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Situações Clínicas I • 17
passar de informações parciais do nível descritivo para práticas de cura o
que acontece?” (p. 105). É justamente essa transposição o que queremos
esclarecer neste texto, mostrando o modo como a clínica psicológica pode
acontecer sem assumir uma prescrição. Com relação à cura, poderíamos
afirmar que não é esse o objetivo da clínica psicológica? Sim e não. Não,
isso quer dizer, que não sabemos de antemão o que seria curar-se, dado a
singularidade no que diz respeito à decisão que cada um assume em sua
existência. Sim, uma vez que queremos, com a relação que se estabelece
na clínica, sustentar um espaço de pensamento que se demora ao pensar
sobre as orientações do mundo que nos aprisionam em um dever ser, obs-
curecendo o caráter de poder ser que todos nós somos. A situação clínica
que traremos aqui nos mostra, justamente, o aprisionamento por meio da
cristalização da identidade feminina e a consequente queixa de solidão
quando essa identidade não se realiza.
Ao pensar a clínica psicológica de um ponto de vista distinto ao
das ciências naturais que operam com a noção de causa – efeito, po-
sicionando de antemão o analista como o eu faço da relação, vamos
tomar a concepção de Dasein tal como desenvolvida por Heidegger
(1927/2003). O filósofo, ao redefinir o conceito de ser humano com
Dasein, estabelece outro modo de apreender o tradicional conceito fi-
losófico de necessidade e possibilidade. Em Ser e tempo, o filósofo in-
troduz a concepção de decisão e do deixar as coisas aparecerem por
elas mesmas. Stein (2012), assim, resume essa passagem: “A condição
causa-efeito ‘violenta’ a existência humana, pois a ignora” (p.106). Por
isso Heidegger em Ser e tempo substitui a expressão “liberdade” pela
ideia de decisão. E é justamente a ideia de decisão discutida ontologica-
mente pelo filósofo que discutiremos onticamente na clínica como não
se tratando de uma mera escolha.
A cristalização da identidade feminina e a consequente queixa de
solidão, por parte das mulheres, torna-se cada vez mais frequente nos
consultórios de psicologia, por esse motivo é que essa questão se apre-
senta com o mérito de ser pensada. Falar de identidade feminina não
aponta para uma generalização? Tomar a queixa de solidão que aparece
em alguns consultórios de psicologia não é um caminho que conduz a
algo que diz respeito à singularidade? Para levar a cabo essa discussão,
precisamos recorrer a Heidegger, ou melhor, a sua fenomenologia her-
menêutica. Surge, então, a segunda questão, de como podemos lidar
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própria que no mundo moderno pode receber a alcunha de uma tarefa
totalmente da ordem do inútil. No entanto, no mundo em que nos en-
contramos, o espaço do necessário e do inútil da tarefa própria aparece
em uma extrema restrição e totalmente velado. A solidão é tomada
como algo que deve ser evitado a qualquer preço. E o preço é alto, exi-
gindo que se preencha esse silêncio com o burburinho, com a ocupa-
ção excessiva, por isso parece necessário e imprescindível à presença do
outro com quem podemos estabelecer uma relação de preenchimento,
de modo a que não se abra o espaço do silêncio e da solidão.
Sabemos que o atendimento clínico em Psicologia é destinado a
pessoas que a ele recorrem, na maioria das vezes espontaneamente, por
diferentes motivos, dentre eles a solidão, o luto e o abandono. Essas
situações passaram a ser compreendidas pela ciência psicológica como
traumáticas, portanto, que devem ser evitadas e quando não forem pas-
síveis de serem evitadas, devem ser corrigidas. E é, geralmente, na in-
tervenção corretiva que se abre um espaço para a atuação do psicólogo
clínico. As pessoas que sofrem pelo trauma saem em busca da escuta e
dos cuidados de um profissional que possa corrigir aquilo que lhe traz
sofrimento. Essa interpretação e consequente atuação clínica partem
da naturalização da relação causa-efeito. Assim efetua-se uma genera-
lização na qual a singularidade é desconsiderada. Mas, também, pode
ocorrer ao contrário, tudo pode ser tomado como da ordem de uma
particularidade, recaindo-se em um relativismo e subjetivismo extre-
mo, sem lugar para aquilo que tem um caráter universal.
