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HENRIETTE T. P. MORATO
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Solicitude diz respeito a procurar: composta pelo prefixo pro, que se refere a projeto no sentido de proyectum, traduzido
por lançado adiante e por curar, em sua concepção de cuidar. Sendo o ser-aí é sempre projetivo, na acepção de lançar-se
adiante em direção a possibilidades, equivale a dizer que o homem é um realizador de possibilidades, sempre conjuntamente
com outros.
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possibilidades. Nesse sentido, psicólogos da saúde e da educação são íntima e explicitamente
engajados nesse ofício: o ser psicólogo deve compreensivamente mover-se no âmbito do
ser-com, no modo de ser clínico, pois o outro é sempre alguém com o qual o psicólogo
profissionalmente se pre-ocupa: solicitude não é ocupação, mas pre-ocupação.
Partindo de considerações de Heidegger (1927/1984) acerca da solicitude, há duas
formas básicas e extremas: a do modo da substituição e a do modo liberador. No primeiro,
toma-se o lugar do outro em sua tarefa de cuidar de ser, retirando-o de realizador de suas
próprias possibilidades. Refere-se a quando o profissional da saúde e da educação, ao invés de
acompanhar seu cliente em suas possibilidades, como testemunha, compreende-o por
interpretações de diversas teorias explicativas, ou por prescrições tecnicamente padronizadas,
por atitude autoritária portadora da verdade sobre a experiência: substitui o cuidado do outro
por si mesmo. Já no modo liberador, compreende-se o outro diante de suas próprias
possibilidades, encarregando-o de seu poder-ser para conduzir-se em dada situação,
pertinentemente a seu ser-no-mundo.
Na experiência cotidiana, o primeiro modo, na esfera da saúde, revela-se por um
saber fazer algo a alguém, intencionado atenuar o sofrimento do outro. Quanto ao segundo,
quando uma supervisão educativa atenta ao modo como o supervisionando é tocado pelo
cliente, possibilita que o psicólogo se compreenda nesse encontro, para poder dar seu
testemunho como possível encaminhamento de uma história a seus cuidados; atento ao modo
como é mobilizado em sua experiência com o supervisionando, o supervisor dirige sua
atenção na ressonância estabelecida entre este e seu cliente, pois cuida do outro se dirigindo
tanto a cenas do passado, quanto ao futuro, dando lugar à paciência, visto que a solicitude
apresenta-se sob viés temporal.
Desse modo, como ser-com, o ser-aí é para si mesmo e para outros, circulando o
mundo da alteridade com o qual se implica e refere na teia de significatividade na qual é.
Aparece em seu estado de aberto em seu próprio ser-no-mundo, porém também é do lançado
ao mundo pelo outro, sempre o descobrindo numa certa mundanidade à qual se reporta:
compreendendo o outro, o eu sabe de si mesmo através do outro em seu mundo. Assim, o eu
nunca é dado a partir de si mesmo: é um poder-ser que desenvolve possibilidades dadas pelo
mundo, pois que lançado, o ser-aí aceita ou refuta os modos através dos quais os outros
cuidam de ser, identificando-se ou distinguindo-se. Por esse modo de ser, percebe diferenças
ante a alteridade, simultaneamente desenvolvendo características específicas e organizando
estilos que o diferenciam dos outros, nem sempre se revela como autenticidade.
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Assim, a condição de ser-em e de ser-com do ser-aí recolhe e expressa, como
logos, a maneira de ser do homem: pode dizer algo porque já recolheu, reuniu, juntou esse
algo junto a outro, (de legen em alemão como colocar junto). Como conhecimento, recolher
refere-se a captar o que foi visto, sendo possível falar sobre: sobre algo que se apreendeu,
escutou. Desse modo, compreender, dizer e escutar são muito próximos e articulados,
expressando o modo pelo qual o eu já se encontra no mundo junto a outros: o eu sempre é
numa forma afetiva, humoral, de encontro com o que está acontecendo, constituindo o seu
ser-no-mundo uma fatia de sua história. Para Almeida (2005, p. 178), “O encontrar-se,
condição ontológica da manifestação ôntica do encontro humoral com o que há no mundo,
surge da possibilidade do homem como ser-no-mundo, sendo os humores a manifestação pela
qual a vida é dada ao humano”.
