Poulain vulgarizou o pensamento cartesiano, podemos compreender que há uma
apreciação negativa da inflexão prática da sua obra. No meu entender, esta posição
releva, apenas, do velho preconceito sobre a supremacia do trabalho teórico. A
análise dos três textos de Poulain de la Barre põe em evidência o seu enfrentamento
Filosofia e Género 95

pendor ativo. Para Poulain de la Barre, a certeza de si não tem tanto o


objetivo de ser a base de um sistema teórico, mas de fundar um modo de
estar e de viver de acordo com a verdade, a justiça e o bem. O saber para
o qual Poulain de la Barre quer despertar as suas interlocutoras e o seu
interlocutor tem a sua finalidade na formação de pessoas íntegras que
estejam de bem consigo próprias e com as outras pessoas. O quadro do
projeto e programa educativo que esta obra patenteia – e que, para o autor,
tanto serve para as mulheres como para os homens – assenta naquilo em
que, para ele, Descartes deve ser guia, a saber, o princípio cartesiano de se
pensar apenas a partir do trabalho da racionalidade, pondo de parte os
preconceitos ou ideias feitas. Aquilo que salienta do cartesianismo como
inovador é a denúncia dos preconceitos e a aplicação do método racional
na pesquisa da verdade. Neste sentido, diz no Avertissement da obra,
Or la principale et la plus importante de toutes est qu’il faut établir
dans les hommes, autant qu'on le peut, une raison souveraine qui les
rende capables de juger de toutes choses sainement et sans prévention.
Essa luta contra o preconceito ou, como ele diz, des jugements portés
témérairement et sans examen ou bien des sentiments, des opinions, des
maximes embrassées sans discernement, é tanto mais importante quanto a
fragilidade da constituição humana nos faz crescer sob a dependência de
quem acompanha esse crescimento, cujo olhar sobre o mundo e sobre as
coisas determina totalmente o modo de ver de quem cresce:
Parce que les discours que l'on nous fait alors n’est pas seulement pour
nous montrer les choses dont on nous parle mais encore pour nous en
marquer la bonté ou la malice, l'impression des objets qui nous tou-
chent par les yeux étant fortifiée par celle que nous recevons en même
temps par les oreilles17.
A educação de cada qual é, de alguma maneira, um novo nascimento,
uma tarefa pessoal de construção de si mesmo. Daí que o mais importante
dessa educação não seja a erudição, nem a leitura de muitos livros, mas

com o preconceito como base do erro e obstáculo ao atingir da verdade. Como


sublinha Geneviève Fraisse, La question du préjugé, comme question philosophique,
est, à mon avis, un point nodal de l’oeuvre de Poullain de la Barre. (36).
17 Poulain de la Barre, De l’éducation des dames: 61. Em De l’Égalité, o autor chama a
atenção para a mesma situação de outra maneira: Et il est d’autant plus important de
remarquer que les dispositions que nous apportons en naissant, ne sont ni bonnes ni
mauvaises, qu’on ne peut autrement éviter une erreur assez ordinaire par laquelle
on rapporte souvent à la nature ce qui ne vient que de l’usage.(66)
96 Fernanda Henriques

sim ler bem, com método, e praticar a reflexão em si mesma e sobre a


experiência pessoal:
En un mot, il faut faire sur toutes choses peu de lecture mais qui soit
bonne, beaucoup d’expérience, de réflexions, et de raisonnements18.
Esta obra sobre a educação das damas, ainda que defendendo a igual-
dade entre os sexos na capacidade de aceder ao saber, está construída
com uma argumentação perfeitamente integrada no seu tempo. O mesmo
não se poderá dizer das outras duas obras, De l’excellence des hommes
contre l’égalité des sexes e De l’égalité des deux sexes, cuja perspicácia e
argumentação ultrapassam em muito os quadros da época. Dir-se-ia uma
pessoa do século XX ou XXI a argumentar, sobretudo pela clareza e
profundidade com que os argumentos são esgrimidos e pela compreensão
das problemáticas que demonstram.
De l’excellence des hommes
De l’excellence des hommes é uma obra eminentemente irónica.
Construída em 4 partes – Prefácio, 1.ª Parte; 2.ª Parte e Comentários
necessários –, constitui-se, em si mesma, como argumento e contra-
-argumento.
Como se diz no Prefácio, o título da obra não é pour prouver qu’ils
sont plus excellents que les femmes, étant persuadé du contraire plus que
jamais, mais seulement pour donner moyen de comparer les deux senti-
ments opposés et de mieux juger lequel est le plus vrai19.
Neste Prefácio, de mais de 102 páginas, o autor parte dos textos bíblicos
tidos como clássicos para mostrar, ao longo dos tempos, a inferioridade das
mulheres como algo querido e estabelecido pelo próprio Deus e faz uma
hermenêutica crítica deles, terminando a sua análise dizendo o seguinte:
Il y a trois ou quatre considérations qui contrebalancent tout ce que
l’on peut tirer de l’Ecriture contre nous.
1.º Elle ne parle point de toutes les femmes.
2.º Elle en dit du moins autant de bien que de mal.
3.º Tout ce qu’elle dit de mal touchant les hommes, surpasse autant ce
qu’elle en dit des femmes, que l’on croit que notre sexe est plus excel-
lent que le leur.

18 Poulain de la Barre, De l’éducation des dames: 317.


19 Poulain de la Barre, De l’excellence des hommes: 4.
Filosofia e Género 97

4.º Et ce qu’elle dit contre les femmes se peut aussi justement appliquer
aux hommes en substituant le mot d’homme pour celui de femme20.
Embora toda a análise realizada por Poulain de la Barre seja relevante,
as considerações totalmente desconstrutoras que leva a cabo no quadro do
livro do Génesis são, a meu ver, particularmente argutas. Em termos de
síntese, o autor quer mostrar as cinco situações seguintes:

inferior a Adão. Isso, acrescenta, foi uma conclusão humana, com muitas
outras, em que os homens fazem dizer a Deus o que lhes interessa.
Deus fez
primeiro o homem. Na sequência desta afirmação argumenta contra
aqueles que interpretam que Eva foi tirada do lado de Adão para se
submeter a ele, ainda que tivesse dignidade, porque se Deus a tivesse
querido fazer igual tê-la-ia tirado da cabeça ou se a quisesse fazer total-
mente sem dignidade a teria tirado dos pés, dizendo que se Deus a tirou
do lado poderá ser para seguirem a par: pour leur apprendre qu’ils dévoi-
ent aller de pair et coté à coté l’un de l’autre21.
a para Adão não tem de implicar domí-
nio deste sobre aquela. Neste particular, não deixa mesmo de ironizar,
chamando a atenção para o facto de que, na realidade, quem ajuda é
sempre superior a quem é ajudado, sendo, por isso, que pedimos a ajuda
de Deus.
A afirmação de que “as mulheres ficarão sujeitas aos seus maridos”
– depois do pecado – só vem na Vulgata, e acrescenta que mesmo que
não fosse esse o caso, em lado nenhum aí se fala de sujeição e que, no
máximo, isso seria um castigo por uma falta cometida e não teria nada a
ver com uma questão de natureza. Neste sentido, acrescenta, ainda, que
tal afirmação remete para uma situação anterior em que nenhum sexo
estaria subordinado ao outro.
De todos os argumentos aduzidos pelo autor, o que mais me surpreen-
de é aquele em que recorre ao uso da linguagem para encontrar um fun-
damento justificativo do facto de os homens se terem considerado mais
imagem de Deus do que as mulheres. Diz ele sobre isto:
Je ne sais même si le préjugé du langage ne contribue point à cette opi-
nion, et si les mâles ne croient pas aussi qu’ils s’approchent plus de

20 Ibidem: 93-94.
21 Ibidem: 19.
98 Fernanda Henriques

Dieu et qu’ils en sont plus estimés parce qu’ils le font parler comme
eux, en disant qu’il est Roy, Seigneur, père etc et non pas Reine, Dame,
mère, etc22.
Na sequência desta análise, a primeira parte do texto centra-se no pre-
conceito e na sua desconstrução. Começa pela ideia de que temos em nós,
sem questionar, um conjunto de ideias feitas, sendo que há uma fundamen-
tal: a desigualdade entre os sexos que decorre do costume, das leis, da
organização social, da leitura dos textos sagrados e da ausência de questio-
namento. Ou seja, Poulain de la Barre explica o estado de coisas vigente no
seu tempo sobre a diferença entre os sexos, para, a seguir, mostrar, através
de uma análise racional, que essas ideias são inconsistentes.
A segunda parte do texto é totalmente irónica – ela retoma os textos, os
autores e os exemplos dados anteriormente para justificar o uso tradicional
que é feito deles em desfavor da representação do feminino e das mulheres.
Finalmente, o autor considera que tem de clarificar, sem dúvidas pos-
síveis, a sua posição, dizendo:
Quoi que ce qu’il y a dans le livre de l’Égalité des Sexes et dans le Pré-
face de celui-ci puisse suffire pour satisfaire à toutes les difficultés con-
sidérables que l’on peut avoir sur ce sujet, il ne sera pas néanmoins
inutile d’y ajouter quelques remarques.
Il faut en cette rencontre comme en toute autre, prendre bien l’état de la
question, c’est-à-dire voir de quoi il s’agit précisément, et quel est le
dessein de celui qui parle pour demeurer dans les termes et les bornes
qu'il se prescrit. Nous prétendons amplement que les deux sexes consi-
dérés selon les avantages naturels du corps et de l’esprit sont également
capables, également nobles et également estimables23.
De l’égalité des deux sexes
É em De l’égalité des deux sexes que Poulain de la Barre apresenta
diretamente a sua posição sem desvios por outros temas, como é o caso
da Educação, em De l’éducation des dames, ou pela mediação de uma
retórica irónica, como em De l’excellence des hommes.
Aqui não somente se apresenta a nu o problema do preconceito, como
se mostram as suas causas, denunciando-o como preconceito.
A obra tem uma introdução onde aparecem os recursos cartesianos
que vão estar na base do desenvolvimento da argumentação, designada-
mente: 1. O valor da argumentação racional; 2. O valor da dúvida para

22 Ibidem: 61.
23 Ibidem: 267-268.
Filosofia e Género 99

destruir os preconceitos; 3. O valor do método no alcançar da verdade; 4. O


ter apenas em conta as ideias claras e distintas e a evidência como seguran-
ça da verdade; 5. O dever de procurar a verdade contra as opiniões.
É, pois, a partir da exploração da filosofia cartesiana que o autor ques-
tiona os preconceitos sobre o feminino e a feminidade, defendendo que a
conceção da desigualdade entre os sexos advém, apenas, do interesse e do
costume, não se fundamentando em nenhum tipo de razões consistentes.
Aquilo que, ao longo dos séculos, determinou a desigual situação entre
mulheres e homens assenta, somente, na força e não na racionalidade. Por
isso, continua ele a defender, é necessário que a educação questione este
preconceito e se ocupe em formular uma concetualização da natureza
humana com base em critérios puramente racionais.
Poulain de la Barre sabe que a tarefa de desfazer os preconceitos é di-
fícil e que a razão raramente sai vencedora, por isso, afirma:
Si l’on cherche sur quoi sont fondées toutes ces opinions diverses, on
trouvera qu’elles ne le sont que sur l’intérêt, ou sur la coutume; et qu’il
est incomparablement plus difficile de tirer les hommes des sentiments où
ils ne sont que par préjugé, que de ceux qu’ils ont embrassés par le motif
des raisons qui leur ont paru les plus convaincantes et les plus fortes.24
Com base na ideia de que foi a força que sempre venceu e não a razão,
o autor vai fazer uma genealogia possível do estado de coisas atual,
procurando imaginar um estado de natureza. Nesse contexto, descreve a
relação entre mulheres e homens desde uma situação primitiva, onde
haveria um paralelismo entre os sexos, até à complexificação das relações
sociais que, paulatinamente, foi excluindo as mulheres do poder, da
religião e do conhecimento.
Dos argumentos esgrimidos para acentuar a ideia de que é por puro
preconceito que se excluem as mulheres do conhecimento e do trabalho,
deve-se salientar aquele em que ele chama a atenção para o facto de que
se a exclusão ou inclusão dos indivíduos se fizesse com base na razão,
então, teriam de ser excluídos todos os homens incompetentes.
Car afin de pouvoir dire que ça a été par raison, il faudrait qu’ils ne les
communiquassent entre eux qu’à ceux qui en sont les plus capables:
qu’ils en fissent le choix avec un juste discernement; qu’ils n’admissent
à l’étude que ceux en qui ils auraient reconnu plus de disposition pour
les sciences; qu’ils n’élevassent aux emplois que ceux qui y seraient les
plus propres, qu’on en exclût tous les autres, et qu’enfin on n’appliquât

24 Ibidem: 267-268.
100 Fernanda Henriques

chacun qu’aux choses qui leur seraient les plus convenables.


Nous voyons que c’est le contraire qui se pratique, et qu’il n’y a que le
hasard, la nécessité ou l’intérêt, qui engage les hommes dans les états
différés de la société civile25.
Esta questão do trabalho também dá conta da “atualidade” de Poulain
de la Barre. Referindo-se aos comentários sobre o ridículo e anti-natural
de as mulheres poderem ocupar-se das ciências, da jurisprudência ou
mesmo do governo e da religião, o autor diz que sim que tal ocupação
seria estranha, mas apenas por não ser habitual e não por qualquer outro
motivo.
O que é interessante ressaltar é que, ao contrário de Rousseau, Poulain
de la Barre tem uma ótima representação das mulheres e das qualidades
femininas, admirando-se de que, apesar da forma como são tratadas e
representadas, elas continuem a ter discernimento, lucidez, graça e sim-
plicidade, sabendo ir ao essencial das coisas. Aliás, ele faz uma análise do
que se poderia chamar “a condição feminina” destacando o seu valor e
mesmo a sua superioridade, dizendo:
L’on pourrait absolument se passer de Princes, de soldats et de mar-
chands, comme l’on faisait au commencent du monde, et comme le font
encore aujourd’hui les Sauvages. Mais on ne peut se passer des femmes
dans son enfance. Les États étant bien pacifiés, la plupart des per-
sonnes qui ont l’autorité, sont comme mortes et inutiles: Les femmes ne
cessent jamais de nous être nécessaires. Les Ministres de la Justice ne
sont guère que pour conserver les biens à ceux qui les possèdent: et les
femmes sont pour nous conserver la vie: les soldats s’emploient pour
des hommes faits, et capables de se défendre; et les femmes s’emploient
pour les hommes, lorsqu’ils ne savent par encore ce qu’ils sont, s’ils ont
des ennemis ou des amis, et lorsqu’ils n’ont point d’autres armes que
des pleurs contre ceux qui les attaquent.
Les Maîtres, les Magistrats, et les Princes, n’agissent souvent que pour
leur gloire, et leur intérêt est particulier; et les femmes n’agissent que
pour le bien des enfants qu’elles élèvent: Enfin les peines et les soins,
les fatigues et les assiduités, auxquelles elles s’assujettissent, n’ont rien
de pareil en aucun état de la société civile.
Il n’y a donc que la fantaisie qui les fasse moins estimer. On récompen-
serait largement un homme qui aurait apprivoisé un Tigre: L’on consi-
dère ceux qui savent dresser des Chevaux, des Singes, et des Éléphants:
on parle avec éloge d’un homme qui aura composé un petit ouvrage qui
lui aura coûté un peu de temps et de peine; et l’on néglige les femmes

25 Ibidem: 17.
Filosofia e Género 101

qui mettent plusieurs années à nourrir et à former des enfants? et si


l’on en recherche bien la raison, l’on trouvera que c’est parce que l’un
est plus ordinaire que l’autre26.

Quoi qu’il en soit, si on voulait examiner quel est le plus excellent des
deux Sexes, par la comparaison du corps; les femmes pourraient pré-
tendre l’avantage, et sans parler de la fabrique intérieure de leurs
corps, et que c’est en elles que se passe ce qu’il y a au monde de plus
curieux à connaître, savoir, comment se produit l’homme qui est la plus
belle, et la plus admirables de toutes les Créatures27.
Há duas coisas particularmente interessantes no raciocínio de Poulain
de la Barre e no seu programa de desconstruir a ideia de que a desigual-
dade entre os sexos tenha uma base racional. Uma é a denúncia de que a
ideia feita sobre o feminino é uma generalização abusiva, porque se
atribui às mulheres em geral as caraterísticas que foram observadas
apenas em algumas delas. A outra refere-se à suspeição daquilo que os
homens dizem sobre as mulheres, porque eles são juiz e parte nessa
matéria e, portanto, dificilmente isentos e que quando fazem apelo aos
autores que fundamentam as suas posições continuam num círculo fecha-
do e, por isso, dentro de uma tradição de preconceitos. Diz, neste contex-
to, a propósito de Aristóteles:
Son disciple Aristote à qui l’on conserve encore dans les Écoles le nom
glorieux de Génie de la nature sur le préjugé qu’il l’a mieux connue
qu’aucun autre Philosophe; prétend que les femmes, ne sont que des
Monstres. Qui ne le croirait, sur l’autorité d’un personnage si célèbre?
De dire que c’est une impertinence, ce serait trop ouvertement choquer
ses suppôts. Si une femme quelque savante qu’elle fût, en avait écrit au-
tant des hommes, elle perdrait tout son crédit, et l’on s’imaginerait
avoir assez fait pour réfuter une telle sottise que de répondre que ce se-
rait une femme, ou une folle qui l’aurait dit28.

26 Ibidem: 34.
27 Ibidem: 64. Aponta ainda o autor que as opiniões contrárias não têm fundamento:
Il y a des Médecins, qui se sont fort étendus, sur le Tempérament des Sexes au
désavantage des femmes, et ont fait des discours à perte de vue, pour montrer que
leur Sexe doit avoir un tempérament tout à fait différent du nôtre, et qui le rend
inférieur en tout. Mais leurs raisons ne sont que des conjectures légères, qui
viennent dans l’esprit de ceux qui ne jugent des choses que par préjugé et sur de
simples apparences. (62)
28 Ibidem: 74.
102 Fernanda Henriques

Esta ideia crítica sobre a autoridade dos antigos pode ser vista como
historicamente coerente. Aquilo que já me parece pouco adequado ao seu
tempo e ressoando a contemporâneo é a afirmação que faz na página
seguinte de que si elles ne sont pas faites comme Aristote, elles peuvent
dire aussi qu’Aristote n’était pas fait comme elles29.

2.2. A Revolução Francesa e a criação da Sociedade Moderna:


inclusão e exclusão

A despeito de o Código Civil Napoleónico ter reduzido as mulheres ao


estatuto de seres humanos menores, na verdade, a Revolução Francesa
contribuiu de modo decisivo para a alteração das representações sociais
do feminino e das mulheres.
Em termos de resultados práticos imediatos os ganhos que as mulheres
obtiveram foram nulos. Todavia, o movimento das ideias e os recursos
argumentativos a que foi necessário recorrer para lhes retirar o estatuto de
cidadãs de pleno direito romperam com uma situação teórica que não
seria jamais restabelecida totalmente.
Como já se referiu, Poulain de la Barre afirmava em De l’excellence
des hommes a sua admiração pelo facto de as próprias mulheres estarem
convencidas da sua inferioridade em relação aos homens, dizendo: Et les
femmes sont elles-mêmes si fortement convaincues de leur inégalité et de
leur incapacité qu’elles se font une vertu non seulement de supporter la
dépendance où elles sont, mais encore de croire qu’elle est fondée sur la
différence que la nature a mise entre elles et les hommes30; embora esse
convencimento ainda hoje perdure em muitas mulheres, ele coabita, pelo
menos, com um fundo de dúvida e com uma série de outros ruídos con-
traditórios, tendo sido o contexto do que esteve em jogo na Revolução
Francesa que o permitiu.

29 O conjunto das três obras acimas referidas, como também já foi dito, consiste
numa exploração inusitada do pensamento de Descartes. Essa exploração é feita,
sobretudo, com base na confiança da razão que Poulain de la Barre, repetindo
Descartes, considera bem distribuída pela humanidade e na qual confia para
destruir o preconceito. Há, contudo, uma outra linha argumentativa usada por
Poulain de la Barre que arranca, igualmente, de Descartes – trata-se do dualismo
substancial, da distinção entre corpo e espírito. Com base nesta perspetiva, o autor
pode defender que a diferença entre os sexos apenas diz respeito ao corpo e que a
alma, unida ao corpo por Deus e segundo as mesmas leis, funciona em ambos os
tipos de corpos da mesma maneira.
30 Poulain de la Barre, De l’excellence …: 118.
Filosofia e Género 103

Elisabeth Sledziewski considera também a Revolução Francesa “como


uma mutação decisiva na história das mulheres”31 porque valoriza o facto
– do meu ponto de vista decisivo – do debate sobre a natureza dos sexos
ter adquirido uma dimensão pública.
Há, que reiterar que o facto de o tema da igualdade e da diferença en-
tre os sexos ter adquirido contornos públicos e ter vindo à ribalta da dis-
cussão representa um ponto sem retorno na representação do feminino e
do estatuto das mulheres na dinâmica societal da nossa cultura.
Efetivamente, as mulheres acabaram por ser remetidas para o espaço
privado do lar e da família e também não conseguiram ganhar a batalha
de uma educação digna; contudo, foi necessário construir uma teoria que
legitimasse esse estado de coisas e, além disso, essa linha teórica vence-
dora teve de se debater com posições antagónicas.
Ganhou Rousseau contra outras vozes, mas elas existiram e mostraram
que pelo menos havia argumentos tão válidos para sustentar a igualdade
entre os sexos como para sustentar a sua diferença. Do ponto de vista das
ideias, a mudança foi, realmente, qualitativa.
Particularmente, nos anos entre 1789 e 1793 – anos da morte de
Olympe de Gouges e da perseguição a Condorcet, que morreria no ano
seguinte – a batalha foi renhida, tendo as mulheres participado na rua,
enquanto povo, e no debate, enquanto mulheres, na configuração de um
modo novo de viver em comum.
Neste quadro, é de realçar a figura do Marquês de Condorcet, porque
representa uma maneira própria de proclamar a igualdade entre os sexos e
de exigir para as mulheres uma participação efetiva na vida da cidade. O
seu texto, Sobre a admissão das mulheres ao direito de Cidadania, publi-
cado em 1790, considera a discriminação das mulheres como uma conse-
quência da problemática mais geral da desigualdade. O que está em jogo,
para Condorcet, é o universalismo dos Direitos à boa maneira iluminista e,
no mesmo quadro, a racionalidade dos argumentos. Se há uma espécie
humana, a razão impõe que ela partilhe universalmente dos mesmos direi-
tos. Excluir metade da humanidade do seu usufruto é, no mínimo, tirania.
Ou seja, releva do poder e da força e não da racionalidade.
Esta forma de reivindicação com base na universalidade da espécie hu-
mana é-me particularmente cara, porque é ela que, no meu entender, me-
lhor evidencia o sem sentido da situação geral das mulheres ao longo dos
séculos, na nossa cultura como em qualquer outra, pondo em evidência que

31 Elisabeth Sledziewski, «Revolução Francesa. A viragem», in Geneviève Fraisse e


Michelle Perrot (dir), História das Mulheres. O século XIX, Porto, Afrontamen-
to/Círculo de Leitores, 1994: 41-57, 41.
104 Fernanda Henriques

os motivos que justificam tal situação não têm nada a ver com a natureza
humana, embora se tenham serviço dessa conceção para se escamotearem.
No entanto, apesar de todo o ganho acima referido, convém, todavia,
não esquecer que estamos ainda, basicamente, embora já não exclusiva-
mente, no plano das mulheres como o outro ou na heterodesignação do
que é ser mulher, e que o facto de ter vencido a perspetiva rousseauniana
vai ser determinante para a configuração do estatuto de mulher-trabalha-
dora, na industrialização, servindo, como mostra o excelente artigo de
Joan Scott32, para determinar a constitutiva precariedade e desvalorização
do trabalho assalariado feminino, baseadas numa representação do femi-
nino totalmente ligada à natureza e, nesse contexto, por um lado, ligada à
produção dos filhos enquanto matéria bruta33 e, por outro, necessaria-
mente sob a proteção de alguém, fazendo da mulher-trabalhadora, uma
anomalia, um desvio, no plano da racionalização do trabalho.

A – O significado da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã,


de Olympe de Gouges, no quadro da Revolução Francesa
Na linha do que tem vindo a ser desenvolvido, a Declaração dos Di-
reitos da Mulher e da Cidadã, proclamada em 1791, representa um
momento experimental ou a prova de fogo de que a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão não era universal. A sua recusa liminar
e a condenação à morte da autora34 – a segunda mulher a ser decapitada,
sendo a primeira a Rainha Maria Antonieta – deixaram claro que havia
nos revolucionários um sentido restrito de igualdade e que estavam longe
de conceber universalmente o universalismo. Estava-se, afinal, ao nível
de uma perspetiva abstrata de universalidade, concebida no horizonte
aristotélico do homem proprietário, aquilo que Seyla Benhabib designa
como um universal substituivista.

32 Joan Scott, «A mulher trabalhadora», in Geneviève Fraisse e Michelle Perrot (dir),


op. cit.: 442-473.
33 É difícil de perceber, hoje, esta perspetiva, mas ela constituía um dos argumentos
da época. Diz sobre isto Joan Scott no artigo antes citado (454-455): “Dar à luz e
criar filhos, atividades desempenhadas pelas mulheres, eram matéria bruta. A
transformação das crianças em adultos […] era efetuada pelo salário do pai; era
ele quem dava aos filhos o seu valor económico e social, porque o seu salário
incluía a subsistência deles.”.
34 Não se conhecem ecos da receção feita à Declaração dos Direitos da Mulher e
da Cidadã; contudo, a razão política da condenação ao cadafalso da sua autora
terá sido a sua defesa do federalismo e a sua oposição a Robespierre e não a
Declaração.
Filosofia e Género 105

Olympe de Gouges, nascida Marie Gouze e tornando-se Marie Aubry


depois de casada, tem uma vida conturbada, com laivos de romantismo
no que respeita ao nascimento e totalmente fora do comum. O mesmo
aconteceu à sua morte. A notícia sobre esta, dada no jornal La feuille du
Salut Public, dizia que Olympe tinha querido ser homem de Estado e
dividir a França, mas que a lei tinha reposto a ordem. O seu filho, que
parece ter concordado com a sentença, condenou os seus escritos e quis
que o nome Olympe de Gouges fosse eliminado dos documentos e substi-
tuído pelo seu nome legal, Marie Aubry. Se se tiver em conta que foi
enquanto Olympe de Gouges que esta mulher desenvolveu a sua ativida-
de como autora, como ativista política e como lutadora pela igualdade de
todos os seres humanos, esta supressão do nome tem o alcance simbólico
de um apagamento do rasto de uma forma de pensar e de ser. Assim, a
sua morte é uma morte dupla porque quis apagar também a sua memória.
Foi Benoîte Groult e Olivier Blanc que publicitaram os textos e a vida de
Olympe de Gouges, mostrando o seu caráter diversificado e controverso35.
Quando chega a Paris, depois de viúva, ainda no antigo regime,
Olympe de Gouges procura, por si só, uma carreira como autora de teatro.
As suas peças têm o objetivo de pôr em destaque os princípios da igual-
dade, sendo a escravatura negra o primeiro alvo do seu ataque. Para além
de outras razões, o tema que escolheu não só não lhe facilitava a vida,
como lhe granjeava muitos inimigos, uma vez que punha em questão
interesses estabelecidos.
A mudança dos tempos empurra-a para a política, estreando-se em
1788 com a publicação de uma Carta ao Povo. No entanto, é a sua De-
claração dos Direitos da Mulher e da Cidadã que a faz entrar, como uma
pioneira, no feminismo.
A Declaração propriamente dita é precedida de uma evocação à Rai-
nha, contém um preâmbulo sobre os direitos das mulheres, sendo seguida
de um Postambule e de um contrato social que redefine o casamento.
O que é significativo na Declaração dos Direitos da Mulher e da
Cidadã, como se disse no início, é ela querer demonstrar o reducionis-
mo do documento-bandeira da Revolução. Nessa medida, os seus XVII
artigos acompanham a redação do texto de 27 de Agosto de 1789,
explicitando sempre homem e mulher na redação de cada artigo ou

35 Olympe de Gouges, Oeuvres, apresentadas por Benoîte Groult. Paris, Mercure de


France, 1986. 2. Olympe de Gouges, Écrits politiques, apresentadas por Olivier
Blanc, Paris, Côté-femmes, 1993. 3. Olivier Blanc, Marie-Olympe de Gouges, une
humaniste à la fin du XVIII siècle, Paris, René Vienet, 2003. Olivier Blanc,
Olympe de Gouges, une femme de libertés, Paris, Syros, 1989.
106 Fernanda Henriques

fazendo alguma clarificação que lhe pareceu necessária para defender a


igualdade entre os sexos.
Nicole Pellegrin parece minimizar o valor efetivo do articulado dos
artigos da Declaração para valorizar o documento no seu conjunto
textual 36. Tal não é o meu caso. No meu entender, a ideia de mostrar
em espelho a exclusão das mulheres – que nos documentos da época já
apareciam reconhecidas como metade da humanidade – do quadro da
cidadania é absolutamente genial e só pode ter nascido de uma cons-
ciência aberta aos meandros do pensamento e à compreensão da força
das ideias.
Por outro lado, a leitura dos artigos permite ver a clareza das convic-
ções da autora, mas também as suas contradições.
O caso mais notável dessas contradições é dado no Artigo I: A mulher
nasceu livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções
sociais só podem ser fundadas na utilidade comum. Este “igual ao ho-
mem” mostra Olympe de Gouges presa ao princípio de que o modelo da
humanidade é o homem que, afinal, era (e é) o pensamento dominante.
Ao propor esta redação a autora demonstra como é fácil não ver as ratoei-
ras do pensar, na medida em que, consciente da desigualdade e da discri-
minação de que as mulheres eram vítimas e estando disposta a lutar para
transformar esse estado de coisas, o seu pensamento operava ainda tendo
o homem como modelo.
Noutros artigos, ela mostra uma consciência clara e precisa do que
está em causa. É o caso do Artigo IV: A liberdade e a justiça consistem
em restaurar tudo o que pertence aos outros; assim, o exercício dos
direitos naturais da mulher só é limitado pela tirania perpétua que o
homem lhe opõe; esses limites devem ser reformados pelas leis da
natureza e da razão.
Um outro aspeto que ressalta do texto da Declaração é que a autora
estava a falar de direitos e de igualdade sem condescendências de qual-
quer espécie para com as mulheres, como se pode ver no Artigo VII:
Nenhuma mulher é exceção; ela é acusada, presa e detida nos casos
determinados pela Lei. As mulheres obedecem como os homens a essa
Lei rigorosa.

36 Nicole Pellegrin, Écrits féministes de Chistine de Pizan à Simone de Beauvoir,


Paris, Flammarion, 2010.
Filosofia e Género 107

B – O projeto fictício de Sylvain Maréchal, de 1801


Rousseau representa, realmente, uma nefasta herança para as mulhe-
res. Essa força das ideias rousseaunianas é exemplarmente simbolizada
no aparecimento, em 1801, nos alvores da fundação da sociedade moder-
na, na sequência da Revolução Francesa, do opúsculo que Sylvain Ma-
réchal publicou e onde dava forma a um projeto de lei proibindo as
mulheres de aprender a ler.
O opúsculo37 era constituído por 113 considerandos e 82 determina-
ções, contendo, ainda, um Decálogo (os dez mandamentos do amor) e um
poema “a uma mulher culta”. Tal conjunto consubstanciava uma panóplia
argumentativa que punha em evidência uma concetualização do feminino
como sendo destituído de capacidade para se determinar e para viver
autonomamente, ao mesmo tempo que defendia a ideia de que o estudo e
o saber só serviam para envaidecer as mulheres e impedi-las de realizar a
sua missão de mães e de amantes.
Fictício, embora, tal projeto pode ser tomado como um símbolo de um
certo modo de pensar dominante nessa nova sociedade que emergia das
lutas revolucionárias e onde algumas pessoas procuravam a forma de
continuar a manter as mulheres fora da grande transmutação que estava a
ocorrer a todos os níveis da vida humana. Ou seja, quando o imaginário
ocidental se configurou de modo a poder pensar a humanidade em termos
de igualdade e de liberdade, houve a vontade, o poder e a força de excluir
as mulheres dessa mundividência enriquecedora, postulando e definindo a
sua diferença como um estigma de desigualdade.
Por outro lado, as controvérsias que o opúsculo de Sylvain Marechal
suscitou deixam também ver as linhas de força do pensar da sociedade
emergente acerca da natureza feminina, pondo a claro a nefasta herança
de Rousseau38.

37 Texto, como os de Poulain de la Barre, também acessível on line, na Biblioteca


Nacional de França, em fac-simile.
38 Cf., a este respeito: Geneviève Fraisse, Muse de la raison, Aix-en-Provence,
Éditions Alinéa, 1989.
108 Fernanda Henriques

Vejamos alguns argumentos textuais:


A NATUREZA A RAZÃO

OS CONSIDERANDOS (113) AS DETERMINAÇÕES (82)

Considerando que:
1.º o amor honesto, o matrimónio casto, a ter- 1.º A Razão quer (mesmo que
nura maternal, a piedade filial, o reconhe- passe por bárbara) que as
cimento das boas ações, etc., são anteriores mulheres (raparigas, casa-
à invenção do alfabeto e da escrita, e do es- das ou viúvas) nunca po-
tudo das línguas; subsistiram e podem ain- nham o nariz num livro,
da subsistir sem elas; nem ponham a mão numa
2.º os inconvenientes graves que resultam para os caneta.
dois sexos do facto de as mulheres saberem ler; 3.º A Razão quer que cada sexo
4.º a primeira lição que uma jovem recebe é o esteja no seu lugar e aí
primeiro passo que se lhe obriga a dar para permaneça.
afastar-se da natureza; 4.º A Razão não quer, nem se-
5.º a intenção da boa e sábia natureza foi que quer a língua francesa, que
as mulheres, exclusivamente ocupadas com uma mulher seja autora.
os trabalhos domésticos, se honraram por 12.º A Razão quer que os
ter nas mãos não um livro ou uma caneta, maridos sejam os únicos li-
mas uma roca e um fuso;
vros das suas mulheres, li-
7.º é perigoso cultivar o intelecto das mulheres; vros vivos nos quais, noite e
8.º a própria natureza ao prover as mulheres de dia, elas devem aprender a
uma prodigiosa aptidão para falar, parece ler os seus destinos.
ter querido poupar-lhes o trabalho de apren- 14.º A Razão quer que se dis-
der a ler e a escrever;
pense as mulheres do árido
17.º Margarida de Navarra, primeira mulher de e seco estudo da gramática.
Henrique IV, teria sido menos coquete se
22.º A Razão declara que uma
não soubesse escrever. Uma mulher que
maneja a caneta considera ter direito a per- mãe de família não tem ne-
mitir-se mais coisas que qualquer outra mu- cessidade de saber ler para
lher que só conhece a agulha; educar bem as suas filhas.
26.º a leitura é contagiosa: quando uma mulher abre 61.º A Razão quer que os chefes
um livro, já se crê capaz de escrever outro; de família, os pais e os ma-
31.º por pouco que saiba ler e escrever, uma
ridos, sintam o dever de
mulher considera-se emancipada e fora da cumprir as funções de leito-
tutela em que a natureza e a sociedade a res para com as mulheres.
puseram para seu próprio bem;
38.º apesar de tudo o que se tem dito, o intelecto
e o coração têm um sexo como o corpo;
57.º rezar o rosário é tão meritório perante Deus
como ler o seu ofício de manhã e de tarde;
79.º se comprovou que as Escritoras são menos
fecundas do que as outras mulheres.
Filosofia e Género 109

Para Geneviève Fraisse, que, como se disse, estudou detalhadamente este


período:
O texto de Sylvain Marechal cristaliza todos os temas que alimentam o
debate da exclusão das mulheres pela democracia. Podemos resumi-los
deste modo: o medo de que a exceção se converta em regra, a recusa da
vida pública para as mulheres e o controlo sobre a sua aparência, a in-
sistência na naturalidade do sexo feminino, em especial na sua função
reprodutora, a certeza acerca de um destino idêntico para todas as
mulheres produtoras de costumes, domésticas e públicas, a vontade
política de não lhes dar nem cidadania, nem poder na cidade.39
Embora Olympe de Gouges e Condorcet já não pudessem polemizar com
Sylvain Maréchal, o seu texto não deixou, contudo, de suscitar polémica.
As posições críticas agruparam-se em duas perspetivas: considerar o
texto uma brincadeira ou levá-lo a sério. Madame Gacon-Dufour, amiga
do autor, tomou o projeto de lei como uma brincadeira. Madame Clé-
ment-Hémery levou-o a sério.
A História mostrará que a razão estava do lado desta última40.
Os temas do debate que o opúsculo de Sylvain Marechal desencadeou
diretamente ou que estavam a fermentar a mundividência da sociedade
em efervescência catalisam os tópicos clássicos em torno da conceptuali-
zação da natureza feminina. Foram eles:

controle do corpo feminino e a harmonia


Em termos sintéticos, as conclusões do debate articulam-se em torno
de duas ideias centrais e de uma série de corolários. Por um lado, o esta-
belecimento de que, para as mulheres e para o feminino, não há historici-
dade. O seu futuro é sempre destino e destino de espécie. Por outro lado,
a afirmação clara de que a razão humana é sexuada, mas apenas a razão
feminina é determinada negativamente por esse fator, diminuindo-lhe o
poder racional.

39 Geneviève Fraisse, Muse de la raison, op. cit.: 175.


40 E mesmo a história imediata mostrará o mesmo, uma vez que o texto de Maréchal
teve duas reedições na época: uma em 1841 e outra em 1853.
110 Fernanda Henriques

Destes dois princípios gerais, decorrem várias consequências diminui-


doras do estatuto ontológico e social das mulheres, nomeadamente reti-
rando-lhes:

Ou seja, o próprio quadro do debate encarcerou a definição do lugar


das mulheres no âmbito de uma alternativa constrangedora: ou aceitavam
ser musa inspiradora do masculino e viver felizes na sociedade nascente,
embora dentro da gaiola dourada da feminidade, ou, se não aceitavam
esta situação, corriam o risco de ser apenas mono, isto é, uma mera imita-
ção imperfeita do masculino e ostracizadas da vida social. Por outras
palavras, se queriam conquistar alguma influência na vida da sua socie-
dade, as mulheres teriam de dar o seu consentimento a serem pensadas
como o segundo sexo.

Para além do insólito de fazer um projeto-lei fictício, o que significará


esta ideia de proibir as mulheres de aprender a ler? De que é que ler é
símbolo? Geneviève Fraisse, no seu Muse de la Raison, refere-se ao
artigo 7 do texto de Maréchal que aponta para pistas de leitura possíveis.
Diz ele:
A Razão quer que se dispense as mulheres de aprender --- a ler,
---------------------------------------------------------------------- a escrever,
---------------------------------------------------------------------- a imprimir,
---------------------------------------------------------------------- a gravar,
------------------------------------------------------------ a silabar (scander),
----------------------------------------------------------------------- a solfejar,
------------------------------------------------------------------- a pintar. etc41

O artigo não deixa dúvidas sobre o que estava, realmente, em causa:


impedir as mulheres de exercerem qualquer atividade criativa e de produ-
ção pessoal e retirar-lhes toda a possibilidade de acesso a algo que fosse
do domínio do espaço público e do comércio social.
Ler era, afinal, o símbolo de uma cidadania efetiva e, de facto, era o
apontar daquilo que viria a ser o estatuto das mulheres durante, pelo

41 Sylvain Maréchal, Projet d’une loi portant defense d’appendre à lire aux
femmes: 51.
Filosofia e Género 111

menos, dois séculos, do ponto de vista legal e não sabemos por quanto
tempo mais, do ponto de vista dos tais esquemas de significação trans-
-subjetivos com que interpretamos o mundo e nele nos instalamos.

C – O pensamento político-educativo de Mary Wollstonecraft como


um comentário crítico ao pensamento de Rousseau
A importância de uma educação humanamente digna para as mulheres
é diretamente defendida por D’Alembert contra Rousseau.
D’Alembert aponta duas razões para a existência da imagem de mu-
lher e de feminino apregoada por Rousseau para justificar o tipo de
educação feminina que preconizava.
Dizia, por um lado:
A escravidão e a degradação a que temos reduzido as mulheres, os en-
traves que pomos ao seu intelecto e ao seu coração, a conversa fiada,
fútil e humilhante, para elas e para nós, a que reduzimos a nossa rela-
ção com elas como se elas não tivessem uma razão para cultivar ou não
fossem dignas disso.
Por outro:
a educação funesta, quase homicida que lhes prescrevemos sem lhes
permitirmos ter outra; educação essa em que aprendem quase exclusi-
vamente a fingir sem cessar, a afogar todos os sentimentos, a ocultar
todas as suas opiniões e a disfarçar todos os seus pensamentos42.
Tudo se passa, continua o autor a defender, como se os homens tives-
sem medo do real valor das mulheres e, por isso, as submetessem a uma
educação inferiorizadora e a uma sistemática exclusão do acesso às fontes
do crescimento e do aperfeiçoamento humano.
Diz, ainda, D’Alembert que algumas das afirmações que Rousseau faz
sobre a relação das mulheres com a ternura e o amor só podem advir da
má fé ou da ignorância, uma vez que não tomam em linha de conta o
testemunho dos textos que documentam a dignidade e a grandeza do
amor feminino.
Apelando para o exemplo do próprio Descartes que as julgava mais
aptas que [os homens] para a filosofia, tendo sido uma infeliz princesa o
seu melhor discípulo, D’Alembert ataca duramente o projeto educativo de
Rousseau para as mulheres, ao mesmo tempo que defende a necessidade

42 Alicia H Puleo (ed.), La ilustración olvidada. La polémica de los sexos en el siglo


XVIII, Barcelona, Anthropos, 1993: 74.
112 Fernanda Henriques

de uma nova educação para a construção de um novo modelo de relação


humana:
Inexorável para com elas, vós as tratais, Senhor, como a esses povos
vencidos, mas temíveis, a quem os conquistadores desarmam.
[…]
Parece-me que o género humano melhorará com a educação. […]
Quando a educação for mais livre de se expandir, mais desenvolvida e
mais homogénea, experimentaremos os seus efeitos benfazejos. O amor
entre os sexos será, nessa altura, como a amizade mais doce e verda-
deira entre os homens virtuosos; ou, então, será ainda um sentimento
mais delicioso, o complemento e a perfeição da amizade, sentimento
que, na intenção da natureza deveria fazer-nos felizes e que, para nossa
desgraça, fomos capazes de alterar e corromper.43
A vitória da conceção rousseauniana sobre a concetualização do femi-
nino e sobre o projeto da sua educação não foi fácil, pelo contrário, supõe
uma forte oposição e um duro debate. Essa disputa está, aliás, documen-
tada na própria obra Émile, onde existe um claro registo crítico que tem
como alvo os defensores da igualdade entre os sexos.
Contudo, a grande polémica contra a perspetiva de Rousseau veio de
Inglaterra e de uma mulher: Mary Wollstonecraft.
Na sua obra A Vindication of the Rights of Woman, de 1792, diz a de-
terminada altura:
Rousseau trata de provar que tudo estava bem originariamente; uma
multidão de autores trata de provar que tudo está bem agora e eu quero
provar que tudo estará bem depois44.
É esta perspetiva sobre a necessidade de preparar um novo futuro para
a humanidade com base no desenvolvimento educativo que Mary Wol-
lstonecraft defenderá até ao fim da sua atividade de escritora e intelectual.
Numa atitude de certo modo precursora do construtivismo contempo-
râneo, porá em evidência a irrelevância do sexo na determinação das
capacidades intelectuais e humanas e defenderá a importância da ação
modeladora da educação nessa determinação. Ou seja, procurará sempre
mostrar que é a educação e não o sexo que marca a diferença existente
entre homens e mulheres e não uma qualquer determinação biológica.
Nessa medida, tomará sempre uma posição contrária à de quem procla-

43 Ibidem: 76.
44 Mary Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Woman (1792), Londres,
Penguin Books, 1992: 91.
Filosofia e Género 113

mava a sexualização da razão e manter-se-á intransigente na defesa de


uma única natureza humana.
O olhar analítico que desenvolveu em relação à sociedade sua con-
temporânea foi, a um tempo, crítico e reconstrutor, reconhecendo, simul-
taneamente, a fragilidade real da figura feminina e apontando a necessi-
dade de a transformar por um projeto educativo dignamente humano e
respeitador das duas formas assumidas pela humanidade.

