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Solidão, cristalização da identidade


feminina e a clínica psicológica existencial

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Com o título clínica psicológica existencial o que queremos mos-


trar é, primeiramente, como poder atuar por meio de uma perspectiva
em psicoterapia que opera uma transposição da filosofia para o campo
psicoterapêutico. A filosofia da qual traremos, aqui, será basicamente a
ontologia fundamental de Heidegger, principalmente, aquela que se faz
presente em Ser e tempo. A transposição da filosofia para a atividade
clínica não é uma novidade, Binswanger foi o primeiro a introduzir
o pensamento da Heidegger no modo de pensar a psiquiatria, como
esclarece Stein (2012):

Sobretudo Binswanger, em seus volumosos livros, persiste


em extrair de Ser e tempo material para refazer a Psiquiatria,
e de transportar, do campo que ele chama filosófico para
o campo empírico, médico ou terapêutico elementos que
pudessem modificar a relação clínica (p.104)

A transposição do modo de pensar de Heidegger para ao modo


de pensar na prática clínica vem sendo pensada por Stein (2012), que
afirma categoricamente já ter se efetivado há muito tempo, no entanto,
há muitas questões nas quais precisamos nos deter, são elas: a descrição
e a prescrição e a relação analista e analisando deslocada da determi-
nação causal.
Uma das questões na qual precisamos nos deter diz respeito ao
caráter descritivo e enunciador do modo de ser do homem presente
em Ser e tempo e, no entanto, a clínica psicológica a princípio tem um
caráter prescritivo com o objetivo de cura. Uma questão que se impõe é
como passar da descrição para a prescrição? Essa questão em seu funda-
mento diz respeito à ética entre ser em seu caráter descritivo e dever – ser
em seu caráter prescritivo. Stein (2012) ao tratar desse tema pergunta “Ao

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passar de informações parciais do nível descritivo para práticas de cura o
que acontece?” (p. 105). É justamente essa transposição o que queremos
esclarecer neste texto, mostrando o modo como a clínica psicológica pode
acontecer sem assumir uma prescrição. Com relação à cura, poderíamos
afirmar que não é esse o objetivo da clínica psicológica? Sim e não. Não,
isso quer dizer, que não sabemos de antemão o que seria curar-se, dado a
singularidade no que diz respeito à decisão que cada um assume em sua
existência. Sim, uma vez que queremos, com a relação que se estabelece
na clínica, sustentar um espaço de pensamento que se demora ao pensar
sobre as orientações do mundo que nos aprisionam em um dever ser, obs-
curecendo o caráter de poder ser que todos nós somos. A situação clínica
que traremos aqui nos mostra, justamente, o aprisionamento por meio da
cristalização da identidade feminina e a consequente queixa de solidão
quando essa identidade não se realiza.
Ao pensar a clínica psicológica de um ponto de vista distinto ao
das ciências naturais que operam com a noção de causa – efeito, po-
sicionando de antemão o analista como o eu faço da relação, vamos
tomar a concepção de Dasein tal como desenvolvida por Heidegger
(1927/2003). O filósofo, ao redefinir o conceito de ser humano com
Dasein, estabelece outro modo de apreender o tradicional conceito fi-
losófico de necessidade e possibilidade. Em Ser e tempo, o filósofo in-
troduz a concepção de decisão e do deixar as coisas aparecerem por
elas mesmas. Stein (2012), assim, resume essa passagem: “A condição
causa-efeito ‘violenta’ a existência humana, pois a ignora” (p.106). Por
isso Heidegger em Ser e tempo substitui a expressão “liberdade” pela
ideia de decisão. E é justamente a ideia de decisão discutida ontologica-
mente pelo filósofo que discutiremos onticamente na clínica como não
se tratando de uma mera escolha.
A cristalização da identidade feminina e a consequente queixa de
solidão, por parte das mulheres, torna-se cada vez mais frequente nos
consultórios de psicologia, por esse motivo é que essa questão se apre-
senta com o mérito de ser pensada. Falar de identidade feminina não
aponta para uma generalização? Tomar a queixa de solidão que aparece
em alguns consultórios de psicologia não é um caminho que conduz a
algo que diz respeito à singularidade? Para levar a cabo essa discussão,
precisamos recorrer a Heidegger, ou melhor, a sua fenomenologia her-
menêutica. Surge, então, a segunda questão, de como podemos lidar

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com os riscos da transposição do campo filosófico para o campo psico-
terapêutico? O caminho que vamos seguir aqui diz respeito ao modo
específico de pensar que tomaremos da ontologia heideggeriana, ou
seja, o modo fenomenológico – hermenêutico. A hermenêutica de Hei-
degger pressupõe circularidade, que preserva a relação entre universal
e singular. O singular diz respeito a que o Dasein é sempre meu e que a
compreensão é um existencial que se expressa sempre singularmente.
Mas a indeterminação originária do Dasein torna necessário que ele
se constitua pelos sentidos que se articulam no mundo que é seu. As
orientações do mundo, ou seja, o acontecimento – apropriativo cons-
titui-se no caráter universal que sustenta as possibilidades singulares
de ser.
Assim, a queixa da solidão diz respeito às expressões singulares
que se sustentam no modo que a identidade feminina se cristalizou em
nosso horizonte histórico. Há muito se consolidou a tese de que toda
mulher necessita de um homem que lhe dê e confirme a sua identidade
feminina. Essas teses aparecem nos mitos, nas histórias infantis, nos
contos, romances e até em teorias acerca do psiquismo humano A in-
terpretação hermenêutica com a qual lidaremos na clínica diz respeito,
primeiramente, a conhecer as determinações do horizonte histórico
em que no encontramos. Sem deixar, no entanto, de atentarmos ao
modo como cada um singularmente corresponde a essas determina-
ções do mundo. E é nesse jogo do dever ser e poder ser que o singular
pode emergir como ser das possibilidades. É, justamente, esse jogo que
será mostrado na situação clínica que discutiremos adiante.
A clínica psicológica existencial se sustenta na noção de cuidado
que podemos acompanhar em Ser e tempo, trata-se do caráter univer-
sal das descrições heideggeriana, no entanto, não é possível um proces-
so psicoterapêutico sem singularidade. De acordo com o que diz Stein
(2012): “A preservação da singularidade do indivíduo, ao mesmo tempo,
a possibilidade de pensá-lo em sua generalidade, tal como é desenvolvido
em Ser e tempo, põem-nos em uma relação clínica diferente” (p.107).
Ainda, para poder apresentar o tema solidão, que também com-
põe o título deste texto, esse deve ser pensado. Iniciemos pelo que en-
tendemos aqui por solidão. Fogel (1999) pensa a solidão totalmente
articulada ao silêncio e diz que é nesse espaço de liberdade que o ho-
mem tem a possibilidade de encontrar a sua necessidade, a sua tarefa