1. Ser afetado
Uma escuta clínica atenta aos estados de humor, sendo possível, através deles,
compreender o aí (mundo) no qual cada um está situado: medo em mundo ameaçador; mau
humor em mundo que falha; alegria em mundo vibrante; angústia em mundo inóspito e
carente de sentido, revelando o cotidiano transitar de uma emoção para outra. A este modo
Heidegger (1927/1984) denomina de indiferença afetiva cotidiana: movimento com emoções
sem grandes diferenças, uniformizadas e sem ressonância intensa.
O estado de humor, como abertura para o mundo, revela o modo do ser aí nesse
mundo: é nessa afetividade que está mais plenamente entregue a si mesmo como quem de fato
é, e não pela idéia que tem do mundo. Através da emoção, o eu situa-se no mundo,
compreendendo tal situação, pois a apreensão do mundo dá-se através do modo pelo qual o eu
nele se insere. Emoção, por emergir do mundo, não é algo interno, mas sim se apresenta
através do próprio ser-no-mundo: a emoção refere-se a como se está no mundo em tal preciso
momento.
Se as emoções expressam a situação na qual o eu já está imerso, mostrando sua
circunstância, considerar a emoção algo intrapsíquico de um sujeito, como pregam teorias
psicológicas, é algo a ponderar. Na constituição de ser aí, o mundo fere2 o eu, que, por sua
vez, a ele se refere, respondendo na justa medida em que é ferido. Afetando o eu, o mundo lhe
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Ferir, do latim ferre, em sentido próprio é levar, carregar, suportar. Assim, o mundo é levado para o eu, impactando-o; por
sua vez o eu é trazido ao mundo, respondendo a esse impacto. (Webster's Third New International Dictionary, Unabridged.
Merriam-Webster, 2002. http://unabridged.merriam-webster.com in 12 Aug. 2011).
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é revelado nesse toque, implicando que o real só é real por ser experienciado de certa maneira,
e não originariamente, modelado por conceito. “Implacavelmente, há uma realidade que se
abre por uma emoção e uma emoção que se esculpe numa realidade” (ALMEIDA, 2005, p.
182): a emoção abre o real, que, por sua vez, dispõe o eu em determinado estado de ânimo.
Na ação psicológica, pela escuta clínica pode-se captar que o mundo do
cliente/narrador, se converte numa ameaça por feri-lo ameaçadoramente, respondendo com
temor. Assim, compreende-se que não há um ato de vontade pelo qual se constitua uma
emoção para ser vivida: a emoção convoca o eu, numa dada circunstância e o eu é por ela
colhido. Tocado inapelavelmente pelos acontecimentos mundanos, “ao eu é entregue a
responsabilidade de ser, respondendo a uma dada situação, mesmo que cale e não aja.”
(ALMEIDA, 2005, p. 182)
Mas como essa condição pode expressar-se e ser compreendida pela ação
psicológica?
Ser quem se é diz de caráter de ser e aparecer para si mesmo já acolhido numa dada
existência, numa determinada circunstância, e não numa realidade dada como algo
independente do eu. Pelo olhar clínico, apreende-se que a rejeição é um tipo de
acolhimento, pois o homem é sempre lançado acolhido, mesmo que seja, em
demasia adversa, numa certa facticidade enigmática, já que o eu é abrigado de tal
modo que só pode ver o que seu olhar permite e ouvir o que é possível. (ALMEIDA,
2005, p. 183)
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referência a ela: sua compreensão do cliente dá-se por ressonância e não por empatia
(MORATO, 1989). Isto porque a compreensão empática diz poder compreender o narrador
indo ao mundo fenomenal da experiência “como se fosse ele”, assim, promovendo uma
objetivação da subjetividade tanto do cliente quanto do psicólogo. Fenomenologicamente,
compreende-se o outro tal como se foi por ele afetado, dada a condição de ser-com. Numa
entrevista de Plantão, implica pôr-se diante do outro para trabalhar com o que está
acontecendo, primeiramente, tal como4 se é tocado pelo cliente: a compreensão é
originariamente afetiva e acontece no encontro do psicólogo com o cliente, acontecendo no
entre, por ressonância.
Assim, o encontrar-se do plantonista com o cliente não pode ser tomado como
recurso para mero acolhimento afetivo incondicional, mas sim pelo olhar do tratamento
ontológico do encontro: por sua própria condição de ser, se encontra com outro e a si mesmo.