A abordagem de Mary Wollstonecraft será feita para pôr em evidência


uma dupla perspetiva: a sua contraposição a Rousseau e como um exem-
plo do esquecimento que a receção académica e cultural geral faz do
contributo das mulheres para o desenvolvimento do pensar.
Mary Wollstonecraft: um paradigma paradoxal de vida
Mary Wollstonecraft teve uma vida atribulada e com indicadores con-
traditórios do ponto de vista da situação das mulheres.
Como uma grande parte das mulheres durante muitos séculos, morreu
de parto, com 38 anos. Bem à maneira feminina, apaixonou-se desespera-
damente e, por desespero de amor, tentou o suicídio. Também de acordo
com a dupla moral sexual que tem destruído a existência de muitas mu-
lheres, o seu trabalho intelectual foi desprezado quando o marido, depois
da sua morte, – porventura com boa intenção, mas certamente sem pru-
dência – tornou público os episódios amorosos da sua vida e a força
apaixonada das suas ideias.45
Todavia, ao contrário do estabelecido para o seu sexo, viveu do seu
trabalho intelectual, pertenceu a círculos de discussão e de debate públi-
cos e, finalmente, embora tenha morrido muito jovem, deixou uma obra
com posições originais e relevantes sobre as polémicas do seu tempo.
Wollstonecraft desmascara, questiona e discute, a ideologia liberal, o
ideal puritano de mulher e do casamento, mas, ao fazê-lo, estava, igual-
mente, a auto-desmascarar-se porque ela própria estava cheia dessas
mesmas ideias e valores. Provavelmente, isso é uma das razões pelas
quais a aceitação de Mary Wollstonecraft pelo pensamento feminista não
é unânime. Ela é criticada negativamente por representar um feminismo

45 Este gesto do marido, William Godwin, que foi o seu primeiro biógrafo, teve
consequências devastadoras, porque a informação divulgada por ele transformou-a
de conhecida e mesmo admirada – as suas obras mais conhecidas chegaram a ser
reeditadas – em repudiada e depois esquecida. Mesmo quando no final do século
XIX, em Inglaterra, se desenvolve o movimento feminista, a sua obra continua
esquecida, só vindo a ser reencontrada nos anos 70 e 80 do século XX.
114 Fernanda Henriques

liberal e também pela forma – sobranceira, dizem algumas autoras –


como concetualiza as mulheres.46
No texto Mary Wollstonecraft e a educação da humanidade pelas mu-
lheres, Maria Luísa Ribeiro Ferreira põe a pergunta clássica: será que é
uma filósofa?, remetendo para a resposta indubitável da própria Mary
Wollstonecraft que assim se considerava47. Para além de evocar os con-
textos gerais em que essa interrogação é habitualmente feita em relação
ao trabalho teórico das mulheres, Maria Luísa Ribeiro Ferreira – que não
tem dúvidas sobre a dimensão filosófica da obra de Wollstonecraft –
aponta também razões específicas para enquadrar a possível pertinência
da pergunta, nomeadamente, o facto de que as reflexões da autora se
baseiam em vivências pessoais e de as suas obras terem uma dimensão
pragmática patenteada nos próprios títulos, por um lado, e, por outro, o
seu desinteresse por temáticas filosóficas fundamentais do discurso
filosófico da época, como sejam os temas gnosiológicos e ontológicos.
Esta situação – que é, em si própria, inquestionável – representa, a
meu ver, duas coisas: 1. o peso da condição feminina no labor teórico das
mulheres; 2. o feminismo efetivo de Wollstonecraft.
Explicitando melhor a afirmação feita.
Não parece ser discutível que Descartes introduz no centro do trabalho
filosófico a questão da legitimação epistemológica do conhecimento, no
quadro, aliás, do posicionamento da Filosofia enquanto saber perante a
emergência da Ciência Moderna. Mas, também, parece inquestionável,
que a elaboração cartesiana em torno do Cogito marca, igualmente, o
tema da natureza humana como determinante.
Ora, é por esta temática que Mary Wollstonecraft opta e talvez possa-
mos tentar compreender algumas razões que, como disse antes, denotam
o assumir da sua condição feminina e da sua opção pela necessidade de
uma mudança de paradigma na análise das questões filosóficas, uma
mudança que incluísse as mulheres, ou seja, a sua opção por aquilo que,
hoje, chamaríamos filosofia feminista que, de si mesma, tem de ser uma
filosofia política.
Se estava atenta aos debates do seu tempo, se conhecia os textos que
estavam em discussão, sabia, pelo menos, três coisas:

46 Cf., por exemplo, Carol H. Poston, “Mary Wollstonecraft and “The Body
Politic””, in Maria J. Falco (ed), Feminist Interpretation of Mary Wollstonecraft,
Pennsylvania, The Pennsylvania State University Press, 1996: 85-104.
47 Maria Luísa Ribeiro Ferreira, “Mary Wollstonecraft e a educação da humanidade
pelas mulheres”, in As mulheres na filosofia, Lisboa, Colibri, 2009: 121-148.
Filosofia e Género 115

Que o debate público sobre a natureza humana no feminino estava a


reconcetualizar as mulheres nos velhos quadros da assimetria antropo-
lógica. Como acentua Geneviève Fraisse no texto antes referido, Muse
de la Raison, já não era possível debater se as mulheres tinham ou não
alma; agora a interrogação era mais insidiosa, perguntava pela sua na-
tureza racional: a sexualidade feminina afetaria o funcionamento raci-
onal? O grupo ‘ganhador’ respondeu que sim, que afetava, e que, por
isso, as mulheres não ascendiam à racionalidade teórica; apenas ti-
nham uma ‘racionalidade prática’.
Que se tinha compreendido que a educação era a pedra de toque da
dignificação ou dominação das mulheres e que Rousseau encabeçava
uma posição que, através da educação, queria excluir as mulheres da
cidadania plena, construindo um novo ideal do feminino, mas que as
acantonasse ao seu velho papel de musas.
Que a Revolução Francesa, perdido o seu fulgor inicial, estava a fazer
o mesmo que, nas palavras de Amelia Valcárcel, virá a ser feito em
todas as mudanças estruturais. Citando-a:
Quando as elites renovadoras quiseram iniciar nos seus países mudan-
ças em profundidade, comprometeram sempre na sua causa as mulhe-
res porque desejavam um novo tipo de mulher capaz de ser mãe e edu-
cadora do novo cidadão que deveria realizar e consolidar as conquistas
pelas quais se lutava. (…) Porém, uma vez consolidada a mudança, o
conjunto das mulheres costuma obter vantagens relativamente escassas.
O mesmo pensamento secularizado que as empurrou para a ação sabe
propor-lhes um novo lugar em que o seu papel seja, de novo, subsi-
diário, sob uma forma modernizada.48
O modo como interpreto a obra de Mary Wollstonecraft vai no sentido
de a ver como uma tentativa de responder a este triplo desafio, assumindo
a sua condição feminina, ou seja, trazendo a diferença sexual para o
interior do seu trabalho teórico e abordando as problemáticas que poderi-
am constituir-se como vias de emancipação.
Wendy Gunther-Canada analisa a obra de Wollstonecraft, no quadro
do iluminismo político, numa perspetiva que pode ajudar a legitimar este
ponto de vista. Diz ela:
O desafio que Wollstonecraft fez à teoria política vigente desestabilizou
as categorias de “homem público” e “mulher privada”, que suporta-

48 Amelia Valcárcel, La política de las mujeres, Madrid, Cátedra, 1997: 74-76.


116 Fernanda Henriques

ram a estrutura filosófica do pensamento político canónico. […] O seu


trabalho inovador como autora respondeu à questão sobre como é que
a mulher a quem é negada uma educação clássica pode ser autorizada
a escrever sobre teoria política.49
Wendy Gunther-Canada propõe-se fazer justiça histórica ao trabalho
de teoria política de Mary Wollstonecraft, mostrando-o como sendo,
simultaneamente, um desafio para os estudos políticos canónicos e para a
história e dinâmica dos estudos feministas.
Ao longo dos cinco capítulos do livro, a autora vai fazendo uma análi-
se das diferentes obras de Wollstonecraft, para as contextualizar como
respostas próprias aos desafios da sua época.
Por um lado, mostra como, enquanto leitora, ela se confronta com as
representações das mulheres nos textos do cânone de teóricos políticos,
nomeadamente com o Émile e La Nouvelle Heloise de Rousseau. Defen-
de, igualmente, que são essas leituras que a levaram a rejeitar o papel da
“trama matrimonial” em questões de pensamento político e a iniciar uma
discussão pessoal sobre autoridade feminina e através dela.
Por outro lado, explicita que a sua leitura interpretativa de textos do
cânone, sobre a vulnerabilidade das jovens e a dependência das mulheres
lhe deu uma consciência dos conflitos de classe e de uma micronoção de
política dentro da própria família.
Wendy Gunther-Canada associa mesmo a emergência de questiona-
mentos teóricos sobre género e sexo nos primeiros textos de Wollstone-
craft50 à sua própria experiência pessoal, ao longo da infância e adoles-
cência, que estariam na base do pensamento político exposto nas suas
obras de maturidade. Neste quadro, interpreta A Vindication of the Rights
of Woman dentro da tradição de escritos femininos sobre a educação e
dentro dos debates oitocentistas sobre a “natureza feminina” e a natureza
da Política, separando os argumentos de Wollstonecraft pelos direitos
políticos das mulheres de outros tratados anteriores que advogavam a
educação das jovens no sentido de incrementar os seus dotes domésticos.
É no mesmo contexto de consciência de si como mulher e no assumir
da procura de novos caminhos de configuração dos problemas que
Wendy Gunther-Canada analisa a resposta de Wollstonecraft ao livro de
Burke, Reflections on the Revolution in France, na sua obra, Vindication
of the Rights of Men, de 1970, sobretudo mostrando que é a partir de uma

49 Wendy Gunther-Canada. Rebel Writer: Mary Wollstonecraft and Enlightenment


Politics, Northern Illinois University Press, 2001: 170.
50 Thoughts on the Education of Daughters (1787); Mary, a Fiction (1788) e Original
Stories (1788).
Filosofia e Género 117

análise de género que Wollstonecraft humaniza e unifica as ações de


Maria Antonieta e das populares parisienses que marcharam sobre Ver-
sailles na célebre demanda de pão.
Finalmente, Wendy Gunther-Canada analisa a última obra de ficção
de Mary Wollstonecraft, The Wrongs of Woman, or Maria, de 1798, para
defender que a autora tenta politizar a leitora feminina, ao criar uma série
de contos que chamam a atenção para os conflitos de classe e a hegemo-
nia de práticas políticas androcêntricas. Para Wendy Gunther-Canada,
tomados em conjunto e contextualizados na obra ficcional e não-ficcional
de Wollstonecraft, esses contos formam um mapa alegórico da sociedade
política da época, mapa que demonstra como o casamento “bastilha” a
mulher, mesmo numa época de revolução.

Este percurso com Wendy Gunther-Canada, como disse, foi feito em


apoio da perspetiva de defender o direito de a obra de Wollstonecraft
aceder ao plano das Filosofias/Teorias Políticas e também de que essa
pertença que lhe é devida ter a ver com uma consciência clara da parte de
Wollstonecraft de que era necessário configurar e debater as problemáticas
de outra maneira. De uma maneira que englobasse a humanidade como um
todo, a visse na sua constituição diferenciada em todos os ângulos da vida
pessoal, intersubjetiva e coletiva e desenvolvesse teorizações plurifocadas e
não apenas a partir do lugar masculino como o lugar da legitimidade.
Apesar de, como já foi referido, não haver unanimidade entre as femi-
nistas sobre o valor do trabalho de Wollstonecraft, a coleção Re-reading
the Canon consagra-lhe um volume onde alguns artigos deixam claro
algumas das ideias que procurei defender, nomeadamente, o seu direito a
ser estudada no âmbito da filosofia política, coisa que raramente acontece.
Estão neste caso, os textos de Penny Weiss, Wollstonecraft and Rous-
seau: the gendered fate of political theorists, e de Virginia Muller, What
can liberals learn from Mary Wollstonecraft.51 Em ambos os textos se
procura mostrar: 1. o valor intrínseco da obra de Wollstonecraft; 2. a
abordagem global que faz das temáticas, embora as configure a partir do
ângulo da diferença sexual.
Penny Weiss que demonstra, por textos e por programas, a ausência
de Wollstonecraft da aprendizagem académica das teorias políticas, faz
um paralelismo entre ela e Rousseau, do ponto de vista da atividade
teórica, para pôr em evidência como ela sofre o destino do seu sexo. As

51 Cf. Maria J. Falco (ed), Feminist Interpretation of Mary Wollstonecraft, op. cit.:
15-32 e 47-60, respetivamente.
118 Fernanda Henriques

suas comparações põem bem a claro que Wollstonecraft não conseguiu


escapar à tradição da sua condição de mulher. Diz ela:
Como Rousseau, Wollstonecraft escreveu sobre educação (um tema
considerado politicamente central mesmo pelos teóricos de linha mas-
culina, pelo menos desde Platão). Como Rousseau, ela escreveu um
romance […]Como Rousseau ela escreveu cartas de auto-reflexão.
Como Rousseau ela escreveu sobre as transformações políticas em
França, sobre os costumes e a moralidade e sobre o papel político da
razão.52
Mas, ao contrário de Rousseau, cuja fonte informativa maior sobre a
sua vida são os seus escritos autobiográficos, […] A maior fonte de in-
formação sobre ela, escrita muito pouco tempo depois da sua morte, é a
sua biografia escrita pelo marido William Godim, Memoirs of the Au-
thor of A Vindication of the Rights of Woman, na qual ele interpreta a
sua vida e a sua obra.53
Também neste aspeto Mary Wollstonecraft se inscreve num paradi-
gma paradoxal de vida, porque, apesar de tudo, ao contrário da maior
parte das mulheres, ficou na história, mas essa permanência, como era
tradicional nas mulheres, foi feita por heterodesignação, através de um
homem.
Rousseau teve capacidade para controlar o que queria que fosse co-
nhecido da sua história, Wollstonecraft não. Ficou exposta.

D – Wollstonecraft e Rousseau sobre a ‘condição feminina’


No texto acima referido, Virginia Muller classifica Wollstonecraft
como uma liberal do século XVIII, dizendo:
Ela acreditava na razão, nas possibilidades de mudança e de progres-
so, na educação como alavanca para a mudança, e na moderna demo-
cracia; acima de tudo, ela acreditava na liberdade individual.
Mas
A sua visão da liberdade inclui as mulheres; a sua conceção da ra-
cionalidade abre um lugar para o ponto de vista das mulheres; a sua
conceção de progresso assenta na crença de que ele requer não apenas
o alargamento do sufrágio e da educação, mas, também, mudanças es-

52 Ibidem: 21.
53 Ibidem: 27.
Filosofia e Género 119

truturais nos campos social, económico e político e a sua análise dos


direitos rejeita os direitos de propriedade como o cerne da democracia.
Quando celebra os direitos individuais, insiste em que o género e a
classe não podem ser ignorados e enfatiza a interconexão das esferas
pública e privada.54
Escolhi esta citação para enquadrar a minha leitura de A Vindication
of the Rights of Woman. Na verdade, a experiência de leitura desta obra é
surpreendente porque, embora num estilo difícil e nem sempre, diria,
consciente de si, propõe um novo paradigma de análise que, simultanea-
mente, é do seu tempo e contra ele. Do seu tempo, pelos princípios analí-
ticos, pelos valores defendidos e pelos ideais concetuais. Contra o seu
tempo, porque desloca o olhar de análise do tradicional ponto de mira da
teorização – masculino e abstrato – para o colocar num outro ponto, mais
complexo, que inclui sobretudo a diversidade transportada pela inclusão
de mulheres e de homens, de ricos e de pobres, na mesma plataforma.
Pensar a moderna democracia e os direitos individuais tem de ser uma
tarefa abrangente e não excludente. Por isso, não pode ser feita com
regulamentações que façam separações de campos, como o de público e
de privado, de vida coletiva e de vida familiar, porque esse tipo de confi-
gurações resulta em perspetivas que fazem senhores e servos, pessoas
livres e escravos, sem hipótese de deslocações, que separam, de direito e
não apenas de facto, quem normaliza de quem se submete às normas.
Do meu ponto de vista, A Vindication of the Rights of Woman repre-
senta a resposta mais sistemática ao papel que Rousseau concebeu para as
mulheres e que ainda hoje pesa sobre elas.
É só no capítulo 5 da obra que se responde diretamente à proposta de
Rousseau para a educação das raparigas, mas, no meu entender, toda a
obra o põe em causa, mostrando a coerência de uma alternativa ao seu
modo de pensar.
A Vindication of the Rights of Woman está dedicado a Talleyrand e is-
so representa o horizonte da obra, a sua ambição.
Em 1791, Monsieur Talleyrand-Périgod fez um Relatório sobre a Ins-
trução Pública que foi discutido na Assembleia Geral Constituinte. Nesse
sentido, uma vez que A Vindication tem como tema central a educação
feminina como fator decisivo na dignificação das mulheres e na sua
transformação em cidadãs efetivas, dedicá-lo a alguém que tinha feito
uma proposta para a educação pública, sem ter aquele aspeto em conside-
ração, põe de manifesto que o que está em causa é a polémica e a defini-

54 Ibidem: 49.
120 Fernanda Henriques

ção de alternativas. Aliás, Wollstonecraft justifica a dedicatória, decla-


rando que o Relatório tratou o assunto de forma superficial e tradicional
não atendendo à emergente sociedade dos direitos.
Será no capítulo 12, sobre a educação nacional – onde a autora opera-
cionalizará, num projeto específico e bastante completo, as ideias que foi
desenvolvendo ao longo da obra – que Wollstonecraft responderá verda-
deiramente a Talleyrand.
Desde a Introdução que A Vindication deixa clarificados princípios e
pontos de vista:
Uma educação descuidada é fonte das maiores calamidades e, em
particular, as mulheres têm sido vítimas de uma educação deficiente e
mal orientada, tornando-se, por isso, débeis e depreciáveis.
A educação das mulheres tem sido falsa e assente em livros escritos
por homens que constroem sobre elas uma imagem ao seu (deles) gosto e
proveito, não lhes devolvendo uma imagem de seres humanos autênticos.
Assim, o ideal de mulher que a educação oferece às mulheres é o de
virem a ser damas sedutoras em vez de boas esposas e de mães racio-
nais55. Wollstonecraft chama a atenção para o logro desta proposta, na
medida em que ela desloca o desejo das mulheres de se desenvolverem
como seres humanos e poderem, assim, ajudar outros seres humanos a sê-
-lo, para o colocar na vontade de agradar a outro. Ou seja, desloca o
desejo feminino do ser para o parecer.
Este acentuar que uma boa educação das mulheres as tornaria mais ap-
tas para o seu papel tradicional parece-me fundamental como resposta ao
seu tempo e torna a proposta de Rousseau para Sophie, no mínimo, obs-
cena. Para ele, toda a educação das mulheres deveria ser feita na órbita
dos homens, não para serem companheiras de vida e mães, mas apenas
como bonecas ocas, capazes de serem boas amantes. O que está em causa
no livro V de Émile é a produção de um objeto que deleitasse os olhos
masculinos e servisse os seus prazeres. Rousseau não tem qualquer pejo
em defender que o ser da natureza feminina é o parecer – as mulheres
não têm consistência ontológica. A leitura do livro V mostra-o até textu-
almente. Será em vão que procuraremos perceber como é Sophie fisica-
mente. Tudo o que nos é dito sobre ela é sempre impreciso e difuso.
Rousseau dirá que ela é agradável sem ser bela nem brilhante, é sólida

55 No capítulo X da sua obra – dedicado ao amor parental – Wollstonecraft tratará da


perspetiva da incapacidade das mulheres para intervirem ativamente na educação
das crianças por falta de recursos efetivos, especialmente quando os pais são dés-
potas.
Filosofia e Género 121

sem ser profunda, etc56, ou seja, tem contornos indefinidos e a sua ima-
gem é construída através de sugestão e ocultações, como se se quisesse
que ela fosse uma sombra, mas não um indivíduo corporalmente definido.
Embora se assuma como mulher, Wollstonecraft explicita que não vai
debater a diferença entre os sexos. O seu objetivo, diz, é tratar as mu-
lheres, em primeiro lugar, como seres humanos que são, e, só depois,
considerar algumas caraterísticas particulares.
Também aqui em oposição fundamental a Rousseau, importa-lhe mar-
car que as mulheres são criaturas racionais, como metade da humanidade
que são. Nesse sentido, defenderá a ideia de que as mulheres devem
aceder ao conhecimento e à virtude que, de resto, deve ser comum a toda
a gente para poder influir na prática geral da vida.
Já no capítulo 1, Wollstonecraft desenvolverá, sistematicamente, este
aspeto, defendendo que a perfeição da natureza humana e a sua capacida-
de de felicidade dependem do desenvolvimento da razão, da virtude e do
conhecimento, sendo a razão o motor de todo o processo de tornar huma-
na a humanidade.
Neste capítulo, a autora envolve-se, diretamente, com as posições
rousseaunianas, particularmente o seu mito do bom selvagem, conside-
rando que os seus argumentos, sendo verosímeis, são, todavia, erróneos.
A posição de Wollstonecraft assenta numa dupla ideia: 1. a ideia de
uma criação divina e 2. a de que a criação da realidade inclui a perspetiva
de que ela é portadora de uma dinâmica de aperfeiçoamento, nomeada-
mente que o ser humano – mulher e homem – nasceu com o dom de se
aperfeiçoar. É no contexto desta discussão com Rousseau que Mary
Wollstonecraft dirá as palavras que referi no início deste ponto, para
marcar a sua crença no progresso da humanidade:
Rousseau trata de provar que tudo estava bem originariamente; uma
multidão de autores trata de provar que tudo está bem agora e eu quero
provar que tudo estará bem depois.
A sua leitura de Rousseau leva-a a rejeitar a solução por ele apresen-
tada, porque ela assenta no desprezo pela civilização e diz:
[…]e se Rousseau tivesse levado a sua investigação a um escalão mais
elevado […], a sua mente ativa ter-se-ia lançado a contemplar a per-

56 J.-J Rousseau, Œuvres Complètes, op. cit.: 747-751.


122 Fernanda Henriques

feição do homem no estabelecimento da civilização verdadeira, em lugar


de tomar o seu feroz voo para trás, para a noite da ignorância sensual.57
Há uma profunda coerência nos argumentos, ao longo desta obra. Por
exemplo, esta ideia da crença no progresso, na transformação e aperfei-
çoamento da humanidade, que me levou a dizer no início que ela pode
prefigurar um certo construtivismo, ao acreditar no efeito da educação,
articula-se com a curiosidade do capítulo 6, onde discute a influência que
pode ter sobre o caráter uma associação de ideias prematura, aí anteci-
pando aquilo que sabemos hoje sobre a importância dos primeiros anos
de vida humana, na formação e no desenvolvimento de cada um.
Trata-se de um capítulo muito curto, no qual a autora alerta para o pe-
rigo da influência que as impressões recebidas inicialmente podem ter no
espírito, porque, diz, o entendimento é dúctil e, uma vez integradas, essas
impressões e ideias dificilmente poderão ser desconstruídas. No caso das
raparigas, este perigo é ainda maior, porque a educação a que são posteri-
ormente submetidas nunca lhes permitirá caldear as informações iniciais,
ao contrário dos rapazes cujo desenvolvimento ulterior e cuja vida ativa
lhes permitirá atenuar a posição gravada de partida.
Contudo, para Mary Wollstonecraft a educação, só por si, não resolve
todos os problemas levantados pelas exigências das transformações
sociais dos novos tempos. A sua visão das coisas releva de uma perspeti-
va crítica e não é nem ingénua nem lírica. Como dizia Virginia Muller no
texto acima referido, a sua conceção de progresso assenta na crença de
que ele requer […] também, mudanças estruturais, e, por outro lado, não
ignora que o sexo não é o único fator de discriminação e percebe que a
autonomia pessoal tem uma base económica. Nesse sentido, ao longo do
texto, vão aparecendo referências, por exemplo, à ligação entre a posse da
propriedade e a dominação despótica dos pais sobre os filhos ou à neces-
sidade de que quem ensina não esteja economicamente dependente do
poder dos pais com quem está em relação. No capítulo 9, quando se
ocupa com os efeitos perniciosos das diferenças estabelecidas pela socie-
dade, a sua primeira referência vai para a questão da propriedade e para o
seu poderoso papel. No que toca às mulheres, embora situando-se sempre
no horizonte da família, defende que pode haver outros caminhos de vida
feminina, considerando que as mulheres poderão ser médicas e enfermei-
ras, mas sobretudo evidenciando que o casamento não pode ser nem uma
obrigação nem uma salvação. Por outro lado, deixa claro que as mulheres
necessitam de proteção de leis civis, não podendo depender para subsistir

57 Mary Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Woman, op. cit.: 99.


Filosofia e Género 123

da liberalidade dos maridos. Defende mesmo que as mulheres só poderão


aceder à virtude em certo grau se adquirirem alguma independência em
relação aos homens.
Ainda dentro da visão de que a educação só por si não faz milagres –
embora seja muito poderosa – vale a pena referir a sua posição no capítu-
lo 4, onde analisa o estado de degradação em que as mulheres se encon-
tram mergulhadas por causas diversas. Nessa busca de razões explicati-
vas, são identificadas as mais relevantes que, todavia, assentam numa
razão de fundo: o fraco desenvolvimento da racionalidade feminina que
lhes retira, quer a consciência de um aperfeiçoamento possível, quer a
perspetiva dele.
Vejamos, então, as razões mais relevantes para a degradação da situa-
ção das mulheres, segundo Wollstonecraft:
No interior da ideia central do fraco desenvolvimento da racionalidade
feminina como razão fundante da situação das mulheres, surge uma
outra muito interessante que acentua o facto de as mulheres se centra-
rem no presente como imediato. Do seu ponto de vista, uma vez que
não há desenvolvimento da racionalidade feminina, o pensamento do
futuro, como projeto possível, ou da imaginação era muito limitado.
Negou-se-lhes a possibilidade de desenvolvimento de um entendimen-
to capaz de ajuizar e discernir e, no seu lugar, promoveu-se o instinto
e a astúcia.
Não tendo sido treinadas racionalmente para as tarefas de observar,
generalizar e concluir, as mulheres estão desmunidas do instrumento
essencial da aquisição do conhecimento sobre a realidade. E mesmo
quando acedem a algum conhecimento ele não está assente numa es-
trutura de base que lhe dê coerência e solidez.
Finalmente, aponta como uma razão profunda da situação em que as
mulheres se encontram a finalidade da educação que lhes é proporcio-
nada. Sendo apenas educadas para o prazer, para agradarem e para se-
rem frágeis e poderem ser mimadas e aduladas, não se lhes mostra que
a beleza não dura sempre e, portanto, quando se confrontam com a
perda da beleza, perdem a sua finalidade vital e, consequentemente, o
sentido da vida.
Como já se disse, é no capítulo 5, quando faz o levantamento dos tex-
tos que trataram as mulheres com desprezo ou subvalorização que se
enfrenta com a proposta de Rousseau para a educação das raparigas. A
estratégia textual que adota desenvolve-se em dois tempos: (1) citar o
texto de Rousseau e (2) comentá-lo, por um processo que evidencia,
primeiro, a sem razão do texto roussauniano e, na sequência, o enquadra
124 Fernanda Henriques

dentro da sua proposta pessoal. As diferentes posições rousseaunianas são


desconstruídas nos axiomas de que partem e, igualmente, nas consequên-
cias para a vida e dignidade das mulheres.
Wollstonecraft começa a sua crítica a Rousseau a partir da afirmação
dele, de que as mulheres devem ser débeis e passivas, por serem menos
fortes que os homens e de que estes devem, por isso, ser seus senhores e
elas devem ser educadas para lhes agradar. E parte deste ponto, creio,
porque ele é a base da proposta educativa de Rousseau. Sem este princí-
pio axiomático dificilmente poderiam ser sustentadas as afirmações feitas
sobre a educação de Sophie. Aliás, todo o livro V nasce na sombra da
evocação do Genesis – não é bom que o homem esteja só – que coloca
Rousseau na senda de todos os comentários que, ao longo dos tempos, se
aproveitaram de uma das narrativas da criação para defender a inferiori-
dade da mulher e a sua necessária subordinação ao homem. Neste contex-
to, a resposta de Wollstonecraft é extremamente adequada porque exata-
mente evoca a sabedoria e a justeza do Ser Supremo para desacreditar tal
ponto de vista.
O livro V de Émile é percorrido, paulatinamente, para apontar estra-
nhezas, incoerências, petições de princípio e, no final do percurso, Wol-
lstonecraft questiona a própria vida de Rousseau balanceada entre o
êxtase e a miséria. No entanto, num gesto de coerência intelectual apres-
sa-se a afirmar não luto contra as suas cinzas, mas sim contra as suas
opiniões. Luto apenas contra a sensibilidade que o levou a degradar a
mulher ao fazê-la escrava do amor.58
«««««
O percurso desenvolvido ao longo destes dois capítulos mostrou co-
mo, nos alvores da sociedade moderna, houve, efetivamente, a consciên-
cia clara de que a educação era o lugar onde o sujeito humano se poderia
constituir como tal e que, ao contrário dos Velhos do Restelo que teima-
vam em querer fazer vingar a ideia de que o feminino correspondia a uma
segunda natureza e a uma natureza de segunda, houve o reconhecimento
da dimensão preconceituosa dessa perspetiva e da sua falta de fundamen-
to racional.
Venceram os Velhos do Restelo, mas a razão, essa, como tem tempo,
não tem pressa e lá vai fazendo o seu caminho na construção da verdade.

58 Ibidem: 183.
3 – AS GRANDES MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS
DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
E A AFIRMAÇÃO SISTEMÁTICA DAS MULHERES
NO ESPAÇO PÚBLICO E NO DEBATE TEÓRICO
COMO SUJEITOS DE ENUNCIAÇÃO

Com a presente temática entramos num tempo qualitativamente diferente


para o modo de conceber o papel das mulheres no espaço público em
geral e no espaço teórico em particular.
A afirmação das mulheres é agora um facto e, sobretudo, as mulheres
passam a ser sujeitos de enunciação em relação a si mesmas, ao mundo e
aos seus problemas.
Nesse quadro, quer o tema quer o título desta terceira parte convoca
aquilo que é comum designar-se por 2.ª vaga de feminismo e que se
insere na mudança de paradigma geral que as sociedades ocidentais
sofreram, na segunda metade do século XX. Assim, o que se pretende
significar com o título não é que não tenha havido anteriormente mulhe-
res sujeitos de enunciação, mas sim que, na segunda metade do século
XX, há uma diferença qualitativa nesse estatuto.
Pensando em termos de espírito do tempo, dir-se-ia que tal como o
Iluminismo e a Revolução Francesa criaram o quadro epistemológico e
jurídico para permitir a definição de Direitos e a sua reivindicação, a
segunda metade do século XX criou a estrutura teórica que possibilitou o
reconhecimento do direito das mulheres a serem sujeitos de enunciação.
Essa mudança qualitativa deveu-se, fundamentalmente, ao facto de que a
entrada massiva das mulheres na educação depois da 2.ª Grande Guerra
as empoderará, do ponto de vista teórico, mas, igualmente, porque o
estatuto da racionalidade – raiz fundante de qualquer estrutura teórica
– se altera qualitativamente.
No quadro deste contexto, esta última parte do livro vai desenrolar-se
tendo em conta alguns temas e problemas que se colocam ao estatuto das
mulheres no espaço público da investigação e do debate, centrando-se em
126 Fernanda Henriques

4 tópicos essenciais:
1. Notas sobre o modo como as mulheres foram tomando a palavra teórica
na atualidade.
2. Um percurso reflexivo sobre o estatuto epistemológico da racionalidade
no mundo contemporâneo e que facilitou a legitimidade de novos temas
e problemáticas.
3. Uma abordagem do significado de O Segundo Sexo na ressignificação do
estuto do discurso filosófico do/sobre o feminino.
4. Algumas reflexões em torno da proposta filosófica de Luce Irigaray, en-
quanto representante de um quadro filosófico sistémico.
5. Análise da temática ética contemporânea, como exemplo de uma inter-
venção sistemática de mulheres filósofas, nomeadamente de uma pen-
sadora portuguesa.

3.1. A situação das mulheres-filósofas no mundo contemporâneo:


questões e percursos

Este primeiro capítulo tem uma função de introdução geral ao tema


A contribuição das mulheres-filósofas para o debate filosófico contempo-
râneo, fazendo compreender que o século XX tem permitido uma outra
posição às mulheres, no campo da teoria em geral, e da teoria filosófica,
em particular, embora convenha, igualmente, lembrar que apenas Mada-
me Curie é, ainda hoje, o único nome de mulher cientista, mais ou menos,
universalmente conhecido.
Sobretudo, depois da segunda grande guerra, com o acesso generali-
zado das raparigas e das mulheres a todos os graus de ensino, algumas
mulheres foram fazendo os seus caminhos nas diferentes áreas científicas
e profissionais, ainda que, para não irmos mais longe, seja bom lembrar
que, em Portugal, só depois do 25 de Abril de 1974, as mulheres puderam
ser juízas, por exemplo.
Como metáfora, poder-se-á dizer que foi tudo há muito pouco tempo,
no máximo, ontem. E mesmo, assim, qualquer jovem rapariga, hoje, tem
abertas hipóteses de futuro, que nenhuma mulher da minha geração tinha.
Ser mulher, atualmente, pode mesmo ser um projeto, pelo menos no
mundo ocidental.
Também na Filosofia é assim, de tal maneira que temos hoje acessível
um já imenso manancial bibliográfico sobre o papel das mulheres nas
diferentes áreas do saber, nomeadamente, na da Filosofia, sendo, contu-
do, a maior parte de autoria feminina. A entrada das mulheres na Filoso-
fia, se bem que ainda não tenha conseguido transformar o panorama da
Filosofia e Género 127

própria área científica, provavelmente, porque ainda não foi atingido o


patamar crítico, fez, no entanto, com que fosse possível conhecer a nossa
herança histórica com maior diversidade e riqueza.
Mesmo que o trabalho teórico das mulheres não trouxesse mais nada de
novo ao labor filosófico – o que não é o caso – o simples facto de ter
desocultado temas, textos e nomes ignorados ou desprezados da nossa
Tradição já seria um contributo essencial para o seu enriquecimento. Mas,
como disse, não é o caso que o contributo das mulheres seja meramente de
desocultação histórico-filosófica. Embora com todas as observações que
ficaram feitas para trás, há, atualmente, muitas mulheres a trabalhar em
Filosofia com originalidade e com contributos próprios relevantes.
Por serem mulheres?
Como já disse antes, esta questão para mim, não faz muito sentido ou é
mesmo uma falsa questão. A meu ver, o que importa equacionar é o contri-
buto que pode trazer, para o desenvolvimento do pensar e para o modo de
abordar as questões, a experiência histórica de um grupo humano – por
acaso, metade da humanidade – e que, até há pouco, foi negligenciado.
Num pequeno livro sobre mulheres filósofas, o autor, Michael Parai-
tre, tece uma série de considerações que pode ser oportuno retomar aqui.
Antes de mais, lamenta a total ausência de mulheres filósofas, com
exceção de Arendt, no ensino terminal, em França. Nesse contexto,
reflete sobre algumas razões possíveis dessa ausência, identificando as já
clássicas, como a suposta falta de capacidade das mulheres para atingirem
a abstração ou a de que não há nenhum sistema filosófico completo, no
feminino. Neste sentido, lamenta que Madame de Staël continue a ser
estudada, apenas, como autora pré-romântica e que Simone de Beauvoir
só figure nos cursos de literatura ou como biógrafa de Sartre. O objetivo
do autor é desconstruir o enviesamento dos pontos de vista que afastam
as mulheres filósofas do olimpo académico, realçando que é falso que as
mulheres se interessem apenas pelas questões que lhes dizem respeito,
mas sublinhando, contudo, que muitas das pensadoras que desde o século
XVIII desenvolveram trabalho teórico, de Madame de Staël a Simone
Weil, passando por Rosa Luxemburgo, o fizeram de um modo próprio,
mais comprometido com a ação e mais enraizado na existência1.
Não há dúvida, ou, pelo menos, parece-me não haver, de que há áreas
filosóficas tradicionais mais ocupadas pelas mulheres, como é o caso do
pensamento político ou do pensamento ético que estão mais ligadas à
vida e ao viver; contudo, interpreto tal situação pelo facto, subjacente ao

1 Cf., Michael Paraitre, Femmes philosophes, femmes d’action, Paris, Les Temps des
Cerises, 2004.
128 Fernanda Henriques

pensamento do autor que acabei de referir, de que a experiência de socia-


lização que têm como mulheres as leve a um campo de reflexão filosófica
que se prende mais existencialmente com os modos de viver ou de ser.
Num texto muito interessante intitulado Le choix du neutre chez deux
femmes de pensée, Hannah Arendt et Simone Weil, Geneviève Fraisse
levanta algumas questões que também pode ser interessante ter em consi-
deção. Que significa o título? Escolher o neutro aponta para o facto,
comum às duas autoras mencionadas, de terem escolhido silenciar a sua
particularidade de serem mulheres e trabalhar num espaço simbolicamen-
te masculino. Ambas filosofaram sobre o esquecimento da sua particula-
ridade de mulheres, escolhendo, o neutro, portanto. O que Geneviève
Fraisse, feminista, quer marcar é que se trata de uma escolha – e não de
um estado – escolha que, a seu ver, tapa o privilégio do masculino e a
discriminação do feminino.2
A análise que desenvolve de ambas as autoras mostra que uma e outra
têm a noção da discriminação feminina, mas, ao mesmo tempo, de que,
pessoalmente, escapam a essa discriminação, cuja razão não procuram,
nem lhes provoca a reflexão. Contudo, Fraisse demonstrará, igualmente,
que nenhuma delas desenvolverá o pensamento nos quadros do universal
abstrato – tradicional nos escritos filosóficos – e que, de alguma maneira,
as categorias que trabalham – judeu, trabalhador, por exemplo – em
termos de relação com o universal, se manterão do lado do particular.
Que pode iluminar esta visão das coisas?
Tratando-se de uma problemática sem uma história efetivamente filo-
sófica que a sustente e permita uma argumentação cabal do que está em
causa, penso que o mais honesto e razoável é dar tempo ao tempo para
poder aferir, pelos caminhos percorridos, as convergências e as divergên-
cias entre o filosofar das mulheres e o dos homens.
Uma coisa é, contudo, incontroversa na nossa contemporaneidade: por
um lado, temos filósofas cuja atividade se centra nas questões das mulheres
e do feminismo, como é o caso das já analisadas neste percurso hermenêu-
tico e de muitas outras; por outro lado, temos filósofas que filosofaram sem
se ocuparem com a sua condição de mulheres, como é o caso das duas
autoras que Geneviève Fraisse analisa; finalmente, temos outras filosófas
que debatem questões filosóficas gerais e, paralelamente ou entrosadamen-
te, questões ‘de mulheres’. Dentro destas últimas, considero que o contri-
buto mais inovador que tem sido dado pelas mulheres se situa no campo da
ética e do desenvolvimento moral – que, apenas, o peso da simbólica
masculina no campo filosófico impede que esse facto tenha o realce que
merece – perspetiva de que se ocupará a parte final deste trabalho.

2 Geneviève Fraisse, La controverse des sexes, Paris, PUF, 2001: 191.


Filosofia e Género 129

3.2. Em busca de uma epistemologia da racionalidade fecunda


para os Estudos Feministas

Como se disse na introdução desta terceira parte, a mudança qualitativa do


estatuto do discurso das mulheres a partir da segunda metade do século
XX, deveu-se, fundamentalmente, à sua entrada sistemática na educação
depois da 2.ª Grande Guerra e também às mudanças sofridas pelo estatuto
da racionalidade – raiz fundante de qualquer estrutura teórica.
Essa mudança de estatuto da racionalidade correspondeu à configura-
ção de uma epistemologia da Razão que questionou a herança que a
Modernidade tinha definido, permitindo um desenho racional que serviu
ao desenvolvimento dos Estudos Femministas.
Trazer para o interior deste trabalho a problemática da racionalidade
radica na convicção de que uma epistemologia da racionalidade que sirva
um outro paradigma de abordagem do saber é tão fundamental para os
Estudos Feministas como ressignificar o nosso passado, resgatando o
papel das mulheres. Trata-se, no fundo, de defender a ideia de que a
investigação feminista necessita de uma conceção aberta sobre a raciona-
lidade para se desenvolver sem ficar acantonada a um gueto ou a uma
simples marginalidade sem consequências diretas no saber em geral, para
fugir daquilo que Virgínia Ferreira chama o acantonamento das especia-
listas sobre as mulheres ‘nas coisas das mulheres’ que conduz à negação
da relevância do seu trabalho para o saber da disciplina.3
No sentido de dar alguma concretização a esta ideia, irei centrar-me na
exploração do pensamento hermenêutico – que os Estudos Feministas em
geral não privilegiam – que, mesmo quando não o explicita, assenta numa
conceção da racionalidade que cruza a herança moderna, mas não se
fecha à pós-modernidade.

