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Liev Tolstói
Ana Karênina
Tradução de João Netto
Formatação de LeYtor
EUROPA-AMÉRICA
Coleção Livros de bolso
(Vol. I e II)
Ana Karênina
Liev Tolstói
Publicações Europa-América
Tradução: João Netto
Capa: Estúdios P. E. A.
Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda.
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pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial.
Editor: Francisco Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX
Edição n. 40 702/2561
Execução técnica: Gráfica Europa, Lda., Mira-Sintra — Mem Martins
NOTA BIOGRÁFICA
O conde Nicolaevich Tolstoi nasceu em 1828, na
propriedade de sua família, pertencente à aristocracia rural.
Órfão muito cedo, foi educado por parentes e preceptores
franceses.
Em 1844 matricula-se na Universidade de Cazã, que era
um centro social para os jovens aristocratas. Aí pouco se
dedica ao estudo, passando o tempo em descuidada
felicidade.
Depois de alguns anos de dissipação e prazer, passados
em Moscovo alista-se como oficial numa unidade de
artilharia. Nela integrado, percorre o país.
A sua primeira narrativa, intitulada Infância (1852), e
publicada numa importante revista da época. Em 1857
demite-se do e xército e viaja pelo estrangeiro.
Casa, em 1862, com Sofia Bers, uma jovem inteligente,
filha dum médico de Moscovo que lhe clara treze filhos.
Estabelecido na grande propriedade familiar, dedica se a
gestão das suas propriedades, mas dilacera o a situação
deplorável da classe camponesa e decide modificar a sua
forma de viver, comendo e vestindo pobremente, enquanto
distribui avultadas esmolas.
Na seqüência desta crise interior abandona a família
deixando uma carta onde se confessa incapaz de levar uma
existência de grande senhor (da qual aliás já abandonara a
pose).
A viajem que empreendeu duraria apenas quatro dias,
tendo como desfecho a morte do escritor no quarto do
chefe da estação de Astapovo, onde foi acometido por
congestão pulmonar. Era o dia 14/11/1910. O mundo foi
abalado pela notícia da sua morte tendo se apercebido de
imediato que perdera um dos grandes da inteligência.
Das numerosas obras do autor sobressaem Guerra e Paz
(1864/ 66), Memórias de Um Louco (1874) Ana Karenina
(1875/77) Confissão (1882) Sonata a Kreutzer (1889).
Ressaltam de todas as suas obras a análise psicológica, a
densidade de sentimentos, a riqueza de caracteres, o
inconfundível estilo, que o colocam entre os grandes da
literatura universal.
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
Ana não saiu de casa naquele dia, quer dizer, de casa dos
Oblonski, e não recebeu ninguém, nenhuma das pessoas
que, prevenidas da sua chegada, a vieram visitar. Passou
toda a manhã com Dolly e com as crianças. Entretanto
mandara recado ao irmão, pedindo-lhe que viesse sem falta
a casa. “Vem”, dizia-lhe ela; “a misericórdia de Deus é
infinita!”
Oblonski jantou, pois, em casa; mantiveram uma conversa
geral e a mulher tratou-o por tu, coisa que não fazia desde o
que acontecera. As relações entre os dois permaneciam
tensas, mas já não se falava em separação e Stepane
Arkadievitch vislumbrava a possibilidade de chegarem a um
acordo e reconciliarem-se.
Logo que acabaram de jantar, apareceu Kitty. Mal
conhecia Ana Karenina e não sabia como a iria receber essa
grande dama petersburguesa, que todos elogiavam tanto.
Mas não tardou a tranqüilizar-se, pois sentiu que a sua
beleza e a sua juventude agradavam a Ana, de quem, de
resto, ela própria desde logo se encantou, como acontece
às vezes às jovens que ficam como que fascinadas pelas
mulheres casadas mais velhas do que elas. Ana não parecia
uma senhora da sociedade nem a mãe de um filho de oito
anos, mas uma garota de vinte anos, a julgar pela
flexibilidade dos seus gestos, a frescura e a vivacidade da
expressão, que ora lhe transparecia nos lábios ora nos
olhos, agora séria e logo triste, coisa que muito surpreendeu
Kitty. Foi precisamente esta particularidade que a seduziu:
para além da simplicidade e da franqueza de Ana,
adivinhava todo um mundo de poesia, misterioso,
complexo, que se lhe afigurava inacessível. Depois do
jantar, quando Dolly se retirou para os seus aposentos, Ana
levantou-se e aproximou-se do irmão, que acendia um
cigarro.
— Stiva — disse-lhe ela, persignando-se, ao mesmo
tempo que lhe indicava com os olhos a porta da sala —, vai
e que Deus te ajude!
Oblonski compreendera e jogando fora o cigarro
desapareceu, enquanto Ana voltava para junto das crianças.
Em virtude da afeição que viam a mãe testemunhar-lhe ou
apenas porque ela os conquistara de uma só vez, os dois
mais velhos, e depois os mais novos, imitando-os, já antes
do jantar se tinham agarrado às saias daquela nova tia e
não queriam por nada deste mundo abandoná-la. Entre eles
estabelecera-se uma espécie de jogo que consistia em se
sentarem o mais perto possível dela, em tocar-lhe, em
pegar-lhe na minúscula mão, dar-lhe beijos e brincar com o
anel que ela trazia, ou pelo menos em se roçarem na sua
saia.
— Bom, vamos outra vez para os nossos lugares, como
estávamos há pouco — disse Ana Arkadievna, instalando-se
no seu cantinho.
