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Bilê Tatit Sapienza

Do desabrigo à confiança
Por que o interesse pela fenomenologia? Ela não se constitui formalmente
como uma teoria, é principalmente um modo através do qual nos aproximamos
do que pretendemos investigar. Por que exatamente nesta época em que o
método científico tradicional já provou sua eficácia, eficácia essa que se baseia
na objetividade do real, que deve poder ser quantificado, previsto para que
possa ser controlado cresce o interesse por um modo de investigar que difere
daquele tradicional?
A fenomenologia não é apenas um modo diferente de olhar para a
realidade. Ela se sustenta num pensamento filosófico para o qual é o próprio
conceito de realidade que é outro, numa epistemologia que é outra. Quando a
fenomenologia diz que olha para o fenômeno, isso não é uma mera
substituição da palavra fato pela palavra fenômeno; aqui o emprego da palavra
fenômeno se baseia numa determinada compreensão do que é 'ser".
A concepção filosófica que dá base para a fenomenologia, que permite a
legitimidade desse modo de olhar o real, não traz em si a exclusão da
possibilidade e da necessidade das ciências positivas. Essas continuam a ter
seu lugar no mundo. Mas ela amplia a possibilidade e a necessidade de um
outro pensar, e nisto talvez resida o interesse que a fenomenologia desperta.
O interesse pelo modo fenomenológico de pensar nota-se especialmente
no âmbito daquelas coisas que, de maneira direta e profunda, dizem respeito
ao que é especificamente próprio do humano. Entre essas coisas se destaca o
próprio fenômeno da existência humana.
Quando o fenômeno da existência é trazido como foco de uma reflexão
fenomenológica, o que começa a se manifestar aí são as questões
fundamentais da existência, e essas questões, por serem essenciais, surgem
com um forte apelo para que sejam pensadas e postas em palavras.
O fato de considerarmos fenomenologicamente a existência permite que,
ao olharmos para ela, afastemos de nosso olhar as teorias psicológicas, as
concepções prévias que se acumularam em cima desse fenômeno de que
tratamos, o existir humano. Ao fazermos isso, o que aparece para ser visto e
para ser falado é o essencial, é a existência mesma, nua e crua. Nesse
momento, o que há de principal no existir começa a despontar com prioridade
como tema de estudo.
Em nosso caso, como terapeutas daseinsanalistas, nosso olhar
fenomenológico para a existência é iluminado por um referencial
heideggeriano. A palavra Dasein (Da-sein), ser-aí, designa exatamente aquele
ente para o qual 'ser' é sempre questão: aquele ente que é o 'aí' onde se 'da
'ser'; aquele cujo modo de ser é ser sempre 'al'. Aí, onde? No mundo". Aquele
cujo modo de ser é 'existindo'. É à existência humana que nos referimos
quando dizemos a palavra Dasein.
Esse é um modo de pensar para o qual o essencial do homem não é ser
racional, mas sim ser destinado ao 'cuidado (Sorge). É uma filosofia para a
qual o homem permanece sempre devedor à existência, facticamente
destinado a realizar sua existência no meio das possibilidades todas que se
apresentam a ele e, ao mesmo tempo, limitado pelo não poder tudo e pela
morte. E isso o que encontramos na base da existência humana quando
dirigimos o olhar para ela.
Para quem não sabe do que se trata, a fenomenologia e a
Daseinsanalyse parecem ser apenas propostas "alternativas" às formas já
consagradas, e alternativas naquele sentido de "vamos tentar uma coisa
diferente" do tradicional, um jeito mais direto e mais simples de atender as
pessoas que vêm só em busca de resolver alguns desses problemas
existenciais, ou seja, segundo essa opinião, aquelas questões que não
necessitam ser muito pesquisadas, analisadas. É curiosa essa maneira de
pensar, pois o que poderia ser mais sério do que existir?
Outros supõem que essa seja uma maneira mais "light" de encarar as
questões, e, "light", tanto num sentido de leve, de não aprofundar muito, como
num sentido de mais iluminada, visto que parece jogar mais luz nas
possibilidades que se desdobram na vida da pessoa em vez de aprofundar no
escuro do destrutivo. censurado, do feio que está no fundo de cada um.
Essa ideia equivocada pode ser atraente para algumas pessoas que
procuram terapia: "Quero me conhecer melhor, tenho uns probleminhas pra
resolver, você sabe, essa história de baixa autoestima, isso está me
atrapalhando; hoje em dia a competição é grande, e, mesmo pra se arranjar
emprego, essa coisa de não se ter autoconfiança já elimina a gente na primeira
entrevista. E, além de tudo, nunca é demais a gente se conhecer melhor. Por
isso, quero alguém que trabalhe nessa linha, não quero mexer e nem tenho
nada de muito profundo pra ficar mexendo..."
Para alguns psicólogos iniciantes, a fenomenologia e a Daseinsanalyse
podem surgir, num primeiro momento, como um pensamento mais aberto, mais
solto, que toca em questões interessantes, envolventes: "Que demais é tudo
isso! Meu, a gente vai longe pensando no que é pensar; no que é ser; no que é
existir; no ser-lançado-nossa, isto até arrepia; no cuidado - é bonito isso do
cuidado; é impressionante essa coisa da finitude humana, pois, afinal, é porque
o Dasein é finito, é mortal, que tudo fica tão importante, e escolher é tão
decisivo; a fragilidade da vida é que faz dela uma coisa valiosa. Legal colaborar
para que a pessoa veja que pode ampliar suas possibilidades! É com isso que
quero trabalhar com meus pacientes. É bom isso de a gente não precisar ficar
preso a teorias..."
Só que, ao começar a atender seus pacientes, o psicólogo percebe,
depois de algum tempo, o quanto é mais difícil trabalhar sem o respaldo de
uma teoria de psicologia. Nem sempre é cômodo manter o pensamento aberto;
sentir-se solto pode ser vivido como desamparo. Aqueles temas que encantam
e são tão envolventes, quando tratados em grupos de estudo, são outra coisa
quando trazidos na condição do sofrimento concreto de alguém que está na
sua sala e espera algo de você. Ali se rompe o encantamento; aquilo só dói.
Aquelas ideias de possibilidade de perda, de finitude, de limites, de culpa, ali,
com aquela pessoa, já não são ideias. Aquilo está acontecendo na vida dela e
é com você que ela quer compartilhar. Uma pessoa conta que o amor da sua
vida foi embora e agora a vida não tem mais nenhum sentido; outra não pode
ser feliz sentindo tantas culpas; há outra que carrega o peso de uma doença
grave; aquela outra tem um amor impossível; outra acabou de perder um filho;
há aquela que não pode tolerar a injustiça que sempre recai sobre ela; vem
alguém e diz que tem tudo o que quer, mas pergunta: "Por que viver?" E cada
pessoa conta a sua história, conta a sua vida. Se você estiver junto a cada uma
delas, com o pensamento e o coração abertos, o sofrimento poderá ser seu
também. E, no entanto, você não está ali para afundar junto. E agora? A única
coisa certa é que não é fácil.
E o que tem a ver isso tudo com a fenomenologia ou, no nosso caso, com
a Daseinsanalyse? Pois não importa qual seja o referencial do terapeuta,
aquelas questões surgem mesmo em qualquer terapia.
Acontece que quando há uma técnica padronizada, bem definida, quando
existem os parâmetros de uma teoria de psicologia que possibilitam ver ali um
certo "quadro" em que o paciente se encaixa, ainda que não resolva grande
coisa, isso coloca um algo mais em que pensar, um anteparo entre a
experiência de sofrimento do paciente e a impotência que sentimos naquele
momento.
Mas em nossa maneira de trabalhar, nossa disponibilidade para o que
chega é de tal forma que, a cada vez, sentimos como se aquilo estivesse
acontecendo pela primeira vez no mundo, como se não houvesse com o que
ser comparado, como se aquele paciente estivesse inaugurando aquela
possibilidade de sofrer.
Essa maneira de estar com o paciente é algo que conquistamos aos
poucos, pois a tendência mais comum do psicólogo é querer fazer o
diagnóstico. Ele, em geral, quer encaixar o particular do paciente no geral da
teoria. Em nosso caso, procuramos fazer um caminho oposto: nós nos
despreocupamos do geral da teoria e vamos em busca da diferença peculiar
que identifica aquele paciente.
O que há ali são duas pessoas, uma que conta o que a faz sofrer e outra
que escuta e procura compreender o que está acontecendo naquela vida. O
terapeuta não está ali lidando com um psiquismo, querendo explicar como e
por que ele funciona de uma tal forma. Ali ele se encontra com a existência de
um ser humano que quer ser compreendido por alguém e quer se compreender
melhor. Esse modo do terapeuta estar na sessão faz muita diferença. Isso não
deve, entretanto, ser confundido com a mera expressão de um comportamento
afável, de um jeito simpático de ser com o paciente.
É claro que o terapeuta, qualquer que seja seu referencial teórico, deveria
mesmo ter uma postura de quem está ali para compreender, deveria ser capaz
de empatia.
Para nós, porém, não se trata só de uma questão de postura. É mais que
isso.
Algo deve ser comentado aqui. Comumente, psicólogos não se
preocupam em saber em que filosofia, em que epistemologia seu trabalho
clínico está baseado. Os pressupostos que fundamentam a psicologia, aqueles
mesmos que servem de base para as ciências naturais, em geral, não são
explicitados pelos psicólogos. Assim, para alguns, fica difícil distinguir em que
consiste a diferença fundamental da proposta fenomenológica. Concebem a
fenomenologia como uma maneira de trabalhar que se prende apenas ao que
aparece, que descreve isso sem aprofundar em nada, mesmo porque, para
eles, fenômeno é "apenas" o que aparece. Acham que, ao descrever e tornar
claro para o paciente o que se passa, a fenomenologia poderia até ajudá-lo a
se entender melhor e a resolver alguns problemas; não mais que isso. A
fenomenologia lhes parece, então, simplesmente uma alternativa menos rígida,
despreocupada com as causas dos problemas, com o passado, pois o que
interessa é só o presente em vista do futuro. Essa é uma maneira pobre de
encarar a fenomenologia.
Ao menos para aqueles que se propõem a trabalhar à luz da
fenomenologia, e especialmente da Daseinsanalyse, é importante que se
dediquem a estudar o suficiente de filosofia para que tenham clareza de que
sua escolha está situada, está fundamentada num referencial filosófico e
epistemológico que é radicalmente outro em relação àquele mais aceito
tradicionalmente, e para que saibam que é isso que faz toda a diferença.
Disse antes que na sessão de terapia o terapeuta daseinsanalista não
está lidando com um psiquismo para ser explicado. Isso porque, de acordo com
os pressupostos de que partimos, nosso trabalho não visa a uma estrutura
psíquica interna com um mecanismo de funcionamento regido por
determinadas leis. E, se não visamos a isso, não é porque resolvemos achar
que não é importante trabalhar com algo interno, ou porque achamos que fazer
isso seria mais difícil, ou por pressa de eliminar sintomas. Se trabalhamos
assim, é porque temos razões de ordem filosófica para tanto.
Concebemos que o que temos diante de nós é uma 'existência", ou seja,
nada mais e nada menos do que aquilo que caracteriza o ser daquele ente
chamado homem. Em nossa concepção podemos dispensar o conceito de
psiquismo, mas não há como ignorar que ali diante de nós alguém existe.
Compreendemos a existência' de tal forma que para nós não é necessário
acrescentar a ela aquela estrutura interna chamada psiquismo, a qual só seria
necessária se nossas concepções de homem e de mundo se fundamentassem
no pensamento tradicional da metafísica, que separa homem e mundo, mente
e corpo, sujeito que conhece e objeto do conhecimento. Se fosse esse o caso,
aquela estrutura seria necessária para tornar possível a explicação de como
instâncias, em princípio, tão separadas passam a se pôr em contato, e de
como, afinal, é possível que haja um eu que se põe em relação com a
realidade externa. E seria necessário também, nessas circunstâncias, conceber
e explicar os mecanismos por meio dos quais tais coisas poderiam acontecer.
Em nossa abordagem, a existência humana é concebida como algo
totalmente diferente da existência de todos os outros entes. A noção
heideggeriana de 'existência é tal que, rigorosamente falando, só o homem
'existe'. Os outros entes são. O ente montanha é, o ente árvore é, o ente gato
é. O ente humano existe'. Este é o ente a que chamamos Dasein, ser-aí, que é
'ser-no-mundo'. E quando se trata desse ente, 'existência significa 'abertura'
para o 'ser' em geral, e é nessa abertura' que se dá "mundo', 'mundo' que é o
entrelaçamento de significados. Se 'existência' já é 'ser-no-mundo', já é esse
'aberto' prévio em que se dá 'mundo', onde caberia em tal contexto falarmos de
interno e externo, de dentro e fora? Dentro ou fora de que?
Se, onticamente no mundo, podemos nos referir a algo interno ou externo
em relação a alguma coisa, já é porque, originariamente, do ponto de vista
ontológico nossa 'existência é essa 'abertura' compreensiva, que tem como um
de seus caracteres existenciais básicos a 'espacialidade', o que permite ao
Dasein poder dizer dentro, fora, perto, longe, aqui, ali, e conceber o espaço
físico com suas dimensões. Existir é ser esse 'aberto' que não pode ser fora do
'mundo', porque precisa' de 'mundo' para ser, e não pode ser dentro do mundo'
porque fora dele não 'há' 'mundo' em relação ao qual ele pudesse ser dentro. A
'existência", sendo a própria 'abertura' em que 'há' 'mundo', já é, de modo
originário, 'compreensão' do mundo, e não apenas uma compreensão no
sentido intelectual, mas compreensão no sentido de abarcar o que se
apresenta, e mais, é uma compreensão já sempre colorida por uma disposição
afetiva ou 'afinação' relativa ao que é compreendido. O fato de a 'existência",
considerada ontologicamente, ser essa prévia abertura compreensiva e afinada
é o que permite que, onticamente, haja todas as formas de conhecimento e
todas as formas de emoção.
Se o fenômeno que temos diante de nós é a existência de alguém, isso
supõe termos de lidar com tudo que está implicado naquele particular modo de
ser-no-mundo. Ali estão todos os significados e todos os afetos que compõem
aquele modo de existir, com tudo o que eles trazem de esperança e de dor.
Aquela existência é a sua história já vivida e a que se faz momento a momento.
Ali está um ente que, dada sua condição de ser mortal, está sempre deixando
de ser, mas está, ao mesmo tempo, sempre vindo-a-ser, dada sua condição de
ser história.
Termos diante de nós a existência de alguém parece óbvio. Pode ser
óbvio, mas não é pouco. E, quando começamos a pensar em que consiste o
existir humano, percebemos a seriedade do que nos dispomos a fazer como
terapeutas: com nossa falta de poder, compartilhar a vida de uma pessoa,
procurar ajudá-la nessa coisa complexa, arriscada e transitória que é existir.
Num primeiro momento, com a ideia que temos da existência como vir-a-
ser, como desdobrar-se de possibilidades, parece que isso deve ser vivido ou
sentido sempre como algo bom, leve, pois traz a ideia de não-aprisionamento
no passado, de liberdade, de possibilidade de realização, de transformação.
Mas nos esquecemos de que o que vem-a-ser pode ser exatamente o que não
queríamos jamais.
Existir é sempre poder ser atingido pelo esperado ou pelo inesperado,
pelo desejado ou pelo indesejado. Conceber teoricamente isso a respeito da
existência é uma coisa, mas não é fácil suportar o que chega e faz sofrer.
Sabemos disso por nossa própria experiência, e, por isso, sabemos o que o
outro deve estar sentindo quando isso acontece com ele.
Esse outro que sofre pode ser o nosso paciente. Se não tivermos
embotado nossa sensibilidade, não podemos, mesmo sabendo que é
profissionalmente que estamos ali, apertar um botão que desligue em nós a
compaixão, esse poder compartilhar um sentimento. Quem não tem essa
capacidade de compartilhar não deve ser terapeuta, pois é sinal de que não
sabe de que seu paciente está falando. (A palavra "sabe", do verbo saber, tem
a mesma etimologia de "sabor", e, nesse sentido, o saber tem a ver com o
"saber o gosto" daquilo que está sendo falado.)
Compartilhamos, mas não é bom que permaneçamos quebrados na dor
do paciente, pois ele precisa de nós inteiros. Ou seja, não é fácil, e é bom que
os jovens terapeutas saibam disso.
Trabalhar como terapeuta não é, como parece para alguns, manusear
uma meia dúzia de conceitos. Conceitos que, quando foram pensados dentro
de algumas teorias, tiveram sua razão de ser, têm ainda valor, mas, algumas
vezes, só atrapalham o encaminhamento da compreensão em direção a coisas
mais fundamentais no caso daquele paciente. Eles atrapalham justamente
porque parecem ser tão bons, e assim se instalam no pensamento do
terapeuta e bloqueiam a procura por outros significados.
Esses conceitos a que me refiro dizem respeito a algumas ideias
pertencentes ao repertório dos psicólogos, algumas das quais já são familiares
também a muitos pacientes, pois elas estão na mídia. Quem não ouviu falar,
por exemplo, da famosa "autoestima", que, segundo dizem, é um perigo
quando está baixa? Fala-se disso como se se tratasse de uma baixa taxa de
plaquetas ou de glóbulos vermelhos no sangue. E do quanto é ruim não saber
impor limites aos outros? Dizem que todo mundo invade quando alguém não
sabe pôr limites. E das chamadas vantagens secundárias? Desconfie de quem
é capaz de algum sacrifício, sempre há algo suspeito por trás, é o que dizem. E
da clássica insegurança? Aprendemos que ela está por trás daquele que
parece tímido, mas mostrar que é muito seguro também pode ser insegurança.
E da tão moderna somatização? "Engolir" as coisas de que não se gosta pode
dar gastrite ou outros problemas de aparelho digestivo. Atualmente, todo
mundo "sabe" disso.
Um pouco antes estava falando de filosofia, de existência, e, de repente,
estou aqui falando, se bem que de uma forma caricatural, de coisas como
gastrite, autoestima. Mas ter feito essa passagem de um assunto para outro
pode ser bom para nos lembrarmos de que, quando se trata do existir humano,
está tudo junto mesmo.
Sofrer de gastrite, por exemplo, é uma possibilidade daquela pessoa que
existe diante de nós, visto que a existência tem como um de seus caracteres
fundamentais a 'corporeidade' (um existencial), e ser corpo supõe ter um
aparelho digestivo que pode ser atingido. Mas o que significa o fato de aquela
pessoa em especial manifestar sua gastrite ou piorar dela em certas situações?
Que situações são essas? Como é essa forma de ser no mundo que tão
nitidamente mostra a vulnerabilidade daquele corpo sob essa forma de mal-
estar?
E, quanto àquela outra pessoa que se queixa de uma autoestima baixa,
por que ela se vê tão sem valor? Essa maneira como ela se compreende e a
tristeza que sente por isso são modos possíveis de realizações ônticas de
caracteres ontológicos básicos do Dasein (existenciais), no caso,
“compreensão” e “afinação”. São maneiras concretas de compreender e de
sentir si-mesmo e mundo. Concretamente, como aquela pessoa acha que ela
precisaria ser para então valer alguma coisa? Por que isso que ela acha que
precisaria ser é tão importante para ela? Por que em sua vida ela está tão
presa nesses parâmetros, quem vale mais e quem vale menos?
É importante que o terapeuta se lembre de que as queixas e as questões
trazidas por alguém devem ser consideradas e compreendidas junto àquela
história pessoal.
No enfoque da fenomenologia, dito aqui numa linguagem bem simples e
coloquial, a primeira recomendação para a compreensão de questões que se
colocam diante de nós é: livre-se da sedução da facilidade das ideias já prontas
que, à força de serem repetidas, acabam por se impor a você e fique atento ao
fenômeno.
E o que é estar atento ao fenômeno? O que é fenômeno? O que é
fenomenologia?
Podemos sentir algum embaraço para responder a essas perguntas
quando elas nos são feitas de repente. É frequente que depois da nossa
resposta a pessoa não tenha entendido nada, ou, ao contrário, conclua que a
fenomenologia é alguma coisa completamente simplória. Sabemos que se trata
de suspender as teorias e voltar para as coisas mesmas. E o que são as coisas
mesmas? E o que mais?
A palavra fenomenologia já foi utilizada com sentidos diferentes do que
tem hoje.
Lambert, em 1764, emprega essa palavra para se referir a uma teoria das
aparências
Kant, numa carta a Lambert, em 1770, retoma o termo ao designar como
phaenomenologia generalis a disciplina propedêutica que deveria preceder a
metafísica.
Em 1807, Hegel escreve Fenomenologia do espírito, e a partir daí esse
termo entra na tradição filosófica. Diferentemente de Kant, para quem o
absoluto não é atingível pelo conhecimento, Hegel concebe o absoluto como
cognoscível e qualifica-o como o Espírito. A fenomenologia é para ele a
filosofia do absoluto ou do Espírito. É a retomada do caminho dialético que o
Espírito percorre no desenrolar da história; ela mostra como, em cada
momento da história, o absoluto está sempre presente em todas as formas de
experiência: religiosa, estética, ética, jurídica, prática, política etc.
Historicamente, essa palavra aparece com alguns outros significados
também. Mas o movimento de pensamento que no século XX traz o nome de
fenomenologia se inicia com Husserl.

É com Edmund Husserl (1859-1938) que a fenomenologia passa a se


referir a uma filosofia mais completa e especialmente interessada na
epistemologia, ou seja, na teoria do conhecimento. A questão de Husserl é
principalmente chegar às essências dos atos de consciência pelos quais somos
capazes de lembrar, de imaginar, de perceber, de julgar etc., e, enfim, chegar à
essência do que é o conhecimento. Esse é o objeto principal de sua
fenomenologia.
Ao trabalhar com a noção de intencionalidade da consciência, Husserl
nos abre um caminho. Esse termo intencionalidade foi usado na Idade Média,
mas é redefinido pelo filósofo e psicólogo Franz Brentano, com quem Husserl
estudou. Brentano, que queria fazer da psicologia uma ciência empírica.
emprega o termo intencionalidade como o que distingue o psíquico: toda
experiência psicológica contém um objeto visado ou um objeto intencional. Por
exemplo, pensamento é sempre pensamento sobre algo, é dirigido a algo;
desejo é sempre desejo de algo, memória é sempre lembrança de algo.
Pensar os atos de consciência (devemos lembrar que consciência não
está sendo considerada naquele sentido que adquiriu depois, como algo que se
opõe a inconsciente) como intencionais traz uma perspective diferente com
relação a uma outra concepção de consciência, ou seja, de consciência como
encapsulada no sujeito, separada do objeto, que só num segundo momento
entraria em relação com o objeto, com o mundo.
Considerar a consciência como intencional significa dizer que consciência
já é sempre consciência de mundo, e mundo já é sempre mundo para
consciência.
Se o objeto é objeto para a consciência e a consciência é consciência do
objeto, o que temos é sempre objeto-percebido, objeto-pensado, objeto-
imaginado, objeto-rememorado etc. Fora da correlação consciência-objeto não
há nem consciência nem objeto. A fenomenologia deveria elucidar a essência
dessa correlação, a essência do conhecimento.
A ênfase dada por Husserl à intencionalidade é muito impotante, pois nos
aproxima da possibilidade de compreendermos a consciência como aberta
para o mundo. (Lembremos aqui que, depois, Heidegger vai falar no ser aberto
num sentido mais radical. Dasein é a abertura em que se 'dá' mundo. Dasein é
esse aberto, é ser-no-mundo.)
Embora a fenomenologia que fazemos na Daseinsanalyse não seja a
mesma de Husserl, não podemos nos esquecer de que a fenomenologia deve
a ele algumas características básicas do método de abordagem ao fenômeno
que nos é dado para compreender, por exemplo, a suspensão fenomenológica
e o "voltar às coisas mesmas".
Para Husserl, a fenomenologia deverá seguir um caminho que não é
aquele das especulações metafísicas nem aquele do raciocínio das ciências
positivas. Ele pede o retorno à intuição originária da essência do que se
apresenta como evidência para a consciência.
Em seu caminho para a análise dos fenômenos que queria investigar
(relativos à essência do conhecimento), Husserl propõe um método que
comporta dois momentos: a redução eidética (eidos-essência) e a redução
fenomenológica.
A redução eidética possibilita que possamos ir além da consciência de
objetos individuais e concretos e cheguemos à consciência de puras essências,
à intuição do eidos da coisa. aquilo que nela é essencial e invariável.
Chegamos a isso quando, diante de um fenômeno, imaginativamente,
retiramos dele tudo aquilo que pode ser retirado sem que com isso ele deixe de
ser o que é (variação eidética): ao nos depararmos com algo (o invariante) que
não pode ser excluído dele, algo sem o que ele deixaria de ser aquele
fenômeno, nesse momento chegamos à sua essência.
Para alcançar a essência, então, o que se faz é reduzir o fenômeno;
reduzir, nesse caso, é purificá-lo de tudo o que ele comporta de inessencial.
Quanto à redução fenomenológica, esta suspende concepções e
julgamentos prévios a respeito daquilo que se deseja investigar e procura se
prender à evidência do que se apresenta para a consciência. Quando tudo
aquilo que não é evidente à consciência é suspenso, o que sobra, ou seja, o
resíduo da redução fenomenológica, é o fenômeno na consciência.
No caso de Husserl, seu interesse é pelos próprios atos de consciência,
cuja evidência na consciência deve lhe dar as bases de elaboração de sua
teoria a respeito da essência da consciência ou do eu e da essência do que é
conhecimento.
O eu e o conhecimento aos quais Husserl se refere não são aqueles
estudados pela psicologia. Sua preocupação vai além da esfera da experiência
psicológica do ato de conhecer, isto é, vai além daquilo que seria imanente à
experiência da consciência empírica; ele parte para a concepção da
consciência que transcende a experiência empírica, ou seja, a consciência
pura, consciência essa que é constituinte do mundo, a consciência
transcendental.