A – Percursos e debates
A filósofa espanhola Cristina Molina Petit publicou um artigo, num
número da Revista Isegoría dedicado à problemática do Género,4 onde

3 Virgínia Ferreira, “Estudos sobre as mulheres em Portugal: a construção de um


novo campo científico”, Ex aequo, n.º 5 (2001): 9-27-20.
4 Cristina Molina Petit, “Lo femenino como metáfora en la racionalidad postmoderna
y su (escasa) utilidad para a Teoría Feminista”, Isegoría n.º 5 (1992): 129-143. Esta
autora tem uma obra onde articula aquilo que é o lugar próprio do feminismo – o
século das luzes. Cf., Cristina Molina Petit, Dialéctica feminista de la ilustración,
Barcelona, Anthropos, 1994.
130 Fernanda Henriques

questionava fortemente o interesse para o feminismo daquilo que se


poderia designar por imagem feminina da racionalidade pós-moderna. A
autora trata sobretudo duas metáforas – a da razão piedosa, ligada a
Vattimo e a da razão estetizada que articula com o que chama pensamen-
to do corpo – denunciando que estas perspetivas sobre a racionalidade,
embora feminizadas – ou talvez por isso – não só não contribuem para
uma melhor compreensão das problemáticas ligadas às mulheres como
podem mesmo constituir um forte obstáculo a essa compreensão. A
justificação deste ponto de vista decorre de se considerar que uma razão
enfraquecida não pode ser um instrumento emancipador como as posi-
ções feministas necessitam.
A posição de Cristina Molina Petit está ligada à sua articulação com a
‘Escola’ desenvolvida por Celia Amorós, de cujo Seminário de investiga-
ção fez parte, e que defende, como já foi dito, que não só apenas se pode
falar de feminismo a partir da modernidade como só a racionalidade
moderna oferece um estatuto racional que permite o percurso compreen-
sivo e emancipador das mulheres. Celia Amorós reitera, de modo siste-
mático, a sua posição em todas as suas obras, até porque, para ela, a pós-
-modernidade representa um registo de morte, designadamente de morte
do sujeito racional capaz de tematizar a sua própria posição e estatuto e
de ser seu protagonista:
Pós-modernidade. Diagnóstico em que se plasma ainda às apalpadelas
e tenta articular-se, como afirma Wellmer, a consciência de uma nova
época, a nossa. E cuja caracterização sumária (…) se concretiza, como
é sabido, em torno de determinados registos de morte: morte do sujeito,
morte da razão, morte da história, morte da metafísica, morte da totali-
dade. Morte de toda uma rede de categorias e conceitos, cujas relações
orgânicas vertebravam o projeto da modernidade, o projeto ilustrado
entendido como a emancipação do sujeito racional, sujeito que, de al-
gum modo, se encontrava em posição constituinte em relação ao pro-
jecto histórico interpretado a partir de alguma ou algumas chaves tota-
lizadoras relacionadas, por sua vez, com o protagonismo desse sujeito e
com os avatares da sua sujeição ou da sua libertação.5
Nesta conformidade, portanto, de um modo geral, as filósofas espa-
nholas, cuja investigação se faz no horizonte de Celia Amorós, têm uma
posição muito negativa em relação à pós-modernidade.
Tal não é o meu caso, porque penso que a crítica a que alguma pós-
-modernidade submeteu o conceito de Razão legado pela modernidade

5 Celia Amorós, Tiempo de Feminismo, op. cit.: 320.


Filosofia e Género 131

pode permitir reconfigurar uma racionalidade que, sendo, embora, mais


frágil é, ao mesmo tempo, mais aberta e inclusiva, o que pode constituir
uma nova força – a de trazer à linguagem aspetos da realidade não con-
templados por uma razão instrumental e técnica e, dessa forma, fornecer
bons argumentos para as teorias feministas. Considero, com Celia
Amorós, que os Estudos Feministas necessitam do poder analítico e
discriminador com que a modernidade concebeu a Razão, mas, ao mesmo
tempo, têm uma igual necessidade de a libertar da rigidez e do totalita-
rismo, também herança do mundo moderno, para possibilitar que ela seja
um recurso de discernimento e intervenção quer no plano teórico restrito,
no sentido da constituição de uma produção científica ligada à complexi-
dade da realidade, quer no campo mais alargado da compreensão da vida
e do viver, no quadro da definição de novos modos de ser e de habitar
que tornem sustentável as interações humanas e a ocupação do cosmos.
Neste contexto, pode ser interessante convocar outra filósofa espa-
nhola, não feminista, que se preocupou também em burilar um modelo
de racionalidade que, sendo analítico, não fosse excludente. Trata-se de
María Zambrano, (1904-1991), pensadora moderna e não pós-moderna,
embora haja algumas investigações que procuram traçar paralelismos
entre Zambrano e Heidegger e, até, ver na sua razão poética uma possi-
bilidade de se transformar num utensílio teórico, ao gosto do pós-
-modernismo.6
Não obstante ser uma pensadora da modernidade, María Zambrano
procurou configurar uma racionalidade, cujo desenvolvimento atendesse
a uma atitude de escuta e de abertura, respeitadora da multiplicidade e da
complexidade da realidade.
Num texto de 1937, A reforma do entendimento, Zambrano diz duas
coisas que me parecem fundamentais para o que quero realçar: (1) que
uma crítica do entendimento deveria incluir uma consciência de tudo o
que não é do domínio do entendimento, ou, pelo menos, uma consciência
da sua existência – [caso do irracional ou do não-ser] e (2) que tem de se
descobrir um uso das razão que acompanhe a consciência da relatividade
[relativismo positivo].
São estas, entre outras, preocupações que a levam à caracterização da
razão poética.
A razão poética originar-se-á do espírito da poesia, com o seu quê de
Dionisíaco – ligada ao êxtase, à entrega do deslumbramento. É uma razão

6 Cf., Teresa Rocha Barco (ed.), María Zambrano: La razón poética o la filosofía,
Madrid, Tecnos, 1997, sobretudo, o texto de Chantal Maillard, “La reforma del
entendimento. Hacía una superación de la razón poética”: 173-183.
132 Fernanda Henriques

de amor, aparecendo caracterizada por três traços fundamentais: amor,


gratuidade e recomposição.
Amor às origens, remetendo para o desenvolvimento de uma atitude
intelectual perante a realidade que a respeite na sua imensa complexidade
e, por isso, mais a escute e a acolha do que a disseque por análise. Gra-
tuidade ou descentração de si, isto é, definição do exercício intelectual
como uma prática de liberdade e não como imposição de esquemas ou
uma exploração cega dos recursos do real. Recomposição ou trabalho de
reconstrução do que se separou ou se rompeu, apontando diretamente
para a ideia de que pensar é um trabalho de recuperação e de tecelagem,
no sentido da busca de um horizonte de unidade perdido.
O que orientava a busca de María Zambrano era o desejo de constitui-
ção de um saber salvador, ou seja, um saber que, por um lado, transfor-
masse e, por outro, mantivesse a integridade da realidade. Obviamente
que o termo salvação está cheio de carga de sagrado, mas, metaforica-
mente, vale a pena pensar nele. De um certo ponto de vista, a defesa de
uma razão poética prende-se com o reconhecimento de duas lógicas
possíveis na relação e compreensão da realidade: uma lógica excludente,
redutora e unificadora que aspira à clareza e outra integradora, compro-
metida, orientada para a profundidade7.
Zambrano diz que em diferentes momentos da sua vida esteve para
desistir da filosofia em virtude da sua inflexibilidade racional, quase
poderíamos dizer, da sua vontade de poder; e que só se manteve dentro
dela porque conseguiu discernir que era possível trabalhar em filosofia
num espaço teórico a que ela chama La penumbra tocada de Alegria,
designando como razão poética o instrumento teórico desse espaço:
Aquilo que vejo claro é que vale mais condescender perante a impossi-
bilidade, que andar errante, perdido, nos infernos da luz. Julgue-me,
pois, o eventual leitor a partir deste ângulo: preferi a obscuridade, que
em tempos passados descobri como penumbra salvadora, que andar er-
rante, só, perdido, nos infernos da luz.8
O que é que está verdadeiramente em causa neste confronto entre uma
racionalidade moderna e uma racionalidade pós-moderna ou, ainda, uma
racionalidade moderna caldeada com algumas dimensões da pós-
-modernidade?

7 Esta ideia aparece subjacente ao texto La metáfora del corazón, in María Zam-
brano, Madrid, Alianza Editorial, 1993: 49-58.
8 María Zambrano, Filosofía y Poesía, Madrid, FCE, 1987: 11.
Filosofia e Género 133

Creio que a resposta a esta questão supõe fazer um percurso que vai
da ‘crítica da razão à crise da razão’.
Numa nota ao prefácio da 1.ª edição da Crítica da Razão Pura, Kant
dizia que o seu século era “o século da crítica”, ou seja, o século onde a
razão, soberana, se reconhecia a si mesma a capacidade de se submeter a
um livre e público exame, a um tribunal, que instaurasse, claramente, um
quadro do seu funcionamento, relevando os seus poderes. O iluminismo
representava, assim, o Kairos da crítica da razão, o seu momento por
antonomásia e, simultaneamente, revelava a imensa confiança na razão,
ao supor a sua competência e a sua capacidade para apreciar e decidir
sobre a validade ou não-validade dos processos racionais.
Dir-se-ia, então, que a crítica ao poder e aos limites da razão configu-
raria um instrumento operatório poderoso e eficaz para compreender o
real e nele originar modos produtivos de viver.
Tal não foi, porém, o caso.
A herança da crítica da razão foi uma razão em crise, posta em ques-
tão por todas as hermenêuticas da suspeita – desde as clássicas de Marx,
de Nietzsche e de Freud às feministas, que evidenciam, cada uma à sua
maneira, os logros de uma crença na comensurabilidade direta entre
racionalidade e realidade, na transparência total da linguagem racional ou
seja, na sua pretensa objetividade neutral –, mas também, noutro horizon-
te, pela Escola de Frankfurt – querendo pensar a sociedade democrática
depois do fracasso da racionalidade posto a nu pela segunda grande
guerra – através de Adorno e Horkheimer e mesmo de Habermas, que
submeteram a racionalidade ocidental moderna a uma feroz denúncia
crítica, pondo a nu o seu fundo de totalitarismo que originou, no seu
entender, que o desenvolvimento da nossa cultura se realizasse através da
instrumentalização e da violência exploradora da realidade. De acordo
com estas perspetivas, o progresso das Luzes transportaria, conjuntamen-
te com a força emancipadora da razão, o duplo efeito perverso de uma
certa usura sobre o mundo natural e de uma ação de exclusão em relação
a tudo que não pudesse encaixar-se nos padrões tecnológicos e instru-
mentais. A razão forte que fundou a sociedade moderna aparece, por esta
via, configurada como uma razão opressora, quer essa expressão assuma
a forma de uma totalização exploradora, quer de uma totalização exclu-
dente; em ambos os casos, a racionalidade fica articulada com o exercício
da violência, da dominação e da exclusão9.

9 Cf., especificamente: T. W. Adorno & M. Horkheimer, La Dialectique de la


raison (1947), Paris, Gallimard, 1974.
134 Fernanda Henriques

Sendo herdeiro histórico e teórico de Horkheimer e Adorno, Haber-


mas não faz, no entanto, uma crítica radical da razão moderna e muito
menos quer fazer a sua desconstrução. Aliás, Habermas envolve-se na
polémica do pensamento pós-moderno como seu adversário teórico.
Demarcando-se da ideia de totalitária como qualificador da razão, porque
essa perspetiva suporia a sua natureza como corrompida e levaria ao
desespero perante a capacidade racional, Habermas adota o caminho da
reconstrução e da transformação, procurando desimplicar na racionalida-
de outras dimensões que não apenas as instrumentais. A sua proposta de
uma razão dialógica ou comunicativa consubstancia essa dupla vertente
de crítica e de conservação.
A teoria crítica habermasiana bem como a sua ética da comunicação
são bastante exploradas pelo pensamento feminista contemporâneo, ainda
que, naturalmente, com algumas demarcações ou explicitações. Tal é o
caso do texto de Nancy Fraser, em que ela questiona o verdadeiro alcance
crítico da posição de Habermas, partindo do caráter inultrapassável da
definição de Marx de 1843, sobre a teoria critica como a que permite “a
clarificação das lutas e anseios de uma época”. Nesse sentido, continua,
dizendo:
Assim, por exemplo, se as lutas contra a subordinação das mulheres fi-
guram entre as mais significativas de uma época dada, então uma teo-
ria crítica da sociedade desse período, entre outras coisas, deveria lan-
çar luz sobre o caráter e as bases dessa subordinação.10
Para o que aqui está em causa, parece importante salientar dois aspe-
tos da racionalidade que estão implicados na definição de teoria crítica: a
capacidade clarificadora e discriminadora da razão e a confiança na sua
possibilidade de transformar um estado de coisas, ou seja, de contribuir
para a sua alteração.
Também Boaventura Sousa Santos, na sua Crítica da Razão Indolen-
te, põe em evidência o facto de uma teoria crítica estar ligada ao suposto
de ser possível analisar e transformar a realidade em cada momento dado,
em virtude de as formas empíricas que a existência assume serem sempre
inferiores ao conjunto das formas possíveis que poderia revestir.
Por teoria crítica entendo toda a teoria que não reduz a ’realidade’ ao
que existe. A realidade, qualquer que seja o modo como é concebida, é

10 “Que tiene de crítica la teoria crítica? Habermas y la cuestion del género”, in


Seyla Benhabib, Drucilla Cornell, Teoria feminista y teoria crítica, Valencia,
Editiones Alfons el Magnânimo, 1990: 47-88: 49.
Filosofia e Género 135

considerada pela teoria crítica como um campo de possibilidades e a


tarefa da teoria consiste precisamente em definir e avaliar a natureza e
o âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado. A análise
crítica do que existe assenta no pressuposto de que a existência não es-
gota as possibilidades da existência e que, portanto, há alternativas
suscetíveis de superar o que é criticável no que existe.11
Numa perspetiva estritamente feminista, Celia Amorós exemplifica
esta ideia de Boaventura Sousa Santos de o empírico não esgotar o real,
quando, procurando refutar a posição de Rorty, ao criticar o universalis-
mo como não produtivo para as minorias se dizerem enquanto tais, expli-
ca o que quer dizer a afirmação de as mulheres quererem ser seres huma-
nos ‘de verdade’. Diz ela:
Assim, as mulheres não são seres humanos ’de verdade’ em qualquer to-
pos ouranos ou em qualquer mundo numénico contraposto ao fenoméni-
co, mas sim numa esfera de sentido que pode ter um papel contra-fático e
normativo em relação à realidade social existente, porque certos proces-
sos históricos […] tornaram possível a emergência de abstrações polé-
micas que produzem efeitos de irracionalização do statu quo.12
São estes dois aspetos que têm vindo a ser apontados como ligados à
teoria crítica – o discernimento analítico e a dinâmica prospetiva – que
me levam a considerar que alguns traços do pensamento pós-moderno
podem servir os Estudos Feministas.

B – Algumas reflexões em torno da pós-modernidade


A crítica radical do pensamento pós-moderno à razão, como potência
fundadora do saber e do agir, assume a sua configuração mais acabada na
expressão de Jean-François Lyotard ao afirmar a descrença em relação à
possibilidade de constituição de metanarrativas ou narrativas legitimado-
ras. O mesmo é dizer que, para a perspetiva pós-moderna, a racionalidade
perdeu o poder de crítica e de emancipação que as Luzes lhe haviam
reconhecido, questionando, no mesmo gesto, os conceitos clássicos de
verdade e de transformação ou progresso da humanidade, cuja compreen-
são fica condenada a mover-se numa errância contínua em que cada
suposto novo é, no fundo, apenas a repetição da mesmidade do sistema.

11 Boaventura Sousa Santos, A Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da


experiência, Porto, Afrontamento, 2000: 23.
12 Celia Amorós, Tiempo de Feminismo, op. cit.: 185.
136 Fernanda Henriques

A que fica, então, reduzido o pensar neste quadro?


Se nos ativermos ao ‘pós’ de pós-modernidade, ficaremos perante uma
designação cujo locus é referência a um outro de si, uma vez que se
classifica a si próprio de pós. É, portanto, um lugar outro relativamente a
uma determinação específica e tomada como referencial de sentido
seguro que é a modernidade, assumindo-se, por isso, de certa forma,
como um não-lugar ou uma utopia. A pós-modernidade é, assim, um
lugar-tempo descentrado, deslocado de um outro – a modernidade – cujo
tonus denuncia e que não quer ocupar nem ser.
Tal é, também, o sentido tradicional na nossa cultura das obras-utopia,
que foram emergindo nos seus diferentes momentos históricos. Cada uma à
sua maneira, todas essas obras assumiram a dupla característica de denún-
cia e de recusa de uma situação cultural específica e de busca de um outro
modo de ser. Eram, por esse motivo, alimentadas por uma racionalidade
prospetiva, aberta à possibilidade da reconstrução e da transformação da
realidade. Uma racionalidade que, para além de tudo, se determinava como
promessa, na medida em que as utopias eram esses mundos possíveis de
vir a ser, mas sempre num topos outro, diferente, diferido. Promessa,
contudo, ou seja, horizonte possível de se tornar existente e que, por essa
razão, podia configurar dinâmicas de transformação.
Tal me parece ser hoje a exigência a que está submetido o pensar a
partir das diversas perspetivas teóricas que a segunda metade do século
XX viu surgir, nomeadamente, a do feminismo. Trata-se de exigir ao
pensar que se entreteça com a ação e que, por isso, sustente e legitime a
transformação como possível. Transformação, sobretudo, das estruturas e
das metáforas que sempre alimentaram o pensar e se acantonaram como
sua natureza própria, pelo que se tornaram transparentes em si mesmas,
possibilitando que o neutro, o objetivo e o universal abstrato fossem
tomados como norma do saber e do ser e excluíssem, como marcado ou
particular, todo o contextual e toda a diferenciação, alimentando a forma-
ção de campos ou perspetivas teóricas marginais.
A este nível, a pós-modernidade, como símbolo da deslocação e da não-
-centralidade, pode funcionar fecundamente, dando visibilidade a todos os
lugares do espaço e pela força da descentração, retirar ao poder, sob todas
as formas, o lugar central de discurso dominante e verdadeiro. O estilhaçar
do centro, transportado pelo pós da pós-modernidade, pode ser o anúncio
da possibilidade do diálogo entre as diferenças de todos os tipos.
Na verdade, o estilhaçar do centro tem como correlato uma dupla situ-
ação positiva: por um lado, faz tomar consciência de que cada um de nós
ocupa apenas uma posição entre muitas outras, e, por outro, dá legitimi-
dade às vozes plurais, locais, em suma, à diversidade como valor. Por
Filosofia e Género 137

essa via, ele pode constituir-se como o anúncio da necessidade do diálogo


entre as diferenças e originar, como consequência, rearrumações dos
olhares teóricos que tornem visíveis os velhos e discriminadores para-
digmas do pensar. Esta convicção de que a valorização das diferenças
enquanto tais, ao significar a derrota da arrogância da razão totalitária e
imperialista, pode potenciar a configuração de uma racionalidade mais
aberta e integradora, está explícita em alguns dos pensadores pós-
-modernos, nomeadamente, em Gianni Vattimo que o expressa em muitos
dos seus textos, de que o estrato seguinte serve apenas de exemplo:
Se, afinal, falo o meu dialeto num mundo de dialetos, estarei também
consciente de que ele não é a única língua, mas antes um dialeto entre
muitos outros. Se professo o meu sistema de valores – religiosos, estéti-
cos, políticos, étnicos – neste mundo de culturas plurais, terei também
uma consciência aguda da historicidade, contingência, limitação de
todos estes sistemas, começando pelo meu.13
Este conjunto de afirmações não tem de arrastar consigo, necessaria-
mente, nenhum tipo de indiferentismo; o que dele e através dele se releva
é apenas a clarificação de que “vivemos num mundo interpretado” e que
cada interpretação é sempre parcelar e unilateral. Tudo isto significa,
então, ter esperança na pós-modernidade e acreditar que a morte do
metafísico que ela anuncia é coalescente com a promessa de um renasci-
mento do próprio pensar que escute e respeite a realidade na sua profun-
didade abissal e na sua diversidade complexa e que, com esse novo modo
de pensar, continuando a citar Vattimo, encontremos “um novo modo de
ser (talvez, por fim) humanos.14

13 Gianni Vattimo, “Posmodernidad: una sociedad transparente?”, in Aavv, En torno


a la posmodernidad, Barcelona, Anthropos, 1994: 9-19, 17-18. No quadro da
questão da pós-modernidade, quero referir alguns textos a partir dos quais fui
argumentando uma posição, para além dos que vão aparecendo em notas: Jean-
-François Lyotard, La Condition postmoderne: rapport sur le savoir. Paris:
Minuit, 1979. Perry Anderson, Les orígines de la posmodernidad. Barcelona,
Anagrama, 2000. Matei Calinescu, Cinco Caras de la modernidad, Madrid,
Tecnos, 1991. Gianni Vattimo, As aventuras da Diferença. O que significa pensar
depois de Heidegger e Nietzsche, Lisboa, Edições 70, 1988. Zygmunt Bauman,
Modernity and ambivalence, Ithaca, NY., Cornell University Press, 1991. Foi,
igualmente, importante ler as posições de Habermas e Derrida, já em diálogo, no
livro: Giovanna Borradori, Filosofia em tempo de Terror, Porto, Campo das
Letras, 2004. E, por outro lado, ter em conta Martin Heidegger, “O tempo da
imagem do Mundo”, in Martin Heidegger, Caminhos de Floresta, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2002: 95-120.
14 Gianni Vattimo, “Posmodernidad: una sociedad transparente?”, op. cit.: 19.
138 Fernanda Henriques

Retomando ainda Vattimo, agora intérprete de Heidegger, poderemos


entender que o “pós” de pós-modernidade remete, tão só, para a ideia de
Verwindung, já antes referida, ou seja, de convalescença, na dupla vertente
de melancolia e sonho que a caraterizava quando a sociedade a permitia.
Para voltar, de novo, a Lyotard, se, pela própria expressão da pós-
-modernidade, esta esperança não pode ser concebida em termos de
lograr alcançar um qualquer tipo de vitória, uma superação total do que
quer que seja, nem um lugar absoluto que se possa colocar a si mesmo
como autoridade incontestável ou afirmar-se como a posição verdadeira,
ela pode, contudo, radicar no valor do aperfeiçoamento de nos sensibili-
zarmos para as diferenças e para sermos mais capazes de suportar o
incomensurável.
Por outro lado, se a razão toda-poderosa não serviu, grandemente,
nem a causa das mulheres, nem a do cosmos, mas, pelo contrário, numa
lógica totalizadora, calculista e segregadora, classificou e explorou,
excluindo dos quadros canónicos e do direito de cidadania epistémica
tudo o que não se adequava à sua força unificadora, então, talvez se deva
fazer uma exploração mais fina dos sentidos que podem ser extraídos de
uma razão em crise ou de uma razão débil, de maneira que se possa
configurar um conceito de racionalidade que, por um lado, rememore o
poder discriminador da razão moderna e, por outro, se abra a novas
formas de entendimento e compreensão da realidade. Uma racionalidade
que reconheça que o nosso conhecimento assenta em condicionamentos
inerentes a sermos humanos: a nossa inserção histórica, social, e cultural
e o facto de termos um corpo fazem do discurso humano, qualquer que
ele seja, uma interpretação mais ou menos validada pelas premissas e
axiomas em que se inscreve. Nesse sentido, tal racionalidade deve assu-
mir certos parâmetros:
Demarcar-se do padrão epistemológico ocidental que instaurou as
ideias de neutralidade, universalidade e objetividade como bandeiras
da verdade e do valor do saber, assentes na ideia de uma razão pura,
transparente e assética que produzisse e fornecesse um conhecimento
sem impressão digital.
Não abandonar a intencionalidade universal, mas saber demarcar-se
da universalidade abstrata do iluminismo, procurando uma universali-
dade assimptótica, que marca uma direção, um horizonte regulador15.
Finalmente, fazer entrar no campo do saber o valor da argumentação,
contribuindo para a criação de uma “cultura de razões” e para a defesa

15 Celia Amorós (ed.), Feminismo y filosofía, Madrid, Síntesis, 2000: 99.


Filosofia e Género 139

da necessidade de se procurarem diferentes lugares de explicação e de


compreensão da realidade.

C – O contributo específico do pensamento hermenêutico


É por se inscrever dentro de uma racionalidade que aceita a sua finitu-
de em relação ao real e, portanto, se reconhece incomensurável com ele,
que o pensamento hermenêutico pode dar um contributo fecundo para
esta reflexão, nomeadamente a compreensão do seu contexto de emer-
gência e, também, a ideia ricoeuriana de Conflito de Interpretações, já
antes referida.
Contexto de emergência da hermenêutica moderna
Jean Greisch na sua obra L’âge herméneutique de la raison interpreta
o nascimento da hermenêutica moderna dentro do quadro descrito por
Hegel, na Fenomenologia do Espírito, da crise da consciência religiosa,
no contexto da separação entre razão e fé que, sinteticamente, podemos
caracterizar dizendo que se trata da oposição entre a secularização da
razão e a conceção de uma fé sem razão, acantonada ao sentimento e
renunciando à verdade. Hegel, sublinha Greisch, descreve esta situação
referindo que a consciência religiosa passa a ter uma vivência ambígua,
ritmada por dois pesos e duas medidas.
A análise de Jean Greisch quer salientar que a teorização de Hegel
corresponde a uma determinada situação realmente vivida pelas pessoas
na época, pelo que recorre, como documentação, a alguma troca de
correspondência onde essa questão é tratada, nomeadamente, entre Jacobi
a Reinhold, citando uma confissão de Jacobi em que este constata a sua
cisão interior entre sentimento e razão, o que o faz sentir-se "navegador
de duas águas" e, no fundo, demonstra a humilhação da razão:
Vê lá, caro Reinhold, permaneço o mesmo. Um pagão perfeito de acor-
do com a minha razão, um cristão segundo o meu sentimento; navego
entre duas águas (.,,); uma sempre me eleva, a outra afunda-me sem
cessar.16
Dentro da mesma intenção reflexiva, Greisch cita uma carta de Sch-
leiermacher a Jacobi, de 30 de Março de 1818, onde o fundador da her-
menêutica moderna propõe uma interpretação para a metáfora das duas
águas, colocando como hipótese que haja a possibilidade de traduzir no

16 Jean Greisch, L’âge herméneutique de la raison, Paris, Les Éditions du Cerf,


1985: 19.
140 Fernanda Henriques

plano do racional aquilo que o sentimento quer dizer. Essa tradução seria
a própria operação hermenêutica:
[…] a oscilação é a forma universal de toda a existência finita[…].
[…] Razão e sentimento permanecem para mim também justapostos
mas tocam-se e formam uma coluna galvânica.
A vida mais interior do espírito é para mim esta operação galvânica, no
sentimento da razão e na razão do sentimento, onde, contudo, estes dois
pólos estão sempre de costas viradas um para o outro.17
Ou seja, sem propor a mistura ou a confusão entre o sentimento e a ra-
zão, Schleiermacher quer, todavia, poder pensar e pensar-se em unidade e,
por isso, explora a ideia de que o choque entre sentimento e razão produza
algo de novo, algo que, por seu lado, está transmutado, pertencendo a uma
natureza diferente de cada um dos elementos que o originaram.
Penso que a perspetiva aqui descrita para explicar o nascimento da
hermenêutica moderna como um processo de tradução no plano racional
das diferentes variáveis da existência humana, num desejo de as recondu-
zir a todas à unidade possível, pode servir como modelo analógico para
aquilo que é o centro das preocupações das pensadoras feministas que se
ocupam com as questões epistemológicas, nomeadamente, com a questão
de como traduzir, num discurso logóico, aceite pelo cânone cientifico, as
experiências das mulheres, ou como pensar uma epistemologia que não
dissocie as emoções da racionalidade.
Especificamente, os trabalhos de Alison Jaggar, como, por exemplo,
Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista, em que
aquela autora defende que as emoções podem não só ser úteis como
também necessárias à construção do conhecimento, contra aquilo que
designa como o mito positivista da investigação imparcial, vão nessa
linha. Segundo as suas próprias palavras, a autora pretende ‘construir
uma ponte’ ou vencer o hiato entre as emoções e o conhecimento. O seu
texto é alimentado por uma dinâmica dupla. Por um lado, quer destruir o
preconceito da imparcialidade científica, mostrando que ele é um mito
que classifica como classista, racista e masculinista; por outro, deseja
explorar o valor das emoções no processo de interpretação da realidade,
uma vez que elas, […] podem ajudar-nos a compreender que o que foi
geralmente considerado como facto, foi construído de maneira a obscu-
recer a realidade de pessoas subordinadas, especialmente as mulheres.18

17 Ibidem: 20.
18 Alison M. Jaggar, “Amor e conhecimento: a emoção na epistemologia feminista”,
in Alison M. Jaggar, Susan R, Bordo (eds,), Gênero, Gorpo, Conhecimento, Rio
Filosofia e Género 141

No fundo, o que está verdadeiramente em questão neste texto, como


em todos os outros que se ocupam da mesma problemática, é a necessi-
dade de superar as dicotomias e os dualismos, que alimentam as episte-
mologias clássicas e, retomando as palavras de Virgínia Ferreira, no texto
antes referido, mudar as conceções do saber e dos modos de o obter
abrindo caminhos para a definição de uma forma de racionalidade mais
flexível e dialética.
A ideia de Conflito de Interpretações
O segundo aspeto que me parece importante convocar como legitima-
ção da fecundidade da hermenêutica para a epistemologia feminista é a
perspetiva ricoeuriana de Conflito de Interpretações. O Conflito de Inter-
pretações, como já foi dito, é a imagem de marca da hermenêutica de
Paul Ricoeur, aquilo que faz a sua especificidade. A formulação desta
figura epistemológica da racionalidade hermenêutica de Ricoeur ocorre
no seu diálogo com Freud19 e no contexto da configuração do conceito de
interpretação, como modo de ser próprio de uma racionalidade finita que
se constitui e organiza no seio de uma linguagem, cujas expressões são
absolutamente diversificadas e algumas mesmo contraditórias entre si.
A questão a que Paul Ricoeur quer responder com a ideia de Conflito
de Interpretações é, por isso, a da unidade da linguagem, ou seja, a de
encontrar um caminho de orientação no interior da diversidade dos dis-
cursos humanos sobre o real. Responder a tal questão com a figura de
Conflito de Interpretações significa a negação de duas posições extremas.
Em primeiro lugar, nega-se que seja possível um saber totalmente unifi-
cado sabre a realidade; isto é, o saber absoluto, como total transparência
da razão a si própria, como clarificação absoluta, é inacessível à razão
humana e impróprio da natureza abismal da realidade. A afirmação de
uma verdade una e unificadora é sempre manifestação do poder e não do
saber. Em segundo lugar, nega-se a incomensurabilidade entre os saberes.
Os saberes podem dialogar entre si, porque emergem todos no interior da
mesma linguagem humana e para o fazerem apenas têm que se reconhecer
como pontos de vista, como interpretações constituídas a partir de supostos
próprios ou mesmo de estruturas axiomáticas específicas. Todavia, o
Conflito de lnterpretações tem fundamentalmente um desígnio positivo.

de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1997:157-185: 176. A autora refere-se ao


que chama emoções proscritas, ou seja, as emoções convencionalmente
inaceitáveis, que, segundo ela, podem desenvolver uma perspetiva crítica sobre o
mundo ou podem mesmo constituir o começo de uma perspetiva crítica.
19 Cf., Paul Ricoeur, De l’interprétation, essai sur Freud, Paris, Seuil, 1965.
142 Fernanda Henriques

Ele é movido por uma profunda vontade de sentido, querendo chamar a


atenção para o que a racionalidade pode fazer e não apenas para o que não
pode fazer. Daí que a sua força determinadora seja representada pela ideia
de que os saberes podem dialogar entre si e devem fazê-lo, se querem obter
uma perspetiva mais profunda e mais rica sobre a realidade.
O Conflito de lnterpretações estabelece que toda a interpretação é re-
corrente e que só no confronto e na exploração do choque das interpreta-
ções rivais se pode superar a parcialidade de cada hermenêutica particu-
lar. Nesta medida, ele representa a última fronteira da racionalidade, ou
seja, o seu limite, mas, ao mesmo tempo, indica também o seu poder: o
poder de clarificar, de dialogar, de argumentar.
De facto, embora aponte para a limitação da racionalidade, ele põe,
igualmente, em evidência o seu poder, especificando que, quando a
racionalidade aceita os seus limites e arrisca aprofundar o saber através
da exploração das interpretações rivais da realidade, está em condições de
prosseguir o caminho do esclarecimento e da construção da verdade.
Em síntese, diria que a hermenêutica como saber e como modo de
constituição do saber: (1) assenta num conceito alargado de racionalida-
de, (2) assume que a interpretação é o próprio do modo humano de saber
e (3) define a impossibilidade de um saber puro, total, sobre a realidade.
Por esse caráter, configura algumas características, que não apenas são
coalescentes com a epistemologia feminista, como servem a sua intencio-
nalidade mais funda. Dessas caraterísticas quero destacar: a historicidade,
a fragmentação, a interação entre o metafórico e o concetual e a finitude.
Historicidade que marca todo o saber hermenêutico como um com-
promisso com a interpretação, nascendo de dentro da afirmação eu inter-
preto, afirmação que é sempre pronunciada do interior de uma relação
específica com a realidade e com o próprio saber. Ou seja, o saber her-
menêutico subsume o valor da sujetividade no processo da construção do
saber, afastando-se, assim, de uma pretensa neutralidade ou de um majes-
tático ‘nós’ que escamoteia sempre uma perspetiva. Nessa medida, a
primeira determinação do pensar hermenêutico corresponde ao reconhe-
cimento da historicidade da realidade e do saber sobre ela.
Fragmentação que acentua que qualquer interpretação é contextuali-
zada por se fazer, necessariamente, de um determinado lugar e do interior
de uma determinada tradição, pelo que todo o saber hermenêutico se
reconhece como parcelar, incompleto, afastando a prepotência das epis-
temologias que se arrogam o direito de dizer que produzem um conheci-
mento universalmente válido, como se isso equivalesse à possibilidade de
existir um saber emitido de lugar nenhum, ou de um lugar colocado
acima de qualquer perspetiva.
Filosofia e Género 143

Interação entre o metafórico e o concetual que, assentando na afirma-


ção conjunta entre a incomensurabilidade do real e a limitação da racio-
nalidade, marca a necessidade de o saber hermenêutico se deixar interpe-
lar, na sua constituição, pela dinâmica da linguagem literária, aceitando
que a metáfora pode dar a ver relações impensadas acerca da realidade,
levando ao seu aprofundamento por caminhos novos. Este aspeto é parti-
cularmente importante para o feminismo, nomeadamente, para as ques-
tões ligadas com a identidade feminina, campo onde hoje se assume
claramente que só a força heurística e a ambiguidade semântica da metá-
fora podem ser instrumentos de trabalho e de pesquisa20.
Finitude que determina que o conhecimento hermenêutico viva da cir-
cularidade hermenêutica, isto é, da ideia que todo o saber parte de uma
pré-compreensão que se esforça por clarificar. Ou seja, a razão herme-
nêutica sabe que o saber se constrói sobre o não-saber, que a objetividade
e o rigor se conquistam a partir da clarificação e da crítica de pressupos-
tos e que a aceitação da opacidade é a condição necessária para o prosse-
guimento do conhecimento. Dito de outra maneira, a racionalidade her-
menêutica assume que todo o discurso humano começa in medias res,
porque se começa sempre a meio de um processo histórico e da nossa
própria história e, por isso, qualquer começo é tão só continuação ou,
quanto muito, recomeço.
Todas e cada uma destas carateríscas fazem da hermenêutica um re-
curso fecundo para os Estudos Feministas, legitimando a sua importância
para a investigação em geral e, ao mesmo tempo, permitindo o aprofun-
damento de campos próprios.

20 Cf. Elena Casado Aparicio, “A vueltas con el sujeto del feminismo”, Política y
Sociedad, n.º 30 (1999): 73-91, onde a autora faz um balanço perspicaz desta
problemática. Cf., igualmente, Maria Irene Ramalho.”Os estudos sobre as mu-
lheres e o saber: onde se conclui que o poético é feminista”, Ex aequo,
n.º 5 (2001): 107-122, onde se faz uma elegante e interessante proposta de se
tomar, em si mesmo, o poético como feminista, por estar mais próximo da ver-
dade e do ser, abrindo-se, enquanto palavra polissémica, à riqueza e fecundidade
daqueles.
144 Fernanda Henriques

3.3. Ganhar o espaço público: o sentido fundador da obra de


Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo

Tal como o título evidencia, não se pretende abordar o pensamento


global de Simone de Beauvoir, mas apenas compreender o papel de
charneira desempenhado pela sua obra, O Segundo Sexo, para a marcar
como um momento central nessa conquista do espaço público pelas
mulheres. Na verdade, no meu entender, O Segundo Sexo, de Simone de
Beauvoir, desempenha, no final dos anos 1940, um papel equivalente ao
da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de Olympe de Gou-
ges, de 1791: ambos são ‘pedras de toque’ ou reveladores químicos.
A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã denunciou a estrei-
teza de vistas do Programa da Revolução Francesa, no quadro da sua
bandeira ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’, demonstrando que ne-
nhum dos conceitos se referia, afinal, a um campo semântico universal.
Levadas pela esperança das Luzes, primeiro, e, em seguida, motivadas
pela sua luta na rua durante a Revolução, as mulheres puderam sonhar
com novos horizontes de vida, mas o texto de Olympe de Gouges fê-las
voltar à realidade. Em qualquer caso é um grito de alerta.
Cerca de cento e cinquenta anos depois, O Segundo Sexo, assumindo
uma continuidade profunda com as vozes que no passado clamaram pela
igualdade entre os sexos, salta um patamar e de grito de alerta passa a
fenomenologia da situação das mulheres e da chamada condição feminina
em situações históricas determinadas, bem como no espaço simbólico das
representações culturais. Já não é clamor ou reivindicação é uma descri-
ção explicativa de como se estrutura e desenvolve a dominação das
mulheres. O que está em jogo em O Segundo Sexo é a explicação de
como funciona um sistema de opressão, mostrando os mecanismos que o
sustentam e garantem a sua reprodução. Talvez por isso, sendo uma obra
muito contestada, ela continua a ser vista como um marco decisivo no
pensamento sobre as mulheres e sobre o feminino.