Ou seja, por não ser técnica de aproximação e acolhimento, “o encontro toca a historicidade:
manifestando-se pelo passado, interroga-se pelo que está comprometido no presente e futuro.
O encaminhamento dessa interrogação atrela-se ao estado de ânimo de cliente e plantonista,
afetado pelo testemunho narrado.” (ALMEIDA, 2005, p. 184)
É a experiência humorada/afetiva que abre a possibilidade do ser-aí deparar-se
consigo mesmo, pois a emoção efetua a realização do real, dando significatividade a tudo que
é: é por ela que o ser humano se dá conta de quão intransferível é sua possibilidade de ser,
expressa no próprio estar presente num mundo aí lançado: o eu sempre está lançado numa
situação, num certo sentido norteador, aberto pela emoção. Nesse sentido, a emoção é já uma
forma de compreensão apesar de nada ter a ver com a racionalidade: ela é um modo
específico de entendimento.
O estar lançado não é caótico, pois o eu já se descobre numa situação acolhido por e
nela, mesmo que sob a forma da rejeição, o que implica que há vários modos de
acolhimento acontecido num entrelaçamento, no qual o eu, circunstancialmente, se
experiencia. Todas as relações humanas são, assim, conotadas pelas emoções, o que
alude a que o procurar pelos outros, por exemplo, a solicitude do conselheiro ou
psicoterapeuta, sempre se dá numa relação sentida e, por isso, consistente.
(ALMEIDA, 2005, p. 186)
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“Tal como” pode ser compreendido como a coisa mesma hursserliana: o real validado pela experiência.
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compreensão do que está experienciando, favorecendo-o não paralisar-se em uma dada
situação. Citando Arendt (1993), é pela compreensão que o homem se reconcilia com o
mundo, tornando-o familiar e novamente transitável. Ou seja, descobre-se no mundo,
entendendo primeiro a mundanidade, os outros e si mesmo, pois que as emoções se originam
do modo de habitar o mundo, modo esse cultural.
Testemunhado pelo psicólogo, o cliente compreende que seu destino não é dado a
priori nem pelo livre arbítrio, já que habitar o mundo orienta sua existência: pela facticidade
do mundo e emoções que o afetam, o eu entende-se como alguém que tem direção, isto é, se
destina por ires e vires na coexistência, percebendo-se na espacialidade do existir por
aproximações e afastamentos. Refere-se à possibilidade do homem em dirigir-se – um
sentido.
Capturando o homem, o estado de ânimo/afetabilidade permite que este
permaneça sempre referido a algo por aproximação ou distanciamento, porém sempre aberto a
uma direção. As emoções chamam ao sair (cair) e ir para o mundo, tornando-o público na
co-existência: embora atente a si, está voltado para o mundo. O único humor que não procede
do mundo é a angústia: “sua proveniência é do poder-ser mais peculiar do eu, o que a torna no
exclusivo estado de ânimo que o afasta do mundo, aproximando-o de si mesmo”.
(ALMEIDA, 2005, p. 186). Desse modo, enquanto as emoções revelam a condição humana
de aberta ao mundo, a angústia traz a experiência da ausência de mundo (do nada): “se todas
as emoções possibilitam que se habite o mundo, a angústia nasce da ocorrência de um mundo
inabitável, o qual clama para ser reabitado; a angústia é uma requisição para que o eu, sem
morada e carente de sentido e destinação, habite de novo o mundo”. (ALMEIDA, 2005, p.
187)
A vida cotidiana, pautada pela ameaça, abre ao homem compreender sua
existência como uma carga/peso que pode esmagá-lo, provinda de algo do mundo ou junto
aos outros. Ademais, nada nem ninguém pode defendê-lo contra a morte: sempre está lançado
em perigo, sendo sua condição ontológica compreender tanto ser quanto não ser. Ao assumir
atitudes de prevenção em relação a sua existência, a proteção de si mesmo não é uma
aproximação de si mesmo, mas de dirigir a atenção àquilo que, provindo do mundo, o
ameaça. Focado no perigo que pode atingi-lo, não foca si mesmo como segurança; ao
contrário, há incerteza quanto a acontecimentos no mundo que podem feri-lo.