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própria que no mundo moderno pode receber a alcunha de uma tarefa
totalmente da ordem do inútil. No entanto, no mundo em que nos en-
contramos, o espaço do necessário e do inútil da tarefa própria aparece
em uma extrema restrição e totalmente velado. A solidão é tomada
como algo que deve ser evitado a qualquer preço. E o preço é alto, exi-
gindo que se preencha esse silêncio com o burburinho, com a ocupa-
ção excessiva, por isso parece necessário e imprescindível à presença do
outro com quem podemos estabelecer uma relação de preenchimento,
de modo a que não se abra o espaço do silêncio e da solidão.
Sabemos que o atendimento clínico em Psicologia é destinado a
pessoas que a ele recorrem, na maioria das vezes espontaneamente, por
diferentes motivos, dentre eles a solidão, o luto e o abandono. Essas
situações passaram a ser compreendidas pela ciência psicológica como
traumáticas, portanto, que devem ser evitadas e quando não forem pas-
síveis de serem evitadas, devem ser corrigidas. E é, geralmente, na in-
tervenção corretiva que se abre um espaço para a atuação do psicólogo
clínico. As pessoas que sofrem pelo trauma saem em busca da escuta e
dos cuidados de um profissional que possa corrigir aquilo que lhe traz
sofrimento. Essa interpretação e consequente atuação clínica partem
da naturalização da relação causa-efeito. Assim efetua-se uma genera-
lização na qual a singularidade é desconsiderada. Mas, também, pode
ocorrer ao contrário, tudo pode ser tomado como da ordem de uma
particularidade, recaindo-se em um relativismo e subjetivismo extre-
mo, sem lugar para aquilo que tem um caráter universal.
Na psicologia, que se sustenta na universalização de seus pressu-
postos, tende-se a pensar que a identidade feminina é algo da ordem de
uma determinação biológica que em um paralelismo estabelece o psí-
quico. Assim, pensam-se as questões trazidas pelas mulheres por meio
de uma teoria psicológica sobre o psiquismo feminino. Em uma pers-
pectiva existencial em psicologia, consideramos que nem o biológico e
nem o psíquico determinam os modos de ser do homem, ao contrário
ambos se constituem pelas interpretações desses elementos em uma
configuração historicamente constituída. Existência, então, diz respei-
to às possibilidades mais originais daquele que existe no seu encontro,
também mais originário, com o mundo. Logo de início, nenhuma iden-
tidade caracteriza o feminino, ao contrário, é no próprio existir que as
identidades se constituem e também podem se cristalizar.

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Para pensar o modo como a identidade feminina foi se constituin-
do e cristalizando historicamente, acompanharemos como a posição
social da mulher foi se modificando e cristalizando desde o período
Neolítico II (3000 a.C 2500 a.C) ao Contemporâneo. Para assim, po-
dermos nos aproximar de uma situação especifica muito presente nas
crises existenciais presentes em nosso horizonte histórico, as queixas de
mulheres com relação à solidão. Cabe ressaltar que temos a oportunida-
de de acompanhar mulheres de 15 a 60 anos, tanto em clínicas privadas
como em atendimentos comunitários, que buscam a clínica psicológica.
Mas como poder entender o que está em questão no sofrimento des-
sas mulheres. Elas referem-se ao fato de não conseguirem conquistar
ou manter relacionamentos amorosos. Isso acaba resultando em desâni-
mo e desinteresse em todas as áreas de suas vidas. Essa modalidade de
sofrimento é, frequentemente, interpretada pelas diferentes psicologias
como algo da ordem de uma menos valia ou de uma fissura psíquica que
não permite a realização do projeto dessas mulheres. Aqui trataremos
dessa temática como algo que se teme. E que esse temor se constitui pelo
discurso de nosso tempo que, a todo o momento, nos diz que temos que
conquistar a felicidade, e feliz é aquele que tem “a família Doriana”.
Em uma perspectiva existencial que abandona totalmente a ideia
de uma estrutura psíquica que subjaz todo o modo de sentir, pensar e
agir do homem, a ideia de castração, tão cara à psicanálise, é totalmente
abandonada, dando lugar à oportunidade de acompanhar o fenômeno,
desvelando outras possibilidades de compreensão do mesmo. E, assim,
na clínica existencial, ao abandonar-se a ideia de castração, damos voz
a experiência e ao sentimento de solidão presente nas mulheres que
buscam a clínica para que elas possam se libertar desse aprisionamento,
ou seja, desse sentimento de solidão que as acompanha.
Mas, uma vez que, não se parte de uma estrutura e dinâmica psí-
quica que dão lugar aos traumas e aos complexos, como dar suporte a
uma perspectiva em psicologia que parte da ideia da inexistência de
um psiquismo e retoma a existência em sua dinâmica performática?
Para poder sustentar esse modo de pensar é que vamos dialogar com
os pensadores que já se ativeram a essa questão. Dentre eles, elegemos
a fenomenologia hermenêutica de Heidegger.
Para Heidegger (1927/2003), o ser-aí, marcado pela nadidade
e pela fragilidade ontológica, busca a estabilidade do mundo, que se

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constitui em um apoio, suporte e tutela e nele assume uma identidade.
Mas é exatamente esta busca e esse encontro que o coloca na cadência
do mundo e, o existente, esquecendo-se do seu próprio ritmo, acaba
obscurecendo o seu caráter de poder ser. São as situações limites que,
ao entrarem na articulação do ser-aí e mundo, rompem com os senti-
dos sedimentados, abrindo, então, a possibilidade de questionamentos
da situação em que nos encontramos. Primeiramente, cabe pensar-
mos sobre a cadência que se impõe pelas orientações sedimentadas
em nosso horizonte histórico. Como essas determinações surgem nas
queixas dos analisandos, no modo de decadência ao ritmo do mundo,
obscurecendo seu caráter de poder ser? Torna-se pertinente ressaltar
que a clínica psicológica em uma inspiração fenomenológica herme-
nêutica se estabelece muito mais em uma negatividade do que pro-
priamente a partir de uma identidade positiva. Isso consiste em per-
mitir transparecer àquele que está submetido a um acompanhamento
clínico o caráter de nadidade, de indeterminação e de incompletude
de sua existência. Para poder mostrar como concretamente se dá o
acontecimento da clínica, vamos trazer à discussão uma situação mui-
to presente nas queixas de mulheres que buscam a clínica psicológica,
o medo da solidão.

Cristalização da identidade feminina

Primeiramente, vamos buscar a gênese daquilo que encontramos


nas queixas de solidão. Vamos buscar nos gregos o sentido original da-
quilo que pretendemos discutir, ou seja, a constituição do feminino. Ao
proceder a uma análise sobre como se cristalizou, ao longo do tempo, o
sentido do feminino pensamos poder compreender o que ocorre hoje.
Ao tematizar o sentido da palavra análise, verificamos, nos Seminários
de Zollikon, que análise refere-se à analisein que em grego comportava
dois sentidos: destecer e libertar. O sentido que vai prevalecer é o de
destecer como dividir em partes, fragmentar. Enquanto o sentido de
libertar ficará totalmente obscurecido (Heidegger, 2001). Ao encontrar
os sentidos mais originários, podemos mostrar como um dos sentidos
ficou obscurecido enquanto o outro ganhou relevo, de modo que este
passou a ser considerado em total restrição dos sentidos possíveis, o

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único e possível sentido. E, é exatamente nessa restrição de sentidos
possíveis, com a tentativa de corresponder às solicitações hegemôni-
cas presentes em nosso horizonte histórico, que as tensões existenciais
acontecem e as queixas aparecem.
Vemos que em Freud (1969) há uma estrutura psíquica que está
intimamente vinculada ao biológico, ou seja, a presença ou a ausência
do falo. Quando saímos desse modo de compreender a experiência hu-
mana, partimos de um deslocamento de toda e qualquer determinação
aprioristicamente dada acerca do modo como o homem de constitui.
Essa discussão pode ser encontrada em Heidegger (2008) quando ele
nos diz sobre o caráter de indeterminação do ser-aí no momento do
nascimento. Quando um bebê do sexo feminino nasce, ele não está
determinado por absolutamente nada, embora ao nascer já se encon-
tre em uma compreensão prévia, impessoalmente determinada, que
o orienta acerca do modo que cada uma deverá estruturar a sua exis-
tência. Mas sua indeterminação própria, bem como o caráter de poder
ser, aparecem sempre como um anúncio de outros possíveis. Isso nos
mostra como já no início, ao nascer, e na maioria das vezes, tende-
mos a acompanhar a cadência do mundo, acabando por acreditar que
nas orientações sedimentadas em nosso horizonte histórico estão as
únicas e inquestionáveis verdades. Heidegger nos diz que é preciso
voltar ao pensamento mais originário para, então, poder deixar trans-
parecer as possibilidades de aparição do sentido dos fenômenos que
ficaram obscurecidos pelas determinações hegemônicas. Logo, vamos
retroceder aos gregos arcaicos para ver como os diferentes sentidos
do feminino em sua relação com o masculino se movimentou nesse
horizonte histórico.
Brandão (1989) ao tratar de Helena discute a questão do femi-
nino em diferentes períodos gregos, a iniciar pelo período anterior ao
grego, que afirma Brandão (1989, p.10) ser a “passagem do Neolítico II
(3000 a 2600 a. C.) para o Bronze Antigo (2600 a 1950 a.C.)”. Em Creta
dominava uma cultura agrária que valorizava acima de tudo a fertilida-
de. Com isso a divindade tutelar era feminina, a Deusa Helena, consi-
derada a Grande Mãe. E assim em Creta, nesse período, a estrutura da
comunidade era matrilinear e as mulheres tinham o mesmo direito de
participação política e social que tinham os homens. Ainda na Ilíada e
Odisseia encontramos muitos elementos de valorização da mulher:

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A ternura e a agonia de Andrômaca, esposa e mãe símbo-
lo do autêntico amor conjugal; a amabilidade, a doçura, a
personalidade e a paixão recatada de Nausícaa; a firmeza e
a respeitabilidade inspirada pela rainha Arete; a afeição e o
devotamento da velha ama Euricléia; e, por fim, a paciên-
cia, a astúcia e a fidelidade de Penélope desfilam diante de
nossos olhos suscitando admiração, encantamento e uma
grande simpatia. (Brandão, 1989, p. 13)

Segundo Brandão (1989), nessa mesma época, já surgia a vio-


lência e a arbitrariedade masculina contra a mulher muito bem exem-
plificada na figura de Agamenon, que chega a sacrificar sua filha para
alcançar seus objetivos. Essa desvalorização e submissão da mulher
avançam de tal modo que “Com Hesíodo, Século VIII a.C., fenecem a
beleza de Nausícaa, a ternura de Andrômaca e a fidelidade de Penélo-
pe” (Brandão, 1989, p. 134). E ainda, passa ser Pandora a responsável
por tudo que vai atormentar os homens. No século VII a.C, a mulher
aparece valorizada algumas vezes, como em Alceu, Anacreonte e so-
bretudo Safo (a maior das poetisas gregas, que representou a liberação
feminina na Ilha).
O sentido de valor do feminino e igualdade com o masculino
obscureceu-se e mantém-se dessa forma, até a época atual. De outras
formas aparecem a desvalorização e o escárnio à mulher. Os poetas e
os escritores parecem atentos à tentativa de manter a mulher nessa ca-
dência e a submissão das mesmas à situação que lhe é imposta. Mesmo
quando singularmente, alguma se impõe e luta contra a posição im-
posta a mulher, essa atitude traz inúmeras formas de sofrimento, tal
como aconteceu com Safo. E podemos acompanhar com alguns desses
escritores do século XIX e XX a atenção especial que eles dispensam
ao universo feminino, como por exemplo, Tolstói (1877/2014) com
Anna Karenina, Kierkegaard (1843/2006) em Diário do sedutor, Sartre
(1939/2005) com o conto Intimidade, Assis (1882/2008) com Bentinho
e Capitu, Lispector (1998) em Macabéa.
Dos escritores que denunciaram as situações em que as mulheres
se encontravam nos seus romances, crônicas e poesias podemos nos
deter em Leon Tolstói (1828 – 1910), ao apresentar Anna Karenina
(publicado entre 1873 e 1877) com a tensão que a acompanha em sua

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história. Esse romance foi considerado uma das obras que mais retra-
ta a situação feminina. Tolstói (2014) apresenta a situação da mulher
por meio de três personagens femininos: Karenina, Dolly e Kitty. Cada
uma, com sua situação especifica, vive as tensões que insidiam sobre as
mulheres e que determinavam o modo como elas deviam se conduzir.
E qualquer coisa que saísse do esperado trazia profundas tensões que
cada uma, com muita dor, vivenciava-as a seu modo. Karenina ousou
arriscar seu casamento, sua condição social, seus filhos, com a segu-
rança que estes lhe traziam, para levar as últimas circunstâncias a sua
paixão. Ela amou, sofreu, culpabilizou-se, desistiu, retornou ao seu pro-
pósito, mesmo sendo condenada e expurgada por sua ousadia. Dolly,
sofrendo pela infidelidade do marido e, ainda, por ter de conduzir as
mazelas familiares de modo solitário, resolve abdicar do romance e do
amor, porém decidiu por não se tornar uma mulher divorciada. Ela
passa a sua vida a dedicar-se totalmente a criação de seus filhos. Esta
sofre de forma diferente de Anna. Dolly ao seguir a cadência das orien-
tações de sua época era elogiada e valorizada pelo sua dedicação a sua
obrigação de esposa e mãe.
Já Anna Karenina sofre pelo amor escondido, pela culpa por ser
infiel ao marido, mas sente-se plena pelo amor correspondido. Ela teme
perder o lugar de esposa e ficar no lugar da amante. Anna sabia que essa
situação a humilharia e a colocaria em um lugar desprezível, socialmen-
te. Assim mesmo, opta por ir contra as determinações de seu momento
histórico de como deveria se comportar uma mulher. Kitty, que em um
determinado momento fica indecisa entre dois pretendentes resolve, por
influência de sua mãe, escolher o mais fino e bem colocado na socieda-
de, abrindo mão daquele que era verdadeiramente apaixonado por ela.
Essa escolha também lhe traz consequências extremamente dolorosas,
já que o rapaz desiste dela. Esse abandono mexe com sua vaidade e seu
orgulho, uma vez que essa era uma situação de muita humilhação para
uma mulher. Kitty fica com muito medo de ficar solteira, situação que
também inferiorizava por demais as mulheres. Cabe, então, perguntar
o que se encontra na gênese da situação da mulher em nosso horizonte
histórico? Quais são as determinações sedimentadas presentes em nosso
horizonte histórico que aprisionam as mulheres a essas determinações?
Parece que por volta de 1880, Anna, Dolly e Kitty dado aos seus
caracteres de indeterminação, constituíam-se segundo as orientações

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do mundo onde se encontravam. Às mulheres dessa época não era pos-
sível uma vida profissional, nem mesmo uma vida sem que um homem,
seja pai, marido, irmão, cunhado, as mantivesse. Elas, tão logo se torna-
vam prontas para o casamento, teriam que se casar. Assim eram traça-
dos seus destinos. Assim mesmo, Anna ousou, abandonou por comple-
to o apoio do impessoal e seguiu o caminho que a paixão lhe indicava.
Por isso, teve que viver as consequências daquilo que determinara ela
própria seguir, sem a tutela do mundo. Ela, totalmente impedida de ver
seu filho e de frequentar os locais em que a sociedade russa se encon-
trava, ficou completamente só. Essa situação servia de exemplo para as
outras mulheres, de forma que ou se comportavam de modo “correto”
ou teriam o mesmo destino de Anna. O temor pelo destino anunciado
mantinha-as na cadência do mundo. Foi o que aconteceu com Dolly.
Esta, por temer ser uma mulher divorciada, mesmo que infeliz e sentin-
do-se envelhecida precocemente, resolve manter-se no casamento.
E hoje? O que acontece a mulher? Muitas mulheres, mesmo que
tendo inúmeras possibilidades, como por exemplo, ter filhos mesmo
que solteira, ascender na vida profissional, entre outras, ainda sofrem
pelo fato de não conquistarem um relacionamento estável. O que está
em questão, nesses casos? Para tentar esclarecer o que está em jogo na
queixa dessas mulheres, temos que acompanhar o fenômeno tal como
aparece no relato dessas mulheres. E se a questão ainda é o temor, já
que a retórica do medo frequentemente aparece em diferentes veículos
de comunicação, dizendo que você só está protegida e feliz se estiver
acompanhada, o que fazer diante daquilo que tememos? Em tese, cos-
tuma-se dizer que frente ao medo é preciso fazer surgir a coragem, mas
o que dizem as mulheres que de algum modo se queixam da solidão?
Muitas se referem à frustração pelo projeto idealizado que não
se concretiza. Esse projeto diz respeito à constituição de uma família.
Dessa situação muitas outras se desdobram, tais como sentimentos de
rejeição, exclusão, abandono. Essas mulheres, muitas vezes, perguntam
o que há de errado com elas e em que consiste a sua culpa. Todos esses
argumentos, embora dolorosos, ainda apontam para uma esperança de
que uma vez sanados os erros, a culpa e livre do ideal a cumprir, o pro-
jeto se realize. Percebemos uma insistência, ainda que por diferentes
modos de conquistar o projeto idealizado, em um total obscurecimento
de outras possibilidades que se encontram na gênese de sua existência,