A – Le Deuxième Sexe: um livro de uma mulher sobre as mulheres


Quer Simone de Beauvoir quer o seu livro, O Segundo Sexo, expri-
mem paradigmaticamente o estatuto que a Filosofia atribui às mulheres e
aos seus temas, como já foi referido antes.
As mulheres podem ser filósofas?
Os temas ligados à problemática das mulheres são verdadeiros filoso-
femas?
Filosofia e Género 145

É no contexto destes pontos de vista que se circunscreve a dimensão


controversa da autora e da sua obra. O Segundo Sexo é, realmente, um
livro de filosofia ou é, apenas, antropologia e sociologia? E Simone de
Beauvoir é filósofa ou apenas escritora de ficção e ensaísta?
Em todos os comentários à obra de Simone de Beauvoir aparece esta
questão da pertença ou não da autora ao campo da Filosofia e também é
recorrente, neste aspeto, por um lado, a referência ao episódio ‘primitivo’
da Fonte Médicis, no Jardim do Luxemburgo, do diálogo/debate entre
Sartre e Beauvoir sobre a hipótese de uma moral pluralista, de que Beau-
voir saiu derrotada e representando-se a si mesma como inferior a Sartre,
e, por outro, as afirmações da própria, dizendo que ela não era filósofa, o
filósofo era Sartre.
As diferentes autoras e autores exploram estas ideias de várias perspe-
tivas, mas, todavia, sempre no sentido de as infirmarem pela força dos
factos. Simone de Beauvoir escreveu ensaios de natureza filosófica –
mais, é ao seu texto de 1946, Pour une Morale de l’Ambiguité, que se fica
a dever o esboço de uma ética existencialista – alguns dos seus romances
são alimentados por perspetivas filosóficas claras e O Segundo Sexo,
tendo, embora, recurso a diferentes áreas disciplinares é, essencialmente,
constituído por uma tese sustentada por recursos filosóficos, como é o
caso, dos conceitos de ambiguidade, de situação ou de liberdade.
No geral, muitos dos comentários a esta situação alargam-se para de-
monstrar que essa visão representava o domínio de Sartre sobre Beauvoir.
Na sua relação, classificada, muitas vezes, de erótico-teórica, Beauvoir
terá, porventura conscientemente, assumido a sua dependência de Sartre,
situando-se no papel de discípula. Dentro da mesma linha, há quem se
ocupe em demonstrar que alguns conceitos e exemplos que Sartre utiliza
em L’Être et le Neant aparecem antes em trabalhos de Beauvoir.
Num texto publicado em 2002, num número especial de Les Temps
Modernes, dedicado a Simone de Beauvoir, Éliane Lecarme-Tabone faz
uma síntese bastante abrangente dos comentários de estudiosas e estudiosos
de Beauvoir sobre a relação dela com Sartre, ao mesmo tempo que apre-
senta uma crítica, procurando limitar algumas posições radicais. Do seu
ponto de vista, os esforços de reabilitação de Beauvoir em relação a Sar-
tre21 orientam-se em três direções principais e não mutuamente exclusivas:

21 “Le couple Beauvoir-Sartre face à la critique féministe”, Les Temps Modernes


n.º 619 (2002): 19-42. A autora chama a atenção para o contributo dado por
Maurice de Gandillac, colega de Sartre, que, a propósito da agregação de Sartre e
Beauvoir, em 1929, se refere à indecisão do Júri sobre quem deveria ter o primeiro
lugar, dizendo “tout le monde s’accordait à reconnaître que LA philosophe, c’était
elle”: Ibidem: 21 e nota 9.
146 Fernanda Henriques

Umas procuram compreender as afirmações auto-depreciativas de


Beauvoir, tentando encontrar razões justificativas, como é o caso de
Michèle Le Doeuff e Toril Moi.
Outras querem pôr em evidência a autonomia de pensamento de Be-
auvoir em relação a Sartre. Tal é o caso de Margaret A. Simons.
Finalmente, outras, mais radicais, propõem-se mostrar a legitimidade
da inversão da situação, mostrando a influência de Beauvoir em Sar-
tre, caso do casal Kate e Edward Fullbrook.
Pessoalmente, considero que o interesse desta temática radica, apenas,
no contexto mais amplo da situação das mulheres em relação ao campo
teórico da filosofia e do modo como os quadros canónicos desta área
científica valorizam as problemáticas relativas às questões de relevância
para o feminismo.
No âmbito de uma recensão da excelente Antologia publicada em
2000, por Françoise Collin, Evelyne Pisier e Elene Varikas, Les Femmes
de Platon à Derrida, Michèle Riot-Sarcey chama a atenção para a evi-
dência que tal Antologia põe a descoberto – a impossibilidade de que as
mulheres sejam sujeitos da História22. A autora releva o facto de que a
seleção dos textos parece inscrever-se fora da história, à sua margem, de
tal modo são um monocordismo sobre o sexo feminino, como se o tempo
não influenciasse as conceções sobre ele. Ou seja, como se disse no
início, há um grupo com personalidade política e de cidadania que hete-
rodesigna um outro grupo que não tem, nem personalidade política, nem
cidadã, por decisão do grupo designador, que o representa como inferior,
frágil, incompleto e culpado.
No meu entender, é esta heterodesignação que, ainda hoje, constitui o
background ou os esquemas de significação transsubjectivos, para reto-
mar uma expressão também já utilizada, do nosso modo de pensar –
nosso, de mulheres e de homens – e que, em cada momento, liberta ou
constrange a afirmação de si das mulheres, no meu entender, dizia, isso é,
certamente, uma das razões explicativas do olhar de Simone Beauvoir
sobre si mesma, enquanto filósofa.
Aliás, há que atender a que Beauvoir e Sartre se fizeram adultos na pri-
meira metade do século XX e, portanto, num momento em que a situação
das mulheres na sociedade era, fundamentalmente, de menoridade.
Na perspetiva de Toril Moi a inscrição histórica não deve ser minimi-
zada na apreciação de um certo olhar de Beauvoir sobre o sexo feminino

22 “Les Femmes de Platon à Derrida ou l’impossible sujet d’histoire”, Les Temps


Modernes n.º 619 (2002): 95-114.
Filosofia e Género 147

e sobre as dificuldades deste sexo em relação ao masculino, em O Segun-


do Sexo. Pelo contrário, esta autora defende que a situação empírica geral
das mulheres explica – mesmo que não justifique – o olhar carregado de
Beauvoir sobre o sexo feminino.23
Na mesma linha, penso que a situação histórica em que Beauvoir e
Sartre viveram os determinou para além de tudo o que poderiam conside-
rar, mesmo tendo em conta que se tratava de existencialistas. Em cada
qual, há sempre ruídos subterrâneos, condicionantes ou pressupostos que
escapam a qualquer retomada reflexiva, porque a razão não é nunca
transparente a si própria e uma e outro, mesmo alimentados pelas perspe-
tivas do existencialismo, não poderiam ser imunes à sua situação.
No que diz respeito às influências possíveis entre Sartre e Beauvoir,
partilho do ponto de vista de Éliane Lecarme-Tabone quando releva a
dificuldade em discernir o campo próprio de uma e de outro, dado o tipo de
relação e de debate que desenvolviam e que ambos confessam. Diz ela:
Se se chegar a demonstrar que um dos dois parceiros formulou uma
ideia antes do outro, isto significa, certamente, que um dos dois teve
razão mais cedo, mas isso não prova que o primeiro tenha influenciado
o segundo; este pode ter de depor as armas perante uma terceira pes-
soa ou perante uma influência comum. Dizer que um formulou uma
ideia antes de encontrar o outro também não quer dizer forçosamente
que o outro não a tenha descoberto por si, porque estava ‘dans l’air du
temps’ ou porque ambos se assemelhavam antes de se encontrarem.24
Todavia, apesar de todos os constrangimentos inerentes aos factos do
tema e da autoria, a obra de Beauvoir produziu um imenso barulho,
agitando as águas teóricas e semeando inquietação nos espíritos, tornan-
do-se num símbolo incontornável.
Numa obra editada em 1999 e que pretende fazer o balanço de um sé-
culo de antifeminismo, um dos capítulos, de autoria de Sylvie Chaperon,
é dedicado à receção de O segundo Sexo. A autora começa o seu trabalho
afirmando que nunca uma obra escrita por uma mulher e sobre as mulhe-
res tinha suscitado tanto debate e continua, para justificar a sua afirma-
ção, dizendo que a obra de Beauvoir

23 Toril Moi, Simone de Beauvoir. The making of an intellectual woman, Oxford and
Cambridge, Blackwell Publishers, 1994.
24 Éliane Lecarme-Tabone, “Le couple Beauvoir-Sartre face à la critique féministe”,
op. cit.: 33.
148 Fernanda Henriques

suscita uma longa e violenta polémica que mobiliza intelectuais de


grande renome: François Mauriac, Julien Benda, Roger Nimier, Ju-
lien Gracq, Thierry Maulnier, Emmanuel Mounier, para citar os es-
critores mais prestigiados. Le Figaro, Le Monde, La Croix, revistas li-
terária e filosóficas como Esprit, La Nef, Combat, Les Temps
modernes, evidentemente, mas também, Les Lettres françaises e La
Nouvelle Critique, todos eles consagram algumas páginas a um de-
bate que se tornou nacional. 25
Penso que há que considerar na compreensão desta situação outros fato-
res para além do caráter inusitado da obra. O primeiro tem a ver com o
facto de Simone de Beauvoir não ser uma desconhecida; pelo contrário, ela
era já uma personagem reconhecida e com uma obra razoável publicada,
nomeadamente era um dos nomes ligados à fundação da revista Les temps
modernes. Por outro lado – e são muitos os textos que o referem – a sua
relação com Sartre influenciou a amplitude do debate atingido pela obra26.
Contudo, importa não minimizar o sentido do impacto do trabalho de
Beauvoir, considerado em si mesmo.
Penso que um dos aspetos que mais põe de manifesto o inusitado de
O Segundo Sexo, mostrando como não havia campo semântico para a
receção da obra, diz respeito ao modo como ocorreu a sua primeira tradu-
ção nos Estados Unidos da América. O Segundo Sexo foi traduzido, nos
Estados Unidos da América, em 1952, por Howard M. Parshley, professor
de Zoologia e com publicações na área da reprodução. A primeira vez que
tive conhecimento desta situação não me dei conta do seu real significado.
As comentadoras feministas lamentavam o facto de a tradução estar corta-
da sem que houvesse informação disso (as críticas apontam para a supres-
são de entre um terço e um quarto do texto), mas foi só por reflexão que
compreendi o que estava verdadeiramente em questão – o facto de o livro
ter sido recebido como uma obra sobre sexualidade. Na verdade, se era
sobre mulheres, que mais poderia ser senão sobre sexualidade e reprodu-
ção? Esta situação histórica de receção/compreensão de O Segundo Sexo é
para mim a maior prova da rutura que tal obra introduz ao nível das repre-
sentações sociais e das respetivas mundividências.

25 Sylvie Chaperon, “Haro sur Le Deuxième Sexe”, in Christine Bard (dir), Un siècle
d’antiféminisme, Paris, Fayard, 1999: 269-283: 269.
26 Sylvie Chaperon afirma, sem rodeios, que “à bien des égards Le Deuxième Sexe
essuie les mêmes assauts que les oeuvres de Sartre: les mêmes auteurs, les mêmes
revues, les mêmes camps politiques, mais aussi les mêmes amis se retrouve dans
les deux cas.” (Ibidem: 271). Em relação a François Mauriac, a autora fala mesmo
de vingança pessoal.
Filosofia e Género 149

Aliás, o debate nacional, em França, é também nisso que se centra


prioritariamente, como se pode ver pelos títulos de alguns comentários do
tempo, como seja, por exemplo, o texto de Armand Hoog, Madame de
Beauvoir et son sexe, publicado em 1949, em La Nef.27
Globalmente, as posições contra O Segundo Sexo vêm da direita cató-
lica e gaulista e da esquerda comunista. E os ataques vão desde a baixeza
do insulto ou da grosseria28 à análise paralela ao sentido da obra, queren-
do ‘análise paralela’ significar que aquilo que é alvo dos ataques à obra
raramente é uma argumentação alternativa àquela que Beauvoir propõe,
mas o levantamento de medos e fantasmas – a destruição da família, o
amor livre, a desestruturação social. Neste contexto, faz todo o sentido a
chamada de atenção do texto de Colette Audry ao denunciar que O Se-
gundo Sexo era muito lido, mas mal lido e mal compreendido.29
Do lado dos aliados vão estar vozes de católicos progressistas da Re-
vista Esprit e também de protestantes de Réforme, bem como, natural-
mente, Les Temps Modernes.
Evidentemente que não é em nome de uma posição feminista que Be-
auvoir escreve o seu livro. Entre outros lugares, Beauvoir afirma-o nas
entrevistas concedidas a Francis Jeanson30, onde explicita como a escrita
do livro contribuiu para que ela ganhasse uma efetiva consciência que,
embora com um percurso pessoal privilegiado, não tinha tido um percur-
so equivalente ao que qualquer rapaz na sua situação teria. Pesquisar para
escrever O Segundo Sexo e escrevê-lo constituíram-se em lugares de
formação do pensamento beauvoiriano sobre os temas das mulheres.

B – Le Deuxième Sexe: Leituras


Há muitos comentários compreensivos sobre O Segundo Sexo no seu
conjunto. Deles, gostaria de destacar dois – o de Michèle Le Doeuff e o
de Michel Kail31, pela sua originalidade e pela empatia que com eles

27 Segundo a mesma autora, a Revista La Nef deu voz a detratores, mas também a
entusiastas da obra, como Francine Beris.
28 É o caso de François Mauriac que diz a um colaborador de Temps Modernes que
sabe tudo sobre a vagina da sua patroa, que a própria Simone de Beauvoir refere
em La Force des choses.
29 Colette Audry, “Le Deuxième Sexe et la presse. Livre très lu, mal lu et mal
compris”, Combat, 22 de dez. de 1949.
30 Cfr., François Jeanson, Simone de Beauvoir ou l’entreprise de vivre, Paris, Seuil,
1966: 251-198.
31 Michèle Le Doeuff, L’Étude et le rouet, Paris, Seuil, 1989 e o de Michel Kail,
Simone de Beauvoir philosophe, Paris, PUF, 2006.
150 Fernanda Henriques

estabeleci. Ambos procuram relacionar Beauvoir com Sartre, mas ambos


querem evidenciar, também, o caminho pessoal trilhado por ela, a despei-
to da sua raiz comum existencialista.
Michèle Le Doeuff faz uma leitura na perspetiva feminista, Michel
Kail pretendendo mostrar a importância do texto de Beauvoir para a
filosofia política.
Michèle Le Doeuff tem uma relação pessoal de amizade com Beau-
voir, considerando O Segundo Sexo um livro incontornável e, tendo
embora uma posição crítica em relação a ele, confessa a importância que
teve na sua formação como feminista. Para ela, nem Beauvoir deve ser
um ícone, nem O Segundo Sexo uma bíblia para o feminismo; contudo,
pensa que uma e outro foram – e são – referências importantes quer no
feminismo francês quer, sobretudo, no anglo-saxónico.
É enquanto filósofa, com perspetivas pessoais assumidas, que Michèle
Le Doeuff aborda a obra de Beauvoir, sendo no quadro do seu projeto
pessoal de interrogar um certo pensamento filosófico – que classifica de
masculinismo teórico – que comenta O Segundo Sexo.
É, fundamentalmente, no primeiro caderno do seu L’Étude et le rouet
que a autora desenvolve o seu quadro problematizador que se prende com
a interrogação acerca de a filosofia não tomar as mulheres como filoso-
fema e se despir do seu aparato crítico para tratar do feminino que aborda
de uma perspetiva imaginária e no horizonte de um eterno feminino
acrítico. Sartre e Beauvoir vão ser os recursos analíticos que desenvolverá
no segundo caderno da sua obra, para ilustrar esse modo de ver.
Que é, afinal, o masculinismo teórico?
Numa abordagem deveras interessante, Michèle Le Doeuff recusa a
ideia de pensamento masculino, da mesma forma que não aceita a de
pensamento feminino. Os homens, tal como as mulheres, são diferentes
entre si e falar simplesmente de forma masculina de pensar para carateri-
zar o pensamento discriminador é, em si, também, um estereótipo. Daí
que a autora distinga entre masculino e masculinismo, considerando esta
perspetiva como sendo um ponto de vista excludente e de dominação. No
seu entender, o masculinismo em geral assenta na ideia de que os homens
são superiores às mulheres e a partir desta primeira superioridade confi-
gura outras que já nada têm a ver com o dualismo sexual. Para concreti-
zar a sua ideia dá o exemplo da classificação de Hobbes sobre a teologia
católica como ‘histórias de criadas’ que parte da depreciação aceite das
criadas, para poder depreciar os papistas. Este masculinismo teórico
arroga-se o direito de ver e avaliar – instituindo a categoria de outro e
relacionando-se com ele como objeto – sem se conceber a si mesmo
como objeto possível. O seu olhar é um ‘olhar sobre’: vê os outros, mas
Filosofia e Género 151

toma-se a si próprio como transparente. Ele é o lugar de onde apenas se


vê. Na minha interpretação, estamos, portanto, no plano de um falso
universal ou de um universal parcelar – um universal que corresponde a
um ‘nós’ por oposição aos outros, ao ‘fora de nós’. Só um lugar de análi-
se que aceite ser também analisado, que suponha a reciprocidade de ver e
ser visto, pode aspirar à universalidade efetiva.
É dentro deste quadro hermenêutico que Michèle Le Doeuff analisa a
posição de Sartre, especialmente em L’être et le néant, e a de Simone de
Beauvoir, em Le Deuxième Sexe, como exemplo de duas formas de olhar:
o de Sartre ‘um olhar sobre’ configurando um ‘nós’ e um ‘outros’ e o de
Beauvoir um ‘olhar para’ um mundo que habita com outros equivalentes
e recíprocos. Nesse sentido, o pensamento sartriano aparece como misó-
gino e excludente.
Vou referir apenas um exemplo comparativo, antes de apresentar a
análise que Michèle Le Doeuff faz de O Segundo Sexo – trata-se da forma
como um e outra se referem à obra do psiquiatra vienense, Steckel. Sartre
vai servir-se da posição de Steckel, no quadro da sua análise da mulher
frígida e da sua má fé, para reforçar o seu ponto de vista 32. Steckel é uma
autoridade que Sartre cita para dar mais peso à sua posição. Simone de
Beauvoir vai recorrer ao mesmo autor apenas para explorar os dados que
ele possui – e ela não – sobre uma problemática.
Como é que, então, partindo dos mesmos recursos teóricos e concetu-
ais – o existencialismo – se podem construir duas obras com desenhos e
consequências tão diferentes?
Para Michèle Le Doeuff, a base da diferença está no facto de Beauvoir
adotar um ponto de vista – no caso, o da moral existencialista – para
compor a sua análise. Ou seja, Beauvoir parte de uma perspetiva teórica
para, com ela, se aplicar a uma análise compreensiva de um campo da
experiência já existente. Ainda de outro modo, não vai criar um sistema
totalizador, vai utilizar alguns aspetos desse sistema na explicação/com-
preensão de uma parcela da realidade, mesmo que chegue ao fracasso:
não tem de compor um todo, tem de dar conta da realidade. Este aspeto
de assumir, explicitando, o ponto de vista da moral existencialista – com
os respetivos valores de liberdade e autenticidade – é também teorica-
mente importante, assinala Michèle Le Doeuff, porque anuncia que uma
explicação ou análise descritiva é sempre precedida por um algo que não

32 De notar que a análise da mulher frígida e da sua má fé é feita por Sartre, que
convoca mais 2 homens como testemunhas e referências de validação: o psiquiatra
e o marido. São 3 homens a julgarem uma mulher e a classificá-la.
152 Fernanda Henriques

se situa no plano, supostamente objetivo, do que é descrito ou analisado


– no caso, a diferença entre os sexos.
São estas as palavras de Beauvoir que explicitam o seu ponto de vista
e a razão da sua adoção:
A perspetiva que adotamos é a da moral existencialista. Todo o sujeito
se põe, concretamente, como uma transcendência através de projetos.
Ele só realiza a sua liberdade por meio de uma perpétua superação em
direção a outras liberdades. Não há outra justificação para a existência
presente a não ser a sua expansão em direção a um futuro indefinida-
mente aberto.33
Michèle Le Doeuff chama a atenção para o modo radicalmente especí-
fico como Beauvoir trata o tema da má-fé. Ele funciona como o horizonte
que sustenta a opressão e não, acrescenta ela, como ‘a má-fé do outro’,
como faz Sartre. Segundo ela, sem que o explicite ou a isso aluda, o texto
de Simone de Beauvoir desautoriza o conceito sartreano de má-fé. Aliás,
considera em Beauvoir uma atitude eminentemente compreensiva e não
julgadora como a de Sartre. Isto é, Michèle Le Doeuff quer pôr de relevo
o olhar empático de Beauvoir, olhar esse nascido de uma atitude verda-
deiramente universalista e não excludente.
Um outro aspeto muito interessante para o qual Michèle Le Doeuff
chama a atenção diz respeito ao contexto em que Beauvoir trata a neces-
sidade da afirmação feminina da liberdade. O Segundo Sexo não promete
o paraíso às mulheres. Limita-se a mostrar o valor em si do assumir da
liberdade e não a acenar com a felicidade. A independência é um valor,
mas dela não decorre, necessariamente, um bem-estar maior. O que está
em jogo é a autenticidade da vida, como valor intrínseco.
Menos original, porque reiterado por muitos textos-comentário, é a
referência à clara demarcação que Beauvoir faz em relação à conceção
sartreana de liberdade.
Penso que é importante articular esta temática com a de subjetividade
situada, ou em situação e também com o que é, hoje, slogan – on ne naît
pas femme, on le devient – e cruzar a perspetiva de Michèle Le Doeuff com
a de outras autoras, especialmente com Sonia Kruks e Judith Butler34.

33 Simone de Beauvoir, Le deuxième Sexe I Paris, Gallimar, 1976: 33.


34 Sonia Kruks, “Genre et subjectivité: Simone de Beauvoir et le féminisme
contemporain”, Nouvelles Questions Féministes, n.º 1 (14) (1993): 3-28. Sonia
Kruks “Simone de Beauvoir entre Sartre et Merleau-Ponty”, Les Temps modernes,
529 (1989): 81-103.
Filosofia e Género 153

Na linha de Margaret A. Simons, que inicia uma perspetiva interpreta-


tiva que vai pôr em causa à subalternidade de Beauvoir em relação a
Sartre35, Sonia Kruks quer resgatar a posição de Simone de Beauvoir de
pura discípula de Sartre, centrando-se na conceção das mulheres em
O Segundo Sexo como a de um ‘sujeito em situação’, ponto de vista que
se demarca da posição sartreana, puramente iluminista, e, por outro lado,
não pertence nem à modernidade, nem à pós-modernidade, estando muito
mais próxima de Merleau-Ponty.
Ou seja, considerar as mulheres ‘sujeitos em situação’ corresponde a
dar ao eu alguma autonomia, podendo ser responsável e alvo de opressão,
mas não o considerando uma ilha totalmente autónoma, correspondendo a
um sujeito transcendental, absolutamente constituinte do sentido do ser e
do seu próprio sentido.
É a conceção de um eu absoluto que leva Sartre a ver a liberdade tam-
bém de uma perspetiva absoluta – nada, nenhum constrangimento materi-
al pode macular a inteireza da liberdade: cada sujeito pode dar à sua
situação o sentido que quiser. Sonia Kruks sublinha esta visão, dizendo:
Ser senhor ou servo, anti-semita ou judeu – ou, então, macho ou fêmea
– não tem para Sartre nenhuma influência sobre a subjetividade abso-
luta e inviolável de que cada um é detentor.36
A posição de Simone de Beauvoir é completamente outra. As mulheres
de que fala são sujeitos situados, incarnados, intersubjetivos e, portanto,
também, interdependentes: a existência humana é uma síntese de liberdade
e de constrangimento, de subjetividade e de corporeidade. E, para a autora
em questão, essa posição é devedora, sobretudo de Merleau-Ponty:
[…] há um conceito de sujeito e de liberdade na sua obra própria, cuja
proximidade com Merleau-Ponty é impressionante: um conceito de su-
jeito que ‘nunca é um puro para si’, mas sim uma consciência incar-
nada, uma liberdade socialmente situada e condicionada.37

35 Cf., entre outros, Margaret A. Simons, “Beauvoir's Philosophical Independence in


a Dialogue with Sartre”, The Journal of Speculative Philosophy, New Series, V
14, n.º 2 (2000): 87-103. Margaret A. Simons,”L’indépendance de la pénsée
philosophique de Simone de Beauvoir”, Les Temps Modernes, ano 57, n.º 619
(2002): 43-52.
36 Sonia Kruks, “Sonia Kruks, “Genre et subjectivité…”, op. cit.: 12.
37 Sonia Kruks, “Simone de Beauvoir entre Sartre et Merleau-Ponty”, Les Temps
modernes, 529 (1989): 81-103: 85.
154 Fernanda Henriques

Barbara Andrew, no seu texto, Beauvoir’s place in Philosophical


Thought, refere a preocupação de Sonia Kruks em procurar compreender
o trabalho de Simone de Beauvoir tanto como fenomenológico quanto
como existencial, para realçar que o que está em jogo em Beauvoir é o
facto de se falar numa experiência corpórea, de se dar valor ao corpo e,
ao mesmo tempo, às relações com o mundo. Neste seu texto, aliás, a
própria Barbara Andrew desenvolve a ideia de que há três conceitos que
têm de ser vistos em articulação no pensamento beauvoiriano: o de liber-
dade, o de ambiguidade e o de situação, para se poder compreender uma
quarta ideia, fundadora – a da subjetividade humana como um querer
corporal38. Neste quadro, salienta que a perspetiva de colocar a situação e
o corpo como central nas questões filosóficas constitui uma contribuição
essencial de Beauvoir para a filosofia e para a fenomenologia, relevando
que O Segundo Sexo mostra que a filosofia não deve continuar a questio-
nar-se sobre a existência humana em geral, mas sobre a existência huma-
na situada e corporalmente determinada.
Num registo de crítica com reservas, Michel Kail aborda a posição de
Sonia Krups, considerando que, de alguma maneira, para demarcar Beau-
voir de Sartre, ela extrema demasiado a posição sartreana do absoluto da
liberdade e relativiza também demasiado a posição beauvoiriana. E diz:
Do ponto de vista da condição humana, importa, portanto, afirmar,
neste momento do raciocínio e sem restrições, que a situação não en-
cerra a liberdade dentro de nenhum limite: uma liberdade sem situação
seria como uma estrada de montanha sem passagem. Da mesma manei-
ra, a interdependência não vem impedir a autossuficiência; esta não se
pode realizar sem aquela.39
Embora compreenda o objetivo das reservas de Michel Kail, penso
que a argumentação de Sonia Krups é esclarecedora e importante para
evidenciar, de facto, a diferença entre Beauvoir e Sartre nesta temática.
Sonia Kruks chama a atenção para que a divergência de pontos de vis-
ta entre Sartre e Beauvoir sobre a relação da situação e da liberdade é
muito anterior a 1949, citando a própria, em La Force de l’âge, quando

38 Barbara S. Andrew, “Beauvoir’s place in Philosophical Thought”, in Claudia Card


(ed), The Cambridge Companion to Simone de Beauvoir, Cambridge, Cambridge
University Press, 2003: 24-44. Talvez seja interessante evocar aqui o texto fun-
dador da filosofia da vontade de Paul Ricoeur, Le Volontaire et l’involontaire, de
1950, onde o que está em jogo, também em diálogo com Merleau-Ponty, é a
compreensão de uma vontade incarnada.
39 Michel Kail, op. cit.: 62.
Filosofia e Género 155

refere as suas discussões com Sartre sobre o assunto, confrontando-o com


a pergunta sobre que liberdade podem ter as mulheres num harém.
A autora põe, também, em evidência que, antes de O Segundo Sexo,
Beauvoir tinha escrito os ensaios, Pyrrhus et Cinéas (1944) e Pour une
morale de l’ambiguité (1947), onde vai marcando a sua posição sobre a
temática.40 Em Pour une morale de l’ambiguité, Beauvoir explicita
mesmo a ideia que a opressão pode ser de tal modo que a consciência se
torna, apenas, um produto dessa opressão.
Aliás, Sonia Kruks vai mesmo mais longe e analisa o percurso sartre-
ano entre L’être et le Néant e La Critique de la Raison Dialectique,
demonstrando que Sartre não sofreu apenas a influência de Merlau-Ponty
nesse percurso – como confessa, explicitamente – mas também de Beau-
voir – que não explicita.
A este respeito é esclarecedora a inventariação das três aceções de su-
jeito que Michèle Le Doeuff se propõe extrair de O Segundo Sexo:
o sujeito que constitui o outro de uma perspetiva excludente do nós,
portanto, como um outro inessencial, como um objeto, como é o caso,
da ‘soberania masculina’.
o sujeito das minorias oprimidas, por exemplo, os negros, olhados
como outro pelos brancos, mas que têm, contudo, um nós que é a sua
comunidade de pertença.
O sujeito extenuado, as mulheres, dispersas, reificadas pelo olhar que
as coisificou.
Penso que esta identificação ajuda a compreender a defesa de Sonia
Kruks quanto à grande diferença existente entre Sartre e Beauvoir no que
diz respeito à conceção de ‘Outro’.
Para Sartre, embora o olhar do ‘outro’ me objetivize, me queira reifi-
car, eu continuo a ser uma liberdade e posso escolher a minha própria
ação: há conflito, mas entre iguais e, por isso, eu mantenho sempre a
possibilidade de reverter a situação contra ele.41 Para Beauvoir não é
desta alteridade que se trata, nem, tão pouco, ela tem apenas a ver com o
olhar; para ela, a alteridade existe em termos de desigualdade e de não
reciprocidade, mais, existe em termos de opressão e de submissão, e
Nas relações de submissão ou de opressão […]Beauvoir afirma que a
própria liberdade sofre uma mudança. Para Beauvoir, o escravo ‘não é

40 Esta ideia é muito bem argumentada por: Barbara S Andrew, na obra “Beauvoir’s
place in Philosophical Thought”, já citada.
41 Sonia Kruks, “Simone de Beauvoir entre Sartre et Merleau-Ponty”, op. cit.: 87.
156 Fernanda Henriques

tão livre como o seu amo’, porque as restrições que modificam a sua si-
tuação vêm modificar interiormente a sua liberdade, até suprimir a sua
própria capacidade de fazer projetos42.
Ou seja, se as mulheres são historicamente ‘constituídas’ como o Ou-
tro desigual, a sua ‘situação’ é algo onde se encontram desde sempre, mas
não podem, realmente, escolher: a sua liberdade pode ser, somente, então,
uma possibilidade reprimida. Tanto mais que, na situação das mulheres,
não está em causa apenas uma relação de pessoa a pessoa, de mulher a
homem, mas sim um conjunto de instituições sociais que tendem a natu-
ralizar a inferioridade das mulheres. Basta pensar na relação homem-
-mulher, no quadro do casamento em que a legislação determina assime-
trias e distribui desigualmente os poderes.
Neste sentido, Sonia Kruks insiste em chamar a atenção para o facto
de Beauvoir reiterar que a ‘escolha’ que a maioria das mulheres faz de
aceitar uma situação de submissão não representa uma escolha de má-fé,
como o Sartre de L’Être et le Néant tenderia a considerar: é esta situação
que Beauvoir designa como a ‘imanência’ da situação das mulheres.
Em relação à invenção discursiva de Beauvoir, on ne naît pas femm-
me: on le devient, a análise que mais me agrada é a de Judith Butler,
nomeadamente porque ela a articula com a questão problemática da
relação sexo-género que é, certamente, como já referi, um caminho
filosófico essencial a desbravar.
Judite Butler vai fazê-lo, no sentido que a ela lhe interessa: o de mos-
trar que a questão da identidade é, em si mesma, uma ficção que serve
objetivos vários de poder. Contudo, a exploração que faz da posição de
Simone Beauvoir mostra a complexidade da questão e a originalidade
filosófica da perspetiva beauvoiriana.
Na última parte da análise que faz da posição de Simone Beauvoir,
Judith Butler diz o seguinte:
Com efeito, considerar que a mulher existe na ordem metafísica do ser
é entendê-la como o que já está realizado, sendo auto-idêntica, estáti-
ca; porém, concebê-la na ordem metafísica do chegar a ser é inventar a
possibilidade para a sua experiência, incluída a possibilidade de não
chegar a ser nunca uma ‘mulher’ substantiva, auto-idêntica.43

42 Ibidem: 89.
43 Esta análise da posição de Butler centra-se em: Judith Butler, “Variaciones sobre
sexo y género. Beauvoir, Wittig y Foucault”, in Seyla Benhabib y Drucilla
Cornella (eds.), (1986), Teoría Feminista y Teoría Crítica, Valencia, Ediciones
Alfons el Magnànim, 1990: 193-211: 210-211.
Filosofia e Género 157

É neste âmbito que Butler desenvolve o tema beauvoiriano, mostrando


que ela, simultaneamente, parte de Sartre, o concretiza e, de algum modo,
o supera pela via da radicalização.
O tema é, evidentemente, o tema da escolha.
Que significa dizer-se que um ser dotado de um corpo sexuado se es-
colhe? Quem escolhe? Como se escolhe? Há um eu, como realidade
separada ou, pelo menos, com anterioridade ontológica, capaz de tomar
uma decisão eletiva?
Este é o problema que subjaz à afirmação de Beauvoir on ne naît pas
femmme: on le devient e, no ponto de vista de Butler, é o modo como o
trata que a coloca na linha de uma exploração superadora de Sartre.
Para Sartre, num diálogo de rutura com Descartes, a consciência é al-
go, simultaneamente para lá do corpo, mas num corpo, porque a condi-
ção ex-estática é em si mesma uma experiência corpórea,44 sendo a
identidade obrigatoriamente construída no assumir dessa dualidade da
consciência e nunca pela polarização num dos seus elementos.
Simone de Beauvoir, por sua vez, dialogará com Sartre através da
ideia do ‘corpo como situação’ que significa, por um lado, que como
realidade material está culturalmente situado e, por outro, que como
realidade pessoal tem de ser assumido e interpretado. Nas palavras de
Butler:
O corpo converte-se num nexo peculiar de cultura e escolha e ‘existir’
no próprio corpo converte-se numa forma pessoal de assumir e reinter-
pretar as normas de género recebidas.45
O ‘corpo em situação’ significa, então, uma herança e o assumir dela,
num processo dialético, sendo ambas as dimensões igualmente determi-
nadoras. On ne naît pas femmme: on le devient, em linguagem de sexo-
-género, aponta para o seu entrosamento, mas, ao mesmo tempo, quer
abrir o espaço a uma nova forma de concetualizar as mulheres, marcando
a diferença entre o seu ‘existir’ como corpo sexuado e o seu suposto ‘ser’
um corpo sexuado, destruindo a ideia de ‘corpo natural’.
Duas coisas advêm desta posição: (1) a destruição de algo que parece
sustentar o pensar ocidental de que apenas as mulheres têm corpo; (2) a
ideia complexa de que, por um lado, há uma conivência individual no
processo de opressão e, por outro, de que há uma esperança emancipató-
ria em toda a opressão.

44 Ibidem: 196.
45 Ibidem: 200.
158 Fernanda Henriques

A primeira ideia deve-se à articulação entre on ne naît pas femmme:


on le devient e a afirmação de que as mulheres são ‘o outro’.
As mulheres serem ‘o outro’ que, como já apontado, é paralelo à afir-
mação de que ser mulher é uma heterodesignação, deriva, para Butler, de
a posição de Beauvoir radicar no facto de ela ver a perspetiva sobre as
mulheres como ‘o outro’ como tendo sido construída pelo masculino de
um modo desencarnado. Isto é, tudo se passa como se as concetualizações
feitas ao longo da nossa história cultural sobre as mulheres e o feminino
as tivessem assimilado à dimensão corpórea enquanto tal, sendo essa
assimilação feita a partir de um lugar discursivo totalmente desencarnado.
Nesse sentido, podemos dizer que só as mulheres têm corpo, por este ser
o princípio da sua caraterização e, por isso, ser o determinante do seu
modo de ser.
A segunda ideia liga-se, diretamente, à análise de Michel Kail que se-
rá desenvolvida a seguir, ou seja, ao modo como Beauvoir desenvolve as
condições de opressão das mulheres.
Se ser mulher é, a um tempo, uma herança e uma escolha, então a do-
minação não é um destino, havendo, sempre, a hipótese de poder lutar
contra ela. Evidentemente que, em Le Deuxième Sexe, está em questão a
exploração de uma posição teórica, até porque Simone Beauvoir também
se tornou feminista, não nasceu como tal; contudo, enquanto princípio
hermenêutico essa posição representa ‘um princípio esperança’.
Michel Kail46, como já disse, faz uma abordagem de O Segundo Sexo
no quadro do seu contributo original para a filosofia política. Para este
autor, Simone de Beauvoir só não aparece nos quadros ‘dos grandes
filósofos’ por razões preconceituosas de vários tipos.
No seu livro, o autor vai recorrer não apenas aos outros textos ensaís-
ticos de Beauvoir, como, também, aos debates e controvérsias havidas no
interior do triângulo Beauvoir-Sartre-Merleau-Ponty, nos anos 1940 e
1950, e que envolveu a revista Les Temps modernes.

46 Michel Kail começa o seu livro deste modo: “La littérature française comprend
deux études synthétiques consacrées à la philosophie de Simone de Beauvoir, la
brillante analyse de Michèle Le Doeuff (1989) et l’exposé systématique de cette
philosophie proposé par Éva Gothlin(1996). Nous leur devons l’essentiel, de nous
avoir convaincu que Beauvoir est une philosophe […].
Parce que nous n’avons plus à convaincre de la qualité de philosophe de Beauvoir,
nous avons choisi d’orienter notre commentaire sur ce qui fait la spécificité de son
discours théorique […].
O texto de Michel Kail, embora com outro objetivo, explora, tal como Sonia
Kruks, o tema da opressão.
Filosofia e Género 159

O eixo da sua análise é a seguinte afirmação de Simone de Beauvoir:


[…] houve sempre mulheres; elas são mulheres pela sua estrutura fi-
siológica; tão longe quanto se possa remontar na história, elas estiveram
sempre subordinadas ao homem: a sua dependência não é a conse-
quência de um acontecimento ou de um devir, ela não aconteceu.47
De imediato, esta afirmação pareceria remeter a subordinação das mu-
lheres aos homens para um estado de natureza, para um destino intrínse-
co, mas, segundo ele, a originalidade de Beauvoir está no facto de ir
destruindo as hipóteses explicativas possíveis da situação – biológicas,
psicanalíticas e do materialismo histórico – o que a tornaria necessária,
para a desocultar como contingência e, assim, pôr em causa o valor de
qualquer explicação. Não é nenhum ‘porquê’ da subordinação das mulhe-
res que é preciso procurar, mas a compreensão de um ‘como’, como já
referido:
Qual é a insuficiência comum àqueles três discursos [Biologia, psica-
nálise, materialismo histórico]? Eles partilham a convicção de que, se
alguma coisa existe, aconteceu. Se qualquer coisa aconteceu, basta,
então, procurar as suas causas ou razões, quer sejam de ordem bioló-
gica, simbólica ou histórica. Se Beauvoir declara que a dependência
das mulheres não aconteceu, é para prevenir, primeiro que não se sabe
em que consiste essa dependência; em seguida, que fazer como se se
soubesse em que é que ela consiste é dar-lhe a razão disso, dar-lhe
razões, dar-lhe razão.48
É a partir da tentativa de compreender a afirmação de que a opressão
das mulheres não aconteceu e de relevar as consequências filosóficas
dela, que o seu comentário se desenvolve, centrando-se no facto de que
Simone de Beauvoir vai deslocar a compreensão da situação das mulhe-
res para o plano ontológico. E fá-lo por duas razões: 1. No plano ontoló-
gico o primado é o da relação 2. Para Beauvoir a opressão das mulheres
reflete a ambiguidade ontológica da existência.
De que ontologia pode ser questão em O Segundo Sexo?
Uma ontologia não altaneira, mas sim mundana que descreve um su-
jeito em situação49.Ou seja, é de um dado que Beauvoir vai partir – o
dado da situação de opressão vivida pelas mulheres – mas, sublinha o

47 Simone de Beauvoir, Le Deuxième Sexe I, op. cit.: 20.


48 Michel Kail, op. cit.: 11-12.
49 Michel Kail, op. cit.: 144.
160 Fernanda Henriques

autor, um ‘dado’ que não é ‘natural’: ser um dado não corresponde a uma
instância natural:
[…]o dado não deve ser confundido com o mítico dado natural; o que é
dado é sempre habitado por significações que os Outros aí deposita-
ram. Não há, primeiro, um dado natural ao qual se viesse a juntar logo
a seguir […] um sujeito encarregado de o representar; há sempre um
dado composto de sujeito e de objeto, há sempre já uma relação. O da-
do é relacional, o dado é a própria relação.50
O tópico fundante apresentado por Michel Kail em prol da sua tese é a
posição beauvoiriana sobre o binómio natureza-cultura que rejeita como
tal. Isto é, não há de início um dado natural do qual a humanidade se
demarcaria pela sua transformação. Para Beauvoir o ponto de partida é a
noção de ‘mundo’, na senda de Sartre e de Merlau-Ponty. O autor subli-
nha, aliás, que a recusa das explicações biologistas, psicanalíticas e do
materialismo histórico que o primeiro volume de O Segundo Sexo leva a
cabo têm por base o facto de que qualquer daquelas três perspetivas
aceitar e assentar na distinção entre natureza e cultura.
Que importância tem esta perspetiva de ‘mundo’?
Como assenta no primado da relação e não na separação sujeito-
-objeto, destruindo, ao mesmo tempo, um certo naturalismo da represen-
tação, vai permitir a Beauvoir descrever a situação das mulheres, no
quadro dessa estrutura compreensiva.
No plano das significações, as mulheres têm sempre acesso a um
mundo, digamos, já constituído pelos homens e, portanto, simbolicamen-
te determinado, pelo que vai fazer uma ontologia fenomenológica, não da
‘condição feminina’, mas da ‘situação existencial das mulheres’51.
Para o autor/comentador, a importância de Beauvoir para a filosofia
política é essencial. Segundo a sua análise, a filosofia beauvoiriana é

50 Ibidem: 34-35. Mais à frente (40), o autor vai chamar a atenção para o facto de
que, no quadro de uma perspetiva fenomenológica comum, Beauvoir, Sartre e
Merlau-Ponty desenvolvem, contudo, acentuações diferentes no que respeita à
superação do dualismo sujeito-objeto. Sartre centrar-se-á mais no pólo sujeito;
Merleau-Ponty no do objeto e “En choisissant d’analyser l’opression des femmes,
Beauvoir marque une indifférence plus consequente à l’égard de ce dualisme, et
impose la relation comme l’objet privilégié de la réflexion. ”
51 Nesta perspetiva é interessante lembrar a evocação que Beauvoir faz a Poulain de
la Barre, na Introdução do primeiro volume de O Segundo Sexo. Poulain de la
Barre é lembrado na sua chamada de atenção para o facto de que todas as
caracterizações do feminino que temos ao nosso dispor foram feitas por homens e
acolhidas e transmitidas por eles.
Filosofia e Género 161

política pela sua própria inspiração e não apenas porque das suas posições
se podem extrair perspetivas para a ação política. Para ele, a originalidade
de Beauvoir vem exatamente do modo como concebe a liberdade: como
sendo sempre pensada em relação a uma situação – ou seja, liberdade e
situação são contemporâneas: a situação não tem qualquer exterioridade
em relação à liberdade; a situação não é a soma de constrangimentos
exteriores. É no quadro desta conceção que faz a análise da opressão que,
por isso, se revela como paradoxal: opressores e oprimidos coabitam; há,
portanto, algum consentimento. Só uma perspetiva de ‘liberdade em
situação’ pode permitir analisar esse paradoxo, sem lhe retirar a sua
dimensão paradoxal. Aprofundar o conhecimento dele sem o reduzir a
nenhuma linha explicativa redutora. E é, ainda, a noção de mundo que
permite esse aprofundamento:
Esta análise [de O Segundo Sexo] mostra muito claramente que os opres-
sores dominam a significação da situação, determinando as condições da
relação. Eles mantêm os oprimido(a)s no ser e recusam-lhe o acesso ao
mundo, o acesso à existência. Quem se esforça para descrever a situação
na sua objetividade para extrair daí a racionalidade dela, permanece cego
a esta ‘verdade’ da opressão: é o senhor que, previamente, dá forma à re-
lação, se bem que os oprimido(a)s tenham a impressão de tomar lugar ‘de
forma natural’ num quadro objetivamente definido.52

C – Le Deuxième Sexe: algumas incursões pessoais


Como muitas mulheres que tinham 20 anos em 1968, eu também li O
segundo Sexo. Contudo, não é dele que arranca o meu feminismo, que
vem de muito antes e decorre de uma interrogação profunda sobre a
minha situação de rapariga e de mulher, antes mesmo de ter instrumentos
concetuais para a formular adequadamente. O encontro com o texto não
criou, pois, a questão, mas deu-me recursos fabulosos de compreensão e
de argumentação. Simone de Beauvoir representou sempre para mim um
horizonte de referência para pensar uma humanidade que, embora fenoti-
picamente se expressasse em duas formas diferentes, era, contudo, uma
mesma humanidade.
E esta perspetiva não tem nada que escolher entre os chamados femi-
nismos da igualdade e os da diferença – é, diria, uma questão de outra
natureza porque quer compreender uma humanidade que, apesar de o ser,
conseguiu enclausurar metade de si num gueto poderoso e, por essa

52 Michel Kail, op. cit.: 53.


162 Fernanda Henriques

compreensão, encontrar processos de destruir o arame farpado e tornar


essa humanidade mais humana. No fundo, a interrogação que me move é
a que Simone de Beauvoir formula na Introdução do 1.º volume de
O segundo Sexo, no quadro de dois irrecusáveis: a posição de alteridade,
ou seja, afirmação de ‘o outro’ e a posição de reciprocidade:
Como é, então, possível que entre os sexos não se tenha posto, que um
dos termos se tenha afirmado como o único essencial, negando toda a
relatividade em relação ao seu correlativo, definindo este como a al-
teridade pura?53
Porque o que está em jogo não é que mulheres e homens sejam dife-
rentes, isso parece ser uma evidência; o que está em jogo é que a alterida-
de das mulheres seja uma exclusão do modelo humano, pelo que, no meu
entender, o importante é desfazer a assimetria.
Assim, o lema clássico de Simone de Beauvoir on ne naît pas femme:
on le devient, interessa-me na abrangência parafraseadora de “não nas-
cemos humanos: tornamo-nos humanos”. Tal perspetiva, a que, sobretu-
do, o século XVIII com a descoberta de crianças selvagens deu uma
ressonância fundamental, já pode, contudo, ser recolhida num dos textos
fundadores da nossa cultura, o Génesis, pelo menos em duas situações
determinantes, a saber: tomar a narrativa da saída do paraíso como signi-
ficando a humanização do ser humano e a sua passagem a um estado de
maturidade, e, por outro lado, interpretando a narrativa do assassínio de
Abel e o imperativo “não matarás” como a transposição das relações
humanas para o plano ético, instaurando uma rutura irreversível com o
plano natural.
No entanto, esta posição de partida não significa a defesa de um ponto
de vista totalmente construtivista ou culturalista que pressupusesse que o
ser humano, homem ou mulher, seria apenas um efeito da ação da história
e da cultura, um seu mero epifenómeno descorporizado, que fosse uma
pura construção das práticas discursivas, à maneira de algumas posições
pós-modernas. Também não supõe que o tornar-se humano da humanida-
de signifique a ideia de um sujeito concebido como uma cidadela autó-
noma, puro transcendental, no horizonte do projeto das Luzes. Supõe
antes que a subjetividade humana é uma subjetividade incarnada e situada
e que, por isso, o corpo humano é, em si mesmo, um corpo-sujeito, para
falar como Paul Ricoeur54, isto é, um corpo vivido por uma subjetivida-