Uma entrevista de Plantão é uma situação acolhedora na qual, às avessas desse
exemplo acima, algo pode ser desmascarado do falso caráter ameaçador, emergido
na circunstância de uma existência, na qual, havendo uma preponderância absoluta
do medo, se teme por qualquer passo em direção à assunção de possibilidades mais
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próprias. Esse desmascaramento pode abrir o aconselhando num outro estado de
ânimo, o qual permite que esse algo apareça numa outra perspectiva; o aconselhando
pode deixar-se tocar de uma nova maneira pelo que antes só se apresentava
ameaçadoramente. Seu ver-em-torno via como temível quaisquer desses passos,
porque seu estado de ânimo hegemônico era o temor. Nesses termos, cada emoção
dá liberdade a tudo que se apresenta segundo o tipo de abertura que proporciona,
conferindo-lhe, assim, consistência. (ALMEIDA, 2005, p. 194)
Em outras palavras, algo temido nem sempre se apresenta assim; diz respeito a
tirá-lo do lugar no qual se apresenta pela emoção de temor; temer é dar liberdade, pois deixar
ser e aparecer é aletheia. Nesse sentido, contrariamente ao pensamento cartesiano, o
verdadeiro se dá a ver pelas emoções: o que é verdadeiro de algo se apresenta torna-se o que
é, aberto pelo que é sentido e não pelo que é pensado. A sensação experienciada é aletheia,
dando liberdade para o que é pelas emoções.
É ação psicológica abrir o cuidar de ser sob própria responsabilidade como
bem-vindo, levando o cliente a assumir-se como referência de si mesmo para possibilidades
dada pela situação: destinar-se em apropriação. Porém, sendo temerária a angústia que abre à
propriedade, o cliente pode respoder a ela com desespero, des-responsabilizando-se por si
mesmo. É próprio da ação psicológica acompanhar o cliente paralisado em projetar-se,
abrindo o benefício da dúvida quanto à “certeza temerosa” experienciada.
Assim, a ação psicológica na prática seria um modo do psicólogo procurar pelo
cliente que cuida de ser si mesmo, testemunhando a narrativa do vivido como cuidado
(MORATO, 2006). Nesse sentido, fenomenológica existencialmente, experiência diz do ser-aí
como abertura temporal: “diz respeito a um dado projetar-se, pelo qual, vindo a si, o eu volta
a si, retomando determinados modos do sido e, assim, se torna presente numa dada situação,
atualizando uma determinada ação.” (ALMEIDA, 2005, p. 199)
Como testemunha de uma narrativa, o psicólogo é afetado pelo que é
experienciado pelo cliente: é próprio à clínica psicológica agir debruçando-se na direção do
encontrar-se do cliente e do psicólogo, desvelando-os a si mesmos via a compreensão
originária de si, manifestada pelo modo como se é tocado em cada situação. Na mesma
direção, o psicólogo pesquisador encaminha sua investigação pelos vestígios da narrativa do
pesquisado, compreendida como elaboração de experiência, ao mesmo tempo em que também
registra suas sensações e compreensões prévias em “diários de bordo”, a fim de compor uma
cartografia do contexto pesquisado (MORATO, 2007).
Resgatando Heidegger (1927/1984), Almeida (2005, p. 201) diz que a “clínica só
pode acontecer à medida que já se está aberto numa afetação, possibilitando um acesso direto
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à própria historicidade e não personalidade e identidade do eu; o conselheiro deve permanecer
atento à abertura do aconselhando, atentando à maneira pela qual é tocado nessa relação, o
que se constitui numa compreensão originária.” Para Gendlin (1978/1979), a partir de
Heidegger, a propriedade da afetabilidade (befindlichkeit) abre a possibilidade da ação
psicológica como cuidado por abrir ao psicólogo experienciar em si a própria manifestação de
disposições humorais, por ele denominada “felt-sense”: o real dado no próprio ato de
experienciar. (MORATO, 2009). Seria legítimo dizer que a ação psicológica junto ao singular
ôntico possibilita aproximar-se do ser humano como tal, isto é, a humanidade de cada um?
2. A compreensão e interpretação
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Intervenção como interpor os bons ofícios. (engage to look after or attend to : accept the responsibility for the care of)
(Webster's Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-Webster, 2002.
http://unabridged.merriam-webster.com in 4 Oct. 2011).