Gricha voltou a passar a cabeça por debaixo do braço de
Ana, aninhando-se no vestido de seda, orgulhoso e radiante
de felicidade.
— Quando é o próximo baile? — perguntou Ana a Kitty.
— Na semana que vem. Vai ser magnífico. Um desses
bailes em que as pessoas estão sempre alegres.
— Há realmente bailes em que estejamos sempre alegres?
— perguntou Ana com uma ligeira ironia.
— Embora pareça estranho, a verdade é que há. Em casa
dos Bobrietchev estamos sempre alegres e em casa dos
Nikitine também. Em compensação, na dos Mechkov
estamos sempre aborrecidos. Nunca reparou nisso?
— Não, querida. Para mim já não existem desses bailes
em que estamos sempre divertidas — disse Ana, e Kitty viu
que lhe transparecia nos olhos esse mundo singular que
nunca lhe fora revelado. — Para mim, há bailes menos
penosos e menos aborrecidos...
— Como pode a senhora aborrecer-se num baile?
— Por que não havia “eu” de me aborrecer num baile? —
perguntou Ana.
Kitty percebeu que Ana sabia a resposta que ela lhe iria
dar.
— Porque é a mais bela de todas.
Ana corou, coisa que lhe acontecia freqüentemente, e
disse:
— Em primeiro lugar, não é verdade. E ainda que o fosse,
de que me serviria?
— Assistirá a esse baile? — perguntou Kitty.
— Vejo que não terei outro remédio senão assistir. Toma,
apanha-o — disse a Tânia, que procurava tirar-lhe o anel,
que lhe deslizava com facilidade pelo dedo branco e afilado.
— Gostaria muito que fosse. Seria tão bom vê-la no baile!
— Se me vir obrigada a ir, ao menos consolar-me-á a ideia
de que lhe darei com isso satisfação... Gricha, não me puxes
pelo cabelo, que já estou bastante despenteada —
protestou, ajeitando um cacho de cabelos com que o
pequeno se entretinha.
— Estou a vê-la no baile vestida de lilás.
— Por que há-de ser de lilás? — perguntou Ana, sorrindo.
— Vamos, meninos, não estão a ouvir Miss Hull chamá-los
para o chá? — acrescentou, repelindo as crianças, que se
dirigiam à sala de jantar. — Já sei por que quer que eu vá ao
baile. Espera muito dessa noite e deseja que todos tomem
parte no seu triunfo.
— É verdade. Como sabe?
— Oh! Feliz idade a sua! Conheço-a, recordo muito bem
essa neblina azul que faz lembrar a das montanhas suíças,
essa bruma que tudo envolve, na época ditosa em que a
infância está prestes a acabar, quando esse grande círculo
divertido e feliz se converte num caminho cada vez mais
estreito, num desfiladeiro ao mesmo tempo alegre e
angustioso, embora pareça diáfano É encantador... Quem
não passou por isso?
Kitty sorria, calada. “Como teria ela vivido esse tempo?
Gostaria tanto de saber!”, pensou, recordando a figura
pouco poética de Alexei Alexandrovitch, o marido de Ana.
— Sei alguma coisa a seu respeito. O Stiva contou-me.
Felicito-a. Acho Vronski um rapaz muito agradável,
encontrei-o na estação — prosseguiu Ana.
— Ah! Esteve na estação? — perguntou Kitty, corando. —
E que lhe disse o Stiva?
— Contou-me tudo. Da minha parte, teria muita
satisfação... Fiz a viagem com a mãe de Vronski, que me
falou dele todo o tempo; é o seu filho predilecto. Bem sei
que as mães são parciais, no entanto...
— E que lhe contou?
— Oh! Muitas coisas. E embora eu saiba que é o seu filho
predilecto, vê-se bem que é um cavalheiro. Contou-pie, por
exemplo, que Vronski quis ceder todos os seus bens ao
irmão e que criança ainda fez uma proeza extraordinária:
salvou uma mulher de morrer afogada. Numa palavra: é um
herói — disse Ana, sorrindo.
E lembrou-se dos duzentos rublos que Vronski dera ao
empregado da estação. Disso, porém, não falou a Kitty.
Lembrava-se dessa circunstância com um certo mal-estar,
pois sentira nesse acto qualquer coisa que se relacionava
com ela, algo que fora melhor não ter acontecido.
— Pediu-me muito que a fosse visitar, e terei grande
satisfação em tornar a ver essa velhinha. Irei a casa dela
amanhã. Graças a Deus, Stiva está-se demorando muito
com Dolly no gabinete — acrescentou Ana, mudando de
assunto e pondo-se de pé, contrariada por qualquer motivo,
segundo pareceu a Kitty.
— Eu primeiro! Não, eu! — gritavam os pequenos, que
tinham acabado de tomar o chá e corriam ao encontro de
Ana.
— Todos ao mesmo tempo — exclamou ela. E rindo, correu
para eles, abraçando o bando de crianças buliçosas que
chilreavam entusiasmadas.
CAPÍTULO XXI
A MORTE
No dia seguinte Nicolau comungou e recebeu a extrema-
unção.