53 Simone de Beauvoir, Le Deuxième Sexe I, op. cit.: 19.


54 Cf., Paul Ricoeur, Le Volontaire et l’Involontaire, Paris Aubier, 1950.
Filosofia e Género 163

de que, embora o experiencie individualmente, todavia, o constitui com


os outros e no meio dos outros. Dito de outro modo, a subjetividade
nunca é uma experiência individual da existência, razão pela qual é, si-
multaneamente, constituinte e constituída. Nessa medida, ser homem ou
ser mulher é, desde sempre, uma experiência socialmente construída e
individualmente vivida, que, por esse motivo, terá marcas sociais e cul-
turais, mas, também, formas individuais de as experimentar e integrar,
pelo que haverá semelhanças e diferenças entre os homens e as mulhe-
res em função, quer da sua inserção histórica, quer, sobretudo, em fun-
ção da realidade específica de cada ser humano, tomado enquanto pes-
soa individual.
O que considero determinante é que somos principialmente humanos
e não primariamente sexuados, querendo significar com esta diferencia-
ção entre principial e primário que a relação entre humanidade e cultura-
lidade é de tal ordem que a procura de uma causalidade direta entre uma
determinação biológica, seja ela o sexo ou outra, e qualquer vivência
subjetiva corresponde a uma ponto de vista que não tem em conta a
complexidade da realidade em análise e, no fundo, releva mais do hábito
de pensar de certa maneira do que de uma reflexão aberta e desassombra-
da sobre a problemática.
O psiquiatra francês, Alain Braconnier, preocupa-se também com a
questão no que respeita às emoções. No seu livro Le sexe des émotions55
e com base na sua experiência clínica, o autor questiona-se sobre as
razões que levam, por exemplo, as mulheres a chorar e os homens a
encolerizar-se e desenvolve todo um conjunto de reflexões que colocam
a tónica na aprendizagem de si e de ser como o fator que mais determi-
na a forma diferente como os homens e as mulheres se expressam emo-
cionalmente. O que o move como profissional é criar condições para o
real entendimento entre homens e mulheres, nomeadamente, no contex-
to familiar, e, como reconhece que a compreensão de outra pessoa é
uma tarefa que ultrapassa largamente a dimensão puramente intelectual,
dedica-se a tentar compreender o processo de formação e de expressão
das emoções em homens e mulheres, para afinar a sua eficácia como
terapeuta.
Na Introdução a Le sexe des émotions, o autor aceita que há diferenças
afetivas entre os dois sexos, mas apressa-se a acrescentar que tais dife-
renças se diferenciam menos pela natureza do que eles experimentam do
que pelo sentido aparente, pela significação escondida ou pela expressão

55 Alain Braconnier, Le sexe des émotions, Paris, Odile Jacob, 1996.


164 Fernanda Henriques

que os seus sentimentos tomam56. É esta convicção que o leva a dizer um


pouco mais à frente, na mesma página:
Desde há muito tempo que tínhamos por adquirido que as mulheres eram
mais emotivas do que os homens. É isto verdade? De facto, a principal
diferença não reside aí. As recentes pesquisas em psicologia concordam
todas no facto seguinte: as mulheres exprimem mais facilmente aquilo que
sentem e compreendem mais o que o outro sente. Portanto, elas não são
mais emotivas, mas comunicam melhor as suas emoções do que os homens.
Para ele, embora as diferenças emocionais entre os sexos se possam
pensar com base nas diferenças do metabolismo cerebral respetivo, não é
claro se o cérebro é sexuado desde o nascimento ou se se sexualiza pro-
gressivamente. O que lhe parece evidente, pelo contrário, é o facto de que
Desde a mais tenra idade, aprendemos a emocionar-nos de modo dife-
rente. Para lá da genética, é a educação, no sentido lato do termo, que
favorece o desenvolvimento das diferenças.57
Dentro desta sua interpretação, acrescenta algo que é particularmente
relevante para consolidar a perspetiva em que me coloco:
A igualdade entre os sexos choca-se com algo muito mais forte do que o
direito. Ela tropeça naquilo que nos constitui mais fundamentalmente,
no facto de que somos homem ou mulher. Ela esbarra sobre diferenças
efetivas, reais ou imaginadas. As emoções que nos opõem enraízam-se
bem longe no passado. Elas são em muito o fruto de uma história mi-
lenária. A nossa imaginação está povoada de fantasmas.58
Parece-me, pois, essencial um trabalho que ajude a identificar e a des-
construir os fantasmas que povoam a nossa imaginação acerca do que é
ser homem ou mulher, e, nesse percurso, considero que o diálogo – e não
o discipulado – com Simone de Beauvoir pode ser estruturante e fecundo,
podendo tornar a reflexão mais aberta a uma análise realmente capaz de
aceitar desconstruir hábitos adquiridos de ideias feitas e que são estrutu-
rantes do nosso olhar.
Proponho, por isso, que façamos um exercício de ascese, escutando o
início do livro que Simone de Beauvoir escreveu, há mais de 60 anos,
sobre este assunto:

56 Ibidem: 12.
57 Ibidem: 13.
58 Ibidem: 15.
Filosofia e Género 165

Hesitei muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é ir-


ritante, sobretudo para as mulheres. E não é novo. A querela do femi-
nismo fez correr bastante tinta […]. No entanto, ainda se fala dela. E
não parece que as grandes tolices lançadas neste último século tenham
realmente esclarecido a questão. Aliás, será isto um problema? E que
problema é? Haverá mesmo mulheres? Sem dúvida a teoria do “eterno
feminino” ainda tem adeptos; diz-se “Até na Rússia elas permanecem
mulheres.” Mas outras pessoas igualmente bem informadas – e por
vezes as mesmas pessoas – suspiram: “A mulher está a perder-se, a
mulher já está perdida. Já não se sabe se ainda existem mulheres […].”
[…] Mas, antes de tudo, o que é uma mulher? […] falando de algumas
mulheres os conhecedores decretam: “não são mulheres”, embora
tenham um útero como as outras. Toda a gente reconhece que há
fêmeas na espécie humana; constituem hoje, como outrora, mais ou
menos metade da humanidade; e, contudo, dizem-nos que a feminili-
dade “corre perigo”; e exortam-nas: “Sejam mulheres, permaneçam
mulheres, tornem-se mulheres”. Todo o ser humano do sexo feminino
não é, portanto, necessariamente, mulher; é-lhe necessário participar
dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade. Será que
esta é segregada pelos ovários? Ou estará cristalizada no fundo de um
céu platónico? Bastará um saiote de folhos para fazê-la descer à terra?
Embora certas mulheres se esforcem por encarná-lo zelosamente, o
modelo nunca foi registado. […] Se hoje já não há feminilidade é
porque nunca houve. Significará isso que a palavra “mulher” não
tenha conteúdo algum?
[…]
Se a função da fêmea não basta para definir a mulher, se nos recusa-
mos também explicá-la pelo “eterno feminino”, e se, no entanto, admi-
timos, ainda que provisoriamente, que há mulheres na terra, teremos de
formular a pergunta: que é uma mulher?
O próprio enunciado do problema sugere-me uma primeira resposta. É
significativo que eu enuncie esse problema. Um homem não teria a
ideia de escrever um livro sobre a situação singular que os machos
ocupam na humanidade. […] Um homem nunca começa por se apre-
sentar como um indivíduo de determinado sexo: é natural (para ele)
que seja homem. […] O homem representa ao mesmo tempo o positivo
e o neutro, a ponto de dizermos, em francês, “os homens” para desi-
gnar os seres humanos, tendo-se assimilado ao sentido singular do
vocábulo “vir” o sentido geral da palavra “homo”. A mulher aparece
como o negativo, de modo que toda a determinação lhe é imputada co-
mo limitação sem reciprocidade.59

59 Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe, op. cit.: 13-16.


166 Fernanda Henriques

Eu diria que, na sua essência, o fundo questionante deste texto se man-


tém inalterável.
Atente-se, por exemplo, no chamado “eterno feminino”: não é dessa
referência que se alimentam as revistas de massas que se dirigem quer a
homens quer a mulheres? Não é o mito do “eterno feminino”, ligado à
beleza estereotipada, à permanente juventude, a um certo tipo de ero-
tismo e de sensualidade, que subjaz às mensagens dessas revistas, mes-
mo quando se arrogam defensoras de princípios de modernidade ou de
libertação?
E quanto ao tema de haver uma essência feminina, não é essa a pers-
petiva que alimenta o mais profundo do nosso pensar de tal modo que a
qualquer falha cometida por uma determinada mulher sobrevém habitu-
almente o comentário – mulheres! –, como se elas fossem todas iguais –
um coletivo – ao contrário dos homens que são sempre diferenciados e
responsabilizados individualmente?
Também no que respeita àquilo que Simone de Beauvoir diz acerca da
imagem social do masculino, não há, no plano das mentalidades, altera-
ções substanciais. Hoje, como no seu tempo, nenhum homem pensaria ser
necessário apresentar-se fosse onde fosse como sendo um indivíduo de
determinado sexo. Esta questão, aliás, sempre me causou a maior perple-
xidade, na medida em que, por um lado, é a mulher que, tradicionalmen-
te, é vista e simbolizada como objeto sexual ou como ligada a uma natu-
reza de que não consegue libertar-se – como se só ela fosse sexuada ou
como se só nela pesasse a variável sexo; no entanto, sempre que na
cultura ocidental se teorizou sobre a questão sexual, toda a teorização foi
feita a partir do masculino, como se apenas houvesse um sexo. Ou seja, o
masculino é o sexo, mas os homens são vistos e simbolizados como se o
sexo não fosse para eles um fator determinante ou determinador.
Contudo, embora a essência do fundo questionante do texto se mante-
nha inalterável, ao mesmo tempo, quer na realidade social, quer nas
construções ou nos debates teóricos, a mudança é completamente abissal,
porque o século vinte, fundamentalmente a partir dos anos 1960/70,
trouxe para a ribalta das discussões a problemática dos direitos das mu-
lheres e, pelo menos a partir daí, o desenvolvimento social, no que respei-
ta às relações entre os sexos, alterou-se substancialmente.
Tal paradoxo releva apenas do facto de que os tempos da realidade
objetiva e os da realidade subjetiva não são equivalentes – a incorporação
real em nós e nas estruturas da nossa subjetividade daquilo que fora de
nós se vai transformando e consolidando corresponde sempre a um longo
caminho a percorrer. Tratando-se de algo que toca no essencial do nosso
ser, como seja a configuração da nossa natureza e da nossa identidade, tal
Filosofia e Género 167

caminho não só se alonga como também se bifurca e se torna sinuoso, na


exata medida em que mexe nos nossos fantasmas e seguranças ancestrais.
Mas, como parece ter dito ou pensado Galileu, a terra continua a mo-
ver-se… e esse seu movimento, na questão vertente, tem-se pautado pelo
questionamento do que tinha sido ancestralmente aceite como sendo a
identidade feminina e a identidade masculina.
Perderam-se as certezas e as noções acabadas e completas e instaurou-
-se o difícil caminho da busca comum de novas perspetivas que, embora
possam ser perturbadoras dos velhos hábitos de pensar, têm, contudo,
como finalidade última traçar uma conceção mais digna do que é, afinal,
ser-se humano.
É interessante notar, a este respeito das identidades, como as interro-
gações sobre a identidade feminina tiveram ressonância na sua equivalen-
te masculina, o que, de alguma maneira, pode fazer avançar a humanida-
de no seu conjunto no sentido das representações de si.
No que diz respeito ao tema da masculinidade, são os anos 1970 que
vêem emergir os primeiros estudos científicos relevantes, no âmbito do
mundo cultural dos Estados Unidos. Tais trabalhos empenham-se em
denunciar o ideal universalista de masculinidade e a pôr a nu as suas
contradições e a sua dimensão ideológica. Na sequência, a implantação
dos Men’s Studies coloca no centro da análise o caráter de plasticidade da
vida e da identidade humana. Nessa medida, põem a tónica no construti-
vismo social em detrimento da biologia, e repetem, por um lado, a tese de
Simone de Beauvoir no plano masculino, defendendo que também não se
nasce homem, e, por outro, como consequência, destroem a ideia de que
apenas haja um modelo único para se ser homem.
No início dos anos 1990, Elisabeth Badinter publica um livro contro-
verso sobre o tema da masculinidade60. Com o título XY, através do qual
faz apelo ao par cromossómico determinador do sexo, esta obra considera
o homem e a identidade masculina como artefactos. Do seu ponto de
vista, os movimentos das mulheres e os questionamentos radicais a que
submeteram a estrutura patriarcal da sociedade ocidental puseram em
causa a lendária e universal crença da superioridade dos homens sobre as
mulheres e, ao fazê-lo, obrigaram os homens a repensarem-se fora dos
quadros onde se tinham acantonado concebendo-se como o(s) represen-
tante(s) mais realizado(s) da humanidade, conceção essa que permitiu
que o homem (vir) se visse a si mesmo como universal (homo)61.

60 Elisabeth Badinter, XY. De l’identité masculine, Paris, Odile Jacob, 1992.


61 Ibidem: 19.
168 Fernanda Henriques

Este texto que, como já referi, suscitou muitas polémicas, tem, apesar de
tudo, a grande vantagem de colocar na mira da análise uma perspetiva oposta
à forma corrente de ver os problemas. E fá-lo por duas vias convergentes:
por um lado, ao indicar que se pode sobreviver sem o cromossoma y,
mas não se pode sobreviver sem o cromossoma x, faz do feminino a
estrutura matricial e a forma humana primordial e, portanto, inverte os
tradicionais modos de pensar o humano a partir do masculino;
por outro, colocando a construção da identidade masculina como uma
sucessiva e sistemática recusa do feminino, reitera a ideia de que o
feminino é a referência principial e, ao mesmo tempo, denuncia o ca-
rácter eminentemente frágil da identidade masculina, uma vez que a
sua definição é feita por negação do feminino.
Independentemente da adesão que se possa fazer às teses que atraves-
sam esta obra de Badinter, tem de se lhe reconhecer o mérito de ter
questionado a abordagem clássica de considerar o masculino como a
referência e o feminino como a derivação, pondo em relevo que se pode e
se deve pensar as relações entre o feminino e o masculino de outra manei-
ra e a partir de outros paradigmas.62
No que respeita à identidade feminina, ou, como diz Simone de Beau-
voir, o que é, afinal, uma mulher?, os Estudos Feministas, olhados no
conjunto da sua extensão e amplitude, dão respostas extremamente diver-
gentes, em função dos princípios hermenêuticos de que partem, havendo
muitas categorizações das diferentes perspetivas que procuram configurar
a natureza feminina.
Todos estes percursos teóricos em torno das identidades feminina ou
masculina são feitos, de algum modo, ‘à revelia’ do fundo filosófico de O
Segundo Sexo: penso, todavia, que representam caminhos possíveis de
reflexão a partir dele.

62 A posição da autora acerca da relação entre as identidades feminina e masculina,


nesta obra, é, essencialmente, ambígua, na medida em que, por um lado, supõe a
diferença, uma vez que defende que a identidade masculina se constrói por
negação sucessiva do que é feminino, mas, por outro, preconiza a aproximação e a
semelhança, porque não só parte da presença da bi-sexualidade em ambos os
sexos, como também defende que aos homens compete a tarefa de se trabalharem,
no sentido de construírem a sua identidade, dando corpo ao feminino e ao
masculino que os habita.
Filosofia e Género 169

3.4. As dificuldades de questionar os cânones: Luce Irigaray e a


fundação do ‘pensamento da diferença sexual’

Como ficou dito no final do ponto anterior, os Estudos feministas respon-


dem de maneiras muito variadas à questão de Simone de Beauvoir – o
que é, afinal, uma mulher? –, em função dos princípios hermenêuticos
que tomam para análise. Por exemplo, algumas autoras propõem uma
divisão dos feminismos em dois grandes grupos: o feminismo ginocêntri-
co63, defendendo as diferenças constitutivas entre homens e mulheres e
considerando as mulheres como alfobres de valores próprios e superiores
aos valores das instituições tradicionais dominadas pelos homens, e o
humanismo que considera o género como acidental preconizando que a
humanidade tem de se concentrar nas atividades que distinguem os seres
humanos do resto da natureza.
Outras autoras propõem uma categorização mais especificadora ou ba-
seada em outros princípios de interpretação. Em algumas revisões de
literatura sobre esta questão os feminismos aparecem classificados em
cinco categorias: liberal, radical, socialista, cultural e pós-moderno; os
três primeiros são defensores da semelhança entre os sexos e os dois
últimos sustentam a sua diferença64.
Mais interessante parece-me ser a proposta de análise da ecofeminista,
Ynestra King, que avalia e categoriza as correntes feministas tendo em
atenção o modo como se posicionam acerca da relação entre a natureza e
a cultura, no seio da identidade feminina. Nesta perspetiva, organiza as
diferentes escolas do pensamento feminista de acordo com três grandes
pontos de vista:
o feminismo liberal e o socialista que encaram a natureza em termos
de dominação e de racionalização;
os feminismos radicais que ou integram totalmente ou rejeitam totalmente
a relação com a natureza, na compreensão da identidade feminina;
os ecofeminismos que procuram relacionar dialeticamente natureza e
cultura, no seio da identidade feminina.

63 Cf. Rosi Braidoti e outras, Mulher, Ambiente e Desenvolvimento sustentável


(1994), Lisboa, Piaget, 2000.
64 Cf., por exemplo, a revisão feita em: Conceição Nogueira, Um novo olhar sobre
as relações sociais de Género, Lisboa, FCG, 2001. Sobre a questão do modo de
análise da evolução/categorização dos feminismos é muito interessante a
perspetiva de: Clare Hemmings, “Contando estórias feministas”, Estudos
Feministas, Florianópolis, 17(1) (2009): 215-241.
170 Fernanda Henriques

O primeiro grupo defende a igualdade de base entre os sexos, conside-


rando que as diferenças que homens e mulheres apresentam não são mais
que o resultado da ação da cultura. Esta era, por exemplo, a posição da
primeira grande pensadora feminista, Mary Walstonecraft e, daí, como se
viu antes, que tenha defendido que se deveria dar às raparigas uma edu-
cação equivalente à dos rapazes, porque a limitada e discriminadora edu-
cação que recebiam era a única responsável pelo seu perfil de mulheres e
não qualquer determinação sexual.
O segundo grupo, o do feminismo radical, bifurca-se em duas posi-
ções reciprocamente excludentes – as feministas racionalistas, como é o
caso de Simone de Beauvoir, que repudiam toda a ligação entre as mulhe-
res e a natureza, e as feministas culturais que, pelo contrário, celebram a
relação constitutiva entre as mulheres e a natureza, defendendo as dife-
renças absolutas entre homens e mulheres, ao mesmo tempo que valori-
zam a cultura e os valores femininos como sendo valores superiores.
Virginia Woolf estará na origem desta posição.
Por fim, os ecofeminismos defendem que tem de se desconstruir o
modo tradicional de pensar a relação entre natureza e cultura, consideran-
do-as não como entidades separadas, mas, dialeticamente, inter-rela-
cionadas65.
Os designados feminismos culturais – que, habitualmente, aparecem
remontados a Virginia Woolf e estão articulados com aquilo que se
designa também por pensamento da diferença, que em França tem em
Antoinette Fouque uma grande protagonista – são os que, no meu enten-
der, advogam a diferença radical entre os sexos, conceptualizando-os
como alteridades insuperáveis. Nessa medida, sejam quais forem as
especificidades com que se apresentem, acabam sempre por ter por base
uma visão essencialista e dicotomizadora dos seres humanos. Além disso,
esquecem, necessariamente, por esse princípio dicotómico de partida,
outras determinações que marcam, indelevelmente, a experiência humana
de se ser homem ou de se ser mulher, como é o caso, por exemplo, da cor
da pele. Como, por outro lado, esta visão é acompanhada de uma sobre-
valorização de tudo o que é feminino, propõe, no fundo, um novo tipo de
relação hierárquica e, portanto, assimétrica, entre os sexos.
Todas as outras posições, embora com algumas particularidades, aca-
bam por acentuar a proximidade entre os sexos.

65 Cf., Ynestra king, “Curando as feridas: feminismo, ecologia e dualismo natu-


reza/cultura”, in Alison Jaggar e Susan Bordo (eds.), Gênero, Corpo, Conhe-
cimento, op. cit.: 126-154.
Filosofia e Género 171

Apesar de todos os processos de compreensão dos feminismos, penso


que tal como hoje se debatem as problemáticas da identidade em geral e da
identidade de género em particular, a abordagem tradicional dos feminis-
mos que assentava na afirmação da igualdade e da diferença perde alguma
base de sustentação. Sobretudo os trabalhos de Judith Butler, configurando
a identidade de género como performatividade, ou seja, como algo que vai
sendo em relação com os contextos em que se desenvolve e não como algo
internalizado e sistemicamente coerente, corroem a ideia de que se possa
falar de igualdade ou diferença entre os sexos. Tal alternativa deixa de
fazer sentido em si própria, obrigando mesmo a uma deslocação radical no
modo de abordar a questão da classificação dos feminismos.
Por outro lado, se se tiver em conta a perspetiva ricoeuriana da ferida
constitutiva do campo hermenêutico e do Conflito de Interpretações, ter-
-se-á de aceitar que só a exploração do confronto entre as diferentes
posições sobre os feminismos permitirá o acesso a uma compreensão
mais profunda do que está em causa.
Contudo, seja qual for a opção classificativa ou compreensiva da
questão, Luce Irigaray surgirá sempre como ‘uma pedra no meio do
caminho’.

A – Luce Irigaray pensadora da diferença sexual66


A escolha de abordar o pensamento de Luce Irigaray deveu-se a duas
razões fundamentais: 1. O facto de ela propor uma conceção filosófica
alternativa às posições filosóficas tradicionais e 2. O facto, por outro
lado, de ser uma personagem radical o que permite uma melhor
compreensão do que está em causa com a ideia da diferença sexual.
A elas acresce uma outra razão não menos fundamental, embora exterior
ao pensamento da autora em si próprio: trata-se de que a não visibilidade do
pensamento e da obra de Irigaray representa bem o preço que se paga por se
questionar os canones, especialmente quando se é mulher.
A evocação que o título faz de Luce Irigaray como fundação do pensa-
mento da diferença sexual quer explicitar que, a despeito da existência de
outras posições teóricas paralelas ou anteriores à sua, a obra de Luce Iriga-
ray é, no meu conhecimento, aquela que fornece, por um lado, uma base de
legitimação sistemática e global ao ‘pensamento da diferença sexual’ e, por

66 A posição que aqui quero evidenciar é paralela a que Teresa Toldy desenvolve a
propósito de Mary Daly: “Mary Daly: A exaltação de um feminismo ginocêntri-
co”, in M.ª Luísa Ribeiro Ferreira e Fernanda Henriques (org), Marginalidade e
alternativa, Lisboa, Colibri, 2016: 97-107.
172 Fernanda Henriques

outro, fá-lo a partir de alicerces que resultam de uma elaboração própria.


Assim, não se trata de dizer que ela foi a primeira a posicionar-se sobre a
questão, mas sim de ver a amplitude dos fundamentos que lhe faculta,
procurando encontrar as suas condições de possibilidade e de legitimidade.
Luce Irigaray tem uma formação multidisciplinar: em filosofia, em
psicanálise e em linguística. A sua carreira é controversa e irregular,
tendo sido a publicação de Speculum. De l’Autre Femme, 1974, o obstá-
culo determinante dos seus altos e baixos.
A publicação desta obra deu-lhe, simultaneamente, notoriedade e per-
seguição. Perdeu o lugar na Universidade de Vincennes e foi expulsa da
Escola Freudiana de Paris – fundada por Jacques Lacan – e ostracizada
pela comunidade Lacaniana.67
Luce Irigaray tem uma vasta obra em que, em alguns aspetos, como
seja, por exemplo, se é ou não possível/desejável propor uma definição de
mulher, tem modificado a sua posição. No entanto, no seu global, a obra
mantém uma enorme coerência no que diz respeito à argumentação da
diferença sexual.
Em Je, tu, nous, de 1990, cujo subtítulo é Pour une culture de la diffé-
rence,68 Irigaray faz, exatamente, a apologia da diferença sexual e a
necessidade de ‘sexuação’ da vida e dos modos de pensar, apresentando
diferentes tipos de razões:
A exploração das mulheres foi fundada na diferença sexual, ela não se
pode resolver a não ser pela diferença sexual.
A espécie humana está dividida em dois géneros que asseguram a sua
produção e reprodução. Querer suprimir a diferença sexual é provocar
um genocídio mais radical que tudo o que pôde existir como destruição
na História.69
A igualdade entre homens e mulheres não se pode realizar sem um pen-
samento do género como sexuado e uma reescrita dos direitos e deveres
de cada sexo, enquanto diferente, nos direitos e deveres sociais.70

67 Não conheço, em pormenor, este processo, mas se foi paralelo à vergonhosa


perseguição e difamação feita a Paul Ricoeur, no quadro da publicação da sua
obra, De l’interprétation. Essai sur Freud, de 1965, deve ter sido absolutamente
destruidora, tendo em conta a diferença dos estatutos, académico e filosófico, das
duas pessoas envolvidas.
68 Luce Irigaray, Je, tu, nous. Pour une culture de la différence, Paris, Grasset, 1990.
69 Ibidem: 10.
70 Ibidem: 11.
Filosofia e Género 173

É importante ter estes diferentes aspetos em atenção porque Irigaray


confronta-se com todas as dimensões das lutas feministas: teórica, jurídi-
ca e política, tendo um papel ativo nos feminismos internacionais, com
muita relevância na Itália, onde o pensamento da diferença sexual tem
uma grande importância71.
No quadro da sua dimensão ativista – embora sempre com respaldo
teórico – Irigaray dá muito valor ao aspeto jurídico, sendo que, para ela,
há a considerar duas dimensões: por um lado, é importante a luta pela
igualdade de direitos para fazer aparecer as diferenças; mas, por outro, o
essencial será a organização de um direito sexuado, que tem muito claro
em termos de organização, devendo responder a diferentes tópicos, como
sejam: 1. O direito à dignidade humana; 2. O direito à identidade humana.
Num caso e noutro, as mulheres teriam muito a beneficiar, se fosse legis-
lado, no tópico 1, a não possibilidade da utilização do seu corpo ou das
suas imagens, para fins comerciais ou, no tópico 2, a inscrição jurídica da
virgindade. Este tema é absolutamente central no pensamento de Luce
Irigaray, valendo a pena tentar compreender o seu ponto de vista.
A inscrição jurídica da virgindade (ou integridade física e moral) como
componente da identidade feminina não redutível a dinheiro, não mani-
pulável de nenhuma maneira pela família, pelo Estado ou pela religião.
Esta componente da identidade feminina permite dar à rapariga um es-
tatuto civil e um direito a conservar a sua virgindade (incluindo para a
sua relação com o divino) tanto tempo como lhe agradar, poder apre-
sentar queixa, com a ajuda da lei, contra quem quiser atentar contra
ela, dentro ou fora da família.72
Esta ideia da virgindade – a par da de maternidade, cuja reconcetuali-
zação também propõe – está de acordo com o princípio acima enunciado:
se foi a diferença sexual que serviu para discriminar as mulheres, então,
terá de ser por ela que poderá haver um caminho de resgate. Há que
tomar aquilo que foi alvo de um tipo de concetualização que desqualifi-
cou ou subordinou as mulheres, para o trabalhar de nova forma e usá-lo
como um vetor positivo e prestigiante.
Pessoalmente, interpela-me, negativamente, a necessidade do que
chamei ‘sexuação’ da vida e do pensamento, nomeadamente do pensa-
mento religioso, mas, para esta autora, a questão do dualismo sexual é
absolutamente inultrapassável se se quiser chegar a uma forma humana

71 Esta relevância está ligada a posições feministas radicais e ativistas, mas também
a outras, a que se poderia chamar conservadoras, como é o caso de Alles Bello.
72 Luce Irigaray, Je, tu, nous, op. cit.: 100.
174 Fernanda Henriques

de viver e, nesse sentido, tudo deve ser pensado no quadro da dualidade.


De uma maneira geral, estou de acordo com as suas análises e diagnósti-
cos, mas não com as suas propostas de solução.
A questão do feminino é por ela vivida de uma forma totalizante e to-
talizadora. Diz, em Je, tu, nous, no contexto da discussão da idade, ou
daquilo que é, efetivamente, um aniversário:
A ideia que eu nasci mulher, mas que devo tornar-me o espírito ou a
alma deste corpo que eu sou. Eu tenho de desenvolver o meu corpo fe-
minino, dar-lhe formas, palavras, o conhecimento de si mesmo, um
equilíbrio cósmico e social, nas relações com o meio, nos processos de
troca com os outros e não apenas por artifícios de sedução que não lhe
são apropriados.73
Também no plano religioso, Irigaray releva a importância decisiva de
poder assumir a incarnação no feminino. A propósito de uma experiência
pessoal tida num Museu, na ilha de Torcello, em Itália, manifesta-se desta
maneira:
Senti-me liberta de uma tensão dizendo respeito ao imperativo cultural
de verdade que se exerce também na arte: uma mulher virgem-mãe e o
seu filho figuram como os modelos da nossa redenção em que é preciso
acreditar. Perante esta imagem representando Maria e a sua mãe, Ana,
fui remetida calma e jubilosamente para o meu corpo, para os meus
afetos, para a minha história de mulher. Estava perante uma figura es-
tética e ética de que tenho necessidade para viver sem desprezo a minha
incarnação, a da minha mãe e a das outras mulheres.74
No fundo, o que está em causa é a falta de referência que as mulheres
têm, a todos os níveis, no seio da vivência cultural que habitam e que, do
seu ponto de vista, é essencial para o desenvolvimento do processo hu-
mano de mulheres e homens e para um efetivo relacionamento comunica-
cional:
Cada sexo deveria ter um ideal com o qual se confrontasse, um trans-
cendente que lhe correspondesse. Se cada sexo não tende para a reali-
zação do seu poder (puissance), a aliança ou o encontro entre as ener-
gias de um e de outro permanece impossível.75

73 Ibidem: 131.
74 Ibidem: 26.
75 Luce Irigaray, Parler n’est jamais neutre, Paris, les Éditions de Minuit, 1985: 294.
Filosofia e Género 175

Esta afirmação de Irigaray de que se cada sexo não puder desenvol-


ver-se, enquanto tal, não poderá realizar-se está na base da sua posição
sobre as questões da linguagem, aspeto do seu pensamento que tenho
trabalhado de modo mais sistemático, por se constituir num campo fran-
camente inquietante na abordagem da igualdade e da diferença entre os
sexos e de que me ocuparei, de seguida, antecedendo, embora, essa
análise de algumas reflexões sobre a linguagem e a representação de si
das mulheres.

B – A linguagem ‘é’ o real76


O tema da linguagem tem-me interessado, em si mesmo, decorrente da
minha formação hermenêutica, mas também na função que pode desem-
penhar na reconfiguração do feminino e das mulheres. Curiosamente, não
foram os textos feministas sobre a problemática da linguagem que me
alertaram para a importância possível da linguagem para a compreensão
do estatuto das mulheres e da sua representação, mas sim a meditação
filosófica sobre o tema da linguagem em si mesmo, porque me permitiu
compreender que ela representa, por um lado, a consciência que o ser
humano tem de si e da sua diferença em relação à totalidade da existência
e, por outro, que é a expressão do poder do mesmo ser humano para
responder à questão do sentido do ser e de ser.
A posição sobre a linguagem aqui desenvolvida foi sendo construída
através de uma espécie de flashes que foram ocorrendo em contextos
diversos e que, de repente, se recortavam como interrogações inquietan-
tes, mas, também, instrumentos de pensamento ou de problematização.
Está neste caso, um texto de Hegel sobre o valor das traduções das gran-
des obras para a língua materna de cada povo:
Lutero fez falar a Bíblia, o Senhor fez falar Homero em Alemão – a
maior dádiva que pode ser feita a um povo, pois um povo é bárbaro e
não considera as coisas excelentes que conhece como sua verdadeira
propriedade enquanto não aprender a conhecê-las na sua língua […]
Assim, gostaria de dizer acerca do meu empenhamento que quero ten-
tar ensinar Filosofia em Alemão. Uma vez chegados a esse ponto,

76 Esta expressão é de Gusdorf. Utilizo-a aqui, querendo acentuar o caráter tensional


da cópula, no contexto da teoria da metáfora desenvolvida por Paul Ricoeur. Uma
parte deste trabalho foi desenvolvida no quadro do Projeto ProCiMas,
desenvolvido na Universidade do Porto e coordenado pela Prof.ª Helena Araújo,
no qual participei.
176 Fernanda Henriques

torna-se infinitamente mais difícil dar à trivialidade a aparência de


discurso profundo.77
Que quer realmente dizer que a tradução de uma obra, tida como grande
pela humanidade, é ‘a maior dádiva que pode ser feita a um povo’ ou que
se não ocorrer essa tradução tal povo fica bárbaro ou, ainda, que se não a
ler na sua língua materna, tal povo não a ‘conhecerá como sua verdadeira
propriedade´? O que é, afinal, a força de uma língua materna? Que tem a
ver o uso de uma língua com o desenvolvimento espiritual de cada qual?
Na mesma linha interpeladora, queria colocar o texto de Humbolt, So-
bre a Diversidade da estruturação das línguas humanas e sua influência
sobre o Desenvolvimento Espiritual do Género Humano,78 do qual retira-
ria três ideias basilares: 1. A língua é uma atividade e não apenas um
produto; 2. A língua é um organismo cujo desenvolvimento ocorre em
função das suas próprias dinâmicas; 3. A língua é a expressão identitária
de um povo.
O texto de Humbolt distingue as noções de linguagem e línguas. A
primeira emerge de um fundo misterioso e inexplicável que faz pensá-la
mais como um dom do que como uma conquista. As segundas dependem
das condições específicas do desenvolvimento dos povos. Por outro lado,
há uma relação secreta entre a linguagem e as línguas – secreta porque
não totalmente apreensível – que talvez se possa descrever como sendo a
linguagem um telos que orienta o desenvolvimento das línguas. Neste
sentido, a dimensão de energueia de cada língua teria uma espécie de
força alimentadora do seu desenvolvimento; por isso, também, uma
língua e a força espiritual do respetivo povo teriam um desenvolvimento
recíproco. Voltamos, de novo, à força espiritual das línguas, só que, com
Humbolt, o que também transparece é a relação entre língua e identidade.
Uma língua pode ser instrumento de construção de identidade?
Paul Ricoeur foi o meu companheiro mais próximo e sistemático desta
paulatina descoberta da linguagem e das línguas como uma força.

77 G. W. F. Hegel, Briefe von und an Hegel, Hamburg, Ed Hoffmesister, V 1: 99-100.


Versão francesa: Correspondance, Paris, Gallimard, 1962: 96. A tradução aqui
usada é a de M. J. do Carmo Ferreira, Hegel em Jena. A razão da Liberdade ou a
justificação da Filosofia, Lisboa, Tese de Doutoramento, 1981: 534-535. Usei este
texto como uma das epígrafes de: F. Henriques, “Filosofia, Cultura e Linguagem:
a pertinência do ensino da Filosofia em língua portuguesa”, in Luiz Alberto
Cerqueira (org), Aristotelismo, Antiaristotelismo, Ensino da Filosofia, Rio de
Janeiro, Editora Ágora da Ilha, 2000: 245-262. Repito aqui uma parte desse texto.
78 J. M. Justo (org. e Int), Ergon ou Energueia. Filosofia da Linguagem na Ale-
manha, secs XVIII e XIX, Lisboa, Materiais Críticos, 1986: 107-135.
Filosofia e Género 177

Da sua contribuição, gostaria de relevar dois aspetos principais: a


ideia de que a linguagem é um trabalho feito pela subjetividade e sobre a
própria subjetividade e, por outro lado, a ideia de que a linguagem é
transporte de sentido e, por essa via, coloca-nos sempre dentro de um
sentido dado.
Contudo, o salto qualitativo para me fazer aprofundar a relação entre a
linguagem e a consciência de si das mulheres foi dado com a leitura do
livro de Gusdorf, dos anos 1950, La parole, porque me mostrou que qual-
quer falar expressa um dito que ultrapassa toda a decisão voluntária de
quem fala e que falar é, também, valorizar.
Para ele, A linguagem apresenta-se como a mais originária de todas as
técnicas. Ela constitui uma disciplina económica de manipulação das
coisas e dos seres,79 ou seja, chama a atenção para que falar é moldar e
dominar o mundo. Pela fala, o ser humano dignifica ou menospreza a
realidade, mas, em qualquer dos casos, introduz nela uma ordem valorati-
va, salientando, rebaixando, isto é, hierarquizando. Pela linguagem o ser
humano adquire uma ascendência em relação ao mundo das coisas,
podendo introduzir nele ordem e sentido, situação para a qual o Genesis
(2, 19-21) já nos despertava quando narra o facto de a humanidade ser
convidada a dar nome às criaturas. Dito de outo modo, a linguagem dá-
-nos a possibilidade de configurar um mundo, ou seja, de organizar a
nossa realidade vital. Embora a palavra não crie a coisa, tem, no entanto,
o poder de instituir o seu sentido e, nessa perspetiva, é a linguagem que
dá consistência à realidade, evidenciando, ao mesmo tempo, o poder do
ser humano na ordenação do mundo e a sua transcendência em relação a
ele. Gusdorf continua a sua caraterização da natureza da linguagem
dizendo que a palavra deve a sua eficácia ao facto de não ser apenas uma
notação objetiva, mas sim um índice de valor […] cada palavra é a
palavra da situação, a palavra que resume o estado do mundo em função
da minha decisão.80 Neste quadro, podemos dizer que a palavra humana
carrega uma dimensão ética profunda, porque se a minha palavra “resume
o estado do mundo em função da minha decisão”, eu posso falar para
reificar o passado, repetindo-o, ou para o desenvolver numa dinâmica de
possibilidades futuras, procurando dizer palavras novas.
Desta maneira, falar transporta consigo um recado axiológico subja-
cente ao explicitamente dito no discurso e, algumas vezes, ao invés da
sua mensagem explícita. Esta dimensão valorativa da linguagem recapitu-

79 George Gusdorf, La parole, Paris, PUF, 1990 (1952):13.


80 Ibidem: 12.
178 Fernanda Henriques

la todas as outras transformando-a num poder que pode ser utilizado para
o bem ou para o mal, para libertar ou para oprimir.
A linguagem é o elemento determinante de transformação do mundo.
Nesse contexto, Gusdorf dá uma série de exemplos para demonstrar que
todas as revoluções – culturais ou políticas – estão associadas a alterações
no léxico e na gramática.
Em suma, Gusdorf despertou-me para a consciência de que quando
falamos, fala-se através dos nossos discursos um conjunto estruturado de
valores, muitas vezes em contradição com o que, genuinamente, julgamos
pensar. Pensemos, por exemplo, em expressões discriminadoras que estão
depositadas na linguagem através dos provérbios ou de frases feitas,
como por exemplo:
Burro velho não aprende línguas (discriminação com base na idade)
O trabalho é bom para o preto (racismo puro)
Maria rapaz (estereótipo com base nos papeis de sexo/género)
Certamente já dissemos estas frases como muitas outras, sem qualquer
consciência do seu peso discriminador e sem dele sequer nos aperceber-
mos. E que dizer de vocábulos como semítico e alarve? Quando as profe-
rimos alguma vez nos lembramos de que elas estão carregadas de ódios e
desprezos acumulados contra alguns povos?
O acumular de elementos – destes e de muitos outros – configuradores
da linguagem como poder81 – o poder de dominar, de ordenar, de manipu-
lar, de minimizar –, mas também, o poder de desenvolver, de fecundar e
de fazer crescer fez-me despertar para a relação entre a linguagem e a
situação das mulheres e entrar no campo da literatura especializada. Foi
nesse percurso que me confrontei com a posição de Luce Irigaray.

