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A Tempestade e a Poesia

Gabriel Fortunato Coutinho Guimarães 9825733

Introdução

Durante séculos uma das últimas e mais peculiares peças do Bardo - como era
conhecido Shakespeare - foi pivô simbólico para a reflexão exterior e interior sobre
um continente inteiro: as Américas. A obra trata-se da peça A Tempestade, e suas
figuras, notavelmente Próspero, Ariel e Caliban, foram disputadas como símbolos
representativos para nações, relações (de colonização), objetivos, espíritos,
essências, estéticas, etc. Principalmente dentro da reflexão sobre a América Latina,
essas figuras se viram, nos últimos séculos, disputadas em sua representação e
significação.

Independente da significação atribuída a esses personagens, a reflexão sempre


teve um cunho ideológico e cultural. Ideológico em suas reflexões e conclusões
sobre a posição (colonial) da América Latina com relação ao resto do mundo - e nas
implicações disso para nossos próprios governos e projetos nacionais. E cultural,
necessariamente, na medida em que constitui também uma questão de identidade
ao identificar a América Latina com este ou aquele personagem, por movimentar
essas figuras literárias, seja como uma alusão direta ou como metáfora que se
complexifica dentro de uma obra, e por fim, simplesmente por fazer parte da
produção literária e intelectual.

Neste sentido, é curioso observar que, enquanto alguns dos mais importantes
autores que movimentaram estes conceitos tenham o feito dentro do gênero de
ensaio ou manifesto, estes autores foram também consagrados poetas de suas
épocas. É o caso de Rubem Dário, José Enrique Rodó, Roberto Fernández
Retamar, etc. Partindo desta observação e tomando interesse em expandir um
pouco a reflexão sobre a discussão da América Latina num âmbito cultural, este
ensaio se propõe a esboçar uma reflexão sobre como as ideias de diferentes
autores que mobilizaram o universo simbólico de A Tempestade - no caso, o
movimento do arielismo por um lado, e os autores que se ligaram à Caliban ou a
ideia de “canibal”, por outro - se traduzem na produção literária desses escritores
para além do gênero de manifesto, adentrando, principalmente, a sua produção
poética.

O Arielismo

Estabelecido pelo livro “Ariel” de José Enrique Rodó, más gestado antes por
autores como Rubén Darío e Paul Groussac, o arielismo utiliza das figuras de
“Caliban e Ariel como símbolos para marcarem a diferença da região em relação
aos EUA, identificando latinos com um espiritualismo desinteressado que
contrastaria com o utilitarismo materialista de anglosaxões” (RICUPERO, 2014).
Assim, em grossas palavras, o arielismo ressalta a elevação espiritual, beleza
cultural e nobreza da América Latina, comparando-a a Ariel - “a parte nobre e alada
do espírito” (RODÓ, 1957) - e rechaça a opulência vulgar e utilitária dos Estados
Unidos, comparando-os à Caliban, um monstro de natureza vulgar e materialista -
“símbolo de sensualidade e torpeza” (RODÓ, 1957). Procurando completar a tríade
de personagens, seria possível, principalmente na obra de Rodó, identificar
Próspero como representando uma elite intelectual e cultural, capaz de organizar e
conciliar as naturezas opostas de Ariel e Caliban. Assim, pensando politicamente,
Ariel representaria um governo aristocrático e Caliban a democracia - democracia
estadunidense, isto é - e esta elite de Prósperos seria capaz de resolver a dialética
proposta.

O movimento do Arielismo surge lado a lado com o modernismo, de forma que


Rubén Darío é precursor de ambos, e sendo sua ligação tão íntima, seria um erro
fazer uma separação radical entre esses dois movimentos. Dentro da literatura
hispano-americana, o arielismo e o modernismo - ao menos em sua primeira fase -
são interligados e muitas vezes se confundem. Darío definiu, em sua crónica “El
Modernismo”, o movimento como caracterizado por “la expresión individual, la
libertad y el anarquismo en el arte”, o que pode parecer um tanto contraditório com
as visões arielistas aristocráticas, mas que podemos interpretar como o lado "aéreo"
de Ariel, numa arte que se solta dos modelos vigentes anteriores. Seja como for, é
fato que o modernismo hispano-americano tem sua origem num “refinamento” do
simbolismo e parnasianismo francês, e neste sentido uma figura de destaque que
influenciou tanto modernismo quanto arielismo foi Ernest Renan. Renan tem
marcada influência nestes movimentos ao reescrever as personagens de A
Tempestade em uma peça chamada Caliban: suite de La Tempête, onde defende
suas visões aristocráticas através do contraste entre a tríade de personagens numa
lógica não tão dissimilar ao arielismo. Também podemos citar sua influência no trato
idealístico da grécia antiga, por exemplo, presente em poetas do modernismo
hispano americano como Gutiérrez Nájera, e certamente em Rodó, que em Ariel faz
“una síntesis poderosa de la civilización helênica” (UREÑA, 1954).