Nesse nível, então, a redução fenomenológica torna-se redução
transcendental, que consiste nesse esforço para suspender a atitude natural
diante do mundo, atitude essa que é própria tanto do homem comum em seu
viver diário como do cientista, para os quais é óbvio que o mundo está aí fora e
cabe à consciência representá-lo. Na redução transcendental, fica suspensa a
maneira natural e cotidiana de ver o mundo, e este passa a ser visto como
fenômeno puro para a consciência pura. Essa redução implica pôr entre
parênteses todos os julgamentos concernentes à existência do mundo, ou seja,
implica a suspensão (épokke) de todo julgamento a propósito do mundo. (O
mundo não é pressuposto, nem negado, nem afirmado.)
A fenomenologia passa a ter outras características com Heidegger (1889-
1976), assistente e depois sucessor de Husserl na Universidade de Freiburg.
Heidegger (1971) expõe seu pensamento a respeito do que devem ser
considerados fenômeno e fenomenologia no parágrafo 7 de Ser e tempo, sua
obra de 1927.
Nesse trecho ele diz que o conceito de fenômeno pode ser pensado, num
sentido formal, como o que se mostra em si mesmo. Nesse caso, o sentido
formal de fenomenologia é "permitir ver o que se mostra, tal como se mostra
por si mesmo, efetivamente por si mesmo" (p. 45). Mas, fenomenologicamente,
o que deve ser chamado fenômeno é "aquilo que imediata e regularmente justo
não se mostra, aquilo que, ao contrário do que imediata e regularmente se
mostra, está oculto, mas é algo que pertence por essência ao que imediata e
regularmente se mostra, de tal sorte que constitui seu sentido e fundamento"
(p. 46). O ser dos entes é aquilo que permanece oculto, volta a estar encoberto
ou só se mostra "desfigurado". Pode estar tão encoberto que chega a ser
esquecido e então não se pergunta pelo ser e seu sentido.
Assim, para Heidegger, em Ser e tempo, é o ser dos entes o que deve
tornar-se fenômeno, é isso o que a fenomenologia deve "permitir ver".
Justamente porque os fenômenos não são dados imediatamente, é necessária
a fenomenologia. Fenomenologia é a forma de chegar ao que deve ser terna
da ontologia. "A ontologia só é possível como fenomenologia".
Heidegger diz também, em Ser e tempo, que para o esclarecimento dos
problemas da ontologia, de modo a chegar ao problema principal, que é a
pergunta que interroga pelo sentido do ser em geral, surge a necessidade de
uma ontologia fundamental que tenha como tema aquele ente que é ôntico-
ontologicamente especial, o "ser-aí". A fenomenologia do " ser-aí" é
hermenêutica, no significado primitivo dessa palavra como interpretação. E a
hermenêutica como interpretação do ser do " ser-aí' tem também um sentido de
uma analítica da "existencialidade" da existência. Assim, para Heidegger a
fenomenologia se torna uma ontologia e uma hermenêutica.
Em Ontologia: hermenêutica da facticidade, livro anterior a Ser e tempo,
Heidegger diz que a palavra ontologia que aparece no título apenas indica que
aquilo que vai ser investigado e a respeito do que se vai falar é o ser.
Nesse livro há um histórico do uso da palavra hermenêutica, cujo resumo
veremos aqui.
Hermeneutiké, hermenêutica, como saber ou arte, deriva-se de
hermeneue (interpretar).
Essa palavra ganha vários sentidos no decorrer do tempo. Liga-se
primeiramente ao nome do deus grego Hermes, o mensageiro dos deuses.
O sentido de hermeneus como mensageiro, intérprete. aquele que
comunica, já aparece em Platão: Os poetas não são outra coisa que os
mensageiros dos deuses. E os rapsodos, que recitam o que foi composto pelos
poetas, são mensageiros dos mensageiros.
Um escrito de Aristóteles, que trata do logos como o que revela os entes
e nos familiariza com eles, nos foi transmitido com o título Peri hermeneias.
Neste nosso contexto, a palavra hermeneia nesse título só é importante para
nós pelo que ela nos diz sobre a história dos significados desse termo.
Com os bizantinos, hermeneuein passa a corresponder ao que
chamamos "significar".
Filon apresenta Moisés como hermeneus, intérprete. mensageiro de
Deus,
Santo Agostinho fala de como o homem deve se aproximar da
interpretação de passagens ambíguas das Escrituras: com piedade, temor a
Deus e também equipado com o conhecimento de línguas.
No século XVII aparece o título Hermenêutica sacra, a interpretação de
textos sagrados.
Com Schleiermacher (1768-1834), hermenêutica torna-se a arte de
entender o discurso do outro, uma disciplina em conexão com a gramática, a
retórica e a dialética.
Dilthey (1833-1911) adota o conceito de hermenêutica de Schleiermacher,
definindo-a como "formulação de regras de entendimento"..
Em relação ao termo hermenêutica, Heidegger não o emprega no
significado moderno; emprega-o ligado ao seu significado original, isto é, como
interpretação, como comunicação. E o que ele visa nessa interpretação é a
facticidade da existência. A existência, em seu próprio caráter ou estrutura de
ser, é 'aí’, é o 'aí’, é 'ser-aí’. E o modo ou o "como" ela é aí é tendo de ser "em
cada caso". A expressão facticidade significa que a existência é sempre esta, a
minha, a de cada um; é cada um de nós que é lançado na existência, no ser-
possibilidade de si mesmo, no ter de arcar com o seu existir.
Sendo facticamente o 'aí', a existência interpreta, a partir de si mesma e
para si mesma, seu ser-aí.
A facticidade da existência é não só suscetível de interpretação, mas
também necessitada de interpretação, ela é na interpretação.
Na temporalidade cotidiana, o possível ser-com-propriedade da existência
se mantém oculto ou encoberto, e o que prevalece é um modo de ser na
impropriedade que se expressa, por exemplo, em concepções a respeito do
que é a existência (em que se incluem as contribuições da filosofia e da
consciência histórica). Há concepções sobre ela, mas a existência, ela-mesma,
se distancia de si e então Dasein se aliena de si. Caberá à hermenêutica da
facticidade a tarefa de perseguir e encontrar a alienação de si mesmo em que
Dasein é enredado, isto é, a tarefa de fazer o Dasein, que é em cada caso,
acessível a ele mesmo com relação ao caráter de seu ser, de comunicar
Dasein a si mesmo. Em outras palavras, a hermenêutica tem a tarefa de fazer
a existência acessível a ela mesma (Heidegger, 1999).
A hermenêutica de Heidegger diz respeito a uma questão relativa à
facticidade como caráter ontológico do Dasein. De sua fenomenologia
hermenêutica resulta, em Ser e tempo, a analítica da 'existência.

Quanto a nós, como terapeutas, o foco do nosso trabalho é a pessoa que


nos procura porque a existência dela, exatamente a dela, está precisando ser
cuidada. É o seu ser, é o sentido da sua vida que está em jogo, que precisa ser
mais bem compreendido; algo ali naquela história se complicou. E a analítica
do Dasein, ou seja, da 'existência", tal como foi feita em Ser e tempo, nos ajuda
na compreensão do existir daquela mulher, daquele homem, daquela criança
que chega até nós.
É importante lembrarmos aqui uma confusão que geralmente surge. O
fato de mantermos esse foco e o uso frequente da palavra existência têm
possibilitado que o que fazemos na clínica seja equivocadamente chamado por
alguns de psicologia existencial.
Mas a Daseinsanalyse não é uma forma de psicologia que se distinguiria
pela preocupação com a existência de cada um. Ela não é uma teoria de
psicologia.
Como psicólogos que somos, e devemos ser por formação, conhecemos
o que é a psicologia; sabemos que, como uma ciência, a psicologia tem suas
bases nos alicerces que fundamentam as ciências, que se derivaram da
tradição que veio da metafísica. Fazemos uso das contribuições que vêm da
psicologia, mas o lugar de nossa origem é outro.
Nossa proveniência é de um modo de pensar para o qual existir é 'ser-no-
mundo'. Partir dessa concepção heideggeriana de 'ser-no-mundo" significa
partir de algo totalmente diferente do que, tradicionalmente, tem sido o
fundamento filosófico e epistemológico das teorias psicológicas.
O fato de ter trazido a existência do Dasein para a cena ao fazer filosofia
tem favorecido que Heidegger seja visto como um filósofo existencialista,
embora ele mesmo não se considere como tal, visto que sua questão principal
é outra.
Sendo assim, é importante que nos aproximemos aqui daquilo que o
pensamento dos filósofos existencialistas tem representado. Isso pode nos
ajudar a compreender melhor o que distingue a Daseinsanalyse do
existencialismo.
Blaise Pascal, pensador do século XII, importante em todas as áreas às
quais se dedicou, destaca-se como matemático, físico, filósofo e escritor
francês. Convertido ao cristianismo, em seus cinco últimos anos de vida anota
seus pensamentos, que seriam destinados a compor uma obra sobre religião.
Essas anotações, embora incompletas, foram reunidas e publicadas com o
nome de Pensamentos (2001).
Alguns exemplos de seus pensamentos:
622 - Tedio
"Nada é mais insuportável para o homem do que estar em pleno repouso,
sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem aplicação.
Ele sente então todo o seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua
dependência, sua impotência, seu vazio.
Imediatamente nascerão do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a
tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero" (p. 268).
(Pascal emprega o termo "divertimento" para tudo aquilo que distrai o
homem de pensar em seu nada (di-vertere = se afastar de), em que se incluem
não só as distrações como os jogos, a dança, as conversas, mas também as
atividades mais sérias como o trabalho, as altas funções, as pesquisas da
ciência.)

200 - "O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza, mas é
um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para
esmagá-lo; um vapor, uma gota de água bastam para matá-lo. Mas, ainda que
o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o
mata, pois ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o
universo de nada sabe.
Caniço pensante
"Não é do espaço que devo procurar a minha dignidade, mas da
ordenação do meu pensamento. Não terei vantagem em possuir terras. Pelo
espaço, o universo me compreende e me engole como a um ponto: pelo
pensamento, eu o compreendo".
"A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável; uma
árvore não se conhece miserável.
É então ser miserável conhecer-(se) miserável, mas é ser grande
conhecer que se é miserável".
... "Não sei quem me colocou no mundo, nem o que é o mundo, nem o
que sou eu mesmo; estou numa ignorância terrível de todas as coisas; não sei
o que é o meu corpo, nem meus sentidos, nem minha alma e mesmo essa
parte de mim que pensa o que eu digo, que faz reflexão sobre tudo e sobre si
mesma, e não se conhece mais do que o resto.
Vejo esses espantosos espaços do universo que me encerram, e me
encontro atado a um canto dessa vasta extensão sem que saiba por que estou
colocado neste lugar de preferência a outro, nem por que esse pouco de tempo
que me é dado para viver me é atribuído neste ponto de preferência a outro de
toda a eternidade que me precedeu e de toda aquela que vem após mim. Só
vejo infinidades por todas as partes, que me encerram como a um átomo e
como a uma sombra que não dura senão um instante sem retorno. Tudo que
conheço é que devo em breve morrer; mas o que ignoro mais é essa morte
mesma, que não posso evitar...".
"O coração tem razões que a razão desconhece; sabe-se disso em mil
coisas...".
"É o coração que sente a Deus, e não a razão. Eis o que é a fé. Deus
sensível ao coração, não à razão".
"... Pois afinal que é o homem na natureza? Um nada com relação ao
infinito, um tudo com relação ao nada, um meio entre o nada e o tudo,
infinitamente afastado de compreender os extremos; o fim das coisas e seus
princípios estão para ele invencivelmente escondidos num segredo
impenetrável...
... A nossa inteligência ocupa, na ordem das coisas inteligíveis, a mesma
posição que o nosso corpo na extensão da natureza...".
Sören Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês do século XIX, escreve
contra os sistemas filosóficos tradicionais, especialmente o hegelianismo. Diz
que os sistemas são formas de procurar a objetividade; a verdade, porém, não
está na objetividade. No pensar, o que há é um esforço constante, em que as
questões não recebem respostas, mas permanecem no estado de
questionamento. O resultado inevitável da reflexão é chegar a paradoxos.
Para ele, Deus ou qualquer relação do indivíduo com Deus não cabem
dentro de nenhum sistema filosófico.
O homem se caracteriza pelo desespero, que tem origem nas
contradições da sua existência e na sua distância de Deus: "O homem é uma
síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de
necessidade."
Diante do "penso, logo sou" de Descartes, ele escreve: "Mais eu penso,
menos sou, e menos eu penso, mais sou."
Entre seus livros estão Conceito de angústia e Tratado do desespero. Diz
que só depois de ter atravessado a angústia e depois de ter sofrido os assaltos
do desespero o homem atingirá o que é verdadeiro.
Ele descreve a existência religiosa como interioridade, diálogo íntimo
entre o homem e Deus, o Todo-Outro. A existência é a tensão angustiada em
direção à transcendência.
Diz que o cristianismo, como uma religião da transcendência, funda-se
sobre um paradoxo para a razão, ou seja, a afirmação de que Deus, o eterno,
se encarnou em Jesus Cristo. Mas quando está presente a paixão da fé, a
razão pode reconhecer seus próprios limites e aceitar esse paradoxo. Isso, que
é um escândalo para a razão, é o caminho para a fé. A fé não é a certeza
diante de ideias claras e distintas, mas um risco; é preciso um salto para a fé.
Ela é entremeada de incerteza e de não-crença.
Kierkegaard frequentemente usa o verbo existir, num sentido especial,
para se referir à existência humana. Assim, Deus não "existe", embora seja a
eterna realidade. Descreve a existência humana como um processo inacabado,
no qual o "indivíduo" (um conceito-chave em seu pensamento) deve se
responsabilizar por conquistar uma identidade como um eu por meio de
escolhas livres.
Ao se referir ao indivíduo autêntico, fala de como isso custa sofrimento e
da necessidade de esse indivíduo permanecer só, e, se necessário, contra a
"multidão'
É após a Segunda Guerra Mundial que o existencialismo se afirma como
um movimento cultural importante. Não só faltam respostas para tanta
perplexidade diante daqueles acontecimentos como a própria maneira de
perguntar parece que precisa ser diferente. Não bastam os grandes sistemas
filosóficos de até então.
Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo e escritor francês, é influenciado
pela fenomenologia de Husserl e pelo pensamento de Heidegger.
Publica ensaios: A imaginação, O imaginário, Esboço de uma teoria das
emoções. Suas principais obras filosóficas são O ser e o nada e Crítica da
razão dialética. Na literatura, o romance principal é A náusea. Entre as peças
de teatro estão Entre quatro paredes. As moscas, Mortos sem sepultura, O
diabo e o bom Deus.
Em sua obra filosófica O ser e o nada, Sartre (1943) se dedica a fazer
uma fenomenologia do ser. Considera o ser como ser-em-si, como ser-para-si
e como ser-para-o-outro. São regiões do ser.
Ser-em-si
O ser-em-si é o ser repleto de si mesmo, e, precisamente por isso, é
opaco a si mesmo, e não poderia ser presente a si. -Ser-para-si-consciência
Para que o ser possa ser presente a si, é preciso que haja algum
afastamento, pois "presença a" implica dualidade, alguma separação ao menos
virtual. "A presença do ser a si implica um descolamento do ser com relação a
si. (...) a presença a si supõe que uma fissura impalpável se introduziu no ser.
Se ele é presente a si, é que ele não é completamente si. A presença é uma
degradação imediata da coincidência, pois ela supõe a separação. Mas se
perguntarmos agora: que é o que separa o sujeito de si mesmo, somos
obrigados a confessar que é nada", (...) "O nada é o pôr em questão do ser
pelo ser, quer dizer, justamente a consciência ou o “para-si".
Ao abordar isso que ele chama de ser-para-si, ou seja, a consciência,
Sartre traz como tema a realidade humana.
Ser-para-o-outro
"... tenho necessidade do outro para apreender plenamente todas as
estruturas de meu ser, o para-si remete ao para-o-outro”.
Sartre dedica muitas reflexões a respeito da questão do corpo humano.
"... o corpo - nosso corpo - tem como caráter particular ser
essencialmente o conhecido pelo outro: o que eu conheço é o corpo dos
outros, e o essencial do que sei do meu corpo vem da maneira como os outros
o veem. Assim, a natureza de meu corpo me remete à existência do outro e ao
meu ser-para-o-outro. (...) pois a realidade humana deve ser em seu ser, num
só e mesmo surgimento, para-si-para-o-outro".
Segundo ele, o homem não possui uma essência definida a priori (por
exemplo, animal racional). O ser humano surge na espontaneidade e só depois
se define por aquilo que ele vem a ser no devir da existência. Nesse sentido, a
existência precede a essência.
Quanto à liberdade, ele diz que ela não é algo que o homem tem como
uma capacidade humana. A liberdade é algo que o homem é. Ela é originária.
Entre suas possibilidades o homem escolhe, assume um projeto de existência,
o seu modo de ser no mundo.
O paradoxo da liberdade consiste em que "... só há liberdade em situação
e só há situação pela liberdade. A realidade humana encontra em toda parte
resistências e obstáculos que ela não criou; mas essas resistências e esses
obstáculos só têm sentido na e pela escolha livre que a realidade humana e”.
É só diante de um fim livremente posto pela realidade humana que o dado
do mundo pode se mostrar como algo capaz de constranger a liberdade ou
como algo favorável a ela.
Sartre diz: "... é na angústia que o homem toma consciência de sua
liberdade ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da liberdade como
consciência de ser, é na angústia que a liberdade é em seu ser em questão
para ela mesma".
O homem é condenado a ter de escolher. Ele é sempre responsável. O
ato "autêntico" é aquele pelo qual o homem assume sua situação e a
ultrapassa por sua ação.
Nossos atos nos julgam e são irreversíveis. É em vão, diante de nossos
atos, querermos justificá-los apelando à boa intenção ou dizendo que foram
feitos inconscientemente. Isso seria "má fé", que é testemunhada pela
consciência do outro, cuja existência aparece como uma ameaça insuportável.
Não podemos escapar do "olhar" do outro.
O homem é comprometido com o contexto real e concreto em que vive, e,
mesmo se for indiferente a isso, esse ser indiferente é uma escolha, é seu
modo de responder às solicitações de seu mundo, de seu tempo. Não há a
desculpa de se dizer determinado pelos fatos que configuram uma situação.
Nessa amostra de algumas ideias de filósofos ligados ao existencialismo,
podemos ver que há pontos semelhantes ao pensamento de Heidegger. Mas o
pensamento deste filósofo não significa o mesmo que o existencialismo.
Heidegger (1967) diz em Sobre o humanismo que a importante frase de
Sartre sobre a precedência da existência frente à essência, justifica o nome de
"Existencialismo" como um título adequado a essa filosofia. Ele acrescenta que
essa frase do "Existencialismo", entretanto, nada tem em comum com a frase
que está em Ser e tempo.
Nesse mesmo livro, Heidegger diz que a frase que está grifada em Ser e
tempo é: "A essência do Dasein está na existência." E isso quer dizer: "O
homem se essencializa de tal sorte que ele é o lugar (Da), isto é, a clareira do
ser. "O homem é, enquanto existe".
Ao falar da existência, Heidegger evoca "a determinação do que o homem
é no destino da Verdade do ser" (p. 45). O foco de seu pensamento está
principalmente no considerar o homem como o destinatário da doação de ser.
Nossa preocupação, entretanto, é a Daseinsanalyse, que tem como base a
fenomenologia hermenêutica que, em Ser e tempo, se dedica à analítica do
Dasein - aquele ente cujo caráter essencial é o 'cuidado (Sorge) pelo ser em
geral e pelo seu próprio ser.
No referencial heideggeriano, 'ser' já é sempre 'doação' a Dasein, e
precisa de Dasein como destinatário de sua 'doação". Esse referencial implica
profundas diferenças diante da ontologia e da epistemologia tradicionais.
Embora ao empregarmos o termo Dasein estejamos nos referindo ao ente
humano, o nome Dasein permanece para indicar que esse ente se distingue
exatamente por seu caráter de ser-aí: aí no mundo', e o 'aí do ser.
A terapia daseinsanalítica só faz sentido dentro do referencial filosófico
heideggeriano. E, assim, soa estranho quando ouvimos perguntar se, em
nossa clínica, trabalhamos com determinados conceitos psicológicos bastante
conhecidos pelos psicólogos em geral. Tais conceitos a que me refiro são
importantes e têm sentido nas teorias que precisam deles para explicar como
funciona o psiquismo do homem. Mas eles ficam ociosos em nossa concepção
de homem como Dasein, que já é sempre ser-no-mundo': o "aí" onde se 'dá'
'ser'; a abertura' que 'compreende 'ser''ser'. que se dá e se encobre.
Se levamos a sério a fenomenologia que fazemos junto ao nosso
paciente, mesmo que conheçamos aqueles conceitos tradicionais da
psicologia, eles devem ficar em "suspensão". Nós nos detemos no que se
manifesta, num esforço-e é um esforço mesmo para a compreensão do sentido
daquilo que, ao mesmo tempo, se desoculta e se oculta. Vamos rodeando,
numa escuta pacienciosa, com perguntas simples, com pequenas
observações. Nisto que o paciente está dizendo agora, o que mais pode estar
implicado? Que modo de ser-no-mundo é esse que possibilita que tal coisa
exista nele? Em que chão isso se assenta? Como isso que ele conta entra em
sua história? Para onde isso aponta? Junto a que outros significados isso que
ele diz faz sentido? Que manifestação corporal acompanha sua fala?
Quando nos acostumamos a pensar assim, sabendo que é próprio do
fenômeno tanto o mostrar como o ocultar e que, portanto, é preciso que
permaneçamos no esforço para a interpretação e a explicitação do seu sentido
naquela existência em particular, percebemos o quanto teria sido pobre se
tivéssemos apressadamente nos restringido a algum conceito psicológico
prévio, desses que servem para todo mundo. Quando paciente e terapeuta se
aproximam da compreensão de um sentido mais "próprio" de algo que foi
trazido para a sessão, isso tem o sabor de uma coisa verdadeira.
A explicitação de um sentido, entretanto, não é algo que se dê com a
garantia de não mais voltar para o encobrimento. A 'doação de ser comporta a
ocultação. E é próprio do Dasein, ainda que ele seja a abertura' em que se 'dá'
'ser', poder ter, onticamente, uma restrição na sua possibilidade de
compreensão; ele pode permanecer na ou voltar para a penumbra de uma
compreensão obscura - nem sempre faz sol de meio-dia na clareira...
Mas por que algo que na terapia já estava desocultado, explicitado, pode
voltar a se encobrir? Nosso paciente frequentemente volta a ter como questão
algo que parecia já compreendido, já aceito.
Compreender alguma coisa é a realização ôntica do existencial
compreensão', que está sempre imbricado no existencial "afinação', o qual se
traduz onticamente em alguma emoção.
Então, compreender alguma coisa pode vir carregado de emoções
pertencentes a uma 'afinação' existencial que, naquele caso do paciente,
corresponde ao encontrar-se desabrigado, ao encontrar-se na inospitalidade. E
Dasein tende a fugir do estar desabrigado refugiando-se no cotidiano. Não é
estranho que se afaste de certas compreensões que apontam para o inóspito
da existência.
Compreender algo a respeito de si, se aproximar da possibilidade de ser
mais 'propriamente' si-mesmo pode ser incômodo, porque talvez essa
compreensão tire do abrigo proporcionado pelo "ser como todo mundo é". O
"ser como todo mundo é" não está sendo tomado aqui como o que caracteriza
aquele sobre quem se diz: é um tipo "sem personalidade", é um tipo "maria-vai-
com-as-outras". Ao contrário, o "ser como todo mundo é" pode se expressar
exatamente no dizer "a gente tem que ser autêntico", "a gente tem que ter
personalidade", pois essas mensagens estão presentes o tempo todo em
nossa cultura.
O se aproximar da possibilidade de ser mais 'próprio' tem a ver com o
poder ouvir um chamado que vem de si mesmo - E eu? A mim, sendo no
mundo em que sou, com a história que é a minha, o que é pedido?, e
responder a esse chamado. Compreender, ouvir o chamado e responder a ele
pode não ser confortável, porque nessa hora a pessoa se expõe, e isso traz
consequências, ou porque a resposta, uma vez dada, pode custar muito
esforço ou mesmo alguma renúncia.
O incômodo de se aproximar do ser mais 'propriamente si mesmo
acontece também porque, ao se aproximar do seu ser mais próprio, Dasein 'se
encontra' na sua condição fundamental de ser lançado' na existência sem
garantias, c, além disso, responsável por ela, 'devedor' à existência. O ser
'devedor', frequentemente, no cotidiano da vida surge como sentimento de
culpa diante do que se fez ou do que se deixou de fazer.
Mais que um incômodo, a angústia' se anuncia quando, compreendendo
quem ele é mais 'propriamente". Dasein compreende que seu tempo acaba,
que ele é mortal, não como sempre soube que "tudo que é vivo morre", ou
como quando aprendeu um exemplo de silogismo: "Todo homem é mortal;
Sócrates é homem; portanto Sócrates é mortal." Compreende que não vai
morrer "como" todo mundo, é "ele" quem vai necessariamente morrer, sem
saber quando, de que jeito, e sem saber bem o que é morrer. Dessa mesma
forma sabe que os que ele ama também vão morrer.
Quando Dasein compreende, e aceita, que ele é finito, que ele acaba,
compreende que não é só no tempo que ele acabará um dia, mas que ele
acaba também num outro sentido, isto é, há um limite para o "até onde" ele
chega, há um limite para o "até onde ele pode", porque ele não pode tudo.
Esse "até onde" não se refere ao espaço físico (isso a Internet
resolveria...), mas ao "até onde" vai seu controle. Quando seu poder se amplia
e ele consegue coisas antes inimagináveis, por isso mesmo ele penetra em
áreas dentro das quais, de novo, haverá sempre algo que ele não pode ter, não
pode fazer, não pode ser. O próprio Dasein, como 'abertura' que é, abre esses
novos âmbitos em que a 'doação' de ser continua, isto é, em que continua o
acontecer das coisas, em que continua se abrindo o mundo, que o solicita:
novas possibilidades se apresentam e novas escolhas são necessárias, e, de
novo, Dasein não pode realizar escolhas que se excluem.
Quanto mais se ampliam os limites de seu poder, mais complicada se
torna a responsabilidade de precisar escolher entre alternativas. Isso se aplica
a todas as áreas da vida, e em todas elas levanta preocupações éticas.
O "até onde" chega seu poder não diz respeito a distâncias, pode acabar
ali bem perto mesmo, ao seu lado. Ele não pode, por exemplo, obrigar nem
impedir que o outro goste dele; não pode se obrigar a gostar do outro nem se
impedir disso.