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A possibilidade já é anunciada no contexto em que a existência é lançada, ou seja,
numa circunstância; podendo ser a partir do que já lhe é dado, o eu não é livre de sua
circunstância, porém para poder ser além. O eu é livre para resgatar possibilidades ainda não
configuradas; voltando-se para a realização do que ainda não é, o agir humano instaura a
liberdade. Compreender é abertura para o possível, isto é, projetar-se sobre possibilidades,
apreendidas não por entendimento, abrindo o poder-ser para responder em situação: trazer à
luz o possível do oculto, não como saber/conhecer, mas como abarcar o sentido da existência
humana, ou seja, pelo modo como vai se constituindo pela vida, situado num mundo junto a
outros.
Testemunhado pelo psicólogo, o cliente pode expressar como se encontra no
mundo em relação aos demais, avaliando o quão está na direção ou não de seu poder-ser e o
quão necessita de certa sujeição, necessária para prosseguir em seu projeto. É compreendendo
em situação que se faz possível ao homem desconsiderar seu modo próprio de ser por
convenientes determinações culturais.
É nesse sentido que também se encaminha a ação psicológica em prática e
pesquisa em instituições. Para este presente trabalho, recorremos a projetos, realizados por
laboratórios universitários a partir de solicitações de instituições (públicas) de saúde,
educação e segurança pública, de atenção psicológica tanto para usuários e seus familiares
como para funcionários e profissionais que nelas atuam. Iniciados em 2000, mantiveram-se
alguns por 8 anos, enquanto outros se iniciaram em 2007 e ainda se mantêm. Desfiando a
prática psicológica tradicional (MORATO, 2009) constituíram-se em elementos para pesquisa
interventiva participativa (SZYMANSKI e CURY, 2004), ambas relendo a ação psicológica
pela ótica da Fenomenologia Existencial. O questionamento implicava em considerar
precisamente a compreensão da condição humana em suas dimensões de ser-aí-no
mundo-com outros, a qual seria possível ser contemplada visto a ação ocorrer numa
instituição, podendo se dar a ver bem como a todos os atravessamentos manifestos que
implicam em seu modo de ser interpelado (MORATO, 2008).
Sendo o poder-ser direcionado a sentido e duração, a compreensão se manifesta
temporalmente como interpretação, decodificando o compreendido como possibilidades
projetadas no compreender. Dizendo respeito ao modo pelo qual tudo se apresenta,
constitui-se num como, sendo a interpretação aquilo que é. Existencialmente, a estrutura do
como é uma interpretação articuladora, enunciada por proposição. “Sucintamente, a
compreensão do possível desdobra-se temporalmente na interpretação, que sustenta a
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possibilidade de entendimento da proposição, a qual pertence à ordem da língua e pela qual se
exibe a interpretação.” (ALMEIDA, 2005, p. 203).
No contexto da ação psicológica, ocorre um jogo interpretativo entre psicólogo e
cliente através de enunciados como expressão de dada interpretação, o que permite ao cliente
elaborar possibilidades por ele projetadas. Assim, interpretar não é obtenção de informações
para explicar “funcionamento” mental por teoria explicativa. Refere-se a preencher lacunas
presentes numa forma de compreensão do projetar-se desse cliente, manifesto em seu
temporalizar-se, ou seja, de que modo um futuro incerto remete a eventos do passado
dificultando sua atualização.
Isto porque o homem já é imerso em trama de significações culturais
interpretadas: o que a ele se abre já se abre num fundo de cultura que demanda compreensão
prévia interpretativa. Assim,
Tudo que é existe numa totalidade de nexos significativos, no contexto prévio (de
antemão) da tradição, adquirindo um caráter de utilidade e uso (à-mão). Desse modo, ver de
antemão é reconhecer que existe algo da tradição que também constitui o modo humano de
ser, implicando uma concepção prévia da trama de significações: existir em uma situação
atravessada pela cultura conduz a interpretações.
Nessa medida, a ação psicológica, inclinando-se à narrativa do cliente, é
interpretativa por requerer identificar como a tradição e a trama de significações são
constituintes de seu modo de ser. É sua tarefa interpretativa dar a ver como concepções
culturais podem estar conduzindo à ausência de sentido na existência.
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Sentido etimológico de supervisão, encontrado na expressão latina super videre, mas do grego theorein (ato de ver,
contemplar). (MORATO, 1989).
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direção/sentido. Porém, palavras podem indicar sentido quando partem do
sentimento/disposição afetiva, referindo que ser afetado/sentir é o fundo/sentido da palavra.