Vamos analisar alguns poemas destes autores. Claro que, sendo este ensaio
apenas um rascunho, não iremos analisar mais que um poema por autor, o que é
pouco para tirar qualquer conclusão significativa, mas suficiente para este esboço.
Comecemos com um poema de Rodó:

Lecturas (José Enrique Rodó)

De la dichosa edad en los albores


amó a Perrault mi ingenua fantasía,
mago que en torno de mi sien tendía
gasas de luz y flecos de colores.

Del sol de adolescencia en los ardores


fue Lamartine mi cariñoso guía.
Jocelyn propició, bajo la umbría
fronda vernal, mis ocios soñadores.

Luego el bronce hugoniano arma y escuda


al corazón, que austeridad entraña.
Cuando avanza en mi heredad el frío,
amé a Cervantes. Sensación más ruda
busqué luego en Balzac... y hoy, ¡cosa extraña!
vuelvo a Perrault, me reconcentro, y río…

Neste poema podemos ver um claro alinhamento com uma das principais ideias
expressas em Ariel: o culto à uma elite intelectual e cultural, que está ligada, assim
como este poema, à figuras "clássicas" da cultura europeia - em geral ibérica. O
poema é uma exaltação destas figuras, seguindo a forma de um soneto.

Abrojos – IV (Rubén Darío)

Puso el poeta en sus versos


todas las perlas del mar,
todo el oro de las minas,
todo el marfil oriental;
los diamantes de Golconda,
los tesoros de Bagdad,
los joyeles y preseas
de los cofres de un Nabad.
Pero como no tenía
por hacer versos ni un pan,
al acabar de escribirlos
murió de necesidad.

Este poema de Dario é particularmente interessante, e resolvi escolher este para


nossa análise em detrimento de outros mais idealistas, sonhadores e amorosos
porque acredito que este acrescenta algo importante em nossa discussão. Para
além de todo idealismo, há algo de socialmente engajado no modernismo, e assim
também no arielismo. Sua crítica ao materialismo estadunidense não é exatamente
uma crítica ao imperialismo ou ao capitalismo, e sua predileção por uma aristocracia
é até reacionária, mas existe no coração deste movimento, em seu sonho
helenistico e sua busca de uma sociedade “elevada”, um ideal utópico social que,
novamente, não chega a ser uma crítica ao capitalismo e suas instituições, mas a
ensaia. Este poema representa muito bem isso e sua forma característica, presente
na escolha da figura do poeta como centro da discussão, exaltando o “valor” que
este agrega em seu poema em contraste com o “valor” econômico que tem
socialmente.

Desta forma, podemos ensaiar dizer que o arielismo na literatura assume a forma
de um modernismo idealista, com características românticas, clássicas e por vezes
parnasianas, elementos presentes na primeira fase do modernismo
hispano-americano em geral. A exaltação de uma elevação cultural da arte e do
espírito, que deveria se sobrepor ao materialismo vulgar é, possivelmente, seu tema
mais marcante e que está de acordo com a produção mais ensaística e ideológica
do movimento.

Caliban

Em contraste com o arielismo, diferentes autores em diferentes contextos - sem


formar propriamente um movimento - durante o séc. XX mudaram a lógica e
transformaram Caliban no verdadeiro símbolo da situação colonial. Neste sentido,
em autores como Aime Césaire e Roberto Fernandez Retamar, Caliban agora perde
sua condição de monstro, e torna-se o rebelde injustiçado, aquele que foi
desumanizado pela situação colonial e que é, de fato, o justo herdeiro de sua “ilha”,
mas forçosamente feito escravo pelo egoísta e paranoico colonizador representado
por Próspero. Para Retamar, Caliban é o revolucionário que deve ser símbolo da
América Latina, enquanto Ariel é o intelectual que acaba por ser elitista. Césaire, em
sua peça “Uma Tempestade” faz algo similar, tornando Caliban um escravo negro,
Ariel um escravo mulato, e Prospero o colonizador inseparavel de seu impulso
destrutivo e “civilizador”. Novamente ambos estes autores são poetas, e
pensaremos também suas poesias:

El Otro (Roberto Fernandez Retamar)


Nosotros, los sobrevivientes,
¿A quiénes debemos la sobrevida?
¿Quién se murió por mí en la ergástula,
Quién recibió la bala mía,
La para mí en su corazón?
¿Sobre qué muerto estoy yo vivo,
Sus huesos quedando en los míos,
Los ojos que le arrancaron, viendo
Por la mirada de mi cara,
Y la mano que no es su mano,
Que no es ya tampoco la mía,
Escribiendo palabras rotas
Donde él no está, en la sobrevida?

Nestes versos brancos, conseguimos identificar a preocupação social e


revolucionária do autor - é importante considerar que é um poema escrito em 1959,
após a revolução cubana. Se em Darío vimos a figura do poeta, exaltado pela
beleza de sua arte, mas que por fim morre por uma questão social, neste poema de
Retamar nós temos a figura do militante, do revolucionário que lutou e morreu pela
causa social, e agora é pensado em sua relação de síntese com o próprio poeta e
seus versos, num processo histórico e cultural que se assume coletivo. Em outras
palavras, em Darío a arte vem primeiro, e o social aparece como uma “falha” que a
prejudica, em Retamar, o social e a luta pela sua transformação é o que vem
primeiro, e a arte é feita numa inseparável relação para com estes.