Seu controle acaba mais perto ainda, acaba no seu próprio corpo, no
corpo que ele é. Apesar do aumento de conhecimentos sobre o corpo humano,
o que amplia muito o controle possível sobre ele, a cada momento processos
corporais estão em andamento, dos quais Dasein nem se dá conta. "O ser
corporal de Dasein é o existencial que, mais de perto, nos conta que existir é
ao mesmo tempo indigência e potência (Pompéia, 2003, p. 33). A indigência,
no que este termo pode significar o não se bastar, o não se garantir, o ser
necessitado, expressa a condição do Dasein, que tem como um de seus
existenciais o ser um corpo destinado a morrer. A indigência assusta. E a
potência de ser também assusta.
Dasein é aquele ente que existe sendo sempre o seu já sido, a sua
história, e aquele a quem falta ser. Faltar-lhe ser significa o seu ser incompleto
(até que morra) e, ao mesmo tempo, significa que, por ser ele a "abertura' em
que se 'dá' 'ser', sempre há lugar para que nessa abertura continue a se dar a
'doação' de 'ser': para que, onticamente, mais coisas venham ao seu encontro.
Se, por um lado, o acontecer das coisas tem a ver com possibilidades que se
realizam e tornam mais plena a existência, por outro, o realizar-se de algumas
possibilidades é exatamente perda.
Desabrigado, devedor, finito, angustiado, vivendo na falta. com as perdas,
e, contudo, podendo responder ao chamado para ser mais propriamente si-
mesmo e corresponder à sua destinação existencial, fazendo planos,
alimentando sonhos, querendo ser feliz. Assim é o Dasein em sua indigência e
potência de ser. Esse é o ser humano que está junto a nós na terapia.
Cada ser humano carrega em si todos os paradoxos e todos os conflitos
que significam existir: sentimentos contraditórios; querer e não querer ao
mesmo tempo; precisar se tornar si mesmo e se afastar de si mesmo; precisar
de um sentido para a vida e, muitas vezes, não conseguir se dedicar a ele;
saber de sua necessidade do outro e sentir o difícil que pode ser conviver com
o outro; precisar de proteção e saber de seu desabrigo.
Temos para cada paciente um olhar que é dirigido para ele em particular,
para aquela história de vida, para as possibilidades de desdobramento daquele
futuro. Mas não perdemos de vista a compreensão que temos de tudo aquilo
que, ontologicamente, caracteriza o Dasein, ou seja, os existenciais ou seus
caracteres fundamentais.
Todos os existenciais, de algum modo, se expressam no viver concreto
(ôntico) do paciente, seja nos momentos em que ele está mais próximo de sua
'propriedade', seja nos momentos em que está o mais possível perdido na
'impropriedade do cotidiano.
São, por exemplo, caracteres fundamentais do Dasein: 'compreensão',
'afinação', 'temporalidade', 'espacialidade". 'corporeidade', 'ser-com'.
Todos os existenciais são sempre imbricados uns nos outros. Vejamos
alguns exemplos dessa imbricação.
'Ser-com' e 'afinação'
Dasein é ser-com mesmo quando escolhe estar só on é obrigado a isso.
E esse ser-com acontece sempre numa determinada afinação. Em cada caso,
quem é o outro para este Dasein? Pois o outro não é meramente "um outro",
como uma coisa qualquer. Percebo e sinto o outro como aquele que me
protege, aquele de quem preciso sempre suspeitar, aquele a quem devo temer,
aquele que eu engano, aquele que me engana, aquele que eu controlo, aquele
de quem não quero depender, aquele que me persegue, aquele que eu
abandono, aquele que me abandona, aquele que eu amo, e assim por diante.
No seu ser-com o outro, Dasein sempre se encontra', ou está numa
determinada afinação. O modo prevalente de alguém ser com os outros marca
grandemente a tonalidade afetiva de sua vida.
"Ser-no-mundo', 'corporeidade' e 'ser-com'
Quando dizemos que 'corporeidade' é um existencial, não estamos
dizendo algo que parece óbvio, isto é, que Dasein "tem" um corpo ou existe
"em" um corpo, esse corpo material objeto da Física, da Química, da Biologia.
Também não estamos repetindo a atualmente tão bem lembrada relação entre
corpo ou processos corporais e questões emocionais.
Compreender a corporeidade como um existencial significa dizer que o
ser corporal é para o Dasein uma determinação ontológica. Dasein é seu
corpo. É corporalmente que Dasein é-no-mundo. E, além disso, o mundo que
temos só é este que temos porque a nossa corporeidade é esta que somos.
Compreendemos isso quando nos damos conta de que as cores, as formas, os
sons, os cheiros, enfim, tudo o que caracteriza os entes com que nos
deparamos poderia ser diferente se, por exemplo, nossos olhos, nossos
ouvidos, nosso olfato fossem outros. E, se fossem outros os processos
cerebrais, como seria a compreensão humana dos fenômenos todos, inclusive
da nossa própria vida, e, a partir dessa compreensão que então teríamos, o
que iríamos dizer a respeito das coisas e de nós mesmos? Que questões
teríamos? Que outras dimensões estariam abertas para o humano e como
seria isso a que chamamos mundo?
Dasein é corporalmente-no-mundo-com-os-outros. É sendo o corpo que
somos, com tudo o que nos caracteriza de modo momentâneo ou de modo
mais permanente como sexo, cor, se com saúde ou não, se bonitos ou não, se
velhos ou moços, movimentos ágeis ou lentos, tamanho, com fome ou
saciados. cansados ou não, gordos ou magros, com sorrisos ou carrancudos e
assim por diante, que interagimos uns com os outros, que somos uns com os
outros.
Sendo o corpo que somos, nossas necessidades estão aí presentes e
temos de nos haver com elas. A sexualidade está entre as necessidades mais
básicas do ser humano. E o interesse sexual pelo outro se inclui também entre
as possibilidades concretas de Dasein em seu ser-com-os-outros. Em torno do
amor erótico gira grande parte das preocupações humanas. Por causa desse
amor, as pessoas sofrem, são felizes; alguém encontra sentido na vida, alguém
quer morrer. Histórias de amor, da forma como são vividas, ou como não são
vividas, por qualquer que seja o motivo, perpassam a terapia.
'Compreensão' e 'afinação'
A imbricação entre elas é o que faz com que tudo aquilo que
compreendemos venha sempre acompanhado com algum tipo de sentimento,
ainda que seja de indiferença. Assim, por exemplo, alguém que, em sua vida
pessoal, compreende a possibilidade de os acontecimentos da vida se darem
independentemente de seu controle pode viver isso de uma forma afinada na
desproteção, no desabrigo que significa o não ter garantias de nada, que
aponta sempre para o perigo iminente; e aí um sentimento de medo está quase
sempre presente. Um outro vive essa mesma compreensão do não poder
controlar tudo como sendo o caráter da gratuidade do dar-se das coisas, o que
significa desabrigo e desproteção, mas significa também algo que o libera da
necessidade de ter de controlar tudo, e isso pode ser vivido como um
sentimento maior de liberdade, de não precisar viver sempre em estado de
alerta. E um outro, ainda, talvez viva esse não poder controlar tudo como um
sentimento de indiferença, como um "tanto faz eu ser ou fazer de um modo ou
de outro, visto que nada está sob meu controle, é tudo fruto do acaso". Mas,
por outro lado, um sentimento de indiferença pode também vir junto com um
modo oposto de compreender a existência, isto é, a existência como
completamente predeterminada, em que também "não importa o que eu faça,
pois o que tiver de ser será". Ainda um outro vive o compreender que não
controla tudo como um sentimento de humildade diante do imponderável, que
não o desobriga de fazer a sua parte, e que o faz se sentir alegre pelo tanto
que, gratuitamente, tem recebido.
A maneira como trabalhamos em terapia se dá como um compartilhar a
interpretação da facticidade daquela existência que temos junto a nós no
consultório. Interpretação aqui não quer dizer encaixar aquilo que o paciente
traz no referencial de uma teoria de psicologia. Quer dizer, diante do que ele
traz, tendo como horizontes, ao mesmo tempo, os existenciais e aquela história
particular, empenhar-se não só na explicitação do sentido do que aparece
como na ampliação desse sentido, na procura do que pode estar encoberto -
pois o que é se dá e se oculta - propiciando assim que o paciente possa alargar
e aprofundar a compreensão de como está sendo seu modo de existir.
Mas, frequentemente, deparamo-nos com uma pergunta: Como o
pensamento de um filósofo, cuja intenção não é fornecer subsídios para a
clínica, pode servir de base para uma prática terapêutica?
Isso é possível porque, como já vimos, ao se dedicar à sua questão
principal, Heidegger se detém na análise do ente para o qual ser é questão, o
Dasein. A partir daí, podemos ter uma profunda compreensão dos caracteres
básicos da existência humana. Esses existenciais servem de referência para a
nossa compreensão do paciente.
Sabemos que o Dasein se caracteriza por ser fáctico', isto é, ele é
lançado na existência, tendo de ser, tendo de 'cuidar' da sua existência. Cada
um tem a sua existência como questão, deve a si mesmo esse cuidado. E esse
cuidado inclui si mesmo, o outro, as coisas todas do mundo; abrange o
passado, o presente e o futuro. Destinado ao cuidado e, ao mesmo tempo,
tendo de contar com a falta de garantias e com a transitoriedade de tudo: esse
é o nosso paciente, que se aflige pelas escolhas que tem de fazer; sofre por
suas perdas; tem de se haver com seus amores e desamores; se angustia
diante da finitude e não tem como não se preocupar com sua vida.
A compreensão que temos do Dasein como o ente que realiza a sua
essência nesse 'cuidar' do 'ser' permeia todo o nosso cuidado com a existência
concreta do paciente.
O pensamento de Heidegger repercutiu entre psiquiatras que viram aí
uma nova possibilidade de compreensão de seus pacientes.
Os suíços Binswanger (1881-1966) e Boss (1903-1990) foram alguns
desses.
Medard Boss, que manteve contato pessoal com Heidegger desde 1947,
organizou os Seminários com o filósofo em Zollikon, a partir de 1959. Esses
Seminários começaram com uma conferência de Heidegger no auditório da
clínica de psiquiatria da Universidade de Zurique. Esses encontros favoreceram
a entrada da Daseinsanalyse na clínica. Medard Boss fundou a Sociedade de
Daseinsanalyse na Suíça.
Em 1971, Solon Spanoudis (1922-1981), psiquiatra grego radicado no
Brasil, entrou em contato com Medard Boss. A partir daí e dos encontros que
se seguiram entre esses dois psiquiatras e alguns psicólogos de São Paulo,
teve origem a Associação Brasileira de Daseinsanalyse, filiada à da Suíça.
Vamos agora chegar mais perto da clínica, pois é nesse cotidiano que nos
encontramos face a face com o fenômeno que nos diz respeito: a existência do
paciente.
Diferentemente do professor que prepara uma aula, que decide o que
quer falar naquele dia, que atividade vai propor para os alunos, o terapeuta não
escolhe previamente o que vai ser tratado. O assunto da terapia surge na hora.
O paciente até pode pensar: "Hoje quero falar de tal coisa." Mas o terapeuta
está disponível para o que vier.
A terapia pode seguir, durante um tempo, um rumo mais ou menos
estável, mas a possibilidade das surpresas está sempre ali. Isso porque podem
mudar tanto a percepção que o paciente tem das coisas como a percepção que
ele tem de si mesmo, e, além disso, porque acontecimentos na sua vida podem
modificar tudo. A cada dia o terapeuta sabe quem vem para a terapia, mas não
sabe como vem.
Como exemplo de uma terapia, vamos nos aproximar de um caso que
não é verdadeiro, mas não é impossível.
A psicóloga de um hospital, já quase no fim de seu dia de trabalho, foi
visitar uma paciente que estava internada desde cedo. Tinham lhe dito que se
tratava de uma moça que havia sofrido um grave acidente de carro na estrada
e que, após os primeiros socorros, esperava em seu quarto para ser removida
para outro hospital. Disseram que a paciente tinha estado muito agitada, e
depois de um sedativo havia dormido, e agora seria bom que alguém fosse
falar com ela um pouco.
Chegando ao quarto, bateu na porta, pediu licença e entrou. -Oi, eu sou
fulana, trabalho aqui como psicóloga. Estou vindo para saber como você está.
Caso você queira falar com alguém, estou disponível para conversar com você.
E parou de falar. Viu os hematomas, os ferimentos e as lágrimas no rosto
da mulher. De imediato, não dava para saber se era jovem, mas, aos poucos,
percebeu que era jovem sim. A moça falou com voz sonolenta:
Dói tudo... Meu rosto...
A psicóloga permaneceu algum tempo no quarto aguardando que ela
ainda quisesse falar mais alguma coisa, e depois disse
apenas:
Descanse, volto outra hora.
Saiu e foi tomar café. Encontrou o médico que havia atendido a paciente
e ele lhe disse:
Viu a moça? Fiz só o mais urgente para evitar infecção nos ferimentos,
dei a ela um sedativo, ela estava num estado... Vai ser preciso um plástico.
Será removida para um outro hospital. A psicóloga sentiu um mal-estar meio
indefinido.
Em seguida pegou seu carro e foi para casa. A estrada estava boa, mas
dirigiu meio preocupada. Pensou em como era difícil ter de viajar todos os dias
para trabalhar naquele hospital, mas esse era o jeito agora.
Chegou em casa, tomou banho e depois se olhou no espelho. Viu seus
cabelos bem lavados. Os da paciente do hospital ainda tinham alguma coisa
meio empastada que devia ter sido usada para remover o sangue. Viu seu
rosto harmonioso e gostou do que viu, mas não ficou alegre. Pensou: "Ontem
ela deve ter se olhado no espelho como cu agora." Enquanto secava os
cabelos, chorou lembrando-se da moça.
Ligou para os amigos e foi encontrá-los no mesmo bar de sempre.
Conversaram e tomaram cerveja como nos outros dias, mas ela não estava
igual. Um dos amigos reparou e disse:
Que foi? Você não está bem. Ela respondeu:
-Estou bem agora, mas o dia foi pesado no hospital. Também, por que eu
tinha de entrar naquele quarto? Se eu deixasse pra amanhã ficaria livre de ver
o que vi. Nunca tinha visto alguém tão machucado. Meu, não dá pra aguentar.
Não sai da minha cabeça aquele rosto. Foi um acidente de carro. Você fica
feito uma pasmada ali na frente da pessoa, sem ter o que fazer, sem ter o que
dizer. O que adianta ser psicóloga? Qualquer coisa que a gente diga não faz
sentido. E tudo uma papagaiada. Estou sendo chata, desculpa, agora não é
hora pra falar disso. Mas é que me pegou fundo mesmo. E eu aqui, tomando
cerveja. falando que não dá pra aguentar; daqui a pouco esqueço e a minha
vida continua igual. E ela? O que vai ser dela?
Os amigos entraram na conversa e cada um tinha uma história sobre algo
referente a esse assunto. O peso inicial foi sendo aliviado. Ela não demorou
muito para ir embora porque precisava levantar cedo para ir trabalhar.
No dia seguinte, na entrada do hospital, informou-se sobre aquela
paciente, e disseram-lhe que ela já havia sido levada para outro hospital.
Conversou com a funcionária da portaria, que lhe deu algumas informações
sobre a moça acidentada. Disse que, segundo o homem que a acompanhava,
que também tinha tido uns ferimentos leves, eles voltavam do litoral quando o
carro derrapou, quebrou uma grade e rolou na ribanceira. A moça estava
dirigindo. Esse acompanhante avisou alguns parentes dele e foi liberado
algumas horas depois, pois com ele nada havia de grave. Ele pagou os
atendimentos, inclusive as despesas com a remoção da moça, mas não sabia
dar informações sobre ela, pois não conhecia sua família. Mas encontraram na
bolsa dela uma agenda com um telefone que era o de sua mãe. A mãe foi vê-
la. mas não conseguiu conversar com ela; apenas falou com o moço, seu
acompanhante, e foi embora.
A psicóloga saiu dali pensando nos imprevistos da vida. achando que os
dois tinham estado provavelmente numa festa, e, de repente, a moça lá,
naquele estado.... Depois foi cuidar do seu trabalho daquele dia.
Quando voltou para casa nessa noite, estava lá sua tia, que era psicóloga
também. Comentou seu encontro com a paciente do hospital, o quanto ela
havia sido tocada pela situação. A tia então falou:
Esse é um desses casos em que, depois de passar a noite na balada, a
pessoa sai dirigindo, ainda pega uma estrada, e depois dá nisso. São
irresponsáveis, e ainda bem que, ao menos, o companheiro dela não se
machucou. Até que ele foi legal de pagar as despesas dela.
-Pode ser, tia. Mas mesmo assim, é um horror! Se você visse como ela
estava! Num momento, quanta energia, quanta vida, e de uma hora pra outra...
-Quanta vida! É o que você pensa. Não sei, não. Sempre por trás desse
"quanta vida" o que existe é uma destrutividade muito grande. Por que uma
menina sai dirigindo desse jeito. certamente depois de beber muito e, quem
sabe, com alguma droga? Por quê? Você não vê que aí há no fundo uma
vontade de acabar com a vida?
-Ah, tia. Você não está exagerando em concluir assim sobre essa
destrutividade da moça? A gente nada sabe sobre ela.
-Mas a gente consegue sacar essas coisas. E digo mais: você não disse
que o companheiro dela não sabia nada a seu respeito? Pois é, as meninas
saem com caras mais velhos, ricos, vão à procura de facilidades na vida.
Acabam exagerando em tudo, e ainda essa aí acaba pondo a vida do outro em
risco, além da sua própria. E isso não é destrutividade? A destrutividade tem
muitas formas! A destrutividade vem disfarçada de....
A moça parou de prestar atenção e pensou: "Que coisa chata! Acabou
com a minha vontade de conversar..."
Alguma coisa que ela não sabia bem o que era tinha se esvaziado
naquela hora, e se sentiu sozinha.
Depois que ela saiu da sala, a tia ainda falou para quem estava lá:
-Nos primeiros tempos de clínica é assim mesmo. Ela está
impressionada. Mas se você se deixar levar assim pelos problemas dos outros,
você está perdida. A gente precisa esfriar a cabeça e pensar com objetividade.
Cada coisa sempre tem sua explicação, não dá para se fugir disso.
Cada um deu ainda mais alguma opinião até que a conversa tomou outro
rumo.
Aquela paciente foi removida para outro hospital, e, como a plástica de
que necessitava era uma cirurgia reparadora, foi logo atendida, e teve a sorte
de ser atendida por um ótimo cirurgião. Ele se comoveu com o rosto
desfigurado da jovem e tratou dela com um cuidado especial. Ela ficou no
hospital os dias que podiam ser cobertos pelo seu seguro de saúde e depois foi
para casa. Sua mãe já havia comunicado seu acidente à empresa onde ela
trabalhava.
Em casa não havia muito o que fazer a não ser pensar, chorar, responder
o menos possível ao que era perguntado, evitando sempre olhar no espelho.
Não tinha esperança de voltar para o mesmo trabalho; sabia que era
fundamental a aparência. E havia outra coisa que a fazia sofrer: saber que o
fulano que estava com ela na hora do acidente, não havia procurado ter
notícias suas. Ela se lembrava de que lhe haviam dito, no primeiro hospital, que
ele não tinha se machucado muito. Chegou a ligar para seu celular mas
ninguém atendia.
Um dia uma colega de trabalho foi visitá-la, e, num certo momento, falou
para a colega que ela não sabia como tinha acontecido aquilo, pois quantas
vezes tinha saído com ele de carro e ele dirigia muito bem. A amiga lhe disse
então:
-Mas me disseram que era você quem estava dirigindo! E ela respondeu:
Não, era ele.
A mãe dela, que estava por perto, fez um sinal para que a amiga parasse
com o assunto. Depois, longe dela, disse:
Ela está meio confusa nessa história. Sabe, não é por mal que ela diz que
não era ela. Já me disseram que isso é por causa do trauma do acidente. Me
explicaram que, quando uma coisa é muito ruim, a pessoa, às vezes, começa a
achar que aquilo não foi por causa dela, mais ou menos isso, não sei te dizer
direito, meio que esquece como foi tudo. Mas lá no hospital o homem que
estava com ela me contou que ela estava dirigindo. Até que ele foi muito bom,
pagou os primeiros socorros, facilitou a remoção dela pro outro hospital.
A amiga ficou mais um tempo e depois foi embora. No dia seguinte
comentou com o pessoal da empresa o quanto tinha ficado chocada com a
aparência da colega. Os outros disseram coisas como: "Que loucura! Justo ela,
bonita daquele jeito! E agora, como vai ser? Que horror!"
Uma das colegas falou:
-Ela estava tão feliz! Há poucos dias me contou que estava saindo com
um cara muito legal. Estava encantada, apaixonada. Disse que nunca em sua
vida tinha recebido tantas flores como agora. E machucou muito mesmo o rosto
dela?
-Nem dá pra descrever - respondeu a outra.
Mas com uma plástica dá pra recuperar?
Difícil. Ela já foi bem atendida por um ótimo cirurgião plástico que dava
plantão naquele dia no hospital pra onde foi removida. Mas, mesmo assim, o
estrago foi muito grande. Ela está arrasada. A mãe dela disse que ela está
ainda muito confusa. Também, não é pra menos!
Alguém disse:
- De uma hora pra outra a vida vira de cabeça pra baixo! O que vai ser
dela?
Uma das moças comentou:
-Estranho isso que foi dito sobre ela estar dirigindo. Ela dizia que não
gostava de dirigir em estrada. E ele também se machucou muito?
Que nada! Só uns arranhões.
Passaram-se alguns dias e a moça começou a fazer os retornos ao
hospital para acompanhar a evolução das várias cirurgias que precisou fazer
no rosto. Tinha vergonha de mostrar o rosto ainda inchado, as cicatrizes
recentes.
No hospital havia um serviço de psicologia. Foi encaminhada para um
apoio psicológico destinado a alguns pacientes muito necessitados de ajuda. E
a ajuda que recebeu foi preciosa. Teve oportunidade de falar do desastre, de
reclamar da vida, de chorar muito. Começou a entender que sua vida não seria
mais a mesma, que algumas mudanças viriam; grandes e pequenas
mudanças.. Algumas pequenas ela já começou a fazer, por exemplo, passou a
usar o cabelo de modo a esconder um pouco o rosto, sempre de óculos
escuros. Não se sentia em condição de manter seu trabalho, em que uma
aparência impecável era exigida. Seu chefe colocou-a para trabalhar no
escritório da empresa.
Infelizmente esse atendimento psicológico tinha um tempo limitado. Na
última sessão ela disse à terapeuta:
-Sabe, nunca tinha pensado em terapia. E agora, veja, me abri tanto com
você, não sei como teria aguentado isso sozinha. Ia ser bom continuar. Me
lembrei de uma outra psicóloga que apareceu no meu caminho nesses últimos
tempos. Até já tinha me esquecido. Foi no mesmo dia do acidente, quando eu
estava no primeiro hospital em que fui atendida. Estava péssima ainda, em
estado de choque, como se diz. Cuidaram de meus ferimentos, e, depois que
consegui relaxar um pouco à custa de um remédio que me deram, eu me
lembro de que, numa certa hora, entrou no quarto uma moça dizendo que era
psicóloga; nem sei direito o que falou; devo ter dito alguma coisa pra ela; eu
quase não podia falar. Depois perguntou se a terapeuta poderia atendê-la em
outro consultório.
A terapeuta respondeu que não seria possível, pois estava com uma
viagem marcada e ficaria um ano fazendo um curso em outra cidade. E a moça
disse:
-Que pena! Ia ser muito bom continuar com você.
-Mas eu vou dar pra você o nome de uma pessoa em quem confio muito.
Você vai se acertar com ela, tenho certeza.
A moça só foi procurar a nova psicóloga depois de dois ou três meses.
Chegou e disse logo por que estava ali, como quem está com pressa.
Falou que fez três meses de terapia num serviço psicológico de um hospital
onde havia feito cirurgia plástica, aliás, várias intervenções por causa de um
acidente de carro que sofrera. E em seguida toda a sua amargura começou a
aparecer nas palavras, na postura, na expressão do rosto, que, apesar dos
óculos escuros, estampava sua tristeza.
A terapeuta perguntou quando tinha sido o acidente e a moça
disse a data e o lugar.
"Meu Deus, é ela!", pensou a terapeuta.
Ouviu ainda o nome do hospital onde havia sido o primeiro atendimento.
Na surpresa, perdeu algumas coisas que a moça dizia; difícil prestar
atenção tão presa estava na sua aparência. E pensou: "Faz quase seis meses,
agora dá pra ver como ela é."
Alguém poderia dizer aqui que isso só acontece em novela. Mas o fato é
que naquele dia em que sua colega lhe telefonou e disse que havia dado seu
nome para uma moça que iria procurá-la, ela foi informada de que se tratava de
alguém que tinha feito cirurgia plástica por causa de um acidente. Naquela
hora, ela chegou a se lembrar do caso da moça vista no hospital. Mas... isto
agora era demais..
E enquanto ela se refazia da surpresa, a moça continuava falando:
... se você visse como eu fiquei, agora até que está bom em vista de
como foi. No meio de tanta coisa ruim, não posso me queixar do meu
atendimento. Mas logo em seguida eu pirei mesmo. Não tinha mais chão. O
que passei não tem nome. A gente não quer ver ninguém. A psicóloga lá do
hospital me aguentou. Mas a terapia lá é só por três meses. Então ela me
indicou você. Não vim logo em seguida, não sei por quê.
-Mas agora você está aqui. E antes disso você já havia feito alguma
terapia?
Não, nunca senti necessidade. Tinha amigas que faziam. mas eu brincava
com elas, dizia que eu não precisava disso, não era louca. Mas agora, de uma
hora pra outra, mudou tudo. Não sou mais quem era, não tenho mais o que
tinha. Não é que eu tenha perdido coisas, não, é a minha vida que está
perdida. Minha vida acabou. Você está me vendo viva aqui sentada na sua
frente. Mas eu não estou viva. O que sobrou de mim é resto. O que fiz pra
merecer isso? Você entende? Não há o que fazer. Todo dia acordo de manhã e
vejo que a minha vida é isso. A vida de todo mundo continua, e eu tenho que
aguentar isso sozinha. Nesse momento a moça já chorava muito.