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como, por exemplo, de não se casar. Daí a importância do profissional
psi como aquele que é capaz de facilitar o caminho do desvelar de ou-
tras possibilidades.
Assim, vale, ainda, determo-nos acerca de como nos conduzire-
mos na clínica frente à queixa de solidão. A solidão diz respeito ao ter
que corresponder a um mundo que em sua retórica ressalta que só é feliz
aquele que constitui uma família, pois se assim não for, ele fracassou.
Essa é a retórica do mundo que avisa sobre aquilo que devemos temer.
E é na tentativa de evitar aquilo que tememos que nos escravizamos no
sentido de atender a tais demandas. Abrir um espaço de transformação
significa sustentar um espaço em que a libertação das determinações
hegemônicas possa surgir. Mas cabe agora a pergunta, como fazer isso?
Stein (2012) nos indica um caminho “A preservação da singula-
ridade de indivíduo, ao mesmo tempo, a possibilidade de pensá-lo em
sua generalidade, tal como é desenvolvida em Ser e tempo, põe-nos em
uma relação clínica diferente” (p.107). Relação clínica diferente é aque-
la em que não impera a relação causa-efeito e nem prioriza a figura do
analista. E ainda com base no que nos diz Fogel (2010) sobre a dor da
dor que diz do descompasso entre o que se quer e o que se pode.

Situação clínica em discussão

A queixa de solidão cada vez se torna mais frequente em mu-


lheres, embora também apareça em homens, com menor frequência.
Mulheres entre 15 e 60 anos comparecem à clínica queixando-se de
solidão. Dizem que está muito difícil encontrar um namorado, compa-
nheiro, enfim, um relacionamento sério. Com isso, as mulheres casadas,
muito frequentemente, costumam dizer: “Ruim com ele, pior sem ele” e
as mulheres solteiras perguntam: “O que há de errado em mim?” As pri-
meiras, muitas vezes, querem modificar o marido e não abandoná-lo e
as segundas querem encontrar seu erro para assim poderem modificar
a situação em que se encontram. Obviamente, que nenhuma das duas
pretensões podem ser alcançadas mediante o acompanhamento clíni-
co. Não basta querer para que o que se quer se transforme em algo efeti-
vo. Não é suficiente que se encontre o que está errado para poder agir de
forma certa no sentido de concretização dos objetivos. A transformação

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ou rearticulação de sentido não acontece pelo fato de que assim se quer.
Nem se dá pelo fato do outro da relação se modificar ou pela correção
do erro. Logo o que acontece na clínica que denominamos de existen-
cial? É esse o tema que desenvolveremos a seguir. Vale ressaltar que os
sete itens que apresentaremos abaixo foram extraídos dos acontecimen-
tos que apareceram nesta situação clínica. A ordem dos acontecimentos,
não foram, necessariamente, consecutivas. A forma como foram organi-
zadas tem uma finalidade exclusivamente didática.

1 – A relação analista-analisando: ao tomar o homem como Da-


sein que em seu ser é cuidado (Sorge), portanto, estrutura relacional em
que todo Dasein se encontra, torna-se impossível não se relacionar, ou
seja, Dasein constitui-se no próprio ter de ser no meio de outros seres.
Logo, Dasein é relacional e isto se dá de vários modos: substitutivo,
indiferente e libertador. A relação posta em termos de eu-tu pressupõe
um distanciamento em que o eu pode assumir o lugar do saber, de de-
tentor da verdade, tornando a relação substitutiva.
Em uma conversa de Boss com Heidegger (2001) este sugere
que em uma clínica que se pretenda daseinsanalista, a relação analis-
ta-analisando como eu-tu seja substituída pela relação tu-tu (du-du
Verhältnis). Essa substituição aponta para a supressão de uma espécie
de onipotência do analista, retirando-o do lugar do saber daquele que
conhece a verdade e, portanto, sabe indicar o caminho correto. Oni-
potência e saber que podem perturbar a própria relação no sentido de
que ambos conquistem sua liberdade no interior da própria relação. A
relação tu-tu acontece na horizontalidade, o analista não prescreve, não
se posiciona como mantenedor da verdade, portanto, consente que ele
não sabe qual é o melhor caminho a tomar. Nessa relação, o analista
acompanha a saga do outro, portanto, diante daquilo que o outro de-
cide só lhe resta dar um passo atrás, deixando o outro entregue àquilo
que lhe diz respeito. A esse modo de estabelecer a relação analista ana-
lisando denominaremos relação tu-tu.

2 – A compreensão na relação psicoterapêutica: em Seminários de


Zollikon, Heidegger (2001) diz “É decisivo que cada fenômeno que surge
na relação de analisando e analista seja discutido em sua pertinência ao
paciente concreto em questão a partir de si em seu conteúdo fenomenal e

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não seja simples e genericamente subordinado a um existencial” (p.150).
Acompanhar compreensivamente aquilo que o analisando tem a dizer
consiste em alguns aspectos que precisam ser esclarecidos. Tanto analista
quanto analisando como Dasein sempre se encontram na compreensão,
logo, não há como ser-no-mundo sem uma compreensão prévia. Com-
preender previamente diz respeito ao fato de que somos todos tomados,
no inicio e na maioria das vezes, pelas orientações do mundo em que nos
encontramos. Por isso, o analista já sempre se encontra em um mundo
compartilhado, e por isso pode compreender o que o outro lhe diz. E,
ainda, na fusão de horizontes nos quais se encontram analista e analisan-
do, a tarefa daquele é acompanhar o conteúdo fenomenal que o analisan-
do apresenta. Tudo isso acontece em uma compreensão mais originária,
ou seja, não explicativa, nesta toma-se de antemão a relação causa-efeito.
A compreensão na relação psicoterapêutica é possível, pois, sempre já
compreendemos. A especificidade dessa relação, no entanto, implica em
que pelo menos o analista conheça algumas das determinações do mun-
do em que eles (analista e analisando) se encontram para poder, então,
não fortalecer ainda mais a automatização de um determinado modo
de ser que traz dor ao analisando. Compreender, na clínica psicológica
existencial, consiste em acompanhar aquilo que o outro tem a dizer bem
como a estrutura de sentido que sustenta seu modo de ser, deixando que
a situação em que ele se encontra apareça para ele, de modo que diante
disso, ele possa decidir-se, ou seja, transformar-se.

3 – Rompendo as ilusões: com a ideia de romper as ilusões que


se apresentam no relato do analisando durante o processo psicotera-
pêutico queremos dizer que, no mínimo, as ilusões que são sustentadas
em nosso horizonte histórico não sejam fortalecidas. Caso se consiga
abrir um espaço de destruição das ilusões, é nesse sentido que o diálogo
clínico irá acontecer. Mattar e Sá (2008) compartilham com a proposta
deste estudo quando afirmam que para sustentar um espaço para a rea-
lização de uma clínica existencial devemos atentar-nos em que:
Uma vez que as demandas do sofrimento existencial, endereçadas
à clínica psicoterápica, cada vez mais estão relacionadas ao nivelamen-
to histórico de sentido que pode ser computado no cálculo global de
exploração e consumo, é imprescindível, para que a psicoterapia possa
se constituir em um espaço de reflexão propiciador de outros modos

Situações Clínicas I • 29
de existir, que ela própria não permaneça subordinada a esse mesmo
horizonte histórico de redução de sentido (p.191).