Blues da Chuva (Aime Césaire)


Aguacero
belo músico
aos pés de uma árvore desfolhada
em meio às harmonias perdidas
junto de nossas memórias derrotadas
em meio às nossas mãos de derrota
e dos povos de estranha força
deixamos abaixar nossos olhos
e nascer
desatando as cordas de uma dor
nós choramos.

A cena descrita pelo poema de Césaire não é só um verso de bonita melancolia,


mas é também um poema que se historiciza a partir do momento comum e concreto
de ver um músico negro tocando blues na chuva. De forma similar a Retamar, o
poema mistura sentimento e história. Césaire enxerga na beleza e tristeza do blues
não uma forma universalista e espiritual da beleza, como presente no arielismo, mas
sim a história e cultura preta; é este passado e presente que conferem força e
sinceridade à sua beleza e melancolia.

Gostaria de argumentar, desta forma, que há algo similar entre a poesia do


arielismo e do “calibanismo”: a importância da arte. O arielismo coloca a arte num
patamar de elevação humana e encara o social a partir deste patamar. Os autores
do “calibanismo” criticam duramente esta posição, mas não rejeitam a arte, pelo
contrário, a poesia desses autores demonstra como a arte é uma resposta possível
e necessária à questão social e colonial que enfrentam, uma arte engajada e, no
caso, historicizada, conflui com a própria luta social, e faz parte de sua construção
em diversos sentidos.

Antropofagia

No Brasil, sempre um tanto “isolado” linguisticamente e culturalmente do resto da


américa latina, o movimento modernista tomou outros rumos. Similar ao resto da
hispano américa, o modernismo brasileiro tem origem na influência francesa, mas
no nosso caso a influência vem das vanguardas. Se os autores brasileiros não
mobilizam as figuras de A Tempestade com a mesma frequência que os
hispano-americanos, eles não deixam de fazer uso do universo conceitual
mobilizado por essa discussão, através do “canibalismo” presente na antropofagia
da primeira fase do modernismo.
De forma única, a antropofagia quase constitui uma síntese da dialética arielismo
x calibanismo, onde esta preocupação máxima com a arte está presente não na sua
exaltação, mas na sua “destruição” e decomposição. Se a influência é externa -
europeia - a atitude é canibalizar e tornar próprio, legitimamente brasileiro,
recorrendo, em primeiro lugar, à figura do indigena - canibal - e então do mulato, do
café, do amor e ódio pela aquela São Paulo do começo do séc. XX, etc. Por fim, o
produto é “poesia para exportação” (OSWALD,1990). Se nesta primeira fase do
modernismo o engajamento social não é tão forte, a ousadia e revolução formal de
alguma maneira o compensa e prepara terreno para as fases e movimentos
posteriores com suas produções mais engajadas e regionalistas. Talvez fosse
possível dizer que o canibalismo de Oswald de Andrade chegue mais perto de um
Ariel anárquico do que de Caliban - talvez um Caliban embriagado. Talvez fosse
mesmo possível pensar, aludindo à crítica de que a primeira fase do modernismo
brasileiro foi socialmente desconectada com as próprias figuras que mobilizou, que
esta fase pode ser vista como um Trinculo ou Stephano, mas tudo isso é uma
especulação que questiono o sentido. A relação da antropofagia de Oswald com
nossa discussão de A Tempestade é necessariamente mais tortuosa. O movimento
carrega de forma misturada elementos tanto do arielismo - exaltação da arte - e do
calibanismo - engajamento social - numa síntese que termina por ser nenhum nem
outro, e chega num resultado quase mutante - a explosão da forma. Encerro com
um poema:

Alerta (Oswald de Andrade)

Lá vem o lança-chamas
Pega a garrafa de gasolina
Atira
Eles querem matar todo amor
Corromper o pólo
Estancar a sede que eu tenho doutro ser
Vem do flanco, de lado
Por cima, por trás
Atira
Atira
Resiste
Defende
De pé
De pé
De pé
O futuro será de toda a humanidade

Bibliografia:

ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Editora Globo, 1990.

CESAIRE, Aimé. Une tempête. Paris : Éditions du Seuil, 1969 (há edições em inglês
e espanhol).

DARÍO, Rubén. Los raros. Madrid: Editorial Mundo Latino, 1920.

___ Azul. Saint Claire. 1972.

FERNANDEZ RETAMAR, Roberto. “Calibán” in Todo Calibán. Buenos Aires,


CLACSO, 2004.

RICUPERO, Bernardo. “A Tempestade e a América” in Lua Nova, n. 93, 2014

RODÓ, José E. Ariel y Motivos de Proteo. “Ariel”. Caracas: Biblioteca Ayacucho,


1993.

UREÑA, Max Henríquez. Breve Historia Del Modernismo. Fondo de Cultura


Economica. 1954.

Nota: Os poemas foram retirados da internet, a maioria sem que eu conseguisse


identificar a qual livro ou revista pertencem, e por isso não tem referência aqui na
bibliografia.

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