Durante a cerimônia rezou com fervor. Nos seus grandes
olhos, fitos no ícone, colocado numa mesinha de jogo
coberta com um pano de cor, havia uma súplica tão
veemente e tão esperançada que Levine, ao olhar para ele,
sentiu-se aterrado. Levine sabia que aquela súplica e aquela
esperança apenas contribuiriam para tornar mais dolorosa a
separação dessa vida que o irmão tanto amava. Conhecia a
maneira de pensar de Nicolau, constava-lhe que a sua falta
de fé não se dera pelo facto de lhe ser mais fácil viver sem
ela, mas apenas porque, a pouco e pouco, as explicações
científicas dos fenômenos do universo o tinham afastado
dela. Tão-pouco ignorava, portanto, que aquele regresso à
fé não era o resultado de qualquer meditação; não era
sincero, mas momentâneo, egoísta, produto de uma
desatinada esperança em curar-se. Sabia também que Kitty
lhe alimentava essa esperança com casos extraordinários
de cura de que lhe falara. Eis por que lhe era muito doloroso
ver aquele olhar cheio de súplica e de esperança, aquela
mão emaciada, que se erguia a custo para fazer o sinal-da-
cruz na testa descarnada, os ombros salientes e o peito oco,
onde não cabia já a vida por que rezava. Durante a
cerimônia, Levine fez o que, apesar da sua incredulidade,
mil vezes fizera: “Se existes, faz com que este homem se
cure, e assim o salvarás a ele e a mim”, murmurou,
dirigindo-se a Deus. Depois dos santos óleos, o doente
sentiu-se muito melhor. Durante uma hora não tossiu uma
só vez e sorria, beijando a mão de Kitty e agradecendo-lhe,
de lágrimas nos olhos. Dizia que se sentia bem, que não lhe
doía nada e que tinha apetite e forças. Até se sentou na
cama, quando lhe serviram a sopa, e pediu mais uma
almôndega. Apesar do seu estado desesperado e de ser
evidente que não podia curar-se, Kitty e Levine estiveram
animados durante essa hora, sentindo-se felizes, embora
temendo enganar-se.
— Está melhor?
— Estou, estou muito melhor.
— É extraordinário.
— Não há nada de extraordinário nisso.
— Seja como for, está melhor — diziam, num sussurro,
sorrindo.
Essas melhoras duraram pouco. O doente adormeceu
tranqüilamente, mas, meia hora depois, era acordado pela
tosse. E, de repente, todas as esperanças se desvaneceram,
tanto nele como nos que o rodeavam. Sem dar lugar a
dúvida e sem deixar rasto algum, a realidade do sofrimento
aniquilou todas as esperanças que tinham alimentado.
Sem se referir sequer às coisas em que acreditava meia
hora antes, como se se envergonhasse de as lembrar,
Nicolau pediu que lhe dessem o frasco de iodo, que tinha no
gargalo um papel perfurado por onde respirava. Levine deu-
lho. E o mesmo olhar de esperança fervorosa com que o
doente recebera a extrema-unção se cravara agora em
Levine, como exigindo a corroboração das palavras do
médico, o qual dizia que respirar iodo fazia milagres.
— Kátia não está? — perguntou, de voz rouca, voltando-
se, quando Levine confirmava de má vontade as palavras
do médico. — Não está? Então posso dizer-te que... toda
esta comédia foi por ela que eu a representei. É tão
simpática!... Mas nem tu nem eu já nos podemos enganar.
Nisto acredito, sim — acrescentou, apertando o frasco com
a mão ossuda e aspirando o iodo.
Passava das sete, Levine e a mulher tomavam chá no seu
quarto quando Maria Nikolaievna apareceu, correndo, sem
alento. Pálida, tremiam-lhe os lábios.
— Está o morrer — disse, num sussurro. — Tenho medo.
Vai morrer já.
Correram ao quarto de Nicolau. Este, sentado na cama,
apoiava-se numa das mãos e tinha os ombros arqueados e a
cabeça prostrada.
— Que sentes? — perguntou-lhe Levine, muito baixo,
depois de um silêncio.
— Estou a acabar — replicou o doente a custo, mas com
grande precisão, pronunciando lentamente as palavras; não
levantou a cabeça e apenas soergueu os olhos, sem
conseguir ver o rosto do irmão. — Kátia, vai-te embora —
acrescentou.
Levine levantou-se repentinamente e obrigou Kitty a sair
do quarto.
— Estou a acabar — repetiu Nicolau.
— Por que dizes isso? — perguntou Levine, para dizer
alguma coisa.
— Porque estou a acabar — insistiu Nicolau, como se
gostasse daquelas palavras. — É o fim.
Maria Nikolaievna aproximou-se.
— Era melhor que te deitasses para baixo. Aliviar-te-ia —
disse.
— Não tardo a estar estendido... — pronunciou Nicolau em
voz baixa — e morto — acrescentou, agastado e irônico. —
Bom, deita-me para baixo, se assim o queres.
Levine estendeu o irmão de costas, sentou-se a seu lado
e, reprimindo a respiração, olhou-o no rosto. O moribundo
jazia com os olhos fechados e de quando em quando
agitavam-se-lhe os músculos da testa, como os de um
homem que medita profunda e insistentemente.
Levine procurava debalde compreender o que se estava a
passar no espírito do irmão; aquele rosto severo e o
remexer dos músculos por cima das sobrancelhas deixava
perceber que o moribundo entrevia mistérios que ele,
Levine, não podia compreender.
— Sim, sim, é isso — pronunciou Nicolau, lentamente,
espaçando as palavras. — Espera — calou-se de novo. — £
isso! — disse, de súbito, como se tudo se lhe tivesse
aclarado. — Oh, meu Deus! — exclamou, suspirando.
Maria Nikolaievna apalpou-lhe os pés.
— Estão a arrefecer — disse em voz baixa.