A terapeuta, depois de um tempo, disse para ela:
-É tudo muito triste. E a gente fica se perguntando como
é que se continua a viver depois disso, não é? De repente, acontece
alguma coisa que faz a vida desabar e, em seguida, não há mais como escapar
do acontecido. A vida está marcada por aquilo que aconteceu. Deve haver mil
perguntas sem respostas: "Por que isso? Por que assim? Por quê? E agora?"
E nem sempre a gente pode compartilhar essas coisas com as pessoas,
mesmo com as mais queridas. Então a gente fica só.
Quando conseguiu parar de chorar, a moça disse:
-Na verdade cu sei que nada pode ser mudado, não tenho o que esperar.
Mas eu preciso falar; pode ser que assim eu entenda alguma coisa dentro
desse absurdo todo. Foi por isso que eu vim.
- Conversar ajuda. Você deve estar cheia de perguntas, e todas as
perguntas cabem aqui, se bem que nem sempre a a gente encontre as
respostas. Algumas vezes, o que se compartilha é o não-entendimento. Outras
vezes é só a dor.
-De dor eu entendo... Mas tenho estado muito só. A outra terapeuta me
indicou você, e eu quero tentar.
-Estou disponível pra atender você. Mas antes há uma coisa que quero
que saiba. É o seguinte. Está acontecendo uma enorme coincidência aqui. No
dia do seu acidente eu vi você. É isso. Há pouco você me disse "se você visse
como eu fiquei", não é? Então você sabe agora que eu vi. Não sei se isso a
incomoda. -Como é isso? Você estava no hospital? No primeiro ou no outro
onde fui operada?
-No primeiro. Eu trabalhava lá. Quando foi socorrida em seguida ao
acidente, você teve um atendimento de emergência, tomou um sedativo,
dormiu um pouco. Depois que acordou, fui ao seu quarto pra perguntar como
estava, saber se queria falar com alguém. Você não tinha condição de falar
com ninguém, estava com muita dor e com muito sono. Então eu disse que
voltaria depois, mas no dia seguinte você já havia sido removida pra outro
hospital. Então, foi assim, eu a vi lá por uns minutos. Só agora, ao ouvi-la
contar o dia e o lugar onde aconteceu tudo, me dei conta de que era você.
-Mas isso é muito doido! Tenho uma lembrança de que entrou alguém no
quarto e disse que era psicóloga, mas isso se mistura com uma porção de
outras lembranças. Naquele dia eu estava fora de mim. Que coisa!
-Pra mim também isso é muito estranho. E estamos aqui podendo
conversar agora. Pra você tudo bem que eu já a tenha visto naquele dia?
-Tudo bem. Por que haveria problema? Acho até bom. Também não sei
por que acho bom. Você me conheceu no pior dia que eu já vivi.
Quis deixar isso claro para que, se começarmos uma terapia, não haja, de
minha parte, alguma coisa que eu esteja sabendo a seu respeito sem que você
saiba que eu sei. Poderia ser o caso de uma pessoa não querer ter sido vista
naquela condição de precariedade de alguém que acabou de sofrer um
desastre daquele jeito. Não sei o que você pensa disso. Se não contasse isso
agora, eu não ficaria à vontade com você.
Estou entendendo. Já disse que, por mim, não há problema. Até pode ser
bom, assim você sabe que não estou exagerando. Mas, pensando bem, podia
mesmo acontecer que alguma pessoa não gostasse de ter sido vista no dia
mais horroroso de sua vida, em que ela se sentia como um monstro. Mas, no
meu caso, não me importo com isso.
Já tinha também passado pela cabeça da terapeuta, logo nos primeiros
momentos em que percebeu quem era a paciente, a pergunta: "Eu quero
atendê-la?" Pois ainda se lembrava do quanto havia ficado impressionada
naquele dia. Mas hoje estava certa de que queria fazer esse atendimento, que
não seria fácil.
A moça falou em seguida de sua dificuldade financeira no momento.
Disse que continuava trabalhando na mesma empresa de antes do acidente,
mas numa outra função. Era uma empresa que lidava com cosméticos. Antes
trabalhava em vendas, mas fazia também demonstrações dos produtos em
feiras, lojas, salões de beleza; maquiava modelos, artistas, e era exigido que
ela também estivesse sempre impecavelmente maquiada. Agora estava só no
escritório, e perdera as comissões que recebia antes. Não podia nem reclamar,
porque já tinha tido sorte de não perder o emprego depois de ter precisado
faltar tanto tempo, e sabia que sua aparência não correspondia mais às
exigências do trabalho. Não podia contar com a ajuda de ninguém, ao
contrário, era ela quem ajudava a mãe. Enfim, tinha receio de não poder pagar
a terapia.
A terapeuta lhe disse que poderiam fazer um acordo quanto a isso.
Pagaria o que fosse possível agora e depois fariam novos acertos.
Combinaram que ela viria duas vezes por semana.
Ela disse:
-Eu tinha seu telefone na minha bolsa, mas estava adiando a vinda aqui.
Queria tentar sair disto sozinha, mas está complicado.
Quando você diz "sair disto", o que é mais precisamente esse "disto"?
-Ora, é tudo o que se passou comigo. Minha vida não é mais a mesma;
tem hora em que não me conheço mais. Tenho muita confusão na minha
cabeça. Se começo a pensar muito, me afundo numa depressão que não tem
tamanho. Estou ficando com medo, a gente não sabe onde isso vai parar. Se
não fosse a terapeuta lá do hospital, acho que eu não ia aguentar. Era só com
ela que eu conseguia falar, era só ela que me ouvia. As outras pessoas não
suportam. A gente não tem com quem dividir.
-Compartilhar ajuda a aguentar. E nós vamos poder continuar a conversar
aqui.
Conversaram mais um certo tempo e ela ficou de voltar dali a dois dias.
Depois que a paciente saiu, a terapeuta permaneceu na sala por um
longo tempo. Estava admirada da coincidência.
Sabia que precisaria de força para estar junto de alguém sofrendo tanto.
Sentiu um certo medo, mas não teve dúvida de que queria mesmo atender
essa moça.
Começou a pensar: "Ela quer ajuda pra sair disto, mas esse sair disto
precisa passar ainda por um longo entrar nisto. Não será possível cortar
caminho. Diz que não se conhece mais, mas o que é para ela esse não me
conheço mais? Sei que tem a ver com a alteração do rosto, mas o que mais? E
a sua confusão? E a sua tristeza? E o seu medo? Como é a sua história, e
como ficará essa história agora tão profundamente modificada?"
Lembrou-se do encontro no hospital, do sofrimento que a impressionara
tanto. "E agora, como vai ser esta terapia? Será que vai dar certo? O que é
mesmo que espero com esse dar certo? Minha vontade é ajudá-la; mas o que
poderia ser ajuda? Não faço ideia. Nunca vou poder devolver pra ela as coisas
que perdeu... O que faço com a fenomenologia aqui? Nesta hora, o que vale
aquilo tudo de que a gente fala: ser-no-mundo, ser-com e essas coisas todas
que a gente estuda? O que faço com os tais existenciais? Ontem mesmo a
gente falava dessas coisas no grupo de estudo. Compreensão é um
existencial. E daí? Nem sei por que pensei nisso agora. Acho que é porque não
estou entendendo nada, ela não está entendendo nada, ninguém entende nada
quando acontece uma coisa dessas. Sem noção!... E, mas... se compreender é
abarcar, de alguma forma ela compreende o que aconteceu na sua vida,
alguma coisa que modificou tudo, mesmo que olhe pra isso e só veja confusão
na sua cabeça; e tenho de admitir que, de algum modo, eu também
compreendo o que aconteceu, compreendo como deve estar se sentindo. Se
isso é horrível pra mim. imagino pra ela. Que vivência de medo deve carregar!
Jogada na desproteção, no desabrigo de um mundo hostil, na dor de ter
perdido tanto! E isso. Ela perdeu muito. Tristeza e medo. Um medo ligado ao
acontecido e que vai também para o futuro. É isso. É a tal história da
temporalidade. O passado dela não volta. O que ela pode esperar do futuro? O
desejo é de sair disso, é como o desejo de acordar de um pesadelo. Mas ela
não vai acordar desse pesadelo, porque isso não é um sonho. Ela não tem
mais o rosto perfeito que tinha. O que é mesmo corporeidade? Complicado. É
isso. O fato de sermos corpo escancara nossa fragilidade!... Tem hora que não
me conheço mais, disse ela. Como deve ser difícil perder-se assim!... Ela
quase não falou sobre sua relação com as pessoas, a não ser que ajuda a mãe
e que a terapeuta do hospital aguentou com ela coisas pesadas. O ser com os
outros... E agora, eu com ela? Ela espera algo de mim. Eu estou com ela.
Ainda não sei o que posso fazer por ela. Ela está tocando a vida. Passo agora
a fazer parte da sua vida. Como me preocupei com ela no dia daquela visita no
hospital! Naquele dia eu pensava nela, mas pensava também em mim.
Aconteceu com ela, podia ter acontecido comigo. Sei o que eu estaria sentindo
se tivesse sido comigo. E se ela me perguntar: Por que eu? Não vou saber
responder. Será que alguém sabe? O tal dar-se das coisas que ouvi naquela
palestra! Mas tem cada coisa que se dá!... Deixa pra lá. Ah... aceitação. Era
essa a palavra que o professor falou naquele dia... difícil entender isso.
Também, estou querendo demais agora. Foi só uma primeira entrevista."
Mais tarde, já em casa, a terapeuta voltou a pensar no atendimento que
tinha aceitado fazer. "Será que isso de eu ter ficado tão emocionada naquele
dia no hospital não vai atrapalhar? E a neutralidade do terapeuta, como fica?
Preciso estar atenta pra não deixar que meus sentimentos se misturem com os
dela. Isso eu posso fazer. Deixar de sentir, ignorar o quanto essas desgraças
súbitas mexem comigo, isso eu não posso. E nem acredito que o terapeuta
deva ser uma parede. Por que deveria ser? Eu e ela somos gente, e, como
gente, nós temos nossos sonhos. Não posso fazer de conta que não sei o que
significa pra uma moça o que ela está passando neste momento. Eu só não
posso me afundar na dor que é dela, que eu compartilho porque, sendo gente,
dói também em mim ver gente sofrendo. Mas é ela quem tem de se apropriar
da dor pelo que ela perdeu. Foi ela quem perdeu. Só assim vou poder ajudá-la
a se reencontrar, quem sabe.
Era com aquela existência que a terapeuta tinha entrado em contato.
Aquele era o fenômeno que se manifestava na juventude, nas cicatrizes, nas
lágrimas, nos gestos, nas palavras da moça. Uma existência num momento de
abalo, de corte, de interrupção do rumo planejado para a vida, de
esvaziamento de sentido, uma existência literalmente ferida. Ainda haveria
muito para aparecer. Deixar que aparecesse, no meio de todos os
encobrimentos que também viriam, poder pensar e pôr em linguagem o que
aparecesse: logos penetrando a manifestação: elas estariam fazendo uma
fenomenologia.
Num certo momento a paciente havia dito algumas coisas que chamaram
a atenção da terapeuta: estava adiando a vinda; queria poder sair daquilo
sozinha.
A terapeuta poderia ter se detido no porquê do adiamento da vinda, ou no
sentido do querer sair daquilo sozinha, ou seja, sem ajuda. Mas escolheu outro
caminho. Deteve-se no sair "disto", dando ênfase para o que seria este "isto"
do qual a paciente queria sair. Obviamente, ela sabia que essa palavra se
referia à situação sofrida que estava sendo vivida. Mas ela queria ouvir da
moça, ainda que ligeiramente num primeiro momento, como ela,
particularmente, estava vivendo a sua dor.
Foi assim que surgiram aqueles: minha vida não é mais a mesma; não me
conheço mais; confusão; depressão; medo. Apareceram também o seu querer
sair daquele estado e a sua capacidade de confiar em alguém, quando ela se
referiu à outra terapeuta. Uma pequena pergunta o que é esse "disto"? - tinha
contribuído para uma aproximação daquele modo de existir, para abrir um
caminho de pensamento.
Naquela hora bastava isso. Não era para aprofundar nada. A terapeuta
apenas deixou clara a sua disponibilidade para conversar e compartilhar com
ela o que viesse. Dizer mais teria sido excessivo.
Na sessão seguinte, logo ao sentar-se, a moça começou a falar:
-Eu não sei por onde começo. Com a outra psicóloga, estava tudo ainda
tão perto, fazia só uns quinze dias; acho que o que mais fiz foi chorar. Tinha
ainda constantemente diante de mim a cena do acidente; todas as noites
sonhava com isso. Era quase só disso que eu falava o tempo inteiro com ela.
Precisava me lembrar bem de como tinha sido tudo. Sabe que não me lembro
direito dele na hora do acidente? Ora, nem contei ainda pra você. Eu estava
com meu namorado. Sabe que nunca mais soube dele? Só me disseram, ainda
no primeiro hospital, que ele quase não se machucou. Acho que me machuquei
daquele jeito porque a lataria entrou no meu rosto. Sei lá. Também nem
adianta querer saber por que. Já aconteceu mesmo. Eu fiquei desacordada na
hora. Em seguida, por muito tempo, duas imagens não saíam da minha
cabeça: o carro rolando e depois eu mesma, quando já estava no hospital,
acho que algumas horas depois, passando a mão no meu rosto e percebendo
os ferimentos. Naquela hora, além da dor já compreendi o estrago que tinha
acontecido. Vou dizer uma coisa pra você: eu preferia ter morrido naquela hora.
O que adianta continuar vivendo desse jeito? Se eu digo isso, as pessoas
falam que não é certo a gente dizer isso. Mas só quem passa é que sabe...
Estava falando do meu namorado. Ele simplesmente sumiu. Eu queria muito ter
notícia dele. Eu gostava mesmo dele. Mas não quero que ele saiba de mim.
Deus me livre de ele me ver agora, Mas você não acha estranho ele nunca
mais procurar saber de mim? Ele poderia perguntar por mim a algum
conhecido. Ele sabe onde trabalho. Ele tinha meu telefone. Acho que ele não
quer mesmo saber. Eu conhecia um ou outro amigo dele, mas nunca mais vi
ninguém. A gente em geral saía só os dois. Ele dizia que não queria me dividir
com outras pessoas, que eu era só dele e ele era só meu, essas coisas, você
sabe. Romântico como só ele. Olhe só, vim aqui hoje achando que não ia
saber como começar, e não parei ainda de falar. Não sei se pra começar a
terapia a gente deve contar primeiro algumas coisas assim como idade, quem
são os pais, se tem irmãos, essas coisas. Não sei se é importante você saber
disso antes de começar. Já fui falando de qualquer jeito.
A terapeuta ouvia. Percebia na paciente o seu querer saber qual era o
modo certo de fazer terapia, mas o que aparecia principalmente eram o peso
que o acidente tinha em sua vida e o incômodo com a indiferença do
namorado. A terapeuta também pensou: "Estranho isso de ele não querer
saber o que aconteceu com a namorada." Mas não falou nada sobre isso, pois
não vinha ao caso esclarecer uma possível maneira estranha de ser de outra
pessoa que não a sua paciente. O importante era que a moça pudesse falar do
quanto ela achava isso estranho. Depois disse:
-Não se preocupe em falar numa certa ordem ou sequência. Fale o que
você tiver vontade.
-Acho que vou falar muito da mesma coisa, porque a minha vida está
resumida nisto: o que aconteceu e o que vai ser de mim agora. Parece que as
outras coisas, pois é óbvio que existem outras coisas na minha vida, foram
todas engolidas por isso. O jeito como tudo era antes é sempre comparado
com o como é agora; quando penso em como as coisas vão ser de agora em
diante, fica tudo ligado a isto de agora. E isto de agora é tão ruim... O que vai
ser de mim? Tenho sobrevivido dia por dia, mas tem hora em que acho que
não vou aguentar passar a vida desse jeito... Vai haver um momento em que
não vou saber o que fazer. Quando tento falar disso com alguma pessoa, já sei
o que vem: "Você está viva, isso é o mais importante; aparência não é o que
conta; você vale pelo que você é." Mas eu é que sei o que é amanhecer de um
jeito e na manhã do mesmo dia... Eu me conhecia do jeito que eu era antes. E
agora? Não sou a mesma. Não é questão de aparência. Falei pra você há
pouco que acho estranho ele não ter querido saber de mim. Não é nada
estranho. Ele não pode mesmo querer mais nada comigo. Nenhum homem vai
se interessar por mim.
Isso tudo, de um ponto em diante, ela disse chorando.
A terapeuta permanecia atenta e tocada pelo que via, pelo que escutava.
E o pior era se sentir como quem nada tem a dizer. Bem que se lembrou de
alguma coisa referente a questões, por exemplo, de autoestima, de identidade:
ela sente que não vai mais ser querida, valorizada; com a mudança de seu
rosto ela não está mais podendo se reconhecer como sendo ela. Mas pensou:
"Nossa, como isso é pouco! Tenho até vergonha de dizer pra ela alguma coisa
desse tipo. Como aquilo tudo pelo que ela está passando vai caber em
conceitos? Então disse apenas:
Você pode falar todo o tempo que quiser sobre o seu sofrimento, que
estou vendo que é muito grande.
-Tem sido difícil suportar sozinha a tristeza que sinto. Pois a verdade é
esta: estou sozinha. Ainda nos primeiros dias, as pessoas estavam muito
abaladas com o que tinha acontecido e me davam espaço pra que eu pudesse
estar infeliz; eu tinha dores no corpo, as cirurgias do rosto eram recentes,
enfim, é isso. Mas ninguém está aí pra ficar suportando tristezas dos outros por
muito tempo. As pessoas têm mais o que fazer na vida além disso, não é?
Conversaram algumas outras coisas até o final da sessão, e, quando acabou,
ela disse:
-Obrigada por ter me ouvido.
A moça, depois que saiu, pensou: "Falei mais do que imaginava. Ela
parece legal, é tranquila. Do jeito que estou, acho que é duro pra alguém me
aguentar. Nem eu estou me aguentando. Mas uma coisa ficou bem clara pra
mim: não esqueci ainda o fulano e não engulo isso de ele não ter se
preocupado em saber de mim. Tinha a impressão de que já era caso
encerrado, mas o assunto foi ele. Fazia tempo que não falava dele. Nem gosto
de contar essa mágoa pra ninguém. Remoer coisas sem solução me dá raiva.
Ninguém pode me dar de volta o que eu tinha, o que eu era. O que é que vai
adiantar ficar falando pra ela? Pode ser que eu acabe pior de tanto remexer.
Dá vontade de entregar os pontos, deixar como está."
Foi para casa e avisou a mãe que não queria jantar. Disse que estava
com dor de cabeça e foi para o quarto. Chorou como nos primeiros dias após o
acontecido e pensou: "Voltei pior de lá."
Agora, você que está lendo, olhe isso tudo com bastante objetividade. O
fato é que na estrada tal, no dia tal, um homem e uma mulher viajavam num
carro que rolou numa ribanceira. Com ele não aconteceu quase nada, e ela
ficou gravemente ferida, principalmente no rosto. Foram atendidos no hospital
X. Ele foi logo liberado e ela, após os primeiros socorros, foi removida para
outro hospital, onde sofreu algumas cirurgias no rosto.
Esse é o fato, que pode aparecer numa notícia de jornal como tantas
outras equivalentes e até piores. Já estamos acostumados com tantas
tragédias; lemos, pensamos um pouco nos perigos que nos rodeiam,
lastimamos que seja assim, e vamos cuidar da vida.
Mas, neste caso, estamos aqui envolvidos com essa moça que sofreu o
acidente. Não é a ocorrência de número tal entre outras naquele mês, naquela
estrada. Já não é mais um mero fato.
É uma pessoa que se feriu gravemente num acidente. Já não estamos
mais no domínio da mera objetividade neutra. A existência dela caiu sob o foco
do nosso olhar. E, quando a existência entra em foco, abre-se o mundo
humano, o mundo dos significados. O que é um acidente assim para essa
pessoa? Como fica o mundo dela? Como tem sido a sua história? Como vai ser
de agora em diante? Por que acontecem coisas assim? Como isso repercutiu
nas pessoas que a conhecem?
Por exemplo, como ficou a pessoa que dirigia o carro na hora do
acidente? Sei que era seu acompanhante quem dirigia. Aliás, uns dias antes,
ele havia dito a seu terapeuta: "Tenho saído com uma gata, coisa fina." Após o
acidente, não sei qual foi seu comentário com outras pessoas, mas, com o
terapeuta, o que ele conseguiu exprimir de mais profundo foi: "Cara, a gata deu
zebra." Isso mostra um modo de ser-no-mundo-com o outro. E como seria o
modo de ser dela com relação a ele?
Como terá se sentido a mãe dela? E seus amigos?
Para aquela psicóloga, que a viu machucada e agora é sua terapeuta,
isso tudo foi motivo de muitas indagações sobre a vida, não só o desastre em
si, como também a coincidência de encontrá-la de novo como sua paciente.
Neste começo de terapia, a terapeuta está se sentindo insegura. Depois
do primeiro atendimento, teve a impressão de que não sabia nada. Pensou:
"Nem sequer consigo ver qual é a queixa principal dela. Parece que toda ela é
uma queixa só. Não sei por onde a gente vai começar. O que eu tenho pra
dizer a ela? O que será que ela acha que posso fazer por ela? Será que ela
não vai ficar cada vez mais deprimida, e, se for assim, o que pode acontecer?
Nem quero pensar!"
No dia marcado para a próxima sessão, a paciente teve vontade de não
ir. Lembrou-se de que no outro dia havia voltado mais triste de lá. Mas, em
seguida, mudou de ideia: "Eu vou hoje.
Preciso falar pra ela uma coisa. Não posso ficar sozinha com isso. Pra
quem mais posso falar? Só espero que ela me entenda."
Foi para a sessão. Quando chegou, entretanto, em vez de entrar logo no
assunto que havia planejado, começou a falar de outra coisa. Achou importante
contar o que tinha sentido ao voltar para casa no outro dia.
-Na sessão passada, depois que saí daqui, me senti muito mal. Será que
vale a pena a gente ficar remexendo no que já passou? Não há nada que
possa ser mudado na minha vida. Vou falar, você vai me ouvir, mas o que
adianta? Já faz seis meses que tudo aconteceu. Nos primeiros dias, nas
primeiras semanas, eu estava como alguém que explodiu. Parece que havia
pedaços de mim jogados pra todo lado. De um dia pro outro minha vida tinha
se transformado numa coisa que eu não sabia o que era. De repente, eu
estranhava tudo, eu me estranhava, não sabia como lidar comigo mesma; não
queria me olhar no espelho; não queria que me vissem. Via que as pessoas
também não sabiam como agir comigo. Algumas ficavam com pena, outras
queriam parecer que não achavam nada tão terrível. O médico que me operou
foi super legal comigo. Ele sim, parece que ele via o quanto eu estava mal.
Disse que eu tinha me machucado muito, que seria preciso reconstituir meu
rosto. Eram vários os cortes que ele teria de suturar. Fiquei o maior tempo na
sala de cirurgia. E depois, então, quando já tinha voltado pro quarto, que susto
levei na hora em que fui ao banheiro e olhei no espelho. Parecia um monstro.
Chorei muito. Nessas primeiras noites me davam um remédio pra dormir. E
quando, já livre dos pontos, pude enxergar bem as cicatrizes! Nossa, naquela
hora pensei: "Por que não morri?"
A terapeuta ouvia, atenta ao que era dito e à emoção que estava ali.
A moça parou um pouco e pegou a caixa de lenços na mesinha que
estava ao lado. Só então a terapeuta percebeu que os lenços estavam quase
no fim.
-Acabei com seus lenços. É só começar a falar e dá nisso.
Virei uma chorona.
Enquanto isso a terapeuta pegou outra caixa, deu para ela e falou:
-Chorar pode fazer bem.
-Eu sei. Não há mesmo mais nada que eu possa fazer. Só que não sei até
quando suporto viver desse jeito. Não vejo solução pra minha vida. Está difícil,
entende? Não tenho mais direção. porque eu tinha um caminho pra seguir, mas
agora acabou tudo em nada. A minha vida ficou muito sem graça. Não há
sentido em nada. Sabe que de uns tempos pra cá tenho um sonho que se
repete muito? Não sei bem como é a história do sonho, mas sempre há um
pedaço em que escurece o céu e, de repente, é noite.... e me dá muito medo
aquele escuro.... muito medo. Não vejo nada. Acordo sempre nessa hora, e é
difícil dormir de novo. No dia seguinte, me levanto cansada. Quando acontece
isso, fica complicado trabalhar. Acho que esse sonho tem tudo a ver comigo.
Sabe que é assim mesmo que me sinto? Eu estou no escuro. É assim: nunca
mais vai amanhecer o dia... Nunca mais. Ontem mesmo tive esse sonho. Você
não concorda comigo?
- Você quer saber se concordo com a sua compreensão do sonho ou
pergunta se acho que nunca mais vai amanhecer o dia? -Tinha perguntado
sobre o sentido do sonho, porque acho que o sonho da gente sempre quer
dizer alguma coisa, não é? Eu já li sobre isso nas revistas. Agora, quanto à
outra coisa que você falou, sei que nunca mais vai amanhecer o dia. Você
entende o que quero dizer?
-Entendo o que você está dizendo. Parece que o seu sonho mostra
mesmo o momento que você vive agora: momento de uma mudança repentina,
a impossibilidade de enxergar qualquer coisa, porque falta luz. O escuro
assusta. E você acorda de tanto medo. O medo é de quê? Medo daquilo que já
aconteceu? Medo do que está por vir? Ou será medo porque não há nada por
vir? Medo porque não há futuro?
- É medo de tudo. Mesmo quando não tenho sonho nenhum, muitas
vezes acordo assustada. Faz muito tempo que não durmo direito. Você falou
de futuro. Eu não tenho mais futuro.
Quando não se tem o que esperar, mesmo que a gente ache que vai
continuar vivendo, não importa por quanto tempo, isso não é a mesma coisa
que ter futuro. Como é que a gente vive sem futuro?
-Será que não há futuro ou será que você não vê futuro porque está
escuro agora?