Na psicologia, que se sustenta na universalização de seus pressu-
postos, tende-se a pensar que a identidade feminina é algo da ordem de
uma determinação biológica que em um paralelismo estabelece o psí-
quico. Assim, pensam-se as questões trazidas pelas mulheres por meio
de uma teoria psicológica sobre o psiquismo feminino. Em uma pers-
pectiva existencial em psicologia, consideramos que nem o biológico e
nem o psíquico determinam os modos de ser do homem, ao contrário
ambos se constituem pelas interpretações desses elementos em uma
configuração historicamente constituída. Existência, então, diz respei-
to às possibilidades mais originais daquele que existe no seu encontro,
também mais originário, com o mundo. Logo de início, nenhuma iden-
tidade caracteriza o feminino, ao contrário, é no próprio existir que as
identidades se constituem e também podem se cristalizar.
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constitui em um apoio, suporte e tutela e nele assume uma identidade.
Mas é exatamente esta busca e esse encontro que o coloca na cadência
do mundo e, o existente, esquecendo-se do seu próprio ritmo, acaba
obscurecendo o seu caráter de poder ser. São as situações limites que,
ao entrarem na articulação do ser-aí e mundo, rompem com os senti-
dos sedimentados, abrindo, então, a possibilidade de questionamentos
da situação em que nos encontramos. Primeiramente, cabe pensar-
mos sobre a cadência que se impõe pelas orientações sedimentadas
em nosso horizonte histórico. Como essas determinações surgem nas
queixas dos analisandos, no modo de decadência ao ritmo do mundo,
obscurecendo seu caráter de poder ser? Torna-se pertinente ressaltar
que a clínica psicológica em uma inspiração fenomenológica herme-
nêutica se estabelece muito mais em uma negatividade do que pro-
priamente a partir de uma identidade positiva. Isso consiste em per-
mitir transparecer àquele que está submetido a um acompanhamento
clínico o caráter de nadidade, de indeterminação e de incompletude
de sua existência. Para poder mostrar como concretamente se dá o
acontecimento da clínica, vamos trazer à discussão uma situação mui-
to presente nas queixas de mulheres que buscam a clínica psicológica,
o medo da solidão.
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A ternura e a agonia de Andrômaca, esposa e mãe símbo-
lo do autêntico amor conjugal; a amabilidade, a doçura, a
personalidade e a paixão recatada de Nausícaa; a firmeza e
a respeitabilidade inspirada pela rainha Arete; a afeição e o
devotamento da velha ama Euricléia; e, por fim, a paciên-
cia, a astúcia e a fidelidade de Penélope desfilam diante de
nossos olhos suscitando admiração, encantamento e uma
grande simpatia. (Brandão, 1989, p. 13)
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do mundo onde se encontravam. Às mulheres dessa época não era pos-
sível uma vida profissional, nem mesmo uma vida sem que um homem,
seja pai, marido, irmão, cunhado, as mantivesse. Elas, tão logo se torna-
vam prontas para o casamento, teriam que se casar. Assim eram traça-
dos seus destinos. Assim mesmo, Anna ousou, abandonou por comple-
to o apoio do impessoal e seguiu o caminho que a paixão lhe indicava.
Por isso, teve que viver as consequências daquilo que determinara ela
própria seguir, sem a tutela do mundo. Ela, totalmente impedida de ver
seu filho e de frequentar os locais em que a sociedade russa se encon-
trava, ficou completamente só. Essa situação servia de exemplo para as
outras mulheres, de forma que ou se comportavam de modo “correto”
ou teriam o mesmo destino de Anna. O temor pelo destino anunciado
mantinha-as na cadência do mundo. Foi o que aconteceu com Dolly.
Esta, por temer ser uma mulher divorciada, mesmo que infeliz e sentin-
do-se envelhecida precocemente, resolve manter-se no casamento.