Para Heidegger, o falar origina-se de logos, do verbo legein, cuja tradução é falar.
Simultaneamente ao sentir e compreender, o falar é originário para o homem: é por ele que se
expressa a articulação entre ser afetado e compreender, dando a ver o sentido. É fundamento
ontológico-existenciário da linguagem, pelo qual o mundo dito e interpretado pelo homem
expressa articuladamente sua significação: logos é fala/ expressão de compreensibilidade do
mundo, por reunião e separação de palavras como significado, articular ou desarticular
sentido/significações.
Na ação psicológica clínica, o falar é modo fundante de procedimento. Inclinado à
narrativa, o falar se apresenta como um falar sobre ou a respeito de, ou seja, daquilo do que se
fala, num primeiro momento. Entretanto aquilo do que se fala se fala a outro, constituinte do
ser-com: o cliente fala de experiência ao psicólogo. Porém, ao falar deixa entrever algo não
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presente no falado, mas ocultamente expresso, como se a própria fala falasse por entre lacunas
de compreensão (CRITELLI, 2002). Nesse sentido, a fala é comunicação, revelando intenções
de quem fala, por outros modos que não por palavras: noticia algo. É esta a brecha da
possibilidade interpretativa da ação psicológica.
Desse modo, fala é comunicação, pois o homem é no mundo falando com outros,
abrindo possibilidade para o que é comum entre homens: aquilo que é familiarmente
compartilhado em co-existência, condição de ser humano.
Ser psicólogo expressa a especificidade mesma do ser-com no sendo-com: o
cuidado a que se dirige é solicitude pela pré-ocupação com o outro em seu padecimento. É
essa a tarefa da ação psicológica:
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O substantivo limite remete-se à fronteira que perfaz um horizonte a partir do qual algo começa a se fazer
presente.
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Se o ouvir ocorre como possibilidade fundante do humano, o escutar é uma sua
realização; nunca se escuta ruídos puros, porém, já imbricados na interpretação já articulada.
A escuta permite a vinculação entre os homens, pois o ser-com acontece articulado pelo ouvir:
o que está pendente é aberto pelo escutar. Contudo, o ouvir pode realizar-se como um mero
escutar, não levando adiante qualquer crença e interrompendo a comunicação entre os
falantes.
A ação psicológica, como debruçar-se sobre o sofrimento do outro, constitui-se
em solicitude apoiada na escuta: o ouvir radical. Acompanhar o cliente na expressão do que
lhe dói, urge apreendê-lo em sua realidade e sentido do existir, é escuta que pode permitir se
manifestarem certos elementos norteadores vindos da tradição, mas que emperram a
singularização. Clinicamente, nunca se escutam queixas puras, mas já mescladas no caldo
interpretativo de sua realidade, estado de interpretado no qual se forjam as relações da vida
em situações com outros, em família, social e no trabalho. Também, é pela escuta que se
estabelece a relação com o psicólogo, fundada na confiança pelo bom ouvinte. A escuta
clínica, pelo ouvir, é fundamental em qualquer situação demandante de ampliação da
compreensão. Em projetos de atenção psicológica em instituições, nas modalidades de
Plantão, Psicogiagnóstico Colaborativo, Plantão Psicoeducativo, Supervisão de Apoio e
Oficina de Recursos Expressivos, o ouvir se apresenta como abertura à compreensão de mal
estares em relações situadas, indicando caminhos para aprendizagem significativa como
direção/sentido.
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Questiona-se “contra-fala”, na medida em que “contra” pode ser compreendida como “contrária”
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acarreta que se acredite nesse dizer que, por ter recolhido, expressa aquilo que é,
constituindo-se na contra-fala do bom ouvinte.” (ALMEIDA, 2005, p. 225)
Outra dimensão da fala, além do dizer e ouvir, diz respeito ao calar, que colhe e
acolhe o ouvido. É uma forma de dizer, articulando o compreendido, embora se revele no
silenciar, não expressando o compreendido em palavras, pois o compreensível, para além da
palavra, pode ser apreendido pelo silêncio: é a silenciosidade como fala. Silêncio não é
mutismo, pelo qual nada se tem a dizer.