-De um jeito ou do outro, é a mesma coisa. Não posso ver nada porque
está escuro, e, ao mesmo tempo, porque não há nada lá na frente pra ser visto.
Eu sei que é assim. Tudo o que eu pretendia da vida, desde menina, acabou
aqui nesta escuridão que me dá medo. É como na noite do meu sonho. E eu
queria tanta coisa!
-E se, na sua noite, ao menos surgisse a lua pra clarear um pouco, uma
luazinha, só quarto crescente, depois, quem sabe, uma lua cheia? Será que
daria pra enxergar alguma coisa? E, se desse, o que você veria?
-Imagine só! A minha noite não tem lua nenhuma. E, mesmo que tivesse,
não ia adiantar nada. Pode ser até que desse pra ver alguma coisa, mas
seriam só coisas ruins. Não me iludo mais. Não espero mais nada de bom.
-E as coisas que acontecem na vida são só aquelas que a gente espera?
- Certamente não. Você pergunta isso justo pra mim! Não vale a pena
fazer planos. Quem passou pelo que eu passei não espera nada. A gente não
sabe de nada, não sabe do dia seguinte, não sabe nem do minuto seguinte.
Bobo é quem fica imaginando: "Vai ser assim, assim, vou fazer tal coisa, isso,
aquilo." Tudo besteira. Sem mais nem menos, sabe-se lá o que está por vir.
-Pois então!
Então o quê?
Ora, como saber o que pode ainda acontecer?
Eu só sei que na minha frente o que há é só um vazio. Quem sabe, se
você começar a aprender a perceber as coisas mesmo no escuro, você vai
poder distinguir um pouco mais o que ainda faz parte da sua vida, e, no meio
disso, talvez possa enxergar alguma coisa que não tenha se estragado por
completo, ou, talvez, alguma coisa não esperada possa acontecer.
-Não sei o que é pior, se é o vazio, o escuro onde não há nada pra se ver
ou se é o ruim que pode vir a qualquer hora. Sabe, na verdade, eu não quero
esperar nada. Esperança é coisa que não existe pra mim.
É isso. Ainda está tudo escuro. Vamos viver algum tempo no escuro.
A moça já tinha parado de chorar. Recolocou a caixa de lenços em cima
da mesa e disse:
-O pior é que, esteja claro ou esteja escuro, a vida não quer saber disso.
Com ânimo ou sem ânimo tenho de dar conta do meu trabalho, Pensando bem,
até é bom. Se não fosse isso, minha cabeça já teria estourado. Quando estou
muito envolvida com o trabalho, consigo me livrar um pouco dos meus
pensamentos ruins. Nos fins de semana fico pior. Ainda bem que tenho umas
amigas que me chamam pra fazer qualquer coisa, quase sempre um cinema.
Não curto mais ir a lugares movimentados.
-Que pensamentos ruins são esses que você tem? -Tudo o que
aconteceu. Isso me tira a vontade de viver.... Ter obrigações na vida é o que
me segura. O trabalho tem sido a minha salvação.
Ela passou a falar da sua rotina diária de trabalho, de um ou outro colega,
do filme a que tinha assistido no último fim de semana.
E assim a sessão tomou um rumo mais leve.
A paciente olhou no relógio e disse:
-Passou rápido. Já estamos terminando, não é? Engraçado, hoje eu tinha
vindo com vontade de falar especialmente sobre uma coisa, e acabei falando
de outra. Fica pra outra vez.
A moça foi para casa e, antes de dormir, ao fechar a janela do quarto, viu
um risquinho de lua. Lembrou-se da conversa que houve na terapia e olhou de
novo. "Era só o que faltava, eu aqui prestando atenção nessa bobagem",
pensou. E olhou mais uma vez antes de fechar a janela.
A terapeuta permaneceu ainda mais um tempo no consultório e começou
a se lembrar da sessão: "Ela repete tanto que não sabe até quando aguenta,
que preferia ter morrido. Será que pensa realmente em morrer? Pode ser só
força de expressão, e pode não ser. Disse que tem obrigações na vida. A que
será que ela se refere? Interessante o sonho. Parece um sonho exemplar. Não
vai mais amanhecer. Se o dia não amanhece não há o dia seguinte. Ela perdeu
o futuro. Viajei no sonho dela. Parece que senti o medo que ela sente do
escuro repentino. Também sinto uma coisa meio estranha quando o tempo
fecha de repente. E opressivo. Dá a impressão de que vai cair uma
tempestade. Mas parece que a ameaça que ela sente é diferente, a
tempestade dela já houve. O que assusta é nunca mais poder sair disso.
Acabei falando aquela história de lua. Será que foi meio bobo? Será que ela
percebeu o que eu quis dizer pra ela? Acho que essa história ainda vai voltar.
Como é mesmo o nome daquele texto? Ah... é Desfecho: encerramento de um
processo. Foi aí que li alguma coisa sobre a compreensão que começa na
penumbra, sobre a necessidade de não ter pressa. Ainda bem que hoje isto
caminhou; estava com medo de me sentir perdida na sessão. Ah, se
acontecesse alguma coisa boa na vida dela! O que é que poderia ser bom?
Não faço ideia. Neste momento, se alguém me perguntasse pra que serve a
terapia, ia ser difícil dizer. A gente pode tão pouco! Por que uma pessoa que
está tão infeliz pega o carro, enfrenta o trânsito, e vem se encontrar com a
gente? Vou levar este atendimento pra supervisão. Do jeito que ela estava no
dia do acidente..., é incrível o quanto ela está melhor. Naquele dia, pensei que
não houvesse o que fazer. O médico dela deve ser bom mesmo. Hoje dá pra
perceber como ela é. Falou que o médico havia dito que teria de reconstituir
seu rosto. Isso que é técnica! Ainda bem que isso existe. E a nossa técnica?
Não dá pra pensar por aí. Não posso pensar em reconstituir a vida dela. O que
será que eu posso?"
Na outra sessão a paciente demorou uns dez minutos para chegar. A
terapeuta pensou: "Será que ela não vem?"
Logo ao chegar, ela se desculpou pelo atraso; disse que precisou ficar
mais um pouquinho no trabalho. Em seguida começou a falar:
- Queria conversar sobre uma coisa aqui. Isso me incomoda muito. Já
contei pra você que estava com meu namorado naquele carro. Meu
namorado...., já nem sei se ele era meu namorado. Saíamos juntos muitas
vezes, todos os dias ele me mandava flores. Não sei mais se isso é namorar.
Mas o fato é que estava com ele naquele dia, voltando da praia. Saímos de
uma festa quase de manhã, tomamos café na padaria e pegamos a estrada. Tá
certo que eu tinha bebido, mas ele tinha bebido muito mais, isso sem contar o
resto. Em resumo, ninguém ali tinha condição de dirigir. O certo teria sido
descansar ao menos um pouco antes. Foi loucura. E ainda havia neblina. Mas
ele insistiu em vir. E aí deu no que deu. Não vi como foi o acidente, acho que
peguei no sono um pouco antes. Numa certa hora, só vi o carro virando morro
abaixo, e, quando parou, vi que havia sangue. Acho que eu tinha tentado
proteger o rosto com as mãos. O cinto de segurança impediu que eu fosse
jogada pra fora, mas assim mesmo devo ter me batido muito dentro do carro.
Depois não vi mais nada. Daí só me lembro de estar no hospital, alguém
limpava meu rosto, me deram algum remédio e dormi. Não o vi mais. Quando
consegui melhorar daquele estado, perguntei por ele, e me disseram que ele
estava bem e já tinha tido alta. Soube também que minha mãe tinha estado lá.
A tarde fui removida pro outro hospital, onde fiz as cirurgias. Aí minha mãe me
contou que ele havia sido muito bom, tinha pago os primeiros socorros, a
remoção de ambulância, enfim..., e que depois entraria em contato comigo.
Estou esperando até hoje... Só tinha o número do celular dele. Ele me dizia que
seu trabalho era prestação de serviço de informática pra várias empresas, não
tinha um lugar fixo de trabalho. Então, fiquei sem nenhuma referência. Começo
a falar e me desvio; o que queria comentar hoje com você é isto. Já aconteceu
de, em conversa comigo, pessoas do meu trabalho me dizerem qualquer coisa
que indica que elas acham que era eu quem estava dirigindo naquela hora.
Elas falam como quem tem certeza. De onde será que vem essa ideia das
pessoas? E tem mais. Minha mãe também já me disse isso. E não era eu. Não
que isso faça diferença agora. Mas não era. Não estou ficando louca pra
inventar isso. Sabe o que minha mãe chegou a me falar? "Tudo bem que você
não se lembre; você bateu muito a cabeça..." Isso é um absurdo! Como se não
bastasse tudo o mais, isso me incomoda muito. Digo pra pessoa que era ele
quem estava dirigindo; a pessoa acaba dizendo que isso não é o importante e
fica com uma cara de quem tolera que eu esteja mentindo, ou que esteja com a
cabeça atrapalhada, sei lá. E fico com isso só pra mim. Por que tenho de
passar por isso também? Será que, de repente, vou ter de acreditar mais nos
outros do que em mim? As vezes penso: "Como será que socorreram a gente?
Será que quem ajudou a gente a sair lá de baixo não viu que eu estava do lado
do passageiro?" Não vi nada, estava desacordada. Mas não posso duvidar de
mim. Pense bem: por que eu iria inventar uma coisa dessas?
Diante disso, a terapeuta se percebeu sem ter o que falar. A paciente
ficou quieta por algum tempo. A terapeuta se lembrou de que o modo como a
pessoa vê uma situação pode ser mais importante que o fato acontecido. Mas
pensou também que, neste caso, a questão da paciente era diferente; dizia
respeito exatamente ao fato de ela estar passando por mentirosa ou por
incapaz de se lembrar de algo tão importante. Essa era a questão da paciente
no momento. E a questão da terapeuta era: como é que eu entro nisso?
A moça continuou:
-Não é fácil. Posso ter muitos defeitos, mas mentirosa nunca fui. Também
não quero que pensem que estou desmemoriada. Um dia falei pra minha mãe
que eu não tinha perdido a memória. Daí ela me disse que tinha comentado
isso na cabeleireira, e uma psicóloga que estava lá explicou que, mesmo sem
perder a memória, eu devia ter me esquecido disso porque pra mim era difícil
admitir que eu tivesse feito uma coisa tão horrível. Então, veja, não tenho
saída. Você vê saída?
-O que você considera como saída? Seria conseguir que acreditem em
você?
-Acho que mereço que acreditem em mim. Veja bem, quanto a tudo o que
aconteceu, sei que não vai mudar nada se acreditarem ou não. Mas pra mim
faz muita diferença. Chego a ter medo de começar também a desconfiar de
mim. Será vai que acontecer isso?
Ninguém pode testemunhar a seu favor, não é?
É isso. Estou sozinha até nisso. Pensando agora. Você... você acredita
em mim?
-Não tenho nenhum motivo pra não acreditar em você... Mais que isso.
Acredito em você.
Quando a terapeuta disse isso, não foi para tranquilizar a moça. Era
realmente o que sentia. Ao dizer "acredito em você", ela pensou: "Até agora
nada me dá motivo pra não acreditar nela." A moça teve uma expressão de
alívio. Ficou quieta por algum tempo e disse depois:
-Já estava desistindo disso. Que bom!
Isso foi o que aconteceu de principal na sessão desse dia.
Depois que acabou, a terapeuta começou a refletir sobre o andamento
daquele encontro e pensou: "Será que estou sendo ingênua nisso? E se isso
for uma invenção meio delirante? Ou até uma mentira mesmo? Mas por que
também não pode ser verdade? Se o acidente foi no início da manhã, ainda
devia estar escuro, com neblina; se ninguém viu o que aconteceu, só vale a
palavra do namorado. Por que ele seria mais confiável que ela? É verdade que
ele deve ter providenciado o resgate, talvez tenha chamado gente pra ajudar,
também pagou o hospital. Mas também é verdade que sumiu depois. É
estranho alguém sumir desse jeito. Ela não parece de nenhum modo alguém
fora da realidade. Acho que é por isso que acredito nela. Pelo menos agora é
assim. Também não é minha função ser detetive. Deve ser duro saber que os
outros suspeitam assim da gente. Como se não bastasse tudo o mais, como
diz ela. Sem contar com a primeira entrevista, hoje foi nosso terceiro encontro.
Ainda é muito pouco pra saber como isto vai caminhar."
A moça foi para casa, conversou um pouco com a mãe, e depois folheou
uma revista que estava por ali. Fazia muito tempo que não lia nada. Ainda com
a revista nas mãos pensou: "Ela disse que acredita no que digo. Ainda bem.
Parece que acredita mesmo. Será que disse isso só pra eu me sentir melhor?
Mas se fosse só isso, acho que ela iria falar só a primeira parte, quando disse
que não tinha motivo pra não acreditar; mas ela acrescentou que acredita em
mim. Também acho que uma psicóloga não fala coisas só pra agradar. Aquela
que me atendeu lá no hospital me disse algumas vezes coisas duras de ouvir,
mas que eu precisava ouvir,"
Foi pensando coisas assim que ela dormiu nessa noite um pouco menos
infeliz.
Até agora estivemos falando sobre essas duas pessoas, a moça
acidentada e a psicóloga que passou a atendê-la como paciente. Outra pessoa
muito importante nesse caso, entretanto, é o homem que estava com ela
naquele carro.
A respeito dele, sei muito pouco. Sei que quando aquilo aconteceu fazia
pouco mais de um ano que ele estava em terapia. Ao começar o caso com a
moça, contou para seu terapeuta que ele estava saindo com uma garota linda,
corpo perfeito e "o rosto. então, difícil um mais bonito". Acrescentou que não
era nada sério, pois para ele as mulheres eram todas iguais, só mudando a
embalagem. Na sessão seguinte ao acidente, diante da pergunta do terapeuta
a respeito do que havia sentido quando viu o rosto dela desfigurado,
respondeu: "Sou muito sensível pra essas coisas, não aguento ver sangue.
Senti nojo."
Sei também que a partir desse dia seu terapeuta sentiu que não tinha
mais condição de atender esse paciente.
Fizeram mais algumas sessões até que um dia o terapeuta disse a ele
mais ou menos isto:
-Temos de conversar sobre uma coisa. Faz já algum tempo que estamos
juntos neste processo de terapia. Acho que conseguimos falar sobre uma
porção de coisas da sua vida, seus interesses, algumas questões de trabalho,
enfim, parece que conseguimos... Bem, mas agora, estou sentindo que alguma
coisa não está caminhando como acho que deveria. Certamente que é limite
meu. Em alguns momentos não estou à vontade com você em questões que
esbarram muito de perto com valores que são meus. Isso prejudica o
andamento da terapia. Acho que outro profissional poderia atender melhor
você. Não é certo prolongar a terapia deste jeito. Não sei se você percebe o
que está acontecendo da mesma forma como eu percebo.
-Pra falar a verdade, nunca reparei nisso. Acho que a gente conversa
legal. Se bem que, às vezes, você sai com umas perguntas muito caretas. Mas
nem todo mundo pensa como eu, sei disso. Se você não quer mais me
atender, ora... não tem problema nenhum. Valeu. Acho que até já durou tempo
demais! Foi bom pra eu ver bem quais são mesmo os planos que tenho pra
minha vida. É isso, é legal a gente se ouvir falando. Mas, cara, isso me pegou
de surpresa. Essa história de que é limite seu, de que não é certo continuar a
terapia desse jeito, é tudo um jeito de me mandar embora. É chato isso, sabia?
Não acho legal ser mandado embora. É traição da sua parte.
-Se esse tempo serviu pra você pensar realmente quais são os seus
planos pra sua vida, que bom! Quanto ao mais, acredite: não posso continuar
seu atendimento. Tenho aqui os nomes de duas pessoas que você poderá
procurar. E espero, de verdade, que dê certo.
O paciente colocou no bolso o papel com os nomes e disse com ironia:
Vou pensar no seu caso com carinho.
A conversa acabou aí, porque em seguida o paciente se levantou, abriu a
porta e saiu sem se despedir.
Depois disso, não soube mais dele. Não sei se procurou outro terapeuta.
Quanto à terapia da moça, que já dura uns três meses, as sessões têm
decorrido num clima depressivo, em que predominam pensamentos como
estes: "Que coisa é essa, a vida, em que, de uma hora pra outra tudo muda?
Por que essas puxadas de tapete? Por que comigo? Sofrimento tem alguma
finalidade?"
A terapeuta acompanha suas falas atentamente, com um interesse
genuíno, e, frequentemente, tem a impressão de que nada tem para oferecer à
paciente. E pensa: "Essas perguntas também são minhas. Qualquer coisa que
eu quisesse dizer a ela com a pretensão de responder soaria falso."
A moça sempre compara a sua vida de antes com a vida de agora. Antes,
o maior prazer em ir a festas, em sair com amigos, muitas paqueras. Hoje,
raramente sai. Vai uma vez ou outra ao cinema, de vez em quando vai com
uma amiga para a praia. Não tem vontade de conhecer ninguém. Não gosta
quando encontra velhos conhecidos.
Outro dia ela falou para a terapeuta:
-Ontem foi meu aniversário. Minha mãe fez um bolo pra mim. Eu não quis
chamar ninguém pra ir lá em casa. Mas tive uma surpresa lá no meu trabalho.
Eles levaram bolo com velinha e tudo.
Quantos anos você fez?
Vinte anos.
Chorou ao dizer isso, e acrescentou:
Não pensava que seria assim. Fazer vinte anos era pra ser um marco na
minha vida. Desde pequena eu achava que era o máximo fazer vinte anos: a
gente já não é uma menininha, e a vida está inteira. Cheguei deste jeito... Só
desilusão.
-Muita desilusão. Mas será que assim mesmo a sua vida não está aí? É
certo que ela tomou outro rumo, mas...
-Que é isso...? Não é que só tenha tomado outro rumo. Minha vida
acabou. Isso sim! Estou viva, mas nada tem sentido. Não posso planejar nada.
E a gente não vive sem planos.
-O que aconteceu não cabia nos seus planos. O que não é planejado
também acontece. A gente não se dá conta do quanto a vida está em aberto,
até que topa com o imprevisto.
-Ponha imprevisto nisso! Justo comigo, um imprevisto desse tamanho!
Por quê? Sempre planejei a minha vida. Sabe, desde pequena nunca fui maria-
vai-com-as-outras; sabia o que queria. Até pra comprar roupa eu preferia juntar
algum dinheiro que desse pra comprar o que era do meu gosto. Às vezes
acontecia de nunca chegar a hora de comprar porque, quando tinha juntado o
dinheiro, aquilo já tinha acabado na loja. Nem sei por que estou falando disso,
não vem ao caso agora. Já sei. Estava dizendo que tinha vontade própria.
Fazer planos era comigo! Nossa, quanto devaneio! Mas não eram coisas
absurdas. Sabia que não podia contar com minha família. Quando meu pai
morreu eu tinha dez anos e minha irmã cinco. Foi muito duro pra minha mãe
criar a gente. Ainda bem que me deram uma bolsa no colégio onde eu
estudava e consegui acabar o segundo grau. Minha irmã ainda está lá. Mas
não pude ir em seguida pra faculdade; cursinho é caro. Além disso, me envolvi
muito com meu trabalho, Minha mãe sozinha não dá conta de tudo. Ela já
trabalhou muito e não tem boa saúde. Eu pago o curso de inglês da minha
irmã. Não estou reclamando, não. É só pra dizer que, desde cedo, percebi que
a vida não era fácil e que eu dependia de mim mesma.
Entende? Isso faz a gente não ficar à espera do que aconteça. A gente
tem de fazer acontecer.
-É, não dá pra ficar só esperando sem fazer nada. -Eu não tenho dúvida.
Nada cai do céu.
-A gente tem de fazer o que pode ser feito pra conseguir o que acha
importante. Mas isso não dá garantia de que aquilo se realize. O que acontece
resulta da ação da gente e também de uma porção de outras coisas que a
gente não controla. Você não concorda com isso?
-E. Infelizmente às vezes é assim mesmo. As coisas podem fugir do
controle da gente. Disso eu sei. Mas, no meu caso, foi demais! Quando uma
coisa acontece a tal ponto fora de qualquer expectativa, tão absurdamente, dá
vontade de largar de tudo. A gente se desilude completamente, perde a
confiança na vida. Eu estou assim.
- Vejo que você perdeu a confiança. Mas como era a sua confiança
antes? Em que você confiava e depois deixou de confiar?
-Ora, eu sempre achei que a gente andando direito, fazendo as coisas
como devem ser feitas, a vida tinha de dar certo. O que você considera que é
dar certo a vida? -Cada um sabe o que considera que é dar certo a sua vida.
Acho que dar certo é realizar o que faz a pessoa feliz, é poder seguir o
caminho que a gente planejou.
-E o que você planejou pra sua vida?
Ah, tanta coisa! Sempre quis ser uma mulher com uma profissão, e há
muito tempo decidi que queria trabalhar nessas coisas que dizem respeito à
estética facial, corporal. Eu me imaginava lidando com cremes, maquiagem,
produtos pra cabelos, tudo que se refere à beleza. Isso pode parecer uma
futilidade, mas pra mim não. Quando era criança e me perguntavam o que eu
queria ser quando crescesse, dizia que queria ser dona de salão de beleza.
Talvez essa ideia tenha vindo porque parece que já nasci vaidosa. Gostava de
brincar de arrumar o cabelo das meninas, de maquiar as bonecas.
Você fala sobre seus planos de trabalho. E fala também que perdeu a
confiança na vida, perdeu a confiança na possibilidade de seus planos darem
certo. Essa desconfiança vem a partir do seu acidente, não é? Mas por que o
acidente a impediria de realizar o trabalho de que você tanto gosta?
-Dói ter de admitir isto. Dói dizer isto com todas as letras: eu fiquei feia.
Veja bem: “feia”. É a primeira vez que pronuncio essa palavra em voz alta pra
me referir a mim. Sempre falo coisas como "o que aconteceu comigo", ou "já
não sou como era antes", ou "não me reconheço", coisas mais ou menos
assim. Me dói dizer isto. Hoje eu sou feia. É assim que estou comemorando
meus vinte anos. Não é só uma questão de poder ter um determinado trabalho.
Mas o trabalho com que sempre sonhei me lembra a toda hora o que me
aconteceu, quer dizer, me lembra que estou feia. Não me acostumo com isso.
Sabe, de manhã eu tomo banho, escovo os dentes, passo um pente no cabelo
de qualquer jeito, um batom e saio, mal me olho no espelho. Eu não era assim.
Não gosto mais de me ver. Você acha que posso achar graça em circular pelos
lugares onde só se fala de beleza, eu, com esta cara?
Com aquela pergunta relativa a planos de trabalho, a terapeuta tinha tido
a intenção de aproximar para a moça a ideia de que sua vida não estava
completamente fechada. Aliás, ela continuava a trabalhar na mesma empresa
de antes, e, segundo o que havia contado, estava se dedicando muito às suas
novas funções. Mas o que aconteceu foi outra coisa: o pensamento da paciente
seguiu outro rumo, entrando fundo no foco de sua dor. E, chorando, a paciente
continuou:
-Vinte anos ontem, e deu tudo errado.
E a terapeuta pensou: "E agora? Ela tem razão no que está falando. Uma
vida toda baseada no fato de ser bonita. O que eu digo pra ela?"
Enquanto ainda pensava no que diria, ouviu da paciente: Você sabe o que
significa dar tudo errado? Aquilo em que a gente apostou, de repente, diz: isso
não é pra você, você não serve mais; bate com a porta na cara da gente.
Falando assim, você pode até pensar que fui sempre fútil. As pessoas
costumam dizer que beleza não é tudo, nem é o mais importante. Mas era
assim que eu me conhecia. E nunca tirei vantagem da minha aparência. Você
entende? Não faltam homens dispostos a fazer de tudo por causa de mulher
bonita. Ficam bobos. E há alguns velhos ricos, então, que são piores. Ainda
mais depois que inventaram o viagra. Coitados, eles se sentem tão poderosos!
Qualquer dia te conto as cantadas que já levei. Mas tive uma boa formação.
Acho que isso vem da educação que minha mãe me deu. Eu sabia que era
bonita, e procurava fazer disso uma coisa que me abrisse portas para o
trabalho. Não nego que sentia muito prazer quando as pessoas me olhavam,
me elogiavam, é natural. Qualquer mulher sabe que isso é muito bom. Eu
pretendia amar uma pessoa, queria casar, sabe? Como é que vai ser isso
agora? Não sei como começaria um namoro. E não é só por causa das minhas
cicatrizes. Há uma outra coisa. Como é que vou acreditar num homem agora?
Estava gostando dele, entende? Não sei o que pensar dele. Como é que uma
pessoa some assim? Confiar em quem?
-Você tem razão nisso tudo. E duro levar da vida uma puxada de tapete
como essa que você levou. Veja, mesmo sabendo que o sofrimento de cada
um é único, sabe o que me vem à lembrança neste instante? Um compositor,
um grande músico que fica completamente surdo. Olhe o que a vida apronta!
Já pensou no que significa para um grande músico não poder ouvir a música
que compõe? Você já ouviu a Nona Sinfonia de Beethoven? Pois ele mesmo
não ouviu. Ele tinha consigo os sons, a melodia, e deu aos outros essa música,
deu ao mundo. E ainda acrescentou no final a Ode à Alegria, melodia para os
versos de um poeta, Schiller. Não é demais? Justamente Ode à alegria.
Quando começou a ficar surdo, podemos imaginar que talvez ele tenha
pensado: "Justo comigo; como é que vou fazer música?" Pois ele fez. Agora,
com você, não sabemos ainda como vai ser. Mas acredito que a vida vai
mostrar no tempo certo.
-Esse era um gênio; já ouvi falar dele, mas eu não sou Beethoven.
-Não, não é. Você é você. Mais bonita ou menos bonita, você é você.
Ainda se tivesse ficado feia, você é você. O que você tem pra dar ao mundo?
-Nossa! Eu levei a maior paulada do mundo. Se tiver de dar alguma coisa
vai ser só a minha revolta. Não tenho mais nada. Me tomaram tudo.
E o que você pretende fazer pra manifestar a sua revolta? Sei lá!