E hoje? O que acontece a mulher? Muitas mulheres, mesmo que
tendo inúmeras possibilidades, como por exemplo, ter filhos mesmo
que solteira, ascender na vida profissional, entre outras, ainda sofrem
pelo fato de não conquistarem um relacionamento estável. O que está
em questão, nesses casos? Para tentar esclarecer o que está em jogo na
queixa dessas mulheres, temos que acompanhar o fenômeno tal como
aparece no relato dessas mulheres. E se a questão ainda é o temor, já
que a retórica do medo frequentemente aparece em diferentes veículos
de comunicação, dizendo que você só está protegida e feliz se estiver
acompanhada, o que fazer diante daquilo que tememos? Em tese, cos-
tuma-se dizer que frente ao medo é preciso fazer surgir a coragem, mas
o que dizem as mulheres que de algum modo se queixam da solidão?
Muitas se referem à frustração pelo projeto idealizado que não
se concretiza. Esse projeto diz respeito à constituição de uma família.
Dessa situação muitas outras se desdobram, tais como sentimentos de
rejeição, exclusão, abandono. Essas mulheres, muitas vezes, perguntam
o que há de errado com elas e em que consiste a sua culpa. Todos esses
argumentos, embora dolorosos, ainda apontam para uma esperança de
que uma vez sanados os erros, a culpa e livre do ideal a cumprir, o pro-
jeto se realize. Percebemos uma insistência, ainda que por diferentes
modos de conquistar o projeto idealizado, em um total obscurecimento
de outras possibilidades que se encontram na gênese de sua existência,
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ou rearticulação de sentido não acontece pelo fato de que assim se quer.
Nem se dá pelo fato do outro da relação se modificar ou pela correção
do erro. Logo o que acontece na clínica que denominamos de existen-
cial? É esse o tema que desenvolveremos a seguir. Vale ressaltar que os
sete itens que apresentaremos abaixo foram extraídos dos acontecimen-
tos que apareceram nesta situação clínica. A ordem dos acontecimentos,
não foram, necessariamente, consecutivas. A forma como foram organi-
zadas tem uma finalidade exclusivamente didática.
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de existir, que ela própria não permaneça subordinada a esse mesmo
horizonte histórico de redução de sentido (p.191).
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de que o espaço da clínica se efetive como espaço de transformação é
necessário que analista e analisando se abram para que algo ali possa
acontecer. Assim, é preciso que haja interesse e afeição (phatos). Para
Heidegger (1920/ 2010), é a participação no mesmo phatos que nos liga
uns aos outros, trata-se do sentido mais originário da empatia. E, as-
sim, compartilhando desse espaço, podemos nos abrir para que haja
uma disposição para a transformação. Faz-se necessário uma dupla
apropriação, o analisando tem que se deixar apropriar pelo espaço para
que o próprio espaço lhe devolva o aí que é o seu.
Como podemos pensar em uma recuperação ou superação de
uma fissura ou inautenticidade sem uma estrutura psíquica de base que
detenha em si mesma a “verdade singular” a qual tem que ser encontra-
da para o reestabelecimento do psiquismo? Ou, ainda, sem uma adap-
tação do comportamento? E, ainda, sem a premissa de um trauma no
passado que inviabiliza a vida fluida? A clínica que mantém a ideia de
uma interioridade psíquica tem como base o seu caráter confessional,
que acredita que com a revelação da verdade vem a libertação (Cabral,
2012). O analisando, inserido nessa perspectiva, vem em busca das ver-
dades que estão escondidas em sua interioridade ou então em busca
das medidas corretivas que o possibilitem realizar seus projetos.