Durante um bom espaço de tempo, assim se afigurou a
Levine, o doente permaneceu imóvel. Aias vivia e de
quando em quando suspirava. Levine, esgotado pela tensão
mental em que estava, já não se identificava com o
moribundo e não havia maneira de compreender o que ele
quisera dizer quando exclamara: “É isso!” Sem forças para
pensar mais na morte, perguntava a si mesmo que iria fazer
agora: fechar os olhos do irmão, vesti-lo, encomendar o
caixão? Coisa estranha, sentia-se frio e indiferente; o único
sentimento que experimentava era de inveja, visto Nicolau
ter agora uma certeza a que ele, Levine, não podia aspirar.
Ali ficou por muito tempo junto dele, aguardando o fim, mas
o fim não chegava. A porta abriu-se e Kitty apareceu;
ergueu-se para impedir-lhe a entrada; o moribundo, porém,
agitou-se.
— Não te vás embora — murmurou Nicolau, estendendo-
lhe a mão.
Levine tomou essa mão entre as suas, e num gesto de
desagrado à mulher significou-lhe que se retirasse. E assim
permaneceu meia hora, uma hora, depois outra hora. Já não
pensava senão em coisas sem importância: que estaria Kitty
a fazer? Quem habitaria o quarto ao lado? O médico teria
casa sua? Depois sentiu fome e sono. Retirou suavemente a
mão da de Nicolau e apalpou-lhe os pés: estavam frios, mas
Nicolau continuava a respirar. Levine tentou levantar-se e
sair em bicos de pés: o doente agitou-se e voltou a dizer:
“Não te vás embora...”
Amanhecia. O doente continuava na mesma. Muito
cautelosamente, Levine retirou a mão e sem olhar para o
moribundo saiu, dirigindo-se ao seu quarto, deitou-se e
adormeceu. Ao acordar, em vez de receber a notícia da
morte do irmão, disseram-lhe que estava na mesma. Voltara
a sentar-se, a endireitar-se, tossia, comia, falava e não
aludia à morte, demonstrando alimentar esperanças de se
curar. Tornara-se mais irascível e sombrio do que até aí.
Ninguém, nem o irmão nem Kitty o podiam aquietar.
Aborrecia-se com todos, dizia coisas desagradáveis, atirava-
lhes à cara os seus sofrimentos e exigia que lhe trouxessem
imediatamente um médico célebre de Moscovo. Sempre que
perguntavam como estava, dizia, invariavelmente, numa
expressão irada e de censura:
— Sofro muito, sofro insuportavelmente.
Sofria cada vez mais, sobretudo porque as feridas se lhe
tinham avivado, e era difícil pensá-las. E a irritação em que
estava cada vez era maior. A própria Kitty se sentiu incapaz
de o sossegar e Levine percebeu que ela estava no extremo
das suas forças, que já não podia mais, quer moral, quer
fisicamente, embora não quisesse dar o braço a torcer. A
comoção que lhe causara a despedida de Nicolau naquela
noite cedera o lugar a outros sentimentos. Todos sabiam o
fim inevitável, todos viam o doente em parte morto já,
todos tinham acabado por desejar que a morte sobreviesse
quanto mais depressa melhor; e nem por isso deixavam de
lhe dar os remédios, de mandar chamar o médico e de aviar
receitas. Mentiam a si próprios, e essa vil, essa sacrílega
dissimulação era mais dolorosa para Levine do que para
qualquer dos outros, pois amava o irmão muito
carinhosamente e nada mais contrário à sua natureza do
que a falta de sinceridade.
Levine, há muito desejoso de reconciliar os irmãos
desavindos em articulo mortis que fosse, prevenira Sérgio
Ivanovitch. Este respondeu-lhe e Levine leu ao irmão a carta
que ele lhe escrevera: Sérgio não podia vir, mas perdoava
ao irmão em termos comovedores.
Nicolau ficou calado.
— Que lhe devo dizer? — perguntou Levine. — Espero que
não estejas zangado com ele.
— Não, não estou — replicou o doente em tom
contrariado. — Escreve-lhe e pede-lhe que me mande o
médico.
Três dias cruéis decorreram ainda; o moribundo
continuava no mesmo estado. Todos na estalagem, desde o
patrão e os criados até Levine e Kitty, sem esquecer o
médico e Maria Nikolaievna, só tinham um desejo: o fim.
Apenas o doente não compartilhava desse desejo e
continuava a pedir o médico de Moscovo, a tomar remédios
e a falar em restabelecimento. Nos raros minutos em que o
ópio o mergulhava numa espécie de entressonho,
confessava, então, o que ainda mais pesava na alma dele
do que na dos outros: “Ah, se isto pudesse acabar!”
Os sofrimentos, cada vez mais intensos, obravam nele,
preparando-o para a morte. Não fazia um movimento que
não sentisse uma dor. Não havia um membro no seu corpo
que não fosse para ele uma tortura. Toda a reminiscência,
todo o pensamento, qualquer impressão lhe repugnavam. A
vista dos que o cercavam, as suas palavras, tudo lhe fazia
mal. Todos o sentiam e ninguém ousava mover-se ou falar
sem constrangimento. A vida concentrava-se para todos no
sentimento dos sofrimentos do moribundo e no desejo
ardente de o verem para sempre livre deles.
Chegara a esse momento supremo em que a morte lhe
deveria parecer a derradeira felicidade. Todas as sensações,
a fome, a fadiga, a sede, que outrora, depois de terem sido
sofrimento ou privação, uma vez satisfeitas as funções do
corpo, lhe causavam uma certa satisfação, agora eram dor
e dor apenas. Eis por que não podia aspirar a outra coisa
que não fosse libertar-se do princípio dos seus males, do
seu corpo torturado; como já não tinha, contudo, palavras
para exprimir esse desejo, por hábito continuava a reclamar
o que outrora o satisfazia.