4 – Deixando aparecer que vida não é o lugar de total realização,


que vida comporta frustrações, ou seja, projetos não realizados: o
analista atua de modo a não impedir que apareça ao analisando a ideia
de que a vida não é o lugar de total realização, de que a vida comporta
frustrações, ou seja, projetos não realizados. Trata-se de mobilizar o
descompasso entre o querer ser e o poder ser. Gilvan (2010), ao tratar
do descompasso entre o dever ser e o poder ser, alerta para a dor que
se pode alcançar quando o dever ser encontra-se para além do poder
ser. Diz ele que se trata da dor da dor. Trata-se da dor revolta contra o
finito e o limite que a vida impõe. E isso se fortalece junto à ideia de que
devemos a qualquer preço superar os obstáculos. Essa ideia ainda con-
tém a tese de que a vida é obstáculo a vencer. Daí a insistência, a luta,
a esperança e a ilusão. Luta que amolece o ânimo, definha e enfraque-
ce. Kierkegaard (1848/2010) refere-se a essa situação como desespero.
Desespero é a doença do eu que aparece pela crença na soberania da
vontade, por isso Kierkegaard refere-se ao desespero de querer ser si
mesmo e de não querer ser si mesmo. Esse modo de atuação refere-se
ao sentido negativo presente na clínica daseinsanalítica.
A positividade na clínica diz respeito a uma orientação que indica
caminhos que conduzem à conscientização, à superação e à conquista
da auto realização. A negatividade na clínica consiste em deixar que
transpareça no analisando o caráter de nadidade, de indeterminação
e de incompletude da existência. Isso quer dizer que a clínica, nesses
termos, vai deixar transparecer que percalços, dores e frustrações tam-
bém são próprios ao existir humano. E, assim, aquele que traz à clínica
a expectativa de naquele espaço conquistar o nirvana, possa entregar-se
à existência de modo a compreender o seu caráter de lançado, indeter-
minado e ao mesmo tempo de poder ser.

5 – Questionando as verdades estabelecidas: a clínica existencial


acontece no sentido de colocar em questão as verdades estabelecidas,
dentre elas a “família Doriana”, “Felizes para sempre”. Fogel (1998) re-
fere-se ao homem do silêncio e da solidão como aquele que se coloca
frente a frente com esse caráter, no seguinte trecho:

30 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Melhor: o silêncio é este modo de ser, que é sob a forma
de ação necessária, enquanto e como destinação e estória de
liberdade para a morte. E tal modo de ser é a insistência da
ressonância de silêncio porque este modo de ser, que fala
pela forma de todo e qualquer modo possível de ser (os “ver-
bos“ do existir), é aquilo que, desde fora, se mostra como o
incontornável, o incontrolável, o insubsumível (p. 219).

Para Heidegger (1927/2003), a crise existencial diz respeito a um


momento em que algo acontece e imediatamente torna possível a suspen-
são do horizonte hermenêutico a que alguém se encontra submetido. Nes-
sa suspensão de orientações e determinações, torna-se possível a abertura
a outras possibilidades encobertas pelas determinações hegemônicas, ou
seja, abre-se um espaço de possibilidades frente às transformações possí-
veis. Como o existente é um projeto jogado no mundo, a sua relação com
o mundo é marcada por um projeto compreensivo. Assim, o Dasein herda
para si as compreensões do que significa liberdade, felicidade, realização,
autoestima. O mundo, como horizonte histórico de sentidos, veicula es-
ses significados. O Dasein é um projeto existencial e como tal se abre em
um espaço de significados constituídos em uma facticidade ao mesmo
tempo em que constitui um sentido pelo qual ele opera esses significados.
No horizonte da técnica, as determinações sedimentadas dizem respeito
à ênfase na produção, consumação, objetivação, resultados e método.
As queixas que nos chegam à clínica encontram-se, intimamente, rela-
cionadas às determinações da técnica, características de nosso tempo.
As pessoas em sofrimento vem à clínica buscando o método certo para
reconquista a autoestima perdida, a vontade de trabalhar para se torna-
rem produtivas e bem sucedidas, a conquista da felicidade. Acerca disso,
acrescentam Sá e Mattar (2008) que as queixas na clínica estão intima-
mente relacionadas ao nivelamento histórico de sentido da técnica.

6 – Abrindo o caráter de poder ser de toda e qualquer existência,


na medida em que o analisando percebe o quanto restringe suas pos-
sibilidades: na medida em que o analisando puder perceber o quanto
restringe suas possibilidades à única e absoluta conquista ditada pelo
impessoal, surge a oportunidade de que se abra o caráter de poder ser
de toda e qualquer existência. Primeiramente, para que a possibilidade

Situações Clínicas I • 31
de que o espaço da clínica se efetive como espaço de transformação é
necessário que analista e analisando se abram para que algo ali possa
acontecer. Assim, é preciso que haja interesse e afeição (phatos). Para
Heidegger (1920/ 2010), é a participação no mesmo phatos que nos liga
uns aos outros, trata-se do sentido mais originário da empatia. E, as-
sim, compartilhando desse espaço, podemos nos abrir para que haja
uma disposição para a transformação. Faz-se necessário uma dupla
apropriação, o analisando tem que se deixar apropriar pelo espaço para
que o próprio espaço lhe devolva o aí que é o seu.
Como podemos pensar em uma recuperação ou superação de
uma fissura ou inautenticidade sem uma estrutura psíquica de base que
detenha em si mesma a “verdade singular” a qual tem que ser encontra-
da para o reestabelecimento do psiquismo? Ou, ainda, sem uma adap-
tação do comportamento? E, ainda, sem a premissa de um trauma no
passado que inviabiliza a vida fluida? A clínica que mantém a ideia de
uma interioridade psíquica tem como base o seu caráter confessional,
que acredita que com a revelação da verdade vem a libertação (Cabral,
2012). O analisando, inserido nessa perspectiva, vem em busca das ver-
dades que estão escondidas em sua interioridade ou então em busca
das medidas corretivas que o possibilitem realizar seus projetos.
O clínico que atua em uma perspectiva fenomenológico-existen-
cial distancia-se totalmente dessa forma de atuação, mesmo porque
acredita que desse modo vai tranquilizar o analisando, dando-lhe a sua
tutela, assegurando-o da possibilidade de conquistar seus objetivos, des-
de que ele siga o método certo. A clínica existencial caracteriza-se mui-
to mais por uma negatividade, não há nada em que esse clínico possa
orientar, mesmo porque a verdade é algo que se conquista no momento
mesmo da existência. Logo, a verdade é essencialmente abertura e o aí
existencial é o fenômeno mais originário da verdade. Ser verdadeiro é
ser desocultado na medida em que se é em um mundo. Isso torna o
exercício clínico não um ato confessional que na confissão conquista a
consciência e a liberdade. O que acontece é uma conquista e reconquista
incessante de si, que no final das contas é pura indeterminação em seu
caráter de poder ser. A clínica psicológica existencial se direciona no
sentido de que a relação aconteça de modo a que o analisando possa
encontrar a medida singular da existência que é sua. Isso diz respeito ao
espaço onde o querer e o poder se rearticule, compassadamente.