81 Gostaria de recuperar aqui a conferência que Maria Irene Ramalho proferiu no II


Simposio EDiSo, em 18 junho 2015, intitulada Discursos de resistência, porque
nela, a autora faz uma reflexão sobre o poder (limitado) dos discursos de resistência
para a transformação efetiva das situações a que quer resistir. No entanto, a sua
argumentação serve os meus objetivos por duas razões: (1) por salientar o carater
estruturalmente subversivo de tais discursos; (2) por partir de uma posição sobre a
linguagem como uma estrutura que ultrapassa o sujeito falante e que, de alguima
maneira, condiciona o seu dizer. Cf.: Simposium EDiSo 2015 http://edisoportal.
org/simposium2015/informa%C3%A7%C3%B5es-anteriores/1221-discursos-de-
-resist%C3%AAncia-irene-ramalho-santos. Último acesso em 5 de Junho de 2016.
Filosofia e Género 179

C – Luce Irigaray e a diferença dos universos linguísticos


Num livro intitulado L’infinito singolare, que se dedica a analisar a
relação entre a diferença sexual e a linguagem, Patrizia Violi diz, no início
da Introdução, que o seu livro nasceu de uma convicção e de muitas
perguntas, desenvolvendo o seu texto, (1) através da formulação de uma
questão, (2) da definição do seu fundamento e (3) da configuração da sua
crítica possível.82
A questão é óbvia: refere-se à possibilidade de a diferença sexual ter
influência no sistema de linguagem; melhor dizendo, a autora salienta que
é importante analisar de que modo e a que nível a diferença sexual se
repercute na linguagem, sendo o seu horizonte de fundamentação aquilo
que refere como convicção e que consiste em considerar que, seja qual
for a atividade promovida pelo ser humano, certamente ela terá alguma
marca deixada pelo sexo de quem a levou a cabo, uma vez que a diferen-
ça sexual é uma dimensão fundamental da experiência humana.
Esta convicção, embora discutível, não deixa de merecer alguma re-
flexão. Efetivamente, sendo a pessoa uma totalidade orgânica e, além
disso, desenvolvendo-se a sua socialização num quadro de valores e
normas que enquadram diferentemente o masculino e o feminino, é difícil
não considerar que a determinação sexual não tenha reflexos significati-
vos e explícitos nas atividades que desenvolve. Aliás, essa marca é quase
considerada como um dado na maior parte das sociedades que, inclusi-
vamente, define claramente tarefas mais adaptadas a um ou a outro sexo;
a questão só se torna problemática quando entram em consideração
atividades determinadas, consensualmente consideradas, “científicas” ou
“objectivas”. A este nível reina outro lugar comum que se expressa na
certeza generalizada de que o sexo não pode ter qualquer intervenção
nesse plano porque ele é universal, neutro.
É nesse contexto que Patrizia Violi formula a crítica à sua própria
questão, levantando a dúvida sobre a sua pertinência. Como é possível
que dois sistemas tão constitutivamente diferentes possam interagir,
questiona ela. Ao fazê-lo, assume nessa perplexidade toda uma perspetiva
tradicional sobre o problema, sendo nesse aspeto que o seu texto se torna
fundamental, porque ousa interrogar zonas teóricas tidas como absoluta-
mente inquestionáveis. Ao considerar que se torna necessário pensar
doutra maneira a relação entre a linguagem e a diferença sexual, a autora
traz para a ribalta uma das dimensões mais importantes da problemática

82 Cf., Patrizia Violi, El infinito singular, Madrid. Ediciones Cátedra, 1991.


180 Fernanda Henriques

da igualdade entre os sexos, porque a tematização da linguagem, segundo


um novo paradigma, pode fazer muita luz sobre o modo como as mulhe-
res e os homens se pensam a si mesmos e organizam o mundo.
No seu texto sobre a subjetividade da linguagem, Émile Benveniste
afirma que é na linguagem e através dela que o ser humano se constitui
como sujeito, na medida em que é a linguagem que funda a sua realida-
de,83 mostrando como é pela linguagem que nos constituímos, que real-
mente somos, porque é através da linguagem que temos a possibilidade
de dizer eu, ou seja, de nos acercarmos daquilo que em nós pode ser
captado como permanência – a nossa identidade – e, no mesmo gesto,
diferenciarmo-nos de toda a alteridade. Dito de uma forma mais radical, é
pelo discurso que tomamos posse de nós como ser único.
Como pensar, então, a interrogação de Patricia Violi e como respon-
der-lhe?
Para Luce Irigaray não há qualquer dúvida:
A diferença sexual não se reduz, pois, a um simples dado natural, extra-
linguístico. Ela enforma a língua e é formada por ela. A diferença
sexual determina o sistema dos pronomes, dos adjetivos possessivos,
mas também o género das palavras e a sua organização em classes
gramaticais: animado/não animado, concreto/abstrato, masculino/femi-
nino, por exemplo. Ela situa-se no cruzamento da natureza e da cultura.
Mas as civilizações patriarcais reduziram a tal ponto o valor do femi-
nino que a realidade e as suas descrições do mundo são inexatas. As-
sim, em lugar de ficar um género diferente, o feminino tornou-se, nas
nossas línguas, o não-masculino, isto é, uma realidade abstrata não
existente. Se a mulher se encontra muitas vezes confinada ao domínio
sexual, em sentido estrito, o género gramatical feminino apaga-se, co-
mo expressão subjetiva e o léxico dizendo respeito às mulheres compõe-
-se de termos pouco valorizadores, mesmo injuriosos, que a definem
como objeto em relação ao sujeito masculino. Isto tem a ver com o fac-
to de as mulheres terem tanta dificuldade em falar e a ser escutadas
como mulheres. Elas são excluídas e negadas pela ordem patriarcal.84
Mas que significa, exatamente, esta perspetiva? De onde decorre?
Luce Irigaray tem, neste particular, dois percursos: um teórico-
-filosófico outro de radicação empírica. Como é natural, circulares. Um
articulando o outro e com o outro.

83 Cf. Émile Benveniste, Problèmes de linguistique générale, 1, Paris, Éditions


Gallimard, 1966.
84 Luce Irigaray, Je, tu, nous, op. cit.: 18-19.
Filosofia e Género 181

A base é, contudo, hermenêutica: de facto, a linguagem (e as línguas) é


sexuada – ela é masculina. E é masculina enquanto estrutura lógica ou
derivando dela, enquanto paradigma da expressão da relação ao mundo do
ser humano e enquanto estrutura expressiva. Só que esse sexo intrínseco da
linguagem se esqueceu de si ou melhor, escamoteou-se como tal. O femi-
nino é o seu inconsciente, o seu recalcado – o não dito da linguagem.
Uma lei, perpetuamente mal conhecida/desconhecida, prescreve todas
as realizações da linguagem(s), toda a produção de discursos, toda a
constituição da linguagem, de acordo com as necessidades de uma
perspetiva, de um ponto de vista, de uma economia: as do homem como
representação do género humano.
Esta evidência, simultaneamente imediata e inscrita em toda a nossa
tradição, parece dever manter-se oculta, funcionar como ponto radi-
calmente cego da entrada do sujeito no universo do dizer.85
Este é o ponto: um construído que aparece como dado; uma generali-
zação que se ignora; um poder que se nega.
Luce Irigaray explorará tal ponto de vista em todos os seus textos teóricos
e ele será o paradigma da sua pesquisa empírica (como quase sempre, agra-
da-me o seu diagnóstico, mas tenho reticências quanto à solução proposta).
Nos textos de Irigaray, linguagem aparece, quer com o sentido restrito
de línguas, quer com o mais alargado, de modos de discurso, de paradig-
mas de análise ou como expressão dos enfrentamentos teóricos persegui-
dos pela humanidade. Trata-se de linguagem como ‘pele humana’, para
usar as palavras de Felix Duque86, ou seja, aquele ‘mundo interpretado’
onde vivemos.87 Este ponto de vista permite-lhe analisar as questões
ligadas aos usos da linguagem feitos pelas línguas, em si mesmos, bem
como abordar as consequências disso no campo das diferentes produções
discursivas. É nesse contexto que pode dizer:

85 Luce Irigaray, Parler n’est jamais neutre, op. cit.: 281.


86 Félix Duque, “A pele Humana da Palavra. Uma visão da Hermenêutica”, in I.
Borges-Duarte, F. Henriques, I. Matos Dias (org.), Texto, Leitura e escrita.
Antologia, Porto, Porto Editora; 2000: 95-105.
87 Estou a evocar a primeira Elegia de Duíno, de R. M. Rilke, que o Professor
Oswaldo Market citava uma e outra vez, nas suas aulas. Aqui fica a referência, em
nome de todas as dívidas que tenho para com ele. Aproveito esta remissão para
lembrar também com reconhecimento outros professores que tive na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa: o Padre Manuel Antunes, o Prof. Borges de
Macedo, o Padre Cerqueira Gonçalves, o Prof. Manuel Carmo Ferreira e o Prof.
José Barata Moura.
182 Fernanda Henriques

Um sujeito sexuado impõe os seus imperativos como universalmente váli-


dos e os únicos suscetíveis de definir as formas da razão, do pensamento,
do sentido, das trocas, em geral. Ele reconduz, ainda e sempre, à mesma
lógica, à única lógica: do UM, do Mesmo. Do Mesmo do UM.88
Qual é o problema deste ‘imperialismo’ escamoteado?
Do ponto de vista da autora (e também do meu), este imperialismo es-
camoteado que, em termos genéricos, penso ser correto denominar como
o falso neutro,89 é responsável por uma visão única sobre a realidade e,
portanto, por um empobrecimento generalizado da abordagem dos temas,
dos debates e das soluções encontradas, ao longo dos tempos – é, no
fundo, o monocordismo da cultura ocidental, aqui referido, unicamente, à
determinação sexual.
No contexto desse imperialismo do sujeito masculino, Irigaray vai re-
alçar duas coisas: 1. O que fica globalmente de fora deste modelo de
racionalidade e de verdade; 2. sendo o homem, masculino, de facto ‘a
medida de todas as coisas’, apagou-se a hipótese de conhecer que tipo de
contributo o pensamento das mulheres poderia ter dado à vida humana:
Há uma estrutura eidética que comanda o funcionamento da nossa ver-
dade. […] Nenhuma linguagem é suscetível de dizer o verdadeiro sem
submissão a termos comuns-próprios que a molda em formas adequa-
das, isto é, essenciais.
Como é que se pode pôr, a uma tal economia lógica, a questão: o que é
que acontece à natureza neste funcionamento discursivo? Estando
sempre já reduzida na subordinação às ideias, ela só se representa
através de categorias que a subtraem à perceção sensível imediata.90
A mulher, as mulheres não teriam nada de diferente [autre] a dizer nes-
ta relação com o natural? Não apenas à maneira de um complemento
ou de um suplemento ao que já está dito [au dire déjà existant], mas
como uma articulação diferente [différente]do animal falando à natu-
reza, à matéria, ao corpo. As mulheres não precisam de se distinguir,
como o homem, da mãe-natureza que as produziu; elas podem per-
manecer em ligação com ela, isto é, identificar-se com ela sem perder a
sua identidade sexual.91

88 Luce Irigaray, Parler n’est jamais neutre, op. cit.: 282.


89 Isabel Barreno escolheu este título – a meu ver, feliz – para a obra que publicou
no âmbito das questões da igualdade e ntre os sexos, nos anos 80: Isabel Barreno,
O falso neutro, Lisboa, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, 1985.
90 Luce Irigaray, Parler n’est jamais neutre, op. cit.: 283.
91 Ibidem: 284.
Filosofia e Género 183

Estes dois tipos de considerações não podem deixar de me conduzir ao


pensamento de outra mulher – María Zambrano – que faz um discurso
paralelo a este, a propósito do nascimento da Filosofia na Grécia, embora
num registo que não tem nada a ver com as questões da relação entre os
sexos.92
Como já se viu, antes, Zambrano vive a sua experiência filosófica tra-
gicamente, na medida em que vive dilacerada entre dois ímpetos que ela
qualifica como contraditórios: o da filosofia e o da poesia. Uma parte
dessa vivência dilemática advém, na minha leitura, do modo como inter-
preta o nascimento da Filosofia que considera como a afirmação da
autonomia absoluta do discurso humano, pelo que o qualifica como ‘um
discurso ético’.
Zambrano afirma que no mundo grego houve duas possibilidades de o
pensamento filosófico se ter desenvolvido: uma ligada a um logos tempo-
ral, a via pitagórica, do número e da música, e outra ligada ao logos
espacial, da palavra e do ser. O logos temporal privilegia a palavra, mas
também o silêncio, querendo pôr em evidência que o ritmo e o tempo são
modos de ser da realidade. Se tivesse triunfado esta forma de pensar, a
razão filosófica teria tido de encontrar uma outra maneira de se expressar.
Não foi o caso, porque triunfou o logos aristotélico, fazendo prevalecer a
teoria da definição e do juízo, definindo e julgando todas as coisas. Com
a vitória desta forma logóica ganhou a perspetiva da unidade, da clareza,
da luminosidade e do universal abstrato, como valor supremo.
Ou seja, Aristóteles ganhou aos Pitagóricos – não por acaso, o capítu-
lo da obra chama-se, paradigmaticamente, A condenação Aristotélica dos
Pitagóricos –, mas Zambrano continua a dizer que ao definir o que é,
excluindo, por definição, o que não é do acesso ao discurso, Aristóteles
transformou esse excedente em ‘almas errantes’. Tal como interpreto o
pensamento de Zambrano, o seu conceito de realidade também tem a ver
com esta sua posição sobre a Filosofia, na sua origem. Para ela, o concei-
to de Realidade não é equivalente ao de Ser, porque este remete sempre
para o dito e para o dizível e aquele aponta para lá do dizível, para o
inominável:
[…] realidade é não só o que o pensamento pode captar e definir, mas
também isso que permanece indefinível e impercetível, isso que rodeia a
consciência, destacando-a como ilha de luz no meio das trevas.93

92 María Zambrano, El hombre y lo divino, Madrid, Ediciones Siruela, 1991.


93 Ibidem: 79.
184 Fernanda Henriques

Por isso, dirá que existem “realidades sem ser”, isto é, zonas que a
linguagem discursiva não consegue articular para expressar. E se a filoso-
fia, na esteira de Aristóteles, confinou a realidade ao ser, ao que pode ser
dito, isso não significa, segundo a nossa autora, que essas zonas não ditas
da realidade não continuem a “vaguear como almas penadas” em torno do
espaço filosófico, importunando-o e interpelando-o.
No meu entender, ambas as autoras denunciam uma certa violência
sobre a realidade que fez/faz perder a sua potencial riqueza e diversidade,
embora o princípio hermenêutico de partida de cada uma delas seja
completamente diferente.
Preocupada com a, simultânea, diferenciação entre os sexos e o seu
apagamento, Irigaray chama ainda a atenção para que este discurso
pretensamente neutro, mas, de facto, masculino, é restritivo e empobrece-
dor, igualmente, para o próprio homem, não só por não ter uma alteridade
discursiva que o interpele, mas também porque a sua visão de si é forma-
tada por uma lógica estritamente binária e excludente, por um pensamen-
to disjuntivo ou alternativo que é, constitutivamente, redutor94.
Como já disse, os trabalhos de Luce Irigaray na área da linguagem são
mais interpeladores porque radicam numa investigação empírica sistemá-
tica. Em 1973, a autora publica uma obra sobre a linguagem das pessoas
dementes95, com base na análise dos resultados da aplicação de provas
psicolinguísticas (textos incompletos, faltas gramaticais ou semânticas,
sinónimos …) aplicadas a uma população de dementes com graus varia-
dos de deterioração mental e situações etiológicas diferentes.
Irigaray vai aplicar uma técnica semelhante de experimentação empí-
rica a rapazes e raparigas, mulheres e homens para analisar o seu respeti-
vo comportamento linguístico. Os resultados são interpeladores, dado que
a autora identifica uma conduta diferenciada entre os sexos em relação ao
uso da linguagem, numa percentagem assinalável. A partir sobretudo da
sua síntese em Le partage de la parole,96 é possível fazer em esquema as
diferenças no uso da linguagem, por cada sexo.

94 Tem alguma graça irónica as observações que Irigaray faz sobre a designação
‘língua materna’ dizendo que seria mais adequado chamar-lhe ‘língua paterna’:
Cf.: Luce Irigaray, Parler n’est jamais neutre, op. cit.: 319.
95 Luce Irigaray, Le langage des déments, Haia-Paris, Mouton, 1973. É uma versão
da sua tese de doutoramento em linguística.
96 Luce Irigaray, Le partage de la parole, Oxford, European Humanities Research
Center, 2001.
Filosofia e Género 185

Esquema 1
Mulheres Homens

Tomam muito menos a palavra e Tomam muito mais a palavra e apropri-


apropriam-se menos do discurso am-se muito mais do discurso
Falam, sobretudo, de relações a um Evocam principalmente uma relação a um
outro sujeito, a maioria das vezes de objeto fabricado ou a fabricar
sexo diferente, num contexto de vida Quando se referem a relações entre as
quotidiano onde intervêm a natureza, pessoas elas são organizadas em torno de
pessoas ou objetos familiares. um objeto e segundo modalidades onde se
misturam competitividade, hierarquia,
estereótipo ou formalismo
Utilizam mais vezes como sujeitos: tu, Utilizam como sujeitos: eu, ele, animados
ele, seres animados abstratos

Esquema 2
Exemplos de frases construídas por jovens Exemplos de frases construídas por jovens
adolescentes do sexo feminino adolescentes do sexo masculino
Construir frases com pronomes possessivos
Ela devolveu-lhe o seu livro Ele conduz o seu carro
Ela presta atenção ao seu sotaque Ele compõe a sua gravata
Ele lê o seu jornal

Construir frases com eu, tu, eu-tu, eu-ele/ela


Eu amo Dilan Eu gosto de baseball
Tu gostas do Gian Michele Tu odeias as mulheres
Eu e tu temos os mesmos gostos Eu odeio-te
Eu e ele amamo-nos Eu e ele jogamos um game
Eu e ela amamos o mesmo rapaz Eu e ela odiamo-nos

Construir frases integrando tu


Tu és a única pessoa que consegue Tu és muito simpático e gentil, mas
fazer-me compreender o que signifi- as raparigas detestam-te porque tu és
ca experimentar sentimentos por ou- grosseiro
tra pessoa que se ama
Tu agradas-me muito
Tu és um universo no qual eu posso
Tu imaginas-te ser não sei o quê
refugiar-me
Tu és como o ar para mim, mas lem-
bra-te: sem ar, impossível viver
186 Fernanda Henriques

A interpretação que Irigaray faz desta situação empírica, evidentemen-


te decorre da sua posição teórica, ao mesmo tempo que a condiciona: para
ela o feminino e as mulheres não podem ter na linguagem tal como está
constituída a mesma proeminência – só o masculino é universal e a
referência: o feminino é sempre marcado e derivado.
Dito de outra maneira, numa lógica que apenas faz do masculino re-
gra, o feminino só pode ser objeto e nunca sujeito de enunciação. Como
se referiu acima, em termos de linguagem e de cultura, as mulheres são
não-sujeitos e os termos em que são referenciadas ou são sexualizados ou
desvalorizados. A posição de Irigaray é mesmo que as mulheres mantêm
uma relação com o que as rodeia, mas não o subjetivizam como delas.97
Como podem, então, as mulheres alterar esta situação? Para Irigaray,
só com uma reversão total da situação. No quadro da lógica tradicional da
linguagem as mulheres serão/estarão sempre excluídas e desvalorizadas:
Não se trata, de facto, de interpretar o funcionamento do discurso per-
manecendo no mesmo tipo de enunciado que aquele que garante a coe-
rência discursiva. É, aliás, o risco de todas as afirmações, de toda a
conversa sobre Speculum. E mais genericamente, sobre a questão da
mulher. Porque falar de ou sobre a mulher pode sempre voltar a ser, ou
ser entendido como uma retomada do feminino no interior de uma
lógica que o mantém no recalcamento, na censura, no desconhecido.
Dito de outra maneira, a tarefa não é elaborar uma nova teoria de que
a mulher seria o sujeito ou o objeto, mas travar a própria maquinaria
teórica, suspender a sua pretensão à produção de uma verdade e de um
sentido demasiado unívocos.98
Que podem/devem, então, as mulheres fazer? Para Irigaray só há uma
solução:
[…]repetindo-interpretando a maneira como, no interior do discurso, o
feminino se encontra determinado: como falta, como defeito, ou como
mimo e reprodução invertida do sujeito, elas dizem que a esta lógica é
possível um excesso incómodo do lado do feminino.
Excesso que só ultrapassa o bom senso na condição de que o feminino
não renuncie ao seu ‘estilo’. O qual, é claro, não o é, segundo a con-
ceção tradicional.99

97 Luce Irigaray, Je, tu, nous, op. cit.: 38.


98 Luce Irigaray, “Poder do discurso. Subordinação do feminino”, Ex aequo, n.º 8
(2003): 45-55. 51.
99 Ibidem: 51.
Filosofia e Género 187

A sua defesa de dois universos discursivos leva-a a considerá-los inco-


municáveis. Do seu ponto de vista, mesmo quando parecem estar a dialo-
gar, as mulheres e os homens não o estão, realmente, a fazer. No máximo
trocam informações dizendo respeito às suas necessidades, mas não pode-
rão falar de si experiencialmente, porque não têm o mesmo estatuto:
Para que a comunicação funcione como troca entre sujeitos que falam e
não apenas como transferência de informações, o locutor e o recetor
devem ser permutáveis. No caso da diferença entre os sexos ou géneros,
isso suporia que o sujeito masculino e o feminino fossem, alternada-
mente, eu e tu.100
É à sua formação de psicanalista que Irigaray irá buscar um outro ve-
tor de explicação da diferença dos universos linguísticos de raparigas e de
rapazes – trata-se do modo como concebe a construção da identidade de
rapazes e de raparigas. Para ela, a identidade não é nem estritamente
biológica nem estritamente social, mas relacional, e como raparigas e
rapazes nascem sempre de uma mulher, a sua identidade, num caso, é
construída de forma intra-genérica e, no outro, inter-genérica. Esta
stuação determinará, indelevelmente, as subjetividades de raparigas e de
rapazes. A identidade das raparigas é, inicialmente, pacífica, fazendo-se
por identificação; a dos rapazes é, inicialmente, problemática, fazendo-se
por recusa e negação. Elas aprofundam o relacional. Eles abandonam-no
e procuram securizar-se pela objetivização do mundo. Por isso:
O mundo do rapaz e da rapariga apresentam-se, assim, como mundos
relacionais muito diferentes e a comunicação entre os sexos será im-
possível se não houver tomada de consciência dessa diferença e respei-
to por ela na interação.101
Mas não é apenas no início da vida que as raparigas e os rapazes de-
senvolvem a sua formação identitária de forma diferente.
Elas, que começaram o seu processo de forma pacífica e fácil, porque
podem ir construindo a sua identidade por identificação com a mãe, vão
sofrer uma grande alteração no fim da pequena infância, na medida em
que só, até aí, têm condições para dialogar com um tu/ela. Acontece,
porém, que nesse momento do seu percurso ainda não têm um eu consis-
tente e capaz de um diálogo efetivo. Quando acedem à escola, a cultura
só lhes oferece um modelo em ‘ele’. Então, quando tinham condições
para desenvolver o diálogo relacional que iniciaram na primeira infância,

100 Luce Irigaray, Le partage… op. cit.: 4.


101 Ibidem: 11.
188 Fernanda Henriques

perdem as referências dialogais, dado que a escola só lhes proporciona


modelos no masculino: heróis, sábios ou deuses. Nesse contexto, Irigaray
defende que as raparigas interiorizam o seu desejo de relação intersubje-
tiva que expressam no seu uso da linguagem.
Também para os rapazes a situação de partida se inverte, mas de manei-
ra oposta: aquilo que, no início, foi mais difícil acaba por ser um caminho
que a escola vai reforçar, dando-lhes elementos para consolidarem a sua
identidade e a fortalecerem no mesmo sentido em que a definiram inicial-
mente, além de que lhes oferece um quadro rico de modelos de identidade
masculina com quem se podem identificar positivamente. Do ponto de
vista de Irigaray, os rapazes não desenvolvem o desejo de uma relação
intersubjetiva, sendo a sua relação com a realidade, sobretudo, instrumen-
tal. Tendo começado por se afirmar através da negação de uma identifica-
ção com a mãe, continuará a desenvolver-se por essa demarcação.

3.5. As filósofas contemporâneas e o questionamento das perspeti-


vas tradicionais sobre a ética

Este capítulo obedece à convicção de que o contributo das filósofas


contemporâneas tem sido decisivo para a renovação do tratamento das
questões éticas, nomeadamente, por terem questionado a suficiência das
éticas tradicionais e pela busca de as arrancar aos quadros clássicos de
um universalismo abstrato confinado ao reduto da justiça, deixando de
lado as dimensões contextuais da vida e do viver.
Em função desta convicção, o presente capítulo dedicar-se-á, em
grande medida, ao debate do sentido e da legitimidade da articulação
entre cuidado e justiça no pensamento ético contemporâneo, tentando
surpreender essa articulação no quadro da herança kantiana de um certo
conceito de racionalidade que configura a razão humana, simultaneamen-
te, como um poder e uma limitação, clarificando que o exercício legítimo
desse poder da razão só é efetivamente exercido se se tiver em atenção os
seus limites. Por isso, a articulação entre cuidado e justiça tomará estes
conceitos como ideias reguladoras da vida ética.
Como é conhecido, a própria designação ideias reguladoras radica em
Kant, representando um dos resultados da crítica da racionalidade que
aquele autor levou a cabo, pondo em evidência que a razão humana é
vocação e dinâmica de unidade, mas nunca poderá aceder a uma unifica-
ção total. Ou seja, ela tem capacidade para produzir ideias – estruturas de
unificação – mas essas ideias apenas podem funcionar como motor do
processo de unificação racional e horizonte último do seu exercício.
Filosofia e Género 189

Dito de outra maneira, a herança kantiana da crítica mostra que o tra-


balho da racionalidade deve ser conduzido segundo o ideal unificador da
Razão, mas deve, ao mesmo tempo, ter consciência de que esse ideal é
exatamente isso, um ideal, ou seja, um horizonte regulador de um proces-
so de estruturação que, contudo, tem de assumir-se sempre como inaca-
bado, para não cair na ilusão transcendental de tomar as ideias da razão
como objetos de uma experiência possível.
No quadro desta herança, os debates que vão ser convocados querem
pôr em evidência que a vida ética só cobrará um sentido mais adequado à
complexidade da vida e do viver humano se se deixar dinamizar, simulta-
neamente, pela ideia de Justiça e pela ideia de Cuidado, ultrapassando
toda a tentação de visões absolutas e alternativas, quer elas sejam apoia-
das pelo pólo da justiça, quer o sejam pelo do cuidado.
Para o levar a cabo abordar-se-ão 4 temáticas:
1. Desenvolver um percurso de ressignificação do conceito de cuidado que
o resgatar da feminização em que a tradição o acantonou.
2. Explicitar o papel de Carol Gilligan na desocultação da importância do
cuidado na vida ética.
3. Mostrar, através de quatro autoras contemporâneas – Maria de Lourdes
Pintasilgo, Adela Cortina, Seyla Benhabib e Martha Nussbaum –, como
justiça e cuidado se devem articular para se alcançar um maior sentido
na nossa vida coletiva.

A – Ressignificação do conceito de Cuidado: Da herança


de uma feminização do Cuidado à sua configuração
ontológica-antropológica
Ver Cuidado e Justiça como ideias reguladoras da vida ética supõe
uma ressignificação de ambas as categorias retirando-as do seu sentido
tradicional, determinando uma mudança de paradigma na interpretação
do desenvolvimento moral e na conduta ética. Cuidado e Justiça necessi-
tam, pois, de ser pensadas com maior largueza de vistas e como pólos de
uma mesma relação. Contudo, em termos históricos, é a noção de Cuida-
do que precisa de uma ressignificação mais radical, na medida em que, no
nosso mundo de significações, ela permaneceu obscura, sem dignidade de
objeto concetual com valor de cidadania, pertencendo a uma esfera da
vida e do viver ligado ao âmbito do feminino.
Uma das provas de que Cuidado não tem direito de cidade ao nível
das representações socialmente valorizadas é dada pela pouca relevância
obtida pelos trabalhos de Carol Gilligan no plano do desenvolvimento
moral, bem como pelo sentido dado às chamadas Éticas do Cuidado rece-
190 Fernanda Henriques

bidas e, muitas vezes, expostas, como pertencendo ao campo do feminino


e das mulheres. É essa ressonância que a noção de cuidado transporta
consigo como uma espécie de bandeira do feminino e que acantonou as
mulheres, ao longo da nossa tradição, a uma posição de dependência
pessoal, de secundaridade social e de exclusão política, que o pensar Cui-
dado e Justiça como ideias reguladoras da vida ética terá que desalojar.
Qualquer busca, não necessariamente exaustiva, pelas vias da Internet
com o descritor cuidar/cuidado mostra o que acabei de referir. Utilizando
o francês soigner e souci, o inglês care e o alemão sorge, obtêm-se
alguns elementos sobre os quais vale a pena refletir.
Uma primeira nota interessante refere-se ao facto de ser o vocábulo
inglês care que conduz a uma informação mais rica e ampla de conteú-
dos, nomeadamente, care vai conduzir a sites brasileiros muito diversifi-
cados. Inclusivamente a Wikipédia para cuidado, para soigner/souci ou
para sorge, só fornece informação de carácter linguístico. Apenas para
care se faz uma remissão para as éticas do cuidado.
As informações mais sérias que se obtêm em português e em francês
dizem respeito a duas temáticas: (1) cuidados de saúde e (2) formação em
enfermagem. Em inglês, os âmbitos semânticos alargam-se, centrando-se,
sobretudo: (1) no apoio à pobreza e (2) no apoio ao desenvolvimento.
Se se tiver em conta que, hoje, a Internet fornece informação de forma
generalizada, determinando, portanto, uma certa representação social,
vale a pena explorar a diferença entre os dois tipos de informação forne-
cida pelos sites.
No caso dos sites em português, em francês ou em Alemão, a palavra
cuidado não tem espessura teórica, nem remete para nenhuma abordagem
teórica diferenciada que dinamize a semântica tradicional do conceito,
não ajudando a dar nova importância à noção de cuidado.
No segundo caso, no dos sites em língua inglesa, curiosamente, a no-
ção de cuidado vem associada à noção de justiça (ou injustiça), uma vez
que aparece articulada com a pobreza e com o desenvolvimento. Ou seja,
care remete diretamente para a justiça/injustiça, por surgir ligado a quem
está carente, não tem ou foi abandonado.
Em qualquer dos casos, contudo, o campo semântico evocado pela no-
ção de cuidado aponta para dimensões menos bem valorizadas do nosso
imaginário social:

Doença carência
Fragilidade dependência
perda atraso
Filosofia e Género 191

É esta associação direta de cuidado a estratos menos valorizados das


nossas representações que, a meu ver, cria problemas na associação entre
cuidado e feminino. Foi, exatamente, uma imagem dulcificada do feminino
e da função das mulheres como cuidadoras das relações e dos afetos que
permitiu, por exemplo, a Rousseau, no seu romance pedagógico Émile,
como se viu antes, definir, no último capítulo, uma proposta educativa para
Sophie, paradigma de todas as mulheres, de modo a que o “interesse geral”
na relação Homem-Mulher fosse salvaguardado. Dizia ele:
[…] toda a educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agra-
dar-lhes, ser-lhes útil, fazer-se amar e honrar por eles, educá-los quando
são jovens, cuidar deles quando são grandes, aconselhá-los, consolá-los,
tornar-lhes a vida agradável e doce – eis os deveres das mulheres de
todos os tempos e aquilo que se lhes deve ensinar desde a infância.102
Pelo contrário, a aproximação entre cuidado e justiça parece-me impor-
tante e fecunda. Nesse sentido, gostaria de completar este percurso explora-
tório pela noção de cuidado com um dos achados da internet: trata-se de
um artigo do médico e escritor, Martin Winckler, com o título soigner c’est
partager.103 Esta ideia de que cuidar é partilhar – partilhar saberes, experi-
ências, narrativas, segundo o autor – parece-me particularmente interessan-
te, por um lado, porque põe a tónica na horizontalidade das relações e não
na verticalidade, habitualmente relacionada com a ideia de cuidar dos
outros, nomeadamente, nos cuidados de saúde, e, por outro, também por-
que partilhar e justiça remetem para campos semânticos equivalentes.
O objetivo do artigo em questão é, pois, ressignificar o conceito de
cuidado subtraindo-o à sua tradicional esfera de significação. Para esta
reflexão é particularmente significativo que esse trabalho de ressignifica-
ção equivalha à ideia de reciprocidade: se cuidar é partilhar, a ação de
cuidar aparece configurada como inter-ativa e dialógica.

Heidegger e o conceito de Cuidado


Apesar de tudo o que ficou dito antes, o século XX vê vários movi-
mentos de ideias e de percursos de reabilitação do conceito de Cuidado,
nomeadamente, uma das filosofias mais marcantes do século, a de Martin
Heidegger, dá relevo ao conceito de Cuidado, que, nas palavras de Irene
Borges-Duarte significa o seguinte:

102 Jean-Jacques Rousseau, Émile, op.cit. Tome IV, 703.


103 Consultar: http://martinwinckler.com/article.php3?id_article=793. Último acesso
em 5 de Junho de 2016.
192 Fernanda Henriques

[…] a categoria fenomenológica do cuidado, enquanto “existenciário”,


introduz na história – não tanto da filosofia como do ser –, pela pri-
meira vez, a consideração da responsabilidade ontológica intrínseca
aos humanos, não apenas para consigo mesmos (individual ou coletiva-
mente), mas para com o ser de tudo quanto há. O que só pode aparecer,
na sua ingente humildade, na era dos deuses em fuga, na época da
“morte de Deus” – única esperança de um mundo Outro, nascituro do
assumir da plena responsabilidade do humano, enquanto “aí” do ser,
ante um mundo antropicamente afetado pelas suas nunca inconse-
quentes ações e propósitos.104
A partir da reprodução feita por Heidegger, no § 42 de Ser e Tempo,
da fábula clássica, recolhida por Hyginus, a autora chama a atenção para
o facto de Heidegger a explorar ontologicamente, marcando a diferença
entre o ser do ser humano, que é cuidado, e a sua condição ôntica, como
um composto psicofísico. Ou seja, diz, não é a distinção de alma e corpo
e a sua união constitutiva o que caracteriza ontologicamente o humano,
mas o seu levar o ser no seu ser, ocupando-se dele, de si, cuidando de e
tendo cuidado, desvelando-se por e no viver105.
Na quarta parte do seu texto, O cuidado na existência fáctica, Irene
Borges-Duarte mostra a originaridade do conceito de Cuidado no pensa-
mento heideggeriano que, segundo refere, já estava presente nas lições de
1921/22, sobre Aristóteles, nas quais o Cuidar aparece como ‘sentido
referencial da vida’, sendo, portanto, ainda anterior ao termo Dasein,
surgido em 1924.
Ao desenvolver a análise sistemática de Cuidar/Cuidado nos textos hei-
deggerianos e nos contextos em que surge, a autora quer pôr de manifesto o
desvio inovador do pensamento de Heidegger ao pensar o ser do ser humano
como cuidado e, por outro lado, realçar o seu caráter precursor em relação a
algumas correntes de pensamento contemporâneo, desde a ‘heurística do
medo’ de Hans Jonas que algumas dimensões de Cuidado em Heidegger pré-
-anunciam, à perspetiva biopolítica de Foucault e de Agamben.
Do conjunto da sua análise, gostaria de salientar três aspetos:
A articulação entre Cuidado e Amor
As dimensões de compromisso e de realismo implicadas no conceito
de Cuidado

104 Irene Borges-Duarte, “A fecundidade ontológica da noção de cuidado. De


Heidegger a Maria de Lourdes Pintasilgo”, Ex aequo n.º 21 (2010): 115-131:
116-117.
105 Ibidem: 120.
Filosofia e Género 193

As dimensões de risco e de aposta que o Cuidado convoca


A primeira referência é-me particularmente cara, porque, na minha
leitura, o amor é um dos conceitos mais vazios de sentido e, ao mesmo
tempo, com consequências mais contraditórias, do mundo ocidental. Por
querer significar tudo, o termo amor acaba por se esvaziar de sentido
efetivo. Desde logo, porque não consegue libertar-se do arco que vai de
eros a ágape, acabando sempre por circular entre os dois nas suas concre-
ções; depois, porque a polarização num ou no outro pólo determina sempre
vivências excessivas, que não raras vezes se convertem em fanatismos e
obsessões, podendo originar situações de violência ou destruição irreversí-
veis. ‘Ama e faz o que quiseres’ pode ser uma poderosa armadilha.
Neste contexto, a contraposição que Heidegger faz a Binswanger106,
colocando o Cuidado em posição mais originária que o Amor, é extre-
mamente pregnante para mim, na medida em que articula o Cuidado e a
Compreensão, mostrando o antropológico e o ontológico como insepará-
veis, por um lado e, por outro, porque dessa articulação resulta um resga-
te da tarefa compreensiva à mera dimensão intelectualista e a sua inserção
no campo colorido da afetividade, apontando para uma racionalidade
mais aberta e inclusiva.
As segunda e terceira referências têm implicações mútuas, ou seja, são
dois aspetos de uma mesma significação que, por sua vez, decorre do
mesmo princípio: o assumir a pertença a um mundo como modo de ser
próprio de um ente que tem um corpo e, por isso, dá-se sempre conta de
si mesmo ‘no meio de’, ‘no contexto de’, ‘para algo’. Esta dimensão
antropológica-ontológica faz com que a raiz ontológica não possa nunca
ser afastada da reflexão filosófica e, também, que a racionalidade se veja
confrontada com a fronteira do ser e tenha que se abrir a modos herme-
nêuticos de compreensão que, embora marcando sempre uma dimensão
de incompletude constitutiva, por essa mesma razão, são outras tantas
manifestações de que o real nunca se reduz ao existente.
Não posso deixar de convocar aqui Paul Ricoeur, em dois aspetos:
1. A sua confissão de base em Le Volontaire et l’involontaire que, de
facto, subtende toda a sua produção textual, em várias dimensões: (a) a
articulação insuperável entre antropologia e ontologia; (b) a limitação da
racionalidade humana perante o excesso de significação da realidade; (c)
a Hermenêutica como modo de ser da Filosofia; (d) o Conflito de Inter-
pretações como a última fronteira da racionalidade. Diz ele:

106 Cf., Ibidem: 124.


194 Fernanda Henriques

Não posso fazer a síntese do ser no qual estou situado. O mundo é esse aí
onde cheguei ao nascer. Ele não é uma enumeração de objetos […] mas
o englobante indeterminado da minha subjetividade. Não sei o todo. Es-
tou no Todo.107
2. O seu comentário a Ser e Tempo, de Heidegger, no Curso sobre
Hermenêutica, de 1971-1972, em Lovaina, onde chama a atenção para a
importância fundamental que tem a análise heideggeriana, em termos da
deslocação das questões ligadas à compreensão, tal como elas tinham
sido herdadas de Dilthey, do campo da comunicação e do diálogo, para a
dimensão do seu enraizamento ontológico. Di-lo assim:
É muito importante que, em Sein und Zeit, a questão da compreensão
esteja completamente desligada do problema da comunicação com o
outro. […] Os fundamentos do problema ontológico devem ser procu-
rados do lado da relação do ser com o mundo e não do lado da relação
com o outro: é na relação com a minha situação na compreensão, fun-
damental da minha posição no ser, que está implicada, a título princi-
pial, a compreensão.108
O que me parece essencial nesta evocação de Paul Ricoeur, em rela-
ção à compreensão do conceito em causa, é o facto de ela nos reafirmar
essa dimensão de pertença ao mundo que marca uma existência corporal
e da qual decorre, necessariamente, uma atitude específica perante a vida
e o viver, no quadro da qual o Cuidado emerge como compromisso,
realismo, risco e aposta.
Retomando, de novo, a reflexão de Irene Borges-Duarte, vemos que,
para Heidegger,
No seu sentido mais puro, esta estrutura [a estrutura formal do Da-
sein] é um jogo intrínseco de projeção-retrojeção extaticamente tem-
poral: é um ser já de antemão o que, antecipando-se na expectativa, é
em cada momento lançado ao porvir, a partir da experiência feita e
guardada explícita ou implicitamente na memória. Heidegger designa
esta dinâmica formal com uma linguagem complexa, que nos basta
aqui registar: “a estrutura completa do cuidado, no seu sentido for-
mal, é ser-se antecipadamente no seu já estar a ser à beira de algo.
Na expressão pregnante de Ser e Tempo: “ser-se antecipadamente já

107 Paul Ricoeur, Le Volontaire et l’Involontaire, op. cit.: 443.


108 Paul Ricoeur, Hermenéutique, Éditions du SIC, Institut Supérieur de Philosophie,
Louvain-la-Neuve: 103.
Filosofia e Género 195

em (um mundo) como estar-à-beira de (os entes que vêm ao encontro


dentro do mundo).”109
Ou seja, o que este comentário e citação põem em evidência, na explo-
ração do conceito de Cuidado, é, exatamente, esta sua quádrupla implica-
ção: compromisso, realismo, risco e aposta.
O realismo é uma imposição do próprio dar-se conta de si ‘à beira de
algo’, mas é também resultado de, enquanto Cuidado, o Dasein ser um
jogo intrínseco de projeção-retrojeção, de ter, simultaneamente, de ante-
cipar o futuro a partir da experiência conservada pela memória. E é o
realismo decorrente do enraizamento ontológico que vai determinar, neste
paradigma de viver como tarefa, que viver seja sempre uma aposta e um
risco – ou, por outras palavras, viver cuidando, de si e do ser, é deixar-se
guiar pelo princípio da incerteza e comprometer--se com os outros em
levar por diante a vida. E esta tarefa de viver cuidadosamente, lembra-nos
ainda a autora, não é agir compulsivamente, imersos nas [nossas] deca-
dentes rotinas individuais ou coletivas, mas [poder] ser propriamente o aí-
-do-ser, âmbito de abertura ao novum.

Origem e desvirtuações da noção de cuidar em ética:


a importância decisiva de Carol Gilligan
Não parece ser controverso se se fizer remontar a Carol Gilligan e às
suas investigações no campo do desenvolvimento moral a abertura do
caminho para as diferentes teorizações e críticas sobre as éticas do cuidar.
Para a perspetiva deste capítulo – realçar as limitações da noção de
cuidar tomada como valor absoluto – retomar Gilligan é particularmente
útil, na medida em que ela foi atenta àquilo que poderia estar em jogo na
noção de cuidado e aos seus perigos, além de que o seu trabalho emerge
no quadro da consciência de que a justiça também não poderia ser tomada
como o único ingrediente da definição da consciência moral.
Contudo, a sua obra fundadora não é sobre o cuidar, nem sobre o con-
textualismo, nem sobre a dimensão relacional da subjetividade feminina.
Ao escrever In a different voice, ela quer romper com o discurso mono-
córdico – de uma só nota – com que a cultura ocidental tem falado da
maturidade humana. E di-lo, explicitamente, na Introdução do seu livro:
A voz diferente que eu descrevo caracteriza-se não pelo género, mas
pelo tema. A sua associação com as mulheres resulta de uma obser-

109 Irene Borges-Duarte, “A fecundidade ontológica da noção de cuidado…” op. cit.: 123.
196 Fernanda Henriques

vação empírica e é essencialmente pelas vozes femininas que sigo o seu


desenvolvimento. Mas esta ligação não é absoluta e o contraste entre as
vozes femininas e masculinas é apresentada aqui para evidenciar a
diferença entre duas formas de pensamento e destacar um problema de
interpretação mais do que representar uma generalização sobre qual-
quer dos sexos.110
Penso que a autora não poderia ser mais clara – trata-se de introduzir
outras interpretações na definição do que é a maturidade humana, ou seja,
fazer ouvir outras vozes, outras perspetivas, no sentido de estabelecer
uma polifonia e não para afirmar um novo monocordismo.
Assim, a exaltação da ética do cuidado como alternativa à ética da jus-
tiça é, sem sombra de dúvida, um desvio abusivo da proposta de Gilligan.
Em 1993, numa Carta aos Leitores111, que acompanha uma nova edi-
ção da sua obra, Carol Gilligan demarca-se de uma certa interpretação do
seu trabalho, dizendo o seguinte:
Ouvindo as respostas das pessoas a In a Different Voice, ouço muitas
vezes o processo em duas etapas pelo qual passei uma e outra vez no
decorrer da minha escrita: o processo de escutar mulheres e ouvir algo
de novo, uma forma diferente de falar, e depois ouvindo como tão rapi-
damente esta diferença é assimilada nas velhas categorias de pensa-
mento, que perdem a sua novidade e a sua mensagem: é isto natureza
ou educação? São as mulheres melhores que os homens, ou piores?
Quando ouço o meu trabalho ser lançado em termos de se as mulheres
e os homens são realmente (essencialmente) diferentes ou quem é
melhor que quem, sei que perdi a minha voz, porque estas não são as
minhas questões. Em vez disso, as minhas questões são acerca da nossa
percepção da realidade e da verdade: como sabemos, como ouvimos,
como vemos, como falamos. As minhas questões são acerca de voz e de
relação. E as minhas questões são acerca de processos psicológicos e
teoria, sobretudo teorias em que as experiências dos homens são toma-
das como experiências humanas – teorias que eclipsam as vidas das
mulheres e abafam as vozes das mulheres.