— Volta-me para o outro lado — dizia, exigindo
imediatamente que o pusessem na posição anterior. —
Tragam-me caldo. Levem esse caldo. Contem-me alguma
coisa. Porque estão calados?
Quando principiavam a falar, porém, cerrava os olhos
numa expressão de cansaço, de indiferença e de repulsa.
No décimo dia depois de chegar àquela cidade, Kitty
adoeceu. Doía-lhe a cabeça, tinha vômitos. Não pôde
levantar-se toda a manhã.
O médico foi de opinião que era efeito do cansaço e da
agitação em que estava. Recomendou-lhe tranqüilidade de
espírito.
No entanto, depois do jantar, Kitty levantou-se e, como
sempre, com um trabalhinho nas mãos, foi visitar o doente.
Ao vê-la entrar, Nicolau olhou-a com severidade e sorriu,
desdenhoso, quando Kitty lhe disse que estivera indisposta.
Todo aquele dia o enfermo se assoou e gemeu.
— Como se sente? — perguntou-lhe Kitty.
— Pior — pronunciou ele com dificuldade. — Dói-me...
— Que lhe dói?
— Tudo.
— Vão ver que não passa de hoje — disse Maria
Nikolaievna em voz baixa.
Mas Levine percebeu que o doente, com o seu ouvido,
agora mais apurado do que nunca, devia ter percebido, e
mandou calar Maria Nikolaievna, voltando-se para Nicolau.
Este ouvira, de facto, porém nenhuma impressão lhe tinham
feito essas palavras. Continuava com a mesma visagem
concentrada e de censura.
— Por que diz isso? — perguntou Levine a Maria
Nikolaievna, quando esta o seguiu no corredor.
— Porque principiou a despojar-se.
— A despojar-se, como?
— Assim — replicou Maria Nikolaievna, puxando pelas
pregas do vestido de lã.
Com efeito, Levine notara que durante todo o dia o doente
procurara como que tirar algo de cima de si.
O vaticínio de Maria Nikolaievna cumpriu-se. Ao anoitecer,
Nicolau já não tinha forças para erguer as mãos e não fazia
outra coisa senão olhar na sua frente com uma atenção
concentrada. Até mesmo quando
Kitty e Levine se debruçaram para ele, de modo a que
pudesse vê-los, continuava de olhos fitos, com a mesma
expressão. Kitty mandou chamar o sacerdote para que
rezasse a oração dos moribundos.
Enquanto o sacerdote rezou, o doente não deu sinais de
vida, conservando-se de olhos fechados. Levine, Kitty e
Maria Nikolaievna estavam junto da cama. Não tinha o
sacerdote acabado de rezar quando o doente suspirou e
abriu os olhos. Finda a oração, aquele tocou com o crucifixo
na testa fria de Nicolau; depois, envolveu-a lentamente na
estola e após alguns minutos de silêncio tocou-lhe na
grande mão fria e exangue.
— Está morto — disse, fazendo menção de se retirar.
De súbito, porém, os lábios pegados de Nicolau agitaram-
se e no silêncio ouviram-se claramente, saindo-lhe das
profundezas do peito, uns sons precisos e penetrantes:
— Ainda não... daqui a pouco.
Daí a momentos, iluminou-se-lhe o rosto e um sorriso lhe
assomou aos lábios. As mulheres começaram a ocupar-se
do cadáver.
O aspecto do irmão e a presença da morte renovaram na
alma de Levine aquele sentimento de horror ante o enigma
e a proximidade da morte inevitável experimentado na noite
de Outono em que Nicolau estivera em sua casa. Agora esse
sentimento era mais forte ainda. Ainda se sentia menos
capaz de compreender o significado da morte e com mais
clareza ainda se capacitava de que ela era inevitável. No
entanto, graças à presença da mulher, esse sentimento não
lhe causava desespero: em que pesasse a morte, sentia a
necessidade de viver e de amar. Sentia que o amor o
salvara do desespero e que perante aquela ameaça o amor
se tornava mais forte e mais puro.
Ainda não se lhe tinha revelado o mistério da morte e já
outro mistério se lhe deparava, igualmente inescrutável,
que o estimulava a viver e a amar.
O médico confirmou as suspeitas de Levine a respeito de
Kitty. Aquele seu mal-estar era a gravidez.
CAPÍTULO XXI
Quando Ana chegou a casa, por sua vez, procurou ler nos
olhos de Dolly o que se teria passado entre ela e Vronski,
mas não lhe perguntou coisa alguma.
— Parece que já são horas de jantar — disse ela. — E
quase não tivemos tempo de falar. Espero que arranjemos
ocasião lá para a noite. Agora temos de mudar de vestido.
Creio que também o quererás fazer. Ficámos todas sujas
com a nossa visita ao hospital.
Daria Alexandrovna dirigiu se ao seu quarto. Tinha
vontade rir. Nada tinha que vestir, uma vez que trazia no
corpo o seu melhor vestido. No entanto, para mostrar de
algum modo que se arranjara para o jantar, pediu à criada
que lhe limpasse o vestido, depois mudou os punhos e o
lacinho e pôs na cabeça uma mantilha bordada.
— Foi tudo quanto pude fazer — disse, sorrindo, para Ana,
que veio ao seu encontro com outro vestido muito simples,
o terceiro daquele dia.