32 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


7 – Despertar, lembrar e transformar: a clínica psicológica
resguarda o espaço do silêncio, da solidão e da recordação para, des-
se modo, oportunizar o caminho da vontade à necessidade, dos pos-
síveis aos necessários. Assim, nesse compasso, o psicoterapeuta pode
sustentar a possibilidade de que o analisando conquiste a medida de
sua existência singular. Trata-se do espaço onde o querer e o poder se
reencontram.
A seguir, mostraremos uma situação clínica, no momento em
que se estabelece a relação psicoterapêutica. Logo no início, atuamos
de modo a deixar que a relação se estabeleça em uma dinâmica tu-tu,
tal como mostraremos a seguir, acompanhando Flávia, com 15 anos
de idade ao trazer à clínica o seu sofrimento com o rompimento de sua
relação amorosa:
Flávia diz: Vim aqui por que acredito que seja o lugar em que eu
posso sarar a minha dor. Você vai me ajudar não vai? Sabe como fazer
isso, não sabe? Minha amiga me disse que depois que veio aqui conversar
com você tudo se resolveu. Por favor, me diga como posso fazer para ar-
rancar essa dor do meu peito. Às vezes parece que vai faltar ar.
Analista: Eu preciso saber um pouco sobre a sua dor. O que está
acontecendo com você?
Flávia: Estou sofrendo muito. Não sei nem como começar a contar.
Por favor, diga-me o que eu tenho que fazer e, eu farei.
Analista: Se você mesmo nem sabe como começar, nem o que fazer,
como eu poderia saber, minimamente, o que você pode fazer?
Flávia: Mas você é psicoterapeuta não é? Então sabe como acabar
com o sofrimento, não sabe?
Analista: Sei acompanhar o sofrimento e posso acompanhar o teu,
mas não posso lhe dizer que tenho o antídoto contra o sofrimento.
Flavia: Mas preciso que você me prometa, eu não aguento mais essa dor.
Analista: Eu não posso lhe prometer algo que só cabe a você. Só
você sabe o que lhe dói e só você pode encontrar outro modo de lidar com
a sua dor. Então o que tanto dói em você?
Em seguida serão mostrados alguns trechos da situação clínica
com Flávia, em que o analista a acompanha compreensivamente na

 Flávia é um nome fictício assim como toda a situação clínica apresen-


tada. Esta compilação é fruto da experiência da autora com atendimentos e
supervisões na clínica psicológica.

Situações Clínicas I • 33
sua queixa de solidão, medo, abandono e a dor do luto pelo projeto
de relação interrompido.
Flávia: Meu namorado e eu terminamos o relacionamento que era
muito bom e eu me sentia muito feliz com ele. Ele disse que está muito
novo para um relacionamento sério e que mesmo gostando de mim, pre-
feria viver outras coisas que a vida proporciona. Isso tem um mês, no iní-
cio, eu pensei que era passageiro, mas agora já o vi com outras meninas e
parece que terminou mesmo. Desde que rompemos, não consigo dormir,
acordo com a sensação de falta de ar, não consigo estudar. Já emagreci 5
quilos. Estou sofrendo muito. Sempre pensei que nosso relacionamento
era para sempre. E estou vendo que não foi.
Analista: Então é o rompimento do namoro que está doendo muito?
Flávia: Doendo é pouco, dilacera. Parece que tudo acabou para
mim. Não vejo mais graça em nada. Até ficar com os amigos, viajar, coi-
sas que eu gostava tanto, agora não quero. Mas também não quero ficar
em casa. Nunca quero estar onde estou. Não tenho lugar mais no mundo.
Não sei o que vai acontecer comigo. Tenho medo, pavor.
Analista: O medo, o pavor te deixa intranquila. Mas do que você
tem tanto medo?
Flávia: Eu não sei. Acho que tenho medo de perdê-lo totalmente. En-
quanto que ele não estava com outra menina, eu estava sofrendo, mas com
esperança, ou melhor, certeza de que ele voltaria.
Analista: Sem esperança a dor fica mais aguda. Sem esperança res-
ta o que?
Flávia: Nada. Minha vida ficou vazia. Todas as minhas amigas na-
morando e eu sozinha. Não gosto de ser a solteirona do grupo. Eu sei todos
me dizem você é jovem, têm seus estudos, outros namorados irão aparecer.
Nada disso me conforta. Sinto-me mal, vazia.
Analista: E antes do rompimento sua vida era plena? O namoro
preenchia a sua vida?
Flávia: Antes eu namorava, tinha um companheiro, um amigo. Ti-
nha o grupo de amigos, tinha meus estudos. Enfim, tinha uma vida cheia
de coisas. Eu pensava que seria para sempre assim. Nunca pensei que esse
namoro fosse acabar.
O analista, a fim de investigar de que modo Flavia construía suas
ilusões, pergunta: E o que fez você acreditar que esse relacionamento se-
ria para sempre?

34 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Flávia: Nós começamos a namorar muito cedo e sempre fomos um
para o outro. Estudávamos juntos, compartilhávamos dos mesmos ami-
gos. Temos a mesma religião. Frequentávamos a igreja juntos. E passamos
por uma situação difícil com nossas famílias e mesmo assim nos manti-
vemos juntos. Isso tornou mais fácil passar pela situação. Agora, sinto-me
totalmente sozinha. Terei que enfrentar meus pais, que nunca concor-
daram com o rumo que o namoro tomou. Temos amigos em comum e
eles vão ficar com ele. Ele é mais alegre, é o líder do grupo. Isso tudo me
enche de medo. Eu sempre fui mais preterida pelo grupo, mas como era
a primeira dama, todos me respeitavam. Agora, não sou mais nada. Não
sou comunicativa, não conto piadas engraçadas, ao contrário, as pessoas
acham até que sou chata. Mas, eu nem me importaria com nada disso
se ele estivesse comigo. Pensava que nós fossemos nos casar e construir
nossa família. Só isso me importava. E agora? Esse projeto furou, o que
vai acontecer com minha vida?
(Flávia permanece um longo tempo chorando e o analista aguar-
da, pacientemente)
Flávia retorna: Éramos cúmplices, fazíamos tudo juntos, comparti-
lhávamos das mentiras que contávamos. Quando passamos por uma si-
tuação muito difícil ficamos juntos e isso me deu forças. Não me importei
com tudo que tive que suportar, ele estava do meu lado. Pensei que depois
disso ficaríamos juntos para sempre.
No sentido de que pudesse acontecer o rompimento das ilusões
o analista, sem dar asas à curiosidade, não perguntou qual foi a situa-
ção difícil. Importava tratar do quanto toda essa experiência tinha para
Flávia o sentido da eternização da relação. Na tentativa de esclarecer
aquilo que sustenta o sofrimento e começar a desfazer a ilusão da eter-
nização da relação, ele diz: Tudo isso fez você acreditar que essa relação
seria para sempre, no entanto, tudo isso foi insuficiente para garantir a
eternização da relação. E hoje, você sofre não só pela perda da relação,
mas também pelo desmoronamento de seu projeto de futuro.
Flávia responde: E também porque ele não foi legal comigo. Vou
te contar a situação difícil que lhe falei e você vai entender do que estou
falando. Foi o seguinte, nós dois éramos virgens. A nossa religião exige
que devemos nos manter assim até o casamento. Mas tanto ele insistiu,
que mesmo eu não querendo, resolvi ceder. Eu tinha medo de que meus
pais soubessem e eles não iriam me perdoar. Mesmo porque meu pai é o