Pense um pouco. Se revoltar contra o mundo, ora, isso é muito vago. O
mundo vai se importar com a sua revolta? Que coisas do mundo vão ser
atingidas por ela? Árvores, casas, carros, cachorros, ou o quê? São as
pessoas? Que pessoas?
-Sei lá! As pessoas más.
Pessoas más não costumam se importar com isso. -Depende. Mas, de
alguma forma, essas pessoas têm de pagar pelo que fazem.
Ao dizer isso, você pensa mais exatamente em quem? -Nele. Ele não
pode simplesmente fazer o que fez e ficar tudo por isso mesmo. O desastre foi
culpa dele. Depois pagou o hospital, grande coisa! Queria ver se eu tivesse
morrido. Como é que ele ia fazer pra se ver livre de mim? Ia me deixar largada
lá? Pensei muito em morrer depois. Quando comecei a vir aqui eu pensava
nisso. Tenho ainda em casa uma caixa dos remédios que tomei pra dormir no
hospital. Era só tomar tudo de uma vez. Ou podia fazer qualquer outra coisa;
há muitos jeitos de morrer. Só não faço isso porque tenho minha mãe e minha
irmã. Elas não merecem passar por isso. Já pensou? O que ia ser delas? Mas,
se eu morresse, quem sabe ele ficaria sabendo da notícia e teria remorso.
Sabe, por um tempo, pensei que, mesmo se resolvesse morrer, queria contar
essas coisas todas pra você, assim, pelo menos iria existir no mundo alguém
sabendo de tudo. Alguém precisava saber do quanto não aceito isso tudo. Não
aceito estas cicatrizes. Não aceito ter de passar por uma irresponsável que
causou o acidente e não é capaz de assumir isso. Não aceito ter tido um
homem que, depois de tudo, some como se tivesse evaporado, como se eu
tivesse sonhado que ele existiu. Isso não é justo comigo. Mas você tem razão.
Quem vai se importar com isso?
-Quando perguntei se o mundo iria se importar com a sua revolta, queria
que você tivesse a clareza de discriminar qual é o alvo dela, quem você quer
atingir. Você quer atingir alguém. Mas tem uma capacidade de amar que faz
com que não queira prejudicar certas pessoas, não quer, por exemplo, que sua
mãe e sua irmã sofram por você. Apesar da sua revolta, você mantém essa
capacidade de ter consideração, de ter cuidado para com os seres humanos.
Isso é sinal de que o que aconteceu não arrasou você completamente. Você
disse há pouco que tinha perdido a confiança na vida. Mas veja, você tem
confiado em mim, senão não estaria aqui abrindo todas essas coisas. Não
acho que você me conta essas coisas só pra que haja uma pessoa sabedora
de suas desgraças. Mesmo porque, o que eu faria com essas informações?
Você me vê como alguém que se importa com sua vida, que pode compartilhar
seu sofrimento. Então, você consegue sentir o que significa o outro ser
humano, e isso mostra que alguns aspectos do seu mundo, de você mesma,
estão preservados, e, se é assim, a vida ainda pode recobrar algum sentido.
Você disse que não é Beethoven. E não é mesmo. Quem é você? Como você
é? O que é próprio de você? Acho que seria bom você se conhecer mais, saber
que outras características também são suas, além daquelas, como a vaidade,
por exemplo. O que mais faz parte de você? De seu ser? Será que a sua
história acabou aí? Você tem consciência de que faria falta pra sua mãe, pra
sua irmã. Certamente faria falta pra muitas pessoas que gostam de você.
Quando eu disse que você é você, eu queria dizer que, embora possa ter
mudado alguma coisa em sua aparência física, você não deixou de ser quem é,
e sua história continua. Isso quer dizer também que, quanto aos seus projetos
de vida, eles vão continuar aí cobrando você, pedindo pra que sejam
realizados. Você realmente não é Beethoven, não tem de dar música ao
mundo. Olhe, tomara que você perceba que o que tem pra dar ao mundo
continua sendo a realização da sua vida da maneira mais plena que você
puder.
Neste ponto, a moça já não chorava. Sua expressão tinha mudado. E a
terapeuta estava meio assustada com o que tinha acabado de dizer. "De onde
saiu tudo isso que eu falei?", pensou ela. Depois que a sessão acabou, já fora
da sala, a terapeuta abraçou-a e disse: "Parabéns pelos seus vinte anos.
Desejo que você seja muito feliz."
A expressão da moça era a de quem percebia que esse cumprimento era
sincero, e, também com sinceridade, disse apenas:
Obrigada.
Quando chegou em casa sua mãe lhe disse que havia um recado do
hospital para que ela entrasse em contato com a secretária do seu médico.
Como já era noite, deixou para ligar no outro dia.
Na outra sessão houve este diálogo:
-Sabe, aquela música de que você falou? No outro dia, depois que saí
daqui, comprei o CD e escutei quando cheguei em casa. Aquele pedaço do
final a gente às vezes ouve nos casamentos, na saída dos noivos, não é? Eu
não sabia qual era o nome. Super lindo. E o cara surdo! Nunca tive costume de
ouvir música desse tipo. Minha mãe me disse: "O que deu em você? O maior
tempo sem ouvir nada e hoje vai ouvir logo Beethoven! Estou gostando de ver."
É verdade mesmo, nunca mais tinha ligado o som.
A terapeuta disse:
Que bom que você gostou! É lindo mesmo.
E acrescentou, meio cantarolando:
-E aquela do tchan-tchan-tchan-tchan, você já ouviu? E a paciente,
também cantarolando:
Esse pedaço do tchan-tchan-tchan-tchan já.
Foi inevitável que as duas rissem.
-Essa é dele também, é a Quinta.
Quinta o quê?
Sinfonia
Alguma coisa nova tinha surgido. Parece que veio do nada.
Na ida para casa a moça pegou um trânsito muito lento, c, num certo
momento, com o carro parado, ela olhou para o céu e viu a lua; era quarto
crescente. Uma bobagem, mas isso a fez se lembrar do dia em que a
terapeuta, a propósito do seu sonho com a noite repentina, tinha lhe falado da
possibilidade de haver uma lua em sua noite, ainda que fosse quase nada, só
quarto crescente. Ela se surpreendeu quando sentiu que tinha sorrido um
pouco. "Eu aqui presa neste trânsito. Rindo por quê? Devo estar mal mesmo",
pensou.
Uns dias depois, ela falou:
-Tinha me esquecido de contar pra você. Na semana passada recebi um
recado do consultório do meu cirurgião. É que estava na hora do retomo pra
uma avaliação de como tinha ficado meu rosto depois desses meses. Fui lá, e
ele me falou que está contente com o resultado, mas que ainda há o que ser
feito. Agora que meu rosto está desinchado é hora de alguns procedimentos
que podem melhorar mais minha aparência. Ele não entrou muito nos detalhes
do que deve ser feito, mas disse que há técnicas incríveis atualmente. Quando
eu disse que, provavelmente, isso tudo sairia muito caro, ele falou que havia
chance de fazer meu tratamento entrar como parte de uma pesquisa que está
realizando pro seu trabalho de pós-doutorado, e que ele dispõe de uma verba
pra isso. Ficou de me avisar quando devo voltar lá pra tratar desse assunto.
Ela acrescentou ainda:
-Você é a primeira pessoa pra quem estou contando isso. Não sei se
acho bom ou se fico com medo. Dá medo de depositar muita esperança e
depois não dar certo. Mas se der certo mesmo, não vou nem acreditar. Não
esperava mais nada. Na hora em que ele falou, e ele falou com tanta certeza,
fiquei emocionada. Por um momento me passou a ideia de que eu poderia
voltar a ser como antes.
-Você está feliz então com essa possibilidade.
-Não digo que não esteja, mas não quero embarcar em expectativas.
Numa sessão que ocorreu uns dois meses depois, a moça contou o
seguinte. Seu chefe pediu sua ajuda na preparação e na execução de um
evento, quando começariam a divulgar um novo produto. Ela achou difícil
responder na hora, ficou confusa, tentou recusar. Disse a ele que poderia
ajudar permanecendo no escritório. Diante disso, o chefe falou então: "Você
não acha que já está há tempo demais entocada nesse escritório? A gente
precisa de você lá fora também. As meninas que vão fazer as demonstrações
precisam de alguém como você, que tenha mais experiência e capacidade de
liderança. Até quando pensa que pode ficar fugindo do que é preciso fazer?
Não estou querendo pressionar você. Tenho respeitado esse seu tempo de
recuperação, sei que passou por um trauma grande, mas você não espera que
isso dure pra sempre, não é? Além de tudo, isso não faz bem pra você. Pense
sobre isso. Quero sua resposta afirmativa, certo?"
Acabou de relatar isso e acrescentou:
Fiquei aflita com essa história. Ele foi muito compreensivo esse tempo
todo. E verdade que tenho produzido bastante; o trabalho lá nunca esteve tão
bem organizado e em dia como depois que comecei a ficar no escritório. Por
que agora ele vem com isso? E ele estava falando sério. Tenho até medo de
não fazer o que está pedindo. E se ele me manda embora? Não posso correr
esse risco.
-É. Você tem aí uma questão pra resolver. Ou escolhe aceitar o trabalho,
colaborar com seu chefe e as colegas que precisam de você, ou, escolhe
continuar a se esconder. Do que você está se escondendo?
-Não estou propriamente me escondendo. Acontece que não tenho mais
a mesma desenvoltura pra aparecer em público. Se bem que, nesse evento, eu
estaria mais nos bastidores orientando e preparando as meninas. Mas, mesmo
assim, pra mim é duro, sabe?
-Você tem medo do quê?
-Não é medo. É que não gosto de saber que vão fazer comparações.
Nesses ambientes dão muito valor pra essas coisas. Uma espinha que surge
na testa de alguém já é motivo pra comentário, fulana engorda meio quilo e já
dizem que está gorda. É assim.
O pessoal que vai estar lá sabe do seu acidente?
-Ah, sim. Todo mundo sabe. Aliás, depois disso, já estive com quase
todas aquelas pessoas. O pessoal sempre foi muito simpático comigo.
-Então? O que acha que vai acontecer se, nesse ambiente de meninas
bonitas, você exibir seu rosto?
-Meu rosto era perfeito. Veja agora. Esta marca na minha testa, está até
um pouco afundada aqui e pela primeira vez ergueu a franja para mostrar,
cicatriz aqui, aqui, aqui. Você queria mais? Você não deve saber o que é isto,
porque seu rosto está intato. O que vai acontecer é que vou me lembrar mais
ainda do que perdi. Não venha me dizer que a beleza não é tudo, que a beleza
vem de dentro. Isso cu já ouvi demais. E também não quero que tenham pena
de mim.
-Concordo com tudo o que diz. Só não concordo quando diz que, se você
se expuser, vai se lembrar mais ainda do que perdeu. Talvez, num primeiro
momento, a lembrança venha mais intensa mesmo. Mas me parece que, a todo
momento, você já carrega essa lembrança do que foi perdido. Mais que uma
lembrança, parece que isso ocupa sempre o centro de tudo. É no que você
mais pensa. Sua aparência. Pode ser que, conseguindo se aproximar mais das
pessoas, perceba que elas não estão pensando em você o tempo todo. Elas
pensam em outras coisas também. É pra você mesma que você tem sido
preocupação todo o tempo. E você tem se visto sempre como se estivesse
reduzida a essas cicatrizes.
-Você está sendo dura.
- Estou dizendo o modo como vejo as coisas neste momento. Não dizer
isso seria, de pena de você, contribuir pra que continue a se esconder. E, pelo
que você contou, parece que, por meio de seu chefe, o mundo está dizendo
que precisa de você. -Já disse que não quero que ninguém tenha pena de mim.
Falei que você foi dura porque é duro ouvir isso. Sempre achei feio gente que
só pensa em si. E você me diz que só me preocupo comigo, que estou me
achando o centro de tudo. Pode ser que eu esteja me achando no centro, mas
não é por me sentir importante; é por causa da tristeza que sinto; isso me
impede de pensar noutra coisa.
- E é uma tristeza revoltada, que não pode aceitar o que se alterou em
seu rosto. Mas o fato de não aceitar não muda em nada o acontecido. Você
apenas se esconde e se fecha. Não gostaria de, mesmo triste, deixar entrar
mais ar na sua vida?
-Bem que gostaria. Tenho saudade da minha vida. E engraçado isso de
se ter saudade de si mesma. Pensando bem, não é só do meu rosto que tenho
saudade. E também de como eu era. Tinha o maior pique, tanto pra me divertir
como pra trabalhar. Acho que é por isso que meu chefe quer que eu volte a
participar das atividades. Mais um pouco e já vai fazer um ano do meu
acidente, e desde então estou neste desânimo. O que tenho feito é trabalhar,
saio muito pouco; ainda bem que minhas amigas me procuram; vou ao cinema.
Mas nunca mais saí com rapaz nenhum.
Outro dia estava com um colega de trabalho numa lanchonete no prédio
da empresa. Pedimos café e pão de queijo. Na hora de pegar o pão de queijo
no balcão, pusemos as mãos na mesma hora. Ele segurou minha mão por um
momento. Eu me assustei. Ele pediu desculpa e disse: "Não leve a mal, por
favor." Fiquei sem jeito e respondi que não era nada, que tinha sido um acaso.
Daí ele disse: "Não foi acaso. E já que fiz isso, quero te dizer uma coisa. Por
que a gente não sai um dia pra comer uma pizza, tomar qualquer coisa? A
gente podia se conhecer melhor fora do trabalho. A gente se dá tão bem. A não
ser que algum namorado ciumento não te deixe sair." Fiquei atrapalhada. Não
esperava. Disse que agora não, quem sabe algum dia, enfim, nem sei direito o
que falei. Ele disse que estava bem e ficou tudo por isso mesmo. Mas sabe que
depois fiquei me lembrando do toque da mão dele? Há quanto tempo não
tenho ninguém que me faça um carinho. Tenho saudade disso.
-Parece que você começa a querer ser feliz de novo. A sessão já estava
no final.
Ao sair a moça disse: -Valeu!
Depois, a terapeuta pensou; "Nossa, como foi duro dizer aquilo. Me
lembro do que senti ao vê-la pela primeira vez naquele hospital. Naquela
ocasião, como é que eu iria pensar que algum dia falaria isso pra ela? Mas a
vida dela tem de ser retomada. É aquela história do 'cuidado. O modo como ela
está cuidando da própria vida acaba por reduzir muito sua existência. Ela ainda
tem muito pela frente, não é justo que murche desse jeito. O fato de ter
conseguido se dedicar tanto ao trabalho, de pensar tanto na mãe e na irmã,
isso já mostra que ela tem garra. Mas ela tem mais o que viver. Como ela é
diferente daquela descrição feita pela tia fulana naquela noite em que contei da
moça que eu tinha visto no hospital. Esse aperto que o chefe deu pode ter sido
uma coisa boa. Curioso isso de terapia. A gente tem de aproveitar a chance
dada por coisas assim e entrar por aí. É isto. O desenrolar-se da vida é a
matéria-prima da terapia. É essa a matéria com que a gente trabalha. Mas é o
que se desenrola fora ou dentro da pessoa? Ora, esta pergunta não tem
sentido, se estou pensando na existência como ser-no-mundo; se só 'há'
'mundo' para o Dasein; se o Dasein 'precisa' de 'mundo' para ser. O que seria o
fora e o que seria o dentro? Acho que isso do desenrolar-se da vida deve ter a
ver com aquele tal acontecer das coisas, a tal doação de ser de que o
professor falava na palestra. É para o Dasein que tudo que 'e' se manifesta, é
para ele que a 'doação' de 'ser' se dá. Nossa, espero que eu não esteja
extrapolando. Mas é isso, a vida não para de acontecer. O paciente vem
porque, nesse acontecer, alguma coisa se complicou muito pra ele. E, durante
a terapia, tudo continua acontecendo, tanto dentro da sessão quanto fora dela.
Hoje, por exemplo, ela trouxe coisas que tinham acontecido lá no seu trabalho.
Olhamos para isso, e esse olhar é também um acontecer. Nós duas estávamos
atentas a algo que começou a se manifestar ali na sessão, algo que, como
sempre, mostra alguma coisa e oculta alguma coisa. E o que a gente tem de
fazer é ampliar a desocultação; é permitir que aquilo possa ser pensado, possa
ser posto em linguagem. Será que estou no caminho da fenomenologia? Houve
um momento em que me pareceu que ela ficou meio brava comigo, na hora em
que ela disse que eu estava sendo dura com ela. É compreensível que, depois
de tudo, ela encare como sendo rudeza qualquer coisa que pareça uma
cobrança; a vida é que tem uma dívida com ela. Só que a gente sabe que as
coisas não são assim. A vida é sempre credora. Ela pode dar no máximo uma
moratória, um prazo pra que a pessoa se reorganize. E é duro mesmo ouvir
isso. Ela não esperava o que eu disse. Eu podia ter comentado isso com ela,
ter falado do que ela sentiu com relação a mim; mas privilegiei outra coisa,
achei que devia falar dela com relação a ela mesma, com relação àquilo que
diz respeito à vida dela fora da sessão. A vida dela não gira em torno de mim; o
terapeuta não é o centro da vida do paciente; não que isso não possa
acontecer e que não deva ser conversado quando acontece; mas não precisa
ser alimentado. Chega de pensar por hoje. Amanhã levo isso pra supervisão."
A moça saiu da sessão pensando: "Hoje estou cansada, Não estou bem.
Vou só tomar um leite e cair na cama; preciso dormir."
Num outro dia, num certo momento da sessão a conversa tomou este
rumo:
-Hoje participei de uma reunião com o pessoal lá do trabalho. Era pra
tratar do lançamento da linha de produtos que vem aí. A gente tem de começar
a campanha logo, pra ver se sai ainda este ano. Você sabe, isso envolve
contato com pessoal de publicidade. Eles precisam conhecer o produto. Eles
também querem saber pra que público o produto é destinado. O fulano, colega
nosso, já ficou de procurar um publicitário amigo dele. E. junto com isso, a
gente precisa continuar vendendo a linha de maquiagem. É por isso que meu
chefe me falou naquele dia que eu ia ter de trabalhar com as meninas que
desfilam. Já contei pra você que sou boa nisso. Elas sempre dizem que tenho
mão boa pra maquiar. Adoro isso. A mesma facilidade que tenho pra maquiar
as outras tenho também pra me maquiar, aliás, tinha. Agora não uso mais
nada. E rosto lavado e um batom de leve. As vezes olho o rosto de uma
mulher, pode ser em qualquer lugar, na fila do banco, no supermercado, e já
imagino como ficaria se fosse bem maquiado. Acho que a pessoa tem de ter
bom senso pra isso. Você não pode usar pra ir trabalhar, pra ir a uma reunião
de amigos, o mesmo que usaria pra uma festa à noite, um casamento, por
exemplo. Fica ridículo. Cada coisa na sua hora. Não gosto desse estilo perua.
Acho que as coisas têm de ter harmonia, têm de ser adequadas. A mesma
coisa é com roupas. Lá em casa, a gente nunca teve dinheiro sobrando, mas
eu sempre cuidei de me vestir de um modo que tivesse a ver com a ocasião.
Mesmo não tendo muita roupa, é sempre bom ter a roupa certa. Você não
acha? Minha irmã, ela tem quinze anos, sabe, ela é um pouco exagerada, mas
espero que aprenda. A gente estava falando de maquiagem, não é? Então, não
é só ir passando bases e sombras, essas coisas, mas a pessoa precisa cuidar
do estado da pele. Aprendi, acho que foi numa aula de biologia, que a pele é
um órgão. Não é incrível? Então, a gente tem de cuidar. Veja só, a pele está
em contato com o mundo externo, sofrendo agressões de fora o tempo todo,
essa poluição e tudo o mais. Falar em agressão..., veja o que aconteceu
comigo. Ponha agressão nisso que me aconteceu. E foi de uma hora pra outra.
O esperado é que a pele vá se transformando aos poucos; a pessoa
envelhece. Mas não isso de a gente amanhecer de um jeito e no fim do mesmo
dia estar desfigurada. Que ódio eu tenho daquele desgraçado. Maldita hora em
que conheci aquele cara. Não dá pra aceitar isso tudo que aconteceu.
-Essa é uma dessas coisas que a vida joga pra gente. Diante de algumas
coisas que a vida oferece, ou até mesmo empurra pra gente, é possível dizer
"não quero", é possível escolher recusar. Diante de outras, não. Ela não deixa
alternativa. Acontece e pronto. Não cabe escolha nesse momento. O que cabe
escolher depois é o modo como se vai viver com o acontecido. Ninguém
escolhe ter os ferimentos que você teve. Mas teve. E agora? Agora aparece um
novo campo de escolha. Como é que você vai querer viver com isso que
aconteceu? -Pra quem está de fora é fácil dizer isso. Eu não sei. Eu não tenho
escolha.
-Mas ter de escolher faz parte da vida. E se você não escolhe, está
escolhendo não escolher. Você quer transformar o resto da sua existência num
grande lamento por suas cicatrizes? Você já me falou várias vezes de seus
planos de vida, de suas metas, e de como elas foram interrompidas. Ter
planos, saber o que quer conseguir, claro que isso faz parte da vida. Mas o que
mais pra você significa existir? Será que era só mostrar o seu rosto bonito? O
que eu quero dizer é isto. O que mais existe pra nortear a sua existência? Tudo
o que você tinha pra realizar no mundo teria de passar, necessariamente, por
um rosto absolutamente perfeito?
-Pensando assim, eu sei que, tudo, não. Mas na prática é assim. A
pessoa aprende a se ver a vida inteira de um modo, a vida se encaminha por
ali, a história da gente vai sendo de um jeito, e a gente não sabe viver de outro
jeito.
-Será que é só questão de não saber viver de outro jeito? Será que, no
seu caso, isso não tem a ver com a vergonha que você sente do seu rosto?
-Não, não é vergonha. Não acho que a pessoa deva ter vergonha de
alguma coisa que não é desonra, Mau-caratismo sim é que é vergonha. Não
uma doença ou outra coisa assim.
Outra coisa assim. Você quer dizer cicatrizes no rosto? É...
Se não é por vergonha, quando você não quer mais sair, não quer
conhecer gente, não quer rever pessoas, não quer aparecer junto às outras
meninas sem cicatrizes, por que é então? -Eu acho que tenho vergonha
mesmo.
E depois de um tempo:
Por que a gente sente vergonha?
Não sei exatamente por quê. Talvez seja porque a beleza, a perfeição de
formas, e isso sempre segundo alguns padrões, é um valor. Isso pode ser visto
na história toda da humanidade. E principalmente a beleza feminina. No seu
caso, se você sente vergonha, como é essa vergonha?
-É a comparação que me incomoda. Me incomoda o olhar da outra
pessoa. Se é alguém que já me conhecia, acho que está pensando "nossa,
como ela mudou, coitada": ou pode ser que, por dentro, ela diga "bem feito",
ou, mesmo que não seja tanto assim, pelo menos vai pensar "veja como a vida
é, essa aí, toda bonita, vaidosa, olha só agora". Você sabe como são as
pessoas. Você sabe que tem gente que gosta quando o outro se ferra. Tem
gente que não suporta ver que a outra pessoa tem alguma coisa que ela não
tem, ou que ela tem menos. Então, quando a gente perde, elas gostam. E, se é
alguém que não me conhecia deve pensar "o que será que aconteceu com
ela?", e, mesmo que não fique me perguntando, sei que depois vai perguntar
pra alguém. Isso me chateia, ser objeto de curiosidade para os outros,
entende?
-Ser objeto de curiosidade sempre chateia? Antes você achava muito ruim
quando as pessoas ficavam curiosas a respeito, por exemplo, do perfume que
você usava, ou de quem era seu novo namorado, ou coisas assim?
-Isso é diferente. É até estimulante saber que estão prestando atenção na
gente. Mas no meu caso agora é completamente outra coisa. Não é
propriamente a curiosidade que incomoda. É que ninguém gosta de se sentir
inferior.
-Então, o que incomoda, tanto na comparação que as pessoas podem
fazer como na curiosidade que elas podem ter, é se sentir inferior. Será que a
vergonha começa por aí? Acho que a vergonha é esse incômodo, não é?
-Mas você acha que alguém pode gostar de se sentir inferior?
-Acho que ninguém gosta de se sentir inferior. especialmente naquelas
coisas que valoriza. Se a pessoa valoriza muito a inteligência, não vai gostar de
se sentir inferior nessa área: se valoriza muito o dinheiro, mesma coisa; o bom
mecânico não quer perder em comparação com outro mecânico. Mas é
razoável poder admitir que outro possa ser mais inteligente, mais rico, melhor
mecânico; admitir a possibilidade de não ser o máximo, mesmo naquela coisa
que se valoriza tanto. Será que você não pode admitir não ser o máximo em
matéria de beleza? E aquilo que eu perguntei há pouco pra você. Será que
tudo que você pode e quer fazer na vida precisa depender de um rosto
absolutamente perfeito?
-Não. Absolutamente perfeito, não. Mas também você há de concordar
que não precisava ter estas marcas que ficaram. E minhas marcas não são só
no rosto... Sabe, elas ficaram na minha alma... Na estante lá de casa onde
estão os livros que foram do meu pai, vi um livro em francês com o nome La
mort dans l'âme, quer dizer, A morte na alma. É de um autor chamado Sartre,
não sei se você conhece. Eu não sei qual é o assunto do livro, mas na hora em
que vi esse título, pensei: "É isso o que eu tenho." Sabe, alguma coisa muito
profunda em mim morreu, e a dor é muito intensa. Você sabe o que é isso?
São sonhos perdidos, e quem está de fora poderia dizer: "Arrume outros
sonhos." Mas não é fácil. Porque os sonhos da gente envolvem outras
pessoas; a gente precisa poder confiar em alguém, senão como é que se pode
ser feliz? É horrível não poder acreditar em ninguém. Pior ainda, não poder
confiar nem em si mesma. Pois como é que vou confiar em mim, se pude me
enganar daquele jeito? Como é que a gente ama uma pessoa daquele tipo? Se
depois, até numa coisa tão concreta, de tanto todo mundo falar, quase perco a
certeza de que não era eu quem dirigia o carro? Quando a gente se arrisca a
perder até uma certeza como essa, o que sobra? Que papel eu fazia nessa
história? Quem era eu? Tem hora em que piro um pouco e acho que essa
história não existiu, ele não existiu. Se ele ao menos tivesse me procurado
depois, nem que fosse só pra saber como eu estava... Ele não precisava
continuar comigo, eu ia compreender. Mas sumir assim foi cruel. E isso. Foi
cruel. Como é que a gente vive depois, quando se perde toda a confiança,
quando não se espera nada?