— Somos muito formalistas aqui — disse Ana, para
desculpar se da sua elegância. — Alexei está encantado
com a tua visita. Poucas vezes o tenho visto tão contente.
Decididamente está enamorado de ti. Não estarás cansada?
Até à hora do jantar já não tiveram tempo de falar de
coisa alguma. Quando entraram no salão, já lá estava a
princesa Bárbara e os homens, todos de redingote; o
arquitecto, esse, vestira casaca. Vronski apresentou a Daria
Alexandrovna o médico e o administrador. Já lhe tinha
apresentado o arquitecto, quando da visita ao hospital.
O mordomo, um homem robusto, muito barbeado,
ostentoso e deslumbrante, de peitilho engomado, anunciou
que o jantar estava na mesa e as senhoras puseram se de
pé. Vronski pediu a Sviajski que oferecesse o braço a Ana
Arkadkvna, aproximando-se ele de Dolly. Veslovski,
adiantando se a Tuchkievitch, ofereceu o braço à princesa
Bárbara, de sorte que tanto aquele como o arquitecto e o
administrador deram entrada na sala sem o respectivo par.
O jantar, a sala, a baixela, os criados, o vinho e os
manjares estavam de harmonia com o tom geral do luxo de
toda a casa e até pareciam mais sumptuosos e novos que
tudo o mais. Daria Alexandrovna observava esse luxo, tão
novo para ela, e, conquanto não tivesse esperanças de
poder vir a aplicar à sua própria casa qualquer coisa do que
via, observava involuntariamente todos os pormenores,
perguntando se a si mesma quem organizaria tudo aquilo.
Vacienka Veslovski, Stepane Arkadievitch, até mesmo
Sviajski e outros homens que Dolly conhecia nunca
pensavam naquelas coisas. Entendiam que o desejo de
qualquer anfitrião era que os seus convidados supusessem
que tudo na casa bem arranjado não dera trabalho algum,
tudo se fizera por si. Daria Alexandrovna sabia que nem
sequer as papinhas para o pequeno almoço das crianças se
faziam por si e estava certa, portanto, que alguém pusera
grande interesse naquela organização tão complicada e
magnífica. Tanto pelo olhar com que Alexei Kirilovitch
examinou a mesa como pelo sinal que o mordomo lhe fez e
a maneira como convidou Daria Alexandrovna a escolher
entre a sopa quente e a sopa fria, compreendeu que tudo
aquilo se fazia e era mantido graças aos cuidados do próprio
dono da casa. Ao que parecia, Ana preocupava se tão pouco
com tudo aquilo como Veslovski, por exemplo. Tanto ela
como Veslovski, a princesa e Vacienka eram hóspedes que
gozavam alegremente os regalos que lhes tinham
preparado.
Ana só era dona da casa na maneira como procurava
dirigir a conversa. E essa conversa, muito difícil de manter
para a dona da casa numa mesa de poucos comensais e a
que se sentavam pessoas, tal como o arquitecto,
pertencentes a um meio muito diferente, as quais, por mais
que fizessem para não se mostrar tímidas perante um luxo
a que não estavam habituadas, não podiam tomar parte
muito activa na conversa geral, conseguiu Ana conduzi-la
com naturalidade, graças ao seu tacto habitual, e até
mesmo com prazer, como pôde observar Daria
Alexandrovna.
Falaram de como Tuchkievitch e Veslovski haviam
passeado os dois sozinhos no barco e aquele contou o que
se passara nas últimas corridas do Iate Clube de
Sampetersburgo. Mas Ana, aproveitando a interrupção,
dirigiu se ao arquitecto para arrancá-lo ao seu mutismo.
— Nikolai Ivanovitch ficou muito surpreendido com o
adiantamento que leva a obra desde a última vez que aqui
veio — disse, referindo se a Sviajski — e eu própria, que a
visito todos os dias, estou assombrada com a sua rapidez.
— Trabalha se bem com Sua Excelência — replicou o
arquitecto com um sorriso (era um homem respeitoso e
tranqüilo, consciente do seu valor). — Não é a mesma coisa
que tratar com as autoridades provinciais. Em lugar de
perder tempo com papelada, exponho o projecto ao conde e
discutimo-lo em poucas palavras.
— Estilo americano — disse Sviajski, sorrindo.
— Sim, nos Estados Unidos constrói se de maneira
racional...
A conversa derivou para os abusos de autoridade nos
Estados Unidos, mas Ana mudou imediatamente de assunto
para arrancar o administrador ao seu silêncio.
— Já viste trabalhar as novas máquinas ceifeiras? —
perguntou a Daria Alexandrovna. — Tínhamos ido observá-
las quando nos encontramos contigo. Fui eu a primeira a vê-
las.
— E como funcionam elas? — perguntou Dolly.
— Tal qual como se fossem tesouras. É uma prancha com
muitas tesourinhas.
Ana pegou, com as suas belas mãos brancas, de dedos
cheios de jóias, numa faca e num garfo e mostrou como
funcionavam as máquinas. Evidentemente que estava certa
de que nada se percebia através da sua explicação, mas,
como sabia que falava de maneira agradável e que tinha
mãos bonitas, continuou a explicar:
— Parecem se mais ainda com navalhas — disse
Veslovski, gracejando e sem afastar os olhos de Ana.
Esta sorriu imperceptivelmente sem responder.
— Não é verdade, Karl Fiodorovitch, que se parecem com
tesouras? — perguntou, dirigindo se ao administrador.