O clínico que atua em uma perspectiva fenomenológico-existen-
cial distancia-se totalmente dessa forma de atuação, mesmo porque
acredita que desse modo vai tranquilizar o analisando, dando-lhe a sua
tutela, assegurando-o da possibilidade de conquistar seus objetivos, des-
de que ele siga o método certo. A clínica existencial caracteriza-se mui-
to mais por uma negatividade, não há nada em que esse clínico possa
orientar, mesmo porque a verdade é algo que se conquista no momento
mesmo da existência. Logo, a verdade é essencialmente abertura e o aí
existencial é o fenômeno mais originário da verdade. Ser verdadeiro é
ser desocultado na medida em que se é em um mundo. Isso torna o
exercício clínico não um ato confessional que na confissão conquista a
consciência e a liberdade. O que acontece é uma conquista e reconquista
incessante de si, que no final das contas é pura indeterminação em seu
caráter de poder ser. A clínica psicológica existencial se direciona no
sentido de que a relação aconteça de modo a que o analisando possa
encontrar a medida singular da existência que é sua. Isso diz respeito ao
espaço onde o querer e o poder se rearticule, compassadamente.
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sua queixa de solidão, medo, abandono e a dor do luto pelo projeto
de relação interrompido.
Flávia: Meu namorado e eu terminamos o relacionamento que era
muito bom e eu me sentia muito feliz com ele. Ele disse que está muito
novo para um relacionamento sério e que mesmo gostando de mim, pre-
feria viver outras coisas que a vida proporciona. Isso tem um mês, no iní-
cio, eu pensei que era passageiro, mas agora já o vi com outras meninas e
parece que terminou mesmo. Desde que rompemos, não consigo dormir,
acordo com a sensação de falta de ar, não consigo estudar. Já emagreci 5
quilos. Estou sofrendo muito. Sempre pensei que nosso relacionamento
era para sempre. E estou vendo que não foi.
Analista: Então é o rompimento do namoro que está doendo muito?
Flávia: Doendo é pouco, dilacera. Parece que tudo acabou para
mim. Não vejo mais graça em nada. Até ficar com os amigos, viajar, coi-
sas que eu gostava tanto, agora não quero. Mas também não quero ficar
em casa. Nunca quero estar onde estou. Não tenho lugar mais no mundo.
Não sei o que vai acontecer comigo. Tenho medo, pavor.
Analista: O medo, o pavor te deixa intranquila. Mas do que você
tem tanto medo?
Flávia: Eu não sei. Acho que tenho medo de perdê-lo totalmente. En-
quanto que ele não estava com outra menina, eu estava sofrendo, mas com
esperança, ou melhor, certeza de que ele voltaria.
Analista: Sem esperança a dor fica mais aguda. Sem esperança res-
ta o que?
Flávia: Nada. Minha vida ficou vazia. Todas as minhas amigas na-
morando e eu sozinha. Não gosto de ser a solteirona do grupo. Eu sei todos
me dizem você é jovem, têm seus estudos, outros namorados irão aparecer.
Nada disso me conforta. Sinto-me mal, vazia.
Analista: E antes do rompimento sua vida era plena? O namoro
preenchia a sua vida?
Flávia: Antes eu namorava, tinha um companheiro, um amigo. Ti-
nha o grupo de amigos, tinha meus estudos. Enfim, tinha uma vida cheia
de coisas. Eu pensava que seria para sempre assim. Nunca pensei que esse
namoro fosse acabar.
O analista, a fim de investigar de que modo Flavia construía suas
ilusões, pergunta: E o que fez você acreditar que esse relacionamento se-
ria para sempre?
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Pastor da Igreja e nós temos que dar o exemplo. Acontece que minha mãe
descobriu as pílulas no meu armário e isso deu muita confusão. Meu
pai disse que eu não era mais a filhinha dele, minha mãe disse que se eu
era mulher para manter um relacionamento sexual, também teria que
me responsabilizar pelas tarefas da casa. Tive que conciliar meus estudos
com as obrigações das tarefas da casa. Minha vida modificou totalmente.
Mas não me importava, porque nós dois ficamos mais juntos ainda. Só
que agora, ele terminando comigo, meus pais dizem que agora eu sou
uma mulher e que os outros rapazes só vão se aproximar para se aprovei-
tarem de mim. Vejo um destino triste para mim, possivelmente, vou ficar
solteirona, sozinha. E a solidão muito me amedronta. Às vezes, acho que
ele vai se divertir um pouco, mas depois voltará para mim. Mas quando
telefono para ele e ele é grosseiro, diz para eu dar um tempo, que não quer
falar comigo, perco a esperança. Penso: “Será que ele precisava ser tão
grosseiro assim?”