-Será isso a morte na alma? Continuar se movendo, falando, cumprindo
as tarefas do dia-a-dia, mas sem encontrar nenhum "para quê" que valha a
pena. É isso?
-É. Alguma coisa essencial na gente morre... Depois de um pouco de
silêncio, ela continuou:
Sabe, ultimamente tem me vindo um outro pensamento: "Será que eu
também colaborei pra que isso tudo acontecesse? Como pude me enganar
tanto?" Fico com esta questão comigo: "Por que topei entrar num carro com
alguém totalmente bêbado dirigindo? Como me descuidei desse jeito?" As
vezes me pego pensando isso. É duro, sabe? Isso tem me incomodado. Mas
como é que eu podia não vir com ele? Eu tinha que voltar pra cá. E todo mundo
bebe mesmo, e a gente tem que voltar pra casa, não é?
Ah, não sei mais nada... Agora, ele..., ele sim, tinha que saber que estava
sem condição de dirigir. Tem hora em que não sei o que pensar dele. Como ele
pôde me abandonar desse jeito? Às vezes sabe o que começo a imaginar?
Imagino que ele teve alta do hospital, foi pra casa, que, aliás, nunca soube
onde era, e depois ele pode ter tido alguma coisa como uma hemorragia
interna, por exemplo; então ele morreu, e ninguém pôde me avisar; nem
sabiam que eu existia. Penso coisas assim. Tudo é possível. Nem tenho
certeza do nome dele pra poder perguntar. Sabia o nome, é lógico, mas não o
sobrenome. A gente se chamava por apelidos carinhosos. E o trabalho, eu já
contei pra você, ele dizia que prestava serviço de informática a algumas
empresas. Nunca vi um documento dele. Também era só o que faltava, a gente
pedir o documento de alguém com quem vai sair! Isso não tem cabimento.
Bom, mas sei que tudo isso é viagem minha. Ele deve é estar muito bem por
aí. Eu é que estou perdendo meu tempo pensando nisso. Claro que, quando
saiu do hospital, ele tinha sido bem examinado, não ia acontecer de morrer em
casa. O pessoal lá era cuidadoso. Eu, por exemplo, fui muito bem tratada. Mas
não adianta ficar lembrando disso agora; hoje nem dá mais tempo. Você não
se cansa de me ouvir falando sempre da mesma coisa? Há quanto tempo
venho aqui e o assunto é só esse. Mas se não for com você, com quem vou
falar dessas coisas?
-O que você fala é o que teria mesmo de falar. Não acho que seja sempre
a mesma coisa, não é uma repetição. A nossa conversa está caminhando.
Você não vê como está tendo coragem de tocar mais de perto nessas coisas
tão doloridas?
- Vejo. Mas até que ponto isso é bom? Não quero me afundar mais. Está
na hora de ir embora.
Depois da sessão, a terapeuta pensou no quanto é inesperado o rumo
que toma a conversa na terapia e como é importante estar atenta para
acompanhar o que surge. Quando começou o assunto sobre a reunião de
trabalho, ela imaginou que a moça fosse comunicar alguma decisão que
tivesse tomado referente ao aceitar ou não o que seu chefe havia pedido, mas
sua fala passou a ser sobre maquiagem, cuidados com a pele, moda, e daí
chegou à sua falta de sorte. Ela aproveitou alguns momentos para tocar na
necessidade de reencontrar novos caminhos de realização da vida, tentou
fazer com que a paciente entrasse em contato com seu sentimento de
vergonha pela aparência. Mas os toques dados por ela relativos a essas
importantes questões da existência da moça, mais do que terem servido para
que essas questões fossem pensadas no momento, abriram caminho para que
outras coisas se manifestassem: o cerne daquela dor, aquilo que a paciente
chamou de morte na alma: e uma possível parcela de sua responsabilidade
pelo acontecido.
Num outro dia, ao chegar, a moça foi logo dizendo:
Hoje vou deitar nesse divã. Mas se não me sentir bem eu sento, tá bom?
Acho que vai ser esquisito falar sem olhar pra você.
-Experimente.
Será?
Acomodou a almofada e deitou-se. Ficou uns minutos de olhos fechados
e calada, e depois abriu os olhos e falou:
-E estranho. Vou ficar olhando pro teto? Nunca tinha reparado no
revestimento desse teto. É outra a visão da sala, Mas sabe, hoje resolvi que
queria experimentar. Nos filmes a gente vê essa história de divă. Os pacientes
todos deitam pra falar?
Nem todos. Alguns deitam algumas vezes e outras vezes não. Mas deitar
facilita que a fala fique mais solta, que a pessoa se preocupe menos com a
coerência lógica daquilo que está falando.
Se eu tiver vontade de olhar pra trás, posso olhar? Pode, sempre que
quiser.
Sumiu tudo. Parece que não tenho nada pra falar.
Ficou quieta um pouco e depois disse:
-Tive um sonho que quero contar pra você. Foi anteontem. Sabe, aquele
tipo de sonho que contei uma vez continua. Aquela sensação de escuridão
repentina; só varia o lugar onde estou, Mas o de anteontem foi diferente. Havia
muita terra, mas terra marrom mesmo, cor de terra quando a gente pinta a terra
num desenho. Aqueles desenhos que a gente faz quando & criança: tem um
verde que a gente diz que é a grama; tem umas florzinhas; eu fazia sempre
umas florzinhas coloridas de cinco pétalas; e tem um marrom que a gente diz
que é a terra. Então, era um marrom assim. Muita terra, mas o diferente é que
era terra mexida, toda revirada. Sabe quando num lugar a terra está revolvida?
Era assim. O sonho é só isso. Muita terra marrom. Acordei em seguida e
pensei "Que sonho sem pé nem cabeça, vou contar pra ela."
A terapeuta pensou: "O que será isso? Por que ela salientou tanto essa
cor do desenho de criança?" E a paciente continuou: O que você acha?
-Vamos pensar no seu sonho. Acho interessante o seu modo de explicar
a cor da terra dizendo que é cor de terra de desenho de criança. Por que não é
só cor de terra e pronto?
-É que no sonho era importante a terra, mas a cor também era muito
nítida. Tem um marrom nas caixas de lápis de cor que é meio feio, mas tem um
marrom cor de terra que é bonito. Olhe o que estou falando: a terra marrom cor
do marrom cor de terra. Eu via bem essa cor no sonho.
Então a terra do seu sonho era bonita?
-Era bonita. O estranho era estar toda revolvida. Revolvida como? Teria
havido alguma coisa lá? -Não sei. Estava revolvida em toda a extensão.
A terapeuta ligou essa terra revolvida com o sentimento da moça de ter
tido sua vida toda mexida nos últimos tempos. Mas não disse isso. Apenas
perguntou:
Você já viu terra desse jeito?
-Assim, inteiramente mexida, não. Mas já vi quando em algum lugar vai
haver uma plantação e então eles mexem a terra antes, ou quando vão
construir alguma coisa numa região e revolvem tudo pra nivelar, pra preparar o
terreno. Entende? Acho que era assim. É possível que fossem plantar ou,
quem sabe, construir lá naquela terra.
A terapeuta pensou: "Ainda bem que não falei o que tinha pensado
antes." E disse:
-É, parece que sim. Numa terra bonita, marrom-cor-de-terra, alguma coisa
está pra ser plantada ou construída. E tem a cor dos desenhos de criança.
Desenhos de criança. Isso diz alguma coisa pra você?
Ora, desenhos de criança a gente só faz quando é criança. Depois, nunca
mais. Outras coisas também a gente perde quando cresce.
- Por exemplo?
Confiança.
-Mas no seu sonho há um toque de criança, há a cor de terra dos
desenhos de criança. Será que há um toque de confiança?
A moça rapidamente olhou para trás. Havia lágrimas em seu rosto quando
ela disse para a terapeuta:
- Será possível?
- É possível.
Ela voltou a olhar para a frente e ficou quieta por uns cinco minutos.
Depois a terapeuta perguntou:
Você quer contar em que está pensando agora? -Estava me lembrando
da última sessão. Mas acho que já pensei bastante sobre isso.
Ela passou a falar do fim de semana na praia com amigos de seu
trabalho.
No final da sessão, ao se sentar, ela disse..
-Estou um pouco atordoada, acho que me levantei muito depressa.
Estranhei logo no começo, mas acho que foi bom.
Depois que ela saiu, a terapeuta disse baixinho para si mesma: "Isto está
caminhando, que bom."
Num certo dia, logo ao se deitar no divã, a moça iniciou esta conversa:
Ontem as meninas foram fazer uma apresentação dos nossos cremes e
da linha de maquiagem num salão de chá aí num clube. Foi um chá
beneficente, e essa apresentação foi pra atrair a compra de convites pelas
sócias do clube. Pra nós isso também foi bom. E uma super propaganda.
Houve sorteio de umas cestinhas com alguns produtos. Há uns três dias,
quando planejamos como iria ser, dei a ideia de que, em vez de só fazer um
desfile das meninas já maquiadas, seria legal que elas, durante o chá, num
lugar visível para as convidadas, começassem a ter a pele preparada para a
maquiagem, quer dizer, alguém iria limpando, fazendo uma massagem,
hidratando a pele delas. Em seguida elas começariam a ser maquiadas, e,
depois, andariam pelo salão mostrando o resultado. Todo mundo lá gostou da
ideia, e meu chefe disse: "Você vai com elas como supervisora." Ele falou isso
tão sério que não tive como não concordar. Então, ontem cedo, resolvi cortar
umas pontas do meu cabelo, fiz um banho de creme, essas coisas. Fazia o
maior tempo que nem me lembrava de cabelo. Depois fui pro trabalho pra sair
de lá com o pessoal. Antes de sairmos meu chefe falou: "Como você não vai se
maquiar lá, vai ter de chegar já bem produzida. Trate de se embelezar." Eu não
tinha pensado em fazer isso nem lá, nem hora nenhuma. Já tinha feito muito
em ter dado um jeito no cabelo. Mas fazer o quê? Peguei a caixa com os
produtos que a gente costuma usar e fui em direção a um espelho. Nessa hora,
chegou um meu amigo e disse: "Sente aí que sou eu que vou maquiar você
hoje." Nem deu tempo de eu dizer que não precisava e ele já estava
protegendo a minha roupa com uma toalha. Eu sentei, ele pegou meu cabelo e
puxou meio pra trás, prendeu mais ou menos, e, nessa hora, pensei: "Minha
testa! Ele está vendo a minha testa." Isso foi muito ruim por um momento, mas
em seguida me acalmei e o que veio à minha cabeça foi isto: "Agora, seja o
que Deus quiser." E parei de me preocupar. Me entreguei à sensação boa de
ter alguém cuidando de mim; não fazia mal que ele pudesse observar bem de
perto as cicatrizes, que ele pusesse as mãos nelas. Há quanto tempo nem eu
mesma me olho direito. Meu rosto vê só água e sabonete. Ele passou um
creme hidratante, massageou bem devagar, com a maior paciência; passou
base, pó, blush, uma sombra leve nos olhos, delineador, rímel, tudo. Depois,
deu uma boa ajeitada no meu cabelo e pôs um espelho na minha frente. Disse:
"Agora olhe." Eu olhei, e como foi bom! Eu me reconheci; por um momento, vi
que eu estava ali de novo. Você sabe como é isso, não é? As lágrimas nessas
horas... Ele percebeu e disse: "Chorar justo agora, não! Você quer manchar
tudo e me fazer perder o meu trabalho?" Ele falou como quem brinca que está
bravo, cheio de carinho. Senti que foi com carinho que ele tratou do meu rosto.
Sabe que eu beijei as mãos dele? Eu disse: "Obrigada por tudo." E ele falou:
"Eu é que estou agradecido a você, menina. Há tempo estou esperando pra ver
esta minha amiga assim, linda, cheia de charme." Ele enxugou meus olhos,
deu uns retoques e disse: "Chega de conversa, anda logo senão a gente atrasa
tudo." Desci a escada numa correria, quase caí... nossa, já pensou se eu caio?
O pessoal já tinha ido. Mas deu tempo. O salão de chá ainda estava meio
vazio. Eu queria muito contar isso pra você. Foi um sucesso. A ideia que eu
tinha dado funcionou super. Hoje cedo fizemos uma avaliação de ontem e todo
mundo achou que foi um dos melhores eventos que a empresa já fez. Mas o
principal que eu quero dizer pra você é que, nos momentos em que estive lá,
quase não me lembrei de cicatriz nem de nada. Eu estava absorvida olhando o
andamento das coisas.
-Que coisa boa você está contando.
-Foi bom mesmo. Parece que aconteceu um pouco daquilo que você falou
há algum tempo. Aquilo... se eu ia escolher fazer da minha vida um lamento
pelas minhas cicatrizes; aquilo doeu, sabe? Mas acho que eu precisava ouvir
isso de alguém, não de qualquer pessoa, mas de você. No começo eu não iria
aguentar. Mas, de uns tempos pra cá, sinto que não quero que tenham pena de
mim. Então como é que vou ficar, eu mesma, me lamentando? Agora eu
penso, por que será que fiquei tanto tempo sem querer cuidar do meu rosto?
- Vejo aí aquela história do ou tudo ou nada: não aceito nada menos do
que o absolutamente completo, perfeito: o que for menos que isso não é digno
de mim. Mas vejo outra coisa também. Tendo os recursos de que você se
dispõe a prova disso está no resultado do trato que seu amigo deu no seu rosto
ontem - insistir em não minimizar as marcas que tanto a perturbam pode ser
um jeito de dizer sempre a si mesma: "O que foi feito de mim!" De alguma
forma você está sempre deixando muito evidentes os danos que sofreu,
lembrando a sua condição de vítima de coisas injustas, vítima de um mundo
injusto. Pense um pouco. Qual pode ser o sentido dessa, vamos dizer, greve
de beleza que você tem feito? Está certo que, nos primeiros meses, era
compreensível que não quisesse nem olhar no espelho pra não ver seu rosto
inchado, as manchas roxas e tudo o mais. Mas já faz algum tempo que você,
cujo trabalho é exatamente esse, corrigir imperfeições, ajudar a beleza, já
podia estar cuidando de se ajudar nesse aspecto. Não fazer isso que sentido
pode ter? Exatamente você pra quem ser bonita sempre significou tanto?
-Eu fui vítima sim. Mas não ponho isso como culpa de um mundo injusto.
Não seria certo cu pensar isso, porque no mundo tem gente boa também.
-Mas um mundo que permite acontecer o que aconteceu com você; um
mundo em que é possível uma menina sair de manhã de uma festa, linda, e, na
tarde do mesmo dia, ter de evitar o espelho pra não ver seu rosto ferido; um
mundo que abriga tanto. essas pessoas boas, como você acabou de dizer,
como abriga também pessoas capazes de agir como seu ex-namorado agiu,
talvez você considere esse um mundo culpado.
-Não tinha pensado com essas palavras, mas é isso mesmo. É muita
injustiça.
Se a vida, ou se o mundo aprontou isso com você, será que ao menos
você não poderia tratar a si mesma com mais carinho atenuando as marcas da
injustiça que sente que sofreu?
Ela olhou para trás e permaneceu um pouco de tempo olhando para a
terapeuta, que continuou a falar:
-Será que você não pode se desarmar um pouco e permitir que as
pessoas se cheguem a você? Seu amigo, ontem, precisou ser muito decidido
pra conseguir que você lhe desse a chance de poder ajudá-la. E olhe que o
que ele fez por você foi muito mais que uma maquiagem... Você percebe o
alcance disso que seu amigo fez por você?
Olhando de novo para a frente, a moça falou:
-Claro que sim. Não consigo nem dizer. Se eu contar isso pra alguém, vai
parecer uma banalidade: meu amigo me maquiou pra eu ir a um evento. Mas
só eu sei o que significou pra mim esse gesto dele. Sei, e não sei. Não sei se
foi o sentir o toque cuidadoso daquela mão no meu rosto tão maltratado, ou se
foi o fato de eu sentir que era como se ele estivesse me dizendo, sem falar
nada, alguma coisa como: "você importa pra mim". Alguma coisa se reabriu.
Ele apareceu na hora certa. Estava pensando agora também na decisão do
meu chefe de me mandar pra um trabalho externo. Ele deve ter insistido nisso
por achar que seria bom pra mim. E pra falar a verdade, foi bom mesmo. Se
dependesse só de mim, não sei se eu tomaria a iniciativa.
A conversa continuou, mas o principal que aconteceu foi isso.
Num outro dia, a moça começou a falar logo que deitou:
Um ano hoje. No ano passado era segunda-feira. Saímos da balada e
fomos tomar café da manhã numa padaria próxima. Nossa, hoje está tudo tão
claro! Comprei uns biscoitos pra comer no caminho, aqueles de polvilho. É uma
especialidade daquela padaria; já tinha comprado lá na semana anterior. Eu ia
começar a comer. Quando me viu abrindo a embalagem dos biscoitos, ele
disse: "Não coma isso no meu carro; vai fazer a maior porcaria." Deu um tapa
nas minhas mãos e os biscoitos caíram. Eu disse: "Para de ser grosso comigo."
E ele falou: "Se não está gostando, é só dizer; eu paro o carro e você desce."
Acho que me lembro disso porque na hora eu estranhei muito; foi a primeira
vez que ele falou desse jeito comigo; ele era um doce de pessoa. Fiquei quieta,
porque estava magoada. E, além disso, estava com muito sono. Devo ter
dormido em seguida. Hoje, contando isso aqui, eu penso: "Será que ele estava
começando a se cansar de mim?" Fazia um mês que a gente estava saindo, e
ele era o máximo em gentileza. Eu dizia para minhas amigas: "Encontrei o
homem da minha vida." E era isso mesmo. Estava apaixonada de fato, e certa
de que ele também estava por mim. Sabe que a lembrança que me vem dele
hoje me traz saudade? Eu gostei mesmo dele. A moça ficou quieta. A terapeuta
pensou: "Pelo que ela está contando, era ele mesmo quem estava dirigindo."
Esperou que ela se referisse a isso, mas não foi o que aconteceu. O que a
paciente disse foi isto:
-Nem eu me entendo. Como posso ainda me lembrar dele com saudade?
Foi só um mês. Mas nunca fui tão feliz como durante aquele mês. Todos os
dias o rapazinho da floricultura lá de perto do meu trabalho ia me levar um
botão de rosa vermelha em nome dele. Ele deve ter deixado pago o mês
inteiro. Eu punha o botão num vasinho solitário, sabe, aquele em que só cabe
uma flor. Ele dizia que mandava uma única flor porque eu era única. Era para
eu me lembrar disso. Depois eu ia colocando os botões juntos num vaso maior.
Minhas amigas iam todos os dias ver se já tinha chegado o botão do dia. Veja,
eu aqui me lembrando dessas bobagens. Um dia perguntei por que ele não
tinha se casado ainda, pois ele tem uns trinta e cinco ou quarenta anos, não
parece nem trinta, e ele disse que nunca tinha encontrado a mulher certa. Sabe
que pensei que poderia ser eu essa mulher?
Bem, em seguida acabou-se o tempo dos botões de rosa e agora estou
eu aqui falando de um homem que parece que não existiu. A terapeuta não
falou nada. Deixou que ela ficasse com suas recordações.
Depois a paciente continuou:
Agora, pondo os pés no chão, sabe o que meu chefe me disse hoje? Ele
falou que vou ter uma promoção. Na verdade, vou continuar fazendo a mesma
coisa, mas de um modo mais formal. Quero dizer, agora passo a ter
oficialmente um cargo no escritório, alguma coisa que tem mais a ver com a
administração da empresa. Vou precisar ter contato com os fornecedores, os
revendedores. Você já viu, não é? Não posso evitar o público. Isso ainda me
assusta, mas não tanto como antes. Ainda me vêm à cabeça aquelas ideias: "O
que será que tal pessoa está pensando do meu rosto? Será que está me
achando feia?" Mas vou em frente. Você deve ter notado que tenho me pintado
um pouco, não é?
-Tenho notado, sim. Foi a partir do dia daquele trabalho durante o chá
naquele clube.
-Foi mesmo. Aconteceu alguma coisa especial naquele dia. Meu amigo foi
demais. Depois daquele dia pensei: "Por que não? Maquiagem é pra isso
mesmo."
Sim, mas a questão é mais que se maquiar ou não. O que vejo se
passando com você é uma modificação mais profunda no seu modo de ser
diante da sua vida. Você está podendo encarar as pessoas sem se sentir tão
envergonhada e infeliz. Talvez haja nisso uma recuperação da possibilidade de
confiar, seja nas pessoas, seja no que as situações podem trazer pra você. Sei
que boba você não é pra acreditar que todo mundo é bom. Mas, quer você
queira quer você não queira, as coisas continuam acontecendo na sua vida.
Então, por que não abrir os olhos, os ouvidos e o coração, pra ver, ouvir e
sentir se chega alguma coisa boa no meio disso tudo? Por que não haveria de
chegar? Você está começando a poder estar de um modo diferente no seu
mundo: o mundo do seu trabalho, o mundo das amizades, o mundo das
pessoas desconhecidas, o mundo da sua relação com a beleza, o mundo da
dor, o mundo da saudade, enfim..., é isso.
Depois que meu chefe me falou da minha promoção, e ele disse que
tenho jeito pra essas coisas, me veio a ideia de fazer a faculdade de
administração. Se eu ganhar melhor, vou poder pagar a faculdade. Mas sabe
que tem hora que me dá vontade de estudar psicologia?
- Há muita coisa que está em aberto pra você.
- Isso é tudo muito novo. Minha cabeça está lotada de coisas em que
preciso pensar.
Duas semanas depois, ela disse para a terapeuta:
-Você se lembra de eu ter contado que meu médico falou de uns
tratamentos que pretendia fazer no meu rosto? Pois é, ontem a secretária dele
me chamou pra ir até lá. Ele reviu tudo, achou que a evolução foi muito boa,
melhor do que ele esperava. Disse que, quando me viu naquele dia no hospital,
ele não tinha muita esperança. Ontem ele me explicou o que foi preciso fazer
naquela hora. Eu tinha vários cortes, e dois deles muito profundos. Não se
tratava só de dar pontos. Acho que foi por isso que me removeram do primeiro
hospital para o outro. Era preciso fazer aproximações de camadas mais
profundas de pele, foi mais ou menos o que entendi. Ele disse que, felizmente,
minha pele é boa pra cicatrização, e isso ajudou. Aquele médico do primeiro
hospital foi consciencioso quando preferiu não mexer e me mandou pra um
lugar com mais recursos. Agora ele quer usar uma técnica que, segundo ele,
melhora muito a cicatriz. Nem me pergunte, porque não sei direito como é. De
um ponto em diante, não prestava mais atenção na explicação dele. Estava
pensando em como cheguei lá naquele dia. Pensava na sorte que tive de
encontrar esse médico... Que homem! Ah, e pra este afundamento aqui na
minha testa, ele disse que vai retirar um pouquinho de osso de alguma parte do
meu corpo mesmo, pra não haver rejeição, e vai colocar aqui. Disse que vai
ficar perfeito. Ele é muito otimista. Não sei como isso tudo pode fazer parte do
seu trabalho de pós-doutorado, como ele falou uma vez. Mas não compete a
mim ficar perguntando isso, não é? Perguntou se concordo com tudo. Eu disse
que sim. Marcamos pra fazer isso daqui a duas semanas mais ou menos.
Ótimo isso, não?
Ótimo mesmo.
Sabe em que estou pensando? Não sei falar do jeito como você falou
uma vez, mas é alguma coisa sobre aquela história de eu estar me vendo
como vítima de um mundo culpado; mas é do mundo mesmo que vem a ajuda
pra mim. Várias coisas que a gente já falou aqui me voltam agora à cabeça.
Ah, sabe, uma hora o Dr. Fulano falou pra assistente dele que estava perto:
"Veja que menina bonita, ainda bem que não estraguei o rosto dela." A médica
riu da brincadeira. Eu pensei: "Imagine, ele estragar o meu rosto. Justo ele! Ele
foi um anjo." Não falei nada, nem consegui dizer "obrigada". Estava com um nó
na garganta..
-Era gratidão, não era?
É isso mesmo. A você também sou grata.
Gratidão é uma qualidade humana muito importante. E rara. Mas tudo o
que temos feito aqui é trabalho de nós duas.
Depois disso, ficaram um bom tempo em silêncio.
Uma semana depois, antes de deitar, ela se sentou no divã, e disse:
-Hoje vi a foto dele na coluna social, com uma moça que não sei quem é.
Vi o sobrenome dele: Fulano de Tal e Tal, um dos diretores da empresa Tal.
Dizia o nome dela também, da alta sociedade. Levei um choque! Todo bonitão.
Eu estava em pé folheando o jornal enquanto esperava minha irmã acabar de
tomar café, porque eu ia dar carona pra ela até o colégio. Passei mal. Me
segurei na cadeira pra não cair. Minha irmã se assustou, minha mãe veio
correndo. Mostrei o jornal pra minha mãe: "Mãe, olhe ele aqui." Ela disse: "É
mesmo, o moço que falou comigo no hospital naquele dia." Desandei a chorar.
Só consegui sair à tarde pra trabalhar, porque não podia faltar de jeito nenhum
hoje. Bandido. Por que nunca mais me procurou? Como é que um ser humano
abandona outro ser humano desse jeito?
Depois disso deitou, virou para o canto, se encolheu, e só chorou, até o
final. A sessão desse dia consistiu no acolhimento silencioso dessa tristeza.
Paremos, por enquanto, essa história e deixemos em aberto os
desdobramentos da vida dessa moça.
Vamos refletir a respeito dessa terapia que imaginamos como exemplo.
Vocês repararam que, para descrever as sessões, trouxe aqui
acontecimentos exteriores ao espaço da terapia. Será que não bastaria termos
nos concentrado apenas no ocorrido nas sessões? O que conta para
compreendermos o processo terapêutico não seria apenas aquilo que se passa
no consultório, ou seja, a fala do paciente e a fala do terapeuta, as emoções ali
presentes?