— O ja — replicou o alemão. — Es ist ein ganz einfaches
Ding(Nota 98) — e pôs se a explicar a construção das
máquinas.
— É pena que não atem. Na exposição de Viena vi
máquinas que atavam os molhos com um arame — disse
Sviajski. — Essas máquinas são mais práticas.
— Es kommt drauf an... Der Preis vom Draht muss
ausgerechnet werden(Nota 99) — e o alemão, obrigado a sair
do seu mutismo, dirigiu se a Vronski: — Das lasst sich
ausrechnen, Erlaucht(Nota 100) — e quis extrair do bolso um
livrinho com um lápis, no qual havia uns cálculos; mas, ao
lembrar se de que estava à mesa e ao observar o olhar
tímido de Vronski, absteve se.
— Zu compliziert/ macht zu viel Klopot(Nota 101) — concluiu.
— Wünscht man “Dochodsf”, so hat man auch Klopot(Nota
102) — exclamou Vacienka, parodiando o alemão. — J'adore l'
allemand109 — acrescentou, dirigindo se a Ana com o
mesmo sorriso de há pouco.
— Cessez(Nota 103) — disse Ana, meio a sério meio por
graça. — Esperávamos encontrá-lo no campo, Vacili
Semionovitch — acrescentou, dirigindo se ao médico, um
homem de aspecto doentio. — Esteve lá?
— Estive, mas desapareci — replicou o médico com
amarga ironia.
— Então fez bom exercício.
— Magnífico.
— E a velha, como está? Espero que não seja o tifo.
— Não é o tifo, realmente, no entanto está mal.
— Que pena! — disse Ana, e, cumprido que foi o seu
dever de cortesia para com as pessoas de fora, dirigiu se
aos seus.
— Seja como for, Ana Arkadievna, não me parece fácil
construir uma máquina só com a sua explicação — disse
Sviajski, gracejando.
— Mas porquê? — acudiu Ana com um sorriso. Este sorriso
dava a entender que ela sabia que Sviajski notara alguma
coisa de agradável na sua explicação. Esse novo rasgo de
coqueteria juvenil em Ana surpreendeu desagradàvelmente
Dolly.
— Em compensação — declarou Tuchkievitch —, é
extraordinário o que Ana Arkadievna sabe de arquitectura.
— Sim, senhor! — exclamou Veslovski. — Ainda ontem a
ouvi estar a falar de plintos e de frontões. Digo bem?
— Não tem nada de excepcional, quando uma pessoa está
acostumada a ouvir pronunciar esses nomes todos os dias!
Mas estou certa de que não deve fazer a mínima ideia dos
materiais com que se constrói uma casa!
Daria Alexandrovna notou que, posto que Ana se
mostrasse descontente com aquele tom ligeiro em que se
exprimiam, ela própria e Veslovski por ele se deixavam
arrastar involuntariamente.
Ao contrário de Levine, Vronski não ligava a mínima
importância à tagarelice de Veslovski; em vez de a reprimir,
encorajava a com gracejos.
— Vejamos, Veslovski, diga lá como se unem as pedras
dos edifícios?
— Com argamassa, naturalmente.
— Bravo! E que vem a ser a argamassa?
— Assim uma espécie de pasta... não, de massa — disse
Veslovski, provocando o riso de todos.
À excepção do médico, do arquitecto e do administrador,
que se conservavam calados, os convivas tagarelaram com
grande animação durante todo o jantar, falando disto e
daquilo, ora deslizando agradavelmente ora defrontando
algum obstáculo, ora zurzindo esta ou aquela pessoa sem
piedade. Uma das vezes, foi Daria Alexandrovna quem se
sentiu ferida, corou e de tal modo se deixou exaltar que
teve receio, por fim, de ter ido longe de mais. Falando de
máquinas agrícolas, Sviajski julgou se no direito de dizer
que Levine considerava nefasta a introdução desses
engenhos na Rússia e insurgiu se contra uma opinião tão
esquipática.
— Eu não tenho a honra de conhecer esse senhor Levine
— disse Vronski, sorrindo —, mas quer me parecer que ele
nunca viu as máquinas que critica, ou, pelo menos, apenas
viu máquinas dessas fabricadas na Rússia. De outro modo,
não posso perceber o seu ponto de vista.
— É um homem com pontos de vista turcos — disse
Veslovski com um sorriso, dirigindo se a Ana.
— Não me cabe a mim defender as opiniões dele —
declarou Daria Alexandrovna, excitando se um pouco —,
mas o que lhe posso afirmar é que Levine é pessoa muito
instruída. Se aqui estivesse, saberia fazer lhes compreender
a sua maneira de encarar as coisas.
— Oh, gosto muito dele e somos excelentes amigos —
proclamou Sviajski, em tom cordial. — Mas desculpe me,
elle est un petit peu toque(Nota 104). É de opinião, por
exemplo, que o zemstvo e os juizes de paz são inteiramente
inúteis e recusa se a fazer parte desses organismos.
— Aí está a nossa indiferença russa — disse Vronski,
deitando no copo água gelada de uma garrafa. —
Recusando nos a compreender que os direitos de que
gozamos implicam alguns deveres.
— Não conheço homem que cumpra mais
escrupulosamente os seus deveres — disse Daria
Alexandrovna, irritada com o tom de superioridade com que
Vronski falara.