Situações Clínicas I • 35
Pastor da Igreja e nós temos que dar o exemplo. Acontece que minha mãe
descobriu as pílulas no meu armário e isso deu muita confusão. Meu
pai disse que eu não era mais a filhinha dele, minha mãe disse que se eu
era mulher para manter um relacionamento sexual, também teria que
me responsabilizar pelas tarefas da casa. Tive que conciliar meus estudos
com as obrigações das tarefas da casa. Minha vida modificou totalmente.
Mas não me importava, porque nós dois ficamos mais juntos ainda. Só
que agora, ele terminando comigo, meus pais dizem que agora eu sou
uma mulher e que os outros rapazes só vão se aproximar para se aprovei-
tarem de mim. Vejo um destino triste para mim, possivelmente, vou ficar
solteirona, sozinha. E a solidão muito me amedronta. Às vezes, acho que
ele vai se divertir um pouco, mas depois voltará para mim. Mas quando
telefono para ele e ele é grosseiro, diz para eu dar um tempo, que não quer
falar comigo, perco a esperança. Penso: “Será que ele precisava ser tão
grosseiro assim?”
Analista: Ele dá a entender que você não deve ter esperança, é isso?
Flávia: É isso. E é isso que faz doer ainda mais. (Permanece cho-
rando por um longo tempo).
Analista: Sem esperança dói mais, não é Flávia?
Flávia: Dói. Mas ter esperança também é ruim, a todo momento
caio do cavalo. Preciso pensar em outras coisas. Preciso encontrar outro
sentido em minha vida.
Analista: Mas qual?
Flávia: Ter amigos, estudar, sair. Não sei, mas preciso fazer outras
coisas.
Analista: Como?
Flavia: Tenho umas amigas que não eram do grupo. Elas ficaram
muito aborrecidas quando comecei a namorar e me afastei delas. Mas,
algumas delas já me procuraram e me chamaram para sair. Tenho que
me animar e sair com elas. Tenho que parar de ficar esperando que um
dia ele volte.
Em muitos outros encontros Flávia relatava todos os indícios que
mostravam que o rapaz ainda poderia estar interessado em voltar. Em
outros encontros ela também relatava os indícios em que ele deixava
claro seu desinteresse.
Após algum tempo, Flávia traz o seguinte assunto: Há um rapaz
que está se interessando por mim. Ele era nosso amigo e sempre mostrou

36 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


seu interesse em mim. Estou super feliz com isso. Também o outro já está
namorando outra menina da igreja. Acho que eu também posso namo-
rar outro rapaz. Flávia passou várias sessões falando desse outro ra-
paz. Dizia como ele era inteligente, gentil, ligava todos os dias para ela.
Inclusive que era até mais amoroso que o primeiro namorado. Nessas
oportunidades, discorria acerca de tudo que era ruim na outra relação.
As sessões passam a transcorrer com muitos relatos sobre a con-
quista. Até que Flávia traz outra situação: O segundo rapaz, na verdade,
tem outra namorada e, por isso concordamos em manter seu relaciona-
mento em segredo, até que ele terminasse com a moça. Acontece que ago-
ra ele se encontrava em dúvida. Ele viu que não era tão fácil terminar,
como ele acreditara no início.
As sessões transcorreram da mesma forma que as entrevistas
iniciais. Esperança, idealização de projetos de casamento e filhos, re-
lacionamento eterno. Por outro lado, dor, luto, destruição dos proje-
tos, medo da solidão, da rejeição. Às vezes Flávia ainda dizia que se
sentia usada, que o rapaz só queria transar com ela, mas com a outra
moça queria se casar. Outras vezes, acreditava que ele iria decidir-se
por ela. Perguntava-se por várias vezes porque isso acontecia logo com
ela. Sentia-se por vezes frustrada, revoltada. Outras vezes, ficava triste
e desesperançada.
Na relação psicoterapêutica, o analista deixa aparecer que a vida
não é o lugar de total realização, a vida comporta frustrações, ou seja,
projetos não realizados. Flávia começa então a trazer para a sessão o
medo de ficar sozinha. Esse medo tomava seu pensamento dia e noite.
Cada vez mais, certificava-se de que o rapaz não queria assumi-la. Nes-
se ínterim, descobriu que seu primeiro namorado espalhara que tivera
relações com ela. Mas isso não era o que a incomodava. Pior para ela
era o fato do rapaz não resolver essa situação. E de outra vez começa
a mostrar todos os indícios de que era ela que o rapaz iria escolher.
Não falava dos indícios de que ele não queria. Esse modo de manter a
ilusão se mostrava pela segunda vez. A situação se repetia, ou seja, na
tentativa de manter a ilusão de que a relação perduraria, Flávia preferia
não considerar os indícios que apontavam para a finalização da relação.
Chegara o momento de se iniciar a incluir elementos que apontassem
para a dissipação da ilusão, assim, diz o analista: Você percebe vários
indícios de que o rapaz escolherá você, como continuar ligando para você

Situações Clínicas I • 37
todos os dias, fazer questão de te encontrar, te dar presentes. E quais são
os indícios de que talvez não seja você quem ele escolherá?
Flávia permaneceu em silêncio, por um tempo, e começou a la-
crimejar. O analista se manteve em silêncio, deixando um espaço para
que Flávia no silêncio, sem se distrair com o falatório, pudesse recordar
essas situações. Ela retorna, depois de um longo tempo e diz: Muitos.
E começa em tom mais ameno e demorado a descrever todos: ele só se
encontra comigo às escondidas, dia dos namorados é com ela que ele fica.
É ela que ele respeita. Sempre vai com ela à missa, independente se é na
mesma missa que eu vou.
O Analista na tentativa de destruir a ilusão, então, diz: Todos esses
são indícios de que ele pode não escolher você.
Flavia responde: São. E tem mais ainda. Ele, também, já conta
para os outros que a outra é a namorada e comigo ele se diverte. Isso dói.
Dói muito. Mas não falo nada porque pelo menos tenho quem telefone
para mim, quem está comigo.
Analista: Ainda é melhor, mesmo sabendo o que ele fala de você, mes-
mo você não gostando, do que ficar totalmente sem ninguém.
Flávia: É. (Silencio longo). É a segunda vez que isso me acontece.
Parece até que eu ter alguém para mim é impossível. Estou destinada a
ser amante? Talvez seja isso. Acho que tenho que me conformar.
Analista: Ou amante ou solidão, parece que são as únicas saídas
que você vê para você. Ok. Até a próxima semana.
Na clínica, abrir o caráter de poder ser de toda e qualquer exis-
tência pode acontecer na medida em que o analisando percebe o quan-
to restringe suas possibilidades. Flávia chega à sessão parecendo mais
animada, sorrindo e a fisionomia não se mostrava tão abatida: pensei
muito no que você falou na última sessão. Posso ser amante, posso ficar
sozinha, pode aparecer outra pessoa na minha vida. Pode muita coisa,
depende daquilo que eu fizer.
Analista: Não entendi, sobre o que você está falando?
Flávia: Sobre a última sessão. Você disse que não havia saída para
mim e eu estou te dizendo que há saída. Não vou ficar lamentando que es-
ses caras imaturos, bobocas sejam a última oportunidade na minha vida.
Analista: E não são?
Flávia: Claro que não e você sabe disso. Sou jovem, ainda irei para a
faculdade e é disso que tenho que me ocupar. Não tenho que ficar lamen-

38 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


tando, chorando, achando que eles são a única coisa que presta na minha
vida. Quando saí daqui, na semana passada, fui para a escola e vi os dois
conversando, tive a impressão que falavam de mim, senti nojo deles, são
bobos, infantis, imaturos. Pensei na mesma hora, eu vou me acabar, ficar
chorando por esses caras. Não, não vou fazer isso. Alguma coisa mudou
dentro de mim. Eu nem sei te dizer o que foi, mas me libertei. Depois disso,
o Leandro me telefonou e eu fui bem sucinta, não tive vontade de esticar
a conversa. Ele insistiu e fui educada, mas não queria mais me encontrar
com ele. Pude ver toda a manobra de sedução, ele disse que eu era linda,
fofa etc. Nada do que ele disse me afetou. Não sou mais refém das seduções
dele. Ele não tem namorada? Fica com ela então e não me perturba.
O analista segue questionando as verdades estabelecidas tais
como “família Doriana”, “Felizes para sempre”, “Família de Pastor”. Os
encontros continuaram acontecendo nessa mesma dinâmica de lamen-
tação, de revolta e de tristeza, até que Flávia, em um dos encontros, traz
o seguinte relato: Eu fico pensando porque logo eu, que sempre cuidei tão
bem da minha vida, de meu futuro, tive que viver a situação de abandono
e o papel de amante. É isso que eu vivo hoje: uma mulher abandonada
e submissa.
O psicoterapeuta pergunta: Por que não você? Com essa fala, o
clínico arriscou apontar para o caráter imprevisível e incontrolável da
existência. Flávia, novamente, permanece durante muito tempo no si-
lêncio e, então, retorna: Por que não comigo? Nunca tinha pensado nisso.
Permanece em silêncio por um longo tempo e retorna: Acho que sonhei
demais, sonhei mais do que vivi e agora fico pensando que a vida não é
família Doriana. A vida não é conto de fadas com final feliz “casaram-se
e foram felizes para sempre”. Penso que a religião também ajuda a gente a
pensar assim. Filha de Pastor tem que dar o exemplo, nós temos que fazer
tudo direitinho, afinal seu pai é o pastor. A gente acaba acreditando nisso
e acha que será como a gente quer que seja.
Os encontros continuaram e Flávia, pouco a pouco, caminhava se
dando conta de como as coisas podem acontecer, ou seja, podem se dar
ao modo como planejamos, mas também pode ser de modo totalmente
diferente do planejado. Ela dava-se conta do quanto tentava iludir-se,
transformando aquilo que lhe acontecia, no sentido de que fosse da
melhor forma para ela, ou seja, que não doesse. Flávia refletia sobre o
quanto os contos de fadas eram modos de iludir. Pouco a pouco, desfa-