Mas pensemos. Alguém, por exemplo, cujo trabalho consiste em fazer
objetos de barro, tem o momento, tem o espaço onde lida com o barro, tem o
modo de lidar com o barro. O barro é a matéria-prima com que ele trabalha.
Seu trabalho supõe que haja o barro. E a terapia? Ela se passa num certo
momento, num certo espaço, de um certo modo. E a matéria-prima do trabalho
de terapia é a vida. O trabalho do terapeuta supõe que haja o acontecer da
vida, e a vida é maior, é mais que o momento de terapia. Aliás, a terapia
também entra como parte da vida, o momento privilegiado em que se cuida do
seu sentido; em que se cuida do acontecer de tudo o que afeta aquela
existência. A terapia não trata de um "psicológico", como se isso fosse algo
desconectado de mundo. Mesmo quando o paciente está vivendo fora da
realidade que os outros compartilham, ainda assim é mundo. Ainda assim, ali
está o acontecer da vida, da sua vida. Considerado ontologicamente, Dasein é
sempre o 'aí' onde se 'dá" 'ser'. E 'ser' se 'dá' para Dasein nos acontecimentos,
nos entes, se mostrando e se ocultando. Onticamente, existir significa poder
ser afetado por tudo e ter de se haver com o que se deu, com o que se dá e
com o que pode vir a se dar. O trazido pelo paciente para a sessão de terapia
diz respeito ao seu viver, ao seu ser-no-mundo.
Uma determinada terapia só faz sentido quando referida ao existir de
alguém que concretamente existe. Por isso, para exemplificar um processo
terapêutico, quis trazer também a vida que se passa fora do consultório, pois é
diante disso que tem sentido o que é posto em linguagem e é vivido como
sentimentos na terapia.
A moça que serviu de exemplo foi imaginada como alguém cujo sentido
da vida se rompe de forma súbita e violenta. De uma hora para outra, tudo o
que compunha sua existência se desarranja, e seu futuro se fecha. O que
fazemos diante de alguém que vive um momento assim? Nosso primeiro
sentimento é de total impotência. Mesmo que o terapeuta acredite que existir é
vir-a-ser, que possibilidades estão em aberto, não leva a nada a pressa em
querer que a outra pessoa também acredite nisso. Diante de perdas muito
grandes, insistir em que o paciente veja que o futuro está aberto, ou é algo que
não chega até ele-ele não tem ainda como aceitar isso, ou é algo que chega
até ele como um descaso ou incompreensão por parte do terapeuta. Há dores
ou desilusões que podem durar muito, muito tempo. As vezes podem durar a
vida inteira...
Neste exemplo, a terapeuta consegue trazer um elemento novo para ser
pensado quando, uma vez, depois de concordar com o quanto é sofrido levar
da vida uma grande puxada de tapete, introduz na conversa uma alusão a
Beethoven, que, depois de surdo, compõe uma grande sinfonia. E quando a
paciente responde que ele era um gênio, e ela não é ele, a terapeuta aproveita
para perguntar o que, exatamente não sendo ele, ela tem para dar ao mundo.
A ênfase aí não está nas possibilidades abertas, mas sim no 'ser devedor'. A
reação da paciente mostra alguma surpresa com a fala da terapeuta, tanto que
responde em seguida-provavelmente meio brava-que já tinha levado a maior
paulada do mundo, e, se tivesse de dar ainda alguma coisa, seria a sua revolta.
A terapeuta não insiste e, só mais adiante, diz a ela: "Quanto a seus projetos
de vida, eles vão continuar aí cobrando você."
Ela considera que isso poderá vir a ter sentido para a paciente, que, em
outros momentos, ao se referir ao valor do seu trabalho, às obrigações que
tinha na vida, à consideração pela mãe e pela irmã, já havia se mostrado como
alguém capaz de se sentir responsável. Então, acha que talvez aquela sua fala
possa ser acolhida.
Com um outro paciente, provavelmente, a terapeuta teria encaminhado a
conversa de uma outra maneira.
Embora seja difícil para a pessoa que perdeu muito começar a encontrar
alguma abertura para o futuro, a terapeuta está atenta para o que possa
favorecer a entrada nessa direção. Há uma sessão em que a paciente diz que
tem saudade da sua vida e conta a história do pão de queijo na lanchonete.
Isso surge como ocasião para lembrá-la de que há vida para ser vivida.
Havia dito antes que uma terapia só faz sentido com referência ao existir
concreto de alguém. O mesmo vale para o significado dos sonhos que um
paciente conta. Mesmo que, pelo fato de compartilharmos a linguagem,
possamos dispor de significados compartilhados culturalmente, ainda assim, os
significados contidos no sonho de um paciente devem ser procurados junto ao
contexto da sua vida. É só aí que um sonho pode ter sentido, e não dentro de
uma teoria de psicologia. E o sentido explicitado deve servir para ampliar a
compreensão que o paciente tem de como ele está sendo-no-mundo.
A terapeuta do nosso exemplo tem essa preocupação de perguntar, de
permanecer junto àquilo que a paciente tem a dizer sobre as imagens com as
quais ela compõe seu sonho. No sonho do céu que escurece de repente, a
própria moça fala do seu estar no escuro, do nunca mais amanhecer o dia.
Parece que não há muito o que acrescentar aí, mas a terapeuta traz à luz
outros desdobramentos dessa primeira compreensão: o aspecto brusco da
mudança, o não poder ver, o medo, a ausência de futuro, e, por fim, abre a
pergunta sobre o que ela veria se, com um mínimo de luz, pudesse enxergar
um pouco. E chega à perda da esperança. No sonho da terra revolvida, ela se
detém na terra que é cor de terra pintada com o marrom cor de terra de
desenho de criança. Com perguntas e paciência, se aproxima de algo que,
para a moça, diz respeito ao ser criança: a confiança. E sugere a ela: "Será
que aí há um toque de confiança?"
Não só no que se refere aos sonhos relatados, mas em toda a fala da
moça, a terapeuta se esforça para que aquilo se desdobre em significados ao
mesmo tempo mais precisos e mais amplos. Há um momento, por exemplo, em
que elas percorrem um caminho que passa pela possibilidade de fazer da vida
um grande lamento, pela vergonha do rosto, pelo valor da beleza, pelo ser
objeto de curiosidade, pelo temor da comparação, pelo sentir-se inferior, pela
necessidade de perfeição. Acabam por chegar ao sentimento da crueldade
daquela forma de abandono e àquilo que a paciente chama de morte na alma.
Em seguida, a moça consegue se aproximar de algo que, até aquele momento,
estava encoberto: sua parcela de responsabilidade pelo acontecido. "Como me
descuidei desse jeito?"
Se, como no dizer de Heidegger, a hermenêutica da facticidade tem a
tarefa de fazer o Dasein acessível a si mesmo com relação ao caráter de seu
ser, embora o dito por ele se refira a um outro contexto, onticamente é isso
também o que está acontecendo nessa terapia. O esforço aqui é para tornar a
facticidade de uma existência particular, ou seja, a existência daquela moça
que procurou a terapia, acessível a ela mesma. Terapeuta e paciente estão ali
num processo de interpretar e explicitar o que se manifesta ocultado naquilo
que aparece.
A terapeuta faz algumas considerações e perguntas, muito simples, que
têm a ver com o que está sendo falado. Por exemplo, quando a moça diz que
ficou muito aflita por seu chefe tê-la encarregado de um trabalho fora do
escritório, ela mostra que aí está uma questão que a paciente não pode deixar
de resolver: colaborar com o chefe e as colegas ou continuar a se esconder. E
ainda pergunta em seguida do que ela tem medo. A moça não havia dito nada
sobre se esconder, ao contrário, ela acha que não está propriamente se
escondendo, apenas não tem a mesma desenvoltura, e também diz que não
tem medo, apenas não gosta de comparações. A terapeuta, entretanto,
interpreta o "ficar aflita" diante do pedido do chefe como manifestação do
querer se esconder e do medo, e a conversa se encaminha de modo a mostrar
o quanto a paciente tem se fechado na preocupação consigo mesma. Em que
a terapeuta se baseia para dizer à paciente que ela está se escondendo, tem
medo e está o tempo todo fechada na preocupação consigo? Ela se baseia em
tudo o que vem aparecendo na terapia: desde o começo, no sonho em que
anoitece de repente, lá está o medo; ela se esconde no evitar as pessoas, se
esconde até de si mesma, mal se olha no espelho. Com medo e precisando se
esconder, faz sentido que ela se torne para si mesma o centro de sua
preocupação: ela "sabe" que as pessoas, quando a veem, ficam curiosas por
saber o que lhe aconteceu e vão perguntar a alguém; o trabalho com o qual
sempre sonhou faz com que se lembre, a toda hora, que está feia.
Quando, certa vez, a paciente pergunta por que será que ela passou tanto
tempo sem cuidar de seu rosto, a terapeuta, embora sem afirmar, sugere que
isso possa ser um modo de manter viva a marca do que sofreu por culpa de um
mundo injusto, um jeito de dizer sempre a si mesma: "O que foi feito de mim!"
Mas como ela sugere isso, se antes havia dito que a paciente quer esconder
suas marcas, quer se esconder? É que sentimentos se misturam. Alguém pode
não querer que vejam ou saibam o que o faz sofrer, e sentir, ao mesmo tempo,
que precisa conservar cuidadosamente registrado tudo o que diz respeito a
esse sofrer. Mas por que alguém pode querer manter a lembrança de algo
ruim? No caso dessa moça, se ela sofre com sua aparência, por que não
cuidar de melhorá-la? É que tentar melhorar alguma coisa significa dar espaço
para a esperança, e esperar supõe, em algum grau, confiar que algo possa vir,
ou seja, "se iludir de novo", e isso pode ser arriscado. Não investir na melhora
pode ser um jeito de dizer a si mesma: "Sei agora que a vida é cruel; que
bobagem é acreditar na vida!" E assim ela se instala na amargura, e, de
alguma forma, ali está o seu protesto. Vemos que o pensamento da terapeuta
vai à procura de um sentido mais amplo que poderia estar encoberto naquele
não se cuidar. E depois acena com uma possibilidade. "Será que ao menos
você não poderia tratar a si mesma com mais carinho?"
Notamos que, em alguns momentos, o encaminhamento da conversa
poderia ter sido outro. Assim, quando a terapeuta fala para a paciente o quanto
ela tem estado preocupada consigo mesma, a paciente diz: "Você está sendo
dura." A terapeuta poderia ter se detido nessa fala da paciente, algo que tinha
a ver com um sentimento relativo à terapeuta naquela hora. Considera,
entretanto, que o problema da moça não é basicamente com ela, a terapeuta;
sua questão é outra. Prioriza, então, a entrada em outra coisa mais importante
para a paciente: a relação que está sendo vivida com o mundo num sentido
mais abrangente.
Importante nessa terapia é o vínculo que se forma, e isso se mostra em
várias situações. Mesmo que em alguns momentos surja alguma irritação,
parece que a moça sente que é possível confiar na terapeuta. Já no início, um
dia ela pensa em não ir à terapia (quem sabe, até não voltar mais), mas muda
de ideia quando se lembra de que precisa contar uma coisa para a terapeuta, e
pensa: "Pra quem mais posso falar?" Num outro dia, vemos como para ela é
significativo saber que a terapeuta acredita nela, quando diz que não estava
dirigindo o carro. A ligação com a terapeuta se mostra também quando ela diz:
"Mesmo se eu resolvesse morrer, eu queria contar essas coisas todas pra
você, assim pelo menos ia existir no mundo alguém sabendo de tudo." Está
sempre presente a sua necessidade de compartilhar. Da parte da terapeuta
está presente a solicitude que acolhe.
A vinda dessa moça para a terapia exemplifica, num grau muito intenso, o
sentimento de estar desabrigado, de se encontrar na inospitalidade da
existência, isso que caracteriza, em geral, a procura de terapia. Embora
algumas coisas ainda tenham sentido para ela, por exemplo, manter seu
trabalho porque precisa ajudar a mãe e a irmã, os seus sonhos de mulher
jovem foram cortados de repente. Não há mais um futuro em que ela possa ser
feliz. Ela confiava em si mesma, nas pessoas, na vida que viria, e deixou de
confiar. Deixar de confiar é não mais acreditar, não mais esperar. O que
aconteceu em sua vida fez com que se petrificasse a capacidade de esperar
por qualquer outro acontecimento de natureza diferente daquele vivido, isto é, a
sua vida parou ali, o acontecido engole qualquer possibilidade diferente dele
mesmo. Não há, para ela, o poder ser diferente do que ela está sendo agora
(sentir-se feia, abandonada, infeliz); o poder ser diferente na atitude de um
homem (sedução e abandono); o poder ser diferente da vida (a vida que puxa o
tapete). É como se, para aquele Dasein, tudo o que pode ser já tivesse se
esgotado naquilo que foi; aquela abertura compreensiva está afinada no modo
amargo da desilusão, em que se estreitam demais as possibilidades de as
coisas acontecerem de outro modo, de 'ser' se 'dar' de outro modo, de
continuar a 'doação de ser.
Essa terapia ainda continua. Vimos como a moça chegou, como ela e a
terapeuta começaram um percurso que será longo. percurso do trabalho
terapêutico. Esse trabalho parte de um sentimento de estar desabrigado e
"caminha na direção da confiança, a afinação na qual Dasein se abre para a
manifestação dos acontecimentos que se dão, que se deram e que se darão
em sua história, acolhe-os, e, ao mesmo tempo, se entrega à doação que tudo
doa, se entrega à sua própria existência, se entrega à sua destinação
existencial".
Caminhar na direção da confiança é difícil para quem está vivendo com a
única certeza de que não pode confiar em ninguém, em nada, de que está
rodeado pela indiferença ou pela hostilidade do mundo. Para quem está
vivendo assim, não há o que esperar; a única dimensão da vida que se desvela
é a da falta de sentido. Diante da impossibilidade de se dedicar a um sentido,
ou a pessoa sucumbe de uma vez, ou se põe a, desesperadamente, procurar
estratégias de sobrevivência que possam preencher o vazio de sua vida.
Aquela expressão 'doação de ser' pertence a um contexto filosófico ligado
à questão relativa ao 'ser', contexto esse em que 'ser' é considerado como
sempre 'doado' ao homem, cuja 'existência' consiste em ser sempre a 'abertura'
para o 'ser'. Mas, como terapeutas, podemos compreender a expressão numa
referência à história vivida de cada um. Aí, então, cada vez que alguém fala ou
pensa coisas como: "Que é isso que me acontece? Como foi mesmo que se
deu tal coisa? Que significou tudo aquilo? O que será que vai acontecer
comigo? Não entendo o que acontece. Que bom que aconteceu isto! Não
espero que aconteça nada de bom. Para onde caminha o mundo?...", ele pode
não ser filósofo, mas o que está sempre em questão para ele é o ser: o que é,
o que foi, o que será; é sempre ser se dando nos acontecimentos da vida. O
homem não tem como deixar de ser essa abertura que, essencialmente, em
algum grau e de algum modo, compreende ser. Mas, em algum grau e de
algum modo também, sua compreensão não é completa, por isso ele continua
perguntando pelo que é, pelo que foi, pelo que vai ser. Mesmo quando, na
desilusão, não quer mais saber de nada, a pergunta emudece pela
perplexidade ou pelo desanimo, mas é perplexidade ou desânimo diante da
questão.
Quando dizemos que a terapia deveria caminhar na direção do
sentimento de confiança, de entrega à 'doação de ser', queremos realçar como
é importante que o paciente possa vir a sentir que sua história está se fazendo,
ela não acabou ainda; que, dia a dia, é inevitável que novos acontecimentos se
deem; que é possível que o sentido da sua vida venha a ser rearticulado. Isso
supõe primeiramente que ele possa desenvolver uma capacidade de aceitação
- e isso é difícil do que foi, do que está sendo, do que pode vir a ser, e de
acolhimento do que é dado, até como condição para poder transformar alguma
coisa.
Voltemos à nossa moça. No dia em que falou da foto no jornal, depois de
ter chorado a sessão inteira, já em pé, ela disse:
-Parece que estou acordando de um pesadelo pra entrar numa realidade
pior. Não há mais nada nublado; está tudo muito claro. Por eu ser bonita, ele
me quis. Da parte dele, essa foi a única coisa verdadeira. Nenhum afeto por
mim.
Nas sessões que se seguiram, o assunto principal foi sempre esse, a
frieza dele. As perguntas que apareciam eram sobre o porquê das mentiras a
respeito do seu trabalho, da sua vida. particular: "Será que ele tinha medo de
que eu quisesse explorá-lo de alguma maneira? Será que dou a impressão de
ser esse tipo de mulher? Será que eu tinha como perceber as mentiras e fui
muito tonta?"
Passado algum tempo, surgiu este diálogo numa sessão: - Estou
pensando naquele dia do acidente. Por muito menos, é aberto processo nesses
casos. Como foi que ele se saiu. disso? Já sei de onde veio essa história de
que era eu quem estava dirigindo. Nossa, será que o dinheiro pode tanto
assim?
- Pode. Dinheiro não pode tudo, mas pode muito.
Dinheiro não pode dar paz de consciência.... mas isso é pra quem tem
consciência.
Ficou um pouco quieta e em seguida falou:
-Um dia ainda acerto esse cara. Sabendo agora quem ele é, eu poderia ir
atrás dele; mas não quero fazer isso. Só sei que ainda vai chegar a hora desse
acerto de contas. Ah, se vai!
O tratamento planejado para ser feito em seu rosto deveria ter acontecido
uma semana depois do dia em que viu a foto dele no jornal. Ela não quis fazer
mais nada naquela ocasião. Só uns dois meses depois voltou a falar sobre
esse assunto. Então a terapeuta perguntou se ela havia desistido do
tratamento. E ela respondeu:
-Acho que o susto que levei com aquela foto e tudo mais que começou a
vir ao meu pensamento me deixaram meio atordoada. Eu me afundei no
trabalho, ainda mais depois que tive a promoção. Depois daquele dia em que vi
a foto dele fiquei diferente. Antes, era uma tristeza muito grande, uma
amargura, mas agora o que sinto é raiva: raiva dele sempre, e, às vezes, raiva
de mim, por ter sido tão boba. Perdi o ânimo de voltar ao médico pra tratar das
minhas cicatrizes. Você pode me achar meio louca, mas parece que até
comecei a querer que fique tudo como está. Em vista de como poderia ter
ficado, até que está ótimo. Já me acostumei, converso com naturalidade com
as pessoas. Pra que mais? Tenho saído com as meninas, fui outro dia a uma
festa. A única diferença é que namorar não faz mais parte dos meus planos.
-E por que não faz parte?
Ora, você sabe o porquê.
Imagino que tenha medo de que os homens sejam todos como aquele.
Não quer correr o risco de topar com um outro igual, não é? E agora, quanto a
não querer fazer o tratamento que seu médico propôs, por que será isso? Você
estava animada com a ideia. Por que será que você se recusa a melhorar
ainda mais sua aparência? Quer garantir que os homens não se aproximem de
você por achá-la bonita? Beleza se transformou numa coisa perigosa?
-Não é isso, é que estou assumindo agora a vida do jeito que ela é, e ela
é assim. E dura mesmo. Tudo o que me aconteceu serviu pra me mostrar que
eu era sonhadora demais, que cu acreditava nas pessoas. Minha mãe vivia me
prevenindo; ela me dizia pra ter cuidado com os homens. É o mesmo que ela
diz pra minha irmã agora. Parece que ela estava adivinhando o que iria me
acontecer. Já meu pai era diferente. Quando ele teve o enfarte eu tinha dez
anos. Meu pai me dizia sempre, meio brincando, mas ao mesmo tempo falando
sério: "Que filhinha bonitinha essa que eu tenho." Uma vez minha mãe disse
pra ele: "Pare de estragar a menina com essa bobagem de bonitinha." Nesse
dia, me lembro de ele ter dito: "Ela não vai se estragar por causa disso. O que
ela tem é um dom." Que saudade eu tenho do meu pai! Se ele estivesse vivo,
iria me dar o maior apoio nisso tudo. Sabe, ele era professor de literatura. Uma
pessoa muito sensível. Deu aula no colégio onde estudei. Por isso me deram a
bolsa de estudos depois que ele morreu. Minha mãe era diferente, sempre
muito preocupada e aflita com tudo. Ela era boa do jeito dela. Mas me diga
você. O que fiz de errado nessa história que me aconteceu? Se não tivesse
havido o acidente, e se ele passasse a me tratar mal como fez na hora em que
bateu nas minhas mãos e fez voar o pacote de biscoitos, eu teria percebido, eu
não iria continuar com ele. Maldita hora em que entrei naquele carro com ele
bêbado daquele jeito. Foi aí que eu errei... Estou me lembrando do meu pai: "O
que ela tem é um dom." Se estivesse aqui, ele iria dizer para eu ir, sim, fazer o
tratamento que o médico propôs. Sabe de uma coisa? Amanhã mesmo vou
ligar pra ele.
Pois é, seu pai chamava de dom alguma coisa que foi dada sem você
pedir, sem ir atrás. Aconteceu de você ter nascido assim. Por que não aceitar,
por que não manter uma coisa que você sempre sentiu como sendo boa? Por
outro lado, outras coisas sentidas como muito ruins também aconteceram sem
que você fosse atrás delas. Essas também foram dadas como se deram. E
essas, mesmo que custe, não há como recusar, porque elas se impuseram.
Então, se você está sendo capaz de aceitar a vida dura como ela é, como você
disse hoje, por que não aceitar, por que não receber também o que pode
chegar de bom pra você?
-Pensando bem, não tem cabimento, é até feio não aceitar uma coisa que
meu médico me ofereceu de boa vontade, que faz parte do trabalho dele. Isso
é até fazer pouco caso da sorte que tive de encontrar uma pessoa como ele.
Bendita hora em que, ao entrar naquele hospital, era ele quem estava de
plantão. Ele é uma pessoa especial. Gosto muito dele. -Imagino que goste
mesmo.
Depois disso, mais de dois anos já se passaram. Foram excelentes os
resultados dos tratamentos feitos pelo seu médico. Ficaram algumas marcas
ainda, muito mais leves, nada que estrague o conjunto do seu rosto. Ela se
cuida também com uma dermatologista que trabalha no consultório dele. E a
terapia continua. Depois de o mais urgente ter se acalmado, começaram a
chegar as lembranças mais antigas, alegrias e tristezas da infância e da
adolescência. Apareceram também as coisas novas, como ela costuma dizer,
algumas já sendo realizadas, como o progresso que ela tem tido na empresa
em que trabalha, e outras com as quais ela não sabe ainda o que fazer, coisas
que se anunciam... O que importa é que ela está sendo capaz de retomar o
cuidado da sua vida.
Outro dia ela contou para a terapeuta que, ao fazer uma limpeza de
armário, encontrou a caixinha quase cheia de remédios que havia trazido do
hospital e jogou os comprimidos na privada. Disse então:
-Vi os remédios e me lembrei de que, mesmo depois que comecei a vir
aqui, por algum tempo eu ainda queria morrer. Eu sabia que havia essa saída
pra mim. Mas isso foi sendo adiado até que, quando me dei conta, essa hora já
tinha passado..., não que a minha dor fosse menor. Não sei o que aconteceu.
Bem, eu sei que tem a ver com o fato de cu vir aqui. Será que falar ajuda? Só
sei que muita coisa mudou na minha vida, algumas coisas perderam a
importância que tinham, e outras se tornaram. importantes. Ah, por falar nisso,
na próxima semana eu não venho. Deu certo a abertura daquela filial da
empresa. Você se lembra de que falei disso há um tempo? É isso, vou ter de
viajar pra dar uma força para o pessoal de lá. A gente se vê só na outra
semana. O problema vai ser na faculdade, tenho provas marcadas. Mas eu
converso depois com os professores, a gente dá um jeito.
Ela falou um pouco mais sobre o trabalho e a faculdade até acabar a
sessão.
Nesse dia, depois que ela saiu, a terapeuta ficou se lembrando de
quando, no começo da terapia, tinha se perguntado: "O que posso fazer por
ela?" Até agora ainda não sabia dizer exatamente o que tinha feito, mas gostou
dessa ideia de ter contribuído para aquele adiamento da morte. E pensou:
"Enquanto isso, deu tempo de tanta coisa acontecer! Onde foi mesmo que eu li
dá-se tempo, dá-se ser? Lembrei. Está naquele texto Tempo e ser, de
Heidegger. Se bem que lá o sentido dessas expressões é outro. Lá se trata de
'tempo' e 'ser' como as questões do pensamento, as questões da filosofia...
Mas por que essas expressões me vieram à cabeça agora? Eu estava
pensando no dar-se de tempo e no dar-se de ser para cada ser humano, pois,
afinal, cada um tem de se haver constantemente com o sentido do seu ser e do
ser de tudo que se apresenta a ele e o afeta de algum modo; tem de se haver
com o sido, o estar sendo e o poder ser de sua existência, e o poder não ser...
É isso. Pensando na terapia, quanta coisa se deu nesse espaço de tempo!...
Só sei que, durante a terapia, ela foi escolhendo viver..., e, enquanto isso,
tivemos tempo... Mas, afinal, o que se deu aqui na terapia? Ela não conseguia
mais ver sentido em sua vida. Me lembro de quando ela falou da morte na
alma. Sinto e atravessamos um lugar muito árido. Mas em algum momento o
sentido da sua vida começou a ser rearticulado. Como é difícil falar disso! Não
sei dizer em que momento começou a se dar uma transformação, mas sei que
houve uma transformação. Ela era a própria imagem do desabrigo quando a
conheci. Nem sei bem quando e como foi que ela começou a aceitar e a
acolher aquilo que pôde ter sido dado, aquela possibilidade que, mesmo tão
indesejada, se realizou - o doloroso de sua vida -; nem quando e como foi que
ela começou a aceitar e a acolher o que pode estar sendo dado dia a dia e o
que poderá vir a ser dado, num ressurgimento da confiança que possibilita a
entrega ao que se apresenta a ela e a solicita. Parecia impossível. Mas
aconteceu. Sinto que hoje, ainda que com momentos de grande tristeza parte
da vida —, a existência dela pode conter, pode abarcar tanto isso faz aquela
desilusão tão grande, um pedaço de sua história, como a dimensão de futuro,
em que sua história continua. Estou me lembrando agora daquele seu antigo
sonho, em que nunca mais o dia iria amanhecer..."

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