Falando sem palavras, no silêncio, o calar refere-se a uma compreensão que “calou
fundo”; cala porque corta a palavra pela genuinidade da interpretação. A
compreensão funda, não passível de apreensão em palavras, debuta no silêncio: ao
genuíno falar compete o calar, no qual fulgura o sentido. O insight, acontecimento
fundante em qualquer situação terapêutica e de aprendizagem, ocorre na
silenciosidade; pelo jogo interpretativo, abre-se, caladamente, ao aconselhando a
direção em que seu existir navega, possibilitando-lhe uma visão clara e genuína de
seu mundo e o discernimento de seu poder-ser nesse mundo. (ALMEIDA, 2005, p.
228)
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Historial remete-se à dimensão ontológica humana.
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supervisão: elaborar a experiência de testemunha de uma história que, de algum modo, o
afetou. Assim, entre o supervisor e o estagiário surgem possibilidades de compreensão de si
mesmo e do outro, na medida em que o supervisor atenta ao modo como o estagiário foi
tocado, compreensivamente, pelo cliente, suspendendo as pré-concepções que, normalmente,
um aluno de psicologia tem sobre psicoterapia e entendimento do sofrimento; na supervisão, a
ação psicológica é experienciada na mesma direção em que foi realizada junto ao cliente
Muitas vezes, a supervisão atém-se a dimensões bem concretas do atendimento.
No entanto, isso não quer dizer orientar-se por uma visão pragmática do ser humano e da
atividade clínica. Trata-se, mais uma vez, de partir da situação para nela encontrar saídas
concretas, plausíveis de postura e conduta, considerando-se a singularidade de cada encontro.
Assim, a própria ação psicológica constitui-se numa situação de passagem, na qual se avaliam
e decidem os possíveis encaminhamentos10 disponíveis para o enfrentamento de um
sofrimento emergente de uma pessoa que clama por cuidados. Desse modo, ação psicológica
na prática e pesquisa em instituições, em seu exercício, requer recursos institucionais e
comunitários que possam re-dirigir o caminhar de uma existência, requisando uma específica
paragem como abertura de recursos necessários a des-dobramento harmonioso de sua história
para tornar tolerável um sofrimento.
Nesse sentido, a ação psicológica demanda uma rede de apoio social que
acompanhar e atender modalidades de cuidados clínicos e/ou pedagógicos de que a clientela
possa necessitar. Em suma, essa rede de apoio social constitui-se num “organismo”, em
relação mútua, que possibilita a prática da solicitude própria ao trabalho da ação psicológica,
viabilizando a seqüência de atendimentos necessários na realidade emergente.
Sendo realizada dentro da Universidade e de outras instituições públicas, a elas
servindo pelo exercício das responsabilidades civis de ensino, pesquisa e extensão
universitária, compete que os desdobramentos solicitados pela ação psicológica dirijam-se por
esses mesmos objetivos. A Universidade, por sua vez, não se deve constituir em apenas ser
um banco de dados e informações de interesse da comunidade; é sua tarefa poder ser um
centro de referência para os profissionais de várias áreas, possibilitando a circulação de
colaboração, como trabalho de co-autoria. Nesse contexto, uma de suas funções é poder
subsidiar pesquisas que concorram na efetivação de modalidades de prática da ação
10
Por encaminhamento compreende-se o encaminhar-se do próprio cliente em direção ao que sua demanda lhe
desvendou durante a ação psicológica.
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psicológica, propiciadoras de tal trabalho: é ação política11 realizar pesquisas interventivas em
instituições demandantes.
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MORATO, H. T. P. Plantão Psicológico: inventividade e plasticidade. In: Anais do IX Simpósio de Práticas Psicológicas
em Instituições - Atenção psicológica: fundamentos, pesquisa e prática. Recife: UNICAP, 2009. v. 1. p. 1-15.
12
Não se trata de compreender a existência segundo o critério de uma concretude aparente; mas, de compreendê-la como um
modo humano de ser.
24
abrir outros horizontes para uma aproximação existencial da ação psicológica clínica na
prática e na pesquisa em instituições de saúde e educação.
Referências
ARENDT, H. A dignidade da política. 2ª. Ed. Tradução de Helena Martins, Frida Coelho,
Antônio Abranches, César Almeida, Cláudia Drucker e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1993.
HEIDEGGER, M. El ser y el tiempo. 5ª. Ed. Tradução de José Gaos. México, Madrid,
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1984.
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