Situações Clínicas I • 39
zia os laços da ilusão. Com isso, vivia o luto, na medida em que se dava
conta que seu projeto era apenas algo que estava em seu imaginário.
Acabou se relacionando com outros rapazes e quando não dava certo,
lembrava-se de como era a relação com o seu primeiro namorado. Ou-
tras vezes, a aproximação do segundo rapaz com quem se relacionou
suscitava uma lembrança. Mas, Flávia se dava conta que também não
eram relações como aquelas que ela queria. Ela pensava no vestibular,
na faculdade e na vida profissional. Agora, não era só o casamento que
a atraia, via a vida plena de possibilidades.
Após dois anos de psicoterapia, Flávia já se encontrava com 17
anos e já estava na faculdade. Ela mostrava interesse nos estudos e es-
tava totalmente envolvida com o seu futuro profissional. Ela conhecera
outros rapazes, mas agora sem ficar planejando casamento e filhos. No
convívio com os amigos da Universidade descobriu que não era infe-
rior nem diferente porque não era mais virgem e, então, permitiu-se
ter outras experiências sexuais agora não mais se sentindo usada, nem
tendo que se relacionar para agradar o outro. Enfim, como ela mesma
dizia, sentia-se livre. Livre dos preconceitos, das verdades idealizadas
da identidade feminina cristalizada.
A clínica existencial prosseguiu no sentido da reconquista da
medida da existência singular: espaço onde o querer e o poder se re-
articulam. Flávia, agora, não lidava com os relacionamentos de modo
a seu querer estar em descompasso com o seu poder. Na faculdade,
conheceu um rapaz que ela mesma denominava de maduro. Ela sabia
aguardar os acontecimentos, não se deixava mais seduzir pelas pala-
vras, como ela mesma dizia, deixava que as atitudes mostrassem aquilo
em que a relação se constituía.
Flávia: Hoje, namorando Pedro, vejo a situação passada como fruto
de minha imaturidade e das influências que os valores da igreja exerciam
sobre as minhas decisões. Meus pais não participam de nada. É certo
que eles não me perdoaram. Eu compreendo, a moral da igreja é muito
esmagadora. Eu decepcionei e pronto, mas também não quero viver para
não decepcionar. Quero viver para viver. A relação com Pedro é mais leve.
Ele tem seus projetos, eu tenho os meus, sinto-me bem quando estou com
ele, mas também me sinto bem quando não estou. Será o que tiver que
ser. Eu faço a minha parte, sou sincera, digo o que quero e o que não que-
ro, o que gosto e o que não gosto. Ele também e, assim, vamos seguindo

40 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


os nossos caminhos. Sinto-me tranquila quanto ao relacionamento. Hoje
minha preocupação é poder me formar, ter um bom emprego para poder
sair da casa de meus pais. Enquanto moro e dependo deles tenho que dar
satisfação. Quando eu puder ter minha casa e me sustentar, posso viver
a minha vida com aquilo que acredito e quero fazer. Mas, por enquanto,
tenho que aguardar. Meus pais exigem que eu vá à igreja, afinal meu pai
é pastor e tenho que dar o exemplo. Eu vou para não contrariá-los e não
criar problemas em casa. Meus amigos e ex-namorados, amantes, estão
lá com a mesma vidinha. Com as mesmas fofoquinhas, com as mesmas
namoradas. Nada disso me incomoda mais. Ás vezes, eu vejo as brinca-
deiras, os flertes deles e digo de que boa me livrei. Sou mais feliz agora,
como já te disse, tenho a sensação de liberdade.

Considerações finais

Durante todo o processo em que analisando e analista estiveram


juntos, este acompanhou a experiência de Flávia para que, no acompa-
nhar da própria experiência, eles pudessem encontrar aquilo com o que
Flávia se encontrava afetada. Apenas seguindo aquilo pelo que a jovem
estava tomada é que poderíamos ir ao encontro do afeto transformador
da sua realidade. Esse afeto transformador fica muito bem ilustrado por
Lispector (1988) no seu conto Amor, quando Ana, que levava uma vida
toda regulada e sob controle se depara com um cego no sinal, mascan-
do chiclete. Também podemos ver esse mesmo momento epifânico, tal
como denominado por Lispector, no romance O idiota de Dostoievski
(1869/2015 ) quando Mískin vê o burro.
Já que o mundo não tem uma medida naturalmente dada, a me-
dida ou é dada pelo mundo como se fosse natural, ou pode ser conquis-
tada na própria existência. Assim, aconteceu com Ana e com Mískin.
A visão (eidos que significa visto) rearticula sentidos que tem um po-
tencial de transformação. A epifania, embora muito importante, é ex-
tremamente difícil de ser conquistada.
Flávia na situação psicoterapêutica, pouco a pouco, ganhava, na
própria existência e não na norma dada pelo mundo, ou seja, no como
deve ser uma mulher, a sua medida existencial. Assim, ela tomava a
referência historicamente constituída de como uma mulher deve como

Situações Clínicas I • 41
sendo naturalmente dada. Tratava-se de uma restrição de sentido ou
de uma apropriação do sentido sedimentado pelo mundo? Ela exercia
o cuidado de si ou entregava o seu cuidado ao outro? Desconhecia seu
limite, seu necessário? Ela existia no descompasso do querer e do poder
que eram seus? Ao alcançar o limite do querer em meio ao poder é que
Flávia encontra a importância daquilo que se configura na finitude, ou
seja, nos seus limites. A restrição do querer, que não leva em conta o
poder, obscurece as possibilidades dadas pelo mundo. É na descoberta
de seu caráter de poder ser que outras possibilidades se abrem como
tais. Na situação de Flávia, ela precisava descortinar a possibilidade de
que casar-se não era algo que aconteceria por que assim ela queria. Ca-
sar-se, ter um namorado era uma possibilidade bem como não casar-se
ou não ter um namorado.
Assim, Flávia não temia mais a solidão e o silêncio. Ela ficava frente
a frente com seu caráter de poder ser. Diferentemente do que ela temia,
descobriu que dessa forma experimentava a liberdade de se entregar à
existência e não mais permanecer na luta para que as coisas se dessem
ao modo da ditadura do impessoal.
O analista, para tanto, prosseguia de modo a dar apenas aquilo
que ele não tinha. O analista ao dar o que tem, apenas dá o que deve
ser, algo da ordem de uma qualificação moralmente dada. Ao dar o que
não tem, o analista recua de modo a que o outro possa se libertar para
ele mesmo. (Leão, 2013). Por isso, o analista não atua por meio de uma
funcionalidade e instrumentalização e sim de uma posição envergo-
nhada, de recuo frente à decisão do outro.

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42 • Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


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Situações Clínicas I • 43

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