— Pois eu, pelo contrário — continuou Vronski, ao que
parecia ferido ao vivo pela conversa —, estou muito
reconhecido a Nicolau Ivanovitch por me ter concedido a
honra de me nomear juiz de paz honorário. Julgar uma
pequena questão local parece me tão importante como
qualquer outra coisa. E, se me nomearem vogal, sentir me
ei muito lisonjeado com isso. Só assim poderei pagar os
benefícios que recebo como proprietário rural. Infelizmente,
não se compreende a importância que devem ter no Estado
os grandes proprietários.
Dolly comparou a obstinação de Vronski à de Levine,
defendendo ideias diametralmente opostas. E não pôde
deixar de pensar que aquela segurança se afirmava em
ambos quando estavam à mesa. Mas como era muito amiga
do cunhado, dava lhe razão intimamente.
— Pelo que vejo, conde, podemos contar consigo para as
eleições!
— disse Sviajski. — É preciso sair daqui alguns dias antes
para chegarmos no dia 8. Se me quer dar a honra de ficar
em minha casa...
— Pela minha parte — disse Ana a Dolly —, sou da opinião
do teu cunhado... ainda que por motivos diferentes —
acrescentou, sorrindo. — Quer me parecer que nos últimos
tempos vamos tendo demasiados deveres sociais. Nos seis
meses que aqui estamos, Alexei já exerceu cinco ou seis
funções distintas. Au train que cela vá(Nota 105), todo o seu
tempo será tomado por isso. E quando as funções se
acumulam dessa maneira, receio que acabem por não
passar de mera questão formal. Diga me, Nicolau
Ivanovitch, quantos cargos tem o senhor? Uns vinte,
naturalmente. — Ana falava em ar de gracejo, mas no tom
em que se exprimia notava se certa irritação. Daria
Alexandrovna, que observava atentamente Vronski e Ana,
não tardou a dar por isso. Igualmente notou que no rosto de
Vronski, durante aquela discussão, havia severidade e
obstinação. Ao notá-lo e ao observar que a princesa Bárbara
também observava Ana Arkadievna, deu se pressa em
mudar de assunto, pondo se a falar das suas amizades de
Sampetersburgo. Lembrou se, então, que, na sua conversa,
no parque, com Vronski, este aludira, bem pouco a
propósito, à necessidade que tinha de desenvolver qualquer
actividade. Desconfiou que Ana e Vronski estariam em
desacordo neste ponto.
O jantar, os vinhos, o serviço, tudo estava muito bem,
mas tinha o carácter impessoal e essa espécie de tensão
que Dolly já observara nos banquetes e nos bailes e de que
estava desabituada. Tudo isso, num dia vulgar e com
pessoas íntimas, lhe produziu uma impressão desagradável.
Depois do jantar, ficaram por algum tempo sentados no
terraço. Depois foram jogar o lawn-tennis. Os jogadores,
divididos, em dois grupos, colocaram se no croquet ground,
cuidadosamente alisado e nivelado, de ambos os lados da
rede estendida entre pilares dourados. Dolly quis
experimentar o jogo, mas não havia maneira de
compreender as regras respectivas e quando, finalmente,
chegou a aprendê-las sentia se exausta, preferindo ficar a
fazer companhia à princesa Bárbara. O seu parceiro,
Tuchkievitch, desistiu também, mas os outros jogaram ainda
por muito tempo. Sviajski e Vronski eram dois bons
jogadores: muito senhores de si, seguiam, de olhar atento, a
bola que lhes serviam, apanhavam-na na altura precisa e
devolviam na com um golpe de raqueta seguro. Veslovski,
pelo contrário, excitava se de mais, mas as suas risadas, os
seus gritos, a sua alegria, animavam os outros jogadores.
Depois de pedir licença às senhoras, despira o redingote e a
sua bela figura, o seu busto bem modelado, o seu rosto
corado, a camisa branca, os seus gestos nervosos tão
nitidamente se gravavam na memória que Dolly por muito
tempo continuaria a ver tudo isso antes de conciliar o sono.
Durante o jogo enfadara se. Desgostava a aquela
familiaridade entre Veslovski e Ana, aliás todas aquelas
cenas lhe pareciam de uma afectação infantil: os adultos
que entre si se consagram a distracções de crianças
prestam se ao ridículo. No entanto, para não desanimar os
outros e por simples distracção, depois de descansar um
pouco, juntou se de novo aos jogadores e fingiu divertir se.
Durante todo aquele dia teve a impressão de estar a
representar no teatro com actores melhores do que ela e
que ô seu contracenar defeituoso malograva a peça.
Fora a casa de Ana na intenção de passar com ela dois
dias, se se sentisse bem. Mas quando anoiteceu, ainda em
pleno jogo, decidiu que partiria no dia seguinte. Os cuidados
de mãe que tanto a atormentavam e que tão odiosos se lhe
tinham entremostrado na viagem, agora, que passara um
dia sem se dedicar a eles, surgiam lhe sob outra aspecto e
atraíam na.
Pela noite, depois do chá e de um passeio de barco, Daria
Alexandovna entrou sozinha no seu quarto, despiu o vestido
e quando principiou a pentear os poucos cabelos sentiu se
muito aliviada.
A ideia de que Ana a viesse visitar parecia lhe até pouco
agradável. Desejaria ficar só com os seus pensamentos.
CAPÍTULO XXIII
FOLHA DE ROSTO
CRÉDITOS
NOTA BIOGRÁFICA
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
CAPÍTULO XXXIII
CAPÍTULO XXXIV
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
CAPÍTULO XXXIII
TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
QUARTA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
QUINTA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULOXVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
CAPÍTULO XXXIII
SEXTA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
SÉTIMA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
OITAVA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
NOTAS