110 Gilligan, Carol, In a different voice, Cambridge, Massachusetts, and London,


Harvard University Press, 1993: 2.
111 Consultar: http://books.google.pt/books?id=XItMnL7ho2gC&printsec=frontcover
&dq=carol+gilligan&source=bl&ots=6SkELRKg-3&sig=PyMX5ZJ8qgSzOHB7
PCw1tnBeyRQ&hl=pt-PT&ei=Ymz1S-WlHI31_AbZ8q3WCg&sa=X&oi=book_
result&ct=result&resnum=2&ved=0CCUQ6AEwAQ#v=onepage&q&f=false.
Esta “Letter to readers” foi incluída na edição de 1993 da obra em questão.
Filosofia e Género 197

Este desabafo da autora põe de manifesto algo essencial – introduzir o


princípio de precaução em qualquer abordagem do feminino ou das
mulheres que possa ser posta em continuidade quer com aquilo que
sempre se pensou sobre elas, quer com uma visão dicotómica, um pensa-
mento binário de “ou isto ou aquilo”.
Neste contexto, o fundamental parece ser introduzir a complexidade
como estatuto próprio do pensamento sobre a realidade, aceitar os seus
desafios e assumir a finitude dos nossos processos de compreensão.
Sobretudo, importa ter sempre muito presente a importância que assu-
mem a história das ideias, a história das representações sociais e as
nossas convicções mais profundas no modo como, em cada momento,
pensamos a realidade. Isto é, há que ter em conta que, de cada vez que
nos pronunciamos sobre um acontecimento ou uma situação, veicula-
mos ideias ancestrais que foram constituindo o mundo cultural que par-
tilhamos. Como ficou analisado antes, estamos perante uma “eficácia da
história” ou uma “eficácia do trabalho da história” sobre a nossa cons-
ciência, marcando-a com “pré-juízos” que determinam as nossas inter-
pretações da realidade, sendo em si mesmas transparentes. E se as metá-
foras básicas do pensar não se reconhecem como tais, há, pois, que
acautelar o seu peso ancestral, aquilo que, silenciosamente, transportam
como sedimentação semântica.
Retomando o desabafo de Gilligan antes citado, parece poder dizer-se
que estamos perante a evidência de que, mesmo tomando precauções,
pode não se conseguir romper com o círculo infernal da repetição do
mesmo, nem cortar adquiridos e atavismos mentais.
A voz de Gilligan quer ser uma voz desconstrutora de um determinado
paradigma de análise, nomeadamente, o do paradigma de análise do
desenvolvimento moral que configura não apenas a forma como a consci-
ência humana vai amadurecendo, como também as características do que
é o modelo da maturidade moral.
Fazendo o balanço dos trabalhos produzidos nessa área – de Piaget a
Kohlberg –, ela mostra, por um lado, a unilateralidade dessas perspetivas
de abordagem, uma vez que se desenrolam todas dentro de um modelo do
que é o ser humano adulto, que não questionam, e que é tomado do
padrão masculino da força e da eficácia, considerando, assim, como ideal
de desenvolvimento humano aquilo que a sociedade valoriza e potencia,
e, por outro, um certo enviesamento dos processos de investigação por se
centrarem apenas em indivíduos do sexo masculino que, no caso da teoria
de Kohlberg – com quem, como se sabe, trabalhou –, resulta da observa-
ção de 84 rapazes, cuja vida o autor seguiu durante 20 anos.
Esta situação é duplamente penalizadora para as mulheres:
198 Fernanda Henriques

De facto, primeiro, a investigação ignora-as no processo de construção


das teorias, não as tomando como objeto de observação, nem tomando em
linha de conta a maneira como se produz o seu desenvolvimento.
Mas, na sequência, amplia essa exclusão inicial, avaliando o desen-
volvimento das mulheres em função de teorias construídas apenas com
base na observação de homens.112
Como resultado, as mulheres têm um desempenho deficiente no âmbi-
to do desenvolvimento moral quando avaliadas pela escala de Kohlberg.
Isto é, aliás, a repetição de uma velha ideia, porque já Kant considerava
que as mulheres não eram capazes de atingir o estado de moralidade que
era, para ele, contudo, o sentido último da humanidade.
No contexto da legitimação da sua investigação em In a different voice,
Carol Gilligan refere uma série de estudos realizados nos anos de 1970 para
pôr em evidência como não é indiferente teorizar com ou sem observação de
pessoas dos dois sexos. Gostaria de convocar três dessas referências:
Em 1975, David McClelland realiza um estudo acerca da “motivação
para o êxito”, tomando como objeto de observação apenas homens.
Desse estudo resultam duas explicações categoriais: a esperança do
sucesso e o medo do fracasso.
Em 1978, Martina Horner desenvolve um estudo paralelo, observando
mulheres e configura uma terceira categoria – o medo do sucesso –
por ter detetado um conflito entre feminilidade e sucesso. A sua ob-
servação punha em evidência que as mulheres revelavam ansiedade
em relação às realizações competitivas.
Em 1980, Georgia Sassen analisa a questão do sucesso num outro
quadro interpretativo, fazendo notar que Horner descobriu a presença
da ansiedade do êxito em mulheres, somente quando as realizações
eram diretamente competitivas, ou seja, quando o êxito de uma pessoa
se obtinha à custa do fracasso de outra.113
A leitura destes três estudos numa perspetiva evolutiva põe a claro que
tomar mulheres e homens como objetos de estudo determina resultados
diferentes e, no fundo, a investigação de Carol Gilligan pode ser lida no
quadro de querer pôr a nu a unilateralidade da perspetiva kohlberguiana.

112 Esta situação do enviesamentro da investigação é verdadeira em todos os sectores


da investigação, alguns melindrosos, como seja a investigação médica, como tive
oportunidade de mostrar em: Fernanda Henriques, “As mulheres e a investigação
biomédica”, in Paula Martinho da Silva (coord.), Investigação Biomédica.
Reflexões Éticas, Lisboa, Gradiva, 2008: 127-150.
113 Gilligan, Carol, In a different voice, op. cit.: 15.
Filosofia e Género 199

A investigação canónica de Kohlberg sobre a maturidade moral tende


a separar amor e trabalho, valorizando na vida adulta a autonomia do ser
humano, tomando esta como um estado de “separação de” ou de conside-
ração do humano como ilhotas independentes. Nesse contexto, para ele, o
estado adulto corresponde à compreensão reflexiva dos direitos humanos,
sendo a moralidade equiparada à justiça, definida como o reconhecimento
dos direitos dos outros.
A investigação de Gilligan sobre as mulheres demonstra que estas
tendem a olhar para a realidade de outra maneira – numa lógica menos
linear, que introduz a temporalidade e a relação entre as pessoas como
ingredientes constituintes da justiça.
A questão que importa pôr, para se compreender os limites da investi-
gação de Kolhberg enquanto perspetiva sobre a maturidade humana, na
sua especificação de mulheres e homens, é por que razão essa complexi-
ficação do olhar feminino penaliza as mulheres quanto à apreciação do
seu desenvolvimento moral. Porquê? Que motivo as leva a sair penaliza-
das e excluídas dos estádios mais elevados da consciência ética-moral?
Compreender isso equivale a compreender a importância dos paradigmas
na investigação e, ao mesmo tempo, a demonstrar a necessidade de se
encontrar uma perspetiva ética que ultrapasse qualquer unilateralismo.
Na verdade, o quadro teórico de Kohlberg está feito para esperar um de-
terminado tipo de respostas como respostas padrão ou respostas corretas.
Se a resposta padrão não é obtida é porque algo falha. Assim, quando as
raparigas ou as mulheres não respondem aos dilemas éticos propostos pela
perspetiva kohlberguiana dentro da tipologia esperada, no quadro do es-
quema de avaliação das respostas, é lícito perguntar imediatamente: o que é
que as mulheres não conseguem ver na situação em análise?, havendo uma
explicação construída para tal interrogação, explicação essa que bloqueia a
procura de outras razões legitimadoras das respostas das mulheres.
Esta completude explicativa que, no caso vertente, está encerrada no
plano formal dos direitos, não permite integrar como componente do
desenvolvimento moral a responsabilidade, por exemplo; nesse contexto,
exclui, como fator importante do desenvolvimento moral, a lógica da
preocupação com os outros e da manutenção dos vínculos, para privilegi-
ar, apenas, uma lógica formal de honestidade, assente no princípio da
não-interferência.
Obtemos, deste modo, uma perspetiva dualista em que a “justiça” é o
negativo do “cuidado com”, ou seja, é o negativo da responsabilidade e
do envolvimento.
As éticas do cuidado ocuparam-se em desbravar este continente dos
vínculos e da responsabilidade. Contudo, esse trabalho só é verdadeira-
200 Fernanda Henriques

mente útil se se desenvolver no sentido da reversibilidade de perspetivas


e, portanto, no confronto e no alargamento do paradigma da justiça e não
na mera alternativa a ele.

Hans Jonas: um excurso incontornável


Nesta busca de uma concetualização da ética à altura dos tempos que,
como referiu Obama, no contexto da receção do prémio Nobel da Paz, tem
de “alargar a imaginação”, no sentido, quer de se pôr no lugar de cada
outro, quer de pensar cada ação em termos de futuro, há, necessariamente,
que tomar “cuidado e justiça” como ideias reguladoras e desenhar um
pensamento ético que abandone o puro formalismo do universal abstrato e
se abra também à concreção da vida na figura do “outro” em situação.
Por uma questão de justiça, neste percurso há uma referência incon-
tornável a fazer: o pensamento de Hans Jonas nos quadros da ética da
responsabilidade que, não abandonando a intencionalidade universal, nem
o formalismo kantiano, no entanto, não ignora que os tempos atuais
obrigam a uma rotura com uma continuidade estrita com o pensar con-
vencional. Para Jonas, a justiça ética só se alcança se se ativer ao “cuidar
de” ou ao “cuidado com” e se se deixar atravessar por essa perspetiva.
A perspetiva de Jonas liga-se, diretamente a uma raiz kantiana, como
Kohlberg, mas consegue, todavia, propor uma “ética da responsabilidade”,
configurando propostas éticas que, porventura, Kant teria considerado impu-
ras. A sua novidade, mais ou menos revolucionária, é, a de, por um lado,
chamar a atenção para a importância do tempo, na ação ética e, por outro,
introduzir um sentimento – o medo – como princípio de precaução no agir.
Assim, do meu ponto de vista, a sua ideia de uma “ética da responsa-
bilidade”114 não é outra coisa que uma ética que impõe o cuidado consigo
mesmo e com a natureza como a única possibilidade de que possa, ainda,
haver a justiça de um futuro comum.
Embora assumindo-se como herdeiro dos quadros categoriais da mo-
dernidade, Jonas ressignifica a noção de agir ético legada pela racionali-
dade moderna, por três razões fundamentais:

114 É particularmente relevante para esta questão: Hans Jonas, Das Prinzip Verant-
wortung, Frankfurt, Insel Verlag, 1979. Para o tema da simultânea ligação e
demarcação de Jonas em relação a Kant, ver-se-á com proveito: Irene Borges-
-Duarte, “O Homem como fim em si? De Kant a Heidegger e Jonas”, Revista
Portuguesa de Filosofia, n.º 61 (2005), fasc 3-4: 841-868, texto ao qual esta
reflexão também é devedora.
Filosofia e Género 201

Por denunciar o perigo de exclusão dos princípios éticos na relação


entre os seres humanos e a natureza.
Por evidenciar que o novo estatuto da técnica é qualitativamente dife-
rente do seu estatuto tradicional, oferecendo, hoje, ao ser humano um
novo quadro de possibilidades para a ação.
Por introduzir o tempo como um ingrediente essencial das ações hu-
manas empoderadas pelo novo conceito de tecnologia.
Estas três razões transformam intrinsecamente o agir ético que, por
elas, sai da órbita da esfera individual e da interioridade subjetiva, para se
redimensionar à escala da vida coletiva e de uma responsabilidade inter-
subjetiva e, mesmo, objetiva.
Ao ter-se apetrechado a si mesma com recursos capazes de intervir na
manipulação da sua própria dimensão ôntica-existencial e de destruir a
natureza por excesso de exploração, os seres humanos estão agora colocados
perante um dilema ético do qual só poderão sair com justeza se, realmente,
ressignificarem o sentido da sua ação e tomarem como requisitos éticos tão
determinantes como os que classicamente se consideravam, os três seguintes:
Sustentabilidade do planeta
Manutenção do sentido da ideia de natureza humana
Compromisso com as gerações futuras
Contudo, apesar da profunda alteração que Hans Jonas introduz no
pensamento ético, ele não discute, em si mesma, a questão que aqui é o
caso: a da relação do cuidado com a justiça na vida ética. É Seyla Benha-
bib quem, realmente, o faz explicitamente.

B – A questão do Cuidado numa pensadora política portuguesa


Maria de Lourdes Pintasilgo
Maria de Lourdes Pintasilgo viveu muitos anos à frente do seu tempo
e pensou a política não só como um ‘praticismo’, sem qualquer respaldo
teórico, mas sim como algo que se deveria entrosar com o pensamento
filosófico e, não apenas nas suas dimensões de filosofia política, mas
também, a montante, nos níveis ontológicos e éticos.
Chamá-la a este percurso de leitura prende-se com as razões acima
apontadas que originaram linhas de pensamento próprio, com base em
Heidegger, em Hannah Arendt ou Hans Jonas, entre outros nomes. Por
outro lado, Maria de Lourdes Pintasilgo teve sempre como horizonte do
seu pensar as questões da justiça, no seu sentido mais radical de uma
justiça ontológica e existencial, acentuando o contributo específico que as
mulheres poderiam dar na transformação de modos de pensar e de viver,
202 Fernanda Henriques

transformação de que beneficiariam também, ultrapassando a injustiça


histórica milenar de que têm sido vítimas.
Partidária de um feminismo da diferença115, Maria de Lourdes Pinta-
silgo considerava que o acesso das mulheres à vida coletiva, sobretudo
tendo sido alcançado o chamado patamar crítico, deveria ser acompanha-
do de atitudes inovadoras que, acima de tudo, denotassem uma atenção
aos problemas na sua dimensão de concretude real:
A aposta que sustenta a nossa reflexão sobre as mulheres não é uma
aposta de salvaguarda das coisas tal como elas são/estão, mas de uma
mudança radical dos domínios onde elas intervierem.
[…]
[…] é importante observar o quadro dos acontecimentos e das ideias
que começam a desenhar os contornos dos anos 90. Perante um dese-
nho que é ainda caraterizado pela incerteza, por variáveis que são des-
conhecidas, estamos, todos e todas, homens e mulheres, desprovidos de
instrumentos e de soluções.
É um momento onde a intervenção das mulheres se pode tornar oportu-
na e decisiva. Elas são depositárias das atitudes e dos valores requeri-
dos, elas podem tornar-se produtoras de respostas originais aos desa-
fios da história presente.
[…]
Ao limite apenas isto conta: sim às mulheres na política, mas para
que a política responda mais aos verdadeiros problemas das pessoas
e dos povos.116
Portanto, para ela, a ocupação de cargos políticos pelas mulheres era,
simultaneamente, um acerto, em termos de justiça e uma necessidade
exigida pelos tempos.
No seu entender, a experiência histórica própria das mulheres capacita-
-as para protagonizar uma mudança de paradigma na vida política que, a
seu ver, se impunha. Nos anos 1990, era muito claro para Maria de Lourdes

115 Como todas, esta caracterização é simplificadora. Fi-la para acentuar a ideia de que
Maria de Lourdes Pintasilgo denunciou sempre uma igualdade mesmificadora que
empobrecesse as mulheres e o mundo, em geral. No texto que corresponde à
conferência inaugural do XVII Congreso de la Federación Internacional de Mujeres
de Carreras Jurídicas – Castilla-La-Mancha y Toledo, 2000, Maria de Lourdes
Pintasilgo expressa a sua posição pelas palavras de Maria Irene Ramalho: procurar
uma igualdade que não descaracterize e uma diferença que não humilhe. Maria de
Lourdes Pintasilgo, “Cuidar o Futuro”, in Para um novo paradigma, op. cit.: 127.
116 Maria de Lourdes Pintasilgo, “Émergence du féminin et démocratisation du
politique”, in Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado.
Antologia de textos, Porto, Afrontamento, 2012: 25-33: 25-26.
Filosofia e Género 203

Pintasilgo que era imperioso inverter a lógica de funcionamento da vida


política, profundamente alterada pelos acontecimentos de 1989 a todos os
níveis de funcionamento, nomeadamente, as novas reorganizações geopolí-
ticas e geoestratégicas. O seu medo – que o estado atual de coisas que
vivemos confirma – era que a passagem de um mundo bipolar a um mundo
unipolar se fizesse sem que houvesse uma consciência unânime de pensa-
mento e das estruturas que pudessem servir o novo estádio da vida inter-
nacional117. Ou seja, de um certo ponto de vista, temia que as novas opor-
tunidades abertas pela destruição de uma situação estabelecida viessem a
ser preenchidas com velhas respostas, embora cultivasse a ideia de que
essas novas oportunidades exigiam novas respostas e as mulheres poderiam
ser um fator decisivo da construção da novidade.
A contribuição original de Maria de Lourdes Pintasilgo para a questão
da ressignificação do Cuidado foi trazê-lo para o espaço público e conside-
rar que ele deveria ser a chave para a configuração de um novo paradigma
para a política. Antecipando a análise, penso que é possível dizer que a
posição de Maria de Lourdes Pintasilgo se vai caraterizar por pensar o
Cuidado em estreita conexão com a justiça e que, em termos de perspetiva
política, isso se vai cruzar com a ideia de democratização do político e com
a substituição da categoria de desenvolvimento pela de qualidade de vida.
Isabel Allegro de Magalhães, provavelmente, a pessoa que melhor co-
nhece o pensamento e a ação de Maria de Lourdes Pintasilgo, começa o
seu texto, A dimensão do cuidar e a ressignificação do espaço público no
pensar e agir de Maria de Lourdes Pintasilgo, dizendo algo de muito
próximo do que acabei de afirmar. Diz ela:
Cuidar e espaços públicos aparecem-me como dois pontos de energia a
atravessar, cruzando-se, o pensamento e a intervenção pública de Ma-
ria de Lourdes Pintasilgo. Conceptualmente, surgem no seu discurso
como dois topoi a estruturar ou duas noções-caudal a permear a sua
visão política, ao mesmo tempo que se multiplicam e dividem por outras
ideias e propostas. São matriciais no seu contributo para a redefinição
de uma política que põe em causa as referências habituais.118
Por seu lado, no final do texto antes citado, Irene Borges-Duarte diz o
seguinte sobre o modo como interpreta a questão do Cuidado em Maria
de Lourdes Pintasilgo:

117 Maria de Lourdes Pintasilgo,” Culture politique et culture des femmes”, in Para
um novo paradigma, op. cit.: 49.
118 Isabel Allegro de Magalhães,” A dimensão do cuidar e a re-significação do
espaço público no pensar e agir de Maria de Lourdes Pintasilgo”, Ex aequo n.º 21
(2011): 37-51: 38.
204 Fernanda Henriques

[…] o cuidado é o exercício fáctico da responsabilidade. O novo para-


digma da democracia seria, então, o projeto, inequivocamente meta-
-político, de realização plena do respeito pelo ser que, no seu aí
inequívoca, inevitavelmente humano, se deixa albergar e edificar cultu-
ral, histórica e politicamente.119
A ideia de exercício fáctico da responsabilidade parece-me particu-
larmente feliz e creio representar uma boa leitura daquilo que Maria de
Lourdes Pintasilgo propôs teoricamente e realizou na prática da sua
intervenção política e de que a sua criação da Fundação Cuidar o Futuro
testemunha indelevelmente.
Preocupada com a transformação da vida – pessoal e coletiva – Ma-
ria de Lourdes Pintasilgo desenvolve a sua intervenção pública de uma
forma de tal modo original e inovadora que, por um lado, facilmente é
classificada como utópica e, por outro, dificilmente é compreendida
pela sociedade política portuguesa. 120 Do ponto de vista de Isabel Alle-
gro, é possível encontrar uma coerência nas preocupações de Maria de
Lourdes Pintasilgo desde o início da sua vida ativa, nos anos 50, embo-
ra ao longo do seu percurso tenha feito um conjunto de clarificações, de
explicitações concetuais e até de inflexões no modo de pensar, como
seria natural numa pessoa que, de facto, articulava pensamento e ação
numa relação efetivamente dialética e em diálogo constante com os
movimentos de pensamento seus contemporâneos. A autora referida
considera quatro etapas no ’desenvolvimento evolutivo’ do pensamento
de Maria de Lourdes Pintasilgo:
Os inícios, nos anos 1950, com a preocupação do ‘bem comum’. Num
enraizamento profundamente religioso.
Os anos 1960, em que se deixa interpelar pelo pensamento de Teillard
de Chardin e pela sua categoria de noosfera que lhe permite uma radi-
cação antropológica-ontológica daquilo que, na década anterior, era
essencialmente teológico.
O aprofundamento da noção de sujeito, nos anos 1970/80.
Os anos 1980/90, onde se centraliza a noção de responsabilidade, co-
mo categoria primeira e decisiva. É neste quadro que o tema do Cui-

119 Irene Borges-Duarte, “A fecundidade ontológica da noção de cuidado…”,


op. cit.: 129.
120 A Dissertação de mestrado de Ana Tavares, Maria de Lourdes Pintasilgo,
Primeira-ministra do V Governo Constitucional. Um olhar sobre os olhares da
imprensa, apresentada à Universidade de Évora em 2010, mostra de modo
contundente esta incompreensão da sociedade portuguesa.
Filosofia e Género 205

dado se organiza como matriz da política ou, para repetir Irene Bor-
ges-Duarte, como exercício fáctico da responsabilidade.
Estes desenvolvimentos do pensar e do agir de Maria de Lourdes Pin-
tasilgo vão cruzar--se com a sua análise crítica de uma democracia desen-
carnada que não só não implica o exercício de uma cidadania participati-
va, como, pelo contrário, o remete para o simples direito de voto. Por
outro lado e em íntima relação com isto, Maria de Lourdes Pintasilgo
teorizará sobre a categoria de qualidade de vida em lugar da de desenvol-
vimento, defendendo uma cultura política ligada à ideia de compromisso
com um projeto humano e, simultaneamente, responsável pela sustentabi-
lidade do planeta.
Gostaria de acentuar aqui a perspetiva de cultura na expressão ‘cultura
política’ para pôr de manifesto que o que está em jogo é a proposta de
uma atividade governativa que ultrapasse a mera dimensão de gestão e se
configure no quadro de um horizonte da ‘coisa pública’ como ideal de
vida em comum capaz de promover horizontes de justiça e de igualdade.
Nos anos 1990, Maria de Lourdes Pintasilgo foi convidada a presidir a
uma Comissão Independente para as Questões da População e essa
situação pode ser lida como tendo funcionado como um laboratório
experimental das suas perspetivas teóricas.
O trabalho dessa Comissão compreende e demonstra que as questões
da população têm de ser articuladas com todas as outras dimensões da
realidade e, nesse sentido, explicitará que é necessário uma mudança
efetiva de paradigma de análise e de relação da humanidade com o seu
Oikos que é a Terra, sob pena de se poder assistir ao colapso da nossa
vida coletiva, propondo “uma orientação política inaugural e radical”121.
Dessa nova proposta política, destacam-se três ideias que são mais deci-
sivas para esta reflexão:
A ideia de que é imperioso cuidar do Planeta onde habitamos e pensar
a sua ocupação e gestão em termos de assegurar a sua viabilidade.
A ideia de que a política deve ter como horizonte prioritário assegurar
a qualidade de vida para todas as pessoas, em todas as sociedades,
perspetiva que deve substituir a do desenvolvimento.
A ideia de que devem ser as pessoas na sua concretude que devem
funcionar como finalidade da ação governativa.

121 Cf., Isabel Allegro de Magalhães, “A dimensão do cuidar e a re-significação do


espaço público no pensar e agir de Maria de Lourdes Pintasilgo”, op. cit..
206 Fernanda Henriques

Estas três ideias, inseparáveis entre si, põem no centro do debate teó-
rico-político as categorias de Cuidado, de Responsabilidade e de Justiça
que, a meu ver, correspondem à trilogia que dá corpo à ideia de que o
Cuidado é o exercício fáctico da responsabilidade e de que a ação políti-
ca se deve governar por ele.
Na conferência de abertura do XVII Congreso de la Federación Inter-
nacional de Mujeres de Carreras Jurídicas, do ano 2000,122 depois de um
diagnóstico sobre a realidade vivida no limiar da passagem para o novo
século, em que denuncia a ganância de lucro sem horizontes humanos, a
cegueira da lógica dos mercados e o sem sentido de uma globalização
ultraliberal, ao mesmo tempo que faz referência a alguns movimentos sociais
liderados por mulheres que procuram opor-se a este estado de coisas, Maria
de Lourdes Pintasilgo propõe, como saída, um novo paradigma: um mundo
assente no cuidado, no quadro do qual, analisa, sobretudo, as noções de
autonomia e de interdependência, mostrando os perigos da primeira e os
benefícios da segunda. Como muitas outras autoras – nomeadamente, Carol
Gilligan que cita e Seyla Benhabib que não cita – Maria de Lourdes Pintasil-
go denuncia o exacerbamento da noção de autonomia que, associado ao
neoliberalismo e ao individualismo, representa um forte entrave à compreen-
são sistémica da nossa posição no mundo, porque esta está cada vez mais
sujeita às leis da interdependência, situação que só pode ignorar-se com base
na subvalorização de uma enorme fatia de seres humanos e das suas respe-
tivas condições de vida, desprezando, portanto, totalmente, o princípio da
justiça. Do seu ponto de vista, só uma ação política baseada no Cuidado –
cuidado de si, cuidado da humanidade, cuidado do planeta – poderá permi-
tir romper com este estado de coisas. Di-lo assim:
Não bastará então acrescentar piedosamente
à democracia política
a democracia social, económica e cultural.
Haverá sim que construir a democracia simultaneamente
sobre a justiça e sobre o cuidado,
sobre os direitos e sobre as responsabilidades.

122 Neste texto, já antes referido, Maria de Lourdes Pintasilgo convoca uma série de
autoras e autores ligada(o)s à problemática do cuidado, à responsabilidade e
também à ação política: Martin Heidegger, Carol Gilligan, Joan Tronto, Hannah
Arendt, Hans Jonas, Emmanuel Levinas –. No meu entender, este conjunto de
referências é feito num duplo sentido: por um lado, mostrar a fundamentação
teórica daquilo que defende, e, por outro, pôr em evidência como, de lugares
filosóficos muito diferentes, há acordo de perspetivas sobre a urgência de
algumas temáticas. Sinais dos tempos? Espírito do tempo?
Filosofia e Género 207

No texto desta conferência fica muito claro que a introdução do con-


ceito de Cuidado no pensamento político de Maria de Lourdes Pintasilgo
é feito em nome da justiça, pelo que o Cuidado nasce da exigência do
imperativo da responsabilidade – Temos o dever de cuidar de cada pessoa
e do mundo que habitamos, porque, sendo pertença da mesma humanida-
de e habitando o mesmo mundo, somos corresponsáveis umas pelos
outros e pelo universo, para que a justiça possa advir não apenas como
norma jurídica, mas sim como estrutura ontológica e existencial.

C – Adela Cortina e Sheila Benhabib:


duas apropriações diferentes das éticas do discurso123
Adela Cortina e Seyla Benhabib, duas importantes pensadoras con-
temporâneas, pertencem a universos culturais totalmente diferentes:
Adela Cortina é espanhola, sendo em Espanha que desenvolve o seu
trabalho de investigadora e professora e Seyla Benhabib é Turca, nascida
em Istambul, e vai para os Estados Unidos, nos anos de 1970, onde passa
a desenvolver o seu trabalho de investigação e de docência.
Para além da sua importância como pensadoras, várias outras coisas
ligam a atividade destas duas mulheres, nomeadamente o seu interesse
pelas questões ético-políticas e o seu enraizamento nas éticas do discurso
que ambas aceitam, embora introduzam nelas conotações pessoais signi-
ficativas. Adela Cortina forjando o conceito de razão cordial. Seyla
Benhabib através da perspetiva do outro concreto.

Adela Cortina e a Razão Cordial


Adela Cortina, pensadora espanhola com um largo espetro de publica-
ções no âmbito da ética como dimensão constitutiva da vida pública é,
como Celia Amorós, uma defensora intransigente da modernidade como
herança a conservar, demarcando-se claramente da aceitação de que
venha alguma coisa boa do chamado pensamento pós-moderno. Na
minha interpretação, esta sua perspetiva marca indelevelmente os seus
trabalhos de Ética e, por outro lado, impedem-na, algumas vezes, de
encontrar melhores argumentos para algumas posições que quer defender,

123 Convém reiterar que Adela Cortina e Seyla Benhabib – bem como Martha
Nussbaum que se analisará a seguir – são autoras com uma vastíssima obra, cuja
riqueza temática ultrapassa muito o pequeno filtro de análise aqui selecionado.
Nomeadamente as implicações dos seus trabalhos ao nível do pensamento
político são hoje verdadeiramente reconhecidos.
208 Fernanda Henriques

nomeadamente, a articulação entre Ética, Religião e Política e a própria


integração da razão cordial no seio da sua reflexão sobre os limites de
uma ética estritamente baseada na justiça.
A sua ética é, duplamente, kantiana; em primeiro lugar, pelo caminho
da sua investigação inicial, no quadro da qual, em 1976, defende uma tese
sobre Dios en la filosofía trascendental kantiana; em segundo lugar,
porque, no percurso da sua investigação, frequenta a Universidade de
Munique, onde trabalha com Apel e Habermas, adotando, em linhas
gerais, a sua ética do discurso, ela própria de base kantiana.

Um brevíssimo excurso pelas éticas do discurso


Tendo uma dupla radicação autoral – em Karl Apel e em Jürgen Haber-
mas – a ética do discurso, como a de Jonas, tem uma raiz Kantiana, sobre-
tudo em duas dimensões fundamentais – universalidade e formalismo.
Nas palavras de Apel:
Quem reflete sobre a relação entre a ciência e a ética na sociedade in-
dustrial moderna e global, vê-se, a meu ver, diante de uma situação pa-
radoxal. Pois, de um lado, a necessidade de uma ética universal, ou se-
ja, de uma ética obrigatória para a sociedade humana como um todo,
nunca foi tão urgente como em nossa era, de uma civilização unificada,
planetário e criada pelas consequências tecnológicas das ciências. Por
outro lado, a tarefa filosófica de uma fundamentação racional da ética
universal nunca pareceu tão difícil e tão sem perspetiva, quanto na
época da ciência.124
Ou seja, ainda que reconhecendo a dimensão dilemática da tarefa de
fundamentar uma ética universal, hoje, o projeto e programa da ética
discursiva é isso que se propõe fazer. Penso que, para além da exigência
filosófica, quer Apel quer Habermas pertencem a uma geração de ale-
mães para quem um compromisso ético como compromisso de universa-
lidade se impunha também por razões históricas. Aliás, no meu entender,
é, igualmente, a motivação histórica que suporta a outra dimensão essen-
cial da ética discursiva – o seu compromisso com a transformação social
e com a sociedade democrática.
Para além da exigência de universalidade e de fundamentação, Apel
considera, do mesmo modo, a necessidade do formalismo:

124 Karl-Otto Apel, “O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da


ética”, in A transformação da Filosofia, S. Paulo, Edições Loyola, 2000: 407.
Filosofia e Género 209

A partir desta exigência (implícita) de toda a argumentação filosófica,


podem ser deduzidos dois princípios reguladores e fundadores da estra-
tégia moral da ação de todo o ser humano a longo prazo.
● É preciso, em toda a ação ou omissão, que se trate em primeiro lugar
de assegurar a sobrevivência da espécie humana como comunidade
real de comunicação;
● e, em segundo lugar, de que a comunidade ideal de comunicação se
realize na comunidade real de comunicação.
O primeiro objetivo é a condição necessária do segundo; e o segundo
dá ao primeiro o seu sentido – qual seja o sentido que já se antecipa
com cada argumento.125
Por outras palavras, a organização dos procedimentos éticos tem de se
fazer apenas na articulação entre a comunidade real e a comunidade ideal
de comunicação, sendo esta a ideia reguladora daquela. Nesse sentido, a
regra basilar desta ética é também formulada em termos de imperativo
categórico: a argumentação de um princípio ou de uma norma tem de
obedecer à ideia dupla de que cada falante de uma língua é um sujeito
eticamente competente e de que a argumentação tem de dar corpo à ideia
da possibilidade de uma comunidade ideal de falantes.126
Contudo, ainda que de base kantiana, a ética discursiva é, ao mesmo
tempo, contra Kant ou, pelo menos, com graus significativos de afasta-
mento dele; por um lado, porque opõe uma razão situada à razão pura de
Kant, e, por outro, por abandonar o solipsismo metodológico daquele
autor, operacionalizando uma razão comunicativa e, portanto, dialógica.
Trata-se de assumir que o sujeito humano se encontra, desde sempre, ‘no
mundo’ e que esse mundo é um mundo de linguagem, pelo que, a perspe-
tiva do sujeito transcendental se transforma totalmente, dando lugar aos
múltiplos sujeitos que têm capacidade de agir e de inscreverem a sua ação
se nos quadros de uma linguagem legitimadora.127

125 Ibidem: 487, com destacados meus.


126 Adela Cortina comenta estes aspetos dizendo: Voluntad y razón práctica adoptan,
pues, como es costumbre en la tradición kantiana el punto de vista de la
universalidad, pero ahora el punto de partida no es la noción de sujeto, sino la de
subjetividad/intersubjecividad, de modo que para comprobar que una norma es
universalmente valida o, lo que es idéntico, moralmente correcta, es preciso que
todos los afectados por ella, como interlocutores válidos que son, estén dispuestos
a darle su consentimiento, tras un diálogo celebrado en condiciones de
símetria(..). Ética Aplicada y democracia radical, Madrid, Tecnos, 1993: 136.
127 A ética do discurso recupera, pois, a critica de Hegel ao formalismo kantiano e,
pensando prosseguir essa crítica quer considerar os sujeitos da ação como
encarnados e contextualizados. (Cf., Jurgen Habermas, Comentários à ética do
210 Fernanda Henriques

Adela Cortina e as éticas do discurso


A relação de Adela Cortina com as éticas do discurso poder-se-ia clas-
sificar como uma adesão desviante, porque, por um lado, adere aos seus
princípios básicos e, por outro, demarca-se deles, sobretudo no que
respeita à sua estrita preocupação deontológica.

Identificação
Adela Cortina assume plenamente a sua pertença à linha das éticas do
discurso:
A fundamentação racional que a ética do discurso oferece é a mais
acabada filosoficamente para dar conta de uma moral cívica como a
que chegou a configurar-se nas nossas sociedades através de um lar-
go processo histórico de evolução social, precisamente pela superio-
ridade da sua construção teórica em relação a outras fundamen-
tações. Mas, para além disso, a partir dela desenvolvem-se conceitos
tão valiosos para configurar uma moral cívica como o de pessoa, en-
tendida como esse interlocutor que se deve ouvir no momento de deci-
dir normas que o afetam, compromisso na elevação do nível material
e cultural das pessoas que têm de decidir, liberdade dos interlocu-
tores, entendida como autonomia, solidariedade, sem a qual o indiví-
duo não pode chegar a saber sequer acerca de si mesmo, aspiração à
igualdade, entendida como simetria no diálogo, e realização de todos
estes valores numa comunidade real em que vivemos aberta à comu-
nidade humana universal.128
O texto-citação é claro na explicitação das razões que levam a filósofa
espanhola a adotar as éticas do discurso. Por isso, vou apenas sublinhá-las
e comentá-las.
A primeira razão apresentada corresponde ao facto de serem elas que
oferecem uma mais sólida fundamentação para o exercício moral.
Esta questão é fundamental no quadro do pensamento cortiniano. Co-
mo já foi dito, ela é uma defensora acérrima da modernidade e, na se-
quência, da defesa da existência de uma racionalidade prática. No seu
entender, a corrente, de raiz Weberiana, que separa o mundo teórico do

discurso, Lisboa, Instituto Piaget, 1991) Seyla Benhabib considera que esse
objetivo não foi alcançado e propõe a sua perspetiva do ‘outro concreto’ no
quadro de um ‘universalilismo interativo’.
128 Adela Cortina, Ética aplicada y democracia radical, op. cit.: 208.
Filosofia e Género 211

da vida prática, acantonando esta à esfera da subjetividade e do mundo


dos valores, onde reina um politeísmo insuperável, não está à altura dos
tempos, nem representa nenhum recurso de intervenção – teórica e prática
– na vida social, de modo a sustentar um justo viver coletivo. De uma
ponta à outra da sua, já vasta, obra é possível encontrar o reiterar sistemá-
tico desta ideia de que a ação humana assenta em critérios de inteligibili-
dade e, por outro lado, de que também a ética é suscetível de se apoiar em
razões, ou seja, de ser racional.
É no contexto da procura de um entendimento argumentável sobre a
ação humana justa que cobra sentido a sua defesa de uma ‘ética de míni-
mos’, que separa de uma ‘ética de máximos’:
Por isso, alguns éticos temo-nos refugiado humildemente numa ética de
mínimos, limitando-nos a dizer aos nossos ouvintes e leitores: ao deci-
direm sobre as normas que na sociedade vão regulamentar a con-
vivência, tenham em conta os interesses de todos os afetados, em pé de
igualdade, e não se conformem com os pactos fácticos, que estão pre-
viamente manipulados e nos quais nem todas as pessoas têm o mesmo
nível material e cultural, nem a mesma informação; porque se estão
convencidos da igualdade humana quando falam a sério sobre a justi-
ça, para falar como Rawls, ou quando executam atos de fala, para falar
como a ética discursiva, façam, então, da igualdade uma forma de dis-
curso normativo e de vida.
A felicidade… À felicidade todas as pessoas aspiram, porém não a en-
tendem da mesma maneira, nem o vulgo, nem os sábios, nem a juven-
tude, nem os adultos, nem as diferentes sociedades. Talvez porque ela
seja um conceito vazio. Talvez porque não deva ser a filosofia a ocu-
par-se dela.129
Várias dimensões do pensamento de Adela Cortina sustentam este seu
texto, no entanto, neste momento, interessa-me sublinhar a sua preocupa-
ção com aquilo que pode gerar uma ética cívica, ou seja, uma ética que
possa ser defendida com argumentos racionais por apelar para os adquiri-
dos já alcançados pela consciência humana, em termos de valores e
direitos humanos. E não está em causa nenhum sociologismo. Trata-se,
sim, de empregar a utensilagem filosófica para construir pontes de diálo-
go com a dinâmica da realidade. Deste modo, a separação entre a ética de
mínimos e a da máximos não implica uma perda das dimensões da vida
humana e sim a sua reorganização. Os ideais de vida boa são propostas e

129 Adela Cortina, Ética Mínima: Introducción a la filosofía práctica, Madrid,


Tecnos, 1986: 286-287.
212 Fernanda Henriques

só podem funcionar como tais. Seguir um ou outro ideal é, na verdade,


uma escolha pessoal. A ética de máximos não cabe nas perspetivas argu-
mentativas. Como diz Cortina, pode até ser que não digam respeito ao
campo filosófico. O mesmo não se passa com os mínimos éticos; esses
podem e devem funcionar no campo da racionalidade argumentativa e,
como tais, devem ser aceites.
A segunda razão é o que Adela Cortina interpreta ser ‘um valioso con-
ceito de pessoa’, entendida como interlocutor válido.
O apontar desta razão é muito significativo, uma vez que coloca a au-
tora na aceitação da linguagem como o lugar da argumentação ética,
sublinhando que esta é o distintivo do humano. É, todavia, interessante
notar que, para Cortina, é a perspetiva religiosa que dá o esteio último ao
conceito de pessoa. Partindo do ponto de vista kantiano de que tudo tem
um valor, menos o ser humano que tem dignidade, Adela Cortina interro-
ga a história e a cultura em demanda das razões que as levam a aceitar a
dignidade humana como uma realidade que, mesmo quando não é respei-
tada, é retoricamente verbalizada, apontando como resposta que tal se
deve à integração no modo de pensar geral do princípio religioso de um
Deus criador e de um humano feito à sua imagem. Cortina justifica esta
integração do religioso no pensamento laico pelo facto de que a raciona-
lidade ocidental é constitutivamente impura na medida em que o seu
desenvolvimento se fez pelo entrosamento entre o pensamento religioso e
o filosófico. Dessa maneira, houve um momento de porosidade que
determinou que alguns conceitos – como é o caso do de dignidade huma-
na – tenham um fundamento religioso que, contudo, não se reconhece
como tal porque se esqueceu da sua origem última. Como já foi referido
antes, Adela Cortina considera que essa articulação entre a ética e a
religião – bem como com a política – é desejável para dinamizar cada um
dos campos teóricos. Di-lo assim:

Política, ética e religião, por esta ordem ou por uma diferente, são 3 di-
mensões irrenunciáveis do ser humano. Na história do Ocidente, e ape-
nas nela, estas entidades foram entendidas, essencialmente, a partir de
duas narrativas, duas parábolas, duas histórias sobre os vínculos hu-
manos: a que se conta no livro do Gènesis, a narrativa do “reconheci-
mento recíproco” […] e a do Leviatã de Hobbes, onde o fiat, o “faça-
mos o ser humano”, a palavra criadora pronunciada por lábios huma-
nos, é o contrato pelo qual se unem as partes do corpo numa comuni-
dade política artificial.
[…] [Sem esta relação] A política democrática perde as suas mais pro-
fundas raízes e fica uma democracia liberal débil, a ética conforma-se
Filosofia e Género 213

a uma frágil moral por acordo e a religião, muitas vezes, converte-se


numa arma de arremesso ou no direito canónico.130
Na verdade, creio que a dinâmica da perspetiva ética de Adela Cortina
só se entenderá totalmente no quadro desta tripla articulação.
A terceira razão que Cortina aponta para a sua ligação com a ética do
discurso diz respeito à questão da universalidade.131
A este nível, a filósofa espanhola procura sempre articular o local e o
global, o fáctico e o racional, com base na ideia de buscar o universal
possível ou, de outra maneira, de manter uma intencionalidade universal
no pensar ético. De um certo ponto de vista, o conceito de pessoa como
interlocutor válido serve-lhe de veículo mediador, na medida em que, no
horizonte de uma comunidade ideal de comunicação, tal perspetiva
significa pensar os humanos – todos os humanos – podendo a priori
tomar parte no diálogo ético em condições de simetria e, portanto, com
papéis intermutáveis. Como afirma em Ciudadanos del Mundo, numa
sociedade globalizada tem de se encontrar formas universais de pensar o
bem, o que a põe em sintonia com Apel, para quem falta cumprir a di-
mensão ética da globalização.
É neste quadro global que cobra sentido o modo como ressignifica a
questão da autonomia, que continua a considerar como o princípio-chave
da ética, mas agora pensada como a capacidade e a possibilidade de
participar efetivamente na discussão de normas em que se possa vir a ser
afetado, significando aqui ‘participação efetiva’ o facto de essa participa-
ção se ver refletida no resultado final da discussão. No entanto, sublinho,
com ela, que ‘o poder vir a ser afetado por’ não pode fazer perder de vista
a intencionalidade universalista da discussão ética, como ideia reguladora
da vida prática; pelo contrário, é a consciência de pertença a uma mesma
humanidade que tem de ser o sustentáculo de qualquer discussão sobre a
ação humana.