Analista: Ele dá a entender que você não deve ter esperança, é isso?
Flávia: É isso. E é isso que faz doer ainda mais. (Permanece cho-
rando por um longo tempo).
Analista: Sem esperança dói mais, não é Flávia?
Flávia: Dói. Mas ter esperança também é ruim, a todo momento
caio do cavalo. Preciso pensar em outras coisas. Preciso encontrar outro
sentido em minha vida.
Analista: Mas qual?
Flávia: Ter amigos, estudar, sair. Não sei, mas preciso fazer outras
coisas.
Analista: Como?
Flavia: Tenho umas amigas que não eram do grupo. Elas ficaram
muito aborrecidas quando comecei a namorar e me afastei delas. Mas,
algumas delas já me procuraram e me chamaram para sair. Tenho que
me animar e sair com elas. Tenho que parar de ficar esperando que um
dia ele volte.
Em muitos outros encontros Flávia relatava todos os indícios que
mostravam que o rapaz ainda poderia estar interessado em voltar. Em
outros encontros ela também relatava os indícios em que ele deixava
claro seu desinteresse.
Após algum tempo, Flávia traz o seguinte assunto: Há um rapaz
que está se interessando por mim. Ele era nosso amigo e sempre mostrou
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todos os dias, fazer questão de te encontrar, te dar presentes. E quais são
os indícios de que talvez não seja você quem ele escolherá?
Flávia permaneceu em silêncio, por um tempo, e começou a la-
crimejar. O analista se manteve em silêncio, deixando um espaço para
que Flávia no silêncio, sem se distrair com o falatório, pudesse recordar
essas situações. Ela retorna, depois de um longo tempo e diz: Muitos.
E começa em tom mais ameno e demorado a descrever todos: ele só se
encontra comigo às escondidas, dia dos namorados é com ela que ele fica.
É ela que ele respeita. Sempre vai com ela à missa, independente se é na
mesma missa que eu vou.
O Analista na tentativa de destruir a ilusão, então, diz: Todos esses
são indícios de que ele pode não escolher você.
Flavia responde: São. E tem mais ainda. Ele, também, já conta
para os outros que a outra é a namorada e comigo ele se diverte. Isso dói.
Dói muito. Mas não falo nada porque pelo menos tenho quem telefone
para mim, quem está comigo.
Analista: Ainda é melhor, mesmo sabendo o que ele fala de você, mes-
mo você não gostando, do que ficar totalmente sem ninguém.
Flávia: É. (Silencio longo). É a segunda vez que isso me acontece.
Parece até que eu ter alguém para mim é impossível. Estou destinada a
ser amante? Talvez seja isso. Acho que tenho que me conformar.
Analista: Ou amante ou solidão, parece que são as únicas saídas
que você vê para você. Ok. Até a próxima semana.
Na clínica, abrir o caráter de poder ser de toda e qualquer exis-
tência pode acontecer na medida em que o analisando percebe o quan-
to restringe suas possibilidades. Flávia chega à sessão parecendo mais
animada, sorrindo e a fisionomia não se mostrava tão abatida: pensei
muito no que você falou na última sessão. Posso ser amante, posso ficar
sozinha, pode aparecer outra pessoa na minha vida. Pode muita coisa,
depende daquilo que eu fizer.
Analista: Não entendi, sobre o que você está falando?
Flávia: Sobre a última sessão. Você disse que não havia saída para
mim e eu estou te dizendo que há saída. Não vou ficar lamentando que es-
ses caras imaturos, bobocas sejam a última oportunidade na minha vida.
Analista: E não são?
Flávia: Claro que não e você sabe disso. Sou jovem, ainda irei para a
faculdade e é disso que tenho que me ocupar. Não tenho que ficar lamen-
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zia os laços da ilusão. Com isso, vivia o luto, na medida em que se dava
conta que seu projeto era apenas algo que estava em seu imaginário.