130 Adela Cortina, Alianza y Contrato: Política, Ética y Religión, Madrid, Editorial
Trotta, 2001: 11.
131 Para Adela Cortina, a universalidade é um requisito da globalização da vida
social: Sobre isto diz o seguinte em Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de
la ciudadanía, Madrid, Alianza, 2005: 260-261: “En una Aldea Global el egoís-
mo es actitud pasada de moda, como los son las pequeñas endogamias, los
vulgares nepotismos y amiguismos, las aldeítas locales, la defensa de “los míos”,
“los nuestros”, sea en la política, sea en la economía, en la universidad o en el
hospital. Ante retos universales no cabe sino la respuesta de una actitud ética
universalista, que tiene por horizonte para una toma de decisiones el bien
universal, aunque sea preciso construirlo desde el bien local.”
214 Fernanda Henriques

A autonomia, através da qual nos reconhecemos como pessoas, é, as-


sim, descoberta nas situações concretas de discurso, que é imanente à
praxis vital, mas que transcende tais contextos concretos, na medida em

que as suas pretensões de validade os ultrapassam na sua aspiração


universalizadora.132

Demarcação
No entanto, como já se disse, a adesão de Adela Cortina às éticas do
discurso não é absoluta, sendo feita num registo crítico que dá continui-
dade aos seus princípios próprios de pensar. A autora di-lo com a mesma
clareza com que tinha manifestado a sua adesão:
[…] penso, neste ponto, que a ética não pode limitar-se a fundamentar,
porque uma ética pós convencional de princípios tem de mostrar – em
estreita colaboração com outros saberes – como os princípios podem
encarnar-se na vida social e pessoal.133
É, pois, a vontade de dar ‘corporeidade’ à ética do discurso, sem re-
nunciar ao seu formalismo, que vai orientar o pensar cortiniano, cuja
concretização mais explícita é a publicação da sua obra, em 2007, Ética
de la razón cordial, onde afirma:
Ninguém duvida de que necessitamos de alimentação, vestuário, habi-
tação e cultura, liberdade de expressão e de consciência, para levar por
diante uma vida digna. Mas necessitamos, também, e, em certas
ocasiões, mais, de consolo e esperança, de sentido e carinho, esses bens
de gratuidade que nunca se podem exigir como um direito; que são par-
tilhados por quem os dá, não por dever, mas sim por abundância de co-
ração.134
Esta obra, embora por outros caminhos e relevando de outros argu-
mentos, situa-se na mesma procura de Seyla Benhabib de alargar a ética
discursiva.
O projeto explícito do livro Ética de la razón cordial é retomar a ideia
de uma ‘ética mínima’ e repensá-la, vinte anos depois, embora mantendo
a sua matriz essencial, analisando-a em termos intrasubjetivos e no con-
texto das transformações que a sociedade foi sofrendo durante esse tem-

132 Adela Cortina, Ética aplicada y democracia radical, op. cit.: 136.
133 Adela Cortina, Ética sin moral, Madrid, Tecnos, 1990: 41.
134 Adela Cortina, Ética de la razón cordial, Oviedo, Nobel, 2007: 63.
Filosofia e Género 215

po. Ou seja, tendo em conta que uma ética mínima, como ética própria
das sociedades pluralistas, deve ser: 1. procedimental; 2. portadora do
capital ético partilhado pela sociedade; 3. uma ética das pessoas, enquan-
to cidadãs, esta obra quer agora valorizar aquilo que é convocado na sua
efetivação, realçando os valores e os sentimentos mobilizados nessa
efetivação, dando integralidade humana à razão procedimental e mos-
trando o caráter dialógico da pessoa.
Nesse contexto, mantendo a importância da defesa de uma ética susten-
tadora do exercício da cidadania, posição clássica da autora, trata-se, agora,
de completar essa dimensão da ética através da explicitação daquilo que é –
ou deve ser – mobilizado subjetivamente no comportamento ético. Por
outras palavras, trata-se de dar ‘carne’, dar ‘vida humana’, à estrutura
procedimental da ética de mínimos, sem lhe retirar a dimensão formal, o
que pode ser lido como querendo caldear a justiça com a compaixão.
Retomando as suas palavras:
Esta é a tarefa que se propõe Ethica cordis: tentar superar as limi-
tações de uma ética mínima procedimental, atualizando, ao mesmo
tempo, as suas explicitações numa ética que não é já apenas baseada
na razão procedimental, mas sim numa razão humana integral, numa
razão cordial.135
Adela Cortina parte da seguinte pergunta diretora: o que é que nos
obriga, perante nós e perante os outros, a agir eticamente? E, em conti-
nuidade direta com tudo o que escreveu sobre a pessoa e a sua dignidade
intrínseca, bem como sobre o seu caráter relacional, vai colocar a ideia de
reconhecimento no cerne da sua resposta.
No capítulo oitavo do seu livro, Adela Cortina vai tratar daquilo que
denomina reconhecimento cordial cuja base é a compaixão e que supõe
uma racionalidade cordial, isto é, uma visão integral sobre a racionalida-
de humana que aglutina intelecto e emoção, ampliando o nosso olhar
sobre a realidade. É no cerne dessa racionalidade que se configura a
compaixão, raiz do vínculo comunicativo ou da tomada de consciência
que a relação é aquilo que nos constitui como humanos, isto é, que somos
um diálogo. Esse vínculo comunicativo assenta na ideia de que a outra

135 Ibidem: 32. Mais à frente (191), a autora dirá o seguinte, sobre a ética da razão
cordial: “[…] Ética de la razón cordial […] empeñada en la tarea de mostrar
como el vínculo comunicativo no sólo cuenta con una dimensión argumentativa,
no sólo revela una capacidad de argumentar sobre lo verdadero y sobre lo justo,
sino que cuenta también con una dimensión cordial y compasiva sin la que no
hay comunicación”.
216 Fernanda Henriques

pessoa é uma interlocutora válida, mas, fundamentalmente, na perspetiva


de que o discurso não se reduz a ser um diálogo qualquer, mas sim a
busca cooperativa daquilo que é justo. Este ponto de vista transporta uma
crítica à limitação inerente à ética do discurso como mera ética do dever,
na medida em que supõe que a direção de uma argumentação justa, para
além de se dever adequar à possibilidade de universalização, deve ainda:
Assentar na capacidade de apreciar valores
Supor um sentir comum
Reconhecer o valor da outra pessoa como igual
Por outras palavras: só aparentemente a ética do discurso é meramente
argumentativa; na verdade, aquilo que lhe dá uma força consistente é o
‘conteúdo’ que a alimenta – a vontade de produzir o justo. Nesse sentido,
a ética do discurso tem aspetos epistémicos – uma estrutura cognitiva, um
entendimento comum – e aspetos cordiais – uma capacidade valorativa,
um sentir comum.
Por isso, Adela Cortina defenderá que, para alcançar a justiça, a argu-
mentação tem de recorrer a outros estilos de comunicação, como sejam,
as narrativas, as histórias de vida e os testemunhos, alargando os proces-
sos comunicativas a uma comunicação cordial, colocando a ‘cordura’ e
não a prudência, como virtude soberana.136
No capítulo nono, cumprindo o desígnio da obra, a autora dá forma às
caraterísticas de uma ethica cordis, de uma ética cívica cordial, a saber:
Princípio da não instrumentalização
Princípio das capacidades
Princípio da justiça distributiva
Princípio da responsabilidade
Neste contexto, o trabalho que Adela Cortina desenvolve nesta obra –
dando corpo sistemático a muitos vestígios dispersos em outros textos – é
o de desocultar os valores que, embora permanecendo nos seus não ditos,
estruturam as duas éticas formais em que se movimenta – a de Kant e a
de Apel e Habermas.

136 Tal como Paul Ricoeur na sua obra La mémoire, l’histoire, l’oubli (Paris, Seuil.
2000), Adela Cortina também refere aqui as Comissões de Verdade da África do Sul.
Filosofia e Género 217

Seyla Benhabib e a ideia de “outro concreto”137


Como já se disse, Seyla Benhabib é Turca e trabalha nos Estados Uni-
dos, onde se dedica à Filosofia Política, sendo no quadro desse seu inte-
resse que tematiza as questões éticas.
Diz, na continuidade de outros filósofos, que, embora escreva diferen-
tes livros e desenvolva diferentes temas, a pessoa que se dedica à filosofia
persegue sempre a mesma questão. No seu caso, a sua matriz aporética é
como conciliar os princípios universais dos direitos humanos, de auto-
nomia e liberdade, com a nossa identidade particular de membros de
certas comunidades humanas, divididas pelas línguas, pela etnicidade,
pela religião.138

É nesta perspetiva de procurar articular a universalidade dos princí-


pios e a contextualidade das vivências que o meu caminho se cruzou com
o dela na tentativa de organizar uma proposta de fazer convergir “cuidado
e justiça” na concetualização de uma ética mais inclusiva e mais consen-
tânea com a partilha do espaço público e do espaço privado, por mulheres
e por homens.
Na linha de Habermas, Seyla Benhabib retoma a ideia de que a moder-
nidade é um projeto inacabado, mas, ao contrário daquele autor, considera
que o levar a cabo o projeto da modernidade obriga a ser capaz de integrar
as críticas que as várias fontes da pós-modernidade lhe fizeram.
Esta obrigatoriedade de a modernidade se deixar interpelar pela pós-
-modernidade é, particularmente, importante em três temáticas centrais:
Ceticismo sobre a possibilidade de se aceitar uma conceção puramente
legislativa da razão.
Rejeição do ideal abstrato de um eu que é forjado do ponto de vista
masculino, mas que se apresenta como universal.
Necessidade de se configurar uma racionalidade que seja capaz de se
confrontar com a multiplicidade e com a contextualidade das ações
humanas.

137 Este texto sobre Seyla Benhabib reproduz quase integralmente o texto publicado
em: Fernanda Henriques, “Seyla Benhabib e a articulação entre justiça e cuidado
no pensamento ético”, in M.ª Luísa R Ferreira e F. Henriques (coord), Margina-
lidade e Alternativa, op. cit.: 31-39.
138 Consultar: http://globetrotter.berkeley.edu/people4/Benhabib/. Penso que é este
interesse que a leva a dizer, em mais do que um texto, que a Filosofia deve ter
uma tarefa mediadora, mais do que de unificação ou de totalização.
218 Fernanda Henriques

Do ponto de vista ético, Seyla Benhabib, como Adela Cortina, parte


da ética da comunicação de Apel e Habermas, alargando aquilo que
chama “interpelação deontológica contundente” de Habermas.139
Para ela, a ideia básica da ética comunicativa é, por um lado, o facto
de ela se desenvolver no quadro do respeito moral universal e na recipro-
cidade igualitária, e, por outro, por assentar “num processo de argumen-
tação prática”, sendo, por isso “uma teoria da justificação moral”. Assim,
parece-lhe legítimo alargar a perspetiva habermasiana e não restringir a
ética comunicativa ao âmbito da justiça.
Seyla Benhabib assinala que o desenvolvimento do plano ético se dá
no quadro de duas estruturas limitadoras:
As macro-instituições da organização política, a política, a administração
e o mercado, que determinam as perspetivas da justiça e os seus padrões.
A cultura e as suas interpretações de vida boa, felicidade e padrões de
vida pessoais de realização.
Na sua exploração pessoal da ética comunicativa, não quer perder ne-
nhum desses dois condicionalismos, querendo construir uma Sittlichkeit
pós-convencional que, exatamente, seja capaz de articular os ideais parti-
culares de felicidade com os gerais da justiça.
Esse seu projeto vai-lhe impor a necessidade de promover uma série
de clarificações e distinções concetuais, das quais se devem destacar as
seguintes:
A diferença entre cognitivismo ético e racionalismo ético.
A reformulação dos conceitos de universalismo e de autonomia.
A distinção entre “alteridade (outro) generalizada” e “alteridade (ou-
tro) concreta”
A diferenciação entre um racionalismo e um cognitivismo ético é cru-
cial para o projeto de Seyla Benhabib e lidera todas as outras clarifica-
ções. Ela afirma um cognitivismo ético para poder defender que os juízos
e os princípios éticos têm uma estrutura cognitiva e não são apenas ex-
pressão de preferências, sendo sujeitos a argumentação e a justificação.

139 Cf., Seyla Benhabib, Situating the Self. Gender, Community and Postmodernism
in contempory Ethics, New York, Routledge, 1992. Esta vai ser a obra deter-
minante para a reflexão aqui proposta. No fundo, trata-se de mostrar que a crítica
de Habermas a Kant, na linha de Hegel, não vai suficientemente longe, sobretudo
no que diz respeito a perspetiva sobre o universalismo que continua a ter em
conta apenas na sua dimensão formal, sem atender às relações morais específicas
e efetivas.
Filosofia e Género 219

Contudo, demarca-se do racionalismo ético estrito por este avaliar os


sujeitos éticos como “geómetras morais”, não os considerando como
seres materiais, com emoções.
Do seu ponto de vista, este racionalismo ético, que assenta num uni-
versalismo abstrato, é responsável por duas consequências: (1) ser, habi-
tualmente, projeção da experiência masculina e do seu ideal de autonomia
e (2) ser cego em relação ao desenvolvimento emocional e de caráter.
Assim, está em condições de não desprezar a perspetiva universalista
da ética, mas sim em estabelecer-lhe limites, propondo a ideia de um
universalismo interativo em lugar do ideal legalista e substituivista do
universalismo da Aufklärung.
Nesse quadro, dentro da perspetiva do cognitivismo ético, a ética con-
tinua a mover-se no horizonte do universalizável, mas, tomando a univer-
salidade como um processo concreto em que seres igualmente concretos
lutam para atingir a sua autonomia e não um consenso ideal, obtido
idealmente.
O valor desta ideia de universalismo interativo reside no facto de que
vê a diferença como um ponto de partida para a reflexão e para a ação e,
portanto, integra a diferença, em vez de a suprimir como o universalismo
“clássico” que, do seu ponto de vista, se limita a tomar como caso para-
digmático do humano a experiência vital e existencial de um grupo
específico que, deste modo, se toma como modelo da humanidade.
A referência modelar desta perspetiva universalista substituivista é a
ideia de autonomia, como definição do ser humano adulto, e a da maturi-
dade moral. Deste ponto de vista clássico e canónico de autonomia,
Benhabib, na esteira de Gilligan, critica, sobretudo, a ideia de que, nele,
os homens são vistos como se fossem fungos ou cogumelos, de geração
espontânea, sem vínculos, sem nascimento e sem processo de desenvol-
vimento, perspetiva essa que acentua a exclusão das mulheres na conce-
ção do que é a humanidade porque parte do princípio de que os indiví-
duos não têm uma história pessoal, não nasceram de ninguém nem
foram criados por ninguém. É como se fossem adultos sem terem nasci-
do e crescido e nunca tivessem sido crianças. Essa perspetiva faz desa-
parecer do horizonte da reflexão as mães, as irmãs e, no fundo, a teia de
relações que determina a transformação de um indivíduo numa pessoa
determinada.
Esta forma de conceber a autonomia sem história, sem enraizamento e
sem estrutura relacional, no fundo, só é compatível com a ideia de uma
alteridade concebida da mesma maneira – como um outro generalizado,
abstrato, que também não tem história, nem raízes, nem vinculações.
Uma alteridade que, afinal, é uma mesmidade disfarçada e uma exclusão
total do diferente.
220 Fernanda Henriques

É nesta perspetiva de autonomia, correlativa da ideia de um outro ge-


neralizado, que se definem as éticas da justiça, com exclusão do mundo
da experiência, do bem-estar ou da felicidade da esfera da ética e com a
sua remissão para o plano do privado e do pessoal. Por isso, torna-se
necessário desconstruir este conceito de autonomia e de outro generaliza-
do de maneira a implicar o alargamento das éticas da justiça, para que
tenham de se articular com o bem-estar e com o cuidar e, nesse passo,
possam fornecer uma resposta consentânea com a complexidade da vida
humana em toda a sua amplitude.
Essa desconstrução só é possível com a introdução da ideia de “outro
concreto” na esfera do pensamento ético. Ou seja, enquanto nos mantiver-
mos no âmbito do “outro generalizado”, estamos a falar das pessoas como
“puros seres racionais” e “sujeitos de direitos”, movimentando-nos no pla-
no das interações primordialmente públicas e institucionais e funcionando
no quadro da igualdade e reciprocidade formal, fazendo, portanto, intera-
gir os princípios de justiça, obrigação e direito, mas também os sentin-
entos morais correspondentes de respeito, dever, valor e dignidade140.
No outro pólo, e excluído do espaço do pensamento, fica a individua-
lidade de cada um, as suas diferenças específicas, os seus desejos e moti-
vações ou a “reciprocidade complementar” que tece a humanidade do
humano. A este nível, situamo-nos, habitualmente, nos fora das intera-
ções privadas e não-institucionais, nomeadamente as categorias morais de
responsabilidade, de vínculo, de desejo de partilhar e os respetivos senti-
mentos de amor, cuidado simpatia e solidariedade.
A proposta de Seyla Benhabib é a de compor estes dois pontos de vis-
ta e configurar uma nova perspetiva de uma “moral universalista” que
defina o “ponto de vista moral” à luz da reversibilidade de modos de ver
e de uma “mentalidade ampliada”141 e que nos permita reconhecer a
dignidade do outro generalizado, através da mediação pelo reconheci-
mento da identidade moral do outro concreto.
Neste quadro, a sua proposta corresponde a uma ética comunicacional
que permita interpelar a linguagem dos direitos através das necessidades
vitais que contextualizam as ações humanas, no âmbito da ideia de uma
vida realizada, subvertendo a distinção excludente entre uma ética da
justiça e uma ética do cuidado.

140 Esta ideia do valor das diferenças é um fator determinante da conceção da autora
no plano político. Nesse sentido é essencial a sua obra The Rights of Others:
Aliens, Residents and Citizens, Cambridge, Cambridge University Press, 2004.
141 Expressão e conteúdo que retoma de Hannah Arendt. Cf., Seyla Benhabib,
Situating the Self, op. cit.: 9.
Filosofia e Género 221

D – Martha Nussbaum e o paradigma das capacidades


Foi pela mão de Paul Ricoeur e enquanto especialista na filosofia gre-
ga que conheci Martha Nussbaum; todavia, o que me interessa do seu
pensamento é a forma como ele se pode inserir nesta contribuição das
mulheres filósofas para uma ressignificação da ética e do desenvolvimen-
to moral.
No caso desta autora, interessam-me três aspetos: 1. a sua procura de
uma teoria da justiça, com base na perspetiva das capacidades; 2. o modo
como introduz a noção de compaixão cosmopolita, nos quadros da ética;
3. o tema da imaginação simpática e a defesa da literatura, como forma
própria da escrita ética. Estes três temas podem – e talvez devam – ser
lidos como diferentes aspetos de uma nova abordagem ética, baseada
num paradigma da racionalidade que permita compreender tanto a com-
plexidade humana como a sua diversidade.
O modelo de racionalidade que Martha Nussbaum desenvolve preten-
de articular o intelecto com as emoções, sendo que, para ela, as emoções
são elementos fundamentais dos juízos morais. Particularmente uma
delas, a compaixão, pode fundamentar o desenvolvimento de uma abertu-
ra ao outro na sua diferença e particularidade e, assim, tornar cada pessoa
sensível a uma posição sobre a justiça que ultrapasse as fronteiras dos
nacionalismos – dos nossos, por oposição aos outros ou dos mais próxi-
mos, por oposição aos mais distantes142. É neste quadro que cobra sentido
a ideia de compaixão cosmopolita que deveria decorrer de um paradigma
educacional igualmente cosmopolita, paradigma que possibilitasse a cons-
ciencialização de que o lugar onde se nasce é acidental e de que o essencial
é a pertença a uma mesma humanidade. Partindo da exploração do ponto
de vista estóico, Nussbaum propõe que cada pessoa se pense não como um
ser carente de filiação local, mas sim rodeado de uma série de círculos
concêntricos, cujo primeiro rodeia o eu e cujo último corresponde à huma-
nidade.143Do seu ponto de vista, esta ideia de cosmopolitismo é mais
abrangente e adequada às exigências globais do tempo presente do que a de
multiculturalidade, permitindo respostas mais cabais.

142 Num texto muito crítico, Teresa Toldy mostra as fragilidades desta perspetiva,
comparando-a com a de Judith Butler: Cf., Teresa Toldy, “O CUIDADO e o
ESPAÇO PÚBLICO: compaixão ou vulnerabilidade? Martha Nussbaum vs. Judith
Butler”, publicado em 2010, em CDRom, pela Fundação Cuidar o Futuro.
143 Cf., entre outros, Martha Nussbaum, Cultivating Humanity: A Classical Defense
of Reform in Liberal Education, Harvard, Harvard University Press, 1997.
222 Fernanda Henriques

A capacitação e a justiça
Desde o seu trabalho no World Institute for Development Economics
Research, de meados dos anos 1980 a meados de 1990, onde colaborou
com Amartya Sen, Martha Nussbaum apresenta o que se pode designar
por uma filosofia do desenvolvimento que tem como base a perspetiva
das capacidades, ou da capacitação humana, e que carateriza como uma
perspetiva que configura as condições que possibilitam viver uma vida
com dignidade. Embora reconheça que é Amartya Sen que funda a pers-
petiva das capacidades, Nussbaum considera que lhe dá um contributo
pessoal e uma fundamentação filosófica própria, operacionalizando a sua
formação como especialista em filosofia Grega. Segundo diz, ambos
reconhecemos que as ideias que eu tinha estado a seguir no contexto da
minha ocupação académica, com a filosofia de Aristóteles, tinham uma
assombrosa semelhança com as que ele tinha estado a seguir, durante
alguns anos, no campo da economia144.
O essencial desta perspetiva da capacitação humana está orientado pe-
la interrogação: O que é que alguém é capaz de fazer ou de ser?, sendo a
resposta a tal interrogação que se deve constituir como referência para
avaliar o nível de desenvolvimento de uma sociedade.
Essa perspetiva assenta em dois tópicos essenciais: (1) a ideia aristoté-
lica/marxista de que há um funcionamento verdadeiramente humano e (2)
a ideia kantiana de que o Ser Humano é um Fim em si mesmo.
Em termos do solo da economia, onde se inscreve, tal perspetiva cor-
responde à definição de um campo que se poderia designar como uma
economia com ética que quer ser uma alternativa a uma perspetiva mera-
mente instrumental da economia, e introduzir a ideia de finalidade na
perspetiva económica. Esta perspetiva alargada da economia denuncia que
o desenvolvimento seja equivalente ao crescimento económico de uma
sociedade, mostrando que ele é apenas uma parte desse desenvolvimento,
defendendo, por outro lado, que tem de haver uma política económica que
seja também social e cujo objetivo seja promover a qualidade de vida145 das
populações, que não se reduz apenas à acumulação de bens ou de riqueza.
Nesse sentido, o desenvolvimento das sociedades deixa de ser medido
apenas pelo PIB, para se ocupar com outras variáveis, nomeadamente, a

144 Martha Nussbaum, Las Mujeres y el Desarrollo Humano, Barcelona, Herder,


2000: 40.
145 Esse é o título do livro que Martha Nussbaum e Amartya Sen editam em conjunto
e que é o resultado de uma conferência realizada em Helsínquia em 1988: The
Quality of Life. Oxford: Clarendon Press, 1993.
Filosofia e Género 223

do índice de desenvolvimento humano, pelo que a perspetiva das capaci-


dades ou da capacitação humana corresponde, efetivamente, a uma mu-
dança de paradigma na análise do funcionamento económico, integrando-
-se na linha das configurações de justiça que a tradição filosófica sempre
assumiu e que a partir da Modernidade ocuparam posição central.
Há duas coisas em que Martha Nussbaum e Amartya Sen se encon-
tram absolutamente: (1) ambos atribuem um papel relevante à liberdade
política e (2) ambos põem como meta da sua proposta cada uma e todas
as pessoas.
Este último aspeto é particularmente importante para o que aqui é o
caso, na medida em que evidencia que o desenvolvimento só pode ser
pensado com justiça se se tiver em conta a situação de cada pessoa e da
sua realização pessoal dentro de uma sociedade.
É dentro da mesma linha que a perspetiva da capacitação humana pre-
coniza a necessidade de haver uma liberdade efetiva para que cada pessoa
tenha oportunidades reais para fazer opções genuínas, podendo, de facto,
escolher realizar ações que tornem a vida valiosa à luz do seu quadro de
valores.
As ideias de oportunidades reais e de opções genuínas são absoluta-
mente essenciais para se perceber o que está em causa, nomeadamente a
ideia de capacitação, porque a capacitação de uma pessoa depende quer
da sua estrutura pessoal quer da organização social em que se insere.
Capacitar é dar contexto para o desenvolvimento das capacidades de
discernimento, de valorização e de escolhas efetivas de cada pessoa, dentro
do seu quadro social e cultural. Não se trata, pois, de programar ou de
propor um modelo de ser humano, ou um modelo de sociedade, mas tão só
de empoderar cada ser humano para ser capaz de potenciar o seu desenvol-
vimento como humano a partir dos recursos disponíveis do seu entorno e
orientado para a realização de ações que concretizem aquilo que considera
como efetivamente valioso. Por outro lado, também não se trata de propor
soluções adaptativas146 à escassez de recursos, mas sim de que os recursos,
por mais escassos que sejam, possam ser assumidos e protagonizados por
cada pessoa, no sentido da valoração das ações que quer livremente prati-
car em ordem ao seu florescimento humano. Diz a autora:
Em As Mulheres e o Desenvolvimento humano e outros textos, sustentei
que a melhor forma de configurar um mínimo social básico é o enfoque

146 Martha Nussbaum refere-se amiúde a esta questão das preferências adaptativas,
próprias dos grupos discriminados, como as Mulheres e que advêm de contextos
de injustiça e servem para os reproduzir.
224 Fernanda Henriques

baseado nas capacidades humanas, isto é, naquilo que as pessoas são


efetivamente capazes de fazer e de ser, segundo uma ideia intuitiva do
que é uma vida de acordo com a dignidade do ser humano147.

A exposição sistemática da perspetiva de Nussbaum sobre a capacita-


ção humana é realizada, em 2000, no contexto da discriminação que
sofrem as mulheres, em todas as latitudes, no acesso às condições para
um pleno e livre florescimento humano, numa obra intitulada Women and
Human Development: The Capabilities Approach, onde desenvolve já
uma crítica à posição Rawlsiana, nomeadamente, ao nível do conceito de
bens primários.
A sua preocupação com as pessoas, em si mesmas consideradas, leva-
-a a uma obra de 2006, Frontiers of Justice, que se ocupará do desenvol-
vimento da crítica sistemática às conceções de justiça que sustentam as
teorias do contrato social, em nome, exatamente, da igualdade e da não
discriminação, agora tendo em vista, outros tipos de situações discri-
minadas para além das discriminações com base no sexo, nomeadamente,
a situação em que essas teorias deixam as pessoas portadoras de defi-
ciência148.
A tese do livro é que o enfoque das capacidades está melhor posicio-
nado para permitir ultrapassar as situações de discriminação apontadas do
que a posição rawlsiana, tomada por uma posição paradigmática.

A diferença mais profunda entre o enfoque das capacidades e o contra-


tualismo rawlsiano reside na sua estrutura teórica básica. O enfoque de
Rawls […] é um enfoque procedimental da justiça. […]não vai direta-
mente aos resultados para avaliar a sua validade moral. Em vez disso,
desenha um procedimento […]e confia nesses procedimentos para ge-
rar um resultado justo.149
O enfoque das capacidades […] parte de um resultado, […]que consi-
dera necessariamente vinculado a uma vida de acordo coma a digni-

147 Embora nas linhas essenciais o pensamento de Martha Nussbaum e Amartya Sen
seja convergente, há focos de divergência entre eles, de que destaco o facto de
que, ao contrário de Sen, Nussbaum propor uma lista de 10 capacidades que
considera as capacidades humanas centrais e, a seu ver inegociáveis por
corresponderem a uma ideia do que deve ser um ser humano.
148 Martha Nussbaum propõe-se tratar de mais duas situações de discriminação: a
globalidade dos povos – que está na linha da sua defesa de uma cidadania
cosmopolita – e os animais não humanos.
149 Martha Nussbaum, Las fronteras de la justicia, Barcelona, Paidós, 2007: 93.
Filosofia e Género 225

dade humana. […] A justiça está no resultado, o procedimento é bom


na medida em que promove esse resultado.150

O processo analítico desenvolvido por Martha Nussbaum permite-nos


identificar vários pontos críticos nas perspetivas do contrato social que as
impedem de promover uma verdadeira igualdade entre os membros das
sociedades ou uma cidadania verdadeiramente inclusiva. Desses pontos
críticos, destacaria os 3 que considero mais determinantes, por as confi-
gurarem como estruturalmente discriminadoras:
O facto de que as perspetivas do contrato social confundem (ou assi-
milam) quem desenha os princípios da justiça na situação original com
para quem são desenhados esses princípios, ou seja, a quem se irão
aplicar.
O facto de suporem que as partes cooperam entre si para obter um
benefício mútuo.
O facto de as partes contratantes serem supostas ser independentes e
iguais em poderes e capacidades, assentando numa conceção de pes-
soa dita normal em racionalidade moral e mental e com capacidade
produtiva.
Todas estas determinações são excludentes de um leque muito grande
de indivíduos: crianças, velhos e mulheres, em muitas circunstâncias,
além de todas as pessoas portadoras de deficiência física ou mental.
Nussbaum acrescenta que a estrutura social acabará por incluir essas
situações, mas de um modo derivado e, portanto, nunca em plena igual-
dade, nem em condições equivalentes de cidadania, até porque, por
assentarem na ideia de reciprocidade e benefício mútuo, essa inclusão
assumirá, de alguma maneira, uma dimensão de cedência e não de direito
ou de justiça. Por outro lado, essa futura inclusão de todas as pessoas
assenta numa ideia que, no fundo, é também ela discriminadora:
Ao longo de toda a história do pensamento político no Ocidente, a esfe-
ra do contrato foi vista como uma esfera pública, caracterizada pela
reciprocidade entre indivíduos que mantêm uma igualdade aproximada.
Esta esfera é habitualmente oposta a outra esfera, a chamada esfera
privada, ou lar, onde as pessoas fazem as coisas por amor e afeto, mais
do que por respeito mútuo, e onde as relações contratuais não têm lu-
gar e onde a igualdade não é um valor central151.

150 Ibidem: 94.


151 Martha Nussbaum, Las fronteras de la justicia, op. cit.: 117.
226 Fernanda Henriques

É, nesse quadro de busca de uma real igualdade e na superação da di-


visão entre esfera pública e privada, que o enfoque das capacidades surge
como uma alternativa, mais justa e igualitária porque:
[…] a própria lista de capacidades […] insiste em que todos os direitos
devem ser garantidos como requisitos básicos de justiça. A ideia é que
o conjunto de todos os direitos, devidamente definidos, é requisito de
justiça e que nenhum pode substituir outro152.
São várias as reconcetualizações implicadas por esta proposta do en-
foque na capacitação, nomeadamente duas centrais:
Afastar a ideia de que o contrato social tem de assentar na reciproci-
dade e no benefício mútuo, introduzindo o sentimento de compaixão
na definição da vida pública.
Configurar um conceito de pessoa que permita integrar a dimensão de
vulnerabilidade como constituinte humana.
Martha Nussbaum vai procurar um caminho de solução através de
uma conceção aristotélica-marxista do ser humano, que o apresenta
como um ser social e político, que se realiza por meio das relações com
outros seres humanos. […] Esta conceção política da pessoa inclui a
ideia de o ser humano ser um ser político “por natureza”, isto é, um ser
que encontra uma profunda realização nas relações políticas,
sobretudo nas relações caracterizadas pela virtude da justiça.153
Esta perspetiva, para além de querer superar a distinção entre esfera
pública e privada, introduzindo o respeito mútuo e a igualdade em todo o
tipo de relações humanas, permite ainda uma abordagem fenomenológica
do humano que dá conta efetiva da condição humana.
Em primeiro lugar, radicar a perceção do humano a partir da posição
aristotélica de ser um animal político, possibilita, segundo Nussbaum, que
O enfoque das capacidades […] mantenha uma conceção unificada da
racionalidade e da animalidade.
E, embora admita que
[…] a dignidade especificamente humana se carateriza em geral por
um certo tipo de racionalidade, essa racionalidade não é algo idealiza-
do que se contrapõe à animalidade; consiste apenas numa ampla varie-
dade de formas de raciocínio prático, que é um dos funcionamentos

152 Ibidem: 96.


153 Ibidem: 97.
Filosofia e Género 227

possíveis dos animais. A sociabilidade é, por outro lado, igualmente


fundamental e igualmente geral. E as necessidades corporais, no-
meadamente a necessidade de assistência, constituem tanto a nossa ra-
cionalidade como a nossa sociabilidade, sendo um aspeto da nossa di-
gnidade e não algo que deva contrastar com ela154.
Todavia, há outro aspeto não menos importante, para uma abordagem
fenomenológica do humano, que esta perceção permite: refiro-me ao
processo transitivo da vida humana que nasce, cresce e amadurece, mas
também envelhece e morre, caraterística que evidencia o seu caráter de
vulnerabilidade:
Isto supõe introduzir na conceção política de pessoa, de que irão deri-
var os princípios políticos básicos, um reconhecimento de que somos
animais temporais e necessitados, que nascemos sendo bébés e termi-
namos com frequência com outras formas de dependência155.
É esta dupla fenomenologia da condição humana – a unificação entre
animalidade e racionalidade e a perspetiva da dimensão temporal de cada
vida humana – que está na base da exigência de outro modo de conceber
a justiça social, insistindo na ideia de que se deve afastar da sua significa-
ção apenas a reciprocidade e o benefício mútuo, defendendo que a justiça
se deve buscar por si própria.
Na verdade, é esse duplo adquirido que permite chamar a atenção de
que a independência, a reciprocidade e a produtividade só são as marcas
definidoras do ser humano e das suas interações se nos ativermos a uma
ideia de ser humano abstrato que não nasce, nem cresce, nem envelhece,
fechando a porta, por esta mesma perspetiva, à conceção de uma socieda-
de inclusiva, onde os direitos básicos de todos e cada um dos seres huma-
nos sejam assegurados, como princípios de justiça.
É nesta perspetiva de conceber o humano como vulnerabilidade e his-
toricidade que Martha Nussbaum considera diferentes tipos de capacida-
des humanas que devem ser desenvolvidas numa sociedade ao serviço do
bem público e de uma justiça efetiva.

154 Ibidem: 167. Sublinhados meus


155 Ibidem: 167.
228 Fernanda Henriques

A literatura como veículo privilegiado para a ética


Em As Mulheres e o Desenvolvimento, Martha Nussbaum teoriza a
partir de duas personagens de ficção, ponto de vista que se inscreve na
sua posição sobre o privilégio da linguagem literária na abordagem de
questões éticas, essencialmente por permitir a atenção às particularidades
e aos contextos do agir.
Para Martha Nussbaum, como já foi referido, o conhecimento moral
depende da articulação entre emoções e intelecto e deve dar a primazia à
perceção das dimensões particulares do agir – situações e indivíduos –
sobre regras abstratas. Nesse sentido, considera alguns romances como
lugares privilegiados da exposição e da compreensão de questões éticas.
Embora afirme na sua obra Love’s Knowledge156, que não quer tratar
nem dos romances em geral, nem da literatura em geral, indo apenas
analisar algumas obras do seu gosto e que considera privilegiadas, toda-
via, a reflexão que desenvolve em torno da relação entre estilo literário e
conteúdo veiculado pode ser a base para defender a articulação essencial
entre o estilo literário e a problemática ética.
A ideia básica que desenvolve centra-se em mostrar e demonstrar co-
mo o estilo literário – nomeadamente alguns romances – constituem uma
via de acesso privilegiada para o conhecimento moral – quer para a sua
expressão, quer para a sua compreensão ou apreensão.
Baseando-se em Henry James e em Marcel Proust, vai explorar, por sua
conta, a posição desses autores, defendendo que todo o texto escrito apre-
senta uma relação orgânica entre forma e conteúdo e que algumas dimen-
sões da vida humana só podem ser acessíveis através de uma expressão
narrativa, marcando, ao mesmo tempo, a importância da receção dos textos
pela leitura. Nesse sentido, sublinhará que num texto é tão relevante a sua
construção por alguém como a sua destinação a uma leitura.
Esta posição é muito importante porque demonstra que o recurso ao
literário não se faz numa dimensão de instrumentalização, por poder
tratar de uma forma mais atraente esta ou aquela perspetiva. Trata-se,
antes, de reconhecer que alguns temas da vida humana só têm uma ex-
pressão correta no uso literário da linguagem, tanto pelo modo como este
uso expressa essas temáticas, como também pelo processo que vão de-
sencadear a quem lê, determinando um certo tipo de relação e de compre-
ensão dos temas em causa. E se o conhecimento moral não pode ser

156 Martha Nussbaum, Love’s Knowledge – Essays on Philosophy and Literature,


Oxford, Oxford University, 1992.
Filosofia e Género 229

apenas acessível ao intelecto, porque as emoções têm um valor cognitivo


essencial para a perspectiva moral, então, o modo como um texto mobili-
za quem o lê na sua integralidade de intelecto e emoção é um factor
determinante da sua adequação e da sua eficácia.
Martha Nussbaum faz uma reflexão a partir da sua própria experiência
académica para pôr em evidência, por um lado, a resistência do literário
em relação ao questionamento filosófico dos textos literários e a recíproca
resistência do filosófico em relação à consideração do valor cognitivo e
moral dos textos literários; por outro lado, explica como a sua investigação
sobre a antiguidade clássica reforçou a sua convicção de que o conheci-
mento moral era bem veiculado também através dos textos literários,
porque encontrou nos trágicos gregos, mais do que no pensamento filosófi-
co, o reconhecimento da importância ética da contingência e um profundo
sentido do significado ético do conflito de deveres e das paixões.
Deste modo, foi a sua investigação na Grécia antiga que a levou à
consolidação da sua experiência vivencial da literatura como fonte de
reflexão e de conhecimento. Segundo ela, para os Gregos, os temas éticos
eram comuns a filósofos e escritores (trágicos) porque ambos estavam
preocupados com a questão de como devemos viver para sermos huma-
nos e, nessa linha, chama a atenção para a função de orientação da vida
prática que o teatro possuía, estando longe de ser apenas um entreteni-
mento. Em seu entender, é neste quadro que se deve interpretar a posição
de Platão contra os poetas e os poemas: era necessário, diz, afastar a
poesia porque ela era tomada como um modelo de vida correta, tendo
uma forte função de orientação da vida pessoal e coletiva.
Assim, para Martha Nussbaum, há um empobrecimento das perspeti-
vas éticas quando se têm em conta, apenas, textos teóricos. E a seu ver, a
não atenção ao literário para o conhecimento moral assenta numa série de
preconceitos epistemológicos e culturais que urge reconhecer e ultrapas-
sar, nomeadamente:
o A fascinação da filosofia ocidental pelos métodos e pelo estilo das
ciências tidos como única expressão do rigor e da verdade.
o O domínio de conceções éticas que apenas consideram uma exposi-
ção convencional dos temas éticos.
o A desconfiança anglosaxónico em relação às emoções.
o A profissionalização da filosofia e a sua concentração nas muralhas
universitárias.
230 Fernanda Henriques

«««««
Tendo em conta o conjunto das ideias de Martha Nussbaum acima
apresentado, parece claro que ela representa um certo arejamento na
maneira de pensar em filosofia, introduzindo no seu interior temas de
fronteira e muitas vezes controversos,
Nesse sentido, e, embora como já foi dito, ainda seja muito cedo para
se poder reconhecer se o acesso sistemático das mulheres à prática da
filosofia introduz nesta e no seu desenvolvimento alguma ou algumas
alterações estruturais, não parece haver dúvida de que qualquer das
autoras citadas neste capítulo não deixou o campo teórico da filosofia
como o havia encontado, semeando, pelo menos, dúvidas e inquietações
numa certa paz canónica.
BIBLIOGRAFIA

Duas Notas Prévias


1 – De acordo com o que foi dito na nota 1, segue-se a lista de textos já
publicados de onde tirei as ideias, sempre, e as palavras, muitas vezes. Há
dois casos em que se faz aqui a transcrição quase integral do texto ante-
riormente publicado, mas estão ambos devidamente assinalados
“A penumbra tocada de alegría: a razão poética e as relações entre a filosofia
e a poesia em María Zambrano”, Philosophica 11 (1998): 49-61
“Da possível fecundidade da racionalidade de Paul Ricoeur para o pensamen-
to feminista”, in M. Luisa Ribeiro Ferreira (org.), Pensar no feminino, Lis-
boa, Edições Colibri, 2001: 289-295
“Subsídios epistemológicos para pensar a temática do empowerment e da
cidadania das mulheres: Maria Zambrano e Paul Ricoeur”, Ex aequo, n.º 7
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“As teias da razão: a racionalidade hermenêutica e o feminismo”, in M.ª
Luísa Ribeiro Ferreira (org.) As teias que as Mulheres tecem, Lisboa, Colibri,
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“Maria Zambrano e as metáforas do coração”, in Aavv, Poiética do Mundo,
Lisboa, Colibri, 2001: 621-631.
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232 Fernanda Henriques

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Debt to Women, A Feminist Approach to Ricoeur’s Thought”, Études
Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 4, no 1 (2013): 7-20. Acessível on line.

2. Alguns esclarecimentos sobre a organização da bibliografia.


Em alternativa a um critério investigativo – dando conta do estado da
arte em ordem a uma temática –, a presente bibliografia organiza-se por
um critério hermenêutico – dando conta das obras que foram contexto ou
intertexto da investigação que sustenta o texto agora publicado.
Por outro lado, a presente bibliografia apenas refere os textos integra-
dos no que se poderia designar por Estudos Feministas. Os textos de outra
índole estão todos devidamente identificados em notas de rodapé.
Do ponto de vista formal da apresentação das obras selecionadas, há
que explicitar dois aspetos:
1. As obras vão ser organizadas em 3 tópicos: (1) Obras Gerais; (2)
Estudos/Ensaios ligados ao feminismo: (3) obras de/sobre autoras
mais diretamente tratadas no corpo do texto.
2. Indicar-se-ão todos os trabalhos de autores e autoras portugueses que
possam ter alguma relação com o que está em causa, na tentativa de
dar visibilidade ao nosso património nesta área de estudos.

Obras Gerais
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Albistur, Maité et Armogathe, Daniel, Histoire du feminisme français, Paris,
Éditions des femmes, 1977.
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amento bibliográfico, tematicamente indexado, sobre publicações pe-
Filosofia e Género 233

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1 Sendo uma – e a primeira – revista feminista publicada entre nós, os 32 números,


publicados até 2015, devem ser tidos em linha de contra. A sua especificação
aparecerá ao longo do texto sempre que for o caso.
2 É também uma revista que se ocupa de temáticas ligadas às mulheres, pelo que se
deve atender aos 34 números já publicados.
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