Acabou se relacionando com outros rapazes e quando não dava certo,
lembrava-se de como era a relação com o seu primeiro namorado. Ou-
tras vezes, a aproximação do segundo rapaz com quem se relacionou
suscitava uma lembrança. Mas, Flávia se dava conta que também não
eram relações como aquelas que ela queria. Ela pensava no vestibular,
na faculdade e na vida profissional. Agora, não era só o casamento que
a atraia, via a vida plena de possibilidades.
Após dois anos de psicoterapia, Flávia já se encontrava com 17
anos e já estava na faculdade. Ela mostrava interesse nos estudos e es-
tava totalmente envolvida com o seu futuro profissional. Ela conhecera
outros rapazes, mas agora sem ficar planejando casamento e filhos. No
convívio com os amigos da Universidade descobriu que não era infe-
rior nem diferente porque não era mais virgem e, então, permitiu-se
ter outras experiências sexuais agora não mais se sentindo usada, nem
tendo que se relacionar para agradar o outro. Enfim, como ela mesma
dizia, sentia-se livre. Livre dos preconceitos, das verdades idealizadas
da identidade feminina cristalizada.
A clínica existencial prosseguiu no sentido da reconquista da
medida da existência singular: espaço onde o querer e o poder se re-
articulam. Flávia, agora, não lidava com os relacionamentos de modo
a seu querer estar em descompasso com o seu poder. Na faculdade,
conheceu um rapaz que ela mesma denominava de maduro. Ela sabia
aguardar os acontecimentos, não se deixava mais seduzir pelas pala-
vras, como ela mesma dizia, deixava que as atitudes mostrassem aquilo
em que a relação se constituía.
Flávia: Hoje, namorando Pedro, vejo a situação passada como fruto
de minha imaturidade e das influências que os valores da igreja exerciam
sobre as minhas decisões. Meus pais não participam de nada. É certo
que eles não me perdoaram. Eu compreendo, a moral da igreja é muito
esmagadora. Eu decepcionei e pronto, mas também não quero viver para
não decepcionar. Quero viver para viver. A relação com Pedro é mais leve.
Ele tem seus projetos, eu tenho os meus, sinto-me bem quando estou com
ele, mas também me sinto bem quando não estou. Será o que tiver que
ser. Eu faço a minha parte, sou sincera, digo o que quero e o que não que-
ro, o que gosto e o que não gosto. Ele também e, assim, vamos seguindo
Considerações finais
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sendo naturalmente dada. Tratava-se de uma restrição de sentido ou
de uma apropriação do sentido sedimentado pelo mundo? Ela exercia
o cuidado de si ou entregava o seu cuidado ao outro? Desconhecia seu
limite, seu necessário? Ela existia no descompasso do querer e do poder
que eram seus? Ao alcançar o limite do querer em meio ao poder é que
Flávia encontra a importância daquilo que se configura na finitude, ou
seja, nos seus limites. A restrição do querer, que não leva em conta o
poder, obscurece as possibilidades dadas pelo mundo. É na descoberta
de seu caráter de poder ser que outras possibilidades se abrem como
tais. Na situação de Flávia, ela precisava descortinar a possibilidade de
que casar-se não era algo que aconteceria por que assim ela queria. Ca-
sar-se, ter um namorado era uma possibilidade bem como não casar-se
ou não ter um namorado.
Assim, Flávia não temia mais a solidão e o silêncio. Ela ficava frente
a frente com seu caráter de poder ser. Diferentemente do que ela temia,
descobriu que dessa forma experimentava a liberdade de se entregar à
existência e não mais permanecer na luta para que as coisas se dessem
ao modo da ditadura do impessoal.
O analista, para tanto, prosseguia de modo a dar apenas aquilo
que ele não tinha. O analista ao dar o que tem, apenas dá o que deve
ser, algo da ordem de uma qualificação moralmente dada. Ao dar o que
não tem, o analista recua de modo a que o outro possa se libertar para
ele mesmo. (Leão, 2013). Por isso, o analista não atua por meio de uma
funcionalidade e instrumentalização e sim de uma posição envergo-
nhada, de recuo frente à decisão do outro.
Ref erências
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